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1 A Formação da Identidade Mestiça da Música Brasileira entre o Império e a República FERNANDO OMAR SILVEIRA ALMEIDA* O objeto desta pesquisa é a formação da identidade mestiça na música brasileira entre o Império e a República. O trabalho debruça-se sobre a música brasileira e os compositores que melhor representaram cada momento de construção da identidade nacional, analisando as biografias e obras dos compositores: Pe. José Maurício Nunes Garcia, Antônio Carlos Gomes e Heitor Villa- Lobos. Todos eles trouxeram para suas composições o elemento nacional, surgido no encontro das matrizes culturais europeia, indígena e africana. A pesquisa teve como base metodológica os conceitos de hibridismo cultural, encontrado na obra “Culturas Híbridas” (CANCLINI, 2013), onde são discutidos os fenômenos culturais e sociais que ocorreram na América, principalmente na cultura norte-americana e na América hispânica. Como contraponto a este conceito e mais próximo à realidade da América portuguesa agregamos o conceito de mestiçagem presente em “O Trabalho Mestiço: Maneiras de Pensar e Formas de Viver os Séculos XVI ao XIX”, (PAIVA & ANASTASIA, 2002), e “História do Novo Mundo 2”, (BERNAND & GRUZINSKY, - 2006). Ambos tratam do mestiço, e esse conceito traz à discussão as misturas étnicas, sociais e culturais que formaram o processo da identidade nacional brasileira, não sendo diferente nas artes, e, neste caso em especial, na música. Além da consulta aos livros de história da música de Mario de Andrade e Bruno Kiefer, onde são apresentados vários compositores brasileiros deste período de um século, muitos deles mulatos como o Pe. José Maurício Nunes Garcia e Carlos Gomes. Posteriormente foram acrescentados à base metodológica os livros “O Pensamento Mestiço” (GRUZINSKY, 2001) e

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A Formação da Identidade Mestiça da Música Brasileira entre o Império e a República

FERNANDO OMAR SILVEIRA ALMEIDA*

O objeto desta pesquisa é a formação da identidade mestiça na música brasileira entre o Império e

a República. O trabalho debruça-se sobre a música brasileira e os compositores que melhor

representaram cada momento de construção da identidade nacional, analisando as biografias e

obras dos compositores: Pe. José Maurício Nunes Garcia, Antônio Carlos Gomes e Heitor Villa-

Lobos. Todos eles trouxeram para suas composições o elemento nacional, surgido no encontro das

matrizes culturais europeia, indígena e africana. A pesquisa teve como base metodológica os

conceitos de hibridismo cultural, encontrado na obra “Culturas Híbridas” (CANCLINI, 2013),

onde são discutidos os fenômenos culturais e sociais que ocorreram na América, principalmente na

cultura norte-americana e na América hispânica. Como contraponto a este conceito e mais próximo

à realidade da América portuguesa agregamos o conceito de mestiçagem presente em “O Trabalho

Mestiço: Maneiras de Pensar e Formas de Viver os Séculos XVI ao XIX”, (PAIVA & ANASTASIA,

2002), e “História do Novo Mundo 2”, (BERNAND & GRUZINSKY, - 2006). Ambos tratam do

mestiço, e esse conceito traz à discussão as misturas étnicas, sociais e culturais que formaram o

processo da identidade nacional brasileira, não sendo diferente nas artes, e, neste caso em especial,

na música. Além da consulta aos livros de história da música de Mario de Andrade e Bruno Kiefer,

onde são apresentados vários compositores brasileiros deste período de um século, muitos deles

mulatos como o Pe. José Maurício Nunes Garcia e Carlos Gomes. Posteriormente foram

acrescentados à base metodológica os livros “O Pensamento Mestiço” (GRUZINSKY, 2001) e

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“História e Música no Brasil” por meio do texto “Música na América Portuguesa” (CASTAGNA,

2010)1, além do artigo de João Maria André “Identidades, Multiculturalismo e Globalização”2.

Inicialmente a questão da pesquisa era: como ocorreu a formação da identidade nacional na música

durante os primeiros 100 anos do Brasil pós-colonial? Para encontrar respostas, foram buscadas

nestes textos informações a respeito da questão: os fenômenos ocorridos na América levaram a

uma identidade híbrida ou a uma identidade mestiça? Se tomarmos como exemplo os resultados

culturais encontrados na América do Norte e na América hispânica, podemos dizer que lá a relação

entre culturas foi mais próxima ao hibridismo; já a cultura da América portuguesa se forma por

meio da mestiçagem de raças, devido ao encontro de três matrizes culturais distintas: a europeia, a

indígena e a africana, levando a um processo diferenciado do restante do continente americano,

pois aqui a mestiçagem já estava presente antes mesmo dos europeus chegarem. O livro “História

do Novo Mundo” mostra os portugueses durante sua expansão marítima para chegarem à costa da

África - em especial no contato com os povos dos reinos do Benin e do Congo - estabeleceram um

primeiro processo de miscigenação através das relações comerciais. No caso do Benin por ser um

importante porto africano da época, e no Congo onde o rei Mami converteu-se ao cristianismo,

mesmo contra a vontade dos guardiões dos costumes ancestrais locais, aconselhando as pessoas do

seu círculo à conversão ao cristianismo, mesmo tendo-se recusado a separar-se de suas centenas de

esposas, condição que o mantinha ligado aos diferentes clãs do reino. Nesta relação portuguesa

com o Congo alguns africanos do círculo próximo ao rei receberam nomes portugueses, indo até

mesmo viver em Portugal, de onde voltaram falando o idioma estrangeiro e usando vestes com

sedas e tecidos finos. “Alguns anos mais tarde o rei do Congo trocaria presas de elefantes por

1“História e Música no Brasil”, (organização de) MORAIS, José Geraldo Vince de, SALIBA, Elias Thomé – (2010).

2“IDENTIDADE(S), MULTICULTURALISMO E GLOBALIZAÇÃO – Comunicação apresentada no painel

MULTICULTURALISMO, GLOBALIZAÇÃO, ACTUALIDADE, XX Encontro de Filosofia, Universidade de

Coimbra, ANDRÉ, João Maria – (2006).

*Pós-graduando em História da Cultura no Brasil (UNESA)

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tecidos vermelhos e azuis, os quais substituiriam entre os novos convertidos suas tradicionais capas

de ráfia” (BERNAND & GRUZINSKY, 2006).

Portanto a questão é: a identidade da música brasileira é híbrida ou mestiça? A partir dos conceitos

expressos nos textos de Serge Gruzinsky e João Maria André, que tratam a questão da mestiçagem

como um resultado do multiculturalismo e da globalização, no século XVI, onde os precursores do

processo globalizador na Europa são os portugueses, através da expansão marítima que resultou no

descobrimento do Brasil e posteriormente do grande fenômeno da miscigenação na América

portuguesa. Através da análise da biografia e das obras de alguns compositores do século XIX e

início do século XX, explicaremos como se deu a formação da identidade mestiça da música

brasileira na transição do Império para a República. Podemos afirmar que desde a antiguidade a

música era utilizada para contribuir na formação da identidade dos indivíduos.

E a harmonia e o ritmo devem acomodar-se a letra, e nas nossas palavras não temos a

necessidade de trenos e lamentos, então me digas, tu que és músico, quais as harmonias

plangentes? A lídia mista, a lídia tensa e outras mais, essas portanto devem ser suprimidas,

pois, não são apropriadas nem sequer para as mulheres de mediana condição, quanto mais

para homens. As harmonias jônias e lídias consideradas frouxas devem ser banidas.

(PLATÃO, 1995: 64)

A dória e a frígia essas serão conservadas, pois são capazes de imitar devidamente a voz e

os acentos de um herói na hora do perigo e da austera resolução, ou quando sofre um revés,

um ferimento, a morte ou qualquer infortúnio semelhante, e em tais crises enfrenta os golpes

da sorte de pé firme e com ânimo indomável. E a outra que possa usar em tempos de paz,

quando, em plena liberdade de agir e sem sentir a pressão da necessidade, de convencer

outrem de alguma coisa, com preces se é um deus ou com advertência se se trata de um

homem. Essas duas harmonias devem permanecer: a voz da necessidade e a da liberdade,

os acentos do homem infortunado e os do homem feliz, o canto da coragem e da temperança.

(PLATÃO, 1995: 64).

Tomando como base para análise das fontes os dois trechos de “A República” de Platão citados

acima, quando faz referência à música. Observamos que a questão básica do texto são os afetos, e

a preocupação com o que as melodias e as harmonias podem provocar no homem grego da

Antiguidade, um homem forjado para ser um guerreiro, um herói. Na primeira citação sugere banir

as harmonias frouxas e melancólicas, pois essas não deveriam ser apresentadas nem mesmo às

mulheres de mediana condição; já na segunda, ressalta que as harmonias que são adequadas aos

homens, pois lhes traria sabedoria tanto para decidir em tempos de desventura e insucesso, quanto

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nos tempos de felicidade. Verificaremos a partir das obras do Pe. José Maurício Nunes Garcia,

Antônio Carlos Gomes e Heitor Villa-Lobos como as formas musicais foram utilizadas nas

composições visando promover certos sentimentos, que culminaram na constituição da identidade

brasileira. “... não tardando a aurora do dia em que as obras primas do Mestre sejam publicadas

para que não só os brasileiros, mas a humanidade, possam receber o legado do patrimônio que ele

deixou”. (Alberto Nepomuceno,1897)3 . O Brasil do início do século XIX teve como compositor

mais importante o Pe. José Maurício Nunes Garcia (1767 - 1830), filho de um alfaiate com uma

negra. Em 1784, participou da fundação da Irmandade de Santa Cecília, muito ativa na vida musical

da cidade, também estudou filosofia, línguas, retórica, teologia e foi ordenado padre em 1792 (os

costumes da época não o impediram de, posteriormente, também ter mulher e filhos). Com a

interiorização da metrópole, a partir da chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808,

houve novo impulso às atividades musicais locais e as qualificações artísticas de José Maurício

foram logo reconhecidas, sendo mesmo chamado de “o maior improvisador do mundo” pelo

compositor austríaco Sigismund Neukomm, contemporâneo de Beethoven. “Ao chegar ao Rio de

Janeiro o Príncipe Regente D. João criou a Capela Real, para onde o transferiu, atribuindo-lhe os

encargos de mestre de capela, organista e professor, além de solicitar-lhe o exercício da atividade

de compositor”. (CASTAGNA, 2010: 70). Em 1811, com a permanência da corte no Brasil, vieram

de Lisboa músicos de renome, como Marcos Portugal. Esses músicos portugueses, liderados por

Marcos Portugal restringiram a influência do elemento nativo. Começou então o declínio de José

Maurício que não habituado a disputas, resolveu trabalhar para as irmandades musicais da cidade,

mantendo uma posição nominal na corte. Em 1816, com o falecimento de D. Maria I, D. João foi

coroado rei de Portugal, para cumprimentá-lo e retomar as relações diplomáticas entre França e

Portugal, veio ao Brasil o Duque de Luxemburgo, acompanhado pelo célebre compositor austríaco

Sigismund Neukomm, que foi nomeado professor público de música pelo Rei. Durante a

permanência de Neukomm na cidade do Rio entre 1816 e 1821, exerceu influência sobre os

3 AS EDIÇÕES DE OBRAS SACRAS DE JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA - Figueiredo, Carlos Alberto - Universidade

Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) - ANPPOM – Décimo Quinto Congresso/2005 – Acesso em 18/05/2015

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músicos do período e principalmente sobre José Maurício Nunes Garcia. A partir de 1819, passou

a escrever para o Allgemeine Musikalishe Zeitung de Viena, publicando, em 1820 uma notícia

sobre a música no Rio Janeiro, na qual citou primeira audição do Réquiem de Mozart no Rio de

Janeiro e do Réquiem do Pe. José Maurício Nunes Garcia em Viena. (CASTAGNA, 2010: 73).

Mesmo se tratando de um músico mulato a produção de José Maurício seguia um padrão de

composição europeia praticamente na totalidade da sua obra. Trago como exemplo de sua obra

“Missa de Réquiem” 1816, composto para o funeral de D. Maria I por encomenda de D. João VI.

Onde podemos observar uma escrita musical e uma interpretação com características do barroco

italiano e do classicismo vienense.

A Missa de Réquiem 1816, densa, profunda, de elevado nível estético do início ao fim,

ocupa não só uma posição de relevo na obra de seu autor, mas ergue-se, a nosso ver, como

grande monumento musical brasileiro. Estilisticamente José Maurício é um reflexo da

Europa. O que há nele de pessoal manifesta-se em termos europeus e não através de uma

contribuição que revelasse um modo de ser brasileiro. Globalmente. Uma audição mais

refinada, no entanto, poderá descobrir, aqui e acolá, sombras do clima modinheiro, quase

um prenúncio da aurora do sentimento nativo na música brasileira erudita. (KIEFER, 1982:

58).

No texto de Bruno Kiefer quando refere-se a “Missa de Réquiem” (1816), é uma composição na

qual o que há de pessoal manifesta-se em termos europeus. Nesta frase podemos observar o quanto

miscigenada era a produção musical do Pe. José Maurício, pois era tão forte à assimilação desses

elementos culturais que eles se manifestavam naturalmente, porém diante de uma escuta mais

atenta podemos encontrar elementos presentes nas modinhas que agregavam sentimentos nativos

para esta música erudita brasileira. “Antônio Carlos Gomes (1836 – 1896). Mestre da Ópera na

tradição de Verdi recebeu instrução musical do pai que era regente de banda em Campinas.”

(GROVE, 1994: 377). Iniciou seu trabalho como compositor muito cedo, e compôs sua primeira

missa aos 18 anos, período em que sua música era executada nas igrejas de Campinas. Em 1859

mudou-se para o Rio de Janeiro, onde estudou no Conservatório Imperial. Sua música recebeu

influência de compositores como Rossini, Bellini, Donizete e Verdi, e em 1861 estreou no Teatro

Lírico Rio de Janeiro sua primeira ópera: “A Noite no Castelo”. Já com o sucesso da ópera “Joana

de Flandres”, de 1863, obteve bolsa do governo para estudar em Milão. Analisamos o “Coro dos

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Aimorés”, que abre o terceiro ato de “Il Guarany, Ópera em quatro atos de Carlos Gomes, com

libreto de Scalvini, baseado no romance homônimo de José de Alencar, que estreou em Milão no

La Scala em 1870. Elogiada por Verdi, foi a primeira obra musical brasileira a obter repercussão

internacional.” (GROVE, 1994: 393), esta obra composta na segunda metade do século XIX,

momento no qual o Brasil recém-independente buscava construir sua identidade nacional. Gomes,

baseado na obra de Alencar que trata do romance entre o índio Pery, chefe da tribo guarani e Cecília,

moça portuguesa filha de Don Antônio. A história se passa nos arredores da cidade do Rio de

Janeiro por volta de 1560. Para compor sua ópera o compositor lança mão de elementos teatrais

para evidenciar o contraste entre momentos extrovertidos como o balé do terceiro ato durante o

coro “Aspra, crudel, terribil” (Árdua, cruel, terrível), neste momento, mesmo a escrita da música

sendo europeia, a melodia associada ao balé traz para cena um efeito de verdade e aí se dá uma

primeira ideia de miscigenação, tanto na história quanto nos elementos musicais. É possível dizer

que Carlos Gomes é o precursor do Verismo, movimento que surgiu na Itália no final do século

XIX e que trazia para a ópera personagens do povo, levando a realidade dura ao palco. Em períodos

anteriores os compositores trabalhavam com histórias mitológicas e Gomes em sua ópera “O

Guarany” traz personagens inspirados na realidade de portugueses e índios. Posteriormente ele

retoma a temática em “Lo Schiavo” (O Escravo) de 1888, apesar desse movimento ser encabeçado

pelos italianos uma das primeiras óperas com a temática verista acontece com “Cavalaria Rusticana”

(1890) de Mascagni. Gomes ainda compôs muitas outras óperas, missas, canções, modinhas e

pequenas peças para piano. “Carlos Gomes foi o músico das Américas de maior destaque

internacional no século XIX. Grande melodista, mostrou também qualidades sinfônicas na abertura

do Guarany e na alvorada do Schiavo. Ele foi responsável por projetar o nome do Brasil no

panorama da música internacional” (GROVE, 1994: 378). No entanto, apesar do sucesso

internacional Gomes teve de enfrentar sérios problemas em sua terra natal devido à sua amizade

com o Imperador D. Pedro II. Com a proclamação da República em 1889, Carlos Gomes cujo

sucesso internacional era tributário do mecenato do Império passou a ter sua obra identificada com

a monarquia; por isso teve dificuldades em conseguir emprego, vindo a falecer em condição de

penúria. Apesar disso, a República reconheceu Carlos Gomes após a sua morte, como exemplo de

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brasileiro bem sucedido no exterior, conferindo-lhe homenagens no seu monumento-túmulo em

Campinas.

A música, eu a considero, em princípio, como um indispensável alimento para alma humana.

Por conseguinte, um elemento e fator imprescindível à educação do caráter da juventude.

O adulto pode ter o direito lógico e livre de julgá-la como o mais agradável divertimento

do espírito, uma vez que tenha a sua alma bem formada sob a influência das forças

misteriosamente magnéticas com que o poder sugestivo dos sons civilizados atua nos seres.

Qualquer opinião sobre música, desintegradas dos princípios mencionados, torna-se apenas

uma resultante da ousadia, do temperamento descontrolado pela má educação social em

relação à sensibilidade dos fenômenos artísticos. Quem assim procede, age como se falasse

no deserto com a ilusão de esta sendo ouvido ou, como um chinês discursando, na sua língua,

em plena tribo de ameríndios. 4 Heitor Villa-Lobos

Heitor Villa-Lobos, (1887 – 1959). Foi um dos primeiros compositores e de fundamental

importância para elaboração de uma linguagem caracteristicamente nacional na música brasileira.

Seu pai, funcionário da biblioteca e músico amador, lhe deu instrução musical e adaptou uma viola

para que o menino Heitor iniciasse seus estudos de violoncelo. Aos 12 anos órfão de pai, Villa-

Lobos passou a tocar profissionalmente violoncelo em cafés, bailes e teatros, ficando interessado

pelos “chorões” e instigado pela intensa musicalidade desses grupos que representavam o melhor

da música popular no Rio de Janeiro. Posteriormente imerso nesse contexto desenvolveu-se

também no violão. Desde muito jovem, o inquieto Villa-Lobos fez diversas incursões pelo país,

nas primeiras etapas de absorção de todo universo musical brasileiro. No início suas composições

foram marcadas pelos estilos europeus da virada do século, por Wagner, Puccini, e pelo romantismo

francês da escola de Franck, e na sequência teve aulas com os impressionistas Frederico

Nascimento e Francisco Braga. “Nas danças características africanas (1914), entretanto, começou

a repudiar os moldes europeus e a descobrir uma linguagem própria, que viria a se afirmar nos

bailados Amazonas e Uirapuru (1917)”. (GROVE, 1994: 992). Analisamos a série Bachianas

Brasileiras, compostas no período que vai da Revolução de 1930 até o final do Estado Novo, em

1945, enfatizando a Bachianas Brasileiras nº 4. Nesta obra além de encontramos a escrita musical

4 BORGES, Mirelle Ferreira, Heitor Villa-Lobos, o músico educador – Dissertação de mestrado apresentada ao

Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade federal Fluminense, 2008:

59.

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europeia e como fonte inspiradora a música de Bach, como o elemento nacional presente na

melodia do folclore brasileiro que aparece na ária, e é nítido esse contraste entre o prelúdio e a ária.

Esse conjunto de suítes denominadas de Bachianas Brasileiras foram organizadas do número um a

nove, as suítes são divididas em dois, três e quatro movimentos, e para cada movimento Villa-

Lobos atribuiu dois nomes.

O primeiro nome faz referência a ideia de suíte barroca associada a obra de Johann

Sebastian Bach, assim diversos movimentos apresentam designações com Prelúdio, Giga,

Fuga, Ária, etc., enquanto o segundo alude a canções e danças do universo popular

brasileiro, como Embolada, Modinha, Quadrilha Caipira e Ponteio. Percebe-se que essa

ligação nominal é estendida para o próprio nome da série: Bachianas, referindo-se a Bach

e Brasileiras, associando-se ao Brasil.5

Analisamos aqui apenas a Bachianas Brasileiras nº 4, obra composta em quatro movimentos:

1. Prelúdio – (Introdução)

2. Coral – (Canto do Sertão)

3. Ária – (Cantiga)

4. Dança – (Miudinho)

Podemos dizer que essa obra é um exemplo de intertextualidade, pois, traz um trecho ou mais

trechos de um texto já existente e o incorpora à sua composição ao novo texto, no caso específico

da música um texto musical. Percebe-se por meio da citação de algum tema motivo ou variação

que aparece numa nova composição. Nas Bachianas Brasileiras nº 4 dois temas populares foram

utilizados e estão presentes no terceiro e quarto movimentos respectivamente.

Na Ária (Cantiga) Villa-Lobos encontra-se a citação da canção popular Ó mana deix'eu ir

e, esta é a citação literal do trecho da canção Itabaiana, datada do mesmo ano do terceiro

movimento e também composta pelo próprio Villa-Lobos. No quarto movimento Dança

(Miudinho), há uma citação, por meio de variação temática, do tema popular, Vamos

Maruca que também foi publicado por Villa-Lobos em arranjo para três vozes e piano em

seu guia prático. Contudo, contata-se que o motivo inicial do primeiro movimento, o

Prelúdio (Introdução), é também uma citação do motivo inicial do tema da Oferenda

5 MANFRINATO, Ana Carolina – O USO DA INTERTEXTUALIDADE NA BACHIANAS BRASILEIRAS Nº 4 DE HEITOR VILLA-

LOBOS – Anais do II SIMPOM, 2012: 964.

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Musical de Johanns Sebastian Bach, conhecido como thema regium, tema real, ou tema do

rei.6

Essas discussões sobre teoria musical que enriquecem nosso conhecimento histórico, nessa

pesquisa tem a função de mostrar como de maneira prática acontece a miscigenação nessa obra,

quando Villa-Lobos utiliza temas populares interligados ao tema erudito composto por um par

europeu e cria uma obra caracteristicamente brasileira. Além das Bachianas Brasileiras, Villa-

Lobos também compôs obras com temáticas africana e indígena: Danças Características Africanas

de 1914, Duas Lendas Ameríndias de 1952 e Floresta Amazônica de 1958. Problematizaremos

agora o tema da formação da identidade mestiça brasileira a partir dos conceitos de interiorização

da metrópole, imaginação, invenção e pela soma de ambos. Maria Odila Dias aborda em seu texto

“A Interiorização da Metrópole” um aspecto interessante da emancipação política do Brasil: o

ciúme e as tensões entre os portugueses do Reino e os portugueses da “nova Corte”. Na primeira

década do século XIX, enquanto Portugal penava com a guerra e seus desdobramentos: devastação

e miséria, a nova Corte do Brasil, era sinônimo de prosperidade e o novo Império que se estabelecia

era a possibilidade da ressurreição do “velho reino”. Desde o século XVIII, a colônia já era

apontada como o lugar mais rico do império e, segundo Maria Odila, o então primeiro ministro

“Don Rodrigo de Souza Coutinho tinha o novo Império do Brasil como a tábua de salvação do

reino”. (Dias, 2009: 14). A separação política da nova Corte, agora Império, “que aceitaram, mas

que de início não queriam” (DIAS, 2009: 17). Os homens que aceitaram a independência, não viam

o sucesso da transformação da colônia em nação, principalmente em uma nação moderna; baseada

no princípio liberal do regime constitucionalista. Existia uma insegurança devido às tensões

internas, sociais e raciais, uma nação fragmentada, os regionalismos, a falta de unidade que não

propiciava o surgimento de uma consciência “nacional”. A Corte do Rio de Janeiro se viu obrigada

a impor uma unidade entre as diversas províncias, e isto aconteceu “a duras penas” a partir desta

unidade, da centralização do poder e da “vontade de ser brasileiros”, que foi talvez uma das

6 MANFRINATO, Ana Carolina – O USO DA INTERTEXTUALIDADE NA BACHIANAS BRASILEIRAS Nº 4 DE HEITOR VILLA-

LOBOS – Anais do II SIMPOM, 2012: 966.

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principais forças políticas modeladoras do Império; a vontade de construir uma nação civilizada,

europeia nos trópicos, apesar da sociedade de escravocratas e mestiços da colônia”. (DIAS,

2009:17 e 18).

Mas o desejo dos portugueses que aqui viviam era de reorganizar um novo Império português,

pois “a dispersão e fragmentação do poder, somadas à fraqueza e instabilidade das classes

dominantes, requeria a imagem de um Estado forte que a nova Corte parecia oferecer” (DIAS,

2009: 18). A sociedade que se formou ao longo de três séculos de colonização não tinha outra

alternativa senão transformar-se em metrópole, para garantir a manutenção da continuidade da sua

estrutura política, administrativa, econômica e social. “Foi o que os acontecimentos europeus, a

pressão inglesa e a vinda da corte da Corte tornaram possível” (DIAS, 2009: 19). A partir desse

momento dá-se início à transformação da colônia numa metrópole interiorizada. Nesse período

foram construídas várias casas imponentes e palácios na cidade do Rio de Janeiro, sede da Corte,

além de alguns negócios comerciais e uma fábrica de couros, em busca de criar aqui um novo

Império Português, estabelecendo na nova Corte a maior proximidade possível com Portugal. Nas

duas primeiras décadas do século XIX, mais que a população escrava, o que preocupava a

administração da Corte era a maioria de mestiços existentes no Brasil, e que os brancos já era uma

minoria diante destes “outros”. Nesse período de construção da nação a Corte dava cargos dentro

da administração para os nativos que eram chamados de “ilustrados brasileiros” (DIAS, 2009: 37),

e nas artes não foi diferente. No caso específico da música durante as duas primeiras décadas do

século XIX, na cidade do Rio de Janeiro, o Pe. José Maurício Nunes Garcia foi um “ilustre

brasileiro”, filho de pais mulatos e portanto mestiço, que assumiu uma das funções mais

importantes dentro da Corte: mestre de capela da “Capela Real” e responsável pela execução e

produção oficial da música na Corte. Quando da chegada do músico austríaco Sigismund

Neukomm ao Brasil, José Maurício teve suas obras apresentadas em Viena ao mesmo tempo em

que Wolfgang Amadeus Mozart tinha suas obras apresentadas no Rio Janeiro; um exemplo disso

foi a estreia simultânea do Réquiem de Mozart no Rio de Janeiro e do Pe. José Maurício em Viena,

em 1820. Quando a família real chegou ao Brasil em 1808, o príncipe regente D. João VI assistiu

à apresentação do solene Te Deum na Catedral do Rio de Janeiro e surpreendeu-se: “a realização

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musical excedia em muito o que se podia esperar numa colônia de Portugal. Era mestre de capela

e compositor titular o Pe. José Maurício Nunes Garcia” (KIEFER, 1982: 53). Portanto deste

momento em diante o apreço e amizade de D. João não mais abandonariam o compositor, que se

ordenou padre, possivelmente não escolhendo este caminho por vocação, mas sim para ter acesso

a uma posição social que lhe faltava por nascimento e por sua cor, e para a obtenção de uma posição

econômica relativamente tranquila. Podemos dizer que o Pe. José Maurício teve como intelectual

e artista de sua época importância fundamental no processo de interiorização da metrópole e na

construção da identidade nacional, pois mesmo sua música sendo essencialmente europeia ele já

era um exemplar mestiço e carregava consigo esta marca, e a nova Corte, em vias de tornar-se o

Império do Brasil, já produzia brasileiros mestiços e ilustres. Benedict Anderson escreveu um livro

intitulado “Comunidades Imaginadas”, onde nos é apresentada a ideia que comunidades resistem

ao tempo e às intempéries devido a uma unidade linguística, mas não apenas o idioma comum entre

os membros delas, mas o idioma “sagrado” aquele que liga as pessoas através da “religião”.

“Tomemos o exemplo do Islã: se maguindanauense encontrasse um bérbere em Meca, um

desconhecendo o idioma do outro, incapazes de se comunicar oralmente, mesmo assim

entenderiam os seus caracteres, porque os textos sacros adotados por ambos existiam apenas em

árabe clássico”. (ANDERSON, 2008: 40)

Porque mais importante que a sonoridade da língua são os símbolos e para essas duas comunidades

a língua sacra do islã é o árabe clássico que os aproximam. A língua sacra tem a capacidade de

aproximar comunidades diferentes por meio da religião; com as artes ocorre um processo

semelhante, e no caso da música, o objeto deste trabalho, o que propõe identidade é a presença de

elementos das matrizes étnicas existentes dentro de uma comunidade ligada pela mesma língua,

que como coloca Benedict Anderson, é fruto da nossa necessidade imaginativa para promover a

construção de uma identidade comum. Uma “comunidade imaginada” a música é uma linguagem

com símbolos próprios e que independentemente do idioma de quem a ouve ou a executa faz-se

entender por meio da emoção, e do afeto provocado por ela no interlocutor. Então, se a música toca

os indivíduos que a ouvem, faz-se oportuno que carregue elementos que remetam às origens étnicas

dos mesmos, portanto se um afro descente ou um indígena identificar numa determinada

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composição elementos da sua matriz cultural, ele sentir-se-á pertencente à cultura da qual faz parte

esta composição. Mas nesse processo, com o mundo se modernizando e as nações abandonando a

língua sacra como elo de ligação, essas passaram a desenvolver suas relações através das línguas

vernáculas, que é uma das características da comunidade imaginada “nação”. É a simultaneidade:

um brasileiro nunca vai conhecer ou sequer saber o nome dos cerca de duzentos e quatro milhões

de habitantes do Brasil. Ele não sabe o que eles estão fazendo, mas confia na atividade anônima e

simultânea destes. Estão unidos por costumes, língua, religião e isso provavelmente impulsionou

o trabalho dos compositores do século XIX, no caso do Brasil, que buscaram nas matrizes europeias,

africanas e indígenas um elo de união que promovesse a simultaneidade. Eles não eram mais apenas

descendentes de europeus, africanos ou indígenas, agora eles eram brasileiros, pois eram ligados

por elementos sociais e culturais tais como: religião, língua e costumes. Estes elementos somados

os identificavam como mestiços, já que é possível identificar estes vários princípios étnicos, seja

através de motivos musicais ou de elementos cênicos que suscitam as lembranças dessas matrizes

reunidas. Outro conceito que podemos agregar a este trabalho é o texto “A Invenção das Tradições”

de Eric Hobsbawm, quando se usa o termo “tradições inventadas” algumas são realmente

inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, algumas não precisam de muito tempo

para transforma-se em tradição.

Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por

regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam

inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica,

automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás sempre que possível,

tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado. (HOBSBAWM,

2014; 8)

Tomando como referência o texto do Hobsbawm, podemos dizer que os compositores do século

XIX aos quais nos referimos, buscaram no passado do Brasil elementos que permanecem, mas que

só diante da necessidade de afirmação da “identidade nacional” foram resgatados. Chegamos a isto

porque no Brasil Colônia essas matrizes culturais já existiam, porém não eram vistas desta forma,

uma vez que para os portugueses que aqui viviam, só existia uma matriz cultural: a sua “europeia”,

inclusive porque os africanos eram vistos como mercadoria, e não com um povo civilizado, e

portanto não tinham cultura, tendo o mesmo acontecido com os indígenas que eram considerados

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selvagens e não conheciam sequer a Deus. E desses os que foram catequizados tiveram que

assimilar a cultura do colonizador. Porém em tempos de “construção de identidade”, são esses

elementos do passado que são resgatados, “as “novas” tradições surgiram simplesmente quando

passaram a valorizar heranças antes ignoradas” (HOBSBAWM, 2014: p.12). Quando necessário

conservam-se os velhos costumes, e em muitas circunstâncias novas se utilizam velhos moldes para

novos fins, na construção de uma identidade nacional, os artistas, intelectuais e, especificamente

no caso dessa pesquisa, os compositores desse período mesmo que de maneira inconsciente

valeram-se da mestiçagem, uma circunstância nova no processo de formação da identidade. No

século XIX, não só no Brasil, mas na Europa também houve uma ampla utilização das canções

folclóricas para servir a propósitos nacionais, e essas canções eram utilizadas como material de

conteúdo patriótico, servindo à afirmação da identidade nacional principalmente porque a canção

popular suscita o sentimento de pertencimento que aproxima os indivíduos, desperta o espírito

nacionalista provocado pela união entre a arte e o amor à Pátria. Esta é uma característica

predominante do século XIX. Sem estabelecer uma comparação entre o pensamento de Benedict

Anderson e Eric Hobsbawm, contudo procurando estabelecer uma relação com os compositores

brasileiros que estamos analisando para entender esse processo de formação da identidade mestiça

da música brasileira, mas que está interligado à construção política de uma identidade nacional e o

patriotismo. Independente de se a “metrópole foi interiorizada”, se as “comunidades são

imaginadas” ou ainda se as “tradições são inventadas” os governos se apropriaram desses conceitos

e das obras dos artistas em diversos campos para construir o processo identitário. Foi assim na

Europa, em que muitos compositores levaram para sua música erudita as danças populares, as

mazurcas, poloneses, minuetos e valsas, não sendo diferente aqui nos trópicos. O Pe. Mulato, como

é chamado José Maurício Nunes Garcia entre os historiadores da música, mesmo compondo música

essencialmente europeia em alguns momentos conseguiu deixar transparecer a lembrança de uma

modinha, composição tipicamente brasileira hoje muito mais utilizada como símbolo de produção

artística brilhante do que em sua época, porém foi de grande importância para mostrar à metrópole

que na nova Corte, ou simplesmente na colônia, produzia-se cultura do mesmo nível. Antônio

Carlos Gomes, um compositor que foi talvez o mais importante do seu tempo, que mostrou coisas

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do imaginário brasileiro para o público europeu, tais como, os índios, os escravos e “índios como

escravos”, teve seu nome associado ao Império tanto de maneira positiva, pois teve sua ida à Europa,

onde construiu uma carreira de sucesso, patrocinada pelo Imperador D. Pedro II, foi aclamado e

condecorado como filho ilustre da Pátria. Contudo, também experimentou a rejeição quando houve

o declínio do regime e toma força o movimento republicano, tornando-o persona non grata para a

República, pois foi considerado um defensor do Império, quando era apenas um amigo do

Imperador e sua família. Os mesmos republicanos que o rejeitaram em vida, após a sua morte

transformaram-no em vulto nacional, em símbolo de brasileiro humilde, mestiço que venceu na

Europa, e divulgou o nome da nação brasileira para o mundo na segunda metade do século XIX.

No final do século XIX início do XX, um dos grandes nomes da música brasileira e talvez o

primeiro compositor nacionalista brasileiro, “Heitor Villa-Lobos” foi um pesquisador da cultura

popular brasileira e introduziu os elementos culturais das matrizes europeia, africana e indígena

em suas composições, era um defensor do ensino de música nas escolas, foi um dos primeiros

músicos brasileiros a consolidar uma carreira internacional de abrangência mundial. Apesar de não

ser político teve seus projetos de pesquisa e de educação, como foi o caso do canto orfeônico,

associados principalmente ao Estado Novo e à Era Vargas. Sua obra transita tanto pela imaginação

quanto pela invenção, seja das comunidades, quanto das tradições, não se pode pensar em música

erudita brasileira, sem mencionar a obra de Villa-Lobos, um compositor que conseguiu atribuir

uma identidade nacional à música brasileira como poucos. Graças à obra de Villa-Lobos a música

erudita brasileira foi parar nas salas de concerto de todo o mundo, não só pela sua competência

musical, mas também por ser um defensor da nacionalidade brasileira. Para Gruzinsky, no seu livro

“O Pensamento Mestiço”, o conceito de cultura é muito amplo, e dentro de uma cultura

miscigenada torna-se ainda mais abrangente. O conceito de cultura nos permite enumerar ou referir

vários fatores que compõe uma sociedade, como por exemplo os vários fenômenos da natureza aos

quais constituem a identidade de grupos, povos e etnias. Nesta pesquisa buscamos organizar ideias

e conceitos que levem-nos ao entendimento de como se deu a formação da identidade mestiça da

música brasileira durante o Império e começo da República. Este processo de construção da

identidade não é uma prerrogativa apenas da música, mas de todas as artes, e também não aconteceu

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somente no Brasil, sendo observado em outros países, especialmente na Europa do século XIX que

foi marcado pelo fenômeno do Romantismo, onde os sentimentos eram de fundamental

importância na construção de um ideal de identidade nacional. Além de trabalharmos com alguns

autores que escreveram sobre a questão da miscigenação, como base teórico-metodológica para

esta pesquisa, Gruzinsky citado no início desta página, também contribuiu para o entendimento

dessa questão. Para fundamentar este trabalho também recorremos à análise de três obras de

compositores que viveram nesse período e foram de grande importância para a construção dessa

identidade. Pe. José Maurício Nunes Garcia (1767 – 1830) foi um importante compositor deste

período. A obra analisada foi o seu “Réquiem” composto em 1816 para os funerais de D. Maria I,

mãe de D. João VI. Antônio Carlos Gomes (1836 - 1896) talvez tenha sido o primeiro compositor

brasileiro a utilizar elementos das matrizes culturais africanas e indígenas em suas composições,

além de ser o primeiro músico brasileiro que estabeleceu uma carreira internacional. A obra

analisada foi “O Coro dos Aymores”, da ópera “Il Guarany” composta em 1870. Sua carreira

floresceu durante o segundo Império sob a regência de D. Pedro II e teve seu declínio no começo

da República, mas ainda assim seu nome foi alçado à condição de vulto nacional pela mesma

República que o rejeitou. Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959) dentre os compositores que tiveram

suas obras analisadas nesta pesquisa é aquele ao qual podemos nos referir como nacionalista, sua

obra é carregada deste espírito e são muitas as referências populares nas suas composições.

Analisamos aqui as “Bachianas nº 4”, que foi escolhida em virtude de apresentar muitos elementos

que nos remetem ao popular e ao nacional. Ele também foi um dos grandes nomes da Semana de

Arte Moderna de 1922 foi associado à construção da identidade nacional, mesmo tendo sido usado

pelo Estado Novo como propagador de seus ideais; um exemplo disto foi transformação do seu

projeto de educação musical (canto orfeônico) em uma peça de propaganda estatal. Esperamos que

esta pesquisa colabore para o conhecimento da formação da identidade da música brasileira a partir

da incorporação de elementos das matrizes africanas e indígenas à matriz europeia, que não só era

a dominante no Brasil do início século XIX como também considerada a única. E no afã da

construção da identidade nacional os intelectuais e artistas da época, e no caso específico deste

trabalho os músicos, buscaram associar elementos dessas diversas matrizes culturais em suas obras

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para que as mesmas fossem reconhecidas como “brasileiras”. Poderíamos continuar escrevendo

muito ainda sobre o assunto, pois apesar de tudo que já foi dito ou escrito a respeito deste ainda é

pouco diante da vastidão e da variedade de possibilidades para abordarmos sobre este tema.

Esperamos que esta pesquisa traga ainda mais luz ao entendimento de como se deu a formação da

identidade mestiça da música brasileira entre o século XIX e o começo do século XX.

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