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2 A TESSITURA DO MITO “O alegre espanto diante da maravilha das coisas é, por fim, o presente imortal do mito.” Joseph Campbell 2.1. Prolegômeno à Questão As discussões relativas às origens do pensamento filosófico têm sido estabelecidas, de forma consistente, na exploração das conexões entre esse estatuto de formulação do real a filosofia e a narrativa mítica. 1 Compreender a textura própria da narrativa mítica é pois um momento crucial para a colocação, de forma organizada, dos problemas relativos à emergência da filosofia. A pergunta o que é o mito? vem sendo “repassada” no âmago da própria história do pensamento ocidental. Em verdade, um manancial de conjecturas e conceitos relativos aos mitos foram produzidos, desde a Antigüidade, mas sobretudo a partir dos séculos XVIII e XIX. Ainda que se possa concordar com a idéia de mito como um fato natural, 2 ou que se possa apreender intuitivamente o que quer que ele seja, como o apontado por C. Lévi-Strauss Um mito é percebido como mito por todos os leitores do mundo inteiro. 3 1 Cf. KIRK, G.S., RAVEN, J.E., SCHOFIELD, M. Os Filósofos Pré-socráticos: História crítica com seleção de textos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. p. 68. 2 Cf. DETIENNE, M. A Invenção da Mitologia. 2 a edição. Brasília: Editora da UNB / José Olympio Editora, 1998. p. 10. 3 Cf. LÉVI-STRAUSS, C. Anthropologie Structurale. Paris: Plon, 1958. p. 232. O grifo é nosso.

2 A TESSITURA DO MITO - DBD PUC RIO · estatuto de formulação do real a filosofia e a narrativa mítica.1 Compreender a textura própria da narrativa mítica é pois um momento

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A TESSITURA DO MITO

“O alegre espanto diante da maravilha das coisasé, por fim, o presente imortal do mito.”

Joseph Campbell

2.1. Prolegômeno à Questão

As discussões relativas às origens do pensamento filosófico têm sido

estabelecidas, de forma consistente, na exploração das conexões entre esse

estatuto de formulação do real a filosofia e a narrativa mítica.1

Compreender a textura própria da narrativa mítica é pois um momento crucial

para a colocação, de forma organizada, dos problemas relativos à emergência da

filosofia.

A pergunta o que é o mito? vem sendo “repassada” no âmago da própria

história do pensamento ocidental. Em verdade, um manancial de conjecturas e

conceitos relativos aos mitos foram produzidos, desde a Antigüidade, mas

sobretudo a partir dos séculos XVIII e XIX. Ainda que se possa concordar com a

idéia de mito como um fato natural,2 ou que se possa apreender intuitivamente o

que quer que ele seja, como o apontado por C. Lévi-Strauss

Um mito é percebido como mito por todos os leitores do

mundo inteiro.3

1 Cf. KIRK, G.S., RAVEN, J.E., SCHOFIELD, M. Os Filósofos Pré-socráticos: História crítica comseleção de textos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. p. 68.2 Cf. DETIENNE, M. A Invenção da Mitologia. 2a edição. Brasília: Editora da UNB / José OlympioEditora, 1998. p. 10.3 Cf. LÉVI-STRAUSS, C. Anthropologie Structurale. Paris: Plon, 1958. p. 232. O grifo é nosso.

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de forma alguma a compreensão deste estatuto é simples. Nesta citação de

Lévi-Strauss já se torna patente uma primeva questão importante: aqui, para um

autor do século XX, o mito já se encontra claramente colocado no plano da

palavra escrita, o que é bastante distinto do observado nas populações nas quais o

mito germinava como instância fundamental na vida humana.4 Nestas sociedades,

o mito tem um caráter sagrado como se verá adiante , sendo transmitido

homem a homem, sob forma de narrativa oral, ato este imbricado em um contexto

próprio, ritualístico, bem distinto da visão literária dos mitos como um produto

da criação artística , completamente estabelecida nos dias de hoje.5

Esta feição do problema se deveu, muito provavelmente, ao surgimento de

discussões acerca do conteúdo factual das narrativas míticas, o que teve como

produto o progressivo “esmaecimento” sofrido pelos mitos, processo iniciado

ainda na Antigüidade. A questão sob este prisma foi elaborada, pela primeira vez,

de forma clara, por Platão no Fédon (61-b)6 e em A República, Livro II (376e

377a), como o explicitado a seguir:

Sócrates – Não convém começarmos a sua educação pela

música em lugar da ginástica?

Adimanto – Sem dúvida.

Sócrates – Tu admite que os discursos fazem parte da

música ou não?

Adimanto – Admito.

Sócrates – E existem dois tipos de discursos, os

verdadeiros e os falsos?

Adimanto – Sim, existem.

Sócrates – Ambos entrarão na nossa educação ou

começaremos pelos falsos?

Adimanto – Não estou entendendo.

4 Cf. CAMPBELL, J. O vôo do Pássaro Selvagem. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1997.pp. 15-20.5 De forma sagaz, M. Eliade coloca que “Para interessar a um homem moderno, essa tradicionalherança oral deve ser apresentada sob forma de livro...” Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade. SãoPaulo: Perspectiva, 2000. p. 140. O grifo é do autor.6 Cf. PLATÃO. Fédon. Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. 2a edição. Rio de Janeiro: AbrilCultural, 1979. Passo 61-b.

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A Tessitura do Mito 18

Sócrates – Nós não começamos contando fábulas às

crianças? Geralmente são falsas embora encerrem algumas

verdades. Utilizamos essas fábulas para educação das

crianças antes de leva-las ao ginásio.

Adimanto – É verdade.7

Neste trecho, o filósofo opõe frontalmente o discurso (lovgoς) de caráter

verdadeiro (ajlhqhvς) e falso (yeudhvς), tornando-os aparentemente inconciliáveis.

O discurso falso, fantasioso, é o mito (mu~qoς). O paradoxal é que o próprio Platão,

em sua obra, faz amplo uso de imagens míticas para a exposição de vários pontos

de seu pensamento seria inútil enumerar aqui as diversas passagens nas quais o

filósofo emprega tais narrativas.8

Em Aristóteles a questão é de natureza algo distinta. O mito é apreendido

como enredo, este enquanto constituinte fundamental na elaboração de uma

tragédia ou seja, como um dos elementos deste estilo literário , conforme o

apresentado na Poética. A tragédia seria uma imitação (mivmhsiς)9 e o mito, como

seu constitutivo, teria esta mesma textura mimética. Neste caso, não há uma clara

categorização de mito como uma história falsa ou fábula, como em A República

7 Ar’ ouvn ouj mousikh~/ provteron ajrxovmeqa paideuvonte" h# gumnastikh~/ ; Pw~" d’ ou! ; Mousikh~" d’, eipon, tivqh" lovgou", h# ou! ; !Egwge. Lovgwn deV dittoVn eido", toV meVn ajlhqev", yeu~do" d’ e@teron ; Naiv. Paideutevon d’ || ejn ajmfotevroi", provteron d’ ejn toi~" yeudevsin ; Ouj manqavnw, e!fh, tw~" levgei". Ouj manaqavnei", hn d’ ejgwv, o@ti prw~ton toi~" paidivoi" muvqou" levgomen ; Tou~to dev pou wJ"toV o@lon eijpei~n yeu~do", e!ni deV kaiV ajlhqh~. Provteron deV muvqoi" proV" taV paidiva h#gumnasivoi" crwvmeqa. !Esti tau~ta.Cf. PLATON. La République II. Texte établi et traduit par Émile Chambry. Paris: Les Belles Lettres,1996. 376e-377a. p. 79. Ver também: PLATÃO. A República II. Introdução, tradução e notas de MariaHelena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.8 Para aprofundamento deste problema ver DETIENNE, M. op. cit., JORDÃO, A. Logos e Múthos emPlatão: um breve sobrevôo. AnaLógos – Anais da I Semana dos Alunos de Pós-Graduação emFilosofia da PUC-Rio. Rio de Janeiro: Booklink, 2001. pp. 112-124. e DROZ, G. Os Mitos Platônicos.Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.9 Cf. ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Baby Abrão. Rio de Janeiro: Nova Cultural, 2000. VI1449b30.

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de Platão, mas sim o estabelecimento de um estatuto de imitação, de criação,

quase como o de um “artefato” produzido pelo intelecto humano.

Provavelmente muito do que ficou na tradição ocidental acerca das

narrativas míticas sobretudo o referente à idéia de seu conteúdo falsídico ou da

fabulação deve-se à formalização deste “esvaziamento” promovido ainda na

Antigüidade clássica. Autores modernos, como Voltaire e seus contemporâneos

do séc. XVIII, desenvolveram a idéia de mito como conteúdo inverossímil,

contrapondo-o à história: o primeiro caracterizado como fábula e esta última com

inserção no real, ou seja, em íntima relação com a verdade dos fatos a verdade

histórica10. Entretanto, sob um ponto de vista, os mitos são considerados

verdadeiros para Voltaire enquanto relatos engendrados em um dado momento

histórico de uma sociedade, ou seja, é próprio da história do homem a crença nas

narrativas míticas. Há um deslocamento, isto posto, da questão do mito como uma

verdade factual para seu entendimento no âmbito próprio da verdade “histórica”.11

As ponderações acerca das possíveis interfaces entre mito e história foram

levantadas também pelo filósofo italiano Giambattista Vico, o qual considerava a

narrativa mítica, à similaridade de seu contemporâneo Voltaire, como um

inalienável “fato histórico”. Sem embargo, Vico passa ao largo da indagação

acerca da veracidade ou não dos mitos, conceituando-os como um modo

particular de pensar, possuidor de características muito próprias capazes de

expressar certas formas de vida humana básicas.12 De forma similar F. W. J.

Schelling, filósofo do romantismo alemão, toma o mito como uma das

possibilidades a partir das quais o Absoluto se revela no processo histórico.

10 Em seu Dicionário Filosófico Voltaire coloca que “A História é a narração de fatos consideradosverdadeiros, ao contrário da fábula, narração de fatos considerados falsos.” (...) “A data da tomadade Tróia está marcada nos mármores, mas nada se diz sobre as flechas de Apolo, o sacrifício deIfigênia ou sobre os combates ridículos dos deuses.” (...) “Venerai, sem culto, um Sólon, um Tales, umPitágoras; mas deveis abster-se de adorar um Hércules por ter limpado as estrebarias de Águias epor ter dormido com cinqüenta raparigas em uma só noite”. Cf. VOLTAIRE, F.M.A. DicionárioFilosófico. São Paulo: Abril Cultural, 1978. pp. 201-203 e p. 287. O grifo é nosso.11 Voltaire diz “As coisas prodigiosas e improváveis devem ser relatadas algumas vezes como provada credulidade humana pertencem à história das opiniões e das tolices, mas seu campo é vasto”.Cf. VOLTAIRE, F.M.A. Dicionário Filosófico., p. 204. O grifo é nosso.12 Cf. VICO, G. Scienza Nuova, VI.

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Percebe, igualmente, o horizonte da mitologia como ponto de fuga da consciência

concreta, e não como simplório domínio das fábulas. Como Vico, Schelling é um

dos primeiros pensadores modernos a estabelecer uma certa “valorização” mítica.

Outra frente de investigação dos mitos foi estabelecida à luz de suas

relações com a linguagem, como no século XIX, mencionando-se os trabalhos de

Paul Decharme, Adalbert Kuhn e Friedrich Max Müller.13 Este último autor,

empregando análises filológicas, contestou idéias vigentes acerca de narrativas

míticas compreendidas como (1) transformações da história em lendas fabulosas

e (2) fábulas aceitas como histórias; ao contrário, identifica o mito como uma

instância mediada pela linguagem, decorrente de uma pura deficiência lingüística

originária. Este déficit seria embasado nas polissemias idiossincrásicas de cada

vernáculo, capazes de promover ambigüidades e imprecisões, estas genéticas de

todos os mitos.14 Isto posto, para F. M. Müller

A mitologia é inevitável, é uma necessidade inerente à

linguagem, se reconhecemos nesta a forma externa do

pensamento: a mitologia é, em suma, a obscura sombra que

a linguagem projeta no pensamento, e que não

desaparecerá enquanto a linguagem e o pensamento não

se sobrepuserem completamente: o que nunca será o

caso.15

Dada esta característica de falácia do espírito evocada pela linguagem,

depreende-se que o mundo mítico é, intrinsecamente, um mundo de ilusão sem

qualquer significação inerente , evocado a partir de um defeito próprio do

13 Cf. DETIENNE, M. op. cit., pp. 15-47.14 Para defender esta idéia, F. M. Müller “Lembra de algum modo a lenda de Deucalião e Pirra, que,depois de salvos por Zeus do grande dilúvio que exterminou o gênero humano, converteram-se nosprogenitores de uma nova raça, ao atirarem por sobre os ombros pedras que se transformavam emseres humanos. Tal origem dos homens, a partir da pedra, é algo simplesmente incompreensível, eparece resistir a toda interpretação; mas ela seria imediatamente concebível se recordássemos que,em grego, os homens e as pedras se designam pelos mesmos nomes, ou pelo menos, de somsemelhante”. Cf. CASSIRER, E. Linguagem e Mito. Tradução de J. Grinsburg e MiriamSchnaiderman. 4ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000. p. 18.15 Cf. CASSIRER, E. op. cit., p. 19.

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espírito.16 Aqui a questão é distinta: o inverídico não se deve mais à não

correspondência histórica do fato narrado produto de uma invenção planejada

, mas sim à ilusão produzida pela “insuficiência” lexical. Ainda que esta seja

uma concepção superada ao menos do ponto de vista dos mais recentes

trabalhos etimológicos e de mitologia comparada17 é interessante observar uma

“típica” problematização, ao se colocar a estudo da narrativa mítica no plano da

construção ou criação de estórias não condizentes com os fatos, para as

quais são identificadas as mais distintas origens no espírito humano. É a

transparência de uma tensão veracidade versus falsidade, a qual vem pautando as

discussões desde a Grécia clássica. Entretanto, como se verá no correr da presente

obra, esta abordagem enfocando o conteúdo de verdade dos mitos se constitui em

um “autêntico” falso problema.

Mitos como fábulas, como impressões humanas dos processos da natureza,

como moléstia da linguagem. Poder-se-ia gastar um ou mais volumes na discussão

pormenorizada das idéias de mito nestes diferentes autores.18 Sem embargo, é

mister que se recoloque a pergunta sob uma ótica distinta. Muito mais importante

do que se debruçar sobre sua veracidade dos conteúdos, é o reconhecimento da

natureza própria do intrínseco fenômeno humano constituído na narrativa mítica.

Isto passa, indubitavelmente, pela compreensão de suas funções e de sua

estrutura, particularmente nas circunstâncias em que o mito permanece vivo,19

16 Cf. CASSIRER, E. op. cit., p. 20.17 Cf. CASSIRER, E. op. cit., p. 19.18 Este brevíssimo sobrevôo muito mais ilustrativo do que histórico procurou apontar algunsaspectos que, nas páginas vindouras, poderão ser retomados a contento. Não caberia aqui destrinçarpormenorizadamente cada um dos elementos conceituais presentes nestes autores, uma vez que oesteio deste trabalho não se refere às digressões históricas da idéia acerca dos mitos.19 O conceito de mito vivo, conforme o conjeturado por M. Eliade em Mito e Realidade, diz respeito àssociedades nas quais estas narrativas permanecem como instância modelar (comportamento,organização social e visão de mundo) na vida dos homens. Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade., p. 10.No presente trabalho, utilizar-se-ão como sinônimos os termos sociedades primitivas, sociedadesarcaicas e sociedades nas quais o mito se mantém vivo; sem embargo, esta terminologia não traz em siimplicado qualquer teor pejorativo no que diz respeito à tese do evolucionismo cultural, como o muitobem exposto por C. Lévi-Strauss: “De um modo geral, todas as sociedades humanas têm atrás delasum passado, aproximadamente da mesma ordem de grandeza. Para considerar algumas sociedadescomo ‘etapas’ do desenvolvimento de outras, seria preciso admitir que, enquanto com estas últimas sepassava qualquer coisa, com aquelas não acontecia nada, ou muito poucas coisas. E, na verdade,

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contextura esta que quase pode ser “tocada” no seguinte poema de Fernando

Pessoa:

O mito é o nada que é tudo

O mesmo sol que abre os céus

É um mito brilhante e mudo

O corpo morto de Deus,

Vivo e desnudo.20

Neste sentido, e em concordância com a radical abrangência desta díspar

perspectiva, a questão se recoloca, amparada sobretudo nos trabalhos de Mircea

Eliade, Ernest Cassirer e Joseph Campbell fecundos interlocutores para o norte

que se pretende dar a esta investigação , os quais balizarão, em linhas gerais, as

discussões fomentadas no presente capítulo.

Não se pretende alcançar, ao final das palavras que se seguem, uma

definição formal de mito. Serão, outrossim, colocados os aspectos ditos

estruturais e funcionais das narrativas míticas, buscando-se engendrá-los de forma

mais consistente e harmônica, com o objetivo de se deslindar a tessitura própria

do mito nas sociedades nas quais ele se mantém vivo, ao invés de estabelecer uma

definição fechada e gessada acerca da sua constituição íntima. Ato contínuo a este

processo, colocar-se-ão as características consubstanciais dos mitos cosmogônicos

os de maior interesse neste âmbito de indagação , confrontado-as com os

elementos peculiares apreensíveis nas cosmogonias gregas antigas.

2.2. As Funções do Mito

O mito, tal qual o entendemos hoje, tem uma composição muito mais

complexa do que a simplória categorização como fábula ou estória de conteúdo

falamos de bom grado dos ‘povos sem história’ (para dizer, por vezes, que são os mais felizes). Estafórmula elíptica significa apenas que a sua história é e continuará a ser desconhecida, nãosignificando a sua inexistência. Durante dezenas e mesmo centenas de milênios, também nelasexistiram homens que amaram, odiaram, sofreram, inventaram, combateram. Na verdade, não existempovos crianças, todos são adultos, mesmo aqueles que não tiveram diário de infância e deadolescência”. Cf. LÉVI-STRAUSS, C. Race et Historie. Paris: Unesco, 1950. p. 65.20 Cf. PESSOA, F. Mensagem. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. p. 13.

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fantástico ou inverídico.21 Ao longo dos tempos, desde que se possa estabelecer

uma “região” no processo de evolução humana em que surgiu a cultura, é possível

a identificação de elementos da narrativa mítica.22 Mas em que consistiria esta

forma de narrativa, ou ainda, qual seria sua função na cultura? De um modo geral,

os estudiosos da mitologia no séc. XX concordam que a prístina função do mito é

pôr o homem em sintonia harmonia com o real. Este conceito de mito é

bastante fecundo para a apreensão de suas nuanças, seu conteúdo e sua estrutura.

Pode-se tomar como ponto de partida a idéia de Alan W. Watts, que tem por

definição de mito

a imagem segundo a qual os indivíduos dão sentido ao

mundo.23

ou seja, seu grande papel seria o de servir como uma interface ou

mesocosmo24 , através da qual o ser humano se coloca ou coloca sua

21 A. W. Watts, em seu artigo Mitologia ocidental: dissolução e transformação, pontua aimpossibilidade de um conceito de mito que pressuponha a inverdade ou a existência de um conteúdomentiroso, postulando uma idéia de “Mito, não com o significado de falsidade, mas num sentido muitomais profundo, um imaginário a partir do qual extraímos sentido da vida”. De forma semelhante, I.PROGOFF relata que “é a natureza de um mito ser verdade além de todas as afirmações de verdade”.Cf. WATTS, A.W. Mitologia ocidental: dissolução e transformação. IN: CAMPBELL, J. Mitos,Sonhos e Religião. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 16. e PROGOFF, I. Sonho desperto e mito vivo.In: CAMPBELL, J. Mitos, Sonhos e Religião. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 194.22 Em seu livro “As Transformações do Mito Através do Tempo”, J. Campbell faz uma bela descriçãodaquilo que se pode chamar “nascimento da vida espiritual” na escala de evolução do homem.Partindo do Australopithecus (cerca de quatro ou cinco milhões de anos), o autor vem tecendo osaspectos de maior relevância na evolução biológica humana, chegando a 500.000 a.C, época em quesurge o Pithecanthropus de Java o “homem de Java” , período do qual data um utensílioencontrado às margens do rio Tâmisa que, aparentemente, não tem utilidade prática alguma, sendoencarado, portanto, como um instrumento empregável em alguma forma de ritual. Avançando umpouco mais, em 60.000 a.C., chega-se ao Homo sapiens neanderthalensis o “homem deNeandertal” , época na qual há indícios de sepultamento e da adoração de crânios de ursos emcavernas, na região alpina da Suíça. Cf. CAMPBELL, J. As Transformações do Mito Através doTempo. São Paulo: Cultrix, 1997. pp. 7-29.23 Cf. WATTS, A.W. op. cit., p. 16.24 O conceito de mesocosmo foi estabelecido por J. Campbell na obra As Máscaras de Deus, a partir daseguinte definição: “E se agora tentarmos transportar para uma frase o significado de todos os mitose rituais que brotaram dessa concepção de uma ordem universal, podemos dizer quer são agentesestruturais, atuando para conformar a ordem humana à celestial. Os mitos e ritos constituem ummesocosmo um cosmo mediador, intermediário , através do qual o indivíduo se coloca emrelação ao macrocosmo do todo. E esse mesocosmo é o contexto inteiro do corpo social, que éportanto um tipo de poema vivo, hino ou ícone de barro, de carne e osso, de sonhos, moldado naforma artística de cidade hierática. A vida na Terra serve para espelhar, o mais perfeitamente

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consciência em contato com o real, com sua própria vida. Possibilitaria, a

narrativa mítica, o estabelecimento de uma interseção entre a intangível totalidade

do mundo e a dimensão universal do ser humano, transcendendo sobremaneira a

mera experiência subjetiva do indivíduo. Assim também concorda E. Cassirer,

para o qual o homem [arcaico] seria capaz de “capturar” inicialmente a realidade,

não em conceitos lógicos, mas a partir de imagens míticas claras e delimitadas

entre si.25 Uma paisagem bastante bela empregada por Campbell para dimensionar

o que seja o mito pode ser apreciada no seguinte texto:

Uma mulher com seu filhinho é a imagem básica da

mitologia. A primeira experiência de qualquer indivíduo é a

do corpo da mãe. E o que Le Debleu denominou

participation mystique, participação mística entre a mãe e o

filho e entre o filho e a mãe, constitui a verdadeira terra

feliz. A Terra e todo o universo, como nossa mãe,

transportam essa experiência para a esfera mais ampla da

experiência adulta. Quando consegue experimentar, em

relação ao universo, uma união tão completa e natural

quanto a da criação com sua mãe, o indivíduo está em

completa harmonia e sintonia com esse mesmo universo.

Entrar em harmonia e sintonia com o universo, e

permanecer neste estado, é a principal função da

mitologia.26

Esta perspectiva mesocósmica do mito tem como desdobramento uma série

de conexões, capazes de compor as diferentes funções da narrativa mítica, as

quais são “tributárias” deste papel primeiro. Estas funções seriam (1) a mística,

(2) sociológica, (3) psicológica e (4) cosmológica, as quais serão brevemente

comentadas a seguir.27

possível nos corpos humanos, a quase oculta mas agora descoberta ordem do desfile dasesferas ”. Cf. CAMPBELL, J. The Masks of God: Occidental Mythology. New York: Viking Press,1964. pp. 519-521. O grifo é nosso.25 Cf. CASSIRER, E. op. cit., p. 56.26 Cf. CAMPBELL, J. As Transformações do Mito Através do Tempo., p. 7. O grifo é nosso.27 Cf. CAMPBELL, J. Temas mitológicos na arte e na literatura criativa. IN: CAMPBELL, J. Mitos,Sonhos e Religião. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 139.

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Analisando mais de perto o estabelecimento deste mesocosmo, poderia se

perceber a existência de todo um esforço do homem em perpetuar sua própria

existência, no confronto muitas vezes doloroso com a realidade. Em

verdade, esta seria outra face desta mesma inalienável função do mito: a

reconciliação da existência humana com sua própria condição. Veja-se em que

sentido: o homem, ao apreender sua vida, percebe a precariedade de seu estado, o

estatuto efêmero de sua própria dimensão diante da brutalidade do real. Sujeito a

toda a sorte de lamentos, dores, privações e possibilidades de sofrimento e

extinção algo que parece ser inerente à realidade , está o ser humano

desguarnecido, sem algo que possa trazer algum reparo ou consolo, ou até mesmo

resposta, diante da tragédia manifesta na existência. Aí estaria o mito cumprindo

precipuamente, isto posto, um papel místico (ou metafísico). Para se contrapor à

crueza deste estado de coisas se faz mister lançar mão desta harmonização com a

totalidade do mundo, o que pode ser expresso, do ponto de vista ritual, nas mais

diferentes instâncias, como nos esclarece J. Campbell:

Em todo o mundo primitivo, onde os confrontos diretos com

os fatos sangrentos da vida são inevitáveis e incessantes,

as cerimônias de iniciação impostas aos jovens costumam

ser horrendas; eles são submetidos de forma aterradora e

vívida a experiências, não só oculares, dessa coisa

monstruosa que é a vida, e sempre exigindo um “sim”,

sem nenhum traço de culpa pessoal nem coletiva, mas com

gratidão e divertimento.28

A narrativa mítica consistiria em um “instrumento” para que seja

apreendido o significado do real,29 sendo mister que este esteja ajustado ao “pano

de fundo” cultural de cada sociedade, uma vez que ele próprio, o mito, é um

manancial para a perene construção deste estofo. Assim, emergiria um segundo

papel da narrativa mítica, sua função sociológica, capaz de constituir, validar e

28 Cf. CAMPBELL, J. Temas mitológicos na arte e na literatura criativa., p. 140.

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manter a ordem em um dado agrupamento social, construindo e endossando o seu

código moral.

Os mitos comporiam um conjunto de modelos para a atuação humana,

conferindo, por isso mesmo, significação e valor à vida, fundamentando e

justificando todo o comportamento e toda a atividade do homem, no que concorda

M. Eliade:

A principal função do mito consiste em revelar os modelos

exemplares de todos os ritos e atividades humanas

significativas: tanto a alimentação ou casamento, quanto o

trabalho, a educação, a arte e a sabedoria.30

Torna-se perspícua a preeminência da narrativa mítica: esta seria capaz de

dar conta da necessária organização da sociedade, como um reflexo de uma ordem

subjacente à própria natureza.31 Ademais, estabelecer-se-ia um fluxo contínuo

capaz de garantir a condução de certas atividades práticas e cotidianas como a

caça, a pesca, a agricultura, o casamento, a maternidade, a passagem para a

maturidade, e outros as quais promoveriam a continuidade de uma adequada

ordem social, propiciando a preservação dos homens. Funcionaria assim o mito

como um esteio cultural humano, norteando as posturas a serem adotadas ao

longo da vida, diante das mais díspares situações, desde o nascimento à morte:

As mitologias da humanidade, tanto as grandes quanto as

de menor importância, vêm servindo sempre para guiar os

jovens além de seu terreno na natureza e, simultaneamente,

apoiar os velhos de volta à natureza até a penumbra do

último portal.32

29 Cf. E. Cassirer, “(...) o mito, a arte, a linguagem e a ciência aparecem como símbolos: não nosentido de que designam na forma de imagem, na alegoria indicadora e explicadora, um realexistente, mas sim, no sentido de que cada uma delas gera e parteja seu próprio mundo significativo”.Cf. CASSIRER, E. op. cit., p. 22.30 Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade, p. 13.31 Aqui pode se exemplificar com a visão de mundo da mitologia indiana, na qual o mundo não seoriginou da criação elaborada por um deus “pessoal” (à moda judaico-cristã), mas sim foi desdesempre e para sempre será, aparecendo e desaparecendo em ciclos renovados em um eterno retorno;a “contrapartida” social deste modelo de cosmo é a organização em castas, tradicional na Índia.32 Cf. CAMPBELL, J. Temas mitológicos na arte e na literatura criativa, p. 144.

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Esta perspectiva sociológica da funcionalidade mítica tem como

interessante conseqüência a impossibilidade de se tentar “olhar com os olhos da

cultura ocidental” as mais diferentes expressões do mito em sociedades distintas

do nosso tempo ou ensejadas nos tempos de outrora, havendo grande chance de se

incorrer em erro tornando-se arbitrário , caso estas particularidades

espirituais de cada povo não sejam levadas em consideração.

A terceira função levada a cabo pela narrativa mítica é a cosmológica,

capaz de constituir e transmitir uma imagem de mundo, uma visão cósmica

percebida como expressão plena do sagrado. A organização do mundo como ele é,

em todos os seus aspectos, é reconhecida como parte do mistério consubstancial à

própria condição do real. O céu, a terra, o inferno e tudo o que há neles , sua

ordem, origens e ocaso33 são manifestações da grandiosidade do mundo. Mais que

isto, a própria percepção de que há uma ordem subjacente e inerente a tudo

fulcro próprio do conceito de cosmo permite a identificação de símbolos

articulados e concernentes a esta ordem quase a testemunhá-la que trazem

uma linguagem própria, capaz de ser “ouvida” pelo homem.34 É preciso saber

apreender estes signos, com os quais é inscrito o mundo, em sua brutalidade e

organicidade, na busca pela própria interseção com um todo desconhecido e

arcano, posto em uma natureza que ama se ocultar.35 O mistério de uma totalidade

organizada pode, no entanto, ser perscrutado, bastando para isto que seja ouvida a

voz do cosmo.36 Em verdade, na mitologia, o mundo e tudo que o compõe

fala ao homem,37 como o expresso no belo excerto de Sidarta, de Herman Hesse:

33 Aqui, sobretudo nas mitologias escatológicas.34 Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade, p. 125.35 Cf. o fragmento 123 de Heráclito: fuvsiς cruvptesqai filei (a natureza ama ocultar-se); ou ainda, acitação de M. Eliade: “Pois a ‘Natureza’ desvenda e camufla, simultaneamente, o ‘sobrenatural’, e énisso que reside para o homem arcaico o mistério fundamental e irredutível do Mundo”. Cf. ELIADE,M., Mito e Realidade, p. 126.36 Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade, pp. 125-126.37 Cf. E. Cassirer: “Visto que toda a Natureza ressoa, nada mais natural, para o homem sensível, queela viva, fale, atue. Certo silvícola vê uma árvore grandiosa, de copa magnífica, e admira-se; a coparumoreja!, é a divindade que se irrita”. Cf. CASSIRER, E. op. cit., p. 22. O grifo é nosso.

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A Tessitura do Mito 28

As coisas passaram-se exatamente como eu pensava. O rio

falou contigo. É teu amigo também. Dirige-se também a ti.

(...) Quem me ensinou a escutar foi o rio e ele será o teu

mestre também. (...) Sem cessar, Sidarta aprendia dele [do

rio]. Antes de mais nada aperfeiçoava-se na arte de

escutar, de prestar atenção, com o coração quieto, com a

alma receptiva, aberta, sem paixão, sem desejo, sem

preconceito, sem opinião.38

Graças ao mito, o real pode ser discernido como organizado e

perfeitamente articulado, inteligível e significativo. Poder ouvir a voz deste

cosmo, como no texto de H. Hesse, e permanecer em íntima coalizão com sua

amplitude e profundidade, diriam respeito à função cosmológica da narrativa

mítica.

Outro relevante papel do mito, nesta mesma perspectiva de interface

homem-mundo, seria a função psicológica. A análise deste papel torna-se mais

clara, se é tomado como ponto de partida a variabilidade das ordens sociológica e

cosmológica dos mitos, dentro dos diferentes períodos históricos e das distintas

regiões do planeta afinal, há considerável digressão entre a cosmologia e a

organização social, se tomarmos como dois exemplos os povos grego e hebreu

antigos (período anterior à era cristã). Ao contrário, há problemas da condição

humana que são, por excelência, irredutíveis, perpassando os indivíduos de toda e

qualquer cultura. Muitas destas questões possuem, inclusive, um sustentáculo que

advém diretamente de aspectos peculiares da própria biologia humana.39 Esta

38 Cf. HESSE, H. Sidarta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. pp. 86-87. O grifo é nosso.39 Um belo exemplo de “influência biológica” é a fragilidade dos filhotes do Homo sapiens sapiens.Pode-se dizer mesmo que eles nascem, do ponto de vista biológico, pelo menos dez ou doze anos antesde se tornarem completamente aptos para garantir sua própria subsistência. Isto demanda, nadependência de cada cultura, um gigantesco esforço para mudar toda a conformação psíquica voltadapara um estado de dependência (em relação aos pais) para uma circunstância na qual o indivíduodeverá se tornar um adulto, assumindo todas as responsabilidades de tal condição. Neste caso, amutação psíquica costuma ser “imputada” por uma série de rituais iniciáticos, como o descrito para osxamãs em várias culturas, conforme nos esclarece R. N. Walsh: “no xamanismo, o chamado [parainiciação] ocorre com mais freqüência na adolescência ou no início da idade adulta”; muitos destesrituais são cruéis e trágicos, mas capazes de cumprir o papel de transformar o jovem mudando suapostura da submissão para a responsabilidade. Um excelente texto que trata destas questões pode ser

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A Tessitura do Mito 29

função psicológica coloca-se de forma ainda mais penetrante se é compreendida a

tessitura mítica como um manancial simbólico capaz de abrir a perspectiva

interior e inerente aos humanos demasiado humanos , à dimensão dos

mistérios de sua própria inserção na realidade de um mundo já colocado.40 Esta

função psicológica incluiria a iniciação do indivíduo nas ordens do próprio

psiquismo, norteando-o na direção de sua constituição, enriquecimento e

realização. Deste modo, as diferentes mitologias são capazes de responder a estes

anseios psíquicos, “moldando” os indivíduos e preparando-os para a vida em

sociedade, conforme os objetivos, regulamentações e ideais das diferentes

culturas, ou seja, mostrando como a vida deve ser vivida. Ira Progoff, em artigo no

qual analisa a dimensão artística da obra do cineasta Ingmar Bergman, traz luz a

esta questão:

Essa experiência [o cinema de Bergman] também se dá na

dimensão simbólica. Portanto, também é um sonho. E mais

que um sonho. A experiência é intensamente particular e

intimamente pessoal. Mas transmite uma imagem

abrangente da vida que é transpessoal em seu significado.

Sem dizer uma palavra, indica ao homem como sua vida

deve ser vivida. Desse modo a experiência de Bergman é

mais que um sonho desperto. É um mito vivo que, em meio

a todas as suas obras, todos os ciclos de inspiração,

entusiasmo, ansiedade, desapontamento, lhe permite ver a

realidade e manter a perspectiva mesmo quando não há

encontrado em CAMPBELL, J. Temas mitológicos na arte e na literatura criativa. In: CAMPBELL, J.Mitos, Sonhos e Religião. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. pp. 139-175. Ver também WALSH, R. N. OEspírito do Xamanismo. São Paulo: Saraiva, 1993. pp. 46-54.40 Muito da idéia que se tem acerca desta função psicológica do mito remete, quase que linearmente,para a psicologia analítica de Carl G. Jung. Este autor divide o inconsciente formulado inicialmentepor S. Freud em duas regiões: o Inconsciente Pessoal de estrutura similar ao inconscientefreudiano, constituído por conteúdos reprimidos da personalidade e o Inconsciente Coletivo, maisprofundo, o qual detém os padrões simbólicos que ocorrem nos psiquismos de todos os indivíduos,sendo portanto inerentes ao homem, à Humanidade como um todo. Estes padrões simbólicos osarquétipos , são constitucionais da psique humana e, posto isto, a “harmonização” homem-mundopromovida pelos mitos passará, necessariamente, por estes arquétipos, mantendo sobremaneira osmesmos padrões. Esta é uma belíssima explicação para a universalidade dos mitos, tão trabalhada porestudiosos de mitologia comparada como J. Campbell. Sobre a Psicologia Analítica, informaçõesadicionais podem ser obtidas em JUNG, C.G. Fundamentos de Psicologia Analítica. Petrópolis:Vozes, 1972. volume 1.

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A Tessitura do Mito 30

nada visível no nível externo. (...) Essa é a natureza de um

mito (...).41

O mito constituiria, assim, o esteio precípuo capaz de harmonizar o

homem com a realidade função mística (ou metafísica) , bem como o

arcabouço que sustentaria a organização social função sociológica ,

contextualizada em um sistema próprio de mundo função cosmológica ,

garantindo também o “amadurecimento” psicológico para que o indivíduo possa

ser preparado e “orquestrado” de maneira satisfatória função psicológica

para inserção neste mágico e trágico palco que é a vida. O mito é como que um

cordão umbilical capaz de ligar o homem à realidade, a partir de um primevo

reatamento com sua própria natureza.

Com base neste prolegômenos inspirados primordialmente no

pensamento de J. Campbell , pode se partir para o delineamento da estrutura

dos mitos.

2.3. A Estrutura do Mito

Com o discutido até este momento, pode-se perceber a relevância dos

mitos como elementos cruciais para a interação com o real, nos diferentes

aspectos da vida do ponto de vista individual, da sociedade e da natureza como

um todo. É mister, outrossim, que não se perca de vista o caráter eminentemente

humano, cultural e de criação do espírito, representado pelos mitos, em

contraposição ao conceito de rituais míticos como irrupção doentia de instintos ou

de selvagem bestialidade incontrolável. As narrativas míticas têm de ser

apreendidas em sua sobeja densidade espiritual são fenômenos imanentes à

cultura , prevalecendo aspectos distintos nos variados grupamentos sociais.

Sem embargo, nas sociedades em que o mito pôde ser estudado vivo, torna-se

possível a identificação de “padrões” de recorrência na organização intrínseca da

41 Cf. PROGOFF, I. op. cit., p. 194. O grifo é nosso.

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A Tessitura do Mito 31

narrativa mítica, os quais podem ser tomados como um estofo ou mesmo uma

instância modelar na organização de tais mitos. Esta abordagem do problema

propicia um encaminhamento para a seguinte pergunta: qual é a estrutura do

mito? É o que se pretende deslindar nas próximas linhas.

Observe-se a seguir a descrição da criação do mundo no Brihadaranyaka

Upanishad:

No início, esse universo foi apenas o Self, em forma

humana. Ele olhou em volta e nada viu, senão ele mesmo.

Em seguida, no início, gritou: “Eu sou ele!” Daí veio o

substantivo Eu. É esse o motivo por que, mesmo hoje,

quando interpelada, uma pessoa declara inicialmente “Sou

eu”, e, em seguida, diz o outro nome, pelo qual é conhecido.

Ele estava com medo. É por este motivo que pessoas têm

medo de ficar sozinhas. Ele pensou: “Mas do que é que eu

tenho medo? Não há nada, exceto eu mesmo.” E daí em

diante desapareceu seu medo (...)

Ele se sentia infeliz. É por esse motivo que as pessoas não

se sentem felizes quando estão sozinhas. Ele queria uma

companheira. Tornou-se então grande quanto um homem e

uma mulher abraçados. E dividiu esse corpo, que era ele

mesmo, em duas partes. Dessa separação surgiram marido

e mulher (...) Por conseguinte, esse corpo (antes que o

homem case com a esposa) é como uma das metades de

uma ervilha partida (...) Ele se uniu a ela e disso nasceram

homens.

Ela pensou: “Como pode ele unir-se comigo depois de ter

me produzido de si mesmo? Bem, nesse caso, vou me

esconder.” Ela se transformou numa vaca; mas ele se

transformou em um touro e se uniu a ela: e daí nasceu o

gado. (...) Ela se tornou uma cabra, e ele um bode. (...)

Dessa maneira, ele projetou em pares tudo o que existe,

descendo até as formigas.

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A Tessitura do Mito 32

Nesse momento, ele soube: “De fato, eu mesmo sou a

criação, pois projetei todo o mundo.” Por isso, ele foi

chamado de Criação (...).42

Nesta narrativa mítica relativa à origem do cosmo podem se tornar já

perceptíveis alguns elementos “arquitetônicos” dos mitos. A história se inicia em

um “momento” que foi referido como “No início”, sem que qualquer referência ao

tempo possa ser inferida. O fato originário se deu em um Tempo Primordial,

completamente dissociado do tempo ordinário no qual os homens estão

“imersos”.43 Este Tempo Primordial ou Tempo Mítico não perceptível ou

possível à experiência pelos homens comuns44 do tempo presente, traz em si a

dimensão do Sagrado. Este instante inicial é pleno em perfeição,45 beatitude e

sacralidade, por sua abrangência de primeira manifestação da criação, santificada

e prima. Ademais é o Tempo Primordial o que realmente importa, e não as

epifanias subseqüentes. A totalidade de tudo o que existe teria se originado deste

tempo “passado”, não ordinário, em que os incontornáveis eventos narrados pelo

mito teriam ocorrido. Expressa-se um essencial envolvimento com os

acontecimentos “recontados”, havendo interseção destes com a totalidade da vida

humana, na medida da sua própria existência. Neste aspecto, a narrativa mítica

42 O Brihadaranyaka Upanishad é um texto clássico da mitologia indiana, datado do séc. VIII a.C. Cf.CAMPBELL, J. O Vôo do Pássaro Selvagem., pp. 85-86.43 O Tempo Primordial, ou Tempo Mítico é de um estatuto radicalmente distinto do tempo banal noqual o homem está imerso: “Kananciué konre hateboenekre (o Criador não nasceu), ele sempreexistiu!... Não sei como, mas ele é a origem das coisas. Ele não teve pai, nem mãe, ou qualquercompanheiro. Era só e único. (...) Ele não tinha idade, porque naquela época não se contava otempo”. Cf. PERET, J.A. Mitos e Lendas Karajá InãSon Wéra. Rio de Janeiro, 1979. p. 15. O grifo énosso.44 Neste caso, o acesso é vedado aos homens “comuns”, mas não aos iniciados, que podem realizar taisincursões à dimensão sagrada deste Tempo Primordial, através das técnicas de êxtase. Cf. ELIADE,M. O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase. São Paulo: Martins Fontes, 1998. pp. 15-47, 287-318.45 Esta perspectiva do Tempo Primordial como excelso em perfeição abre a perspectiva para aescatologia, uma vez que, dada progressiva decrepitude do mundo, torna-se imprescindível o retorno àperfeição, o recomeço a partir do princípio sagrado, na dependência da destruição do cosmocorrompido e desagregado, que se torna caos para, a seguir, se reconstituir em nova ordenação quepode ser cíclica, caracterizando, se recorrente, um Mito do Eterno Retorno. Cf. ELIADE, M. Mito eRealidade, pp. 53-54. Mais a frente, na seção sobre os MITOS COSMOGÔNICOS, esta discussão seráretomada.

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A Tessitura do Mito 33

remeteria a uma dimensão pretérita, que em si contém todos os eventos que dão

conta da realidade, na qual hoje o mundo e todas as coisas estão inseridos: Sobre

este aspecto, M. Eliade relata que

O mito conta uma história sagrada; ele relata um

acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo

fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra

como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma

realidade passou a existir, seja uma realidade total, o

Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie

vegetal, um comportamento humano, uma instituição.46

O mundo se tornou, se constituiu, a partir destes acontecimentos sagrados,

ou seja, ele passou a ser. E isto se deveu diretamente à atuação de um (ou mais)

Ente (s) Sobrenatural (is) no caso da narrativa acima, o Self , os quais

operando neste princípio puderam dar forma e originar tudo aquilo que é hoje

como o “homem e a mulher abraçados”47 que se separaram em marido e mulher,

originando toda “Criação”, conforme o narrado no Brihadaranyaka Upanishad.

Por sua ação, verdadeira irrupção do sagrado limiar da excelsitude , é que

46 Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade, p. 11.47 Esta temática mítica da “separação de corpos” está presente também na filosofia grega, como nopasso 189d-193d do Banquete de Platão, no momento do discurso de Aristófanes sobre o amor: “Emprimeiro lugar, eram três os gêneros da humanidade, não dois como agora, o masculino e o feminino,mas havia a mais um terceiro, comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida acoisa; andrógino era então um gênero distinto (...) era a forma de cada homem, com o dorso redondo,os flancos em círculo; quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto das mãos, dois rostos sobreum pescoço torneado, semelhantes em tudo; mas a cabeça sobre os dois rostos opostos um ao outroera uma só, e quatro orelhas, dois sexos, e tudo o mais como desses exemplos se poderia supor. (...)Eram por conseguinte de uma força e de um vigor terríveis, e uma grande presunção eles tinham; masvoltaram-se contra os deuses (...) Depois de laboriosa reflexão, diz Zeus: ‘acho que tenho um meio defazer com que os homens possam existir, mas parem com a intemperança (...) Logo que o disse pôs-sea cortá-los em dois (...) e a cada um que cortava mandava Apolo voltar-lhe o rosto e a banda dopescoço para o lado do corte, a fim de que, contemplando a própria mutilação, fosse mais moderado ohomem, e quanto ao mais ele também mandava curar. Apolo torcia-lhes o rosto, e repuxando a pele detodos os lados para o que agora se chama o ventre, como as bolsas que se entrouxam, ele fazia uma sóabertura e ligava-a firmemente no meio do ventre, que é o que chamam umbigo. (...) Por conseguinte,desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ela seunia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriamde fome e inércia geral (...) É então de há tanto tempo que o amor de um pelo outro está implantadonos homens, restaurador de nossa antiga natureza, em sua tentativa de fazer um só de dois e de curara natureza humana”. Cf. PLATÃO. O Banquete. Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. 2a

edição. Rio de Janeiro: Editora Abril Cultural, 1979. passos 189d-193d.

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A Tessitura do Mito 34

as coisas são como são e, na realidade, tudo o que existe, está aí na exata medida

para demonstrar isto. Sem a atuação e intervenção destes seres, nada seria

como é, ou mais propriamente, nada seria. Dois elementos centrais podem ser

extraídos desta análise inicial e das características gerais da “arquitetura” ou

estrutura do mito: (1) trata-se de uma narrativa que dá conta de um vir a ser, de

como algo se põe no manifesto de forma plena; (2) há possibilidade de incursão

do Sagrado no mundo, ou seja, a interferência de uma ordem sobrenatural, a qual

estabelece um estatuto de confiabilidade que realmente fundamenta o mundo,

tornando-o o que é hoje:

O mito é considerado uma história sagrada e, portanto, uma

história “verdadeira”, porque sempre se refere a realidades.

O mito cosmogônico é “verdadeiro” pois a existência do

Mundo está aí para prová-lo.48

Assim é, por exemplo, com determinados aspectos da própria “forma” pela

qual o povo se conduz a utilização de uma espécie de moradia, o hábito de se

sentar desta ou daquela maneira, o predomínio de um tipo de alimentação em

detrimento dos outros; enfim, das características mais simples às condutas mais

refinadas, tudo “passa” por estes acontecimentos mágicos dos instantes primeiros.

É por conta disso que, se uma

certa tribo vive da pesca, isso é porque, nos tempos míticos,

um Ente Sobrenatural ensinou seus ancestrais a apanhar e

cozer os peixes. O mito conta a história da primeira

pescaria, efetuada por um Ente Sobrenatural, e dessa forma

revela simultaneamente um ato sobre-humano, ensina aos

homens como devem efetuá-lo por seu turno e, finalmente,

explica por que essa tribo deve nutrir-se desta maneira.49

48 Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade., p. 12. O grifo do autor.49 Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade., p. 16.

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A Tessitura do Mito 35

Os mitos possuem este estatuto de sacralidade, sendo plenos em verdade e

irrefutabilidade. Ao contrário das fábulas,50 trazem em seu conteúdo a explicação

para o mundo e a realidade; dão conta, igualmente, da condição humana atual,

herança direta de acontecimentos ocorridos no Tempo Primordial, como

conseqüência da atitude criadora por parte dos Entes Sobrenaturais. O homem

destas sociedades nas quais o mito permanece vivo tem sua dimensão cósmica e

existencial como devedora deste tempo dos grandes feitos, no qual ações e fatos

modelares constituíram a ordem contida no mundo, ou seja, este essencial precede

a existência.51 Assim constitui-se o sentimento do que realmente possui

significado em relação à vida humana, propiciando o estabelecimento de uma

sustentação própria à existência e, mais ainda, de um sentido pleno de que há algo

genuinamente real, o qual pode ser apreendido pela verdade inexorável e

inalienável dos feitos primeiros. A questão é vital para este homem em verdade

é o que realmente importa não sendo as narrativas, isto posto, de meras

especulações abstratas ou de criações artísticas ou seja, são destituídos de um

estatuto estético , mas sim de uma instância capaz de satisfazer a profundas

necessidades psíquicas, sociais, culturais e metafísicas. Além disto, as histórias

trazem elementos para nortear a atitude humana, tornando-se verdadeiros

50 É interessante ressaltar a existência desta clara distinção mitos, “verdadeiros” e fábulas,“falsas” nas sociedades em que o mito se mantém vivo. Exemplificando com uma citação extraídade M. Eliade, “os Cherokees distinguem entre os mitos sagrados (cosmogonia, criação das estrelas,origem da morte) e as histórias profanas, que explicam por exemplo, certas particularidadesanatômicas ou fisiológicas dos animais.” Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade., p. 12. Conforme o jádiscutido acima, as conjecturas acerca da veracidade ou falsidade das narrativas míticas se constitui,no estado atual da arte, em um falso problema (ou melhor, em uma questão “ultrapassada”), no que sepode concordar com J. Campbell: “A tendência comum nos dias atuais de interpretar a palavra ‘mito’como significado de ‘inverdade’ é quase com certeza um sintoma de incredibilidade e conseqüenteineficácia de nossos próprios ensinamentos míticos ultrapassados, tanto os do Velho quanto do NovoTestamento (...) Mitos vivos não são idéias equivocadas e não nascem nos livros. Não devem serjulgados como verdadeiros ou falsos, mas como eficazes ou ineficazes, salutares ou patogênicos”. Cf.CAMPBELL, J. O Vôo do Pássaro Selvagem: ensaios sobre a universalidade dos mitos. Rio deJaneiro: Editora Rosa dos Tempos, 1997. p. 18. O grifo é nosso.51 Conforme M. Eliade “O homem é como é hoje porque uma série de eventos teve lugar ab origene.Os mitos contam-lhe esses eventos e, ao fazê-lo, explicam-lhe como e por que ele foi constituído dessamaneira. Para o homo religiosus, a existência real, autêntica começa no momento em que ele recebea comunicação dessa história primordial e aceita as suas conseqüências”. Cf. ELIADE, M. Mito eRealidade., p. 85. O grifo é do autor.

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A Tessitura do Mito 36

paradigmas para as ações e a postura dos homens,52 podendo-se avaliar a

magnitude desta premência modelar na citação a seguir:

Como foi transmitido desde o início da criação da terra,

assim devemos sacrificar... Como fizeram os nossos

ancestrais na antigüidade, assim fazemos hoje.53

Sem embargo, é mister que se comente que estes feitos míticos não trazem

em si qualquer garantia de primazia do bem ou da existência da bondade como

paradigma em relação à constituição de uma moral. Marcel Detienne discute,

inclusive, a posição de alguns estudiosos como F. M. Müller anteriormente

citado , crentes em que

o trabalho reservado à mitologia comparada é explicar o

elemento estúpido, selvagem e absurdo na mitologia.54

Com o que concorda Paul Decharme.55 Em verdade, retomando o conceito

de função mística ou metafísica previamente abordado, o mito enquanto

produto humano capaz de interpor-se entre homem e real, trará como seus

elementos constitutivos também as dimensões selvagem e trágica, mais facilmente

perceptíveis na contextura da própria existência. A dor determinada pelas mais

diferentes etiologias, a inclemência das forças da natureza que parecem manter

o homem a sua mercê , a dimensão umbrosa da perda, são motes presentes nas

mitologias arcaicas e que se traduzem, de várias medidas, em rituais algumas

vezes bárbaros e brutais.56 Uma conseqüência relevante desta não relevância

52 Conforme a função psicológica anteriormente discutida.53 Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade (p. 12), citando HERMANNS, M. The Indo-Tibetans. Bombaim,1954. p. 66.54 Cf. DETIENNE, M. A Invenção da Mitologia., p. 17. O grifo é do autor.55 Também P. Decharme confirma que “o objeto da ciência dos mitos são as fábulas monstruosas,repugnantes e imorais”. Cf. DETIENNE, M. A Invenção da Mitologia., p. 17.56 Cf. ELIADE, M. O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase., pp. 131-168.

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A Tessitura do Mito 37

moral nos eventos primordiais presentes nas narrativas míticas primitivas, passa

pela distinção sagazmente apontada por M. Detienne, entre mito e religião.57

Reiterando estas diferenças com as fábulas já esboçadas acima , os

mitos narram fatos que instauraram uma profunda alteração ou mesmo a

criação do status quo humano [veja-se no Brihadaranyaka Upanishad: “Ele

estava com medo. É por este motivo que pessoas têm medo de ficar sozinhas

(...)”];58 em contraposição, as fábulas podem dar conta até de pequenas e menos

importantes modificações no mundo ainda que, no geral, tais fábulas sejam

consideradas inverídicas e/ou cômicas , mas de forma alguma são capazes de

modelar ou modificar a condição humana. Isto, apenas às narrativas míticas

é possível.

No escopo deste conceito de mito como história sagrada uma instância

inalienável de revelação emerge, naturalmente, uma tensão com o profano

representado pelo mundo ordinário , este último oriundo do fato primevo, deste

primeiro momento isagógico. Põe-se uma situação em que o profano é gestado no

útero do sagrado. Este contexto delimita a importância do mito para as sociedades

nos quais ele está vivo: ele traz luz sobre tudo o que existe e, posto isso, há

necessidade continuada de revivê-lo, reatualizá-lo experienciando-se esta

dimensão real primígena , o que é feito através de sua narrativa pelos que

sabem fazê-la, por aqueles que detêm o conhecimento. Os que conhecem são

capazes de transpor os limites do cotidiano para inserção no sagrado como por

57 Para M. Detienne, a religião é dotada de um nítido valor moral ou ético , o que não estápresente ao menos de forma clara nas narrativas míticas, sobretudo nas sociedades arcaicas. Naspróprias palavras do autor: “Para separar a religião e os mitos basta um único critério: o sentidomoral. ‘Quando se fala na existência de um grande ser, justo e bom, que tudo faz e não morre’ não hádúvida que estamos no domínio da religião. Se, ao contrário, a razão é aviltada e o senso moral seescandaliza, trata-se de mitologia”. Cf. DETIENNE, M. A Invenção da Mitologia., pp. 37-40.58 Um outro exemplo ilustrativo acerca da profunda modificação promovida na existência porrealizações destes Entes Sobrenaturais no Tempo Primordial, pode ser percebida em várias instâncias.Um exemplo é dado por M. Eliade, na caracterização do mito da divindade assassinada: “Algo demuito importante para a existência humana surge em decorrência de sua morte [da divindade] (...)Pode-se dizer também que essas são as primeiras divindades cuja história antecipa a históriahumana: por um lado, sua existência é limitada no Tempo; por outro, sua morte trágica irá constituira condição humana.” Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade, pp. 91-92. O grifo é nosso.

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A Tessitura do Mito 38

exemplo os poetas, os iniciados e os xamãs59 , partindo do tempo ordinário,

profano, e ingressando no tempo primevo em que as coisas foram concebidas. É

preciso “revisitar” esse primórdio, mantendo-o sempre vivo, apreendendo-o em

toda a sua totalidade, premissa básica para qualquer tipo de conhecimento; neste

movimento, para se conhecer o que quer que seja, é imprescindível retornar à

origem, perscrutar como esse algo veio a ser:

Não se pode realizar um ritual, a menos que se conheça

sua “origem”, isto é, o mito que narra como ele foi efetuado

pela primeira vez.60

A possibilidade de inserção neste primórdio mágico abre um fecundo leque

de possibilidades ritualísticas.61 É plenamente reconhecida, em várias culturas, a

limitação (e impedimento) para a narrativa em qualquer instante, das histórias

sagradas do Tempo Mítico. De forma alguma isto pode ser banalizado. É de suma

importância que haja toda uma pertinência ritual, capaz de criar um ambiente e

um contexto propícios à incursão nas origens, momento no qual a dimensão

transcendente que dá sustentação a tudo aquilo que é real, se coloca no ordinário

se abrindo como um boqueirão , no imanente. Há, em geral, um melhor

59 Em diferentes culturas é bastante arraigado o mito de ascensão do xamã para as zonas mágicas ousagradas, conforme o delimitado por M. Eliade: “A técnica xamânica por excelência consiste napassagem de uma região cósmica para outra, da Terra para o Céu ou da Terra para o Inferno. Oxamã conhece o mistério da ruptura dos níveis. (...) O simbolismo do ‘centro’ não é necessariamenteuma idéia cosmológica. Na origem, ‘centro’ possível sede de uma ruptura de níveis qualquerespaço sagrado, isto é, qualquer espaço que seja marcado por uma hierofania e que manifesterealidades (ou forças, figuras, etc.) não pertencentes ao nosso mundo, provenientes de outro lugar,especialmente o Céu. (...) Mais tarde, imaginou-se que a própria manifestação do sagrado, em si,implicava numa ruptura de níveis.” Cf. ELIADE, M. O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase.,pp. 287-288.60 Cf. ELIADE, M., Mito e Realidade (p. 15), citando STEIN, R.A. Recherches sur l’épopée et lebarde au Tibet. Paris, 1959, pp. 318-319.61 Isto só é possível pela não aceitação da irreversibilidade do tempo pelo homem arcaico, propiciandosua inserção no mundo mágico dos Entes Sobrenaturais, a despeito do deslocamento em qualquer“direção” do eixo passado-presente-futuro, como o ilustrado por J. A. Peret: “O pajé é quemestabelece o contato entre o mundo dos homens e o mundo dos espíritos. Ele vive uma outra realidade,um mundo mágico em que seu universo mental se expande e consegue um direto relacionamento comas forças da natureza, que são fontes inesgotáveis de experiências sensoriais.” Cf. PERET, J.A. op.cit. p. 11.

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A Tessitura do Mito 39

momento para que a narrativa seja revivida pelos iniciados ou em iniciação ,

conforme o explicitado por Eliade:

(...) os mitos não devem ser recitados senão durante um

lapso de tempo sagrado (geralmente durante o outono ou

o inverno, e somente à noite). Esse costume se conservou

mesmo nos povos que ultrapassaram o estádio arcaico da

cultura. Entre os turco-mongóis e os tibetanos, as cantigas

épicas do ciclo Gesar só podem ser recitadas à noite e

durante o inverno. “A recitação é comparada a um poderoso

sortilégio. Ela ajuda a obter vantagens de todo tipo,

particularmente êxito na caça e na guerra (...) Antes de se

iniciar a recitação, prepara-se uma área, que é pulverizada

com farinha e cevada torrada. A audiência senta-se ao

redor. O bardo recita a epopéia durante diversos dias.

Dizem que, em outros tempos, viam-se nessa ocasião as

pegadas dos cascos do cavalo de Gesar sobre a área

preparada. A recitação, portanto, provoca a presença do

herói”.62

Ademais, para a evocação é preciso que se saiba exatamente como tudo se

passou nas origens, ou seja, o ritual não poderá ser realizado se não se possui o

conhecimento de como as coisas se tornaram a primeira vez no Tempo

Primordial. Neste contexto em que se conhecem as origens e se realiza o ritual em

momento propício, o iniciado “salta” no tempo, retornando às priscas épocas,

convivendo com os Entes Sobrenaturais, com os deuses, vivenciando os eventos

fantásticos e tornando-se parte daquele mundo mágico, de outra forma

inacessível: em verdade, ocorre uma verdadeira irrupção do sagrado no tempo

ordinário, este último subsunto pela plenitude do Primórdio Mítico.

Esta é a perspectiva de se viver o mito, podendo-se experienciá-lo em

plenitude, reiterando-se os grandes fatos da aurora do que veio a ser. Neste

âmbito, percebe-se a importância da tradição oral, uma vez que reviver o mito

passa estritamente por narrá-lo magicamente. É a palavra que, plena em

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A Tessitura do Mito 40

sacralidade, é capaz de mover o tempo instaurando os primórdios tornando-

se real, reconciliando o homem com sua dimensão beatífica das origens. Uma vez

engendrada em um todo ritualístico, a palavra tem o dom de fazer o cosmo vir a

ser, ciclicamente a cada vez que o mito é narrado , em uma rememoração

que abre a perspectiva intemporal para tudo o que indefectivelmente é.63 Destarte,

o poder mágico da palavra é criador, subsumindo em seus próprios meandros o

princípio uma arkhé (ajrchv) e o ser to on (toV o!n) , conforme nos

ilustra E. Cassirer:

(...) a Palavra se converte em uma espécie de

arquipotência, onde radica todo o ser e todo acontecer. Em

todas as cosmogonias míticas, por mais longe que

remontemos em sua história, sempre volvemos a deparar

com esta posição suprema da Palavra.64

A palavra, constituída de poder, torna-se a própria dimensão do sagrado,

tornando-o manifesto no mundo e colocando-se em um plano de fundamentação

ontológica da realidade. Contextualizado desta maneira o dircurso, não é

este constituído por meros símbolos: há uma identidade essencial entre a palavra e

o que ela designa:65 pulula uma coincidência perfeita entre a palavra e a coisa, o

que decorre de uma radical superação das tensões entre “signo” e “designado”.66

Falar, narrar as histórias sagradas é criar, recriar o cosmo como o que foi feito na

origem. Disto se depreende que no processo de reatualização mítica, deste

renovado vir a ser, há uma participação capital desta como instrumento para este

devir é através da palavra que o mundo se refaz,67 magicamente.

62 Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade, p. 20. O grifo é do autor.63 Cf. E. Cassirer “Também a palavra, como o deus ou o demônio, não é para o homem uma criaturapor ele própria criada, mas se lhe apresenta como algo existente e significativo por direito, como umarealidade objetiva”. Cf. CASSIRER, E. op. cit., p. 55.64 Cf. CASSIRER, E. op. cit., p. 64.65 Ou seja, “as palavras não exprimem tão somente o conteúdo da percepção como mero símboloconvencional, estando misturado a ele em uma unidade indissolúvel.” Cf. CASSIRER, E. op. cit., p.75.66 CASSIRER, E. op. cit., p. 76.67 Vale lembrar que para algumas tradições também o mundo se faz magicamente, através da palavra.Pode-se lembrar aqui do Gênesis 1, 3: “Deus disse: ‘Faça-se a luz!’ E a luz foi feita.”; bem como do

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A Tessitura do Mito 41

O reviver do mito ab origine não é factual ou desejável, ele é necessário,

crucial, vital. Reviver as narrativas o que implica necessariamente, conforme o

visto acima, em conhecê-las é a forma de perscrutar a origem das coisas,

apreendendo não apenas como elas vieram a ser, mas também onde podem ser

encontradas e assimiladas em sua excelsitude. O homem só tem o conhecimento

se é capaz de acessar o Tempo Mítico, vendo e vivendo os primígenos momentos.

Este conhecimento próprio instaurado no seio da narrativa mítica é de

origem esotérico, primeiro por ser acessível apenas para os iniciados ou em

iniciação , e segundo por trazer em si um poder mágico, capaz de permitir a

aquele que conhece a origem de alguma coisa, manipulá-la, tornando-a mais

intensa, amainando-a, ou até mesmo com o poder de fazê-la aparecer ou extinguir-

se. Conforme o amplamente exposto, a idéia de que conhecer pressupõe este

retorno às origens com o vivenciar dos feitos modelares dos Entes

Sobrenaturais68 é central nestas sociedades nas quais os mitos permanecem

vivos. Neste aspecto os exemplos sobejam:

Em Timor, por exemplo, quando germina um arrozal, dirige-

se ao campo alguém que conhece as tradições míticas

referentes ao arroz. (...) Ele passa a noite na cabana da

plantação, recitando as lendas que explicam como o homem

veio a possuir o arroz (mito de origem). (...) Recitando o

mito de origem, obriga-se o arroz a crescer tão belo,

vigoroso e abundante como era quando apareceu pela

Evangelho segundo São João (João 1, 1-4): “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deuse o Verbo era Deus. Ele estava no princípio junto de Deus. Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foifeito. Nele havia vida, e a vida era a luz dos homens”. Cf. BÍBLIA SAGRADA. 94a edição. São Paulo:Editora Ave-Maria, 1995. p. 49 e p. 1384. Outra análise possível diz respeito ao deus que, em primeirolugar cria a si mesmo pela palavra, para a seguir iniciar o processo de geração do mundo; um bomexemplo foi anteriormente citado no Brihadaranyaka Upanishad, no qual o Self gritou “Eu sou ele!”,de modo que antes dele não havia divindade alguma, nem tampouco existia outra próximo a ele. Cf.CAMPBELL, J. O vôo do Pássaro Selvagem., pp. 85-86. 68 Sobre a instância modelar destes grandes feitos e a necessidade de conhecimento e atualizaçãodestes para a realização das mais diferentes “tarefas” na vida, é apresentado por E. Cassirer comentando o trabalho Os Nomes de Deus de Hermann Usener que “O amanho da terra emrepouso, assim como a segunda aração, a semeadura, a extirpação, do joio, a ceifa dos cereais, assimcomo sua colheita e armazenamento nos celeiros, tudo isto tem aqui o seu ‘deus especial’. E nenhumadessas tarefas pode lograr êxito se o homem não invoca o deus apropriado, segundo as regrasprescritas e por seu nome exato.” Cf. CASSIRER, E. op. cit., pp. 35-36. O grifo é nosso.

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A Tessitura do Mito 42

primeira vez. (...) Ele o força magicamente a retornar à

origem, isto é, a reiterar sua criação exemplar.69

Para que o remédio ou o canto curador tenham efeito, é

preciso conhecer a origem da planta, a maneira como foi

concebida pela primeira mulher.70

Ademais, em íntima composição com este retorno às origens está a

memória o conhecimento por excelência , a possibilidade de atingir por suas

próprias lembranças, o passado primordial, o Tempo Mágico. Tão importante

quanto conhecer as origens é ser capaz de recordar toda sua dimensão pretérita:

Aquele que é capaz de recordar dispõe de uma força

mágico-religiosa ainda mais preciosa do que aquele que

conhece a origem das coisas.71

Disto se depreende que o esquecimento se constitui em um terrível

equívoco, um “capital pecado”. Dada a importância da memória, olvidar o ato

divino se torna terrível sacrilégio. Ao homem, sob este aspecto, não é permitido

esquecer; é mister que sempre sejam lembrados e atualizados os grandes

feitos míticos, em um rito conforme e em um tempo propício.

Neste contexto de primaz relevância do princípio um visceral prestígio

mágico das origens , pode-se estabelecer um paralelo de “radical” distinção

entre as comunidades arcaicas nas quais o mito permanece vivo e as sociedades

contemporâneas. No primeiro caso, os homens são o resultado de um (ou mais)

eventos míticos pertencentes ao passado primordial; ao contrário, o homem

moderno se considera, em grande medida, constituído pela história72 sendo um

verdadeiro produto desta , como o enfatizado por M. Eliade:

69 Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade, p. 19. O grifo é do autor.70 Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade, (p. 20), citando NORDENSKIÖLD, E. La conception de l’âmechez les Indiens Cuna de l’Isthme de Panama. Journal des Américanistes, 24: 5-30, 1932.71 Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade, p. 19. O grifo é do autor.72 Este ponto de vista de M. Eliade está sujeito a um grande debate, do ponto de vista histórico efilosófico. Conforme o apresentado anteriormente neste capítulo, autores prévios já haviam se

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A Tessitura do Mito 43

Um homem moderno poderia raciocinar do seguinte modo:

eu sou o que sou hoje porque determinadas coisas se

passaram comigo, mas esses acontecimentos só se

tornaram possíveis porque a agricultura foi descoberta há

uns oito ou nove mil anos e porque as civilizações urbanas

se desenvolveram no antigo Oriente Próximo, porque

Alexandre Magno conquistou a Ásia e Augusto fundou o

Império Romano, porque Galileu e Newton revolucionaram a

concepção do universo, abrindo o caminho para as

descobertas científicas e preparando o advento da

Revolução Francesa (...) e assim por diante.73

Os mitos podem ser compreendidas como uma instância capaz de colocar

o Homem em harmonia com a totalidade do real um verdadeiro cordão

umbilical, como o exposto na primeira seção deste capítulo , possuindo uma

estrutura íntima e própria de discurso, no qual sobressaem aspectos “estruturais”

recorrentes quando são analisadas as mais diferentes narrativas. Estas

peculiaridades imanentes à tessitura próprio do mito podem ser sintetizadas, do

seguinte modo:74

(1) Os mitos são histórias consideradas absolutamente verdadeiras

(contrapostas às fábulas e estórias inventadas, no seio das sociedades

nas quais o mito permanece vivo);75

(2) as histórias falam dos Entes Sobrenaturais, seres fantásticos que com

sua mágica intervenção puderam

debruçado sobre o binômio “mito-história” (p. ex. Voltaire, G. Vico e F. W. J. Schelling). Umadiscussão bastante ilustrativa sobre esta questão das relações entre Mito e História pode ser encontradaem PRIEST, J.F. Mito e sonho na Escritura Hebraica. IN: CAMPBELL, J. Mitos, Sonhos e Religião.Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. pp. 50-69., texto no qual o autor pontua que na Antiga Israel “a posiçãocentral no pensamento israelita é ocupada pela história e não pelo mito, e que a sobrevivência do mitocomo tal é controlada pelo senso histórico” (p. 55). Sem embargo, o emprego do “antagonismo”Mito/História neste contexto serve muito mais para demarcar uma possível distinção entre as culturasarcaica e contemporânea como o exemplificado por M. Eliade , do que estabelecer uma polêmicaacerca do assunto o que, obviamente, foge ao escopo do presente trabalho.73 Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade, pp. 16-17.74 Cf. ELIADE, M. Aspects du Mythe. Paris: Gallimard, 1963. pp. 30-31. O grifo é do autor.

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A Tessitura do Mito 44

(3) criar o mundo ou qualquer outro algo , ou seja, tornar possível

um vir a ser em um tempo próprio, das origens o Tempo

Primordial , sagrado e “apartado” do nosso tempo ordinário e

profano;

(4) as ações mágicas, nos tempos primevos, destes Entes Sobrenaturais

têm um aspecto modelar para toda as atividades humanas, verdadeira

conjuntura espiritual para as sociedades “primitivas”;

(5) conhecendo-se as origens das coisas, como elas foram constituídas

pelos Entes Sobrenaturais, torna-se possível dominá-las e manipulá-

las com os mais diferentes objetivos por exemplo, fazer as plantas

crescerem ou promover a cura de um enfermo o que pode ser

obtido pela

(6) rememoração das narrativas com capital importância da memória

, vivendo-se o mito e tornando-se impregnado por seu poder

sagrado, capaz de, no contexto de um ritual, tornar presente o Tempo

Primordial e os Entes Sobrenaturais, mantendo-se contato com estes e

vendo-os agir na formação das coisas; para este reviver mítico tem

importância capital a

(7) palavra, cuja preeminência sobre a criação do mundo é inexorável,

tanto no primo instante da geração no qual a divindade e/ou o

mundo podem ser o “objeto” de sua força criadora , quanto nas

instâncias ritualísticas de recriação cósmica, levada a cabo pelos

iniciados (pajés, xamãs, e outros).

Ademais, torna-se patente que os mitos são destituídos de uma clara

interface ética ou moral com uma primazia do bem ou de uma atitude moral

por dever, conforme as éticas aristotélica e kantiana, respectivamente , nem

75 Ratificando o exaustivamente visto nas páginas anteriores, a questão da “veracidade” ou “falsidade”das narrativas míticas constitui-se, na abordagem presentemente levada a cabo, em um problemaultrapassado, obsoleto e sem qualquer relevância.

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tampouco estética no sentido de criação artística , mas outrossim ontológica,

uma vez que o principal na narrativa mítica é dar conta do que é.

Estes são os aspectos “estruturais” de maior relevância, os quais podem ser

compostos com suas funções gerais, explicitados a seguir no belo texto de

Bronislav Malinowski:

O mito, quando estudado ao vivo, não é uma explicação

destinada a satisfazer uma curiosidade científica, mas uma

narrativa que faz reviver uma realidade primeva, que

satisfaz a profundas necessidades religiosas, aspirações

morais, a pressões e a imperativos de ordem social, e

mesmo a exigências práticas. Nas civilizações primitivas, o

mito desempenha uma função indispensável: ele exprime,

enaltece e codifica a crença; (...) garante a eficácia do ritual

e oferece regras práticas para a orientação do homem. O

mito, portanto, é um ingrediente vital da civilização

humana; longe de ser uma fabulação vã, ele é ao contrário

uma realidade viva, à qual se recorre incessantemente; não

é absolutamente uma teoria abstrata ou uma fantasia

artística (...).76

Coligindo estas idéias e conceitos acerca das narrativas míticas, percebe-se

que seu plano essencial ultrapassa em muito as questões lingüísticas, tais como as

apontadas por F. M. Müller que trazem em seu cerne vários problemas

concernentes à veracidade ou falsidade de tais mitos , ou dos complexos

fenômenos psíquicos, ou de instâncias intelectivas modelares de comportamento,

ou de experiências oníricas ou contemplativas em relação à natureza. A

abrangência do mito é extremamente mais radical, constituindo uma premência

intrinsecamente humana, um fenômeno do a!nqrwpoς, inalienável de sua própria

condição, formadora desta última e intercessora da indulgente natureza humana

com a realidade que, de forma insofismável, se coloca.

76 Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade (p. 23), citando MALINOWSKI, B. Myth in PrimitivePsychology. IN: Magic, Science and Religion, New York, 1955. pp. 101-108. O grifo é nosso.

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A perspectiva mais ampla e genética dos mitos presentemente balizada,

trará sustentação para uma análise um pouco mais detida da perspectiva

cosmológica das narrativas míticas representável nos mitos cosmogônicos ,

esta última a de maior interesse no escopo da investigação que está em curso.

1.4. Os Mitos Cosmogônicos

Os mitos cosmogônicos dão conta da origem do mundo e, posto isto,

podem ser alocados entre os chamados mitos de origem.77 De um modo geral as

cosmogonias narram os eventos propiciadores da criação ou aparecimento

de um todo organizado, o cosmo, ou seja, estes mitos relatam como a partir do

nada ou da desordem primeira pode surgir a ordem perceptível no mundo

que é dado. Deste modo, pode-se vincular estas cosmogonias à constituição de

uma verdadeira ontologia a qual trata de como o real veio a ser, ou seja, do

estatuto original de tudo aquilo que é característica esta intrínseca às narrativas

míticas analisadas em uma perspectiva mais geral, de acordo com o já ressaltado.

Em relação à função delineada por estes mitos, eles desempenham um

papel cosmológico (cf. acima), de forma a instituir uma visão cósmica inerente à

própria organização da realidade. A estrutura geral é de todo similar à já

mencionada: Entes Sobrenaturais, em um Tempo Primordial, desempenham

ações que culminam com a criação do mundo e de todas as coisas nele existentes.

A este Tempo Mágico pertence a origem, o “começo” de tudo o que existe. Os

eventos ocorridos, ou contidos, nestes primígenos instantes podem ser revividos

77 Os mitos de origem referem-se ao surgimento de qualquer coisa, o homem, as plantas, uma doença,um remédio. Sob esta perspectiva, os mitos cosmogônicos poderiam ser considerados variantes dosmitos de origem por tratarem da origem do mundo, do cosmo. Entretanto, na realidade, estasimplificação é bastante perigosa. Todo mito de origem de algo se constitui em última análise comoprolongamento de uma cosmogonia, uma vez que a criação do mundo é a criação por excelência, ouseja, todo novo aparecimento pressupõe um mundo já dado. Ademais, tanto os mitos de origem quantoo cosmogônico tem como ponto comum a existência de um “começo” e, neste sentido, o primeiro étributário do segundo, uma vez que o começo absoluto é a criação do cosmo. A partir destas brevesconjecturas percebe-se que estes conceitos cosmogonias e mitos de origem ainda que distintos seinterpenetram, devendo sempre ser considerados conjuntamente para a análise. Para umaprofundamento desta discussão ver ELIADE, M. Mito e Realidade, pp. 25-39.

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pelo Iniciado em um ritual no qual é realizada a narração do mito78 , sendo

instaurada uma verdadeira manifestação do sagrado no seio do profano;79 a

vivência deste momento primevo traz em si a possibilidade do conhecimento, pois

torna-se possível apreender por “experienciação” direta o como a totalidade o

real veio a ser.

O mito cosmogônico serve de modelo não somente para a constituição do

mundo mas de toda e qualquer coisa. Isto porque o cosmo organizado e pleno

é o arquétipo, o paradigma para toda a criação, por sua perfeição e por ter sua

genealogia diretamente incrustada no divino afinal, o cosmo é um produto

direto da atuação da (s) divindade (s). Sobre isto coloca M. Eliade:

esse mito [cosmogônico] serve de modelo para toda a

espécie de “criação”; tanto para a procriação de um filho,

como para o restabelecimento de uma situação militar

comprometida ou para um equilíbrio psíquico ameaçado

pela melancolia e desespero.80

Esta permeabilidade à criação de todas as coisas inerente ao mito

cosmogônico é modelar. O reparo das imperfeições, a cura das enfermidades

físicas e psíquicas , a correção da esterilidade da terra, dos animais, da

mulher , o sucesso na guerra, o amparo ao desalento da perda, da morte e da

dor, enfim, todas as instâncias da vida do indivíduo, da coletividade81 e da

natureza podem ser reatualizadas refeitas, recriadas e renovadas pela

78 Nos mitos cosmogônicos, conforme o já assinalado, a “força” criadora da palavra se faz presente,como o pontuado por E. Cassirer: “Este sair da surda plenitude da existência para entrar em ummundo de configurações claras e verbalmente apreensíveis é representado pelo mito, em seu próprioâmbito e em sua própria linguagem imaginativa, pelo contraste entre o caos e a criação. Aqui,novamente, a palavra constitui a mediação, mais uma vez é o discurso que leva a cabo a passagemdessa informe base primeira para a forma do Ser, para a sua articulação interior.” Cf. CASSIRER,E. op. cit., p. 98. O grifo é nosso.79 Em muitos mitos os Entes Sobrenaturais são capazes de recriar o mundo durante o rito mágico,conforme nos esclarece M. Eliade: “(...) é preciso conhecer o mito de origem, que está intimamenterelacionado ao mito cosmogônico. Mas, o que é ainda mais interessante, o Criador é convidado adescer novamente para uma nova criação do Mundo (...)”. Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade, p. 32.80 Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade, p. 33.81 Para algumas culturas a recitação dos mitos cosmogônicos é um evento beneficiário para todos ospartícipes da comunidade, quer vivos ou mortos.

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recitação dos mitos cosmogônicos.82 Isto traz ao homem a noção de harmonia e

unidade fundamental de todas as coisas, algo como a existência de um verdadeiro

estofo ao qual é imanente o que quer que seja real, tudo aquilo que é.

Um interessante aspecto da cosmogonia é a relação existente, em algumas

sociedades, entre estes mitos e as questões de poder político. Neste contexto, o

chefe político quase sempre um rei é capaz de compor em sua própria

existência a ordenação social e cósmica, harmonizando-as. Assim, a gestação de

um novo soberano tem como correspondente mítico83 a própria criação do mundo,

sendo possível a recriação da realidade durante a narrativa mítica. Ademais, em

várias culturas são descritos rituais a maioria relacionados aos festejos de

celebração ao Ano Novo84 nos quais o mundo é renovado com o

estabelecimento de sua plenitude e sacralidade iniciais, ou seja, torna-se criado

como se esta fosse a primeira vez. Desta forma é possível a restituição do cosmo e

sua religação em todas as suas diferentes instâncias ou seja, a constituição de

uma íntima interseção como a natureza e a sociedade85 (além do próprio

homem), tornando-as orgânicas e afins na textura própria do real.

82 Mircea Eliade coloca que “Por ocasião da reatualização dos mitos, a comunidade inteira érenovada; ela reencontra as suas ‘fontes’, revive as suas ‘origens’. A idéia de uma renovaçãouniversal produzida pela realização cultual de um mito cosmogônico é encontrada em muitassociedades tradicionais.” Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade, p. 37.83 Neste caso, durante a gravidez da rainha, os mitos que tratam da origem do cosmo são recontados,em um ritual especificamente destinado à inserção do futuro rei na realidade sagrada de seu mundo ede sua cultura. Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade, pp. 25-39.84 Obviamente, o significado de Ano Novo é variável de uma cultura para outra, na dependência doclima, meio ambiente, tipo de organização social, e outros. Sem embargo, uma característica mais oumenos recorrente em relação ao Ano Novo é a idéia de um tempo cíclico, com princípio, meio e fim,que precisa ser “reiniciado” a cada vez que se suceda o ocaso. O termo está implícito no começo evice-versa. H. Frankfort coloca, por exemplo, que “todo o ano novo tinha um elemento essencial emcomum com o primeiro dia em que o mundo foi criado ou em que foi desencadeado o ciclo deestações.” Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade, (p. 48), citando FRANKFORT, H. Kingship and teGods. Chicago, 1948. p. 319. É importante citar que esta recriação do mundo torna-se vital, uma vezque há sempre a possibilidade de extinção de tudo o que há, caso o cosmo não seja recriado. Cf.ELIADE, M., Mito e Realidade, pp. 44-48.85 Um bom exemplo desta coalizão “sociedade-natureza” cuja ordenação encontra-se centralizadano monarca é discutida por Jean-Pierre Vernant, em uma excelente análise dos primórdios dacivilização grega, referente ao período micênico (cerca de 1.400 a 1.200 a. C.): “No cume daorganização social, o rei usa o título de wa-na-ka, ánax. Sua autoridade parece exercer-se em todosos níveis da vida militar: é o palácio que dirige as encomendas de armas, o equipamento dos carros,os recrutamentos de homens, a formação, a composição, o movimento das unidades. Mas acompetência do rei não fica confinada ao domínio da guerra mais do que o da economia. O ánax é

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A Tessitura do Mito 49

Discutiu-se anteriormente o aspecto de pureza, sacralidade e perfeição do

Tempo Primordial das narrativas míticas. A idéia de pureza, perfeição e beatitude

do princípio é de suma relevância para o entendimento do papel modelar que as

narrativas míticas têm na vida humana. Quase como ato contínuo a esta questão

central surge, em diversas culturas, o conceito de um mundo que, ao longo do

tempo, se corrompe e se torna caótico, em comparação ao primo e egrégio

instante de formação cósmica. Na “esteira” desta idéia surgem, naturalmente, os

mitos escatológicos que dão conta do termo de um mundo decrépito o qual

deverá ser aniquilado como pressuposto para a emergência de um novo cosmo,

perfeito como na origem em verdade, trata-se de um novo começo, um “re-

começo” da ordem a partir do caos.86 Este recomeço pode tanto pertencer ao

passado quanto ao futuro, trazendo assim a perspectiva do retorno à perfeição em

um tempo vindouro. Algumas narrativas desta ordem são bastante recorrentes em

vários povos, como os mitos do dilúvio,87 conforme o analisado por M. Eliade:

Os mitos do Dilúvio são os mais numerosos e quase

universalmente conhecidos (embora extremamente raros na

África) (...) O dilúvio abre caminho para uma recriação do

Mundo e, simultaneamente, para uma regeneração da

humanidade.88

responsável também pela vida religiosa; ordena com precisão o calendário, vela pela observância doritual, pela celebração das festas em honra dos diversos deuses, determina os sacrifícios, as oblaçõesvegetais (...) [é o ánax] o Rei Divino, mágico, senhor do tempo, distribuidor da fertilidade”. Cf.VERNANT, J.-P. As Origens do Pensamento Grego. 10a edição. Rio de Janeiro: Editora BertrandBrasil, 1998. pp. 25-26. O grifo é do autor.86 A idéia de caos é sujeita a uma série de digressões conceituais. Neste trecho o sentido dado à palavraé o mesmo explicitado por Caldas Aulete: “confusão geral dos elementos antes da sua separação eformação do mundo”. Cf. AULETE, C. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 2a edição.Rio de Janeiro: Editora Delta, 1964. Volume 1, p. 682. No próximo capítulo será feita referência aocaos com um sentido distinto, contextualizado na Teogonia de Hesíodo.87 Em Gênesis 6, 7-17: “Exterminarei da superfície da terra o homem que criei, e com ele os animais,os répteis e as aves dos céus, por que eu me arrependo de os haver criado. (...) Então Deus disse aNoé: ‘Eis chegado o fim de toda a criatura diante de mim, pois eles encheram a terra de violência.Vou exterminá-los junto com a terra. (...) Eis que vou fazer cair o dilúvio sobre a terra, umainundação que exterminará todo o ser que tenha sopro de vida debaixo da terra. Tudo o que estásobre a terra morrerá”. Cf. BÍBLIA SAGRADA., pp. 53-54.88 Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade., pp. 53-54.

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Neste aspecto há diferenças entre as narrativas míticas escatológicas. Em

alguns casos como no Velho Testamento a destruição do mundo será única,

com o surgimento do mesmo cosmo restaurado e purificado. Aqui o retorno às

origens não pressupõe a desestruturação da ordem em um caos similar ao presente

no momento anterior à criação mítica. De forma distinta, há tradições que dão

conta de um tempo ciclíco como na mitologia hindu nas quais a destruição

do cosmo é recorrente, havendo uma dissolução completa e radical do mundo

“velho”, condição sine qua non para o estabelecimento do novo cosmo, pleno em

perfeição e beleza.

Sem embargo, a grande questão nestes mitos escatológicos os quais se

situam em marcada interseção com os mitos cosmogônicos, sendo genuínas

“variações” deste é a crença de que, após um período de terríveis tribulações

eventualmente de aniquilação total , emergirá uma nova ordem cósmica

perfeita,89 na qual a pureza dos primeiros tempos será retomada e reconstituída em

uma perspectiva muito mais plena e beatífica ao homem. É a cosmogonia

colocada como condição precípua à escatologia.

1.5. A Cosmogonia Grega

As discussões e colocações acerca da tessitura dos mitos até aqui

desenvolvidas poderiam ser vistas como paradigmas mais gerais, úteis para o

entendimento desta vital manifestação humana. Sem embargo, há diferenças mais

ou menos marcantes nas narrativas míticas em especial tomando-se as

peculiaridades dos diferentes tempos e lugares; por conta disto, os modelos

apresentados não são unívocos em todas as circunstâncias nos distintos povos,

como em relação aos gregos antigos, para os quais as narrativas míticas já

proporcionam uma postura diferenciada em relação ao mundo. A discussão destas

89 Sobre isto esclarece M. Eliade: “Em nosso longo excursus sobre os mitos do Fim do Mundo,analisados no último capítulo, quisemos assinalar que, mesmo nas escatologias, o fato essencial não éo Fim, mas a certeza de um novo começo. Ora, esse recomeço é, mais especificamente, a réplica docomeço absoluto, a cosmogonia.” Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade., p. 72. O grifo é do autor.

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particularidades quase uma introdução ao próximo capítulo será levada a

cabo a seguir.

As grandes narrativas da mitologia grega que chegaram a nós são os

poemas homéricos a Ilíada e a Odisséia e Os Trabalhos e os Dias e a

Teogonia de Hesíodo. Nesta última obra tem-se uma veraz cosmogonia

especialmente no Proêmio, versos 116 a 138, nos quais é descrita a criação do

mundo (céu, terra, oceano, e outros). Mas, no caso da Teogonia, já se percebem

elementos “diferenciadores” em relação à estrutura das narrativas míticas até aqui

apresentada. Veja-se por que.

Como referido anteriormente, nos mitos cosmogônicos os grandes feitos

dos Entes Sobrenaturais referem-se às origens do cosmo. Aqui, em relação aos

gregos, começam a surgir digressões desta cosmogonia mais “clássica”. Como em

alguns outros exemplos de narrativas míticas,90 a Teogonia traz atos de heróis

míticos os quais são cruciais para o estabelecimento do status quo atual , em

um tempo subseqüente ao princípio, o que é muitas vezes associado ao

“esquecimento” dos entes criadores do mundo. Esta é uma característica díspar e

bastante interessante das mitologias euro-asiáticas: a ocorrência de um

progressivo desinteresse pelos eventos que se deram na origem, o que parece ser

decorrente de uma maior ênfase nos acontecimentos que se sucederam após a

criação do mundo, como a história dos deuses “posteriores”, seus feitos e façanhas

que direta e indiretamente modificaram a natureza e a vida humana. Isto posto, há

um gradual “esvaziamento” na importância atribuída aos fatos ocorridos nas

origens e dos Entes Sobrenaturais que agiram neste interregno , tanto do

ponto de vista ritual quanto religioso. Na constituição do próprio mito há uma

90 Em relação a este aspecto M. Eliade traz um bom estudo, com abundantes exemplos. O autor relataque “Grande número de tribos primitivas, sobretudo as que se detiveram no estádio da caça e dacolheita, conhecem um Ente Supremo: mas ele não desempenha quase nenhum papel na vida religiosa(...) esse Ente Supremo criou o Mundo e o homem, mas abandonou rapidamente as suas criações e seretirou para o Céu”. Isto abre a perspectivas para que divindades “posteriores”, não cosmogônicas,possam desempenhar um papel fundamental na vida humana, mencionando-se, por exemplo, os deusesassassinados ou os deuses “fecundadores” como Zeus , capazes de atitudes emblemáticas para avida humana. Para maior detalhamento ver ELIADE, M. Mito e Realidade., pp. 85-102. O grifo énosso.

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perda progressiva de importância da ontologia, ganhando primazia a história.91

Neste contexto tem-se como bastante apropriado o exemplo de Urano, castrado

pelo filho Cronos (Teogonia 173-183):

Assim falou. Exultou nas entranhas Terra prodigiosa,

colocou-o oculto [Cronos] em tocaia, pôs-lhes nas mãos

a foice dentada e inculcou-lhe todo o ardil.

Veio com a noite o grande Céu, ao redor da Terra

desejando amor sobrepairou e estendeu-se

a tudo. Da tocaia o filho alcançou com a mão

esquerda, com a destra pegou a prodigiosa foice

longa e dentada. E do pai o pênis

ceifou com ímpeto e lançou-o a esmo

para trás.92

A castração acabou por custar ao deus um genuíno “ostracismo cultual”, o

que abriu “espaço” para as realizações de deuses Entes Sobrenaturais

posteriores, os quais terão sua história contada, passando esta a epicentro das

narrativas míticas. Ainda sobre o teor da sintomática castração de Urano, comenta

M. Eliade:

Mesmo quando seu nome é recordado Anu nos

Mesopotâmios, El dos canaanitas, Dyaus dos indianos

védicos, Urano dos gregos o Ente Supremo não mais

desempenha um papel importante na vida religiosa e é

mediocremente representado na mitologia. A “passividade”

e ociosidade de Urano é plasticamente expressa em sua

91 Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade., p. 98.92 $Wς favto• ghvqhsen deV mevga fresiV Gai~a pelwvrh. eise dev min kruvyasa lovcw/• eVnevqhke deV cersiVn a@rphn karcarovdonta, dovlon d’ u&peqhvkato pavnta. h\lqe deV nuvkt’ ejpavgwn mevgaς OuVranovς, ajmfiV deV Gaivh/ iJmeivrwn filovthtoς ejpevsceto kaiV rJ’ ejtanuvsqh pavvnth• o$ d’ ejk locevoio paviς wjrevxato ceiriV skaih/, dexiteh/ deV pelwvrion e!llaben a@rphn, makrhVn karcarovdonta, fivlou d’ ajpoV mhvdea patroVς e*ssumevnwς h!mhse, pavlin d’ e!rriye fevresqai e&xopisw. Cf. HESÍODO. Teogonia: a Origem dos Deuses. Estudo e Tradução de J. A. A. Torrano. 3a edição.São Paulo: Editora Iluminuras, 1995. p. 115.

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castração: ele se torna “impotente” e incapaz de intervir no

mundo.93

Neste ponto do “processo” experimentado por estas culturas como a

grega pode-se perceber uma verdadeira perda do “interesse” pela narrativa

mítica dos grandes feitos ocorridos no prístino tempo, restando os deuses

“posteriores”, os quais se tornam o mote dos mitos e do culto religioso. O

princípio de tudo o que é perde paulatinamente sua distinção na narrativa mítica,

tornando-se perceptível os primeiros suspiros daquilo que se pode chamar

desmitificação. Mas, de todo modo, as origens não perdem seu prestígio no

escopo da vida humana, havendo, sim, um alentecimento da importância dada aos

fatos narrados no âmbito mítico. De todo modo, o instante primordial

ontológico que do incôndito pode gerar o cosmo, permanece vivo. Esmaece a

relevância dos feitos levados a cabo pelos Entes Sobrenaturais estes deuses já

não tem preeminência , propiciando o surgimento de novos matizes: o que

merece atenção agora é o instante do qual tudo deriva e a textura que a tudo

mantém: a origem, como princípio e fundamento, verdadeira ajrchv. E aqui o mito

já não é mais a límpida nascente da verdade sobre o real: já não se encontram

estes primevos instantes como fonte mágica do mundo o que implicaria na

possibilidade de reatualização nos rituais, levando ao retorno real e vivo in illo

tempore94 mas sim como ajrchv, manancial de onde brotaram todas as coisas, de

onde tudo provém. Pode-se dizer, em linhas bem gerais, que já não compete mais

à narrativa mítica fornecer as “explicações” dos primórdios. Há, isto posto, uma

aguda mutação espiritual, a qual se fundamenta em uma origem não mais

apreendida miticamente, mas através de um esforço de reflexão, abrindo um

“vácuo” para o surgimento de uma nova modalidade de interseção humana como

o real: a filosofia.

93 Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade., p. 99.94 Cf. ELIADE, M. Mito e Realidade., pp. 7-23.

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1.6. Desfecho

Em acordo com estas colocações, os mitos seriam compreendidos como

fenômenos humanos, nascidos como verdadeira criação do Espírito, agindo como

fecunda interface entre o homem e a realidade. Trazem em seu âmago uma

história indubitavelmente sagrada na qual os protagonistas são Entes

Sobrenaturais que, por seus atos, propiciaram o surgimento do mundo tal qual ele

é; ademais, a narrativa mítica põe-se como paradigma para o comportamento

humano, além de fornecer a possibilidade de conhecimento, a partir da sua

atualização, entendida não como uma “comemoração”, mas como um reviver do

sagrado, sua primaz reiteração.

À época em que surgem os primeiros filósofos, os mitos cosmogônicos

aqueles que se referem à origem das coisas , já se encontravam “esvaziados”

naquilo que seria sua mais importante função: trazer e conter as verdades

necessárias para as mais variadas questões cósmicas e humanas. Neste âmbito de

desmitificação “porejou” ou teve origem o pensamento filosófico no

“âmago” do mito. Uma análise mais detida desta “geração” é o mote a ser

desenvolvido no capítulo seguinte.

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