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2⁰ Simpósio Internacional de História das Religiões
XV Simpósio Nacional de História das Religiões
ABHR 2016
Apropriação cultural com vistas ao evangelismo/proselitismo. O caso do Reborn Strike
Fight da Igreja Renascer em Cristo
Dr. Reinaldo Olecio Aguiar1
Introdução
Este texto tem por objetivo apresentar um tipo específico de apropriação cultural,
por parte de uma igreja neopentecostal, a Igreja Renascer em Cristo, que se utiliza desta
apropriação como estratégia para alcançar novos adeptos.
A promoção e realização de lutas de artes marciais mistas (MMA), que se dá em
evento denominado Reborn Strike Fight (RSF), revela-se uma estratégia para atrair jovens de
várias classes sociais ao evento, que acontece em templos ou espaços da Igreja Renascer em
Cristo.
Com o objetivo secundário de dar visibilidade a atletas de MMA ligados à Igreja
Renascer, e aproveitando a popularidade deste tipo de esporte entre os jovens, o RSF
objetiva trazer os interessados nessa prática esportiva para o rol de novos adeptos da igreja,
ainda que todo evento de MMA seja marcado pela presença evidente da violência no espaço
de luta, o octógono.
A discussão sobre a apropriação cultural será dividida em três partes: na primeira,
apresentam-se dados introdutórios ao RSF, para familiarizar o leitor com o universo do MMA
e o funcionamento deste evento concomitantemente esportivo e religioso. Na segunda
parte, analisa-se o aspecto mais destacado deste evento, que é a violência, a partir da
compreensão de René Girard, com destaque para as categorias de sacrifício e desejo
mimético. Na terceira parte, aplicam-se alguns apontamentos teóricos, sobretudo do
conceito de cultura de Thompson e Bourdieu, ao propósito declarado do evento, que é o
1 Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) e Pós-doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: [email protected].
evangelismo e/ou proselitismo. O que se pretende nesta terceira parte é definir o que
denominamos ‘violência simbólica’, expressa na sobreposição da pertença anterior do novo
adepto. O texto se encerra com algumas considerações finais.
Reborn Strike Fight
Nesta parte do texto apresentaremos algumas informações sobre o surgimento,
desenvolvimento e realização do evento de MMA denominado Reborn Strike Fight, com o
objetivo de introduzir o leitor ao universo das lutas de artes marciais mistas em um
ambiente marcadamente religioso.
Essa introdução ao universo da MMA é necessária para entendermos a problemática
que o texto procura discutir, que é a do uso da violência, inerente ao universo do MMA, em
um evento que se declara religioso e com objetivos proselitistas. As questões da relação
entre violência e religião, e da apropriação de um evento cultural “secular” com objetivos
religiosos e, portanto, alheios ao próprio evento, compõem o objetivo desta análise.
A pergunta que se quer responder é a seguinte: Reborn Strike Fight, que traz a
violência inerente a toda luta de MMA, é um evento esportivo travestido de evento
religioso, ou um evento religioso travestido de evento esportivo?
Para responder a esta pergunta, começamos apresentando as informações que a
organização do RSF apresenta em sua página no Facebook (FB) e em entrevistas de seus
líderes aos meios de comunicação evangélicos que noticiaram o evento. Na página do
Facebook da RSF, encontram-se as seguintes informações:
O Reborn Stike Fight é um evento de MMA realizado na Igreja Renascer em Cristo, visando o evangelismo, atraindo o público para a igreja e também dar oportunidade a profissionais de MMA como vitrine para outros eventos2.
A mesma página esclarece que o RSF é parte de um “ministério maior”, o Reborn
Team (RT). Apesar de haver um link para o que deveria ser (ou foi) a página da RT na internet
(http://www.rebornteam.com.br/), não foi possível acessá-la durante o tempo desta
2 Para destacar os objetivos, as informações aparecem em caixa alta no FB. Disponível em https://www.facebook.com/RebornStrikeFight/info/?entry_point=page_nav_about_item&tab=page_info.
pesquisa, com o link sempre aparecendo como inacessível. Entretanto, o RT possui uma
página no Facebook3, que também traz o seu objetivo: “O objetivo do Ministério Reborn
Team, não é, e nem poderia ser diferente de nenhum outro (sic). Além de ensinar princípios
bíblicos por meio de esporte, o objetivo é evangelizar, levar o atleta à Jesus Cristo”.
Pela apresentação dos objetivos de ambas as páginas, RSF e RT, fica evidente que a
segunda está relacionada prioritariamente ao trabalho com os atletas de MMA, com a
preparação e treinamento destes atletas para a participação nos eventos do RSF, mas
concomitantemente, de incutir os princípios religiosos nos atletas por meio do esporte.
Nesse sentido, há semelhança com a prática dos Atletas de Cristo (ADC), que utilizam a
linguagem do esporte para atingir os atletas e cooptá-los para a religião cristã, adotada pelo
grupo.
Por se identificar como uma atividade da Igreja Renascer em Cristo, o RSF também
pode ser encontrado na página oficial daquela igreja na internet. No link do RT4, encontra-se
a informação de que este ministério “integra os praticantes de artes marciais à igreja por
meio de treinamentos. Também produz eventos de luta dentro da própria casa de Deus,
como o URF – Ultimate Reborn Fight”. Nota-se que há uma discrepância entre o nome
adotado pelo evento e a informação da página oficial da igreja.
O cronograma dos eventos RSF é o seguinte:
Evento Local Data
Reborn Strike Fight 1 Renascer em Cristo, vila
Industrial
26/11/2010
Reborn Strike Fight 2 Renascer em Cristo, Santo
André
29/07/2011
Reborn Strike Fight 3 Renascer em Cristo, vila
Industrial
30/03/2012
Reborn Strike Fight 4 Renascer em Cristo, vila
Matilde
27/07/2012
Reborn Strike Fight 5 Parque da Moóca 24/08/2013
3 Disponível em https://www.facebook.com/RebornTeamOficial/ 4 Disponível em http://www.renasceremcristo.com.br/ministerios/detalhes/21#.V44-AesrLIU
Reborn Strike Fight 6 Renascer em Cristo, Santo
André
28/03/2014
Reborn Strike Fight 7 Renascer Hall em Santo André 22/07/2016
Nas primeiras seis edições do RSF, o evento se iniciou com uma oração na abertura e
com a participação de alguma atração cultural, seguida das lutas de MMA.
A visibilidade destes eventos despertou interesse nos meio de comunicação
evangélicos. Em reportagem do site Gospel Prime, sobre o RSF, Leilane Roberta Lopes (set
de 2011) afirma que “A Igreja Renascer em Cristo promove treinos de artes marciais como
Muay-Thai, Jiu Jitsu, Karatê, Boxe e Hapkido tanto para ensinar técnicas de defesa pessoal
como também para evangelizar os atletas”5.
A justificativa apresentada pelos membros do RT para esta estratégia de abordagem
dos atletas é a de que acreditam que muitos lutadores não aceitariam o convite para uma
“programação religiosa”, mas facilmente aceitariam participar de um treino. O RT “também
ensina jovens que não teriam como pagar academias para aprender esses esportes”.
Segundo a reportagem, os temas abordados nestes encontros são “a fé, o amor,
disciplina e lealdade”, sendo que as duas últimas atitudes, mais voltadas à disposição dos
atletas do que aos princípios religiosos, “são consideradas essenciais para quem pratica um
esporte”, enquanto as duas primeiras são introduzidas “por meio da Palavra de Deus e
ensinamentos pessoais passados pelos pastores da Renascer”.
Portanto, as atividades de preparação dos atletas, tanto dos novatos quanto dos
profissionais, evidencia a presença de elementos esportivos e religiosos
concomitantemente. A explicação para promover esse tipo de atividade dentro da igreja
pode ser encontrada na justificativa, pelos líderes do RT, da utilização um texto bíblico que
afirma: “Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns.” (I
Coríntios 9:22). As lutas de MMA serviriam, em última análise, para atrair pessoas envolvidas
nesse esporte para se tornarem adeptos da Igreja Renascer em Cristo.
5 Disponível em https://noticias.gospelprime.com.br/reborn-team-igreja-renascer-em-cristo-divulga-ministerio-de-artes-marciais/
Convém destacar que, nos treinos, que podem acontecer em vários endereços da
Igreja Renascer em Cristo, há grupos tanto masculinos quanto femininos, em consonância
com o caráter inclusivo deste esporte que, embora seja majoritariamente masculino, tem a
presença de atletas e de público feminino. A diferença marcante em relação à mulher pode
ser verificada nos eventos de RSF, onde não há a presença das chamadas ring girls,
normalmente em trajes minúsculos, ausentes tanto no início das lutas quanto nos intervalos
entre os rounds. Isto pode revelar a influência do elemento religioso, que trata o corpo
como tabu, mais do que apenas o respeito à mulher. Outro diferencial em relação aos
eventos de MMA é a proibição de cotoveladas, sendo permitidos todos os outros golpes
regulares das modalidades6.
As modalidades oferecidas pelo RT são as seguintes7: Jiu-jitsu - Segundo alguns
historiadores o jiu-jitsu ou “arte suave”, nasceu na Índia e era praticado por monges.
Preocupados com a autodefesa, os monges desenvolveram uma técnica baseada nos
princípios do equilíbrio, do sistema de articulação do corpo e das alavancas, evitando o uso
da força e de armas. Muay Thai - Arte desenvolvida na Tailândia há mais de 2000 mil anos.
Também conhecida como boxe tailandês. Surgiu da necessidade do povo tailandês se
defender de seus inimigos e opressores. Karatê - Originalmente a palavra caratê era escrita
com os ideogramas (“mãos vazias”) se referindo à Dinastia Tang ou, por extensão, a mão
chinesa, refletindo a influência chinesa nesse estilo de luta. O Karatê é provavelmente uma
mistura de uma arte de luta chinesa levada a Okinawa por mercadores e marinheiros da
província de Fujian com uma arte própria de Okinawa. Hapkido - Arte marcial coreana
especializada em defesa pessoal que além de ensinar técnicas de armamento com espada,
bastão, facas, leques, não deixa de trabalhar também socos, chutes, esquivas, rolamentos,
quedas, torções e luta no solo. Boxe - Entre o século XVIII e XIX, na Inglaterra o boxe era
praticado sem luvas ou ataduras, mas se tornou um esporte e foi incluído nas Olimpíadas
6 “Se é para usar o cotovelo, não usa luva. Eu entendo assim, então já que é para preservar o atleta e o esporte é bem praticado é o esporte saudável, nós não usamos a cotovelada. Mas as demais coisas que são permitidas no UFC, nós também permitimos, porque faz parte da regra – completa o professor, explicando por que aboliu as cotoveladas do Reborn Strike Fight”. Disponível em https://noticias.gospelmais.com.br/ufc-gospel-igreja-renascer-extingue-cotoveladas-ring-girls-66387.html. 7 Essas informações podem ser encontradas nos sites das federações de cada modalidade.
após reformarem as regras e proteções. A palavra "boxe" significa bater (com punhos)
pugilismo. O boxe profissional tem 12 rounds de três minutos e um de descanso.
A procura sobre os locais onde se pode encontrar os treinos de RT revelou cinco
resultados: Vila Industrial, Renascer Hall, Itaquera, São Roque e Alphaville. Os dias e horários
de funcionamento são variados, dependendo da localidade.
Foto: Ricardo Matsukawa / Terra
Acima reproduzimos a foto do treino em Vila Industrial. No início de cada treino, há
sempre um momento de oração. O organizador do RSF Roberto Dantas Pedroso (à esquerda
na foto) é professor de artes marciais há 16 anos e cuida dos treinos dos alunos. O público
que frequenta a academia varia desde crianças com menos de dez anos a meninas
adolescentes e lutadores profissionais. As atividades são gratuitas e abertas e são aceitos
inclusive alunos que não frequentam a igreja, em consonância com o objetivo de
proselitismo.
Violência e Religião
No senso comum, a religião está associada à tranquilidade espiritual e à reflexão,
enquanto o MMA é visto como uma modalidade esportiva bastante violenta. O que
discutiremos nesta parte é a relação entre religião e violência e pretendemos fazer uma
primeira aproximação do RSF à partir da compreensão de René Girard, com destaque para
as categorias de sacrifício e desejo mimético. A discussão desta relação é importante para
respondermos à questão principal deste texto, qual seja a de descobrir se RSF, que traz a
violência inerente a toda luta de MMA, é um evento esportivo travestido de evento
religioso, ou um evento religioso travestido de evento esportivo.
René Girard, em seu texto “A Violência e o Sagrado” (1990, p.11s), desenvolve o
conceito de sacrifício e o entende como o instrumento de prevenção contra a violência
emergente nas sociedades. Em outras palavras, o sacrifício é entendido como um
mecanismo por meio do qual toda a comunidade é protegida da sua própria violência.
O sacrifício apresenta-se como uma estrutura simbólica que, ao envolver um elemento de mistério em ação tem a função de impedir que a violência, tida como interna à sociedade, atinja repercussões tais – todos contra todos - que coloque em causa a sobrevivência da própria sociedade, levando-a a uma situação de colapso (MERUJE & ROSA, 2013, p.153).
Nas palavras do próprio Girard, a função do sacrifício, enquanto ritual é nem mais
nem menos que “purificar a violência”. (GIRARD, 1990, p.18). Desta forma, o sacrifício cria
um efeito de catarse que estabelece um tipo de fronteira à violência, que se apresenta
reduzida a um processo ritual. As tensões que existem na sociedade são transferidas para
este ritual, e este permite a subsistência da sociedade por meio do uso de uma vítima
expiatória, responsável por carregar a violência. Essa transferência satisfaz a necessidade de
violência da sociedade, ainda que por um pouco de tempo.
Girard apresenta o sacrifício como a primeira instituição humana que permite
justificar a existência em sociedade, entendendo o sacrifício ritual como um vínculo que
torna possível a passagem do ‘eu’ para o ‘nós’. Apesar das críticas que possa ter recebido8,
Girard aponta o ritual como a origem de todas as outras instituições sociais. O sacrifício,
8 Como a crítica de Bernard Lauret, por exemplo. Ver Lauret, Bernard. “Comment n’être pas chétien? Questions aux théses de René Girard sur le sacrifice”. In Lumière et Vie, nº 146, 1980, pp. 43-53.
portanto, consiste em descarregar sobre uma vítima (o bode expiatório) todas as tensões
existentes na sociedade que possam ameaçar romper a ordem que a mantém.
Quando analisamos o cenário de uma luta de MMA, com um local apropriado em
forma octogonal, com grades separando os lutadores da plateia, e principalmente com a
violência consentida pelas regras deste esporte, é inevitável não perceber o mesmo tipo de
transferência das tensões para aquele ambiente controlado. Aquela “sede de sangue” da
sociedade é externalizada nos apupos aos lutadores, mas a violência que poderia produzir se
restringe ao espaço da luta. Nesse sentido, os lutadores descarregam simbolicamente a
tensão da plateia com seus atos violentos, fato facilmente observado no frenesi que os
golpes certeiros produzem nos espectadores.
Não há violência da plateia em relação aos lutadores e nem mesmo entre torcedores
de lutadores adversários, mas uma catarse com a violência produzida dentro do octógono.
Os lutadores assumem o lugar do bode expiatório da tese de Girard ao satisfazerem a
violência latente da massa de torcedores.
Um fato interessante na compreensão da violência nas lutas de MMA é a reação mais
aguda que os nocautes produzem nos espectadores, sendo sempre mais festejados do que
as vitórias por pontos. Isso pode se dever à demonstração de uma violência ainda mais
exacerbada, o que leva os espectadores a uma catarse ainda maior, denotando a
transferência que acabamos de apontar.
A violência, entretanto, não é um fato restrito aos esportes, sendo visível na
sociedade, sobretudo urbana. Mas, no caso do MMA, a tendência de torcer pelo mais
violento e/ou mais vencedor aponta para um tipo de “exorcismo dos demônios da violência
cotidiana”. Nesse momento, os lutadores são os bodes expiatórios da violência que, se
permanecesse na sociedade, com todos contra todos, a levaria ao colapso.
Convém destacar que, na maioria dos esportes, a violência está atrelada à passagem
do amadorismo para o profissionalismo. Como aponta Toledo,
ao enfocar a dimensão da violência, Bourdieu parte do pressuposto de que ela se manifesta de modo mais recorrente a partir do advento da profissionalização do esporte, que supõe uma maior racionalização, seriedade e competitividade, daí a busca pelos resultados a qualquer preço. As considerações de Bourdieu, portanto, conduzem, implicitamente, a supor que
o aumento da violência está vinculado e decorre da passagem das práticas amadoras, tidas por desinteressadas, lúdicas e desprovidas de recompensas imediatas, para as profissionais (2000, p.24).
No caso do MMA, esta violência é inerente ao próprio esporte e a profissionalização
dos lutadores não alterou nenhuma de suas características, nem aumentando e nem
diminuindo a violência. O que se observa é que a profissionalização trouxe uma exigência de
respeito restrito à regras ainda maior. De fato,
As violências que temos em algumas modalidades são consideradas violências instrumentais, ou seja: são componentes específicas da modalidade. O que extrapola a legalização do esporte, aquilo que avança além das regras oficiais das modalidades, sim, deve ser visto como ato violento (...). A agressividade instrumental (...) é bem vista quando um atleta está diante de uma competição e necessita do resultado. Já a agressão seria o comportamento visível da violência, ou seja, o que não é permitido dentro do contexto esportivo, aquele comportamento do atleta que visa o prejuízo físico do adversário. As regras exercem, portanto, o papel de conter a agressão entre os atletas, além de organizar o contexto esportivo (ADABO & GONÇALVEZ, 2014).
O outro conceito de Girard importante na compreensão da apropriação cultural de
um evento de MMA pela Igreja Renascer em Cristo é o de desejo mimético. Girard ponta
que
dois desejos que convergem para um mesmo objeto constituem um obstáculo reciproco. Qualquer mimese relacionada ao desejo conduz necessariamente ao conflito. Os homens são sempre parcialmente cegos para esta causa da rivalidade (1990, p.185).
O mimetismo, portanto, se apresenta como uma estrutura dinâmica, em que o que
se imita pode, numa fase posterior, se tornar obstáculo e rival. Em outras palavras,
Entre o sujeito e o objeto (de desejo) estabelece-se um outro sujeito que pode, numa primeira fase, ser modelo do sujeito mas que, numa segunda, é um obstáculo para a conquista do objeto. Numa terceira fase, o sujeito e o obstáculo apenas estão interessados no objeto – uma possível quarta fase seria a extinção do objeto e a perpetuação de uma rivalidade subtilizada, transcendente, ‘infinita’, entre sujeito e o rival imitado. Já não se quer nada que o outro tem, mas quer-se ser o outro (MERUJE & ROSA, 2013, p.162).
O desejo mimético, portanto, se apresenta como um desejo de querer ser como o
modelo, ainda que isso possa ser motivo de certa vergonha para adultos, por “medo de
revelar sua falta de ser” (GIRARD, 1990, p.184).
No caso das lutas de MMA, do qual a RSF participa com um viés religioso, o desejo de
ser como o modelo é evidente na criação e exposição dos “ídolos do esporte”, os campeões.
O que o atleta que treina no RT tem por objetivo, além do simples preparo físico, é se
desenvolver no esporte e, se possível, chegar a ser um campeão. O modelo é o lutador já
bem sucedido, consagrado, vitorioso, mas o postulante às futuras glórias deseja ser como
ele e, se possível ocupar o seu lugar. Deseja ser como o outro, mas também deseja ser o
outro. Ocorre que, para isso, o desafiante pode ter de enfrentar o modelo, transformando-o
em rival, em consonância com a tese de Girard, uma vez que ambos desejam o mesmo
objeto.
Nesse processo pode-se perceber a influência da religião para a tentativa de ser
como o modelo. Erik, um dos atletas que treina na academia dirigida por Roberto Dantas
Pedroso explica:
Eu treino na Reborn tem quatro anos, sou um dos pioneiros. Vim treinar através de um amigo. O primeiro dia que eu treinei aqui eu não saí mais e é a equipe que eu represento. Aqui que eu me batizei também. O que me atraiu para a equipe foi a academia. Eu vinha só por causa da luta mesmo, para se distrair9.
O próprio Erik explica que o contato com a religião o ensinou a ter autoconfiança,
qualidade que o ajudou dentro do octógono.
Aprendi que eu tenho que ter fé, sem ter fé você não vai a lugar nenhum. Por exemplo, o Zé 'Reborn' treina bem menos tempo que eu e ele tem garra, tem Deus no coração. Eu não entendia isso, mas hoje eu compreendo que a fé é tudo. Ele tinha bem mais fé do que eu. Ele acreditava nele. Eu não, sentia medo. Ele vai para cima e está
9 Disponível em https://esportes.terra.com.br/lutas/mma/com-veto-a-cotoveladas-e-ring-girls-evento-une-mma-e-igreja,368da28149105410VgnVCM4000009bcceb0aRCRD.html
onde está hoje. Acabei me espelhando nele para chegar em algum lugar (citando o maior talento da academia)10.
Percebe-se no discurso do atleta postulante a futuras glórias que, além de querer ser
como modelo, revelando o desejo mimético, também o arcabouço religioso ganha
importância para se alcançar este objetivo. Nesse sentido, há novamente uma semelhança
significativa com a compreensão dos ADC, uma vez que a vitória esportiva é entendida
também como uma vitória religiosa11.
Violência simbólica
Nesta terceira parte do texto, apresentaremos o conceito de cultura que servirá de
base para a análise do que estamos denominando “violência simbólica”, representada na
tentativa de mudança de opção religiosa do atleta e do público nos eventos do RSF.
Utilizamos uma concepção estrutural da cultura desenvolvida por Thompson, uma
“concepção que dê ênfase tanto ao caráter simbólico dos fenômenos culturais como ao fato
de tais fenômenos estarem sempre inseridos em contextos sociais estruturados” (1995,
p.181).
Partindo desta ideia, a análise da cultura se dá por meio do
estudo das formas simbólicas – isto é, ações, objetos e expressões significativas de vários tipos – em relação a contextos e processos historicamente específicos e socialmente estruturados dentro dos quais, essas formas simbólicas são produzidas, transmitidas e recebidas. (Idem).
Portanto, entende-se aqui que os fenômenos culturais se apresentam como formas
simbólicas em contextos estruturados, enquanto a análise cultural procura estudar a
constituição significativa e a contextualização social dessas mesmas formas simbólicas.
Uma das formas simbólicas mais significativas encontradas no RSF e no RT é a
presença de rituais religiosos que ocorrem no início e no final dos treinos e no início dos
10 Disponível em https://esportes.terra.com.br/lutas/mma/com-veto-a-cotoveladas-e-ring-girls-evento-une-mma-e-igreja,368da28149105410VgnVCM4000009bcceb0aRCRD.html 11 Um livro foi produzido pelo grupo de ADC para defender esta ideia. Trata-se do livro Quem Venceu o Tetra, do ex-piloto de Fórmula 1 Alex Dias Ribeiro, então diretor de ADC.
eventos. Trata-se do uso da oração como forma de dar suporte para a vitória e mesmo para
dar um aspecto religioso a um evento esportivo. Rodrigo Trindade informa:
Com o objetivo de retomar o caminho das vitórias na carreira – Zé ‘Reborn’ perdeu seu último combate –, o atleta tem treinado com seriedade na academia. Antes do início de cada atividade, uma oração é puxada pelo pastor Roberto, fato que faz com que os alunos fiquem quietos e concentrados no momento de reflexão. ‘Todos os treinos nós temos uma oração no início, no finzinho do treino uma breve ministração da palavra, da verdade, e no fim outra oração. E sempre que alguém pede uma oração em alguma causa a gente sempre também faz’, esclareceu Roberto12.
Em um contexto esportivo, estruturado para a competição, uma ação de outro
universo, o religioso, ganha significado importante. Isso evidencia que a “ministração da
palavra, da verdade” no fim do treino, cujo objetivo é explícito (de fazer
evangelização/proselitismo entre os praticantes), tem alcançado resultado na mudança de
atitude dos atletas em relação ao próprio esporte.
As palavras do atleta Erik, reproduzidas anteriormente, e mesmo o pedido de outros
atletas por oração por “alguma causa” atestam isso. Ainda que a iniciativa seja do líder, a
aceitação por parte dos atletas, mesmo os não filiados à igreja, revela certa eficácia da ação.
Nas mesma linha de raciocínio, podemos citar Bourdieu13, que apontou a posse de
certos capitais como condição para que os atores sociais, inseridos espacialmente em
determinados campos sociais, ocupem uma determinada posição neste campo. Para os
lutadores e praticantes de MMA do RT, os capitais necessários são:
1. o capital esportivo, que representa sua capacidade de se manter ativo no
campo do esporte, extremamente competitivo e que exclui atores sociais com
grande rapidez, ou seja, sua competência técnica, física e emocional para
desempenhar sua função de atleta;
12 Disponível em https://esportes.terra.com.br/lutas/mma/com-veto-a-cotoveladas-e-ring-girls-evento-une-mma-e-igreja,368da28149105410VgnVCM4000009bcceb0aRCRD.html 13 BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas, São Paulo, Editora Perspectiva, 1982.
2. o capital simbólico, que inclui méritos acumulados, prestígio e
reconhecimento associados com a pessoa ou posição, e que se espera, seja
adquirido pela experiência religiosa experimentada na fase de preparação
para o RSF14.
A novidade está na presença do capital simbólico de matriz religiosa, incomum nas
outras academias de MMA. E mais, a identificação dos atletas vencedores com a prática
religiosa reforça a importância deste capital. Como já havia apontado o atleta Erik, “o Zé
'Reborn' (maior destaque da academia) treina bem menos tempo que eu e ele tem garra,
tem Deus no coração. Eu não entendia isso, mas hoje eu compreendo que a fé é tudo”.
A identificação entre sucesso esportivo e prática religiosa no RT pode ser entendida
como uma forma de violência simbólica contra os atletas, uma vez que o fracasso ou o
sucesso dependem tanto ou mais do capital esportivo do que do capital simbólico valorizado
naquela academia. Entretanto, como o objetivo expresso é o proselitismo, esta identificação
é coerente com as práticas de grupos religiosos do tipo conversionista.
Outro aspecto a ser destacado é o uso de um tipo de atividade cultural marcada pela
violência, em contraposição ao senso comum da religião cristã, que é, em sua raiz, contra
toda forma de violência. O objetivo proselitista parece ser suficiente para mascarar essa
contradição e entender o campo esportivo do MMA como campo de proclamação da
mensagem religiosa. O uso do texto de I Coríntios 9,22 (Fiz-me tudo para com todos, com o
fim de, por todos os modos, salvar alguns) explica a opção.
Considerações Finais
A pergunta geradora deste texto pode ser expressa assim: Reborn Strike Fight, que
traz a violência inerente a toda luta de MMA, é um evento esportivo travestido de evento
religioso, ou um evento religioso travestido de evento esportivo?
Depois de apresentarmos as características próprias do RSF e analisarmos os dados a
partir das teses de Girard, Thompson e Bourdieu, podemos responder a esta pergunta
14 Maiores detalhes sobre os capitais simbólicos no esporte, ver AGUIAR, 2004, p.301ss.
afirmando que o evento RSF é esportivo com a inserção pontual de elementos religiosos. O
objetivo expresso é o evangelismo, é atrair o público para a igreja e dar oportunidade a
profissionais de MMA como vitrine para outros eventos, mas a efetividade desta prática é
questionável pelo tempo limitado de cada evento e, de todos os objetivos, a visibilidade dos
atletas parece ser a mais alcançada.
O mesmo não se pode dizer do RT, que treina vários atletas que participam do RSF.
No RT, apesar da identificação de propósitos expressa na página do FB com aqueles da RSF,
há efetivamente o uso de expedientes religiosos para transformar os atletas em atletas
religiosos. Portanto, na preparação para RSF, o RT é mais efetivo na consecução do objetivo
de relacionar a prática esportiva com a religiosa. Isso nos leva a concluir que nas academias
RT o que ocorre são treinamentos esportivos permeados de ações de cunho religioso. A
eficácia das ações de proselitismo ocorre com a identificação do modelo de atleta vencedor
com aquele que tem fé, que apresenta capital simbólico além do esportivo.
Bibliografia
ADABO, Gabriele e GONÇALVES Michele Fernandes. Esporte e violência: o jogo entre regras e concepções sociais. 2014. Disponível In: http://www.dicyt.com/noticia/esporte-e-violencia-o-jogo-entre-regras-e-concepcoes-sociais. Acesso em 08/05/2016. AGUIAR, Reinaldo Olecio. Religião e esporte: os atletas religiosos e a religião dos atletas. Tese de doutoramento, São Paulo, UMESP, 2004. GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo, Editora Universidade Estadual Paulista, 1990. GIRARD, René, GOUNELLE, André, HOUZINAUX, Alain, Dieu, Une Invention? Les Editions de L ́Atelier, Paris, 2007. LAURET, Bernard. “Comment n’être pas chétien? Questions aux théses de René Girard sur le sacrifice”. In Lumière et Vie, nº 146, 1980, p. 43-53. MERUJE, Márcio & ROSA, José Maria Silva. Sacrifício, rivalidade mimética e ‘bode expiatório’ em R. Girard. Griot – Revista de Filosofia, v.8, n.2, 2013, p.151-174. RIBEIRO, Alex Dias. Quem Venceu o Tetra. São Paulo, Mundo Cristão, 1995.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna. Teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, Vozes, 1995.
TOLEDO, Luiz Henrique. Lógicas no Futebol – dimensões simbólicas de um esporte nacional. Tese de doutoramento, São Paulo, USP, 2000. TRINDADE, Rodrigo. Com veto a cotoveladas e ring girls, evento une MMA e igreja. 2014. Disponível In: https://esportes.terra.com.br/lutas/mma/com-veto-a-cotoveladas-e-ring-girls-evento-une-mma-e-igreja,368da28149105410VgnVCM4000009bcceb0aRCRD.html. Acesso em 29/04/2016.