26
  P r im eir o s E scr it o s DIMENSÕES DO PRESENTE: PALAVRAS E IMAGENS DE UM ACONTECIMENTO, OS ATENTADOS AO WORLD TRADE CENTER E AO P ENTÁGONO, EM 11  DE SETEMBRO DE 2001 1  Ana Ma ria Maua d Profª Adjunta do Departamento de História/UFF Pesquisadora do Laboratór io de História Oral e Imagem/UFF Em 11 de setembro, por volta da 8 horas da manhã (hora local) dois aviões da American Airlines se espatifaram contra as torres gêmeas do World Trade Center – coração financeiro de Manhattam e um dos ícones do capitalismo contemporâneo. Horas depois as torres gêmeas ruiriam deixando em seu lugar um vale de ruínas e escombros. Quase ao mesmo tempo, um outro avião, também de passageiros, agora da United Airlines, se lançaria contra o Pentágono, base central da defesa norte-americana. Por fim, na seqüência dos desastres, um quarto avião cairia na região da Pensilvânia. Um “acontecimento monstruoso” (Nora, 1979), transmitido em tempo real pelas  principais red es de televisão do mundo , que abalou o mundo e suscit ou reações das mais díspares – alegria e pesar, comemoração e luto, revolta e regozijo. No calor dos combates em torno da versão verdadeira dos fatos, se teceram as diferentes interpretaç ões envolvendo, na sua construção, os tempos e entretempos históricos. O objetivo deste texto é refletir sobre as dimensões dos tempos históricos que se inscrevem no tempo presente, analisando o episódio de 11 de setembro de 2001, a partir das fotografias, crônicas e reportagens veiculadas pela imprensa, no dia 12 de setembro de 2001. Utilizei-me para esta análise dois jornais de grande circulação no Brasil: a  Folh a de São Paulo  e o  Jornal do Brasil . A escolha de ambos os jornais é de ordem  pragmática: facilidade de acesso imediato. No entanto, a  Folha de São Paulo  pode ser tratada como um dos grandes jorn ais nacionais – tanto em termos de distribuição como espaço público de opinião, pela configuração do quadro de articulistas. Já o  J B, que apesar da crise econômica e de quadros que vivencia, mantém-se como opção de grande  jorn al no Rio d e Janeiro, alterna tiva à hegemo nia do jorna l O Globo.  Optei por um roteiro de exposição que parte da discussão sobre a relação entre historiadores e o tempo presente, enveredando para o papel que a mídia impressa assume na construção da narrativa histórica contemporânea, e chegando enfim ao acontecimento através das palavras e imagens que o definiram no exato “day after”, dia 12 de setembro de 2001. 1  Esta reflexão integra o projeto de pesquisa: O Olho da História:Fotojornalismo, Cultura e Memória no Mundo Contemporâneo, financiando pelo CNPq, desde agosto de 2000. Co ntou com a participaçã o de Carlos Eduardo.Moreira da C osta no tratamento das imagens.

11 de Setembro Ana Mauad

Embed Size (px)

Citation preview

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 1/26

 

 

Pr imeiros Escr it os 

DIMENSÕES DO PRESENTE: PALAVRAS E IMAGENS DE UM ACONTECIMENTO, OS ATENTADOS AO WORLD TRADE CENTER E AO PENTÁGONO, 

EM 11 DE SETEMBRO DE 20011 

Ana Maria MauadProfª Adjunta do Departamento de História/UFF

Pesquisadora do Laboratór io de História Oral e Imagem/UFF

Em 11 de setembro, por volta da 8 horas da manhã (hora local) dois aviões daAmerican Airlines se espatifaram contra as torres gêmeas do World Trade Center –coração financeiro de Manhattam e um dos ícones do capitalismo contemporâneo.Horas depois as torres gêmeas ruiriam deixando em seu lugar um vale de ruínas eescombros. Quase ao mesmo tempo, um outro avião, também de passageiros, agora daUnited Airlines, se lançaria contra o Pentágono, base central da defesa norte-americana.Por fim, na seqüência dos desastres, um quarto avião cairia na região da Pensilvânia.

Um “acontecimento monstruoso” (Nora, 1979), transmitido em tempo real pelasprincipais redes de televisão do mundo, que abalou o mundo e suscitou reações das mais

díspares – alegria e pesar, comemoração e luto, revolta e regozijo. No calor doscombates em torno da versão verdadeira dos fatos, se teceram as diferentesinterpretações envolvendo, na sua construção, os tempos e entretempos históricos.

O objetivo deste texto é refletir sobre as dimensões dos tempos históricos que seinscrevem no tempo presente, analisando o episódio de 11 de setembro de 2001, a partirdas fotografias, crônicas e reportagens veiculadas pela imprensa, no dia 12 de setembrode 2001. Utilizei-me para esta análise dois jornais de grande circulação no Brasil: aFolha de São Paulo e o  Jornal do Brasil. A escolha de ambos os jornais é de ordempragmática: facilidade de acesso imediato. No entanto, a Folha de São Paulo pode sertratada como um dos grandes jornais nacionais – tanto em termos de distribuição comoespaço público de opinião, pela configuração do quadro de articulistas. Já o  JB, queapesar da crise econômica e de quadros que vivencia, mantém-se como opção de grande

 jornal no Rio de Janeiro, alternativa à hegemonia do jornal O Globo. Optei por um roteiro de exposição que parte da discussão sobre a relação entrehistoriadores e o tempo presente, enveredando para o papel que a mídia impressaassume na construção da narrativa histórica contemporânea, e chegando enfim aoacontecimento através das palavras e imagens que o definiram no exato “day after”, dia12 de setembro de 2001.

1 Esta reflexão integra o projeto de pesquisa: O Olho da História:Fotojornalismo, Cultura e Memória noMundo Contemporâneo, financiando pelo CNPq, desde agosto de 2000. Contou com a participação deCarlos Eduardo.Moreira da Costa no tratamento das imagens.

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 2/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

I. OS TEMPOS DA HISTÓRIA.

Quando chamados a opinar sobre o acontecimento de 11 de setembro de 2001,boa parte dos intelectuais se mostrou lacônica, diante da velocidade com que o presentelhes era apresentado: pela televisão e em tempo real. A comunidade de ensaístas,

filósofos e sociólogos, procurados pelo   Jornal Folha de São Paulo para apresentaremsua avaliação sobre o que aconteceu, mostraram-se incapacitados de realizar qualqueranálise no calor da hora. Expressões tais como: “Nós não sabemos ainda quase nada. Éum ataque ao conjunto da civilização ocidental” (Jurgen Habermans), “É uma situaçãoterrível, ninguém sabe o que pode acontecer a partir de agora” (Carlo Ginsburg), ouainda outra mais sucinta, como do filósofo italiano Toni Negri, “Não tenho nada adeclarar. O que tenho a ver com isso”, fornecem a clara medida de que osacontecimentos que povoam nosso cotidiano, quanto mais traumático tanto maisininteligíveis se tornam.

Pouco afeitos a uma análise crítica de um tempo muito próximo os historiadores,somente a partir dos anos 1980, passaram consolidar o debate em torno da definição dospressupostos teórico-metodológicos para o trabalho com o tempo presente (Chauveau &Tétart, 1999). O debate se insere na onda dos retornos que assolou a oficina da história,por esta época. O retorno do fato, o retorno do político, o retorno da narrativa sãoindícios importantes de que a disciplina histórica, mais uma vez, redefinia seus campose canteiros (Boutier & Julia, 1998). Agora quem tomava a frente do processo eram oshistoriadores associados aos estudos da história contemporânea, notadamente, aquelesligados a uma história política renovada pelas discussões sobre o poder e sobre o papeldos intelectuais nos processos sociais, desembocando num importante debate sobre opapel do historiador no mundo contemporâneo (Chauveau & Tétart, 1999, Cap. 1).

Do embaraço semântico, em torno da história imediata e da noção de documentoimediato, até à legitimidade científica estabelecida pelo rigor teórico-metodológico,através do qual a problemáticas históricas foram sendo formuladas em torno da

contemporaneidade, um longo caminho foi trilhado. Deste percurso há que se reter asreflexões do historiador medievalista Jacques Le Goff (IN: Chauveau & Tétart, 1999),sobre os requisitos que se colocam no estudo do tempo presente:

1.  Ler o presente, o acontecimento, com uma profundidade, históricasuficiente e pertinente;2.  Manifestar quanto as suas fontes o espírito crítico de todos oshistoriadores segundo os métodos adaptados às suas fontes.3.  Não se contentar em descrever e contar, esforçar-se por explicar;4.  Tentar hierarquizar os fatos, distinguir o incidente do fato significativo eimportante, fazer do acontecimento aquilo que permitirá aos historiadores dopassado reconhecê-lo como outro, mas também integrá-lo numa longa

duração e numa problemática na qual os historiadores do ontem e de hoje,de outrora e do imediato se reúnam.

As recomendações e cuidados em torno do trabalho com o tempo presente,assumiram uma importância significativa, a ponto de integraram o conjunto de questõeslevantadas por André Burguière quando organizou o Dicionário das Ciências Históricas.Além da consagrada História Contemporânea, foram incluídos como temas relacionadosos verbetes: história imediata, história do tempo presente, história oral e históriapolítica, todos de certa maneira associados a lógica dos “retornos” historiográficos. No

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 3/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

verbete sobre história imediata, B. Paillard segue a linha de recomendações de Le Goff,evidenciando que qualquer trabalho de história na perspectiva do imediato e corrente,deve assumir uma atitude epistemológica aberta, mas balizada por quatro diretrizes queenumera (Burguière (org.), 1993,p. 410/411):

1ª Abordagem transdisciplinar dos fenômenos sociais: revelador de uma

realidade complexa e multiderteminada2ª Considerar o retorno do acontecimento a partir de uma discussão substantivasobre a temporalidade social. O acontecimento como um indício, como aexpressão de uma dinâmica mais profunda;3ª Propor uma reflexão sobre a incerteza e sobre o porvir humano;4ª Avaliar a subjetividade inerente aos estudos do presente e conceber suapesquisa como um processo de objetivação

Desse conjunto de recomendações, creio ser àquela que diz respeito àproblemática do tempo na história, a definidora do regime de historicidade que rege oestudo do tempo presente. Não me deterei na definição do conceito de tempo e nemtampouco na relação que o tempo, enquanto categoria do conhecimento histórico,

manteve com as discussões provenientes da filosofia e da física modernas (Cardoso,1988). Ao invés disso, prefiro pensar como os ritmos e movimentos da história podemser operados pelo historiador.

Em vários de seus escritos, Fernand Braudel discutiu a multiplicidade do tempoda história, um tempo imperioso e irreversível, por estar indefectivelmente ligado anoção de ritmo e duração (Braudel, s/d). No artigo clássico intitulado “A longaduração”, publicado na revista dos  Annales de 1958, Braudel defende a importância dadialética da duração para a observação histórica tanto do passado mais distante, quantodos fatos da atualidade. A noção de duração social e da pluralidade do tempo socialseriam indispensáveis para a elaboração de uma metodologia comum as CiênciasHumanas, posto que, esses tempos múltiplos e contraditórios da vida dos homens sãosubstância não só do passado, mas também matéria da vida social do presente.

No prefácio ao seu livro sobre o  Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo à Épocade Felipe II  (Braudel, 1978 p. 12-15), decompõe a história em planos escalonados,distinguindo em três a multiplicidade dos tempos que a integram: o tempo geográfico,da longa duração; o tempo social, dos ciclos e interciclos, associado à média duração; epor fim, o tempo individual, do acontecimento da brevíssima duração. No entanto, talestratégia se coloca como um recurso heurístico para se operar com a duração social,que se apresenta sempre complexa e integrada. O problema completa Braudel, “é definira hierarquia de forças, de correntes e de movimentos particulares e , mais tarde,reconstituir a constelação deste conjunto” (Braudel, s/d, p. 18). Em cada passo daanálise é necessário dimensionar como os ritmos se estabelecem entre movimentoslongos e impulsos breves, considerados estes nas suas fontes imediatas e aqueles na sua

projeção de um tempo longínquo.Desta maneira, longa duração, conjuntura e acontecimento ajustam-se na análisedas problemáticas históricas, compreendendo que ao escolhermos enfocar um tempodestes equivale a considerar todos os demais. Neste sentido, é importante ressaltar noestudo do imediato, como estes tempos se inscrevem no presente, quer comoacontecimento, processo ou representação social.

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 4/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

II. O ACONTECIMENTO, MATÉRIA DO TEMPO PRESENTE.

“Nenhuma época se viu, como a nossa, viver seu presente como já possuído de umsentido histórico. E somente isso seria suficiente para dotá-la de uma identidade, para libertar ahistória contemporânea da sua imperfeição. As guerras totais e as transformaçõesrevolucionárias, a rapidez das comunicações e a penetração das economias modernas nassociedades tradicionais, em resumo, tudo o que se costuma entender por mundialização

assegurou uma mobilização geral das massas que, por trás do front dos acontecimentos, outrorarepresentavam os civilizados da história; ao passo que os movimentos de colonização e depois dedescolonização, integravam à historicidade de tipo ocidental sociedades inteiras que, aindaontem, dormiam no sono dos povos “sem história” ou no silêncio da opressão colonial. Essavasta democratização da história, que fornece ao presente a sua especificidade, possui sua lógicae suas leis: uma delas – a única que aqui desejamos isolar – é que a atualidade, essa circulaçãogeneralizada da percepção histórica, culmina num novo fenômeno: o acontecimento” (Nora,Pierre, 1979, p.180)

A reflexão de Pierre Nora, escolhida para introduzir este item, habilita a históriado tempo presente a adquirir o estatuto de uma nova acepção de história contemporâneareconhecendo o acontecimento como a peça-chave para uma intrincada rede temporalque se tece na atualidade. As sociedades que emergiram no mundo pós-colonial

possuem a marca da homogeneização temporal como uma característica das maissuperficiais, no entanto, para além das aparências, guardam a duração social de mundostão diferentes. Este encontro de tempos pode ser visualizado através dos acontecimentosque fornecem o ritmo da narrativa histórica contemporânea.

A própria noção de visualidade da narrativa factual envolve as condições deexistência do acontecimento ditadas pelos meios do mundo atual. Nora cunha a noçãode acontecimento monstruoso para caracterizar o papel da mídia na promoção doimediato ao histórico: “o fato de terem acontecido não os torna históricos, para que hajaacontecimento é necessário que este seja conhecido através da lógica do espetáculo[...].Os mass media fizeram da história uma agressão e tornaram o acontecimentomonstruoso. Não porque sai, por definição, do ordinário, mas porque a redundânciaintrínseca ao sistema tende a produzir o sensacional, fabrica permanentemente o novo,

alimenta uma fome de acontecime ntos” (Nora, 1979, p.181-183)Em suas considerações sobre as metamorfoses do acontecimento, Nora afirma

que nas sociedades democráticas, este assume o papel do maravilhoso no imaginário dasmassas, imita os temas do fantástico tradicional através do efeito de sobre-multiplicaçãodas performances da sociedade tecnocrática. Os fatos que marcaram o cotidiano dasúltimas décadas do século XX tiveram a marca do espetacular, atribuída pelapossibilidade da transmissão direta, sendo assim o próprio acontecimento modernoencontra-se numa cena imediatamente pública.

É justamente, na possibilidade de associar a transmissão em tempo real e ocaráter informativo atribuído aos noticiários, à dimensão de consumo que as mídiascarregam no mundo atual que os acontecimentos conquistam a sua hiper-realidade dedivertimento dramático: todo mundo e ninguém tomam parte. Neste acontecimento aresposta do público é emocional e a participação que ele abre a vida publica, aindasegundo Nora, é “exigente e alienada, voraz e frustrada, múltipla e distante, impotente,portanto soberana, autônoma e teleguiada como essa impalpável realidade da vidacontemporânea que se chama opinião”(idem, p. 185).

A lei do espetáculo é de natureza totalitária, pois escamoteia sob a máscara deinformação fiel e indiscutível dos fatos, a cisão entre o real e sua projeção espetacular,funcionando sempre como princípio que estabelece a verdade sobre o que passou. Poroutro lado, não há acontecimentos felizes no mundo moderno, todos são catastróficos e

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 5/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

dramáticos: enchentes, deslizamentos, guerras, miséria e fome. Um sistema deinformação sem conteúdo, onde as imagens valem pela força de mobilização muito maispelo conhecimento que provocam.

Esse estado de super abundância de informações e, paralelamente, dedesinformação crônica é o que caracteriza o mundo moderno. O acontecimento exibidoperde o seu aspecto de referência espaço-temporal, gerando uma confusão inevitável,

mas favorável a todas as incertezas, angústias e pânicos sociais. Numa sociedade onde ainformação é democratizada pelos meios de comunicação de massa, saber é sempre aprimeira forma de poder, e via de regra, quem detém o poder é tido como quem sabe(Idem, p. 187). No entanto, Nora define que a lei do espetáculo, ao cindir real erepresentação, inscreve no coração da informação uma ambigüidade que tem comocorolário o “paradoxo das metamorfoses do acontecimento moderno” (Idem, p. 187).Dentro dessa perspectiva, a lógica da encenação assumida pelas narrativas mediáticasacaba por ressaltar a parte não factual do acontecimento, habilitando a compreendê-locomo um feixe temporal, onde se encontram múltiplas durações. É justamente, nadialética entre o real e a imaginação, própria a lógica do espetáculo, que reside apossibilidade de interpretação do acontecimento.

Ao historiador, sinaliza Nora, não é o acontecimento, sobre o qual não se tem

qualquer poder, que interessa, mas o duplo sistema que se nele entrecruza: sistemaformal e de significação. A análise formal conduz espontaneamente a análise dasignificação, o historiador do presente não faz outra coisa senão perseguir significaçõesno processo contínuo de produção em massa de acontecimentos pela mídia. Ao realizaresta tarefa opera no presente com a multiplicidade do tempo histórico. O acontecimentoé um indício a partir do qual se pode desvendar a forma como as sociedades históricasse relacionam com o seu passado e projetam o seu futuro é “a ponta de um iceberg”(Bosi, 1992) que indica a existência de um conjunto de relações e representações sociaiscuja dinâmica temporal se condensa no tempo presente.

Neste ponto cabe traçar uma breve trajetória do fotojornalismo e, desde já,estabelecer como é possível relacionar esta atividade com a narrativa histórica do séculoXX.

III. O OLHO DA HISTÓRIA: FOTOJORNALISMO E NARRATIVA HISTÓRICACONTEMPORÂNEA.

No título atribuído a este item, a expressão O olho da história foi tomada deempréstimo de Mathew Brady, chefe da equipe fotográfica que cobriu a Guerra Civilnorte-americana, ao se relacionar à câmera fotográfica. As fotografias produzidas noscampos de batalha eram consideradas como verdadeiras testemunhas oculares dahistória, pois desnudavam em imagens a dura realidade da guerra de uma maneira bemdiversa dos relatos escritos. A imagem fotográfica, segundo a concepção oitocentista,era assimilada a partir da crença de que as fotografias não passavam de janelas que se

abriam para o mundo lá fora, expondo-o da maneira mais fidedigna possível. Portanto,tudo o que era visto era recebido como tal. O relato histórico ganhava, assim a forçacomprobatória da verdade fotográfica.

Ao longo do século XX a herança oitocentista se atualizou através da fotografiade documentação social, a princípio associada às agências governamentais e, a partirdos anos 30 com a modernização técnica da imprensa, às agências internacionais(FREUND, s/d) , a ponto de podermos contar a história do século XX através de suasimagens. Tais fotografias compõem um catálogo, no qual surge uma história redefinidapelo estatuto técnico próprio ao dispositivo da representação: a câmara fotográfica.

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 6/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

Nesse outro tipo de escrita da história o local de sua produção (as agências de produçãoda imagem: família, Estado e imprensa) e o sujeito da narrativa (os fotógrafos), dividemcom os institutos históricos e as academias literárias, a tarefa de imaginar a nação einstituir os lugares de sua memória. Para Anderson (1998) a imprensa capitalistadesempenha um papel fundamental na elaboração da nação como comunidadeimaginada da modernidade.

Portanto, 

os grandes e não tão grandes fatos que marcaram a história do séculoXX foram registrados pela câmera fotográfica de repórteres atentos ao calor dosacontecimentos. Qual a natureza destes registros? Como fica a narrativa dosacontecimentos elaborada pela linguagem fotográfica? Quais são as imagens quecompõem a memória coletiva do século passado? É possível falar de uma história feitade imagens? Qual o papel do fotógrafo como criador de uma narrativa visual? E daimprensa como uma ponte entre os acontecimentos e sua interpretação? Estas são asquestões fundamentais que orientam o recorte do nosso objeto de pesquisa.

A fotografia entrou para os jornais diários em 1904, com a publicação de umafoto no jornal inglês,   Daily Mirror . Um atraso de mais de vinte anos em relação àsrevistas ilustradas, que já publicavam fotografias desde a década de 1880 (Souza, 2000.Freund, 1989). No entanto a entrada da fotografia no periodismo diário traduz uma

mudança significativa na forma do público se relacionar com a informação, através davalorização do que é visto. O aumento da demanda por imagens vai levar aoestabelecimento da profissão do fotógrafo de imprensa, procurada por muitos a ponto darevista Collier’s, em 1913 afirmar: “it is the photographer that writes history thesedays. The journalist only labels the characters ” (Lacayo e Russel, 1990, p.31. Cit.Souza 2000, p. 70).

Uma afirmação bastante exagerada, tendo em vista o fato de que, somente apartir dos anos 1930 que o conceito de fotorreportagem estaria plenamentedesenvolvido. Nas primeiras décadas do século, as fotografias eram dispostas nasrevistas de modo a traduzir em imagens um fato, sem muito tratamento de edição. Emgeral eram publicadas todas do mesmo tamanho, com planos amplos e enquadramentocentral, o que impossibilitava uma dinâmica de leitura, como também, não estabelecia ahierarquia da informação visual (Souza, 2000, p. 70).

Foi somente, no contexto de ebulição cultural da Alemanha dos anos 1920, queas publicações ilustradas, principalmente as revistas, ganhariam um novo perfil,marcado tanto pela estreita relação entre palavra e imagem, na construção da narrativados acontecimentos quanto pelo posicionamento do fotógrafo como testemunhadesapercebida dos acontecimentos. Eric Salomon (1928-1933), foi o pioneiro naconquista do ideal da testemunha ocular que fotografa sem ser notado. No prefácio deseu livro – Contemporâneos Célebres Fotografados em Momentos Inesperados ,publicado em 1931, ele enuncia as qualidades que o fotojornalista deveria ter:

“A atividade de um fotógrafo de imprensa que quer ser mais do que um artesão éuma luta contínua pela sua imagem. Tal como o caçador está obcecado pela sua

paixão de caçar, também o fotógrafo está obcecado pela fotografia única quequer obter[...] É preciso lutar contra a administração, a polícia, os empregados,[...] é preciso apanhá-las (as pessoas) no momento preciso em que elas estãoimóveis. Depois é preciso lutar contra o tempo, pois cada jornal tem umadeadline ao qual é preciso antecipar-se. Antes de tudo o mais um repórterfotográfico tem de ter uma paciência infinita, e não se enervar nunca; deve estarao corrente dos acontecimentos e saber a tempo e a hora onde é que irãodesenrolar-se. Se necessário devemos servir-nos de toda a espécie de astúcias,

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 7/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

mesmo se elas nem sempre são bem sucedidas” (cit. Freund, 1989, p. 117 eSouza, 2000, p.78)Solomon é responsável pela fundação da primeira agencia de fotógrafo, em

1930, a Dephot, preocupado em garantir a autoria e os direitos das imagens produzidas.Questão que se prolonga até os dias de hoje, nos meios de fotografia de imprensa. Emtodo o caso foi através de iniciativas independentes como esta que a profissão do

fotógrafo de imprensa foi ganhando autonomia e reconhecimento. Associado a Solomonem sua agencia estavam: Felix H. Man, além de André Kertesz e Brassai.A narrativa através de imagem passa a ser valorizada quando surge a figura do

editor de fotografias. O editor, figura que surge nos anos 1930, originou-se do processode especialização de funções na imprensa e passou a ser o encarregado de dar sentido aimagem, articulando adequadamente palavras e imagens, através do título, da legenda ede breves textos que acompanhavam as fotografias.A teleologia narrativa dasreportagens fotográficas tinha como objetivo precípuo o de capturar a atenção do leitor,ao mesmo tempo em que o instruía na maneira adequada de ler a imagem. StefanLorant, que já havia trabalhado em diversas revistas alemães foi o pioneiro naelaboração do conceito de fotorreportagem.

Lorant rejeitava a foto encenada, ele, ao invés, vai fomentar a foto-reportagem

em profundidade sobre um único tema. Nessas reportagens, geralmente apresentadas, aolongo de várias páginas, fotografias detalhadas agrupadas em torno da foto central. Estatinha por missão sintetizar os elementos de uma ‘ estória’ que Lorant pedia aosfotojornalistas que contassem em imagens. Uma fotorreportagem, segundo talconcepção deveria ter um começo e um fim definidos pelo lugar, tempo e a ação(Souza, 2000, p.80)

Com a ascensão do nazismo os fotógrafos deixam a Alemanha, Salomom émorto em Auschswitz, alguns deles dentre os quais o húngaro, Andrei Friemann queassume o pseudônimo de Capa, vão para França, onde em 1947 fundam a agencia

 Magun, outros, como Lorant, se exilam na Inglaterra, assumindo a direção deimportantes periódicos, tais como Weekly Iillustrated . Posteriormente, com oacirramento do conflito seguiram para os EUA, trabalhando junto as revistas  Life , Look  e Time (1922).

O período entre guerras foi também o de crescimento do fotojornalismo norte-americano. Destacando-se, neste contexto, o aparecimento dos grandes magazines devariedades como a  Life (1936) e a  Look (1937). A primeira edição da revista Life saiuem 11 de novembro de 1936, com tiragem de 466 mil exemplares e com uma estruturaemrpesarial que reunia em 17 seções renomados jornalistas e fotógrafos da sensibilidadede um Eugene Smith. Criada no ambiente do New Deal, a  Life foi projetada para darsinais de esperança ao consumidor, tratando em geral de assuntos que interessavam aspessoas comuns. Objetivava ser uma revista familiar, que não editava temas chocantesidentificando-se ideologicamente com: a ética cristã,a democracia paternalista, aesperança num futuro melhor com esforço de todos, trabalho e talento recompensados,

apologia da ciência, exotismo, sensacionalismo e emotividade temperada por um falsohumanismo (Luiz Espada, cit. Por Souza, 2000, p.107). Segundo o seu fundador HenryLuce a finalidade da revista seria fazer ver:

“[a Life surge] Para ver a vida; para ver o mundo, ser testemunha oculardos grande acontecimentos, observar os rostos dos pobres e os gestos dosorgulhosos; ver estranhas coisas – máquinas, exércitos, multidões, sombras naselva e na lua; para ver o trabalho do homem – as suas pinturas, torres [edifícios]e descobertas; para ver coisas a milhares de quilômetros, coisas escondidas atrásdos muros e no interior de quartos, coisas de que é perigoso aproximar-se; as

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 8/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

mulheres que os homens amam e muitas crianças; para ver e ter prazer em ver;para ver e espantar-se; para ver e ser instruído” (cit. Souza, 2000, p.108)Com base nesta finalidade foi dada a fotografia um espaço significativo,

desenvolvendo-se, plenamente, nesta publicação os preceitos de fotorreportagemdefendidos por Stephan Lorant que aí veio a atuar nos anos da guerra. Afotorreportagem marcou época na imprensa ilustrada respondendo a demanda de seu

tempo. Um tempo onde a cultura se internacionalizava e a história acelerava seu ritmono descompassado das guerras e conflitos sociais. Em compasso com a narrativa deimagens, os acontecimentos recuperaram a sua força de representação, a ponto de sepoder contar a história contemporânea através dessas imagens.

A geração de fotógrafos que se formaram, a partir da década de 1930, atuaramnum momento onde a imprensa era o meio por excelência para se ter acesso ao mundo eaos acontecimentos. A imagem dessa geração de fotógrafos exerceu uma forteinfluência na forma como a história passou a ser contada. As concerned photographs,fotografias de forte apelo social, produzidas a partir do estreito contato com adiversidade social, conformaram o gênero também denominado de documentaçãosocial.

Projetos associados à rubrica de documentação social são bastante variados, mas

em geral se associam a uma proposta institucional, oficial ou não. Seguem-se doisexemplos significativos para história da fotografia engajada:

Farm Security Administration: A Grande depressão norte-americana quesobreveio ao crack  da bolsa de Nova York em 1929, dois milhões de desempregados euma massa de imigrantes vivendo em condições sub-humanas. As péssimas condiçõesde vida, associada ao deslocamento de populações no interior do próprio país, marcarameste período por um constante medo de explosões de conflito social, demandando umaatenção continuada por parte das autoridades.

Um número significativo de fotógrafos consternados pela situação responderamde maneira favorável a demanda oficial. Sob os auspícios do que foi conhecido comoFSA (Farm Security Admnistration), uma agência de fomento governamental, dirigidapor Roy Stryker, a vida rural e urbana foi registrada (e devassada) pelos maisrenomados fotógrafos do período: Dorothea Langue, Margareth Bourke -White, Russel-lee, Walker Evans,etc.

Muitas destas respostas foram lidas como exemplos de fotojornalismo, portantosuas imagens foram valorizadas tanto como um registro permanente de sua época, aomesmo tempo em que, foram vistas como tendo um lugar dentro do contexto no qualforam produzidas. Neste sentido, o objetivo destes fotógrafos era não somente registrare informar, mas mover e mobilizar a opinião pública no sentido de uma ação positiva,eles utilizavam, para tanto não poupavam recursos, tais como a “linguagem dramática”.(Clarke, 1997, cap. 8)

Agência Magnum: o aumento constante da busca por imagens conduz àmultiplicação de agências de imprensa em todos os países. Elas empregavam fotógrafos

ou estabeleciam contratos com fotógrafos independentes. Em geral as agências ficavamcom grosso da venda das fotos, o fotógrafo responsável por todos os riscos não tinhacomo controlar a venda de suas fotografias. Por estas razões que em 1947, Robert Capa,

 juntamente com outros fotógrafos, fundaram a Agência Magnum. Dentre os fundadoresestavam: Além de Capa, David Seymour, Henri Cartier-Bresson, George Rodger,Willian Vandivert e Maria Eisner. Em 1949 juntaram-se ao grupo: Werner Bishop,Ernst Haas e Gisèle Freund. Entre 1951 e 1959 a agência é acrescida por mais umconjunto de novo colaboradores: Eve Arnold, Erich Hartmann, Erich Lessing, DenisStock, Cornell Capa, entre outros.

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 9/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

Para este grupo de fotógrafos, a fotografia não era apenas um meio para ganhardinheiro. Aspiravam a exprimir, através da imagem, os seus próprios sentimentos eidéias de sua época. Rejeitavam a montagem e valorizavam o flagrante e o efeito derealidade suscitado pelas tomadas não posadas, como marca de distinção de seu estilofotográfico. Em geral os participantes dessa agência eram adeptos da leica, uma câmerafotográfica de pequeno porte que prescindia de flash para as suas tomadas, valorizando

com isso o efeito de realidade (Idem)Em ambos os exemplos o que se percebe é a construção uma comunidade deimagens em torno de determinados temas, acontecimentos, pessoas, ou lugares, podendoinclusive cruzar estas categorias. Tais imagens corroboram em grande medida oprocesso de construção de identidades sociais raciais, políticas, étnicas, nacionais, etc.

A partir dos anos 1960 com a disseminação da televisão como mídia dominantena Europa e nos EUA, o fotojornalismo redefine-se a partir da máxima da captura doacontecimento sensacional e da industrialização da atividade fotográfica. Na primeiralinha de mudanças destacou-se a busca por eventos dramáticos de pessoas em situaçõeslimites – vale lembrar o conjunto de fotografias produzidas sobre o Vietnam – nas quaiso fotojornalismo tende a explorar os caminhos da sensibilidade, dirigindo-sefreqüentemente a emoção através da utilização massiva do estilo foto-choque 2. Na

segunda linha de transformações insere-se a organização de agências de notícia taiscomo: a United Press International, France Presse, Reuters, Associated Press , entre osanos 1970-1990. A concorrência entre as grandes agências deu um novo rumo à disputatecnológica e contribuiu, significativamente, para a melhoria da transmissão e edição deimagens, especialmente com a introdução das tecnologias digitais, sem que issorepresentasse uma efetiva inovação da estética fotográfica que continua se alimentandoda “atualidade quente” (Sousa, 2000, p.151-161)

Enfim, dessa trajetória interessa ressaltar dois grandes temas que acabaram pordeterminar a lógica do próprio circuito social da fotografia do novecentos. O primeirodiz respeito ao papel da fotografia na construção das identidades sociais, ligadafundamentalmente a atividade da fotografia de documentação social; e o segundo volta-se para a capacidade discursiva da imagem fotográfica e seu envolvimento naelaboração de uma certa narrativa dos acontecimentos históricos, corroborada pela linhaeditorial que as revistas ilustradas e os grandes jornais adotaram para o tratamento dasimagens fotográficas.

IV. ATRAVÉS DAS IMAGENS:DIMENSÕES DO TEMPO PRESENTE.

Como era de hábito, naquela terça-feira, dia 11 de setembro de 2001, estava emcasa trabalhando diante do computador, quando minha filha, que não havia ido a aulapor conta de um pé quebrado, me chama correndo para ver através da TV a transmissãodireta do ataque ao World Trade Center. Desde esse momento não parei mais de mepreocupar com a produção massiva de imagens sobre o que havia ocorrido nos Estados

Unidos. O resultado foi um monte de jornais guardados e algumas pistas trazidas pelainternet sistematizadas nesta reflexão que exponho agora.O acontecimento de 11 de setembro de 2001 assumiu significados diversos em

várias partes do mundo, perseguir tais significados não caberia no recorte que propus,ou seja, para entrar no feixe de significados que este acontecimento circunscreveu, opteipelas imagens fotográficas, delimitando minha série em torno das fotos de dois jornais:

2 Segundo Roland Barthes, a foto-choque define-se, no contexto da fotografia de imprensa, pelo seucaráter traumático, através do qual se suspende a linguagem e a significação. Nesse sentido o efeito queproduz no receptor é basicamente emocional. (Barthes, 1982)

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 10/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

a Folha de São Paulo e o Jornal do Brasil. Um grande jornal de São Paulo e outro doRio. A escolha foi de ordem pragmática – sou assinante dos dois jornais –, masconfirmou-se quando me inteirei do tipo de fotografia que a grande imprensa nacionalveiculou sobre o acontecimento: todas das grandes agências internacionais.

No entanto, no tratamento das fontes, a tentativa de estabelecer umaintertextualidade entre fotografias e os textos escritos, obr igou-me a circunscrever,

ainda mais, a minha escolha estabelecendo o exato “day after”, o dia 12 de setembro de2001, como o limite da minha análise. Desta forma, trabalhei com todas as fotografiasveiculadas em ambos os jornais, somando um total de 100 fotografias, e as cataloguei

  juntamente com todas as reportagens e análises publicadas em ambos os jornais,segundo três eixos temáticos:

Tema 1 – A narrativa do que aconteceu: composto basicamente por reportagensque descreveram a seqüência dos acontecimentos, testemunhos de vítimas, ou pessoasque estiveram presentes de alguma forma, e as crônicas sobre a situação escritas nosabor da hora.

Tema 2 – A relação com o passado recente: composto por reportagens querelacionaram o acontecimento a outros da mesma natureza, análises sobre a políticaexterna norte-americana e opiniões de leitores sobre a motivação dos fatos.

Tema 3 – O imaginário contemporâneo: alteridades e expectativas – compostopor análises e matérias que relacionam o acontecimento com a ficção cinematográfica,que apontavam para a relação entre oriente e ocidente como base de um conflitomundial e, por fim, as matérias que tratavam do futuro: dos prognósticos em relação aomundo depois do 11 de setembro de 2001 e da escatologia do final do milênio.

A maioria das imagens fotográficas veiculadas no dia 12, diferentemente doelenco de temas dos textos escritos, enfocou diretamente o acontecimento,estabelecendo, assim, uma relação maior com o primeiro tema, embora algumasimagens remetam aos dois outros temas. Este primeiro tema também foi incrementadocom a história de três fotógrafos que atuaram na cobertura do acontecimento publicadano site Digital Journalist (http://digitaljournalist.org/ 

 

), sendo que um deles, Bill Biggartmorreu na queda da segunda torre.

As 100 imagens dos dois jornais foram tomadas em conjunto e analisadassegundo a perspectiva histórico-semiótica (Mauad, 1997). Segundo tal perspectiva afotografias devem ser consideradas como mensagens portadoras de sentido, que searticulam num plano da expressão e num plano do conteúdo. No primeiro plano sãoconsideradas as opções técnicas e estéticas da fotografia, incluindo na sua análise aavaliação dos seguintes itens: tamanho; formato; relação com o texto escrito; tipo;sentido; direção; distribuição dos planos; objeto central; arranjo e distribuição doselementos na foto;foco; textura e iluminação. Já no segundo, as opções consideradas naanálise dizem respeito aos seguintes itens: local; tema; pessoas; objetos; atributo daspessoas e atributos da paisagem.

1.Oh Damn, Bill, why are you so close?”3

 Com essa frase Wendy Biggart, esposa de Bill Biggart, acompanhou a seqüência

de fotografias digitais recuperadas quando o corpo de seu marido foi encontrado nosescombros da segunda torre do WTC. De fato o que se percebe ao vermos as fotografiasde Bill4 é a tentativa desesperada de chegar o mais perto o possível do acontecimento. O

3 Oh, raios, Bill por que você está tão perto?4 http://digitaljournalist.org/issue0111/biggart_intro.htm/  

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 11/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

ideal de testemunha ocular inscrito na prática do fotógrafo de forma indiscutível foilouvado por Dirck Halstead, ao comentar as últimas fotos de Biggart: “Bill foi mortoquando o segundo edifício ruiu, e ele foi esmagado pelos escombros. Através da suaúltima foto, não podemos saber como ele morreu, podemos saber de fato, é que nestemomento ele estava fazendo o seu trabalho até as últimas conseqüências. Esta foto falasobre o comprometimento que ele tinha com o seu trabalho” 5.

Na seqüência dos relatos dos fotógrafos que estiveram presentes ao local daqueda das torres do World Trade Center, o ideal de testemunha ocular emerge como amarca do fotógrafo moderno. Haver testemunhado o segundo avião se espatifandocontra a segunda torre ou estado presente no momento em que as duas torres desabaram,concedeu aos fotógrafos uma certa distinção de profissionalismo, senso de oportunidadee, de certa maneira, orgulho e honra.

Peter Turnley, outro experiente fotógrafo, chegou tarde ao local dos atentados e,no momento em que cruzava a ponte do Bronx, depois de horas de viagem desdeCambridge, Massachusetts, já tinha claro de que aquele tinha sido um grande eventofotográfico, por conta da enorme quantidade de fotógrafos que haviam acorrido ao local,presenciado e registrado a seqüência dos fatos. Peter Turnley ao refletir sobre o quesentiu em relação a ter chegado tarde e perdido o “momento”, destaca a necessidade de

se ter o trabalho feito, não importa por quem: “Eu reconheço por conta da minhaexperiência cobrindo notícias os sentimentos de estar “cedo” ou “tarde” num história.No então, desta vez eu não estava preocupado nem com um nem com outro. Ouvindosobre as grande fotos que já haviam sido feitas, fui tomado por um senso de orgulho efascinação com a performance dos meus parceiros de profissão e com a sua contribuiçãoao tornarem mais próximo de outras pessoas esse importante momento”6 

A cultura da oportunidade de capturar momento decisivo, tão próprio aosfotojornalistas que percorrem o mundo na cobertura de uma variedade impressionantede fatos, foi o que orientou todo esse contingente de fotógrafos a perseguir imagens quetraduzissem e atestassem o que estava acontecendo. David Turnley, mais um tarimbadofotógrafo das frentes de batalha por todo o mundo, ao olhar as chamas saindo das torresda janela do seu escritório na 10th Street, ligou o piloto automático de fotojornalista erumou para a zona de guerra, só que desta vez, com a sensação de que a guerra estavaacontecendo no seu quintal7. A sensação do dever de fotografar está ligada anecessidade de dar-se conta de uma realidade que só se torna inteligível através dodistanciamento mediado pela câmera fotográfica. No caso dos atentados aos EUA em11 de setembro de 2001 essa sensação de dever dos fotógrafos acostumados a tornarempúblicas imagens dos horrores da guerra, assumiu proporções inéditas, por serem estesmesmos fotógrafos parte dessa comunidade ultrajada. Isso marcou de maneiraindefectível a forma da expressão fotográfica, bem como o seu conteúdo, como busqueievidenciar através da análise histórico-semiótica da s imagens fotográficas.

a) O espaço visual do acontecimento:

As fotografias que compõem a série analisada são provenientes de váriasagências de notícias, segundo a distribuição abaixo:AP – 21%Reuters – 18%AFP – 16%France Presse – 10%

5 Introdução escrita Dick Haltead para as fotos de Bill Biggart no site indicado.6 http://digitaljournalist.org/issue0111/pturnley_intro.htm/  7 http://digitaljournalist.org/issue0111/dturnley_intro.htm/  

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 12/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

Fotógrafos free-lance – 7%Folha Imagem – 4%Arte JB – 2%Getty Images – 1%BBC – Online – 1%CNN – 1%

Sem identificação da autoria – 11%Divulgação – 9%

Cerca de 75% das fotografias foram distribuídas por agencias internacionais,sem contar as 9% de fotos de divulgação relacionadas às fotografias de cenas de filmede Hollywood que serviram para fazer uma ponte com a ficção cinematográfica.Portanto, a maioria das fotos veiculadas na imprensa brasileira foi adquirida emagencias fora do país e produzidas por fotógrafos norte-americanos, como ficouevidenciado, anteriormente, pelo testemunho de Peter Turnley. Tal característicapossibilitou-me considerar a série que trabalhei como amostragem de um padrão geralde representação sobre o acontecimento. De fato vasculhando revistas publicadas forado Brasil, documentários do   National Geographic Channel, ou páginas da WEB8,

encontrava sempre o mesmo padrão de imagens que garantiu uma versão ao mesmotempo homogênea e variada do acontecimento. Homogênea, pois seguem uma estéticamuito semelhante, entre si, em termos de composição fotográfica, como mostrarei aseguir, e por outro lado, variada, pois conseguem cobrir o acontecimento de todos osângulos possíveis, pois em cada lado havia um obturador pronto a disparar, ou umadigita l pronta registrar.

A presença de fotos feitas no Brasil (13%) deve-se ao fato de que a coberturados jornais também se preocupou em caracterizar a repercussão no âmbito nacionalincluindo, assim, fotografias do presidente da República, Fernando Henrique Cardoso,assistindo à televisão, do conselho de segurança nacional reunido e de transeuntes pelasruas do Rio de Janeiro também de olhos atentos aos televisores espalhados pelos baresda cidade.

A proporção significativa de fotos não identificadas (11%) explica-se pelaestratégia visual utilizada, principalmente, pela Folha de São Paulo para criar umacronologia recente dos atentados por todo o mundo. Tal estratégia consiste na utilizaçãode imagens pequenas (tipo thumbnails) para ilustrar a série cronológica, nãoidentificando a origem da foto. Em geral as fotografias que ilustravam esquemasgráficos para fornecer uma idéia de como as torres desabaram, não possuíam crédito,como a seqüência que acompanha a queda da segunda torre publicada no Jornal doBrasil.

O espaço fotográfico expressa o acontecimento através das opções associadasaos elementos da forma da expressão. Na sua análise obtive o seguinte padrão derepresentação fotográfica:v 

Tamanho : as fotografias tiveram uma pequena variação entre o tamanho grande(37%) pequeno (30%) e médio (33%), a proporção equilibrada de tamanhos caracterizaa diversidade dos usos da foto. As fotos grandes serviram de composição do panoramageral da tragédia, as fotos médias circunscreveram o acontecimento no “Ground Zero”,definindo o espaço da foto a escolhas mais objetivas, tais como as pessoas se abraçando,

8 Além do já citado Digital Journalist, vale a pena visitar a página www.hereisnewyork.org onde se podecomprar, a um preço não tão módico, as fotos tiradas durante o acontecimento e doadas a estaorganização pelos fotógrafos. Situada em Manhattam esta entidade também promove exposições eeventos sobre Nova York.

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 13/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

o bombeiro desolado, etc., já as fotografias pequenas, como mencionei acima, serviramantes de qualquer coisa como ilustração do texto escrito, neste caso, nem os detalhestampouco o conjunto da imagem eram relevantes.v  Formato, tipo de foto e relação com o texto escrito: 100% das fotografiasapresentaram o formato retangular, próprio ao fotojornalismo contemporâneo, pois é oformato de representação visual que configura melhor nossa forma de visualização,

como se o formato da foto fosse o formato do nosso olhar, naturalizando dessa maneiraa representação e reforçando os aspectos testemunhais da imagem fotográfica. Doconjunto de fotografias analisadas 78% foram tomadas instantaneamente, contra 11% defotos posadas e 11% de fotos encenadas. O instantâneo é a medida do momento, daatualização da imagem e o atestado incontestável da presença do fotógrafo no exatoinstante do acontecimento, já as fotografias posadas serviram para recriar uma situaçãovivida por sujeitos que estiveram no palco dos acontecimentos, diferentemente dasfotografias encenadas que têm a ver com a relação quase automática feita pelos jornaisentre o atentado de 11 de setembro de 2001 e a ficção hollywoodiana.Todas asfotografias possuíam legendas, poucas dentro da imagem e nenhuma recebeu um títuloespecífico. Em geral, a legenda traduzia verbalmente o que se via na imagem, poucasvezes ampliaram a informação que a própria imagem já trazia. Em relação às

reportagens e crônicas as fotografias estabeleceram uma grande autonomia, à exceçãodas fotos pequenas mencionadas acima.v  Sentido e direção: em relação ao sentido houve um certo equilíbrio entre o sentidovertical (45%) e o horizontal (55%), com ênfase neste último. Já em termos de direçãopredominou a direção direita para esquerda (60%) e niveladas na linha do horizonte(81%). Ambos os itens dizem respeito ao aspecto dinâmico da fotografia no momentoda sua recepção pelo leitor/espectador. Neste caso, o padrão hegemônico darepresentação acompanha a tendência ocidental de leitura das imagens, ou seja, dadireita para a esquerda e de cima para baixo (Ostrower, 1988), sendo assim, omovimento da imagem que encaminha o olhar diretamente para a esquerda harmonizacom olhar do espectador, facilitando a leitura da imagem à medida que reforça a suanaturalização. Dentro dessa mesma linha, a relação entre fotos horizontais e niveladasreforça o padrão de visualização do nosso olhar, já apontada pela maciça presença defotos retangulares, só que neste caso, a testemunha que olha está distante consegueconjugar o panorama da tragédia através do seu olhar.Neste sentido, vale registrar que apesar da natureza essencialmente vertical (45%) edesnivelada (19%) do acontecimento, afinal de contas eram duas torres de mais decentenas de andares o principal palco das fotografias, a opção majoritária foi peloequilíbrio e estabilidade da representação visual enfatizando o pesar e a dor de muitos,ao invés dos efeitos pirotécnicos.v  Arranjo e distribuição dos elementos na foto : também nestes itens a tendência deproduzir fotografias plasticamente harmônicas, em torno de 11 de setembro de 2001, foienfatizada através do predomínio de fotos com distribuição equilibrada dos elementos

na foto (94%), ou seja, fotografias que não apresentaram concentração nem na parteinferior, tampouco na superior, mas distribuíram os elementos de maneira igualitária.Além disso, dentro tal organização harmônica foi enfatizada pela opção em 60% dasfotos de colocar os elementos da composição em linha reta, contra 24% espalhados e16% em semicirculo. Mais uma vez as opções da representação visual enfatizam opçõesestéticas que permitem uma visualização clara e completa da tragédia.v  Distribuição de planos e objeto central : A distribuição dos planos traduz a idéiade profundidade de campo, ou seja, quanto mais planos a fotografia possui tanto mais ofotógrafo quis contextualizar a fotografia. Em geral, fotografias com um único plano,

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 14/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

recortam o objeto central do seu contexto e algumas vezes assumem um efeito dedramatização. Do conjunto de fotografias que analisei, 76% tinham dois ou mais planoscontra 24% com plano único. Portanto a opção central foi enquadrar a totalidade, darconta das multiplicidades de vivências que se inscreviam naquele acontecimento,buscando através da inclusão de planos dimensionar a sincronicidade de fatos. Quaisfatos seriam relevantes para colocar-se em foco, em meio a tantos planos? Quando fui

buscar quais eram os elementos colocados como objetos centrais das fotografias aênfase recaiu sobre a figura humana (68%), nas mais diversas situações: de pânico edesolação, na atividade de resgate, preocupadas ou desoladas, ou ainda, andando aesmo. O restante das fotos, um total de 32% enfocava o patrimônio destruídos, as ruínase os escombros que transformaram o local onde as duas torres se erguiam, no “GroundZero”. Sendo assim tanto plano como objeto central, se conjugam com as opçõesanteriores de registrar a dor e o sofrimento das pessoas do que criar efeitos pirotécnicos.v  Nitidez: o padrão de nitidez acompanhou a tendência de naturalização darepresentação através do olhar de um espectador ideal, com imagens nítidas, de linhasbem definidas e claras e sem sombras. Este conjunto apresentou 28% de fotos coloridascontra 64% em p&b, sem que isso queira dizer que as fotos foram produzidas em p&b,pois a impressão dos jornais em geral optam por p&b, por motivos de custo. O fato é

que dentro da tradição fotojornalística, a partir do momento em que cor foi introduzidanas revistas ilustradas, por volta dos anos 1960, os jornais aos poucos foram assumindoa cor, no Brasil até 1988 somente o jornal O Globo estampava fotos coloridas naprimeira página. Mesmo assim, as fotografias em p&b ainda são as mais utilizadas nos

 jornais diários, contra a maciça utilização da cor nas fotos de revistas, por uma questãode custo, volto a insistir.

Portanto, o espaço fotográfico elaborou uma representação do acontecimentoque valorizou o aspecto ético da ação dos fotógrafos, evitando fotos sensacionalistase/ou que demonstrassem aspectos da desordem que a cidade assumiu. Conseguiu esteefeito através de um enquadramento que elegeu a estabilidade, harmonia e um certodistanciamento na representação visual. Ao mesmo tempo, inscreveu o acontecimentono seu contexto na tentativa de expressar a sincronicidade das vivências dos sujeitosenvolvidos na tragédia. Por fim, ao optar pela total nitidez das imagens procedeu aelaboração de uma imagem tão real que atingiu a “hiperrealidade” de um espectadorideal.

A sincronicidade também surgiu nos depoimentos tomados pelos jornais quandoestes tentaram recompor a impressão imediata. Pessoas em locais diferentes, ematividades diferentes, com idades diferentes foram chamadas a dar o seu depoimento,sobre o que tinha visto e como havia reagido. Tanto na Folha de São Paulo quanto noJornal do Brasil, a busca pela testemunha ocular, complementou a imagem fotográficana criação do quadro geral do acontecimento:

DEPOIMENTOS DA FOLHA DE SÃO PAULO (P.12): Acordei com um vizinho colocando o rádio no máximo e gritando que estava acontecendo umatragédia. Eles estão revoltados. Dizem que agora os EUA vão bater forte.

Rafael Hess, 28, fotógrafo. A situação é de caos. Quando a primeira torre caiu, virou uma loucura. Todo mundo foi a pé  para casa. Andei por 40 minutos.Maximiliano Alves de Lima, 31, operador de mercado.Corri para a janela, pois da minha casa dá para ver Manhattan, e uma das torres não estavamais lá.Cibele Vieira, moradora do Brooklyn, NYC.Todos saem para comprar mantimentos como se estivéssemos em uma guerra.Suzana Hauer, moradora da cidade de NY

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 15/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

Foi como ver um filme de terror,mas era real. Fiquei pensando nas pessoas do avião. Vocêconseguia ver gente pulando de cima do prédio.Cicarelli, 24 anos, estudante de idioma que assistiu ao primeiro choque ao sair do metro rumo aescola de idiomas.DEPOIMENTOS DO JORNAL DO BRASIL:Parece a 3ª guerra,Victor Loureiro, funcionário do consulado brasileiro em NY, 41 anos. Sobre o terror que se

abateu sobre todos depois do trágico acontecimento, P.  12 Deu para ver prédios caindo,  José Henrique Moda Francisco, 34 anos, paulista de Araraquara, que trabalha com e-businessna empresa Morgan Stanley. Descreve o que viu da janela de seu escritório na Times Square,p.13.

 Abri a janela o WTC sumiu ,Roberto do Amaral Filho, 26 anos, estudante. Relato de um vizinho do WTC que acordoudepois dos prédios sumirem, teve de evacuar o seu prédio para onde voltou horas depois e ficouenclausurado, p.14O prédio do meu namorado não é.  M  AS ERA!  Maria Carolina, 24, estudante de medicina, Niterói p.15.

 procissão de horror ,Júlio Redecker, deputado Federal licenciado pelo PTB gaúcho e professor visitante daUniversidade de George Washington – narrativa da situação na capital americana,  medo e

impotência p.16Em sintonia imagens e palavras ajudaram a dimensionar a tragédia do 11 desetembro de 2001.

b) Dimensões do acontecimento:O acontecimento que chega aos nossos olhos através das fotografias de imprensa

é mediado pelo olhar do fotógrafo que, neste caso, estava diretamente relacionado aoclima de espanto e comoção que evolveu os atentados de 11 de setembro de 2001. Poroutro lado, como já foi apontado anteriormente, as fotografias de imprensa em geral sãopublicadas depois de passarem pelo editor de imagem, portanto, as fotografias queresultaram na série publicada na Folha e no JB passaram por dois filtros: primeiro, aescolha do fotógrafo e segundo o trabalho de edição fotográfica dos jornais. Aexistência de tais filtros obriga-nos a entender a fotografia como uma escolha realizada

num conjunto de escolhas possíveis.Através das fotografias nos deparamos com personagens e lugares quedimensionam o que aconteceu no tempo e no espaço. Neste sentido é possível delinear,através da análise dos lugares, dos personagens, dos objetos e vivências retratados, oacontecimento na sua dimensão de experiência social imediata.

A grade temática das fotos foi composta pelos seguintes itens e suas proporções: 

1.  Atentado – ataque e explosão do WTC: 9%

2.  Desmoronamento das torres do WTC: 5%

3.  Atentado ao Pentágono: 4%

4.  Destroços e desolação: 12%

5.  Desespero e pânico: 6%

6.  Espanto, medo e comoção: 9%7.  Busca e resgate: 6%

8.  Segurança imediata aos locais dos atentados: 3%

9.  Reação da auto ridades norte-americanas: 4%

10.   Repercussão internacional: 6%

11.   Repercussão no Brasil – autoridades: 2%

12.   Repercussão no Brasil – gente comum: 11%

13.   Retratos de personalidades: 3%

14.   Outros atentados aos EUA: 6%

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 16/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

15.   Atentados contra outros países: 2%16.   Comemoração – 2%

17.   Enterros e pesar – 2%

18.   Ataques no cinema – ficção – 8%

Até o item treze as fotos estavam diretamente relacionadas, em maior ou menor

grau, aos atentados. A partir deste item elas ampliam seu leque de referencias abrindoespaço para novas projeções temporais. Portanto do total de 100 fotografias, 80% têmcomo tema referências aos atentados, o restante das 20% das fotos distribuíram-se entrea alusão ao passado próximo, as primeiras referências ao oriente como o principalsuspeito e a automática relação dos atentados com a ficção hollywoodiana.

A proporção dos locais retratados nas fotos também segue a mesma tendência: 1.  Nova York: 44%

2.  Washington: 9%

3.  Outras cidades dos EUA: 13%

4.  Europa: 6%

5.  Brasília: 5%

6.  São Paulo: 3%

7.  Rio de Janeiro: 10%

8.  África: 1%

9.  Ásia: 1%

10.  Países Árabes: 6%

11.  Israel: 2%

Os dois primeiros itens que envolvem os locais atacados somam quase mais doque a metade do conjunto 53%, não há fotos neste dia do avião que caiu no oeste doEstado da Pensilvânia, relacionado a um possível atentado a Casa Branca. Portanto asfotos entre itens quatro e sete, inclusive, estão relacionadas aos locais onde se avaliou a

repercussão internacional. A presença de fotografias da Europa diz respeito aoalinhamento da OTAN, que começou a se processar imediatamente, apesar dasfotografias estarem relacionadas a comoção internacional, as reportagens já indicavam atomada de posições. Já a ênfase na grande proporção de foto sobre o Brasil (18%),

  justifica-se pelo fato de que ambos os jornais analisados são brasileiros e, portantotiveram a preocupação em verificar como foi a repercussão nacional dos fatos. As fotossobre a África e a Ásia (2%) e os 2% de Israel dizem respeito a atentados terroristasperpetrados nestes lugares. Os 6% de fotos sobre os países árabes dividem-se entre arepercussão internacional e as comemorações ocorridas nas regiões palestinas, ocupadaspor Israel.

Portanto, o acontecimento possui um epicentro que, neste caso, foi Nova York.Esta cidade foi eleita pela mídia como o verdadeiro mártir da trágica quarta-feira, 11 de

setembro, e é nela que o foco vai recair.Em relação à forma como as pessoas foram fotografadas é interessante notar quea grande maioria das fotos (32%) retratou um grupo pequeno de não mais de dezpessoas, seguida de 15% de fotos individuais masculinas; 10% de fotos com grupos demais de dez pessoas; 9% de fotos com multidão; 5% de fotos individuais femininas e2% de fotos de crianças. Neste sentido, o espaço da figuração foi eminentementecoletivo apontando para a dimensão social do acontecimento. No entanto, como essaspessoas foram fotografadas?

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 17/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

Além do fato, anteriormente apontado, de que foi a figura humana a que ocupouo lugar de objeto central em 68% das fotos, caracterizando a valorização atribuída pelaimprensa em registrar como as pessoas reagiram ao acontecimento. É interessanteperceber a existência de um código de representação da tragédia que reforçadeterminados tipos de vivências. Buscando tal padrão de codificação, consegui definirum conjunto de situações nas quais essas pessoas fotografadas se encaixaram

perfeitamente:

1.  Caminhando desoladas – 4%

2.  Caindo – 1%

3.  Cobertas de pó – 6%

4.  Chorando – 2%

5.  Paradas olhando com desespero – 7%

6.  Correndo desesperadas – 5%

7.  Rezando – 4%

8.  Trabalhando no resgate – 11%

9.  Observando de longe – 5%

10.  Abraçados ou de mãos dadas – 2%

11.  Trabalhando na defesa militar – 7%

12.  Caminhando fora da cena do ataque –5%

13.  Esperando – 7%

14.  Assistindo TV – 4%

15.  Discursando – 2%

16.  Trabalhando em outra atividade – 3%

17.  Falando – 2%

18.  Comemorando – 2%

Até o item 14 as fotos estão todas relacionadas a um tipo de situação vividadentro do palco dos acontecimentos. A incidência numérica de um ou outro tipo de

situação deve ser relativizada, pois com certeza muito mais do que uma pessoa se jogoudo alto das torres antes delas desabarem. Por outro lado, a presença significativa defotos sobre o resgate com as equipes de bombeiros para-médicos e policiais trabalhandoincessantemente, ou ainda sobre o desespero e pesar que tomou a população de NovaYork e Washington, sintonizam com a presença significativa nas fotografias de objetosassociados ao pânico e confusão que tomou conta das duas cidades: uniformes debombeiros e policiais (19%); roupas casuais cobertas de poeira (22%); edifícios (37%);veículos (17%); destroços (17%); padiolas e macas (3%).

A mesma tendência de compor um quadro de destruição e espanto nas cidadesatingidas surgiu quando avaliei os atributos fornecidos as paisagens retratadas. Doconjunto de fotografias consideradas em 56% delas a paisagem foi qualificada atravésde atributos de destruição tais como: fumaça, ruínas, explosão, poeira, patrimônio

destruído, correria e movimento intenso. Por outro lado o quadro de destruição,caracterizado pela perda do patrimônio e pela derrocada dos símbolos do poder políticoe econômico, não foi acompanhado pela presença de corpos ou de mortos, denotandotanto o cuidado das publicações em evitar o tom sensacionalista, ao menos no primeiromomento, quanto a própria inexistência de corpos, que só viriam a aparecer quando daintensificação dos trabalhos de resgate.

Neste sentido as fotografias compuseram um mosaico de vivências em torno doacontecimento que valorizam a figura humana e seu sofrimento, mas não a expuseram auma imagem de degradação. As últimas imagens de Bill Biggart sintetizam esta

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 18/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

tendência, como descreve Chip East ao resgatar tais imagens da câmera digital querestou junto ao corpo de Biggart: “Ele se aproximava cada vez mais, e a medida que elechegava mais perto, você via a reação das pessoas, e você se daáconta como as pessoasestavam lidando com tudo isso...todas as photografias de Bill foram sobre as pessoas ecomo elas estavam reagindo a aquilo tudo. Nós temos que nos lembrar que esta histórianão é sobre edifícios, mas sobre pessoas que foram afetadas pela perda daquelas

estruturas”(Biggart’s Final Exposures - Seeing the Horror – The Digital Journalist)Portanto a surpresa, o pânico, o transtorno que tomou conta da cidade serviu deambientação para as imagens que também ficaram registradas em vários depoimentos.Peter Turnley ao lembrar da noite entre 11 e 12 de setembro que passou escondido numdos prédios próximos ao “Ground Zero”, para conseguir fotos sobre o trabalho deresgate, relatou: “ Eu já cobri vários importantes terremotos, na Armênia, no Irã e naTurquia. O que eu via a minha frente me fazia recordar de alguma maneira este tipo dedestruição, com uma diferença importante, nos lugares dos terremotos havia corposespalhados por todos os lados e muita gente chorando pelos seus entes perdidos. Paraminha surpresa quando eu olhava para a cena a minha frente eu quase conseguiaidentificar remanescentes humanos da tragédia – só escombros e o trabalho das equipesde salvamento, mas nenhuma vítima.[...]Eu me lembro que me comovi vendo tantos

trabalhadores vindo tão naturalmente, antes mesmo que qualquer um tivesse publicadoalgo sobre seu heroísmo. Eu passei aquela noite testemunhando pessoas arriscando suasprópria vidas para salvar outras” (An American Moment - Seeing the Horror –Photographs by Peter Turnley - Digital Journalist).

A ausência de corpos foi registrada também pelo fotógrafo David Turnley querelembra as palavras do bombeiro que ele havia acompanhado por cerca de uma hora,quando ele, finalmente, desaba em pranto: “Se ao menos eu pudesse fazer o meutrabalho, mas não ninguém para resgatar” (Going Back to War, at Home, by DirckHalstead, Seeing the Horror, Digital Journalist)

A ênfase na ausência de corpos foi destacada por Dorrit Harazin, na sua crônicapublicada no Jornal do Brasil: Nesta quarta -feira 11 de setembro, Nova Iorque teve oseu Pearl Harbor.[...] “O mais terrível é que não chegaram feridos” diz Clara, estudanteda New York University que fazia plantão no St. Vicent’s Hospital, um dos maispróximos do epicentro. “Cada ambulância que chega é aguardada com ansiedade portodos aqui. Torcemos para que os hospitais transbordem de feridos””.( Jornal do Brasil,12/09/2001, p.3). No entanto, no mesmo jornal em outra reportagem, o jornalista aorelatar o pânico eu tomou Nova York e Washington, contradiz a afirmação da cronista:“[...] Centenas de americanos e turistas passaram mal, desmaiaram e alguns entraramem estado de choque, aumentando ainda mais o fluxo nos hospitais. Um dos maisconcorridos foi o St. Vicent, onde 209 pessoas deram entrada até o meio-dia, boa partedelas com queimaduras graves. Para dar conta dos pacientes, foram convocadosenfermeiras e médicos voluntários, além do reforço nos apelos às doações de sangue”(idem, p.10).

A contradição nasce a partir do enfoque que a cronista quis dar a sua narrativa,cheia de referencias cinematográficas e imagens contundentes, do tipo: “cada celularmudo era uma alma em aflição”, ou ainda “pela primeira vez na sua história, os EstadosUnidos olhavam para os escombros da sua vulnerabilidade”e para completar: “asilhueta da cidade decapitada de suas torres emblemáticas é uma ferida aberta que

 jamais se fechará”. No entanto, tal contradição não é gratuita, pois a ausência de feridossugere a morte das milhares de pessoas que freqüentavam as torre, aumentando comisso, a dimensão da tragédia. Não poder contar seus mortos sugere uma perda aindamais irreparável do que aquela provocada pelas guerras, onde se contam as “baixas”, e

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 19/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

com isso reforça-se o papel de ultrajado assumido imediatamente pelos EUA. O valorsimbólico da ausência de corpos e vítimas, como ficou evidenciado, pelas fotos edepoimentos foi reforçado como medida do revide norte-americano.

O escritório da Folha de São Paulo, em Nova York, está localizado cerca de 15quadras do local da explosão, ambos no sul da ilha de Manhattam. Sergio Dávila,correspondente da Folha de São Paulo, em Nova York, estava neste escritório quando

ouviu as primeiras sirenes e barulhos de helicópteros, imediatamente tentou chegar astorres do WTC. No caminho se deuconta de que a primeira torre havia caído, no seupercurso até o local assistiu ao início do pânico e do desespero:

“Todos tentam em vão falar nos celulares, que estão fora do ar. Um casal atravessa a ruacorrendo e chorando. Dois amigos se abraçam com lágrimas nos olhos. Uma senhora leva asmãos a cabeça e pergunta: por quê? Por quê? Grupinhos assustados Vão se formando na esquina.Já na altura da Quinta Avenida, com uma visão mais completa da torre que sobrou, tomo osegundo susto.É como uma batida de carro. Um ruído seco, alguns berros. Um silêncio. E então a correria e odesespero. A segunda torre acaba de desabar ali, aos olhos de todos [...]A poucos passos de uma das entradas da segunda torre do prédio, um telefone público teve ogancho arrancado[...] No chão perto de um dos carros queimados, um chapéu de policial pisadofaz comapnhia para duas botas destruídas numa poça de sangue.”(Folha de São Paulo,12/09/2001, p.9)

A presença de uma rede de solidariedade composta por todo um contingente debombeiros, para-médicos e voluntários em geral também ficou registrada na reportagemde Sergio Dávila, da mesma forma que os feridos e os mortos:

“[...]Protegido por uma máscara que consegui com um dos bombeiros, pude ultrapassar trêsbloqueios policiais e estou a poucos passos dos fundos do que sobrou das duas torres. O ar estátomado por uma mistura de pó branco com fumaça preta.. É meio-dia, o sol brilha alto, mas aolado do WTC está escuro como noite.Além do ar sufocante e do calor que emana das duas construções em chamas, há umdesagradável cheiro doce de queimado no ar, que embrulha o estomago[...]Policiais chegam, sozinhos ou em duplas, e gritam ordens, que são modificadas pelo chefe dosbombeiros, que se sobrepõe aos agentes do FBI. No meio da confusão, enfermeiros, paramédicose voluntários não sabem o que fazer.

Eles são os que sobraram, a terceira leva do resgate. A primeira foi quase toda soterrada peloprimeiro desabamento. Parte da segunda, que foi enviada para tentar resgatar a primeira, está sobos escombros do segundo desabamento. A terceira é de bombeiros que estavam de folga,enfermeiros aposentados, policiais de outros bairros da cidade, agentes mais acostumados aotrabalho atrás das mesas, estudantes de medicina e de enfermagem [...] Cães farejadorescomeçam a latir e a vasculhar pedras atrás de corpos[...]Batalhões de voluntários, bombeiros,médicos e policiais passam a se aproximar em blocos do prédio para verificar se hásobreviventes. Mas não há. Em minutos, macas começam a ser tiradas. São corpos esmagados,na maioria policiais e bombeiros, cobertos de pó e sangue. Nesse momento, sou expulso dolugar”(Folha de São Paulo, 12/09/200, p. 9)

As impressões se conjugam com as fotografias estampadas nas páginas dos jornais num coro trágico e sincronizado do desespero humano. A mídia constrói o

acontecimento dimensionando a sua monstruosidade através de imagens verbais e não-verbais que se interpenetram para dar “mais” realidade aos fatos. Se a foto mostra oprédio caindo, o texto escrito, conjuga um depoimento de quem estava lá dentro:

O prédio tremeu. O chão parecia uma geléia. Levantou um metro para lá, um para cá. As coisascaíam, as pessoas caíam”. Foi essa a sensação do paulista Guilherme Castro, 27, operador deuma corretora do mercado financeiro que trabalhava no 25° andar da torre 1 o WTC ontem demanhã.[...] “Foi muito forte. As pessoas se agarravam as coisas e se olhavam desesperadas. Tinhacerteza de que era uma bomba, mas não sabia se vinha de cima ou de baixo. O prédio balançou,inacreditavelmente. Vum..vum..Tive certeza de que ia morrer”, narra.

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 20/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

O desespero aumentou. As janelas do prédio não abriam. “Tentei quebrar uma delas. Queriaolhar para fora”. Continua Raul Paulo Costa, 33, também operador da Garban Intercapital queestava no mesmo 25° andar.“Olhei pela janela e vi coisas caindo. Pareciam pedaços do prédio, pessoas, sei lá. Sai correndo,procurando a escada. Deixei tudo pra trás”completa Castro. [...] As pessoas pediam calma.Choravam. Havia muita fumaça e era difícil respirar”, narra Castro que envolveu a cabeça nacamisa. [..]No térreo, em pedaços, a imagem da tragédia. “Estava tudo destruído. Os elevadores

despencaram. Estavam com as portas em pedaços e amassados, chamuscados. No chão tinhaágua, fios, vidros”, conta Castro. [...] Os policiais gritavam: “Todo mundo correndo. Mãos nacabeça e sem olhar para trás”[...] Castro e uma multidão deixaram o WTC – “De repete, ummíssil. Eu tinha certeza de que era um míssil e que ia cair na minha cabeça. Aí a outra explosão”.Era o segundo avião. Atingia a segunda torre. Em minutos ela desabaria.Costa, o outro brasileiro, ainda estava na escada “no 13° andar, as portas estavam travadas. Aspessoas começavam a descer e a subir”, diz ele. O brasileiro foi achando outras escadas, outrasrotas. No 3° andar a água já havia tomado o chão. Foi escorregando, caindo. Saiu. Ambos forama pé para casa. Chegaram em pânico. Ligaram para o Brasil, mas mal puderam falar[...] (Folha deSão Paulo, 12/09/2001, p. 12)

As fotografias com pessoas sendo carregadas, abraçando-se umas as outras,chorando, vagando ou olhando espantadas para lugar algum, congelaram as vivenciasrelembradas depois nos vários depoimentos que pontuaram os jornais do dia seguinte.Nunca um acontecimento foi tão fotografado no seu exato momento, no seu imediato.Mais uma vez, a câmera fotográfica reafirmou a sua capacidade em traduzir sensações eemoções. Aliás, em vários momentos comentou-se sobre pessoas fotografando,inclusive registrado nas próprias fotografias, mas não eram somente fotógrafosprofissionais, gente comum também buscou uma estratégia de ter o seu “souvenir”, oseu pedaço de lembrança, uma forma meio macabra de mostrar que estiveram presentes:“Numa drogaria em Chinatown, ao norte do centro financeiro, consumidores quequeriam capturar a visão dos prédios em chamas correram para comprar câmeras. ‘Aúnica coisa que vendi hoje (11/09) foram máquinas. Uma hora após a primeira explosãovendemos 60 a 100 câmeras’ disse James Jack gerente da loja Duane Reade” (Oconsumo da Tragédia, Jornal do Brasil, 12/09/2001, p.16).

Apesar de terem sido atacados três lugares distintos, foram os ataques a NovaYork que tiveram uma maior repercussão em termos fotográficos. Fato evidenciadotanto pela proporção de fotos: 44% de Nova York contra 9% de Washington, como pelacobertura jornalística. As reportagens relatam sobre a sensação de insegurança esurpresa que tomou a capital dos EUA, e da massa de servidores públicos que foramembora mais cedo do trabalho. A ênfase da cobertura da Capital não foi o desespero,mas a insegurança e o sentimento de vulnerabilidade, afinal de contas eles tinhamconseguido atingir o símbolo máximo poder de defesa e ataque dos EUA. O comentáriode Carl Watson, funcionário do Business Council of International Understanding,reproduzido pela Folha de São Paulo, sintetiza o sentimento geral que tomou conta deWashington D.C: “foi terrível. A sensação de vulnerabilidade. Era humilhante ver oataque ao país com aviões das próprias companhias americanas”. O Império havia sido

ultrajado no seu próprio coração, ou como concluiu o experimentado fotógrafo DavidTurnley: “eu já estive em meio a muitas guerras, mas existe uma grande diferença nestecampo de batalha, pela primeira vez na minha vida, as pessoas falam inglês. Aocontrário das guerras anteriores, desta vez eu podia entender realmente o que as pessoasestavam dizendo. E isso me chocou ainda mais” (Going Back to War, at Home, byDirck Halstead, Seeing the Horror, Digital Journalist).

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 21/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

2. “Pai, por que tanta angústia? Afinal não é muito diferente do que eles fizeram com Hiroshima e Nagasaki,no fim da Segunda Guerra Mundial”9 

O pai grudado na televisão e a filha chegando da escola, cena que se repetiu emvários lares brasileiros naquele 11 de setembro. No entanto, o significativo da reação damenina que acabou por dar título a esta parte, é o seu poder de síntese. Numa breve

expressão ela conseguiu apresentar o fio condutor dos principais comentários sobre osfatores que levaram ao acontecimento – o crescimento desmesurado do poder norte-americano –, como também projetar o acontecimento no passado próximo, naconjuntura do pós-guerra, guerra fria e mundialização.

As imagens fotográficas associadas à conjuntura dos últimos 50 anos, forambem poucas, somente 8%, dentre estas somente uma sobre Pearl Harbor, as demais serelacionaram diretamente aos atentados terroristas dos últimos 20 anos. Nenhuma dasimagens referiu-se a ação norte-americana sobre outras partes do mundo ou o seuenvolvimento em conflitos internacionais. Neste sentido, as imagens fotográficas naimprensa moderna, quando associadas a um determinado acontecimento monstruoso, talcomo Nora(1979) definiu, tende a concentrar toda a sua força na fabricação do novo, navalorização do inédito, na dimensão espetacular da sua própria originalidade. Por outrolado, boa parte da imprensa está controlada pelos interesses das grandes corporaçõesinternacionais, onde a participação direta ou indiretamente de interesses norte-americanos, produz uma significativa censura.

Noam Chomsky, conceituado intelectual de esquerda dos Estados Unidos,chamou atenção, numa de suas muitas entrevistas sobre o 11 de setembro, sobre aconivência da mídia com os interesses imperiais norte-americanos: “Quando os EUAapoiaram os golpes do Brasil, Argentina e Chile, em outras partes da América Latina eno sudeste Asiático, as questões da guerra fria eram pano de fundo. Estes tipo deacontecimentos precederam a guerra fria. Olhe o caso do Oriente Médio. Imediatamentedepois do colapso da União soviética, o governo George Bush (pai), em mensagem aocongresso sobre o orçamento militar, em 1990, depois da queda do muro de Berlim, fez

uma análise mundial e referiu-se ao Oriente Médio. Disse: ‘Temos de manter a maiorparte das nossas forças de intervenção no Oriente Médio’. E deixou claro que os russosnão eram os responsáveis pelas ameaças[...] Eles fingiram rivalidade nos 40 anosprecedentes mas era apenas pretexto. Bush foi franco mas, felizmente para ele, aimprensa calou-se” (Jornal do Brasil – entrevista com Noam Chomsky, domingo16/9/2001, p.14).

No entanto, se as fotografias incidiram na construção espetacular doacontecimento valorizando o imediato, a resposta do público ao que havia assistido emtempo real na televisão, no dia anterior, seguiu uma outra tendência. Referencias aHiroshima, Nagasaki, foram tão destacadas quanto a Pearl Harbor, mas os leitores nãopararam aí, tanto na seção de cartas do Jornal do Brasil, quanto da Folha de São Paulo,os Estados Unidos foram condenados pela sua falta de respeito em relação ao restante

do mundo:“as atitudes do presidente Bush levando a um aumento da degradação ambiental, ignorando oracismo, contrárias às causas árabes e de outras minorias, fazem com que ataques aos EstadosUnidos não sejam tão surpreendentes.” (JB, Alexandre Clistenes, RJ)“Diante das terríveis imagens que todos pudemos testemunhar, só nos resta uma constatação: aarrogância, a instransigencia e, acima de tudo, a imposição da força não estão imunes àresistência e ao contra-ataque das vítimas. É hora de todo o mundo civilizado e,

9 Parte da carta de Inácio Nono, do Rio de Janeiro, publicada na seção de cartas do Jornal do Brasil de12/09/2001.

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 22/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

fundmentalmente, toda a América refletir quanto à imposição dos interesses do Tio Sam eperceber que o caubói de plantão, por mais ágil que seja, não pode proteger todos os herdeiros doparaíso contra a vingança dos despossuídos” (JB, Renato Casimiro, RJ)“A maioria esmagadora é contra o terrorismo e, é claro, essa é a minha posição,[...]. Porém épreciso dizer que os EUA, através dos tempos, acham-se direito de intervir em culturas e paísesde todo o mundo, a fim de defender seus interesses econômicos [...] um país campeão deprepotência, um país armado até os dentes, um país campeão de aquecimento global, um país

campeão de poluição, um país que teima em não assinar o protocolo Kyoto, um país sem cultura.Todos dizem estar comovidos com o ataque, mas no fundo há insegurança, pois o mundo nãosabe do poderio americano e o que pode acarretar a sua vingança”(JB,Ricardo S. Valeiro, RJ)“ Os inocentes pagam pelos conflitos religiosos, étnicos, territoriais e econômicos encampadospelos EUA. Pagam alto preço pelo imperialismo e pelo intervencionismo com que a grande águiado norte oprime ba parte da humanidade” (Folha de São Paulo, Eduardo Guimarães, SP)“Tudo o que o mundo menos precisa é um líder tipo “c aubói-machão” que George W.Bushrepresenta. Por quem os sinos dobram? Pelas vítimas americanas, e também latino-americanas eafricanas” (JB, Sergio Ribeiro Carvalho, RJ)

As vítimas do poderio norte-americano, não são simplesmente dados ou baixasde uma guerra, como define Chomsky: “[...]Tome por exemplo o Iraque. Não se sabequantas pessoas morreram por causa das sanções. Uns dois anos atrás, a então secretáriade Estado Madaleine Albright , diante do número de meio milhão de crianças mortas,disse: ‘Bem este é um preço alto mas estamos dispostos a pagá-lo’. Imaginem o quesentem as pessoas desta região. Pense nos territórios ocupados. As pessoas no Ocidentepodem decidir não prestar atenção, mas as pessoas lá na região definitivamente prestamatenção e sabem muito bem quem é o responsável. Helicópteros, aviões militares emísseis atacam alvos civis nos territórios ocupados. São helicópteros, aviões militares emísseis americanos – e eles sabem disso”(Jornal do Brasil, domingo, 16/09/2001, p. 14).É relevante destacar que as duas fotografias de enterro e pesar, uma é de um jovempalestino morto em confronto com soldados de Israel, e a outra de um dos atletasisraelenses morto em Munique, aludindo aos conflitos recentes da região. Umsignificativo emblema da intransigência que domina as relações entre nacionalidades noalvorecer do novo milênio.

Na hora de contar seus mortos, cada país reclama para si um número maior,como se o número de vítimas justificasse a força do ataque. Em relação aos atentados de11 de setembro de 2001, mal havia assentado a poeira da queda das torres, e já se falavaem milhares e milhares de mortos. Contas sobre quantas pessoas passavam pelo localpor dia, somadas a tantas equipes de resgate soterradas, mais pessoal de apoio,fotógrafos , enfim, um número incontável de vítimas fermentavam o desejo de vingança.Um desejo definido nas pesquisas de opinião através de porcentagens estonteantes deapoio a um possível ataque contra qualquer alvo.O presidente ganhava carta branca dapopulação para o Império contra atacar, como se tudo não passasse de mais um filme deHollywood, como se os mortos realmente não contassem, na medida em que eramtransformados em cifras e mimetizados em porcentagens de apoio da opinião pública.Finalmente o acontecimento atingia o imaginário das massas.

3. Parece um filme, o ‘Armageddon’. Um horror. Fumaça, barulho ecorreria10 

Anteriormente mencionei que o acontecimento era o maravilhoso da sociedadede massas, de fato, o que aconteceu no dia 11 de setembro de 2001, ecoou naimaginação contemporânea como uma sensação ‘dèja vu’. A referência ao imaginário

10 Depoimento d eTatiana Rocha e Silva, 24, arquiteta, a Folha de São Paulo, 12/09/2001, p. 12.

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 23/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

cinematográfico foi imediata, de King Kong a  Independence Day, as alusões a filmes jávistos, foi diluindo a fronteira entre ficção e realidade.

Nelson de Sá, editor do caderno Folha Ilustrada, da folha de São Paulo, comentaas imagens da mídia, numa reportagem intitulada: TV, mundial transmite, consciente,espetáculo , publicada já no dia 12/09/2001. Nos seus comentários reflete sobre a formacomo a recepção televisiva reagiu às imagens, registrando claramente a identificação

entre o que se via no imediato, com as lembranças de experiências vividas através docinema:“É incrível. Eu pensei que estava assistindo a um filme de Hollywood”. Era Doris Tang, umamulher de Hong Kong, falando à Fox News, canal concorrente da CNN. Essa mesmaobservação, a de estar vendo uma obra de ficção ou de entretenimento se espalhou pelo mundo.O “filme de guerra” durou cerca de uma hora e meia, na cronologia da CNN, entre imagens daprimeira torre em chamas e a queda da segunda torre. O tempo médio de um filmeA visão de que o entretenimento se mesclou com à realidade, apresentada há quatro décadas porgente como o americano Daniel Boorstein e o francês Guy Debord, em “A imagem” e a“Sociedade do Espetáculo”, ganhou ares de consciência da humanidade. Para não dizer de lugarcomum, a consumir até os melhores críticos de TV ou de ‘sociedade do espetáculo”, comoHoward Kurz, do “Washington Post”, que dizia, também ontem: “- Era um filme de guerra sedesenvolvendo nas telas”.Era, mas já era assim na Guerra do Golfo, há uma década. A diferença agora é que até a mulher

de Hong Kong acha que é. Até ela perde a sensibilidade, a capacidade de reagir diante do horrorreal, já que visto nas telas da televisão, tem o poder de entreter.”(Folha de São Paulo,12/09/2001, p. 20)

Na seqüência as fotografias sobre os filmes catástrofes contribuíram com 8% dototal de imagens, estas sim, todas coloridas. O filme mais fotografado foi  Independece

 Day seguido por  Armageddon. Uma das fotografias do primeiro filme, serve parailustrar a profecia de Nostradamus: “Na cidade de Deus haverá um grande trovão, doisirmãos serão separados pelo Caos. Enquanto a fortaleza resistir, o grande lídersucumbirá. A terceira grande guerra começará enquanto a grande cidade estiver emchamas” (Folha de São Paulo, 12/09/2001, p. 28).

O cinema fornece imagens à escatologia do final dos tempos, no alvorecer de um

novo milênio. Mas o que este filme tem em comum com a previsão de Nostradamus? Aexistência de um Outro, desconhecido e intrinsecamente mal e o prenúncio do fim domundo. O infiel da virada do primeiro milênio, tão temido pela Europa católica (Duby,1995) foi substituído pelo infiel moderno: o homem-bomba, o Kamikaze, o fanáticoreligioso. No dia seguinte as imagens que apontavam para o oriente somaram 6%,divididas entre a temática da repercussão internacional, das comemorações e do pesar.Imagens extremamente contraditórias.

As duas relacionadas à comemoração foram publicadas cada uma em um jornale mostram a celebração de um grupo de palestinos, um deles com a camisa da seleçãobrasileira, em imagens de tamanho médio, preto e branco, dois planos com imagens nofoco e definidas por poucas sombras. As duas fotos são praticamente iguais e essaimagem correu o mundo como símbolo da desumanidade dos povos árabes, causando

reações do tipo: “Mais revoltante do que os ataques terroristas foram as imagens dopovo palestino comemorando nas ruas como se fosse uma final de Copa do Mundo. Quetipo de gente é essa que comemora a morte de inocentes, que comemora o sofrimento demilhares de pessoas?” (Paulo Celso, Indaiatuba, SP, Folha de São Paulo, Painel doleitor)11 

11 A veracidade dessa foto foi posta em dúvida, por vários canais de opinião pública. No entanto,considerei na interpretação, não o motivo da comemoração, mas o fato da imprensa ter preocupado emfigurar a celebração e o que isso enseja em termos de representação do povo árabe.

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 24/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

Duas fotos de pesar estão relacionadas a mortos em conflitos na região dosterritórios ocupados da palestina buscaram apontar para as perdas de ambos os lados doconflito e o sofrimento sentido pelas perdas humanas. Já as fotografias e repercussãointernacional traduzem a tentativa das autoridades reconhecidas do oriente emestabelecer uma racionalidade diante do perigo eminente de revide por parte dosEstados Unidos.

Nos três exemplos a presença de trajes étnicos (a burca muçulmana e lençopalestino) definem os espaços de representação entre o Nós e o Outro, que vão sedesdobrar em um efeito multiplicador numa verdadeira guerra de imagens. MarceloCoelho, articulista da Folha de São Paulo, comenta quinze dias depois dos atentados, opoder das imagens em decidir o que é certo e errado e fabricar vilões e mocinhos, numailha de edição, ou num corte fotográfico:

“Pode-se falar muito bem da religião muçulmana[..]. Mas, no contexto atual, a simples cena decem ou 200 pessoas rezando em direção a Meca já está carregada de significado negativo[....].Oque vemos na TV não é o rosto de uma pessoa rezando, quase sempre é uma multidão parada.Claro que, pela própria linguagem televisiva, interessa mostrar o movimento: assim o que vemosé uma massa de homens, todos vestidos de branco no exato momento em que se ajoelham eestendem os braços para o chão. Parece um dominó humano. Ou seja, dá-se a conhecer algo semrosto, uniforme, sincronizado, mecânico, sinal de extrema disciplina e de fé cega.[...]

Compare-se uma imagem desse tipo às que marcaram a transmissão do discurso de Bush aoCongresso norte-americano.[...] Com um “timing” preciso, em tudo semelhante ao daspremiações do Oscar, a TV mostrava cada uma das pessoas a quem Bush se referia no discurso.Já não temos mais uma massa compacta de seguidores da fé norte-americana, mas sim osrepresentantes de uma sociedade diferenciada e saudável: a viúva,o chefe dos bombeiros, oprefeito, o militar, o sacerdote, quem quisermos. Alguns militares, aliás eram bem maislombrosianos do que Bin Laden, mas não faz mal, pois é preciso dizer que temos gente de todosos modelos, conforme a exigência de cada ocasião[....]” (Folha de São Paulo, 26/09/2001,Ilustrada, E8)

Na iconografia moderna, a relação entre o passado remoto e o presente construiuo inimigo imediato, cuja imagem foi, amplamente, explorada pela mídia, nos dias que seseguiram ao atentado12. Um inimigo ideológico munido de uma concepção de vida e de

mundo opostas aos fundamentos da cultura ocidental. A partir dos atentados de 11 desetembro os Estados Unidos voltaram a desempenhar o seu melhor papel, esquecidodesde a queda do muro de Berlim, o de defensor da civilização contra a barbárie e omundo assumiu uma nova geopolítica baseada numa divisão eminentemente cultural: deum lado a razão ocidental e de outro, o infiel a esta lógica iluminista.

V. ENTRE A ESPERA E A ESPERANÇA.

No dia seguinte aos atentados uma pergunta pairava no ar: qual seria a reaçãodos EUA? Hoje meses nos afastam do episódio e os desdobramentos imediatos já sãoconhecidos, mas não cabe aqui enumerá-los. Prefiro sim, refletir sobre o sentimento quedominou boa parte das primeiras respostas ao acontecimento. Um sentimento de final

dos tempos e de expectativa, um sentimento que assume uma dimensão escatológica aoprojetar o futuro como uma espera angustiante de um fim catastrófico, sob uma bandeiraapocalíptica.

Em vários depoimentos publicados nos jornais, tanto pessoas comuns quantointelectuais, comungaram de tal sentimento. O editorial da Folha de São Paulo,

12 As imagens que fazem parte dos jornais dos dias subseqüentes ao atentado, com a configuração doinimigo em torno de Osama Bin Laden, serão analisadas em uma outra oportunidade a partir da análise daconstrução das alteridades modernas.

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 25/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

publicado no dia seguinte aos atentados, predizia: “É cedo para avaliar a exata dimensãodos devastadores atentados de ontem nos Estados Unidos ou antecipar a magnitude deuma possível retaliação norte-americana[...], mas não há duvida de que se trata de umevento histórico, cujas repercussões se farão sentir ao longo dos próximos anos”. Naseção de cartas tanto do Jornal do Brasil quanto da Folha de São Paulo, duas cartaschamam atenção pela sintonia de opiniões:

“No dia 11 de setembro de 2001, o mundo assistiu estarrecido ao ataque terrorista aos centrospolítico-financeiro e de inteligência-defesa dos EUA. A data entrará para a história e, após ela, omundo jamais será o mesmo” (JB, Eduardo de Braga Melo, Niterói) “Oxalá o que aconteceu ontem nos Estados Unidos não traga uma tragédia a nossas vidas.Infelizmente, é apenas o começo de uma nova e terrível era na história da humanidade. Poder,dinheiro, ganância e a ausência de amor são pedras do grande xadrez que a ameaça e podedestruir a todos nós.” (Folha de São Paulo, Renzo Sansoni, SP) Para concluir a série de exemplos da sensação de espera trágica que a todos

acometeu, fica o registro lúcido de Millor Fernandes:“12h59, onze de setembro 2001.[...] enquanto se desenvolvia uma tecnologia de domínio, parece impossível que essa gente nãotenha percebido que a mesma tecnologia punha, ao alcance de até um único indivíduo, um meiode represália igualmente gigantesco. E que tinha transformado pequenos inimigos em imensasforças alimentadas a ódio diário e crescente.

Bolsas imediatamente caem, o preço do petróleo dispara, forças armadas em inúmeros países sepõem em prontidão, fronteiras são fechadas, o pequeno espaço Israel-Palestina é um nervo só,não há como sair de onde se está, na há nada a prever. Anão ser que o mundo jamais será omesmo.Apoiado no seu insuperável poder de fogo, o maior império do mundo desafiou todos que lheachava inferiores – e, conseqüentemente, a tragédia grega.” ( Jornal do Brasil, 12/09/2001, p.9)

Em todos os exemplos o que ficou patente foi um claro dimensionamento daescala temporal em que se estamos vivendo. Um tempo trágico marcado por incertezas eindefinições, cuja dimensão escatológica atribuída ao acontecimento de 11 de setembrode 2001, coloca ao historiador, principalmente aquele que se debruça sobre o imediato,sérios desafios. O historiador Jacques Le Goff em um artigo denominado Escatologia(Einaudi, 1995), avaliou as contribuições que o estudo da escatologia poderia ensejar,dentre estas; o estudo sobre o tempo histórico, sobre o medo na sociedadecontemporânea e sobre a espera. Sobre a espera este autor destaca:

“É especialmente fecundo o estudo da espera e da iluminação moral, dos desenganos, infligidosà espera dos indivíduos e das coletividades, o estudo das sus reações[...]a espera é um dessesfatos em que a emoção, a percepção e, com maior rigor, o movimento e o estado do corpocondicionam diretamente o estado social e são condicionados por ele.. a tripla consideração docorpo e do espírito e do meio social devem aliar-se. Finalmente, a escatologia pode tornar-se umdos temas mais interessantes da história geral, para os historiadores contemporâneos e futuros,graças a um novo olhar sobre a escatologia na história, a espera e sua variante religiosa, aesperança” (Einaudi, 1995, p. 452)

Da mesma forma que este estudo dedicado ao acontecimento de 11 de setembrode 2001, como um feixe de significados, sugeriu a reflexão sobre os tempos da históriae sua inscrição no tempo presente, talvez seja necessário um outro estudo que busqueoutros índicos para transformar a espera em esperança.

5/14/2018 11 de Setembro Ana Mauad - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/11-de-setembro-ana-mauad 26/26

 

Primeiros Escritos, n° 10 – Janeiro de 2003. LABHOI 

Bibliografia.

ANDERSON, B. Imagined communities. London: Verso, 8ª impression, 1998.BARTHES, R. Image, Music and Text. London: Fontana Paperbacks, 1982BOSI, Alfredo, “O tempo e os tempos”, IN: Tempo e História, São Paulo: Companhia

das Letras: Secretaria Municipal de Cultura, 1992, pp. 19-33.

BOUTIER, Jean & JULIA, Dominique (org.) Passados Recompostos: campos ecanteiros da história, Rio de Janeiro: Editora UFRJ/FGV, 1998

BRAUDEL , Escritos sobre história, São Paulo: Ed. Perspectiva, 1978 p. 12-15BRAUDEL , Fernand. História e Ciências Sociais , Lisboa: Editorial Estampa,1978BURGUIÈRE, André (org.). Dicionário das Ciências Históricas, Rio de Janeiro: Imago,

1993CARDOSO , Ciro F.Santana, Ensaios Racionalistas , RJ, Campus, 1988CHAVEAU, A. & TÉTARD, P.(org.) Questões para a história do presente , São Paulo:

EDUSC, 1999.CHOMSKY, Noam. 11 de setembro, Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2002CLARKE, G. The photograph, Oxford/NY: Oxford University Press, 1997DUBY, Georges. Año 1000, Año 2000: La Huella de nuestros miedos ,

Santiago:Editorial Andres Bello, 1995.FREUND, Gisele. Fotografia e sociedade. Lisboa: Vega, s/d.LE GOFF, Jacques. “Escatologia”, Enciclopédia Einaudi, Vol. 1, Lisboa, Casa da

Moeda, 1985, pp.425-452.MAUAD, A.Mª. “Através da Imagem: fotografia e história, interfaces”. Tempo: Revista

do Departamento de História da UFF. Universidade Federal Fluminense,Departamento de História, vol 1, n° 2, dez. 1996, RJ, Relume-Dumará, 1996, pp.73-98

NORA, Pierre. “O retorno do fato”, IN: NORA, P. & LE GOFF, J. História: Novosproblemas, Reio de Janeiro: Francisco Alves, 2ª edição, 1979

OSTROWER, Fayga. “A Construção do Olhar”, IN: NOVAES, A. O Olhar, São Paulo:

companhia das Letras, 1988, pp. 167-182.SOUSA , Jorge Pedro. Uma história crítica do fotojornalismo ocidental . Chapecó:Grifos, Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2000.