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A capacitação dos brasileiros Como cuidar do social Os três programas sociais que mais deram certo na história moderna do Brasil são, pela ordem de importância, a escola pública, o salário mínimo e a aposentadoria rural. Covém dar um momento de descanso às teorias e às ideologias e recolher as lições destas experiências. Seguindo-lhes o exemplo, por iniciativas simples e práticas, teremos como nos unir para livrar o Brasil da miséria. Para ampliar o número de anos de escolarização das crianças brasileiras e para melhorar a qualidade do ensino temos de mudar o federalismo. Federalismo? Isso mesmo. Em tese, o governo federal deve cuidar das universidades, cada Estado de seus colégios de segundo grau e cada município de suas escolas de primeiro grau. Não pode, porém, funcionar assim, porque alguns Estados e municípios são relativamente ricos e outros muito pobres. Precisamos, por isso, continuar um processo, que já começou, de flexibilizar o federalismo. Os três níveis da federação devem associar-se em órgãos especiais para definir mínimos de investimento por aluno e de desempenho por escola, de primeiro ou segundo ciclo. Estes órgãos complementariam, por mecanismos de redistribuição dentro da federação, a receita das Estados e municípios que não conseguissem alcançar os mínimos de investimento. E interviriam, corretivamente, na rede escolar das unidades federadas que não cumprissem os mínimos de desempenho. Em seguida, trataríamos do conteúdo do ensino. Começaríamos a qualificar os professores para dar aulas que substituíssem a abrangência enciclopédica pelo aprofundamento seletivo e a memorização de fatos pelo cultivo de capacidades analíticas e práticas. O salário mínimo tem sido, no Brasil, a segunda melhor política social, perdendo só para a escola pública. Continua aviltado. Precisa e pode aumentar muito. Para isso, temos de acabar com os efeitos automáticos do salário mínimo sobre os outros salários e sobre as pensões. Não basta. Precisamos criar empregos para os trabalhadores mais pobres ao mesmo tempo que lhes elevamos o salário. A melhor maneira é acabar com todos

03 a Capacitação Dos Brasileiros

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    Como cuidar do social

    Os trs programas sociais que mais deram certo na histria moderna do Brasil so, pela ordem de importncia, a escola pblica, o salrio mnimo e a aposentadoria rural. Covm dar um momento de descanso s teorias e s ideologias e recolher as lies destas experincias. Seguindo-lhes o exemplo, por iniciativas simples e prticas, teremos como nos unir para livrar o Brasil da misria.

    Para ampliar o nmero de anos de escolarizao das crianas brasileiras e para melhorar a qualidade do ensino temos de mudar o federalismo. Federalismo? Isso mesmo. Em tese, o governo federal deve cuidar das universidades, cada Estado de seus colgios de segundo grau e cada municpio de suas escolas de primeiro grau. No pode, porm, funcionar assim, porque alguns Estados e municpios so relativamente ricos e outros muito pobres.

    Precisamos, por isso, continuar um processo, que j comeou, de flexibilizar o federalismo. Os trs nveis da federao devem associar-se em rgos especiais para definir mnimos de investimento por aluno e de desempenho por escola, de primeiro ou segundo ciclo. Estes rgos complementariam, por mecanismos de redistribuio dentro da federao, a receita das Estados e municpios que no conseguissem alcanar os mnimos de investimento. E interviriam, corretivamente, na rede escolar das unidades federadas que no cumprissem os mnimos de desempenho.

    Em seguida, trataramos do contedo do ensino. Comearamos a qualificar os professores para dar aulas que substitussem a abrangncia enciclopdica pelo aprofundamento seletivo e a memorizao de fatos pelo cultivo de capacidades analticas e prticas.

    O salrio mnimo tem sido, no Brasil, a segunda melhor poltica social, perdendo s para a escola pblica. Continua aviltado. Precisa e pode aumentar muito. Para isso, temos de acabar com os efeitos automticos do salrio mnimo sobre os outros salrios e sobre as penses.

    No basta. Precisamos criar empregos para os trabalhadores mais pobres ao mesmo tempo que lhes elevamos o salrio. A melhor maneira acabar com todos

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    os encargos sobre a folha de pagamentos, subsidiar, por concesses fiscais ao empregador, o salrio mnimo maior e elevar, em troca, a tributao do consumo.

    A aposentadoria rural a mais bem sucedida transferncia de renda a um grupo grande de pobres no Brasil. Precisamos encontrar outras. Nem a renda-mmina generalizada, nem a bolsa-escola distinguem, com eficincia, os grandes bolses de pobreza. H, porm, alternativas que o fazem. Uma delas regularizar a posse da terra nas periferias das metrpoles brasileiras, onde grande parte da populao mora em situao irregular, e fornecer material de construo subsidiado e orientao sobre maneiras baratas de construir. Esta soluo transfere propriedade e renda ao nosso maior bolso de pobreza. (O segundo maior so os lavradores, beneficiados pela aposentadoria rural.) E estimula atividades econmicas onde so mais necessrias.

    Estas idias no so minhas. So nossas. Apenas do continuidade s polticas sociais que mais fizeram diferena no Brasil. Aproveitam as melhores realizaes tanto do governo atual quanto do PT. Definem bases de uma unio nacional contra a pobreza, a ignorncia e a crueldade.

    Como melhorar o ensino

    Educao no Brasil no presta. Nosso problema de ensino no apenas de quantidade -- de mais vagas, escolas e professores. de qualidade: em todos os nveis, tanto na na grande maioria das escolas particulares quanto nas escolas pblicas, o ensino pior do que medocre; pssimo. Sua ruindade se torna mais patente medida que as atenes do pas se voltam para a difuso do ensino mdio.

    Pssima sob dois aspectos. Em primeiro lugar, porque falta a grande parte do professorado o domnio das matrias que ensina. Em segundo lugar, porque o ensino, mesmo nas escolas privadas frequentadas pelas classes abastadas, continua preocupado com a trasmisso de informaes. enciclopdico em vez de ser seletivo. factual em vez de ser analtico. simultaneamente massificado, individualista e autoritrio em vez de ser cooperativo. Sempre h o milagre dos talentos que se afirmam contra o meio. Mais importante a tragdia das vocaes,

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    que, aos milhes, nunca se revelam, sufocadas no bero por falta de instrumentos e de inspirao.

    A soluo comea na convergncia entre trs sries de iniciativas. Todas se aplicam, com ajustes, s outras reas da poltica social, inclusive a sade e a segurana.

    A primeira iniciativa a organizao de um ncleo de reformadores que dirija a reorientao do nosso ensino. E que nos d escolas que, prefirindo o aprofundamento instigante abrangncia superficial, usem a informao para desenvolver a capacidade de anlise.

    A segunda iniciativa a formao do professorado. Ganhos de salrio e melhores oportunidades devem estar condicionadas a todo um itinerrio de qualifacaes progressivamente mais exigentes. Os Estados e os Municpios tm de participar. S o governo federal, porm, pode bancar.

    A terceira iniciativa a associao do governo federal, dos Estados e dos Municpios em rgos transfederais que vigiem e assegurem o preenchimento de mnimos de investimento por aluno e de desempenho por escola. um sistema que exige para funcionar mecanismos de redistribuio de recursos dos Estados e Municpios mais ricos para os mais pobres. E que requer procedimentos para intervir, corretivamente, quando esses mnimos deixem de ser preenchidos. Ao cidado deve caber recurso rpido ao Judicirio, custa do Tesouro, sempre que os rgaos tansfederais malograrem em sua tarefa.

    Dessas iniciativas pode resultar uma escola pblica capaz de atrair a classe mdia. As melhores escolas devem ser as pblicas, como ocorre em muitos pases europeus. Beneficiria do ensino pblico, a classe mdia se tornar fiadora de sua qualidade, em proveito de toda a populao.

    A medida mais importante para alcanar os pobres um programa federal macio de bolsas de custeio que identifique em cada etapa do ensino as crianas mais dotadas ou aplicadas e que responda com ajuda pblica generosa a cada demonstrao de talento e de esforo. O resultado ser revelar entre nossas crianas, sobretudo nas pobres e de cor, a genialidade oculta da nao.

    Diz-se que reforma de educao s surte efeito a longo prazo. No

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    verdade. Um programa como esse produz efeitos imediatos e dramticos. Desperta ambies e emulaes em cada famlia brasileira. Respeita as crianas como gente grande. Fala s cabeas. Mas levanta o pas pelos coraes.

    Uma tragdia brasileira

    H um problema nacional que supera em urgncia todos os outros. Liga o econmico ao social. Est no topo das preocupaes populares segundo as sondagens de opinio. Esse problema o emprego.

    Entre um tero e pouco mais da metade da populao adulta do pas est no mercado informal de trabalho. Trabalha nas sombras, sem carteira assinada, sem direitos e sem perspectivas. Muitos so biscateiros, presos na zona entre o emprego e o desemprego: alguns mal alimentados, maltrapilhos e maltratados; outros relativamente remediados. Todos, porm, vivendo ao deus-dar, em trabalhos ocasionais. E dependentes, portanto, de apoio familiar.

    A parte mais pobre atua, entretanto, num mundo em que as famlias so quase to frgeis quanto os empregos. Nas periferias das grandes cidades brasileiras, uma me sozinha conduz uma de cada duas famlias. Os homens se revezam como companheiros temporrios enquanto as mulheres cumprem a tarefa herica de alimentar e de salvar os filhos.

    Essa situao transforma as polticas sociais em esforo para compensar o incompensvel. Reduz tanto o capacidade produtiva do pas quanto a dimenso de seu mercado interno. E semeia o medo entre todos os brasileiros.

    Consolidou-se a idia de que a nica resposta eficaz a essa tragdia nacional retomar o crescimento econmico. E, para retomar o crescimento, superar o desequilbrio das nossas contas externas, incentivando, por meio de polticas industriais e comerciais ativas, tanto as exportaes quanto a substituio competitiva de importaes. uma meia verdade. Leva-nos a pensar de trs para a frente.

    De fato, sem fazer crescer a economia no resgataremos metade da nao. O

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    chavo "crescimento com incluso" s ganha, porm, significado prtico por meio de trs compromissos.

    O primeiro compromisso -- dirigido aos que esto em cima -- o de garantir que viver de trabalhar e produzir seja melhor negcio, para quem tenha capital e conhecimento, do que viver de renda. Da a necessidade de um juro real que seja menor do que a taxa mdia de retorno dos negcios. E que no seja usado para equilibrar nossas contas externas por meio de uma recesso programada. Antes de mudar a cabea dos mercados a respeito do juro, preciso mudar a cabea do governo. A melhor maneira de faz-lo mudar o governo.

    O segundo compromisso -- endereado aos que esto no meio -- o de assegurar a milhes de empreendedores e profissionais emergentes ou potenciais acesso ao crdito e s capacitaes. E de fazer deles motor de crescimento.

    O terceiro compromisso -- destinado maioria em baixo -- o de salvar essa maioria da vida de biscateiro. A unificao dos mercados formal e informal de trabalho passa por iniciativas como desonerar a folha salarial de todos os tributos e encargos e condicionar os direitos e as vantagens tanto do empregado quanto do empregador -- inclusive o financiamento pblico ou privado -- legalizao da fora de trabalho de cada empreendimento.

    Dando a nmero muito maior de brasileiros condies para trabalhar e produzir com segurana que resolveremos, pouco a pouco, nossos problemas, inclusive o do desequilbrio externo. Fora da, no haver nem crescimento duradouro nem incluso social. O pas continuar dividido contra si mesmo. E injusto demais para ser livre, prspero ou grande.

    Ensino j

    O pas precisa tanto de controvrsia quanto de consenso. H tema, mais importante do que qualquer outro, a respeito do qual podemos construir convergncia fecunda: a maneira de melhorar a qualidade do ensino pblico.

    Nenhuma realizao do governo de Fernando Henrique Cardoso foi mais

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    benfica do que o aumento da escolaridade; especialmente, a difuso da escola mdia. Foi esforo de que participaram governadores, prefeitos e educadores de todos os partidos. Consolida-se nos quadros dirigentes do pas a convico de que a tarefa prioritria agora dar salto qualitativo na educao.

    Trs conjuntos de iniciativas nos permitiriam fazer muito com pouco, obtendo resultados que logo comeariam a transformar a vida brasileira, ainda que demorassem toda uma gerao a surtir seus efeitos mais poderosos.

    A primeira tarefa assegurar o cumprimento de mnimos de investimento por aluno e de desempenho por escola, primria ou secundria, em todo o Brasil. O meio para faz-lo flexibilizar o federalismo, associando os governos federal, estaduais e municipais em rgos colegiados, incumbidos de definir os mnimos, de supervisionar sua execuo, de intervir corretivamente quando deixassem de ser satisfeitos e de suplementar os recursos financeiros e humanos das estados e dos municpios mais pobres. caminho que j comeamos a percorrer. O ponto decisivo a negociao de pacto federativo que distingua entre duas situaes. Quando as faltas se originarem na incompetncia dos governos locais, a soluo sequestrar, sob a vigilncia dos tribunais, a parte pertinente do oramento estadual ou municipal e us-la para fazer cumprir os mnimos. Quando as faltas resultarem da pobreza das populaes e dos governos lcoais, a soluo redistribuir recursos dos estados ou municpios mais ricos para os mais pobres. Seria facilitada pela transformao de um IVA federalizado, repartido entre os estados, em fonte maior da receita pblica.

    A segunda obra a realizar mudar a natureza do ensino. Deve ter por orientao o aprofundamento seletivo em substituio ao enciclopodismo superficial, o cultivo de capacidades analticas no lugar da memorizao de fatos, e a cooperao construtiva na aprendizagem em vez da mistura de autoritarismo e de individualismo. Que o governo federal a ajude a formar professores capazes de praticar essa reorientao pedaggica, fornecendo a eles os materiais e os exemplos de que precisem e condicionando seus ganhos salariais a avanos de qualificao.

    A terceira proposta radicalizar a meritocracia por meio do educao. Temos de identificar, por critrios objetivos, os alunos mais aplicados ou

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    talentosos em todos os nveis do ensino, desde os primeiros anos. E passar a dot-los de estmulos especiais e de bolsas generosas, que suplementem um programa bsico e universal de bolsa-escola. Sero -- sobretudo os pobres e negros -- herdeiros da Repblica, em vez de serem herdeiros das famlias ricas que no tm. Formaro contra-elite republicana para competir com a elite de herdeiros que ainda concentra em suas mos riquezas e oportunidades. Abriro caminho para todos. Quebraremos, com isso, o marasmo do nepotismo e do fatalismo. Daremos incio escalada de energia e de ambio. O Brasil no ser apenas sacudido. Ser inspirado.

    Social fora de foco

    O governo Lula aderiu idia de "focalizar" as polticas sociais. Com isso, confirmou que est perdido.

    Focalizar as polticas sociais significa dirigir apenas aos mais carentes os recursos disponveis para o social. A focalizao se ope a polticas ditas universais: destinadas a todos. Segundo o raciocnio da focalizao, como o oramento limitado, precisa haver fila. Os mais pobres devem ser os primeiros na fila. Grande mal do Brasil, dizem, que os benefcios sociais vo em peso para quem menos precisa deles: a classe mdia, que, por exemplo, frequenta as universidades pblicas.

    Focalizar parece, portanto, exigncia de bom senso e de equidade. Nos Estados Unidos, onde fraqueja agora a imaginao transformadora, os filosfos se juntam aos tcnicos para alardear as excelncias dessa orientao. No falta no Brasil quem os siga.

    Orientao errada. Poltica social ramo da poltica, no da caridade. Nenhum dos pases europeus em que se consolidou a social-democracia chegou l priorizando polticas sociais focalizadas. Todos se dedicaram construo de polticas universais de educao, sade e previdncia. Apenas sobre essa base ofereceram ajuda maior aos mais pobres. Reformaram instituies para conseguir mais igualdade. Usaram poltica social para capacitar seus cidados, no para

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    atenuar os efeitos da falta de democratizao de oportunidades.

    Um dos objetivos da opo pela universalidade formar maioria que defenda o Estado social por se beneficiar com ele. Outro formar cidadania que tenha a segurana social necessria para constituir nao unida, capaz e inovadora. Poltica social no distribuio de esmola a necessitados enfileirados por ordem de suas necessidades. construo nacional. Programas s para os mais pobres -- ao invs de programas que incluam os mais pobres -- no resistem aos ciclos econmicos e polticos. Nos Estados Unidos, sede da propaganda em prol da focalizao, as polticas sociais universalizantes do presidente Roosevelt perduram. A "guerra contra a pobreza" do presidente Johnson sumiu.

    Esse debate tem significado especial para ns. O Brasil s muda quando a classe mdia se desgarra da plutocracia de vis colonial e passa a liderar reorientao do pas em proveito de todos. Entre ns, focalizao das polticas sociais referncia cifrada a guerra contra a classe mdia. Guerra que o governo atual conduz com afinco, convencido de ter na aliana entre financistas e famintos base melhor para hegemonia poltica duradoura. O exemplo mais claro do lado que o governo tomou ser a campanha que ele est prestes a deslanchar contra a j destruda universidade pblica e seus j arruinados professores.

    Poltica sria tragdia e transformao. trgico no poder concentrar no atendimento dos mais sofridos os recursos limitados do Estado. S por meio dessa tragdia, porm, que se transforma sociedade de dependentes em repblica de cidados.

    No culpemos pelo desvio da focalizao os tecnocratas que fazem no governo o que sempre apregoaram. Responsvel quem os chamou: o homem que -- sem clareza, sem coragem e sem fidelidade a compromissos histricos e eleitorais -- ocupa a Presidncia da Repblica.

    Justia racial j

    Das injustias que proliferam no Brasil, comprometendo nossa vitalidade e

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    adiando nosso engradecimento, nenhuma mais constante do que a injustia racial. Forjado sob a sombra da escravido africana, o pas ainda no conseguiu romper com os desdobramentos desse mal em nossa sociedade e em nossos coraes.

    Propem-se, em resposta, quotas raciais. Nossa atrao fatal s aparncias conciliadoras e s imitaes mal-informadas est empenhada nessa seudosoluo.

    Quotas raciais no convm ao Brasil. Em primeiro lugar, reproduzem a tendncia dos Estados Unidos para tratar justia racial como espcie de preliminar, separada de justia social. O contexto brasileiro ainda menos prprio para essa separao do que o americano. O resultado previsvel de reservas raciais ser promover e ao mesmo tempo estigmatizar elite afro-brasileira. Embora essa elite alegar representar a massa da gente oprimida de cor, acabar -- a julgar pela experincia de outras naes -- por representar a si mesma. A massa negra ficar onde sempre esteve -- no nada. E o resduo do exerccio ser a confirmao ntima do preconceito, obfuscada pelas hipocrisias aucaradas em que se especializam nossos quadros dirigentes. O critrio da "auto-identificao" como negro para fazer jus ao benefcio -- quase inevitvel dada a miscegenao racial da populao trabalhadora -- aumenta a probabilidade de fiasco.

    Em segundo lugar, o regime de quotas no serve porque e deve ser inconstitucional: fere qualquer entendimento contemporneo plausvel da igualdade perante a lei. Por isso mesmo s poderia ser institudo por iniciativa constitucional como foram as quotas adotadas na ndia para libertar os "intocveis". Nos Estados Unidos apenas os adversrios das polticas de "ao afirmativa" as descrevem como quotas. E o Judicirio vem impondo restries para assegurar que no funcionem como tal.

    Alternativa mais eficaz e mais justa nos obrigaria a trocar os chaves da pacificao pelos embates da transformao. O instrumento principal a identificao ativa dos alunos mais talentosos e aplicados em todos os nveis do ensino pblico, com preferncia dada no aos negros mas aos pobres. Trata-se de cercar esses estudantes de apoios financeiros e de estmulos intelectuais extraordinrios, levando-os s culminncias da formao, dentro e fora do Brasil. A maioria dos beneficiados seria automaticamente, de cor. Uma contraelite morena, negra e pobre seria preparada para disputar os lugares de nossa elite

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    branca de herdeiros. O impacto transformador sobre a sociedade brasileira seria imediato, insuflando ambies e mudando expectativas. O instrumento subsidirio o revigoramento das normas anti-discriminatrias. A ausncia de negros em qualquer organizao pblica ou privada deve ensejar suspeita de discriminao. Quadros espeicais de procuradores e de juzes devem poder exigir a ampliao dos esforos de recrutamento e investigar a imparcialidade dos procedimentos de avaliao.

    Tal alternativa bate de frente com o mtodo de Pncio Pilatos: delegar s auto-nomeadas lideranas negras a escolha do rumo a seguir. No se fazem repblicas por meio de tais delegaes cala-bocas. Fazem-se por mos de homens e mulheres que tenham tanto amor ao pas que se disponham a ser inconvenientes.

    Consenso para educar

    Se h tema que serve de base a convergncia nacional a educao. No cedo a ningum no ardor com que me oponho ao governo atual e ao iderio que ele herdou de seu antecessor. No me conformo, porm, em ver a luta indispensvel sobre o futuro do pas servir de pretexto para adiar obra de engradecimento para cuja realizao j existem meios e quase existe consenso.

    O ponto central simples: melhorar a qualidade do ensino pblico. Melhor-la ampliando e aprofundando o que j se conseguiu. Decompe-se essa tarefa em trs partes.

    A primeira parte a assegurar mnimos de investimento por aluno e de desempenho por escola. O Fundef iniciou esse processo para o ensino fundamental. Mas no basta. O maior obstculo ao esforo de ir mais longe est na rigidez do federalismo tradicional: a escola mdia e a escola fundamental esto sob a responsabilidade dos Estados e dos Municpios. Os efeitos das imensas diferenas de receitas tributrias e de capacidades administrativas dentro da Federao recaem sobre os alunos. A soluo flexibilizar o federalismo. Os governos federal, estaduais e municipais devem associar-se em rgos transfederais que vigiem a execuo dos mnimos de investimento e de desempenho, que intervenham

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    corretivamente quando eles deixem de ser atendidos e que possam redistribuir recursos e quadros de uma unidade da Federao para outra. Quando esse federalismo flexvel deixar de cumprir sua responsabildade, o Judicirio, provocado pelos cidados ou pelo Ministrio Pblico, interviria, delegando a gesto de escolas a administradores independentes e sequestrando os recursos oramentrios exigidos.

    A segunda parte reorientar o ensino. No se pode mudar tudo de uma vez. possvel, porm, dedicar faixas cada vez mais amplas de cada nvel da educao pblica a ensino que priviligie a capacitao analtica sobre a memorizao enciclopdica. Tratemos de qualificar e de incentivar os professores para isso, reconstruindo o antigo sistema das escolas normais, transformando o magistrio em carreira competitiva e atraente, preparando materiais pedaggicos que desmistifiquem o ensino capacitador e avaliando constantemente o resultado na sala de aula.

    A terceira parte dar vazo ao talento e ambio entre os alunos, sobretudo entre os alunos pobres. intolervel que nossos Newtons e Pascals continuem a morrer sem reconhecerem o que poderiam ter sido. O caminho complementar a Bolsa-Famlia por oportunidades especiais de estudo e de financiamento para os estudantes mais talentosos e aplicados, desde o ensino fundamental at a ps-graduao. Todos sero beneficiados quando a Repblica puder dizer aos mais brilhantes dos sem-herana: sejam meus herdeiros.

    O consenso a ser formado por esses trs conjuntos de iniciativas modesto e factvel: trabalharia com o que j existe. Governo e oposies, Estado e sociedade civil, poderiam ver-se como co-autores. Comear movimento nessa direo j seria soerguer o pas. A maior tristeza brasileira que uma energia desmesurada continua sem olhos para ver: uma fecundidade cega que vem de baixo se debate com uma esterilidade mope que vem de cima. Dizer que tem de ser assim trair o Brasil e mentir a ns mesmos.

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    O mais importante

    Falta ainda definir com clareza e com audcia o projeto educador capaz de dar braos e asas ao engenho dos brasileiros. Por si s, a perspectiva de cumprir essa tarefa justifica lutar pelo poder.

    A primazia da educao entre nossos problemas nacionais repousa sobre dois fundamentos. Uma dessas razes tem a ver com nosso modelo de desenvolvimento: no temos futuro como manancial de trabalho barato. No podemos ficar imprensados entre naes que acumulam conhecimento e naes que, at chegarem l, acumulam gente. A outra base diz respeito ao destino de nossa civilizao: o Brasil continua a ser o pas das energias frustradas. O tipo mais caracterstico do brasileiro hoje o um trabalhador subempregado, com auto-imagem pequeno-burguesa e com impulso de auto-ajuda e de iniciativa. Capacitar esse brasileiro comear a mudar tudo no Brasil.

    A substncia da transformao a efetuar em nosso sistema de ensino est, porm, longe de ser evidente. Compe-se de cinco elementos, cada um deles prefigurado por iniciativas que existem, ou que j existiram, entre ns.

    Em primeiro lugar, mnimos de investimento por aluno e de desempenho por escola, assegurados por rgos colegiados que associem os governos federal, estaduais e municipais. Tais colegiados estariam investidos de poderes para monitorar resultados, redistribuir recursos e reorganizar escolas ou sistemas escolares. Procuradores e juzes, provocados por cidados, teriam autoridade para intervir em carter emergencial quando esse federalismo flexvel deixasse de garantir os mnimos de investimento ou de desempenho.

    Em segundo lugar, imerso do aluno na escola. Temos de abolir o regime de turnos mltiplos. Escola que retm o aluno apenas por algumas horas por dia no tem como cumprir sua misso de se contrapor s limitaes do meio e de ser a voz do futuro.

    Em terceiro lugar, reorientao radical no contedo e no mtodo da educao pblica. Ensino que seja analtico em vez de ser informativo, que prefira

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    o aprofundamento exemplar e seletivo abrangncia enciclopdica, que substitua individualismo e autoritarismo na sala de aula por trabalho de equipe e que acostume o estudante ao enfrentamento entre idias contrastantes. a aplicao a todos os estgios do ensino das prticas caractersticas da construo da cincia mais avanada. O erro est em supor que essa pedagogia capacitadora tenha de abdicar do rigor. Deve, pelo contrrio, pautar-se por riqueza de contedos e de cobranas, na forma de provas constantes, tanto internas quanto externas.

    Em quarto lugar, apoios financeiros especiais e oportunidades de aprendizagem extraordinrias para os alunos mais talentosos e aplicados, sobretudo quando identificados entre os mais pobres. Para formar uma contra-elite republicana capaz de disputar com nossa elite de herdeiros e de chegar s culminncias da realizao intelectual. E para difundir desde j na sociedade brasileira uma dinmica de inquietao, de ambio e de esperana.

    Em quinto lugar, multiplicao, em cada nvel do ensino, por iniciativa do governo federal em parceria com os Estados e com os Municpios, de escolas exemplares, capazes de desbravar esse caminho e de atrair a classe mdia mais exigente. O momento em que escola pblica deixar de ser s para pobre ser o ponto da virada.

    Utopia? Nada disso. Vivel j, com instrumentos que, em sua maior parte, j esto disponveis. O resultado ser, em muito menos tempo do que se imagina, outro Brasil. Obra de visionrios prticos s ela nos libertar.

    Ensino e futuro

    Nada mais importante no Brasil de nossos dias do que a capacitao dos brasileiros por meio da melhora da qualidade da educao. E no esforo para melhorar-lhe a qualidade nada mais fundamental -- ou menos discutido -- do que o contedo e o mtodo do ensino. Entre ns, porm, debate-se qualquer coisa acerca do ensino menos o ensino em si mesmo. A controvrsia a respeito da orientao pedaggica continua desdenhada como luxo e divagao. Est errado, tragicamente errado.

    O Brasil no ascender no mundo na trilha da China, como pas de trabalho

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    barato e descartvel. No temos centenas de milhes de lavradores dispostos a fazer tudo por nada. O que ns temos, em meio a uma riqueza natural singular, so dezenas de milhes de trabalhadores, a maioira sem emprego seguro ou legal, marcados por energia desmedida e desequipada, em busca de oportunidade para subir a escada da qualificao educativa e da oportunidade econmica. Precisamos transformar o improviso acidental em flexibilidade pensada. Para isso, s h um jeito: mostrar aos jovens como fazer, ministrando-lhes ensino que, mais do que informativo, seja capacitador.

    Permito-me traduzir essa tese em depoimento pessoal. O maior educador da nao que tivemos foi Ansio Teixeira. Quando ele tinha mais de sessenta anos e eu menos de vinte, tornei-me seu amigo e interlocutor. Como secretrio de educao do governo de meu av na Bahia ele havia implantado a escola-parque, depois divulgado por mos de seu discpulo Darcy Ribeiro sob o nome de escola integral. O que ficou claro em minhas conversas incessantes com Ansio que a escola de tempo integral, com apoio amplo ao aluno, destinava-se a ser apenas o arcabouo fsico e social de uma educao revolucionria no mtodo e no contedo. Enciclopedismo superificial e inconsequente cederia lugar a ensino que mobilizasse a informao seletiva e aprofundada como palco para o desenvolvimento de capacidades analticas. Na Universidade de Columbia, Ansio se havia debruado sobre os escritos de John Dewey e encontrado na filosofia do pragmatismo americano incitamento para a revoluo de ensino que preconizava no Brasil. Julgava-se derrotado. Esquecera a advertncia de Unamuno: por serem vitoriosos os que se adaptam s ideias do mundo e derrotados os que exigem que o mundo se adapte a suas idias, dos derrotados que depende o avano da humanidade.

    Tomei como minha a causa do Ansio. No h futuro para ns sem que se instaure em nosso pas um ensino que substita o enciclopedismo pelo aprofundamento, a informao morta pela anlise viva, o individualismo e o autoritarismo na sala de aula pela cooperaco e a transmisso de um conhecimento tido por cannico pela experincia da dialtica de pontos de vista contrastantes. De todas essas formas, o que se impe a antecipao para cada estgio da aprendizagem, desde os primeiros, de caractersticas do trabalho cientfico e crtico mais alto.

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    Meu malogro na defesa dessa tese tem sido acachapante. Apesar dos muitos anos e dos numerosos contextos em que luto por ela, no consegui trazer para ela um nico dos meus concidados. Afirmo, entretanto, que nisso erram eles gravemente. Por isso, persistirei. Consolo-me com a observao do poeta Blake: se o tolo persistisse em sua tolice, ficaria sbio.

    O resgate da nao

    Quase trinta milhes de crianas e adolescentes brasileiros vivem na pobreza, muitos em extremos de misria e de abandono, sem perspectiva de levar uma vida diferente da vida dos pais. De seu resgate depende o futuro do Brasil.

    A melhor maneira de dar futuro a eles, e portanto ao pas, tornar a construo de um ensino pblico de qualidade o objetivo supremo do governo, subordinando tudo a essa exigncia. As iniciativas destinadas a aliviar, para esses jovens, os sofrimentos, as humilhaes e as incapacitaes da pobreza s sero efetivas se forem acessrias ao esforo de educar.

    As sondagens de opinio demonstram que nosso eleitorado coloca a educao bem baixo na hierarquia de suas preocupaes. Por isso, os marqueteiros aconselham os candidatos presidenciais a prometer empregos, segurana e sade, e at estradas e audes, antes de chegar a esse primo pobre das polticas pblicas que a capacitao dos brasileiros. No importa. Um candidato demonstrar sua devoo ao engradecimento do Brasil e dos brasileiros insistindo que o importante ter de aguardar at que se faa o indispensvel. E confiando em sua capacidade de persuadir os eleitores dessa verdade dura e emancipadora.

    No fundo, muito simples. O Brasil fervilha de energia e de engenho. De tudo o que lhe falta, o que mais lhe falta ensino pblico de qualidade para dar destino construtivo a essa ebulio que se dissipa no ar. Qual o cidado sensato que no trocaria um pas com estradas pavimentadas e gente ignorante por outro com suas estradas -- e at com suas fbricas -- destrudas, mas com populao capacitada? Este, ao contrrio daquele, detm a fonte da riqueza, o escudo da justia e a garantia da liberdade. At soluo para os problemas das finanas

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    pblicas possui: os mercados emprestam, a ttulo longo, a quem tenha capacidade para produzir; dos incapacitados, exigem retorno j. Essa, s essa, , portanto, a tarefa sagrada: construir ensino pblico que abra para o pas as portas de outro futuro. Minmos de investimentos por aluno e de desempenho por escola, asseguradas por mecanismos de investimento federal, de restribuio dentro da Federao e de interveno corretiva quando os mmimos deixarem de ser satisfeitos. Pr-escolar e escola no ciclo bsico de tempo integral, salvando a criana pobre das mazelas do meio e prestando-lhe ajuda alimentar e mdica abrangente. Universalizao da escola mdia. Pedagogia voltada para capacitao, tanto conceitual quanto prtica, no para decoreba. Formao de professores e de materiais pedaggicas para elevar a qualidade do ensino pblico a partir de modelos de excelncia que se multipliquem. Conquista da classe mdia para a escola pblica, como fiadora de sua qualidade, em proveito de todos. Oportunidades e apoios extraordinrios, de avano escolar e de subsdio econmico, para o aluno pobre e aplicado. E, com tudo isso, dinmica de emulao e de esperana na sociedade brasileira -- no depois, mas j.

    Quem conhece o assunto, sabe que tudo isso factvel com instrumentos que j temos. Agora a tarefa mostar ao povo brasileiro que esse o caminho para soerguer a nao. a redeno de nosso grande pas e a justificativa de nossas vidas de cidados.

    Revolucionar o ensino pblico

    Aprofundar a democracia, mudar o modelo econmico, revolucionar o ensino pblico -- essas as diretrizes da alternativa de que precisa o Brasil. Nenhuma das tres ir longe se no puder apoiar-se nas outras duas.

    A reflexo sobre o ensino deve comear na apreciao de um aparente paradoxo: o Brasil gasta muito em educao, luz de comparaes internacionais, e pouco parece obter em troca. A aparncia de paradoxo, porm, logo se dissipa quando se levam em conta as vastas desigualdades da sociedade brasileira -- entre as mais extremas de toda a histria humana -- e a falta entre ns de uma cultura familiar que preze o estudo e que exalte a excelncia acadmica. O resultado que um engenho assombroso costuma perder-se em improviso inculto. Num pas com

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    essas caractersticas, o investimento em educao no pode seguir a mdia internacional; precisa ser prioritrio e macio.

    Proponho que essa obra -- que no seria exagero chamar de libertadora -- se desenvolva simultaneamente em dois planos: o do esforo diuturno para expandir a abrangncia e melhorar a qualidade do sistema pblico e o da reorientao radical desse sistema.

    No primeiro plano, as prioridades hoje so: universalizar o ensino mdio; reconstruir e refinanciar o regime de formao inicial e de requalificao peridica do professorado, assegurando, com apoio federal, os incentivos econmicos adequados; disponibilizar materiais pedaggicos muito mais ricos na sala de aula; fazer a transio para a escola em turno integral; evitar que "progresso continuada" degenere em aprovao automtica e monitorar obsessivamente a qualidade do desempenho de escolas, alunos e professores. No para punir e cercear mas para compreender, ajudar e corrigir. Adversrio dos governos Fernando Henrique e Lula, reconheo que eles iniciaram parte dessa agenda.

    O trabalho nesse primeiro plano s ser fecundo, porm, se fr combinado com o trabalho no segundo, de reorientao audaciosa. Em primeiro lugar, associao dos governos federal, estaduais e municipais em rgos conjuntos para definir mnimos de investimento por aluno e de desempenho por escola em todo o pas e para redistribuir fundos e quadros dos lugares mais ricos para os mais pobres. Recurso do cidado ao judicirio quando esse mecanismo transfederal malograr e poderes para o juiz sequestrar recursos oraamentrias e nomear administradores profissionais independentes de escolas. Em segundo lugar, revoluo no paradigma pedaggico: aprofundamento seletivo em vez de enciclopedismo superfical; anlise em vez de memorizao ou divagao; capacitaes, mtodos e idias em vez de fatos; cooperao no ensino e na pesquisa em vez de combinao do autoritarismo com o individualismo na sala de aula. As prticas do saber mais avanado antecipadas para os primeiros estgios do ensino. Em terceiro lugar, oportunidades intelectuais e apoios financeiros extraordinrios para os alunos pobres mais talentosos e esforados, desde o ensino fundamental at a ps-graduao, formados como contra-elite republicana para rivalizar com nossa elite de apadrinhados. Surte efeito j. Inspira ambio onde havia resignao. D asas energia frustrada do pas e viso a um engenho cego.

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    Essa uma causa factvel e sagrada. Seu objetivo colocar o brasileiro na posse de si mesmo e fazer de sua capacitao a base de nosso engradecimento nacional.

    Reinventar o social

    Nesses 25 anos de mediocridade imposta, passou a vigorar no Brasil uma idia perversa do social, recomendada por nossos tutores estrangeiros. O social no teria por tarefa capacitar a maioria assalariada do pas. Seria espcie de caridade destinada a atenuar o sofrimento dos mais pobres equanto o pas segue a cartilha da confiana financeira e da imitao institucional a que se renderam seus quadros dirigentes.

    Proponho reorientao radical. Em todos os campos garantir o bsico de oportunidades para todos -- um primeiro trilho. E combinar essa universalizao de oportunidades com um segundo trilho, de oportunidades especiais para os mais talentosos e esforados. Exemplifico a idia nos dois campos mais importantes: emprego e ensino.

    Na rea do emprego, o primeiro trilho acabar com a informalidade em massa e estimular a contratao e a qualificao dos trabalhadores mais pobres. Para isso, abolir todos os encargos sobre a folha de salrios, financiando os direitos trabalhistas por meio dos impostos gerais. E assegurar incentivo tributrio a quem empregue e qualifique trabalhador menos qualificado. Medidas que s se viabilizam no quadro de uma poltica econmica que substita gastana em juros por gasto em brasileiro.

    O segundo trilho consiste em usar os poderes e os recursos do Estado para instrumentalizar a multido empreendedora, imensa e desequipada, que emerge de baixo. Em vez de usar dinheiro de trabalhador e de contribuinte para subsidiar grado, difundir, entre os empreendedores emergentes, tecnologias e prticas avanadas e maneiras de ganhar escala de produo e acesso a mercados. Muitas Emprabas, muitos Sebraes, muitas novas maneiras de baratear crdito e tecnologia, ativamente promovidas pelo governo -- esse o caminho.

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    No domnio do ensino, o primeiro trilho garantir mnimos de investimento por aluno e de desempenho por escola em todo o pas, monitorar intensivamente os resultados, flexibilizar o regime federativo para facilitar a transferncia de recursos e quadros dos lugares mais ricos para os mais pobres e formar professores aptos a ministrar ensino analtico e capacitador.

    O segundo trilho passa pelo esforo de identificar os alunos mais talentosos e esforados e de lhes oferecer oportunidades acadmicas extraordinrias e apoios econmicos abrangentes. Vocs que no tm heranas ou padrinhos, sejam herdeiros da Repblica e vanguarda do povo brasileiro, dir a eles um Estado que no mais esteja no bolso dos endinheirados.

    Tanto na economia quanto na educao, essa poltica social em dois trilhos -- o fundamental e o extra -- surtir o mximo de efeito com o mnimo de recursos. Reconciliar as urgncias do presente com as exigncias do futuro. Dar braos para todos: base de oportunidade e de capacitao. E asas para quem possa e queira voar: vez para o talento, para a tenacidade, para a obsesso criadora e construtiva.

    O impacto dessa reorientao ser revolucionrio e imediato, ainda que alguns de seus frutos demorarem a amadurecer. O pas trocar a inibio pelo dinamismo. O povo brasileiro ser sacudido por onda de ambio e de esperana. O Brasil continuar vergado sob o peso de muitos de seus defeitos. Passar, porm, a ter o uso de algumas de suas virtudes.

    O que levantaria o Brasil?

    O que levantaria o Brasil do fosso de mediocridade e de tristeza em que se encontra? H trs conjuntos de iniciativas que, combinadas, mudariam radicalmente nosso pas, intrumentalizando a energia frustrada dos brasileiros.

    A primeira linha de ao tirar a camisa-de-fora de uma poltica econmica que agrada rentistas e financistas mas que agride os interesses do trabalho e da produo. E faz-lo sem abdicar do realismo fiscal. O Brasil hoje o nico pas grande em desenvolvimento onde os poderososos julgam que isso

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    impossvel.

    A segunda diretriz a construo no Brasil de democracia de alta energia. Nos pases ricos do Atlntico norte, as maiores mudanas vieram menos de qualquer dinmica interna do que de guerra e colapso econmico. Essas catstrofes transformadoras no fazem parte de nossa histria. A ns, mais do que a qualquer outro povo, interessa fazer com a que transformao no dependa da calamidade. S o conseguiremos construindo democracia que combine a representao com a participao, que facilite a resoluo pronta dos impasses, que assegure aos cidados meios para responsabilizar os governantes e que livre a poltica da sombra do dinheiro . No h de ser continuando a copiar o presidencialismo dos Estados Unidos, desenhado por Madison para dificultar a transformao da sociedade, que alcanaremos esse objetivo.

    A terceira srie de iniciativas a menos compreendida, porm a que mais se adapta ao que somos. necessria para podermos assumir personalidade distinta dentro da humanidade. Tem a ver com o desenvolvimento das formas de ensino e de produo que libertem nosso potencial, imenso e reprimido, para construir e para criar.

    Mesmo nas escolas consideradas melhores e frequentadas pelas elites, nosso ensino no presta. Tem dois lados: memorizao e divagao. Os alunos so tratados como candidatos a memorizar a enciclopdia. Ao mesmo tempo, estudos recentes comprovaram que o aluno costuma no aprender a lidar com textos: as leituras servem como convite para "viajar", para livre associao de idias. Quando se para de decorar, vem a hora do devaneio. O que falta o mais importante: aprender a analisar e a reconstruir o conhecimento disponvel.

    No sistema de produo -- as fbricas, as oficinas, os escritrios -- h situao semelhante. Prevalece entre ns o que se poderia chamar o "Fordismo tardio", pensando em Henry Ford e no sistema de trabalho industrial hierrquico e rgido que ele aperfeioou. como se o prprio trabalhador fosse uma mquina -- no um inovador flexvel, capaz de usar mquinas menos flexveis do que ele. um padro produtivo que s se sustenta no mundo contemporneo em pases em que o trabalho barato e o trabalhador, aviltado.

    Tais formas de ensino e de produo no servem para qualquer pas, muito

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    menos para o nosso. Desperdiam nossa criatividade. Contradizem nossa ndole. Acorrentam o Brasil. Nossa tarefa substitui-las.

    Onde encontraremos apoios e aliados para projeto nacional com esses fundamentos? No os encontraremos em classe poltica apequenada e vidrada em discursos importados. S o conseguiremos abrindo caminho para falar nao -- para esclarec-la, para inspir-la e para convoc-la a levantar-se contra a ordem ruinosa que lhe impuseram.

    Prioridade nacional

    O que precisa para traduzir em obra transformadora nosso aparente e ainda vazio consenso a respeito da necessidade de fazer da educao prioridade nacional? Tres revolues factveis e entusiasmantes.

    Revoluo de responsabilidade. O governo federal, trabalhando em conjunto com os Estados e os Municpios, tem de ser responsabilizado pela disponibilidade e pela qualidade do ensino bsico em todo o pas. O alvo substituir em pouco tempo nossos 6 anos de escolaridade mdia por 12 e construir escola pblica boa bastante para atrair a classe mdia, como fiadora e reivindicadora de sua qualidade. Mnimos nacionais, sistematicamente monitorados, de investimento por aluno e de desempenhos por escola. E poderes e recursos para intervir, sob vigilncia judicial, quando e onde os mnimos deixem de ser cumpridos. O Fundeb um comeo. Efetivada na educao, essa flexibilizao do regime federativo serve para tudo na poltica social.

    Revoluo de abrangncia. Escola que ocupa o aluno 4 horas por dia no sria. Precisa ocupar o dia todo. E fornecer alimento e cuidado mdico e dentrio, engajando famlias e comunidades. No temos de comear por construir prdios nem ir, num s salto, de 4 horas para 8. Avancemos pragmaticamente, de acordo com as possibildades: o rumo importa mais do que o tamanho de cada passo.

    Revoluo de contedo. No verdade que a alternativa ao ensino encicopldico e memorizador seja a falta de rigor travestida de modernismo pedaggico. No se aprende matemttica aprendendo a analisar e a resolver problemas? Pois o mesmo se d em qualquer campo do conhecimento: desenvolver

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    capacitaes para analisar, sintetizar, reformular e reconstruir o que importa. Para isso, preciso qualificar o professorado, com incentivos de avano profissional providenciados pelo governo federal. E garantir oportunidades acadmicas e apoios econmicos especias para os alunos pobres mais talentosos e esforados. Sejam eles formados como vanguarda republicana para tomar o lugar de uma elite de herdeiros e de apadrinhados.

    A est a essncia de um projeto com potencial para mudar o futuro e o presente do pas se a tarefa for imaginada com ousadia, defendida com autoridade intelectual e poltica e executada com a necessria combinao de ardor, eficincia e realismo. Mudar o futuro graas s capacidades que constri. Mudar o presente por meio da esperana e da energia que desperta. a libertao do Brasil.

    Educao: escolhas

    Faz sentido federalizar o ensino bsico, tirando as escolas das mos de prefeitos e governadores? A federalizao pura no factvel ou conveniente. Fortaleamos a responsabilidade da Unio para que, trabalhando em conjunto com os Estados e os Municpios, assegure mnimos de investimento por aluno e de desempenho por escola em todo o Brasil. O Fundef e o Fundeb so pontos de partida. Faltam mecanismos para intervir quando os mnimos deixarem de ser atendidos. Flexibilizar o federalismo, sim; suprimi-lo, no.

    J no gastamos muito em educaco em comparao com outros pases ricos ou pobres? Nosso problema no seria de eficincia do gasto? Gastamos muito, mas temos de gastar mais, mesmo melhorando a eficincia do gasto. Sociedade muito desigual tem de gastar muito mais em educao do que sociedade menos desigual: a escola luta contra o meio.

    preciso construir escolas novas e diferentes para implantar turno integral e assistncia alimentar e mdica abrangente? Menos ateno para prdios, por favor, e mais ateno para gente. Na maior parte do pas, podemos comear a ampliar tanto o horrio do ensino como a ajuda aos alunos sem construir nada, a no ser pessoas.

    E que espcie de ensino se deve ministrar na escola pblica melhorada? O

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    foco tem de ser ensino analtico e capacitador, priorizando operaes conceituais bsicas, como anlise matemtica e leitura crtica. Ao invs da mistura de decoreba com fantasia. Nada de especializaes rgidas e de professionalizaes precoces. Ensino de sculo 21 transmitir a milhes de pessoas capacitaes genricas. Com isso, estaro prontas para tudo.

    E de onde vem os professores para tal aprendizagem? O sistema de requalifacao em meio de carreira, de incentivos econmicos para busc-la e de disponibilizao de materiais pedaggicos s pode vir do governo central.

    No demoraria 30 anos para termos uma escola pblica que no seja s para pobre, porque consiga atrair a classe mdia? No demora mais do que 4 anos, se fizermos direito. Um atalho o seguinte: programas escolares especiais e apoios econmicos extraordinrios para os estudantes pobres mais talentosos e esforados. Eles viram elite de merecimento, preparada para frequentar depois as melhores universidades, dentro e fora do pas. A classe mdia vai querer ficar junta. A muda a educao. Muda o Brasil.

    dificl de viabilizar esse projeto? No, os componentes so at fceis de executar; o que assombra o conjunto da obra. Exige tenacidade quase insana.

    Virada na educao

    S h um projeto capaz de nos unir: educao. E a unio construda nesse campo pode gerar os recursos polticos e morais para fortalecer nossa capacidade de resolver todos nossos outros problemas. Quais so as grandes diretrizes -- viveis com meios de que o pas j dispe ou que possa em pouco tempo encontrar -- da mudana necessria em matria de educao?

    Em primeiro lugar, aproveitar a mar montante do Fundef para instituir sistema federal que assegure mnimos de investimento por aluno e de desempenho por escola em todo o pas, independentemente dos recursos e das capacidades de que cada Municpio ou Estado disponha. O Fundef s o comeo: preciso negociar pacto federativo para poder redistribuir recursos e pessoal dos lugares mais ricos para os mais pobres. De nada adianta, sem procedimentos para monitorar resultados e intervir corretivamente quando forem inaceitveis. Se os

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    mnimos deixarem de ser preenchidos, entidade especfica, dirigida pelo governo federal, com representao dos Estados e Municpios, deve poder intervir para administrar diretamente um sistema escolar local, sob limites impostos pela vigilncia do Judicirio, at que se supram as faltas, de meios, de quadros ou de eficincia.

    Em segundo lugar, enfrentar o problema do contedo e do mtodo. Nas comparaes internacionais, nosso desempenho em matemtica constrangedor. E a leitura de um texto, quando no encarada como ocasio para memorizar, costuma ser vista entre ns como pretexto para fantasiar, em livre associao de idias. Por conseguinte, tambm no se aprende a pensar e a traduzir pensamento em escrita: como formular, decompor, desdobrar, fundamentar e reconstruir conceitos. Tudo o mais no currculo ou deve ser subsidirio a essas capacitaes analticas bsicas ou deve servir para exercit-las. No conseguiremos colocar tais capacitaes no centro do ensino sem qualificar o professorado e incentiv-lo nacionalmente, sob a responsabilidade do governo central.

    Em terceiro lugar, formar, a partir da educaoo reformada, uma contra-elite de merecimento. Ao aluno pobre esforado e talentoso dir a Repblica: Voc, que no tem herana, herdar de mim. Eu o cumularei de apoios econmicos abrangentes e de oportunidades acadmicas extraordinrias, at lev-lo s alturas do saber.

    Insisto: tudo isso vivel no Brasil de hoje. Comear a viabiliz-lo mexer a fundo com o pas. insuflar, em toda a parte e j, dinmica de inquietao ambiciosa. libertar o povo brasileiro.

    Educao sem romantismo

    A causa da melhora da qualidade do ensino bsico foi sacralizada no Brasil: todos lhe professam devoo. No se teve a pacincia de encontrar idias para fazer da devoo realidade.

    Comecemos pelo comeo: dinheiro. Sem aumentar em muito o investimento

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    em educao -- dos poucos mais de 4% do PIB que gastamos hoje para cerca de 7% -- no resolveremos. E dinheiro, no tempo e na quantidade necessrios, s pode vir, na realidade fiscal atual, de duas fontes: rebaixamento dramtico dos juros que o governo paga aos credores da dvida pblica interna e aumento da idade da aposentadoria. Outras fontes possveis so to complicadas, politica e juridicamente, que no atendem o objetivo imediato.

    Depois de dinheiro, vm poder e responsabilidade. Transferir a gesto das escolas bsicas ao governo federal seria impraticvel mesmo que fosse (e no ) conveniente. Deixar tudo na mos de prefeitos e governadores, porm, aceitar que escola de qualidade dependa de governante local com recursos, competncia e boa f. Impor padres nacionais, monitorar, redistribuir recursos e quadros dos lugares mais ricos para os mais pobres e intervir corretivamente quando necessrio. O Fundeb representa apenas primeiro passo.

    Assegurados dinheiro e poder, acertar a relao entre o pblico e o privado. Abaixo o preconceito ideolgico: experincias como a de alguns estados da ndia mostram que reforma do ensino pblico pode caminhar junto com facilidades para melhorar o ensino particular, tornado acessvel aos pobres, com apoio do governo.

    E o contedo? Dar prioridade ao domnio de operaes conceituais, exercitadas em dia escolar que se alongue: aprender como resolver problemas em matemtica; como ler textos; como analisar, formular e escrever idias; como buscar o conhecimento. Nada de enciclopedismo informativo ou de modismos pedaggicos. Professores formados, equipados e incentivados por iniciativas do governo federal -- inclusive rede de "escolas normais" para qualific-los.

    Depois de tudo isso, ir fundo no esforo de identificar, em todos os nveis do ensino, os alunos pobres mais talentosos e esforados. E oferecer-lhes apoios econmicos abrangentes e oportunidades acadmicas extraordinrias. Sero os bolsistas da repblica. Sua chegada sacudir a nao, porque lhe dar esperana.

    Despi a causa de seu romantismo. Ficou s o essencial, de problemas e de solues. Haveria enorme apoio nacional e internacional. Por que no fazer?

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    Educao para valer

    Vamos ou no vamos afirmar a responsabilidade federal pela qualidade do ensino bsico? Enquanto o governo federal cuidar s de universidade e de escola tcnica, e se limitar a transferir recursos para que Estados e Municpios cuidem do resto, no avanaremos. impraticvel colocar o ensino bsico sob gesto federal. A soluo impor padres nacionais mnimos de investimento e de desempenho. Compensar, com recursos federais, as desiguladades dentro da federao. Monitorar de perto os resultados. E construir mecanismos para intervir e corrigir quando os mnimos deixem de ser alcanados.

    Vamos ou no vamos universalizar o ensino mdio dentro de quatro anos e ampliar o alcance do pr-primrio, dirigido populao pobre? Esses so hoje os dois pontos crticos da escolarizao no Brasil. Menos prioritria a expanso do ensino tcnico e profissionalizante. Os pases que deram nfase a ele abandonam essa nfase; hoje, o que conta e o que perdura, mesmo para as empresas, so as capacitaes genricas, no as especializaes rgidas.

    Vamos ou no vamos repensar a relao entre governo, escola pblica e escola privada? Nada de preconceito ideolgico. Faamos como fazem governos, inclusive de esquerda, em muitas partes do mundo: oferecer financiamento parcial a famlias pobres que prefiram maricular os filhos em escolas particulares, desde que essas escolas desenvolvam materiais e prticas pedaggicos que a escola pblica possa depois aproveitar.

    Vamos ou no vamos mudar o contudo e o mtodo do ensino brasileiro? Abaixo o enciclopedismo informativo. Foco nas operaes conceituais bsicas, de anlise, interpretao e formulao, em todos os campos do conhecimento. Para os professores, piso salarial, incentivos de qualificao e oportunidades para estudo ao longo da carreira.

    Vamos ou no vamos tratar com especial ateno os alunos pobres mais talentosos e esforados? Bolsas abrangentes e programas extraordinrios para fazer deles uma contra-elite de merecimento e sacudir o Brasil.

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    Vamos ou no vamos assegurar dinheiro para tudo isso? No basta gastar melhor. preciso gastar mais: 6% do PIB em vez dos 4% que gastamos hoje. Faz parte do preo de nossa desigualdade.

    para valer ou no ? Falta pretexto para no valer: nenhuma das outras transformaes de que precisamos suscitaria apoio to amplo e entusiasmado, no Brasil e no mundo. Seria o comeo da libertao do povo brasileiro.

    Oito medidas para educar

    Para a educao, assim como para o desenvolvimento, preciso ter viso e projeto. Projeto e viso podem, porm, induzir vertigem e desnimo. Aqui vai, em troca, elenco de iniciativas pontuais, inspiradas no que deu certo no mundo.

    Comeo com duas preliminares. A primeira preliminar que precisamos gastar mais. Quanto mais desigual o pas e menos forte nele a tradio de cultivar o estudo em casa, maior tem de ser o gasto em educao. nosso caso; precisamos gastar muito mais do que a mdia mundial. A segunda preliminar reconhecer que melhora de qualidade da educao surte efeito imediato, no s a longo prazo. Nenhum pas que se endividou para financiar salto de qualidade em seu ensino foi por isso castigado pelos mercados; sabem que a educao presente a garantia mais certa da riqueza futura. Mais importante ainda o impacto sobre o nimo da nao. Inquietao, emulao, energia so tudo na vida de um povo.

    1. Assegurar piso salarial e plano de carreira aos professores em todo o pas. O governo federal tem de se acertar com os Estados e Municpios e completar a diferena para as entidades federadas mais pobres.

    2. Construir sistema nacional de "escolas normais" e de faculdades de educao para formar e atualizar os professores ao longo de suas carreiras, no s no incio.

    3. Medir vrias vezes por ano o desempenho de todas as escolas. Discutir os resultados no pas e em cada comunidade. O monitoramento no apenas para suprir falhas. tambm para propagar as inovaes locais bem sucedidas.

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    4. Ter o governo federal como intervir e consertar quando, em perodos seguidos, o desempenho seja inaceitvel.

    5. Focar a formao dos professores e os textos escolares na pedagogia das operaes conceituais bsicas: anlise de problemas, interpetao de textos, formulao de argumentos, uso de fontes de pesquisa.

    6. Engajar as associaes de pais no trabalho das escolas e na execuco de um plano de estudo para cada criana. E quando a famlia no tiver condies para participar, designar professor ou membro da comunidade que faa as vezes desse acompanhamento familiar.

    7. Combinar o ensino direto com o ensino distncia e com a comunicao entre escolas. Cada estudante deve receber computador simplificado, ligado a rede nacional de internet pblica dedicada educao.

    8. Oferecer programas especiais aos alunos, sobretudo pobres, mais talentosos e esforados. Tais programas sacodem a mediocridade satisfeita. Acordam a genialidade calada.

    Essas medidas representariam uma revoluo.

    Ensino que ensine

    Jogar com as ambiguidades, cultivar o improviso, juntar o que se prentende irreconcilivel e dividir o que se supe unitrio, usar falta de mtodo como mtodo, tratar enigmas como solues e o inesperado como o caminho -- so traos da cultura do povo brasileiro. Estratgias de sobrevivncia? Porque no tambm manancial de grandes feitos, tanto na prtica como no pensamento?

    A orientao de nosso ensino costuma ser o oposto dessa fecundidade indisciplinada: dogmas confundidos com idias, informaes sobrepostas a capacitaes, insistncia em mtodos "corretos" e em respostas "certas", ditadura da falta de imaginao. Nega-se voz aos talentos, difusos e frustrados, da nao. Essa contradio nunca foi tema de nosso debate nacional. Entre ns, educao

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    assunto para economistas e engenheiros, no para educadores, como se o alvo fosse construir escolas, no construir pessoas.

    Precognizo revoluo na orientao do ensino brasileiro. Nada tem a ver com falta de rigor ou com modismo pedaggico. E exige professorado formado, equipado e remunerado para cumprir essa tarefa liberatdora.

    Em matemtica, por exemplo, em vez de enfoque nas solues nicas, ateno para as formulaes alternativas, as solues mltiplas ou inexistentes e a descoberta de probelmas, to importante quanto o encontro de solues. Em leitura e escrita, anlise de textos com a preocucapao de aprofundar, no de suprimir, possibilidades de interpretao; defesa, crtica e reviso de idias; obrigao de escrever todos os dias, formulando e reformulando sem fim. Em cincia, o despertar para a dialtica entre explicaes e experimentos e para os mistrios da relao entre os nexos de causa e efeito e sua representao matemtica. Em histria, e em todas as disciplinas, as transformaes analisadas de pontos de vista contrastantes.

    Nada disso se parece com o objetivo -- cretino -- de fazer do aluno um simulacro humano da enciclopdia. Tudo se destina a capacit-lo a compreender realidades, a mobilizar saber e a usar e desenvolver idias. O mesmo objetivo vale desde o pr-primrio at a ps-graduao universitria.

    Isso educao. O resto perda de tempo. O resto absorve os esforos da grande maioria das escolas no Brasil e em muitos outros pases. Os pais se do por satisfeitos quando seus filhos tiram boas pontuaes em provas nacionais e internacionais voltadas para a informao e a destreza. Quem lutar para que a educao no Brasil eduque?

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