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II COLÓQUIO INTERNACIONAL NEPC/IEAT Biotecnologias e Regulações II COLÓQUIO INTERNACIONAL NEPC/IEAT BIOTECNOLOGIAS E REGULAÇÕES A A N N A A I I S S SESSÕES COORDENADAS

14 - Clonagem e Cuidado Criativo (Versão Final Publicada on Line NEPC)

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clonagem humana

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  • II COLQUIO INTERNACIONAL NEPC/IEAT Biotecnologias e Regulaes

    IIII CCOOLLQQUUIIOO IINNTTEERRNNAACCIIOONNAALL NNEEPPCC//IIEEAATT

    BBIIOOTTEECCNNOOLLOOGGIIAASS EE RREEGGUULLAAEESS

    AANNAAIISS

    SSEESSSSEESS CCOOOORRDDEENNAADDAASS

  • II COLQUIO INTERNACIONAL NEPC/IEAT Biotecnologias e Regulaes

    Colquio Internacional de Biotecnologias e Regulaes (2.: 2011: Belo Horizonte, MG). Anais / Anna Carozzi (org.)... et al. - Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, 2011.- 312 p. - Colquio organizado pelo NEPC e IEAT/UFMG.

    Inclui bibliogrfia. ISBN: 978-85-62707-08-7

    1. Biotecnologia 2. Cincia e tica. I. Carozzi, Anna.

    CDD:660.6063

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    ORGANIZAO DOS ANAIS Anna Carozzi Nara Pereira Carvalho Vanessa di Lego COMISSO ORGANIZADORA Anna Carozzi Ivan Domingues Nara Pereira Carvalho Vanessa di Lego COMISSO CIENTFICA Brunello Stancioli Ivan Domingues Leonardo Ribeiro Lilian Fonseca Rogrio Lopes Telma Birchal Yurij Castelfranchi

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    AAPPRREESSEENNTTAAOO

    O Ncleo de Estudos do Pensamento Contemporneo

    (NEPC), sediado na Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas /

    UFMG, em Belo Horizonte, realizou em parceria com o IEAT/UFMG

    (Instituto de Estudos Avanados Transdisciplinares), nos dias 27-

    28-29 de abril de 2011, o seu 2 Colquio Internacional

    Biotecnologias e Regulaes.

    O Colquio teve por objetivo criar um espao de reflexo

    interdisciplinar acerca do desenvolvimento e das aplicaes das

    novas biotecnologias, em especial aquelas ligadas gentica e

    biologia molecular. Dois grupos de questes circunscreveram as

    atividades: a questo da racionalidade tcnica e normativa, levando

    tanto aproximao quanto demarcao da tecnologia

    relativamente a outros campos da cognio e ao humanas, como

    a cincia, a filosofia, o saber emprico, a moral e o direito; a

    questo da regulao das biotecnologias, focalizando os aspectos

    ticos, polticos e jurdicos. Para tanto, as implicaes

    antropolgicas foram consideradas, recobrindo as diferentes faces

    da reengenhagem do ser humano (corpo e mente), bem como as

    controvrsias relacionadas necessidade de controle dos processos

    e sistemas tecnolgicos.

    O evento contou com Conferncias e Mesas-redondas

    proferidas e coordenadas por especialistas brasileiros e

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    estrangeiros, dentro das quais foi reservado tempo para debate

    aberto ao pblico. Alm destas atividades, houve as Sesses

    Coordenadas - sesses paralelas organizadas mediante a

    submisso de trabalhos -, que trataram de questes e abordagens

    sob diversas perspectivas e reas do saber, e que se destinaram a

    estudantes de ps-graduao e a diferentes profissionais

    provenientes de vrios pontos do Brasil.

    Tanto as Sesses quanto as Conferncias e as Mesas foram

    organizadas em torno de quatro eixos: I- Biotecnologias,

    Regulaes e Direitos Humanos, II- Racionalidade Tecnolgica e

    Normativa, III- Biotecnologia e Poltica: Risco, Incertezas e

    Participao Pblica, IV- Princpios ticos e Aplicaes nas

    Regulaes Biotecnolgicas.

    A publicao destes Anais assim como a do livro, que vir a

    lume em 2012, pereniza a discusso ocorrida durante o evento e

    proporciona o compartilhamento dos resultados com um pblico

    mais amplo. O objetivo do Ncleo de Estudos do Pensamento

    Contemporneo (NEPC) e o do Instituto de Estudos Avanados

    Transdisciplinares (IEAT) dar continuidade a este trabalho

    colaborativo inter e transdisciplinar com as mais diversas reas de

    conhecimento. Pensamos que esta publicao e o Colquio

    representam um marco dos muitos frutos e passos em direo a

    este caminho.

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    SSUUMMRRIIOO

    1. EIXO TEMTICO I - BIOTECNOLOGIAS, REGULAES E DIREITOS HUMANOS

    08

    1.1 A REGULAO DE UM PROCESSO DE TRABALHO EM

    BIOMEDICINA NO BRASIL: O USO DE ANIMAIS NA PRODUO DE CONHECIMENTOS SOBRE AS DOENAS E NO DESENVOLVIMENTO DE MEDICAMENTOS E VACINAS - Carlos Jos Saldanha Machado, Ana Tereza Pinto Filipecki e Mrcia de Oliveira Teixeira.

    08

    1.2 AS DEFICINCIAS DO ARGUMENTO DA

    POTENCIALIDADE CONTRA O USO DE EMBRIES HUMANOS - Lincoln Frias.

    35

    1.3 UM OLHAR DE GNERO SOBRE O CARTER

    POLTICO DAS TECNOLOGIAS DE MUDANA CORPORAL - Leonel Cardoso dos Santos

    58

    2. EIXO TEMTICO II - RACIONALIDADE TECNOLGICA

    E NORMATIVA 80

    2.1 CONTINGNCIA, PS-MODERNIDADE E DISPOSITIVO

    TCNICO - Wellington Lima Amorim e Sergio Ricardo Silva Gacki

    80

    2.2 BIOLOGIA MOLECULAR, REDUCIONISMO E O

    FNOMENO DA INSTANCIAO MLTIPLA (MULTIPLE REALIZABILITY) Celso Antnio Alves Neto

    111

    2.3 HABERMAS: QUESTES NORMATIVAS SOBRE A

    PRXIS CIENTFICA - Leno Francisco Danner 135

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    3. EIXO TEMTICO III - BIOTECNOLOGIA E POLTICA: RISCO, INCERTEZAS E PARTICIPAO PBLICA

    158

    3.1 DO PONTO DE VISTA DO SUJEITO DE PESQUISA: A

    EXPERINCIA DO CONTROLE SOCIAL NA PESQUISA CIENTFICA BRASILEIRA - Rui Harayama

    159

    3.2 INOVAES TECNOLGICAS PARA

    MELHORAMENTOS HUMANOS - O PAPEL DA UNIVERSIDADE - Mariana Alves Lara e Paulo Vtor Guerra

    177

    3.3 A REGULAO POLTICA DE NOVAS

    BIOTECNOLOGIAS: UM DESAFIO CIENTFICO E TICO - Antnio Cota Maral e Daniel Mendes Ribeiro

    196

    4. EIXO TEMTICO IV - PRINCPIOS TICOS E

    APLICAES NAS REGULAES BIOTECNOLGICAS 213

    4.1 A ARTICULAO DOS PRINCPIOS DA AUTONOMIA E

    DA BENEFICNCIA EM FACE DA LAICIZAO DA VIDA HUMANA DITADA PELAS QUESTES BIOTECNOLGICAS: UMA CONTRIBUIO POSSVEL DO PRAGMATISMO KANTIANO Nomia de Sousa Chaves

    216

    4.2 O LUGAR DE PRINCPIOS TICOS NA REGULAO

    DAS BIOTECNOLOGIAS: SOBRE O PRINCPIO DA AUTONOMIA - Solange de Moraes Dejeanne

    244

    4.3 CLONAGEM E CUIDADO CRIATIVO - Wendell

    Evangelista Soares Lopes 263

    4.4 EPISTM-LOGIA OU DOXA-LOGIA?

    CONTRIBUIES DA FILOSOFIA DA CINCIA DE POPPER PARA A (BIO)TICA EM (BIO)TECNOCINCIA - Mrcio Rojas da Cruz

    282

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    1. EIXO TEMTICO I - BIOTECNOLOGIAS, REGULAES E

    DIREITOS HUMANOS

    1.1. A Regulao de um processo de

    trabalho em biomedicina no Brasil: o uso de

    animais na produo de conhecimentos

    sobre as doenas e no desenvolvimento de

    medicamentos e vacinas.1

    Carlos Jos Saldanha Machado2

    Ana Tereza Pinto Filipecki3

    Mrcia de Oliveira Teixeira4

    1 Os autores agradecem ao CNPq pelo financiamento do projeto de pesquisa Cincia, tecnologia e inovao em biomedicina numa organizao pblica de pesquisa brasileira: uma abordagem sociolgica da Fundao Oswaldo Cruz em termos de regimes de produo e de regulao de conhecimentos e de tcnicas [Proc. No 474039/2008-0], concludo em dezembro de 2010, que permitiu alcanar os resultados aqui apresentados. 2 Pesquisador em Sade Pblica da Fundao Oswaldo Cruz / Ministrio da Sade e Professor dos Programas de Ps-Graduao em Informao e Comunicao em Sade e Biodiversidade e Sade da Fundao Oswaldo Cruz e em Meio Ambiente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Endereo: Av. Brasil, 4365, Pavilho Moussatch, 206A, Manguinhos, Rio de Janeiro/RJ CEP 21045-900. E-mail: [email protected] Pesquisadora em Sade Pblica da Fundao Oswaldo Cruz / Ministrio da Sade e Doutoranda do Programa de Ps-Graduao em Meio Ambiente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Endereo: Av. Brasil, 4365, Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio / LIC-PROVOC, sala 308, Manguinhos, Rio de Janeiro/RJ CEP 21045-900. E-mail: [email protected].

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    Resumo O objetivo deste trabalho descrever e analisar o processo de construo e implementao do novo arcabouo institucional-legal que disciplina o trabalho de pesquisa em biomedicina no Brasil. Quais so as caractersticas e as diferenas entre o atual regime regulatrio do uso de animais em experimentao e o que se praticava anteriormente? Em que medida o novo regime regulatrio atua como agente de mudana e reorganizao de espaos e processos de trabalho de produo de conhecimentos biomdicos e de desenvolvimento de insumos em sade, como vacinas e medicamentos? Com base numa metodologia qualitativa de leitura de documentos diversos, conjugada com uma observao participante num instituto pblica de pesquisa em sade, conclumos chamando a ateno para o modelo de pesquisa cientfica em biomedicina que o governo federal est instituindo atravs do novo marco regulatrio. Palavras-Chave: Biomedicina; Metodologia qualitativa; Regulao da prtica cientfica.

    Abstract In this paper we describe and analyze Law n.11794/2008, which regulates the use of animals in biomedical research. The differences and similarities between the ethical use of human and non human animals in research is our point of departure. Based on participant observation and document analysis, we frame the ethical, legal and operational issues presented in the life of an

    4 Pesquisadora em Sade Pblica da Fundao Oswaldo Cruz / Ministrio da Sade e Professora do Programa de Ps-Graduao em Informao e Comunicao em Sade da Fundao Oswaldo Cruz. Endereo: Av. Brasil, 4365, Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio / LIC-PROVOC, sala 308, Manguinhos, Rio de Janeiro/RJ CEP 21045-900. E-mail: [email protected].

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    ethics committee belonging to a public biomedical research institution. We argue that as the regulatory process progresses, the right to translate the clauses of the Law may create asymmetries among research institutions and weaken the ties between non human animals and human animals present in biomedical research chain. Keywords: Biomedicine; Regulation of scientific practices; Qualitative methodology.

    INTRODUO

    O objetivo deste trabalho descrever e analisar o processo

    de construo e implementao do novo arcabouo institucional-

    legal que disciplina o trabalho de pesquisa em biomedicina no

    Brasil. A escolha de um dos temas que compem as polticas

    pblicas de cincia e tecnologia reside no pressuposto de que uma

    Lei uma das formas atravs da qual os seres humanos regulam

    as relaes entre sociedade e estado. um instrumento de poltica

    pblica de manuteno do status quo ou de implementao de

    mudanas (BRACEY, 2006). No caso do uso de animais em

    experimentao cientfica para o conhecimento das doenas e

    desenvolvimento de medicamentos e vacinas para cur-las,

    observa-se que a legislao dos pases ocidentais tem variado

    enormemente em funo das caractersticas histrico-culturais de

    cada um deles (KUROSAWA, 2007; KONG & QUIN, 2010). No caso

    brasileiro, aps 13 anos de debate parlamentar (MACHADO,

    FILIPECKI, OLIVEIRA, KLEIN, 2009), o governo federal instituiu em

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    8 de outubro de 2008 uma nova ordem jurdico-administrativa

    atravs da Lei 11.794, que foi regulamentada em 15 de julho de

    2009 com o Decreto 6.899.

    A nova legislao introduziu modelos de condutas que antes

    no existiam (FILIPECKI; MACHADO; VALLE; TEIXEIRA, 2010),

    criou o Conselho Nacional de Controle de Experimentao Animal

    (CONCEA) e tornou obrigatria a implantao de Comisses de

    tica no Uso de Animais (CEUAs) pelas instituies que criam ou

    utilizam animais para ensino e pesquisa. Mas quais so as

    caractersticas e as diferenas entre o atual regime regulatrio do

    uso de animais em experimentao e o que se praticava

    anteriormente? Em que medida o novo regime regulatrio atua

    como agente de mudana e reorganizao de espaos e processos

    de trabalho de produo de conhecimentos biomdicos e de

    desenvolvimento de insumos em sade, como vacinas e

    medicamentos? A legislao valoriza a promoo de mtodos

    alternativos e a eliminao ou reduo ao mnimo de qualquer

    possibilidade de dor, sofrimento, angstia ou dano duradouro

    infligidos aos animais?

    Essas trs questes sero respondidas atravs da descrio

    e anlise de trs fontes secundrias de informaes (documentos

    jurdicos lei, decreto e resolues que disciplina a experimentao

    animal; apreciaes do CONCEA; pareceres do Consultor Jurdico

    do Ministrio de Cincia e Tecnologia [MCT] sobre o aspecto tico-

    legal da pesquisa), complementadas com a observao participante

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    realizada entre janeiro e agosto de 2010 na CEUA de um grande

    instituto pblico de pesquisa em sade [IPPS]. Os resultados

    alcanados sero apresentados em cinco sees, alm desta

    Introduo e uma Concluso. Inicialmente faremos uma breve

    descrio da ligao ente o uso de animais no-humanos e

    humanos na pesquisa biomdica para que o leitor entenda a

    relao entre produo de conhecimentos e aplicao desses

    conhecimentos no desenvolvimento tecnolgico de tratamento de

    doenas. Em seguida, aps uma definio do termo que est

    associado pesquisa pr-clnica, o modelo animal, e introduzido a

    questo da tica na pesquisa biomdica no cenrio internacional,

    apresentamos o sistema brasileiro de avaliao tica das pesquisas

    com humanos, o princpio internacional de uso de animais em

    experimentao e a institucionalizao brasileira da tica no uso de

    animais na pesquisa. Na terceira seo, aps recuperar a legislao

    anterior e situar os traos marcantes do jogo dos atores no

    processo de formulao e promulgao da Lei 11.794/2008, feita

    uma caracterizao do atual marco regulatrio de uso de animais

    em ensino e pesquisa, destacando os temas mais importantes que

    foram regulados e esto em processo de implementao. A quarta

    seo baseia-se em observaes sobre as modificaes dos

    protocolos de pesquisa sugeridas pelos membros do rgo

    responsvel, dentro da organizao administrativa local, pela

    proteo e bem-estar dos animais de pesquisa no-humanos, a

    CEUA, de uma Instituio Pblica de Pesquisa em Sade (IPPS),

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    antes da aprovao dos projetos de pesquisa para a concesso de

    licena, para desenvolvermos o argumento de que o perodo de

    transio para a consolidao do novo marco regulatrio,

    conjugado s fragilidades e complexidades dos dispositivos

    jurdicos analisados nas sees anteriores, influenciam

    diretamente a dinmica das CEUAs. Finalmente, antes de concluir

    nossa descrio e anlise do processo regulatrio de uso de

    animais no ensino e uso de animais em experimentao cientfica,

    apresentamos na ltima seo o movimento sui generis de

    desregulao dentro da regulao da pesquisa biomdica em dois

    ambientes institucionais, o acadmico e o industrial. Conclumos

    tecendo algumas consideraes sobre o processo de implementao

    da poltica pblica observada e chamando a ateno para o modelo

    de pesquisa cientfica que o governo federal est dirigindo na

    prtica.

    O USO DE ANIMAIS HUMANOS E NO-HUMANOS NA PESQUISA

    BIOMDICA

    A pesquisa biomdica tem como objetivo principal o estudo

    da fisiologia normal do organismo e dos mecanismos

    fisiopatolgicos das enfermidades, alm dos tratamentos seguros e

    efetivos para prevenir, tratar e erradicar essas doenas (GOMEZ &

    TOMAZ, 2007). A produo do conhecimento biomdico e sua

    aplicao no desenvolvimento de produtos como vacinas e

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    medicamentos no pode prescindir dos animais humanos e no-

    humanos. Nesse processo, o elo que liga animais no humanos e

    animais humanos a transio da pesquisa pr-clnica para a 1

    fase do ensaio clnico.

    Na pesquisa pr-clnica, animais vivos servem para fornecer

    sangue, modelar o comportamento de doenas, frmacos e

    imunobiolgicos em sistemas biolgicos, estabelecer tcnicas

    cirrgicas, dentre outros usos. O modelo animal, isto , o modelo

    de uma doena humana em um animal no-humano, permite

    avaliar a resposta do organismo a uma droga, a um tratamento ou

    a uma interveno mecnica, como, por exemplo, o funcionamento

    do crebro aps uma coliso intensa. De acordo com o Cdigo de

    Nuremberg5, primeiro documento internacional desenhado para

    proteger a integridade dos seres humanos que participam de

    pesquisas, o experimento (com humanos) deve ser baseado em

    resultados de experimentao com animais e no conhecimento da

    evoluo da doena ou outros problemas em estudo; dessa

    maneira, os resultados j conhecidos justificam a conduo do

    experimento. A Declarao de Helsinki, que orienta atualmente a

    formulao de legislaes e de cdigos de conduta internacionais,

    regionais e nacionais sobre tica em pesquisa6, tambm adota

    como princpio bsico que a pesquisa biomdica que envolve seres

    5 Promulgado em 1947, o documento foi publicado em resposta s atrocidades cometidas na II Guerra Mundial, pelos mdicos pesquisadores nazistas, cujos crimes foram revelados nos julgamentos realizados na cidade de Nuremberg. 6 Promulgada em 1954, encontra-se na sua 8a reviso.

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    humanos deve basear-se na experimentao animal,

    adequadamente conduzida. Um aspecto da Declarao de Helsinki

    pouco mencionado o fato de possuir um artigo que salvaguarda o

    bem-estar dos animais (GALLEY, 2010). A 1 fase do ensaio clnico

    o incio da experimentao em humanos, geralmente sadios. O

    pressuposto bsico a ser cumprido para o incio da experimentao

    em humanos a disponibilidade de conhecimento sobre o benefcio

    potencial de uma interveno proveniente de estudos pr-clinicos

    (ROMERO, 2007).

    MODELO ANIMAL E OS PRINCPIOS TICOS DA

    EXPERIMENTAO ANIMAL

    H muito tempo, modelos de animais so utilizados para

    testar vacinas candidatas para doenas como leishmaniose,

    dengue, febre amarela e tuberculose. No caso da tuberculose, por

    exemplo, os animais mais frequentemente utilizados so:

    camundongos, porquinhos-da-ndia (cobaias) e coelhos. Cada um

    desses modelos tem seu mrito e nenhum deles mimetiza

    completamente a doena humana. Diferentes modelos animais so

    utilizados em funo de diversos fatores, dentre eles, a

    disponibilidade de espao fsico e o treinamento da equipe

    responsvel pela manuteno dos animais e pelos procedimentos

    experimentais.

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    Algumas vezes, tanto na linha de produo de animais de

    laboratrio7 quanto nos biotrios de experimentao8, o animal

    associado ao atributo de insumo biolgico, reagente biolgico ou

    tubo de ensaio. De modo similar, sujeitos que participam das

    pesquisas biomdicas so associados figura de cobaias humanas.

    Essas imagens, que muitas vezes se cristalizam no processo de

    enculturao das prticas da pesquisa, expressam a naturalizao

    do uso dos animais humanos e no-humanos. As relaes

    homem-animal e homem-homem na pesquisa biomdica traduzem

    prticas de ensino-aprendizagem da investigao experimental,

    associadas aos diferentes nveis de integrao das dimenses

    cientfica, tica, econmica e legal. Os limites no uso de animais

    humanos e no-humanos so estabelecidos pelo repertrio de

    valores, cdigos, regras, normas, costumes e leis que realizam o

    controle social da prtica da pesquisa biomdica. No Brasil, os

    animais humanos que se submetem a experimentao so

    protegidos pela Resoluo 196/1996, do Conselho Nacional de

    Sade. O sistema brasileiro de avaliao tica das pesquisas com

    humanos consiste, basicamente, de uma Comisso Nacional de

    tica em Pesquisa (CONEP) que coordena a rede de Comits de

    tica em Pesquisa (CEPs) instaurados no pas. As diretrizes deste

    Sistema harmonizam os princpios bioticos da autonomia,

    7 O termo animal de laboratrio designa qualquer animal utilizado em pesquisa ou ensino. 8 Biotrio de experimentao o local em que os experimentos com animais so realizados.

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    beneficncia, no-maleficncia e justia, que subsidiam a avaliao

    tica das pesquisas submetidas aos CEPs. Os princpios da

    confidencialidade, privacidade, voluntariedade, equidade e no-

    estigmatizao representam salvaguarda adicional para proteger os

    participantes da pesquisa e garantir direitos e deveres de

    cientistas, instituies, patrocinadores e Estado.

    No caso dos animais no-humanos, as pesquisas so

    eticamente orientadas pela adoo do princpio dos trs erres

    (3Rs), elaborado pelo zoologista William M.S.Russel e o

    microbiologista Rex L. Burch, em 1959, em seu livro Principles of

    Humane Experimental Technique. Consiste em reduzir o nmero de

    animais utilizados nos experimentos (R1) sem comprometer a

    integridade cientfica da investigao, refinar as tcnicas de

    criao, manuteno e utilizao dos animais (R2) e repor ou

    substituir os animais mais sensveis dor, stress e sofrimento por

    outros menos sensveis ou por mtodos alternativos, in vitro e in

    silico (R3). No Brasil, o Colgio Brasileiro de Experimentao

    Animal (COBEA/SBCAL) adaptou esses princpios e os divulgou

    para as instituies de pesquisa e ensino no incio da dcada de

    1990, sob o ttulo de Princpios ticos na Experimentao Animal.

    No Brasil, as primeiras Comisses de tica no Uso de

    Animais (CEUAs) comearam a ser implantadas pelas

    universidades e instituies de pesquisa em meados da dcada de

    1990. Fundamentadas nos Princpios ticos na Experimentao

    Animal, as CEUAs iniciaram suas atividades defendendo um papel

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    educativo, cujas aes e resultados eram dependentes do grau de

    apoio dos nveis estratgicos das instituies (direo, presidncia,

    reitoria). At o incio do sculo XXI, porm, a influncia das CEUAs

    sobre as prticas cientficas da pesquisa biomdica brasileira era

    tmida. Saul Goldenberg, fundador e editor da Revista Acta

    Cirrgica Brasileira at meados dos anos 2000, registrou essa

    situao por meio da anlise dos artigos submetidos a este

    peridico (GOLDEMBERG, 2000). Para Goldenberg, no bastava

    instruir os autores sobre a necessidade de cumprir os preceitos

    ticos na experimentao animal, era necessrio tambm exigir

    carta de aprovao do Comit de tica em Experimentao Animal.

    O autor cobrava tambm, semelhana da pesquisa em seres

    humanos, uma Resoluo Nacional para proteo dos animais

    envolvidos em pesquisas.

    A evidncia de que a anlise de protocolos de pesquisa com

    animais no humanos pelos CEPS uma prtica familiar em

    algumas instituies de pesquisa e ensino brasileiras a consulta

    feita ao CONCEA sobre a obrigatoriedade da comisso de tica

    animal estar separada da humana. A resposta publicada em Nota

    Tcnica (001-2009/SEPED/MCT) afirma que no h impedimento

    desde que as comisses de tica atendam regulamentao sobre

    o uso cientfico de animais.

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    A LEI 11.794/2008 E SUA REGULAMENTAO

    Embebidas nesse quadro jurdico esto questes

    relacionadas fiscalizao das atividades cientficas com animais,

    ao exerccio profissional, formao de tcnicos e pesquisadores e

    busca de mtodos alternativos experimentao animal, como

    obriga a Lei de Crimes Ambientais.

    A Lei Arouca estabelece as condies de uso dos animais na

    pesquisa, torna obrigatria a implantao de CEUAs pelas

    instituies que criam ou utilizam animais para ensino e cria o

    CONCEA.

    No Brasil, a primeira lei para normatizar a prtica didtico-

    cientfica da vivisseco de animais foi sancionada em 8 de maio de

    1979 (Lei no 6.638/1979). Contudo, sua implementao foi

    debilitada por falta de regulamentao. O uso de animais na

    pesquisa cientfica foi regulado na Constituio Federal (CF/1988)

    e em outros dispositivos jurdicos relacionados s noes de

    crueldade e maus-tratos e preservao da fauna (incluindo o

    trfico de animais). O artigo 225 da CF/1988 estabelece que a

    coletividade e o Poder Pblico (Unio, estados e municpios) so

    responsveis por sua proteo, e o Poder Judicirio tem a tutela

    genrica da fauna como elemento da natureza. A Lei 9.605/1998

    (Lei de Crimes Ambientais) estabelece pena de deteno, de trs

    meses a um ano, e multa para quem praticar ato de abuso, maus-

    tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domsticos, nativos ou

  • II COLQUIO INTERNACIONAL NEPC/IEAT Biotecnologias e Regulaes

    exticos (art.32), especificando que incorre nas mesmas penas

    quem realiza experincia dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda

    que para fins didticos ou cientficos, quando existirem recursos

    alternativos (1).

    A Lei n. 11.794/2008 regulamenta o Captulo VI, art. 225,

    1, inc. VII, da CF/88, estabelecendo procedimentos para o uso

    cientfico de animais vertebrados (no-humanos) e vivos. A Lei no

    11.794/2008, que revogou a Lei no 6.638/1979, resulta de um

    projeto de lei (PL) apresentado pelo deputado Srgio Arouca

    Cmara dos Deputados, em 1995. O PL no 1.153/1995 tramitou

    por 13 anos pelo Congresso Nacional antes de ser aprovado.

    Durante este perodo, dois projetos de lei e trs emendas foram

    adicionados ao PL original e analisados pela Cmara dos

    Deputados. Ao longo desse processo, em meados da dcada de

    2000, a oposio experimentao animal aumentou.

    Simultaneamente, nesse perodo, as sociedades cientficas

    preocupadas com as leis municipais rigorosas que ameaavam a

    utilizao de animais na pesquisa (ENSERINK, 2008)

    intensificaram as presses para que o PL fosse votado e aprovado.

    Os interesses de atores envolvidos na proteo e no uso cientfico

    de animais e o jogo parlamentar configuraram o atual regime

    regulatrio da experimentao animal no Brasil. Contudo, o texto

  • II COLQUIO INTERNACIONAL NEPC/IEAT Biotecnologias e Regulaes

    final do que veio a ser a Lei Arouca no mantm qualquer

    semelhana com o PL original, a no ser o seu sumrio9.

    Logo aps ter sido sancionada, os pesquisadores

    consideraram a sano da Lei Arouca um avano inestimvel

    (MARQUES; MORALES; PETROIANU, 2009). Entretanto, como

    mencionamos em outros trabalhos (MACHADO; FILIPECKI;

    TEIXEIRA, 2009), o texto legal deixou em aberto questes

    desafiadoras. Uma delas a necessidade de integrar a Lei no

    11.794/2008 ao amplo quadro jurdico relacionado utilizao de

    animais selvagens e animais de laboratrio, que forma um sistema

    de regulao importante para a investigao biomdica (FILIPECKI;

    MACHADO; VALLE; TEIXEIRA, 2010). Embebidas nesse quadro

    jurdico esto questes relacionadas fiscalizao das atividades

    cientficas com animais, ao exerccio profissional10, formao de

    tcnicos e pesquisadores e busca de mtodos alternativos

    experimentao animal, como obriga a Lei de Crimes Ambientais.

    A Lei Arouca estabelece as condies de uso dos animais na

    pesquisa, torna obrigatria a implantao de CEUAs pelas

    instituies que criam ou utilizam animais para ensino e cria o

    CONCEA, que um Conselho normativo, consultivo, deliberativo e

    de apelao sob a presidncia do Ministro de Cincia e Tecnologia.

    9 Para uma anlise detalhada das mudanas sofridas no texto do Projeto de Lei ao longo do processo legislativo de tramitao na Cmara dos Deputados e no Senado Federal, at chegar redao do texto final da Lei sancionada pelo Presidente da Repblica, ver Machado et al. (2010). 10 Por exemplo, de acordo com o Conselho Federal de Medicina Veterinria todos os procedimentos anestsicos e/ou cirrgicos devem ser realizados exclusivamente pelo mdico-veterinrio.

  • II COLQUIO INTERNACIONAL NEPC/IEAT Biotecnologias e Regulaes

    O Decreto que a regulamenta (Decreto 6.899/09) define as normas

    de funcionamento do CONCEA, altera o texto sobre as atribuies

    da CEUA e cria o Cadastro das Instituies de Uso Cientfico de

    Animais (CIUCA), base de dados eletrnica na qual as instituies

    de criao e pesquisa com animais devem se registrar a fim de

    requerer acreditao do CONCEA. A Resoluo Normativa n. 01

    (RN1) do CONCEA, publicada em 9 de julho de 2010, dispe sobre

    a instalao e o funcionamento das CEUAs. A RN1 amplia as

    regras sobre a composio da CEUA e intensifica suas atribuies.

    Permite que a Instituio estabelea um convnio especfico com

    outra credenciada no CONCEA, quando encontrar restries

    materiais ou humanas para criar sua prpria CEUA. Desse modo,

    torna possvel que uma instituio que utilize animais vertebrados

    solicite o seu credenciamento ao CONCEA sem criar previamente

    uma CEUA desde que se vincule previamente a outra instituio

    credenciada. Alm disso, a RN1 cria um mecanismo de contorno

    com relao obrigatoriedade de um representante (e seu

    suplente) das sociedades protetoras na composio da CEUAs. As

    entidades podem convidar consultores ad hoc, com notrio saber e

    experincia em uso tico de animais, enquanto no houver

    indicao formal de sociedades protetoras de animais, legalmente

    constitudas e estabelecidas no Pas, para represent-las na

    CEUA11.

    11 Para uma anlise detalhada da Resoluo Normativa N. 01/10 ver Filipecki e Machado, 2010.

  • II COLQUIO INTERNACIONAL NEPC/IEAT Biotecnologias e Regulaes

    O Decreto 6.899/2009 atribuiu a CEUA a incumbncia de

    estabelecer programas preventivos e de inspeo para garantir o

    funcionamento e a adequao das instalaes sob sua

    responsabilidade, dentro dos padres e normas do CONCEA (art.

    44, VII), e a RN1 definiu a periodicidade anual das inspees (art.

    6, VIII). Dirigentes, criadores e usurios de animais de pesquisa

    no devem, portanto, ignorar as implicaes do novo marco

    regulatrio para a instituio e, particularmente, seus efeitos sobre

    o modo de funcionamento das CEUAs.

    O PAPEL DA CEUA NA PROTEO DO BEM-ESTAR ANIMAL

    Dentro da organizao administrativa local, a CEUA o

    rgo responsvel pela proteo e bem-estar dos animais de

    pesquisa no-humanos. De modo similar aos CEPs, as CEUAs

    devem examinar previamente os protocolos experimentais ou

    pedaggicos aplicveis aos procedimentos de ensino e projetos de

    pesquisa cientfica a serem realizadas na instituio qual esteja

    vinculada. Contudo, as CEUAs so obrigadas a cumprir e fazer

    cumprir, no mbito de suas atribuies, as disposies da Lei e

    das demais normas aplicveis utilizao de animais para ensino

    e pesquisas, especialmente nas resolues do CONCEA. Portanto,

    alm dos aspectos ticos, a CEUA deve determinar a

    compatibilidade entre os procedimentos de criao, manuteno e

    utilizao e a legislao aplicvel.

  • II COLQUIO INTERNACIONAL NEPC/IEAT Biotecnologias e Regulaes

    A avaliao tica de um protocolo de pesquisa que utiliza

    animais pressupe uma anlise do domnio de conhecimento que o

    responsvel pelo projeto de pesquisa detm sobre o modelo animal

    que utiliza e sobre o desenho experimental que prope. Portanto, a

    anlise reside na observao da associao entre a formao

    acadmica, a prtica cientfica e a preocupao do pesquisador

    sobre o bem-estar do animal que utiliza. Como no poderia deixar

    de ser, o perodo de transio para a consolidao do novo marco

    regulatrio, conjugado s fragilidades e complexidades dos

    dispositivos jurdicos, apontadas anteriormente, tem influncia

    direta sobre a dinmica das CEUAs. Nosso argumento baseia-se

    em observaes sobre as modificaes dos protocolos de pesquisa

    sugeridas pelos membros da CEUA de uma Instituio Pblica de

    Pesquisa em Sade (IPPS) antes da aprovao dos projetos de

    pesquisa para a concesso de licena12. Identificamos uma srie de

    dificuldades enfrentadas pelos membros da CEUA em seu trabalho

    de avaliao dos projetos de pesquisa, sintetizadas a seguir. Os

    pesquisadores tendem a traduzir os questionamentos e/ou as

    recomendaes feitas pela CEUA sobre o projeto submetido

    avaliao como uma interveno em suas prticas de pesquisa.

    Assim, a necessidade de um estudo piloto ou a realizao de uma

    etapa anterior de pesquisa in vitro, ou a reviso do modelo animal,

    ou a reviso do desenho experimental e dos procedimentos,

    visando o bem-estar animal, so interpretadas como julgamento de

    12 Para uma anlise detalhada ver Filipecki; Machado; Teixeira 2010.

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    mrito cientfico, desconhecimento do relator sobre a rea e, at

    mesmo, incompetncia. De modo anlogo, quando os membros da

    CEUA recebem os protocolos e encontram uma redao truncada,

    pouco precisa, confusa, sugerindo o desconhecimento do

    pesquisador sobre a etologia do animal e sobre os efeitos que a

    manipulao precria do animal traz para os resultados da

    pesquisa, as crticas ao proponente do projeto so igualmente

    contundentes. Em termos administrativos, para os pesquisadores,

    a lentido ou a falta de agilidade da CEUA implica em limitar sua

    possibilidade de competir em um mercado cientfico cujo ciclo de

    produo de informaes e publicao dos resultados se torna

    cada vez mais curto, sendo a reduo do tempo desse ciclo vital

    para se manter na concorrncia entre grupos, laboratrios e

    instituies de pesquisa pela precedncia de novos conhecimentos

    sobre o tema pesquisado e novas tcnicas de laboratrio.

    Pressionado por uma lgica de produo cientfica acelerada,

    imposta pelas agncias de fomento e avaliao das pesquisas e

    pesquisadores, quanto maior a dificuldade que o pesquisador

    encontrar no conjunto das atividades que realiza, maior sua

    intolerncia e impacincia com as demandas e o ritmo de trabalho

    da CEUA. No Brasil, a resistncia dos pesquisadores maior em

    funo de outras dificuldades enfrentadas, tais como, limite nos

    valores dos recursos que podem ser solicitados na compra de

    insumos e equipamentos para a pesquisa, mirade de legislaes e

    normas a serem observadas na realizao do projeto muitas vezes

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    conflituosas entre a compra, a importao, o envio de material

    para anlise no exterior, coleta e transporte de animais

    acrescidas das fragilidades e limitaes referentes qualidade dos

    animais criados para a pesquisa e a gesto local de insumos e

    produtos.

    Alm disso, o pesquisador sabe que precisa coordenar a

    submisso do projeto de pesquisa agncia de amparo e fomento

    com a submisso e aprovao do projeto pela CEUA. Mais ainda, a

    realizao de projetos de pesquisa sem a aprovao da CEUA, ou

    que tenha sido suspensa pela CEUA, representar uma ameaa

    para os pesquisadores tendo em vista que est previsto no art. 23

    da Lei 11.794/2008 que o CONCEA recomendar s agncias de

    amparo e fomento pesquisa o indeferimento de projetos por esses

    motivos.

    A operacionalizao das determinaes legais de controle e

    monitoramento das atividades de criao e uso cientfico de

    animais pelas CEUAs, conforme estabelecido pela RN1 do

    CONCEA, depende, de modo similar s regras de biossegurana

    (Resolues Normativas 1 e 2 da CTNBio), de procedimentos

    padronizados, da capacitao dos usurios (e dos membros da

    CEUA) e de infraestrutura adequada. Por exemplo, quando a CEUA

    solicita que o responsvel pelo projeto de pesquisa descreva como

    ser realizada a conteno do animal, a eutansia, e outros

    procedimentos em que o animal ser submetido dor, ao

    sofrimento e a angstia, o que est em jogo, em ltima anlise, a

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    convergncia (ou a divergncia) entre a capacidade e habilidade do

    usurio e a infraestrutura local.

    A DESREGULAO DENTRO DA REGULAO: PESQUISA

    BIOMDICA ACADEMIA CONTROLADA E PESQUISA BIOMDICA

    INDUSTRIAL LIVRE

    Na descrio e anlise do processo regulatrio de uso de

    animais no ensino e uso de animais em experimentao cientfica,

    digno de nota o movimento sui generis de desregulao dentro da

    regulao da pesquisa biomdica a ser abordado nesta ltima

    seo.

    Em 15 de dezembro de 2009, foi encaminhada ao Consultor

    Jurdico do MCT uma nota tcnica elaborada pela Assessoria do

    CONCEA (Nota Tcnica No 001/2009/SEPED/MCT). Tratava-se de

    um conjunto de 20 questes, abrangendo diversas dvidas

    relacionadas criao de CEUAs e registro no CIUCA, enviadas por

    mensagem eletrnica em 11 de setembro de 2009, pelo presidente

    do COBEA/SBCAL, para a Secretaria de Polticas e Programas de

    Pesquisa e Desenvolvimento (SEPED), Coordenao Geral de

    Biotecnologia e Sade. A Nota Tcnica continha os esclarecimentos

    solicitados e recebeu o Parecer No 083/2009/LML/COMJUR do

    Assistente Jurdico do MCT. O Parecer foi aprovado em 01 de

    fevereiro de 2010 pela Consultoria Jurdica do MCT, Advocacia-

  • II COLQUIO INTERNACIONAL NEPC/IEAT Biotecnologias e Regulaes

    Geral da Unio, e os esclarecimentos foram comunicados ao

    solicitante em 5 de fevereiro de 2010.

    Em novembro de 2010, na 10 Reunio Ordinria do

    CONCEA, a Nota Tcnica foi colocada na pauta na rubrica Outros

    Assuntos pelo prprio autor da Consulta (quando era Presidente

    da SBCAL), e membro do CONCEA, sob a justificativa de que em

    um encontro cientfico em Recife, que contou com a participao de

    integrantes do CONCEA, foi apontado nos debates que algumas

    das respostas dadas pelo Parecer no estavam coerentes com a

    realidade. O tema suscitou uma discusso acalorada e foi

    deliberado que o assunto seria pautado na prxima reunio do

    CONCEA. Na 10 Reunio um dos membros do Conselho havia

    ponderado que o CONCEA no deveria interromper o andamento

    de suas atividades em funo de um equvoco passado. Em

    seguida, na 11 Reunio Ordinria do CONCEA, foi ratificado o

    Parecer da CONJUR de que a produo comercial de quaisquer

    produtos ou insumos 17 questo da Consulta no de

    competncia legal do CONCEA. A concluso baseou-se em um

    Paralelo com o PLS No 73/2007 e consideraes sobre a definio

    de atividades de pesquisa cientfica contida no Decreto n.6.899, de

    2009. A esse respeito, duas observaes se impem. A primeira,

    que na poca da Consulta, a Coordenao do CONCEA ainda no

    havia sido instalada. A segunda sobre a pergunta da Consulta e a

    resposta do Parecer que deram origem ao debate apresentadas a

    seguir.

  • II COLQUIO INTERNACIONAL NEPC/IEAT Biotecnologias e Regulaes

    Pergunta:

    Tenho uma empresa que produz soro antiofdico.

    Utilizamos cobras, cavalos e roedores para produzir o soro.

    Precisamos da CEUA e cadastro no CIUCA.

    Resposta:

    A Lei 11.974/08 [e no Lei 11.794/08] em seu artigo 1

    dispe: Art. 1 A criao e a utilizao de animais em atividades de

    ensino e pesquisa cientfica em todo territrio nacional, obedece aos

    critrios estabelecidos nesta Lei. Portanto, a criao de animais

    para a produo comercial de soro antiofdico ou de qualquer outro

    imunobiolgico no consta como atividade contemplada pela Lei

    11974/08. Por essa razo, instituies cuja finalidade a produo

    comercial de imunobiolgicos, no precisam criar uma CEUA, nem

    cadastrar-se no CIUCA.

    A resposta do Parecer no faz meno ao pargrafo, do

    mesmo artigo, que define atividades de pesquisa cientfica como

    todas aquelas relacionadas com cincia bsica, cincia aplicada,

    desenvolvimento tecnolgico, produo e controle da qualidade de

    drogas, medicamentos, alimentos, imunobiolgicos, instrumentos,

    ou quaisquer outros testados em animais, conforme definido em

    regulamento prprio (2). O Decreto 6.899/2009, art. 2, inciso

    III, repete a definio de atividades de pesquisa cientfica da Lei e a

    complementa com o Pargrafo nico: o termo pesquisa cientfica

    adotado neste Decreto inclui as atividades de desenvolvimento

  • II COLQUIO INTERNACIONAL NEPC/IEAT Biotecnologias e Regulaes

    tecnolgico, de acordo com a definio constante do 2 do art. 1

    da Lei no 11.794, de 2008, e a do inciso III deste artigo.

    Mesmo que as empresas fizessem uso dos animais apenas

    para o controle da qualidade da produo de frmacos e

    imunobiolgicos, o texto da Lei obriga a criao da CEUA e a

    submisso de protocolos. Alm disso, as empresas do setor

    biotecnolgico so as que lideram o desenvolvimento de novos

    produtos, por exemplo, no caso da indstria farmacutica. O

    processo de desenvolvimento envolve experimentao com animais

    (fase pr-clnica) e no humanos (fase clnica). H casos em que os

    efeitos adversos ocorridos na fase I obrigam uma reviso da fase

    anterior, e at mesmo identificar as fragilidades do projeto e a

    responsabilidade dos envolvidos na anlise.

    CONSIDERAES FINAIS

    Ao buscar responder s questes que esto na origem deste

    trabalho, constatamos que um dos grandes desafios do CONCEA

    o de contribuir para o aperfeioamento do processo legislativo

    harmonizando os inmeros e entrelaados dispositivos legais sem

    prejudicar a investigao biomdica e de acordo com o que

    disciplina a Lei Complementar no 95/98 sobre a elaborao, a

    redao, a alterao e a consolidao das leis, conforme determina

    o pargrafo nico do artigo 59 da Constituio Federal.

  • II COLQUIO INTERNACIONAL NEPC/IEAT Biotecnologias e Regulaes

    Nesse sentido, sugerimos que o primeiro passo do CONCEA

    seja a adoo de procedimentos de verificao da boa tcnica

    legislativa de redao de textos nos quais fossem conceituados os

    diversos termos introduzidos no novo marco regulatrio e

    apresentasse, ao mesmo tempo, as suas polticas e programas para

    a experimentao animal. Ironicamente, esse no foi o caso da

    definio de atividades de pesquisa, apesar de sua abrangncia. As

    prticas zootcnicas relacionadas agropecuria foram

    explicitamente excludas desse conjunto (3). O Parecer que

    justifica tal excluso desonera as indstrias produtoras e as

    instituies que realizam testes de controle de qualidade dos

    custos operacionais e administrativos embutidos na conformao

    de suas prticas ao novo marco que regulamenta o uso de animais

    no-humanos. Significaria, portanto, que estamos diante do

    enfraquecimento do elo entre a pesquisa pr-clnica e a fase I da

    pesquisa clnica? Com certeza tal iseno da cadeia de produo

    biotecnolgica enfraquece os investimentos em mtodos

    alternativos pesquisa com animais. Mas, ao mesmo tempo, pode

    atrair empresas internacionais do setor que enfrentam em seus

    pases o peso da sobrecarga legal. Quem sabe as assimetrias

    geradas entre as atividades de pesquisa e ensino, o

    desenvolvimento tecnolgico e a produo comercial acabem

    acelerando o deslocamento do mundo da pesquisa "sem fins

    comerciais" para o mundo da atividade econmica. Assim, a

    poltica cientfica e tecnolgica do governo federal estaria

  • II COLQUIO INTERNACIONAL NEPC/IEAT Biotecnologias e Regulaes

    caminhando efetivamente na direo do modelo norte americano

    dominante de produo de conhecimentos cientficos e de

    tecnologias que aproximou de forma intensa, ao longo das ltimas

    quatro dcadas, o mundo da pesquisa e o mundo da economia.

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    1.2. As Deficincias do argumento da

    potencialidade contra o uso de embries

    humanos.

    Lincoln Frias1

    Resumo O artigo identifica as principais falhas do argumento de que embries humanos no devem ser descartados ou destrudos porque eles tm o potencial para se tornar uma pessoa. A primeira falha supor que a pessoa em potencial de alguma maneira j existe de alguma maneira no embrio. A segunda a suposio de que o que est em potencial tem tanto valor quanto o que foi efetivado. A terceira falha que nem todos os embries tm o potencial para se tornar pessoas. Estima-se que de 45 a 75% de todos os embries fecundados naturalmente no conseguem chegar at ao final da gestao seja por anomalias cromossmicas seja por falta de condies uterinas adequadas. Mesmo deixando esse aspecto de lado, parece equivocado considerar que embries in vivo e in vitro esto na mesma situao, pois enquanto os primeiros se desenvolvero a menos que haja alguma interveno, os ltimos no se desenvolvero a menos que haja alguma interveno, isto , que recebam o meio de cultura adequado e sejam implantados apropriadamente. Isso serve tambm para questionar a distino entre potencial extrnseco e intrnseco, com a qual os defensores do argumento procuram evitar a objeo de que os gametas tambm tm potencial para ser pessoa. A quinta falha do argumento colocada pelo caso da gemeao e fuso de embries, o que mostra que a potencialidade 1 Professor da Unifenas e pesquisador do NEPC.

  • II COLQUIO INTERNACIONAL NEPC/IEAT Biotecnologias e Regulaes

    uma propriedade to imprecisa que os embries tm o potencial para se tornar seja mais de uma pessoa seja menos de uma pessoa. Diante de tudo isso, razovel dizer que o Argumento da Potencialidade invlido e no merece a aceitao pblica que tem. Palavras-chave: Embries; Potencialidade; Clulas-tronco.

    Abstract The article identifies the main flaws of the argument that human embryos should not be discarded or destroyed because they have the potential to become a person. The first flaw is to assume that the potential person already exists in some way in the embryo. The second is the assumption that what exists in potential is as valuable as what is accomplished. The third flaw is that not all embryos have the potential to become persons. It is estimated that 45-75% of all naturally fertilized embryos fail to reach the end of pregnancy - either due to chromosomal abnormalities or due to lack of adequate uterine conditions. Even leaving this aspect aside, it seems a mistake to consider that embryos in vivo and in vitro are in the same situation, because while the former will develop unless there is some intervention, the latter will not develop unless there is some intervention, that is, to receive the appropriate culture medium and to be implanted appropriately. This also serves to question the distinction between extrinsic and intrinsic potential, with which the proponents of the argument seek to avoid the objection that the gametes have the potential to be a person. The fifth flaw is the argument raised by the case of twinning and fusion of embryos, showing that the potentiality is a property so inaccurate that embryos have the potential to become both more and less than one person. Given all this, it is reasonable to say that the Potentiality Argument is invalid and not worthy of the public acclaim it has. Keywords: Embryos; Potentiality; Stem cells.

  • II COLQUIO INTERNACIONAL NEPC/IEAT Biotecnologias e Regulaes

    Muitas pessoas consideram imoral que embries humanos

    sejam destrudos para pesquisa, fertilizao in vitro ou derivao de

    clulas-tronco. comum que justifiquem sua opinio dizendo que

    o embrio j um ser humano. Porm, por mais que aquele

    conjunto de clulas contenha os cromossomos que definem a

    espcie homo sapiens sapiens, isso no basta para garantir que ele

    merea considerao moral. Se o que garantisse valor moral aos

    humanos fosse apenas o pertencimento espcie humana, isso

    seria apenas uma preferncia injustificada pelo prprio grupo, uma

    forma de discriminao injusta, chamada pelos defensores dos

    direitos dos animais no-humanos de especismo (em analogia com

    o racismo e o sexismo). preciso que se indique qual (ou quais)

    propriedade dos seres humanos faz com que meream que tenham

    seus interesses respeitados.

    O fato de que seres humanos em geral so pessoas (seres

    que possuem racionalidade, autonomia e autoconscincia em

    nveis considerveis) o candidato mais votado entre os filsofos,

    pois imprescindvel para que se seja um agente moral pleno. Os

    embries humanos, entretanto, certamente no so pessoas, pois

    esto longe de possuir as caractersticas que constituem a

    personalidade moral. Por isso, aqueles que se opem destruio

    de embries (os concepcionistas) focam no potencial que esses

    organismos tm de se tornarem pessoas. Isso d origem ao

    Argumento da Potencialidade: embora os embries humanos ainda

  • II COLQUIO INTERNACIONAL NEPC/IEAT Biotecnologias e Regulaes

    no sejam pessoas, eles so pessoas em potencial. Quer dizer,

    dadas as condies necessrias, todos os embries se

    transformaro em pessoas. Mesmo que matar embries no seja

    errado por no ser equivalente a matar uma pessoa (porque o

    embrio no uma pessoa) e, portanto, no pode ser considerado

    errado por este motivo, ainda assim errado porque destri o

    potencial do embrio (de se tornar uma pessoa). Se o status dos

    adultos deriva do fato de que so pessoas, o dos embries deriva do

    fato de que tm o potencial para serem pessoas, so pessoas em

    potencial ou pessoas potenciais. Em resumo, o que h de errado

    em matar embries a frustrao de uma potencialidade, no a

    morte de uma pessoa. Esse argumento soa intuitivo para muitas

    pessoas. Mas isso no impede que ele tenha deficincias

    suficientes para torn-lo incuo. O restante desse artigo procura

    apresentar essas falhas2.

    DUAS CONFUSES

    Porm, antes de apontar as deficincias mais srias,

    preciso evitar duas confuses. A primeira a ideia de que a pessoa

    em potencial j existe de alguma maneira no embrio.

    Embora haja muita hostilidade da literatura liberal biotica

    contra o argumento da potencialidade, ele tem muito apelo

    popular. Talvez a hostilidade dos especialistas a esse argumento se

    2 Esse artigo se baseia em (FRIAS, 2010).

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    justifique porque provvel que boa parte de seu apelo derive da

    idia de que a pessoa j existe como embrio, restando a ela

    apenas se desenvolver. Isso se baseia em crenas no-morais no-

    falsificveis, p.ex., a ideia de que temos uma alma, de que ela j

    est presente desde a concepo e de que as pessoas j existem

    antes mesmo de sua concepo. Por detrs dessas crenas podem

    estar raciocnios invlidos, tais como:

    se existir bom, no existir ruim; logo, errado evitar

    que uma pessoa exista;

    a pessoa em potencial j existe, mat-la prejudic-la;

    se foi melhor para o adulto X que o embrio que ele foi

    no tenha sido morto, ento matar o embrio Z agora,

    prejudica o adulto Z que existir;

    Por mais legtimas que sejam as crenas religiosas, elas no

    podem ser base para uma argumentao ou raciocnio que se

    pretende universal. No h como decidir se almas existem ou a

    partir de quando elas estaro presentes no organismo (caso

    existam) ou se elas existem antes do entrar no corpo. O fato de que

    existir seja bom no implica que no existir seja ruim, pois no

    existindo impossvel ter qualquer experincia, seja de bondade ou

    de ruindade. Pelo mesmo motivo, o fato de que agora o adulto X

    prefira que o embrio que ele foi no tenha sido morto, no implica

    que quando era um embrio ele preferisse se transformar em um

    adulto. A pessoa em potencial ainda no existe enquanto pessoa,

    ela apenas possvel, por isso mesmo ela chamada de potencial.

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    A segunda confuso a ser evitada a suposio de que o

    que est em potencial tem tanto valor quanto o que foi efetivado.

    Uma formulao muito comum do Argumento da Potencialidade

    diz que se pessoas possuem direito vida, ento entidades que em

    condies normais de desenvolvimento se transformaro em

    pessoas tambm possuem direito vida. Para que seja verdadeira,

    contudo, essa inferncia tem que pressupor que o que est em

    potencial tem tanto valor quanto o que efetivo. Com esse

    pressuposto, o seguinte raciocnio vlido:

    P1- Pessoas tm direito vida.

    P2- Embries so pessoas em potencial.

    P3- O que est em potencial deve ser contado como o que

    efetivo.

    C- Embries tm direito vida.

    O problema que, embora vlido, o raciocnio no

    verdadeiro, porque P3 no verdadeira. Por definio, pessoas

    potenciais no so pessoas. Muita gente ao dizer que o embrio

    tem o potencial de se tornar pessoa, um ser cuja natureza se

    tornar uma pessoa completa, considera que ele uma pessoa

    incompleta, em desenvolvimento e desse modo j , de algum

    modo, uma pessoa. Por julgar que a pessoa est em estado latente

    ou oculto na pessoa potencial, concluem que a pessoa potencial

    tem os mesmos direitos que se conceder pessoa completa.

    Dizer que X tem o potencial de se tornar Y, parece implicar

    que X j Y de algum modo. Mas se parafrasearmos isso, dizendo

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    que provvel que X se torne um Y, fica claro que X no Y, que o

    status de Y no necessariamente se aplica a X. Por exemplo, Lula

    certamente tinha o potencial para se tornar Presidente da

    Repblica desde sua infncia no serto pernambucano, isso,

    porm, no lhe conferia nenhuma das prerrogativas presidenciais.

    Dizer que X tem o potencial de se tornar Y, quer dizer apenas que

    possvel que X se torne Y, no que ele j Y.

    Outro exemplo. No comeo do Campeonato Brasileiro todos

    os times so potenciais vencedores. Embora o Cruzeiro, p.ex., seja

    o time com mais probabilidade de vencer nesse sentido, teria

    mais potencial do que os outros seu nome ainda no pode ser

    escrito na taa. Se o potencial tem importncia, ele deve ter

    importncia apenas enquanto potencial, no como se ele j fosse

    realizado.

    possvel reformular o argumento da seguinte maneira: a

    potencialidade tem valor moral e que por isso errado frustrar uma

    potencialidade. Se uma pessoa algo que tem valor, errado matar

    um embrio porque isso impediria que uma pessoa existisse, pois o

    embrio tem o potencial de se tornar uma pessoa. A questo

    importante que se coloca : por que ruim impedir que exista uma

    nova pessoa?

    H trs opes de resposta. A primeira :

    a) porque seria bom para o embrio se transformar em uma

    pessoa. Mas o embrio, aquela entidade de apenas algumas

    clulas, certamente no possui desejos, planos ou expectativas

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    pelo menos, no de maneira diferente dos que as bactrias tm. Se

    ele no possui esse tipo de contedo mental, o que acontecer com

    ele no ser bom ou ruim da maneira que pode ser bom ou ruim

    para um estudante passar em um concurso, mas sim da maneira

    que bom ou ruim para uma planta ficar ou no ao sol. Portanto,

    transformar-se em uma pessoa no pode ser bom para o embrio

    em um sentido to forte que seria suficiente para explicar o que

    torna ruim impedir que uma pessoa exista. No final das contas,

    transformar-se ou no em uma pessoa indiferente para o

    embrio.

    Segundo outra viso, ruim impedir que exista uma nova

    pessoa porque existir seria bom para a pessoa potencial. Quando

    se diz que seria bom para o embrio se tornar uma pessoa parece

    estar implcito que, caso se evite que isso acontea, a pessoa

    potencial seria prejudicada. No h como isso ser verdadeiro

    porque a pessoa potencial no existe e no h como prejudicar

    quem no existe nem nunca existir. Eu poderia ser prejudicado se

    algum dano fosse feito ao embrio do qual eu surgi, mas isso

    deriva dos direitos que adquiri depois de me tornar uma pessoa,

    no enquanto havia apenas o embrio. Se o embrio no houvesse

    dado origem a mim, no haveria problema em danific-lo.

    Uma ltima interpretao alternativa diz que impedir que

    uma pessoa exista ruim porque a nova pessoa beneficiaria as

    pessoas que j existem. Essa resposta insatisfatria porque

    simplesmente no consideramos obrigatrio que existam tantas

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    pessoas quanto for possvel, no h nenhuma regra moral que

    obrigue as pessoas a terem tantos filhos quanto seja possvel. Se

    isso verdade, no h explicao disponvel sobre porque errado

    frustrar o potencial do embrio de se tornar uma pessoa.

    Mas no so apenas essas confuses que tornam o

    Argumento da Potencialidade inaceitvel: como veremos, trs fatos

    biolgicos diminuem a plausibilidade desse argumento.

    EMBRIES IN VIVO E EMBRIES IN VITRO

    A terceira falha do Argumento da Potencialidade deriva do

    fato de que equivocado considerar que embries in vivo e in vitro

    estejam na mesma situao, pois enquanto os primeiros se

    desenvolvero a menos que haja alguma interveno, os ltimos

    no se desenvolvero a menos que haja alguma interveno

    (recebam o meio de cultura adequado e sejam implantados

    apropriadamente). Vejamos com mais calma a ideia de

    potencialidade.

    Se o que torna o embrio merecedor do direito vida

    simplesmente seu potencial para se tornar, o Argumento da

    Potencialidade est sujeito Objeo dos Gametas: tanto o

    espermatozide quanto o vulo tambm tm o potencial de se

    transformar em pessoas. Portanto, se o embrio tem direito vida

    porque uma pessoa em potencial, os gametas tambm tm. Se os

    gametas tambm tm direito vida, devemos aceitar que a

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    masturbao, a contracepo e a abstinncia sexual so imorais.

    Se espermatozides tm direito vida porque a potencialidade

    que confere esse direito, temos a obrigao de fazer com que

    permaneam vivos se unindo a um vulo e qualquer desperdcio

    deles moralmente condenvel. Inclusive a abstinncia sexual em

    geral seria imoral, pois ela tambm impede que os gametas

    sobrevivam. Isso implica uma obrigao geral de se reproduzir,

    segundo a qual todas as pessoas seriam moralmente criticveis se

    no se reproduzissem o mximo que lhes fosse possvel.

    Como essas so consequncias muito pouco razoveis,

    dadas as crenas que possuamos sobre mtodos

    anticoncepcionais e a liberdade reprodutiva, o Argumento da

    Potencialidade pode ser considerado implausvel caso implique que

    tambm os gametas tenham direito vida.

    Uma estratgia comum dos concepcionistas para responder

    Objeo dos Gametas distinguir dois tipos de potencial:

    intrnseco (ou ativo): requer apenas o ambiente normal

    para se desenvolver.

    extrnseco (ou passivo): requer mais do que o ambiente

    normal para se desenvolver, a simples receptividade.

    Segundo os concepcionistas, o que diferencia os gametas do

    embrio que os primeiros possuem apenas o potencial extrnseco

    de se tornar uma pessoa, ao passo que o embrio possui o

    potencial intrnseco. Essa distino, porm, difcil de ser

    sustentada, especialmente no caso dos embries in vitro, pois seu

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    potencial parece depender tanto da interveno de terceiros que

    merece ser classificado como extrnseco.

    Deve ser levado em conta o fato de que os embries em

    questo na pesquisa com CTEHs e no DGPI esto em laboratrio,

    no no tero. Por isso, para que eles se desenvolvam preciso que

    algum os implante no tero. Os embries surgidos da reproduo

    natural (supondo que tenham o potencial para se desenvolver e

    que sejam dadas as condies uterinas adequadas) se

    desenvolvero, a no ser que algum interfira no processo. Os

    embries em laboratrio esto em uma situao inversa aos

    embries no tero: o embrio no tero se desenvolver, a menos

    que haja interferncia externa em seu desenvolvimento; o embrio

    no laboratrio no se desenvolver, a menos que haja interferncia

    externa em seu desenvolvimento. Isso mostra que o potencial do

    embrio in vitro diferente do potencial do embrio in vivo, porque

    o primeiro precisa da ao de algum para realizar seu potencial.

    A partir disso se poderia concluir que as condies gerais

    fazem parte da potencialidade, que ela no apenas intrnseca.

    Segundo essa perspectiva, a potencialidade de um ser varia de

    acordo com o ambiente em que ele se encontra3. Contudo, essa

    explicao no pode ser aceita pelo concepcionista porque

    implicaria que o embrio em laboratrio no tem potencial (ou tem

    3 Existem vrias anlises segundo as quais o status do embrio est sujeito a mudanas de acordo com o contexto, com a criopreservao, com os motivos de sua criao ou com sua capacidade de desenvolvimento, podendo ser encontradas em (AGAR, 2007; HOLBROOK, 2007; LIZZA, 2007).

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    pouco) e, portanto, no tem status moral (ou tem menos que seres

    humanos adultos).

    A concluso a ser retirada dessa discusso que a

    distino entre potencial intrnseco e extrnseco difcil de ser

    sustentada e, por isso, problemtico trat-la como decisiva para o

    status moral do individuo. Portanto, mesmo que o feto humano

    tenha o potencial intrnseco para se tornar uma pessoa, isso no

    afeta seu status moral, no lhe confere direito vida. Parece

    moralmente irrelevante se o potencial de uma entidade intrnseco

    ou extrnseco.

    Um teste baseado em um exemplo fictcio ajuda a perceber

    como o potencial no o que importa para se ter ou no status

    moral ou direito vida. O potencial de uma criana para se tornar

    uma pessoa tambm depende de muitos fatores externos (nutrio,

    abrigo, exposio linguagem e cultura), sem os quais ela no

    chegar a ser pessoa. Suponhamos que esse seja o caso com os

    cachorros: que eles sejam capazes de autoconscincia e

    racionalidade, mas que at agora esse potencial nunca havia sido

    notado porque nunca tinha sido realizado. Suponha que para

    desenvolver esse potencial seja necessrio um programa intensivo

    de treinamento, como aquele que as crianas recebem em sua

    primeira dcada de vida. Se isso for possvel, isso faria com que

    ces sejam intrinsecamente pessoas potenciais? Todo cachorro

    teria status moral, teria direito vida? Seramos todos culpados

    por t-los tratado como se no o tivessem?

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    As respostas so todas no. O cachorro que ultrapassar o

    patamar por ter desenvolvido seu potencial dever ser respeitado,

    mas no deveremos revisar nosso tratamento dos que no

    desenvolveram seu potencial4.

    Mas se pensamos isso, devemos tambm aceitar que o

    potencial para se tornar uma pessoa no suficiente para garantir

    direito vida ou status moral, pois seres humanos tambm exigem

    um treinamento intensivo e estruturado para se tornarem pessoas,

    sem isso so muito diferentes de autoconscientes e racionais (isso

    mostra o quanto o potencial de se tornar uma pessoa extrnseco,

    o que pode ser confirmado em casos como os das meninas-lobo). O

    embrio, alm de no ter recebido esse treinamento, est muito

    longe de qualquer estrutura biolgica que pudesse receb-lo.

    A PERDA EMBRIONRIA NATURAL

    A quarta falha do argumento enfatiza ainda mais o fato de

    que nem todos os embries tm o potencial para se tornar pessoa,

    de que nem todos os embries so iguais. Estima-se que de 45 a

    75% de todos os embries fecundados naturalmente no

    conseguem chegar at ao final da gestao seja por anomalias

    cromossmicas, seja por falta de condies uterinas adequadas.

    O concepcionista (quem considera que o embrio tem

    direito vida desde a concepo) tem um srio problema prtico a

    4 (MCMAHAN, 2002: 316).

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    enfrentar: a reproduo natural implica uma alta taxa de perda

    embrionria. Alguns desses embries eram incapazes de

    sobreviver, devido a anomalias genticas (a mais comum a

    aneuploidia, quando o embrio possui um nmero anormal de

    cromossomos). Outros, apesar de normais e capazes de sobreviver,

    no encontraram as condies uterinas necessrias para o

    desenvolvimento embrionrio. Essas condies so afetadas por

    vrios fatores, dentre os quais deficincias hormonais

    (especialmente da progesterona e do estrognio que possibilitam a

    implantao do embrio no endomtrio, a parede do tero),

    doenas maternas (diabetes mellitus, infeco por herpes simplex

    etc.), fatores imunolgicos, malformao uterina, deficincia

    nutricional, pequeno intervalo entre gestaes, tabagismo e

    ingesto de lcool etlico durante a gravidez, idade materna,

    nmero de gestaes anteriores e at mesmo uso do coito

    interrompido como mtodo contraceptivo (pois aumenta a

    proporo de gametas mais velhos, os quais tm mais chance de

    criar embries suscetveis ao abortamento espontneo)5.

    Os cientistas tm grande dificuldade em fazer estimativas

    precisas da perda embrionria porque a maior parte dessa perda

    acontece antes que a gravidez tenha sido detectada, o que

    geralmente acontece em torno de duas semanas aps a concepo.

    Esse fenmeno conhecido como aborto espontneo. Seu nico

    sintoma um grande atraso do ciclo menstrual, seguido de fluxo

    5 (BIEBER & DRISCOLL, 1995: 178).

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    menstrual anormalmente abundante. As estimativas mais

    conservadoras, encontradas em manuais de embriologia, afirmam

    que a taxa de perda embrionria de 45%, isto ,

    aproximadamente, a cada dois embries, um morre6. As

    estimativas mais altas so encontradas em artigos cientficos,

    segundo os quais cerca de 75% dos embries morrem7, isto , a

    cada quatro embries, trs morrem. Depois de revisar a literatura,

    Toby Ord8 considerou que o mais razovel estimar a taxa de

    perda embrionria em 63%. Isso significa que cada embrio tem

    apenas 37% de chance de sobreviver at o final da gestao. Quer

    dizer, o embrio tem mais chance de morrer do que de sobreviver.

    Qualquer que seja a estimativa escolhida, o concepcionista

    tem um grave problema. Se desde a concepo o embrio tem

    direito vida uma pessoa, um de ns todo esforo possvel

    deve ser direcionado para impedir que esses abortos espontneos

    aconteam, mesmo que isso signifique retirar dinheiro das

    6 (MOORE & PERSAUD, 2003: 35). 7 (BOKLAGE, 1990: 78; LOKE & KING, 1995: 225). John Harris e Julian Savulescu trabalham com a hiptese de que a perda embrionria seja de 80%, pois, como explicam em uma nota: Robert Winston [um especialista em embriologia] gave the figure of five embryos for every live birth some years ago in a personal communication. Anecdotal evidence to John Harris from a number of sources confirms this high figure, but the literature is rather more conservative, making more probable a figure of three embryos lost for every live birth. () Again, in a recent personal communication, Henri Leridon confirmed that a figure of three lost embryos for every live birth is a reasonable conservative figure (SAVULESCU & HARRIS, 2004: 95). Segundo apresentao de John M. Optiz ao Presidents Council on Bioethics, cerca d e 80% dos zigotos e 60% dos embries de sete dias no sobrevivem. Essa apresentao est disponvel em www.bioethics.gov/transcripts/jan03/session1.html (acessado em 15-06-2010). 8 (ORD, 2008).

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    pesquisas sobre a cura do cncer e da AIDS. Usando a moderada

    taxa de 63% de perda embrionria, chega-se concluso de que s

    cerca de 55 milhes de mortes que acontecem por ano devido a

    envelhecimento, guerra, assassinato, acidentes e doena, devem

    ser acrescentadas mais ou menos 226 milhes que acontecem

    antes do nascimento.

    Como mostra a Ilustrao 2, por volta de 50% da perda

    embrionria se concentra nas duas primeiras semanas o que

    corresponde a cerca de 179 milhes de embries perdidos9. Desse

    modo, o aborto espontneo seria responsvel por de todas as

    mortes anuais. Outra conseqncia que a expectativa de vida nos

    pases desenvolvidos, atualmente considerada como 78 anos, seria

    na verdade de mseros 29 anos. Sendo que a mediana, a maioria

    das mortes, ocorreria antes dos 14 dias aps a fertilizao10. A

    maior parte das mortes no mundo seria, ento, daqueles que so

    incapazes de se proteger, que possuem apenas algumas poucas

    clulas, pouco ou nada diferenciadas.

    9 Esse grfico foi retirado de (ORD, 2008: 14). Os dados cientficos para sua elaborao esto em (LERIDON, 1977) e (WILCOX et. al., 1999), segundo os quais a morte natural dos embries acontece principalmente entre o oitavo e o dcimo dia aps a fertilizao. Isso mais uma razo para acreditar que, se que o potencial tem importncia moral, o embrio aps os 14 dias tem muito mais potencial para se tornar pessoa do que antes disso. 10 Essas informaes foram retiradas de (ORD, 2008).

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    ILUSTRAO 2: Taxa de perda embrionria de acordo com o

    tempo aps a fertilizao.

    Deve ser lembrado tambm que inclusive nem todo ser

    humano tem potencial de ser pessoa. Os fetos anencfalos apesar

    de indiscutivelmente pertencerem espcie humana, no tm o

    potencial para se transformarem em pessoas, porque impossvel

    ser pessoa sem ter crebro. Isso vale para outras doenas que

    impedem o funcionamento adequado do crebro. Se o potencial

    para ser pessoa uma condio necessria para o direito vida,

    esses seres humanos no tm direito vida.

    A quinta falha do Argumento da Potencialidade deriva do

    fato de que at por volta do 14 dia aps a fertilizao possvel

    que ocorra a gemeao ou a fuso, isto , que o embrio se divida

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    em dois ou mais embries ou que ele se funda com outro embrio.

    Com isso, o embrio no s tem o potencial para se tornar uma

    pessoa, como tem tambm o potencial para se tornar mais de uma

    pessoa e menos de uma pessoa. Isso leva alguns pesquisadores a

    rejeitar o Argumento da Potencialidade, porque mostra que a

    potencialidade do embrio uma propriedade imprecisa demais

    para justificar que seja atribudo ao embrio o mesmo status dos

    seres que efetivamente j so pessoas.

    CONCLUSO

    Em resumo, o problema com as verses mais ingnuas do

    Argumento da Potencialidade pressupor que o que est em

    potencial deve ser contado como o que efetivo. Isso claramente

    falso. Se o potencial tem importncia, ele deve ter importncia

    apenas enquanto potencial, no como se ele j fosse realizado (ter o

    potencial de ser campeo brasileiro no confere ao Cruzeiro o

    direito taa, preciso que ele vena os jogos). Uma verso menos

    ingnua do argumento diz que a prpria potencialidade tem valor

    moral e que por isso errado frustrar uma potencialidade. Visto

    desta perspectiva, o potencial de ser uma pessoa tem valor na

    medida em que uma pessoa tem valor e, portanto, deve receber as

    protees necessrias para realizar esse potencial. Mas no

    consideramos importante garantir que todas as pessoas possveis

    se tornem reais, pois isso limitaria em muito a liberdade sexual e

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    reprodutiva. Para evitar a Objeo dos Gametas, foi apresentada a

    distino entre potencialidade ativa e passiva. Nessa formulao, o

    embrio possui direito vida desde a concepo porque desde

    ento ele possui a potencialidade ativa para se tornar uma pessoa.

    Entretanto, vrias razes foram apresentadas mostrando que a

    distino entre fatores intrnsecos e extrnsecos muito difcil de

    ser estabelecida, o que implica que a distino entre potencialidade

    ativa e passiva problemtica o suficiente para ser inadequada

    como critrio para possuir ou no direito vida. Foi visto ainda

    que o potencial para se tornar uma pessoa no tem valor nem para

    o embrio (porque nada tem valor para ele), nem para a pessoa

    potencial (pois ela ainda no existe) e nem valor impessoal (porque

    no consideramos errado evitar que novas pessoas existam).

    Chamou-se ateno tambm para o fato de que o potencial do

    embrio in vitro diferente do potencial do embrio in vivo porque

    para que ele se desenvolva imprescindvel que haja interveno

    humana (a implantao no tero), ao passo que o desenvolvimento

    do embrio in vivo necessita apenas das condies uterinas

    adequadas. Ao que deve ser acrescentado que nem todo ser

    humano tem potencial de se tornar uma pessoa, como o caso dos

    fetos anencfalos e de boa parte dos embries - ou porque possuem

    algum problema estrutural ou porque no encontram as condies

    uterinas adequadas11. Tudo isso sublinha o fato de que o potencial

    11 Outras anlises da potencialidade podem ser encontradas em (HARMAN, 2003), (LIZZA, 2007) e (BROWN, 2007). Para esse ltimo, preciso distinguir entre potencialidade de primeira, de segunda e de terceira ordens. A

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    potencialidade de primeira ordem para ser pessoa a capacidade de adquirir uma capacidade (possuda pelas crianas ao terem crebros capazes de adquirir estados mentais). A potencialidade de segunda ordem o potencial de adquirir o potencial de primeira ordem (esse o potencial possudo pelos embries, isto , eles tm o potencial de se tornarem crianas). O potencial de terceira ordem o potencial de ter o potencial de segunda ordem (esse o potencial dos gametas). Essas distines foram primeiramente introduzidas por (DiSILVESTRO, 2005) em um interessante estudo sobre a situao moral dos embries a partir da posio original rawlsiana. H uma anlise bastante sofisticada do Argumento da Potencialidade em (MCMAHAN, 2002: 302-29), segundo a qual ou o feto no tem o potencial relevante ou apenas seu potencial no suficiente para tornar o aborto inaceitvel, mesmo nos ltimos meses de gravidez. Porm, como a teoria de Mcmahan tem trs componentes tericos incomuns, sua anlise no ser inteiramente incorporada ao argumento principal dessa tese, apesar de usarmos vrios elementos de seu trabalho. Os trs componentes incomuns so: no somos organismos, a identidade no tudo o que importa e o foco da anlise deve recair sobre interesses temporalizados. Segundo Mcmahan, no somos nem almas, nem organismos, nem entidades apenas psicolgicas, mas mentes incorporadas; somos mentes, e no organismos, porque nosso corpo pode existir sem ns; e somos mentes incorporadas porque, segundo ele, nosso crebro decisivo para que existamos. Em conexo com o influente trabalho de (PARFIT, 1984), quando diz que a identidade no tudo o que importa, o que Mcmahan pretende dizer que, ao decidirmos o que melhor para ns, permanecer idnticos a ns no suficiente (como se v em casos de demncia), preciso que existam as relaes de unidade prudencial (continuidade e conectividade psicolgica). A identidade no tudo o que importa porque eu no me importaria da mesma maneira com um futuro em que houvesse identidade, mas no houvesse continuidade e conectividade, entre eu agora e eu depois como demonstra o experimento do Teletransporte de Parfit ( importante registrar, contudo, que Mcmahan discorda de Parfit, ao reforar a idia da identidade numrica contra a idia da continuidade: se o mesmo crebro permanece, haver o interesse egostico, mesmo que no haja mais continuidade psicolgica). Os interesses temporalizados (time-relative interests) so os interesses que o indivduo possui no momento em que ser ou no morto. Eles substituem a noo de interesses, que engloba o que do interesse do indivduo. P.ex. do interesse do feto de seis meses que quando ele tiver 40 anos o imposto de renda tenha alquota progressiva, mas no de seu interesse temporalizado, que se refere apenas ao interesse que ele est experimentando agora, no tero, de se nutrir, fazer pequenos movimentos, interagir com o organismo da me etc. Com base nesses componentes tericos, na anlise da potencialidade (MCMAHAN, 2002: 304) distingue entre:

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    do embrio uma propriedade muito imprecisa e dependente de

    condies externas ao embrio, o que, somando ao fato de que a

    pessoa em potencial ainda no existe, de que o que est em

    potencial diferente do que est efetivado e de que no errado

    frustrar o potencial do embrio, a potencialidade no pode ser

    considerada o critrio para aquisio do direito vida.

    a) potencial que preserva identidade: X tem potencial de se tornar Y apenas se X e Y sero idnticos, isto , se X continuar a existir como Y (p.ex., o Prncipe Charles tem o potencial de ser o Rei da Inglaterra). Nesse sentido, algum poderia dizer ainda sou o embrio que fui. b) potencial que no preserva identidade: X tem o potencial para se tornar Y, mas Y no ser idntico a X (no ser uma fase na histria de X). A matria constitutiva de X transformada de maneira que, enquanto X deixa de existir, Y, um indivduo novo e diferente, surge da mesma matria. P.ex., o esperma e o vulo tm o potencial de formarem o zigoto, a mesa de se transformar em uma pilha de serragem, mas nenhum deles continua a existir no novo indivduo. Nesse sentido, algum poderia dizer nunca fui um embrio, ele foi apenas o material do qual surgi.

    O potencial de se tornar uma pessoa que o embrio possui (que Mcmahan chama de feto inicial) no preserva a identidade. Por isso, o embrio no tem interesse, nem interesse temporalizado, em se tornar uma pessoa. Se for bom que exista outra pessoa, seu potencial pode ter valor instrumental, mas isso no serve como uma objeo forte ao aborto, porque se aplica tambm a gametas que teriam o mesmo valor instrumental. O feto desenvolvido (que surge aps a 22 semana) tem potencial que preserva a identidade porque pode j possuir os rudimentos da conscincia, e, portanto, tem interesse em se tornar uma pessoa. Contudo, no devemos ser guiados por seus interesses, mas por um respeito a seu interesse temporalizado em realizar seu potencial de se tornar uma pessoa que fraco pela mesma razo que seu interesse temporalizado em continuar a viver fraco: porque lhe faltam relaes de unidade prudencial com a pessoa que ser. (MCMAHAN, 2007) contm uma exposio sucinta das teorias e a aplicao delas ao caso do embrio.

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    1.3. Um olhar de gnero sobre o carter

    poltico das tecnologias de mudana corporal

    Leonel Cardoso dos Santos12

    Resumo O objetivo deste texto oferecer elementos para se pensar as relaes existentes entre tecnologias de mudana corporal e as normas de gnero. Especificamente tentar explicitar as conexes existentes entre as tecnologias biomdicas de interveno corporal e sua amarrao s normas de gnero. Este trabalho fruto de um artigo terico em preparao para publicao. As discusses propostas aqui se amparam teoricamente em Michel Foucault e nos estudos ps-estruturalistas de gnero e sexualidade. Trago, inicialmente, uma discusso que explicita as conexes existentes entre corpo, gnero e sexualidade, destacando o primeiro enquanto um tema de importncia poltica no interior do dispositivo de controle da sexualidade. Outro aspecto importante apontar o processo de medicalizao da vida ao longo do sculo XX e como as intervenes do campo da medicina contriburam para a construo social do que na contemporaneidade se denomina corpo. Alm disso, o trabalho busca sublinhar como as tecnologias desenvolvidas nos campos da engenharia, cincias exatas e computacionais passaram a interessar-se pela vida, em termos biolgicos, e acoplaram-se aos interesses, intervenes e conhecimentos mdicos. Esses apontamentos tericos so lidos sob a tica da governamentalidade em Foucault, na qual o poder sobre a vida dividiu-se em duas frentes centrais. Na primeira delas

    12 Discente do curso de mestrado do Programa de Ps-Graduao em Psicologia (Psicologia Social) da Universidade Federal de Minas Gerais. Est vinculado ao Ncleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT e ao Ncleo de Psicologia Poltica, ambos da FAFICH/UFMG.

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    exercido o adestramento da vida, por meio d