13560564 Cristologia e Teologia Nos Tratados de Prisciliano Ricardo Ventura

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    A QUESTAo DEDEUS

    CRISTOLOGIA ETEOLOGIA NOS TRATADOS DE PRISCILIANORICARDO VENTURA

    ContextualizacaoComo procuramos indicar no estudo introdut6rio de Tratados de Prisciliano', as abor-dagens historiograficas e exegeticas mais recentes permitiram libertar os estudiosos de va-rias pre-concepcoes que durante decadas foram determinando e limitando 0conhecimentoda figura e do pensamento de Prisciliano.Em primeiro lugar, 0aprofundamento dos estudos sobre 0conceito de "gnosticismo"permitiu relativizar 0seu valor, abrindo campo ao estudo individualizado dos fen6menosreligiosos, hist6ricos e filos6ficos geralmente associados a ele, remetendo 0 conceito de

    IIgnosticismo" para 0estatuto de conceito amplo e generalista, que mostra hoje a sua ope-ratividade sobretudo no ambito das abordagens comparatistas. Na verdade, descobertascomo a da biblioteca de N ag H ammadi e a da biblioteca de Qumran recolocaram os textosap6crifos cristaos e pre-cristaos nos horizontes dos estudiosos, problematizando, com es-pecial enfase, as concepcoes monoliticas da doutrina crista nos primeiros seculos da nossaera. Simultaneamente, 0aurnento exponencial das fontes disporuveis permitiu tambem aproblematizacao do conceito de IIgnosticismo". Assim, quando nos deparamos com urnconjunto de textos como aqueles que figuram na biblioteca de N ag H ammadi, tao diversosentre si em termos de genero, de terminologia e de concepcoes teol6gicas e filos6ficas, tor-na-se inevitavel discutir a validade das classificacoes gerais do conceito de "gnosticismo".Constata-se, sobretudo, que concepcoes como 0dualismo, 0docetismo, 0emanatismo oua IIcentelha divina" nao se verificam em todos os textos ou surgem tratados de formas berndiversas. Fen6menos como 0priscilianismo, ou tambem como 0catarismo e 0bogomilis-mo, entre outras heresias medievais de denominado cariz IIgn6stico", podem trazer 0seucontributo valido para a problematizacao deste conceito, se tivermos em conta a especifici-dade dos seus discursos, concepcoes e rituais, bern como dos contextos hist6ricos em queemergiram e vigoraram. Distanciando-se de urna classificacao a prio ri destes fen6menosreligiosos, a historiografia procura hoje uma analise em que se pondera a componente quepodenamos chamar "tradicional", respeitante a transmissao de concepcoes e de rituais porvia escritural e confessional ao longo dos seculos, e a componente mftica, criativa ou imagi-nativa hurnana, de acordo com a qual se deve supor que algumas das concepcoes e rituaispodem ser identicos ou semelhantes sem que haja necessariamente contacto de correntesou conhecimento de fontes.Nesta medida, 0estudioso disp6e de urn campo de possibilidades mais amplo, mastambem mais clarificador, por nao se ver obrigado a identificar 0pensamento e a figura dePrisciliano com 0conceito de IIgnosticismo" ou com estere6tipos de "heresiarca".

    Em segundo lugar, abordagens hist6ricas como a de Maria Escribano Pano" e a deJacques Fontaine', que permitem urna melhor compreensao do contexto hist6rico e social1Prisciliano, Traiados, introd. e trad. Ricardo Ventura, IN-CM, Lisboa, 2005.0presente estudo retoma e aprofun-da algumas conclusoes e alguns pontos de analise que apresentamos neste livro, sobretudo no que diz respeitoaos conceitos de teologia, cristologia e revelacao patente nos Tratados.2 Maria Escribano Pafio, Iglesia y E sta do en e l c erta me n p riscilia nista . C au sa e cc le sia y iu dic ium p ub lic um , Saragoca,Universidad de Saragoca, 1988.3 Jacques Fontaine, "Panorama espiritual del Occidente Peninsular en los siglos IYO y yo: Por una nueva proble-

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    dos primeiros seculos do Cristianismo peninsular, criam um campo de analise que, decerta forma, se liberta de linhas de interpretacao marcadas por um forte teor apologetico:a linha galeguista, que via Prisciliano como 0ultimo druida e a figura mentora de umcristianismo celtico-galego, a linha catolica, que ora descrevia Prisciliano de acordo com 0estereotipo do heresiarca gnostico ou maniqueu, ora 0redimia sob a forma de urn asceta;a linha protestante, que dava enfase ao teor reformador e carismatico da sua mensageme da sua accao, por fim, destaque-se tambem a leitura de Jaime Cortesao", que, proximada linha galeguista, ve no priscilianismo um elemento identitario e congregador do povoportugues, A abordagem historiografica dos nossos dias recorre a estas linhas de interpre-tacao e delas retira elementos validos, no entanto, sem se comprometer explicitamente comnenhuma delas.Apesar dos avances hermeneutic os que procuramos enunciar, a escassez e a relativaobscuridade das fontes levantam, ainda hoje, diversos problemas a quem estude 0pensa-mento e a figura de Prisciliano. Porem, a relativizacao de conceitos pre-estabelecidos e aproblematizacao de linhas de leitura marcadamente apologetic as tern mostrado bons re-sultados, pois permitem indagar 0fenomeno priscilianista na sua complexidade doutrinale no seu contexto historico preciso.

    Doutrina e Canone nos Tratados de PriscilianoPara contextualizarmos os termos em que a doutrina catolica e enunciada nos Tratadosde Prisciliano, e necessario ter em conta as polemic as cristologicas que vigoraram ao lon-go do seculo IV. 0 desenvolvimento da instituicao eclesiastica obrigou os seus mentoresa uma progressiva sistematizacao e uniformizacao da doutrina, face a multiplicidade devisoes, em funcao dos diferentes contextos culturais e geograficos (Medic Oriente, AsiaMenor, Norte de Africa, Europa Oriental e Ocidental), correspondentes tambem a diferen-tes contextos institucionais, pastorais e confessionais.Neste periodo, a questao trinitaria, pelas suas implicacoes na compreensao do esta-tuto do Divino e da relacao entre Deus e 0Homem, constitui 0principal tema aflorado noencontro ou confronto dos escritores cristaos com 0platonismo. 0 Concilio de Niceia (325)viria a condenar a doutrina Ariana e a fixar a doutrina da consubstancialidade das pessoasda Trindade, instrumento que visava combater tambem outras derivas sobre a questaotrinitaria como 0monarquianismo, nas suas vertentes adopcionistas e modalistas.Nos Tratados de Prisciliano, sobretudo no Tratado I - L iv ro Apo loge tic o e no TratadoII - L ivro ao B isp o D iim aso, encontramos vestigios textuais desta polemica:

    Na verdade, quem lui que, lendo as Escrituras e crendo numa s6 fe , num s6 bap-tismo e num s6 Deus, nao condene os estultos dogmas dos hereges que, querendocomparar as coisas divinas com as humanas, dividem a substancia unida na virtu-de de Deus.s"Em seguida, 0autor enumera algumas destas heresias: a Binionita", a Patripassiana/,

    matica del Priscilianismo", in P rim era R eun io n G alleg a d e Es tudi os C l ti sic os (org. M. C. Diaz y Diaz), Santiago deCompostela, Universidad de Compostela, 1981,pp. 185-209; C ulture et Sp iritualite en E spagne du IV e au V Ile siedes,Londres, Variorum Reprints, 1986.4 Jaime Cortesao, Os Factores Democraticos na Formacao de Portugal, 3." ed., Lisboa, Horizonte, 1978.5 Prisciliano, Traiados, p. 90.6 Idem, Ib idem, p. 90.7 Idem, Ibid., pp. 91, 101,112.

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    a Novaciana", a Homuncionita? e a Ariana", Integradas em textos de defesa perante au-toridades eclesiasticas", estas referencias nao sao surpreendentes. Tambem compreensivele 0facto de estas heresias serem, em alguns casos, enurneradas em conjunto com 0mani-queismo e as heresias de Saturnino e de Basilides, com a heresia Catrafiga, a Borborita, aNicolaita e a Ofita, heresias que nao se encontram directamente relacionadas com a pole-mica cristo16gica e trinitaria, e que sao geralmente designadas como heresias IIgn6sticas".A elaboracao de urn catalogo de heresias nao e urna estrategia exclusiva destes textos.Todavia, 0facto de estas referencias surgirem isentas de qualquer referencia geografica ecrono16gica e sem urna explanacao clara e distintiva dos seus principios e, por si mesmo,significativo. Por urn lado, ele demonstra que, na 6ptica do autor dos Tratados, estes fen6-menos nao integravam uma corrente ou uma perspectiva distinta, que mais tarde viria aser denominada genericamente como IIgnosticismo". Por outro lado, 0que parece haver decomurn entre todas elas e a idolatria e a negacao da unidade de Deus. 0autor condena es-tas perspectivas com a constante afirmacao de Cristo Jesus, da Sua vinda em carne e da Suacrucificacao e ressurreicao, De facto, lendo os Tratados a luz das polemic as cristo16gicas doseu tempo, constatamos que estes apresentam urna simplicidade teologica arcaizante, naoprestando quaisquer contributos te6ricos assinalaveis e concedendo a condenacao das he-resias urn papel acess6rio face a afirmacao constante de urn credo unitario e carismatico,A simplicidade teologica destes textos parece, no entanto, ser compensada pelas cons-tantes citacoes bfblicas e pelas evocacoes de urn imaginario mitico proveniente do comple-xo de textos da literatura apocaliptica judaica. A referencia, no Livro Apologet ico , urn textode defesa perante as autoridades eclesiasticas, a concepcoes como 0adulterio de Eva comSaclas" e a criacao de urna ordem ilus6ria por parte de uma horda de anjos", bern comouma certa obsessao demonologica que se verifica ao longo deste texto, indiciam urna visaomitica e pre-teologica de Deus e do mundo.No Tratado III- Livro sabre a Fe e sab re a s ap6 crifo s, 0autor defende peremptoriamentea leitura de livros paralelos ao canone, a partir de argumentos textuais - 0 registo de re-ferencias, em livros Antigo Testamento, a livros de profetas (Enoch, Noe e Abraao, entreoutros) que nao figuram no canone: enunciacao de lacunas, etc. -, mas tambem teo16gicos- por exemplo, a revelacao de Deus e demasiado ampla para se limitar aos livros conside-rados can6nicos.A inclusao de concepcoes miticas e a apologia de textos extra-can6nicos parecemconstituir, com efeito, 0 principal elemento diferenciador dos Tratados face ao contextodou trinal e teo16gico do penodo em que sao redigidos.No caso de Prisciliano, a simplificacao dos termos teo16gicos e a riqueza mftica e ima-getica dos Tratados podem prefigurar urna postura autoral mais vocacionada para a com-ponente pastoral e confessional da religiosidade, do que para a componente doutrinal einstitucional. Essa visao e ainda reforcada pelo teor homiletico dos tratados IV, V, VI, VII,VIII, IX e X.o estudo do contexto religioso e social do Noroeste da Peninsula Iberica no seculo IVpode ajudar-nos a compreender os motivos dessa postura religiosa e desse registo discur-sivo. Os mais recentes estudos hist6ricos sobre a figura de Prisciliano" tern-no identificado8 Idem, Ibid. , p. 91, 10l.9 Idem, Ibid. , pp. 92, 10l.10 Idem, Ibid. , p. 10l.11Sobre 0 contexto do Tratado I - L ivro Apc loge ti co e do Tratado II - L ivro ao B isp o D iim aso, cf. Ricardo Ventura,Estudo Hist6rico-Filos6fico, inPrisciliano, Traiados, pp. 18-19.12Prisciliano, Traiados, p. 99.13 Idem, I b idem, p. 94.14 Cf. entre outros estudos, Margarida Barahona Simoes, Prisciliarw e as Tensiies R eligiosas do Seculo IV, Lisboa,

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    como urn membro da aristocracia teodosiana, proprietario de urn latifundium ou de urnauilla, nucleos da vida economica, cultural e religiosa do noroeste peninsular. Possuindovastas clientelas e tendo muitos populares sob a sua dependencia, estas figuras desempe-nharam urn papel fundamental na cristianizacao do espa

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    A enunciacao dos sentidos da revelacao e da assistencia divina ao homem processa-sesobretudo a partir da explanacao dos conceitos de simbolo da fe, baptismo e ministerio,Nao pertence a presente reflexao descrever as definicoes e os contextos em que cada urndestes conceitos ocorre. Bastara explicitar que eles adquirem, nos Tratados, urn significadoproprio, que se adequa a perspectiva carismatica do autor. Centremo-nos, por exemplo, noconceito de sfmbolo da fe, urn dos conceitos mais recorrentes e mais significativos:A heresia surge, entao, quando cada qual observa mais 0 seu engenho do que aDeus e decide nao seguir 0simbolo mas discutir sobre ele, sendo que, se conheces-se a fe, nao consideraria nada para la do signo. Na verdade, 0simbolo e assinaturada coisa verdadeira e designar outro simbolo e discutir sobre 0simbolo mais doque crer nele. 0 simbolo e obra do Senhor em nome do Pai, do Filho e do EspiritoSanto, fe em urn s6 Deus, em virtude do qual Cristo Deus, Filho de Deus, nasceuSalvador, sofreu na came e ressuscitou por amor ao homem.s"

    A aceitacao total do simbolo apresenta-se como a primeira etapa do percurso cristae,E nas referencias ao simbolo da fe e ao baptismo que encontramos enunciacoes das Pessoasda Santissima Trindade feitas nos Tratados, grande parte delas presentes atraves de cita-coes das Escrituras. Aqui, 0fiel ainda se reconhece como uma especie de sujeito-passivo deurn percurso espiritual, a quem cabe encetar 0trabalho purgativo.A dependencia do pensamento de Prisciliano em relacao a urn patrimonio mitico pa-ralelo a narrativa edenica do Genesis tern, a este respeito, uma importancia particular. Al-guns paragrafos acima, referimos as alusoes, nos Tratados, ao adulterio de Eva com Saclas ea criacao angelica de uma ordem terrena ilusoria, Ora, nurn trecho do Tratado VI - Tratadodo Exodo , lemos igualmente:

    < < [ ] ainda que uma obra especiosa, por urna ou outra razao da sua natureza, re-comende a administracao das coisas mundanas, todavia, porque e forcoso que 0obreiro supere 0 pensamento de toda a criatura para atingir a gl6ria, sabei queDeus nada criou desta maneira para si, mas porque, iludido 0homem, a naturezademoniaca dos Idolos confundira a simples disposicao das obras divinas dividin-do-a em lugar, tempo, numero, dia, mes, ordem, enquanto, introduzindo familiasde deuses incertos, inscreveu 0nome incomunicavel de Deus em dias, meses, bes-tas, aves, madeiras, pedras; e, desta fe, surgiu a guerra, como as criaturas adoras-sem as formas visiveis nos elementos terreais e celestes, tendo abandonado 0Deusde tanta dadiva [... ].18

    Por conseguinte, a ascese e 0 trabalho purgativo nao sao justificados simplesmenteatraves de urna entrega da vontade hurnana ao designio divino ou de urna purgacao dospecados cometidos, mas sim como a remissao a urn estado ontognoseologico primordial.o sentido purgativo e, sobretudo, apresentado como urn myel mais elementar de interpre-tacao das Escrituras:

    Assim, como e mais facil aos convertidos a fe reconhecerem os males dos seus pe-cados do que compreenderem em si a dadiva divina, e e mais praticavel 0homemnao desejar 0pecado do que anelar aquilo que e divino, a ordenacao do salmo e amais aprapriada para 0 aperfeicoamento dos leitores [... ].19

    17 Idem, Ibidem, p. 120.18 Idem, Ibid., pp. 141-142.19 Idem, Ibidem, p. 160.

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    As narrativas miticas a que Prisciliano recorre constituem a base principal de urn pen-samento teologico predominantemente unitario, Como ja Henry Chadwick diagnosticara,nos Tratados, toda a divisao e, por inerencia, inferior a unidade: 0pecado e definido comoo homem dividindo-se a si mesmo e a natureza e separado de Deus; distinguir 0eterno dotemporal e equivalente a distinguir 0uno do dividido, 0espiritual do carnal, 0verdadeirodo falso", Esta divisao entre eterno e terreno e a raiz do estado carnal. E nesta tensao quePrisciliano estrutura nao so 0trabalho do fiel, mas tambem a sua cristologia:

    Assim, tendo 0nosso Deus assurnido a carne, isto e, a forma do homem e de Deusem si, assinando a alma divina e a came terrena, mostrou que, enquanto urna partee da forma do pecado, a outra e a natureza divina; 0verbo feito carne para a nossasalvacao demonstra que aquela [a forma do pecado] e a arma da iniquidade parao pecado; esta [a natureza divina] e a arma da justica para a nossa salvacao, dadoque, invisivel se v@,incriado nasce", infinito e contido, quando morre como ho-mem ressurge como Deus e, se se lamenta como que interrogando a sua alma tristeate a morte, ja com confianca sobre-humana anuncia que se ha-de sentar a direitade Deus, se pede se sera possivel afastar 0 calice de si, logo afirma confiante queha-de bebe-lo como se 0houvesse recebido de seu Pai; se como homem se queixade ter sido abandonado por Deus, logo promete como Deus 0 paraiso ao ladraoque se confessa; se afirma ser filho, Jose nao e seu pai, se afirma ser filho, a virgemMaria, virgem conceptora antes da concepcao, nascida na came, trouxe ao mun-do urn milagre, sendo virgem depois do parto. Sendo extremos tao diversos, taocontraries segundo a inteligencia hurnana, a virgindade nao estaria de acordo como parto, a morte com a etemidade, a desconfianca com a exortacao, a perturbacaocom a liberdade: demonstra-se-nos entao que aquilo que e segundo 0espirito estapronto, aquilo que e segundo a came e fraco.22

    Cristo Jesus, 0verbo feito carne, surge como figura central da teologia de Priscilia-no. Se, como vimos, as enunciacoes da Santissima Trindade sao escassas nos Tratados, asreferencias a Cristo Jesus como Deus, salvador, e unidade do espirito sao significativas.o cristocentrismo priscilianista mereceu a atencao de alguns autores, como Henry Cha-dwick e Xose Chao Rego", quer enquanto marc a da grande importancia que os escritos dePaulo tern na eclesiologia e na teologia dos Tratados, quer na sua aproximacao ao monar-quianismo modalista. De facto, como ja tivemos oportunidade de referir anteriormente=,o cristocentrismo priscilianista expressa-se em termos emotivos e excessivos proprios dealguns trechos das cartas paulinas e de uma postura carismatica, procurando atribuirao Salvador urn papel totalizante, quer enquanto mediador entre as instancias terrena edivina, quer enquanto simbolo da unidade divina. Este tipo de postura discursiva cor-responde a ja referida formulacao teologica pouco intelectualizada do autor dos Tratados,assemelhavel ao monarquianismo modalista", em que as Pessoas da Trindade se indife-renciam nurna so Divindade, que podera ser expressa atraves de conceitos como "Deus","Cristo", "Espirito" ou "Verbo", com diversos atributos e funcoes". No Tratado VI - Tra-20 Priscillian of Avilla - The O cult and the Charism atic in the Early Church, p. 76.21inascibilis nascitur; 0 termo inascibilis surge em Santo Hilario de Poitiers (Con tra Cons tan ti um , 16; De Tr in it at e,9,56-7), no contexto da formulacao da doutrina da Trindade em oposicao ao Arianismo.22 Prisciliano, Tratados, pp. 140-141.23 Xose Chao Rego, P ris cillia no - P ro fe ta c on tra 0 poder, Vigo, Edici6ns A Nosa Terra, 1999.24 Ricardo Ventura, Estudo Hist6rico-Filos6fico, inPrisciliano, Tratados, pp. 76-77.25 Para uma breve hist6ria e definicao do monarquianismo modalista, d.G. Bardy, Monarchianisme, inDiciio-nnaire d e Theo log ie Ca tho li que (dir. A. Vacant et al.), t. X, 2"" partie, Paris, 1929,pp. 2193-2210.26 No Tratado I - Livro Apologe t ico (Prisciliano, Tratados, p. 91), encontramos a seguinte versao de 1/000 (5, 7-8), quee , alias, urn dos mais antigos testemunhos da comma johanneum: [... ] assim disse Joao: tres sao os que testificam

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    ta do d o E xo do , lemos urna enunciacao dos atributos de Deus substancialmente proxima dasenunciacoes modalistas:

    Assim, Deus quis que 0 compreendessemos ao sofrer por n6s na carne: se pro-curamos em n6s 0 sentido, Deus e urn; se [procurarnos] a palavra, urn e Cristo; se[procurarnos] a obra, urn e Jesus; se questionarnos a natureza, e 0Filho; se procura-rnos 0principio, charna-se Pai; se [procurarnos] a criatura: e a sapiencia; se [procu-rarnos] 0ministerio, e 0anjo; se [procuramos] 0poder, e 0hornern; se [procurarnos]a dignidade, e 0filho do hornern; se [procuramos] aquilo que foi feito por ele, e avida; se [procuramos] aquilo que esta para alem dele, nada, dispondo ele todas ascoisas de tal rnaneira que, sendo uno na totalidade, querendo que 0hornern fosseuno com ele, nao podera aquele que procura a obra perfeita chegar a outro estadosenao aquele em que creia que s6 ha urn Deus, cuja omnipotencia descobre em si,pelo que e e pelo nome que recebe. [ ... ] eo proprio hornern, distinguindo-se, rnos-trando a Deus tudo 0 que ha em si, importa que se crucifique com a correccao docorpo, para que seja destruida a obra do rnundo e para que reconheca 0que ha queoferecer a Deus e 0 que ha de imaculado no hornern, que ha que guardar impassi-vel, porque 0divino habita em n6s.27

    Neste trecho, cabe registar alguns aspectos dignos de nota: em primeiro lugar, a re-ferenda a Deus como unidade e a Cristo como a palavra ou verbo; em seguida, a alusaoa obra do crente como reconhecimento da presen

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    das verdadeiras e as caducas das certas, uma vez que tenha visto que e linhagemdivina, permanecendo Deus consigo uno e indiferenciado,e exultando pelas coisasque nao estao sujeitas nem a urn exordio nem a urn fim.29Nestes termos, a formulacao modalista esboca urn continuo ontologico entre hurna-no e divino: ao homem cabe reconhecer em si 0estado que nos Tratados e referido como

    ministerio, correspondente ao estatuto de anjo30, enquanto que Cristo e enunciado como0 homem dos homens-". 0 enfoque colocado na flexibilidade e na totalidade do Verbo,ainda que enunciado como Cristo, aproxima a teologia dos Tratados de urna pneurnatolo-gia, em que cabe ao fiel apreender e adequar-se a presen

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    forma as coisas dos dias, dos meses e dos tempos e das vontades, e as coisas queparecem estar separadas devido aos vicios idolatricos do nascimento terreal [...];ou certamente mostra que Deus e testemunha deSiMesmonoHomem, que sofreupor n6s e e nosso juiz. Por estemotivo, querendo que fossemosconsortes da natu-reza divina, distinguiu em n6s corpo, alma e espirito, numa observacao triformede preceitos [...]34Nao havendo uma correspondencia exacta entre a proposta de Origenes e a do Tratado

    d o E xc do , este trecho deve tambem ser lido na o so tendo em conta 0forte acento paulinodos Tratados, mas tambem em conjunto com outras formulacoes alegoricas que surgem aolongo dos mesmos e que estao bern mais proximas do alegorismo mitico dos textos da lite-ratura apocaliptica judaica e da biblioteca de Nag Hammadi. Entre eles, lemos:Assim, quando tomarmos conhecimento dos aetos dos santos, devemos conciliaro triunfo da vida boa com a perfeita interpretacao dos ditos. Siquem, cuja divisaofoi gaudio dos homens e de Cristo, e terra de estrangeiros, onde a filha de Jacob,homem eleito, desfrutando de urn passeio ape, foi presa, enquanto olhava a terraestrangeira, e perdeu a virgindade. Como vinganca, Siquem foi castigada com adivisao e subjugada, para testemunho, de forma a que 0povo de Deus nao se diri-gissemais aos povos estrangeiros.v"

    o que 0autor parece defender e a presen

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    Este cantico provem, ao que tudo indica, de Actos de loacf36,urn texto ap6crifo quecontem proposicoes monarquianas retoricamente muito pr6ximas de algumas que encon-tramos nos Tratados. Notem-se, por exemplo, as semelhancas entre 0trecho do Tra tado sabrea E xod o citado acima (nota 19), a prop6sito da cristologia priscilianista, e 0trecho seguinte,em que Cristo fala aos ap6stolos e aos fieis ap6s a ressurreicao:

    Thou hearest that I suffered, yet did I not suffer; that I suffered not, yet did I su-ffer; that I was pierced, yet I was not smitten; hanged, and I was not hanged; thatblood flowed from me, and itflowed not; and, in a word, what they say of me, thatbefell me not, but what they say not, that did I suffer. Now what those things areI signify unto thee, for I know that thou wilt understand. Perceive thou thereforein me the praising (al . slaying al. rest) of the (or a) Word (Logos), the piercing ofthe Word, the blood of the Word, the wound of the Word, the hanging up of theWord, the suffering of the Word, the nailing (fixing) of the Word, the death of theWord. And so speak I, separating off the manhood. Perceive thou therefore in thefirst place of the Word; then shalt thou perceive the Lord, and in the third place theman, and what he hath suffered.s"Analogamente ao trecho do T ra ta do d o E xod o, Cristo, 0Verbo divino, e apresentado deforma paradoxal, assumindo, mas superiorizando-se a condicao terrena e sofredora. Porconseguinte, Actos de loao pode admitir-se como tendo sido uma das fontes inspiradorasdo autor dos Tratados. Porem, 0 entendimento simultaneamente paradoxal e unitario deCristo como Verbo divino adequa-se, nos Tratados, mais ao trabalho purgativo e de salva-cao, ao passo que, em A ctos de loao, ele visa 0aprofundamento de uma pneurnatologia queresgate 0 Logos divino de todos os atributos hurnanos. Dai que nem sempre seja possivelisentar A etas de loao de urn certo docetismo, de acordo com 0qual Cristo estaria ausente do

    corpo de Jesus na crucificacao,Com efeito, nao e facil encontrar vestigios de docetismo nos Tratados. A sua posturaconfessional e pastoral importava sobretudo ver a totalidade do divino sob a perspectivada mutualidade divino-hurnano e nao da pureza e transcendencia do esptrito divino. Dis-pensando a abordagem filos6fico-doutrinal dos temas teol6gicos abordados, 0autor dosTratados denota urna postura ascetica e mistica que, nao sendo doutrinalmente codificadaa imagem dos Padres da Igreja, procurava forcar os termos de uma visao carismatica daimanencia do divino.

    36 The Acts of John, in T he A pocry ph al N ew Testam ent, trad. M. R. James, Oxford, Clarendon Press, 1924, http://www.gnosis.orgll ibraryjactjohn.htm. 94 .37 Ibidem, 101.

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    http://www.gnosis.orgllibraryjactjohn.htm./http://www.gnosis.orgllibraryjactjohn.htm./