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4 Ao final desta Unidade, o aluno será capaz de: dominar os conceitos de paradigma, método científico, falseabilidade e hermenêutica. Objetivos CONHECIMENTO CIENTÍFICO unidade

Objetivosnead.uesc.br/arquivos/pedagogia/teoria-do-conheciment… ·  · 2010-08-16do cisne negro. Até 1697, na Europa, se pensava que todos os cisnes eram brancos, então quando

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Ao final desta Unidade, o aluno será capaz de:

• dominar os conceitos de paradigma, método

científico, falseabilidade e hermenêutica.

Obje

tivos

CONHECIMENTO CIENTÍFICO

unidade

UNIDADE 4CONHECIMENTO CIENTÍFICO

1 INTRODUÇÃO

Antes de falar sobre a relação entre ciência e conhecimento,

alguns conceitos prévios são necessários. Como já foi visto, só se

pode conhecer o que se repete, o que tem regularidade. Um disco

voador que aparece para dois viajantes ou um fantasma que assusta

um morador solitário não são assunto da ciência. Por isso, ufologia

ou parapsicologia não são ciência, não porque os seus objetos sejam

estranhos, pois existem ciências bastante estranhas, mas porque

tratam de fenômenos que não se repetem, que não têm regularidade.

Se fosse possível marcar uma entrevista com um ET, então estaríamos

no campo da ciência. Algo é científico quando tem certa regularidade

e é previsível. Um exemplo disso são os cometas.

Cometas antigamente eram vistos como sinal de maus

presságios; que um novo rei iria surgir; ou que grandes catástrofes

iriam acontecer. Foi assim no nascimento de Jesus antecedido por

uma estrela, e que o rei Herodes interpretou como um novo rei que

nasceria, então mandou matar todos os meninos. Em 1696, Edmond

Halley descobriu que muitos dos cometas dos quais havia registro,

eram na verdade um único cometa que percorria uma órbita em torno

do Sol a cada 76 anos. Assim, os cometas deixavam de ser mensageiros

de maus presságios e passavam a ser objetos, não muito familiares,

mas previsíveis e explicáveis. Tão explicáveis quanto as chuvas de

março ou o vírus da gripe. Mas não se faz ciência do extraordinário,

embora este possa despertar muito interesse do grande público, pois

popularidade não é o motor principal da ciência.

Halley previu ainda que em 1758, 16 anos depois de sua morte,

o cometa passaria novamente próximo da Terra, em sua homenagem,

o cometa recebeu o seu nome. Halley não era um bruxo ou um profeta

que fazia previsões inexplicáveis, sua descoberta estava firmemente

apoiada em uma teoria desenvolvida por outro grande cientista, Isaac

Newton. Seu trabalho foi o de relacionar a teoria de Newton a corpos

que, embora não fossem planetas, estavam sujeitos às mesmas leis

que regem todos os fenômenos do universo. E isso nos dá uma noção

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do que faz o cientista: ele procura dar uma explicação racional para

os fenômenos, como faz o filósofo, mas testa a verdade de suas

teorias confrontando-as com os experimentos, ou efeitos que elas

predizem. Por exemplo, Aristóteles dizia que quanto mais pesado é

um corpo, mais rápido ele cai, porque a aceleração é proporcional ao

peso do objeto. Isso parece muito razoável de se pensar e durante

muitos séculos ninguém duvidou da verdade de Aristóteles. Somente

no século XVII, Galileu Galilei foi capaz de desafiar a autoridade de

Aristóteles propondo um experimento que poderia colaborar ou negar

a teoria de Aristóteles.

A novidade aqui é que uma teoria científica não é somente uma

construção lógica, ela precisa ser comprovada pela experiência. Eu

posso até ser muito religioso e achar que a Terra é plana como a Bíblia

diz e não redonda como demonstrou Galileu. Mas, independentemente

do que eu possa pensar, se viajar ao Japão, terei que ajustar o

meu relógio ao novo fuso horário, adiantando-o em doze horas. Ou

seja, a realidade é algo que se impõe a nós, indiferente as nossas

idiossincrasias. As teorias científicas não são para serem acreditadas

ou não, pois sua verdade não depende de nós acreditarmos nela, mas

de sua comprovação através do confronto com a realidade. Se resistir

aos fatos, então a teoria é válida.

Existem pessoas que dizem não acreditar na teoria da evolução

de Darwin. Mas Darwin não era nenhum Nostradamus para se

acreditar ou não. Suas teorias são fruto de pesquisas e observações

ATE

ÃO

TESTANDO UMA TEORIA

Esse experimento você também pode repetir em sua casa:

pegue dois objetos sendo um o dobro do peso do outro (duas

pedras, por exemplo). Segure-os até a altura dos seus ombros,

então, os solte ao mesmo tempo e observe o que aconteceu.

Marque a teoria que melhor corresponde aos fatos:

a) quando o objeto mais pesado já tinha atingido o chão, o outro

ainda estava na metade do caminho (teoria de Aristóteles);

b) os dois caíram quase que ao mesmo tempo no chão (teoria de

Galileu);

c) o que você observou? Qual a teoria que corresponde aos fatos?

86 Módulo 2 I Volume 2 EAD

Conhecimento CientíficoTeoria do Conhecimento

empreendidas durante décadas em várias partes do mundo. Se não

concorda com Darwin, é simples: monte um experimento que mostre

que Darwin estava errado. Em ciência, nenhuma teoria é sagrada;

assim que se prova que ela estava errada, prontamente é substituída

e a velha teoria vira assunto dos historiadores da ciência. Agora,

vejamos algo mais sobre o método científico.

2 A LÓGICA DA CIÊNCIA

Antes de falar sobre a lógica da ciência é preciso recordar

um pouco sobre os três tipos de inferência. Inferência é o processo

de concluir uma afirmação de outras afirmações. Por exemplo, “hoje

está sol”, logo podemos inferir que “está um ótimo dia para ir à praia”.

Existem três processos de inferência: dedução, indução e hipótese.

A dedução é o processo em que, partindo de premissas verdadeiras

e gerais, chegamos a uma conclusão igualmente verdadeira. Um

exemplo clássico é:

1. Todo homem é mortal.

2. Sócrates é homem.

3. Logo, Sócrates é mortal.

Nesse caso, as afirmações 1 e 2 são premissas e 3, a conclusão.

Se a verdade das premissas está garantida, a da conclusão também

estará, bastando que, para isso, sigamos as regras de validade dos

silogismos dedutivos. Uma delas é que o termo médio, que é o que

permite ligar uma premissa com a outra (no caso, o termo homem), não

deve aparecer na conclusão. Outra regra é que, na dedução, sempre

vamos do geral para o particular e de premissas particulares nada se

conclui. Portanto, em uma dedução, nós aplicamos conhecimentos

já garantidos a casos particulares que são uma aplicação dos casos

gerais. Logo, a verdade de uma conclusão é sempre universal e

necessária, ou seja, válida em todo tempo e lugar e independente

de circunstâncias particulares, pois ela extrai sua verdade de seu

aspecto formal.

Ao contrário da dedução, a indução vai do particular para

o geral. Por exemplo, ao observar que sol nasce todos os dias por

volta das seis da manhã, posso afirmar que ele nascerá amanhã.

O problema da indução é que sua verdade não é garantida como

na dedução, pois parte de casos particulares e contingentes, cujo

contrário é sempre possível. Um caso histórico que ilustra isso é o

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do cisne negro. Até 1697, na Europa, se pensava que todos os cisnes

eram brancos, então quando a Austrália foi descoberta, lá estavam os

cisnes negros e séculos de certeza desabaram. Isso acontece porque,

muitas vezes, nossa amostra não é suficiente. Por exemplo, alguém

está fazendo café na cozinha, bem na hora em que está colocando

açúcar, toca o telefone e ela precisa ir atender. Outra pessoa chega e

experimenta o café. Como o açúcar está todo no fundo ainda, ela pensa

que está sem açúcar e coloca mais. O resultado você pode imaginar...

O problema, nesse caso, é que a amostra não era homogênea. Em

pesquisas de opinião que trabalham com probabilidades, tenta-

se cobrir a heterogeneidade da população, selecionando-se grupos

representativos do conjunto, por exemplo, se metade da população

é composta de homens e a outra de mulheres, a pesquisa deve

refletir este dado no universo dos seus entrevistados. Quanto mais

se aproximar da realidade do total do universo da população, mais

precisa será a pesquisa, contudo, a margem de erro sempre existirá,

pois uma pesquisa só teria 100% de credibilidade se entrevistasse a

população inteira, mas aí não seria uma pesquisa, além dos custos

serem imensos.

O último caso de inferência é a hipótese. A hipótese é uma

inferência com poder explicativo como a dedução, mas que precisa

de confirmações para que possa ser demonstrada. Se confirmada,

a hipótese transforma-se em lei ou teoria, se negada pela não

ocorrência de suas previsões, a hipótese é abandonada em favor

de outra. Por exemplo, um fazendeiro encontra ossos enormes em

sua propriedade e chama um professor da universidade local. Esse

conclui que aquele osso parece ser do braço de um animal, mas é

grande demais para ser de um elefante, ou de uma girafa. Então

conclui que deve ter pertencido a um animal que era muito grande,

mas que não existe mais atualmente. Se puder encontrar mais ossos,

e, até mesmo, reconstruir parte do esqueleto, poderá corroborar

sua hipótese. Embora muitos pensem que as descobertas científicas

ocorram por fatores puramente acidentais e de ordem psicológica,

há epistemólogos, como Hans Reichenbach, que postulam que a

hipótese é um processo lógico, cujos passos podem ser reconstruídos

posteriormente. Dessa forma, Reichenbach distingue a “lógica da

descoberta” em que a hipótese surge e é testada, e a “lógica da

justificação” em que a teoria é explicada.

Vamos ver se você entendeu a diferença entre dedução,

indução e hipótese? Faça corresponder a coluna da esquerda com os

exemplos na coluna da direita:

88 Módulo 2 I Volume 2 EAD

Conhecimento CientíficoTeoria do Conhecimento

a) hipótese ( ) Esses feijões são daquela saca. Esses feijões

são brancos. Logo, todos os feijões daquela saca

são brancos.

b) indução ( ) Todos os feijões daquela saca são brancos.

Esses feijões são daquela saca. Logo, esses feijões

são brancos.

c) dedução ( ) Todos os feijões daquela saca são brancos.

Esses feijões são brancos. Logo, esses feijões são

daquela saca.

3 A LÓGICA DA PESQUISA CIENTÍFICA

O processo científico pode ser descrito, de modo ideal, assim:

1. Observa-se um fenômeno ainda sem explicação, mas que é

possível de se determinar e estudar, pois acontece regularmente.

Por exemplo: observamos que o vinho azeda mesmo estando

em barris bem fechados. Por que será que isso acontece?

2. Formulamos hipóteses explicativas ou teorias: seria o

azedamento do vinho resultado de sua instabilidade química?

Vemos certos produtos mudarem suas características quando

expostos ao calor ou à luz. Ou seria isso resultado da ação de

organismos tão pequenos que seriam invisíveis a olho nu, mas

que estariam no vinho mesmo antes de ser embalado?

3. Formular uma dedução que possa ter a forma de um enunciado

experimental:

Para hipótese 1: O vinho azeda quando muda as condições de

temperatura ou de luminosidade. Logo, se expuser o vinho à

luz ou ao calor ele azedará.

Para hipótese 2: O vinho tem microorganismos dentro, mesmo

antes de ser colocado nos barris. Os microorganismos provocam

o azedamento do vinho. Logo, se eles forem eliminados o vinho

não azedará

4. Testar a hipótese através de um experimento:

Testando a hipótese 1: expor o vinho a luz está descartado

logo de início, pois as adegas são escuras e o vinho azeda

mesmo assim. Seria o calor? As adegas também são frias, mas

elevo a temperatura do vinho só para ver o que acontece. O

vinho não azeda.

Testando a hipótese 2: se existem microorganismos no vinho,

deve ser possível observá-los com o microscópio. Examino

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o vinho no microscópio e vejo os tais microorganismos. Mas

seriam eles os causadores do azedamento do vinho? Se

eliminá-los e o vinho não azedar isso provará que temos um

culpado. Aqueço o vinho por certo período a temperatura de

55°C, para que ele não perca suas propriedades como sabor e

aroma, apenas o suficiente para matar as bactérias.

5. Se a hipótese é falseada, ou seja, o enunciado experimental

não produziu o efeito previsto, então ela é descartada e

passamos para outra hipótese. Se ela funciona, então ela é

corroborada. Isto é, passou no teste. Mas isso não significa

que ela é verdadeira, apenas que é a melhor que temos. Pois

podem existir situações em que ela não funcione e terá que

ser revista.

6. Se a hipótese é corroborada, ela pode tornar-se uma teoria.

No caso da hipótese 1, ela é falsa. O vinho não azeda por

um problema químico, já que reações químicas não ocorrem

espontaneamente. A hipótese 2 mostrou-se correta, já que

o vinho sem bactérias não virou vinagre. Como funcionou

tão bem para o vinho, ficamos tentados a testar com outros

alimentos que também estragam como leite, cerveja, sucos etc.

Funciona também para eles, então se torna uma tecnologia, ou

seja, uma descoberta científica aplicada à produção.

Quem realizou a descoberta da causa da fermentação foi Louis

Pasteur em 1864. O método de aquecer os alimentos, durante certo

tempo para matar os microorganismos responsáveis pela fermentação,

recebeu o nome de pasteurização em sua homenagem. Mas além

de sermos muito agradecidos a Pasteur por ter nos permitido a

degustação de vinhos e cervejas, o que nos interessa aqui é a lógica

da pesquisa científica.

Segundo o filósofo Karl Popper (1902-1994), a ciência

empírica não se caracteriza pela unidade em torno de seus

objetos de pesquisa, mas sim pela sua metodologia. Tal

metodologia, porém, não se limita à estrutura lógica das

teorias (ausência de contradição interna). Do contrário,

quando estivéssemos diante de duas teorias muito

coerentes internamente não poderíamos dizer qual delas é

a melhor (no nosso exemplo, tanto a hipótese 1 como a 2

são bastante razoáveis). Portanto, faz-se necessário outro

critério metodológico, além da forma lógica das teorias para

determinar o que é uma teoria empírica. Como vimos, no

Figura 1 - Louis PasteurFonte: http://commons.wikimedia.org/

90 Módulo 2 I Volume 2 EAD

Conhecimento CientíficoTeoria do Conhecimento

exemplo acima, o critério é a falseabilidade, isto é, a possibilidade de

submeter a teoria a testes.

No entanto, não se pode testar a teoria como um todo, visto

que as teorias são formadas de enunciados universais. Para poder

testá-las, deve-se poder extrair conclusões, isto é, efeitos previstos

pela teoria que sejam observáveis. Tais efeitos são denominados por

Popper de enunciados básicos. Para que uma teoria seja falseável é

necessário que possua falseadores potenciais, isto é, os enunciados

que a contradizem, ou que ela exclui ou proíbe.

A teoria será falseada se houver algum enunciado básico que

a contradiga e que seja aceito. No entanto, o que permite que esse

enunciado seja aceito pelos cientistas, de modo que, tão logo este

se apresente, todos possam acatá-lo e dar por refutada a teoria?

Popper acredita que este acordo seja possível dada a objetividade

científica que estabelece o consenso na comunidade científica.

Objetivo quer dizer algo que independe do capricho de qualquer

pessoa, pois qualquer um pode testá-la e entendê-la. Ou seja, o que

faz com que um enunciado científico seja aceito por vários cientistas

é a possibilidade de submetê-lo sempre a testes. Para que os testes

sejam realizáveis, os cientistas têm de estar de acordo sobre as

normas e padrões aceitos pela comunidade científica. Portanto, o

que caracteriza a objetividade científica é o consenso acerca das

regras que governam os procedimentos científicos. Esse acordo entre

os cientistas é renovado a cada instante, cada vez que a teoria é

submetida a testes a fim de corroborá-la e dessa forma ampliar sua

aproximação da verdade ou de falseá-la. O que torna o consenso dos

cientistas possível é o fato de estarem empenhados em submeter as

teorias a testes.

4 AS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS

Descrita da forma como faz Popper, a ciência parece um

ambiente racional em completa ordem, moldado por procedimentos

universalmente aceitos. Mas na prática as coisas não são bem assim.

Thomas Kuhn (1922-1996), em seu livro A estrutura das revoluções

científicas, questiona algumas das ideias centrais de Popper. A começar

pela ideia de que experiência e observação podem determinar o

consenso da comunidade científica na escolha das teorias. Isso não

quer dizer que a experiência não seja relevante, apenas que este

fator não é “por si só” o determinante, como afirma Popper, na escolha

das teorias. Isso porque, segundo Kuhn, o que unifica a comunidade

Figura 2 - Karl PopperFonte: http://www.nndb.com/

Figura 3 - Thomas KuhnFonte: http://www.enc.hu/

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científica não é a uniformidade de sua metodologia e sim o fato de

partilharem de um mesmo paradigma. Mas o que é um paradigma?

Paradigma tornou-se um conceito que ficou na moda durante muito

tempo, graças ao livro de Kuhn. É comum se encontrar títulos como:

“novos paradigmas em educação”, na administração de empresas etc.

Mas nas palavras do próprio Kuhn, paradigmas são “as

realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante

algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma

comunidade de praticantes de uma ciência” (KUHN, 1991, p. 13). É

baseada nos problemas e soluções modelares que se praticam na

pesquisa científica, que Kuhn caracteriza o que chama de “ciência

normal”. Durante os períodos de ciência normal, a comunidade

científica está pouco preocupada com as regras da metodologia

científica, podendo avançar até mesmo na ausência delas.

A falta de uma interpretação padronizada ou de uma redução a regras que goze de unanimidade não impede que um paradigma oriente a pesquisa. A ciência normal pode ser parcialmente determinada através da inspeção direta dos paradigmas (KUHN, 1991, p. 69).

Nesse sentido, fica descartada a possibilidade de uma

“objetividade científica” assentada em regras aceitas pela comunidade

científica, como define Popper. Pois, em períodos em que o paradigma

responde satisfatoriamente aos resultados esperados pelos cientistas,

estes não estão preocupados em falseá-lo. Por exemplo, até para

Einstein prevalecia a visão newtoniana de tempo e espaço como

coisas absolutamente distintas. Como poucos fenômenos não se

encaixavam nessa visão, os cientistas não se preocupavam em refutá-

lo. “A ciência normal [diz Kuhn] não se propõe a descobrir novidades

no terreno dos fatos ou da teoria; quando é bem sucedida, não as

encontra” (KUHN, 1991, p. 77).

Imagine as milhares de pesquisas que estão sendo

desenvolvidas em universidades e grandes laboratórios privados sobre

genética. Algumas delas estão ocupadas em mostrar que não são os

genes que determinam determinadas características ou anomalias?

Claro que não! É justamente o contrário, todas estão ocupadas em

saber quais os genes que determinam quais características nos seres

vivos. Ou seja, se depender da ciência normal, nenhum conhecimento

revolucionário na genética ocorrerá intencionalmente, mas por acaso.

Como já vimos, para Popper o procedimento para corroborar

uma teoria ou refutá-la é o de tentar falseá-la através de confrontação

com a experiência empírica. Kuhn considera que a escolha das teorias

92 Módulo 2 I Volume 2 EAD

Conhecimento CientíficoTeoria do Conhecimento

não passa por tal critério metodológico.

Nenhum processo descoberto até agora pelo estudo histórico do desenvolvimento científico assemelha-se ao estereótipo metodológico da falsificação por meio da comparação direta com a natureza (...) o juízo que leva os cientistas a rejeitarem uma teoria previamente aceita, baseia-se sempre em algo mais do que essa comparação da teoria com o mundo (KUHN, 1991, p. 108).

Além disso, não é possível decidir entre dois paradigmas

concorrentes dada a sua incomensurabilidade. Ambos utilizam-se de

argumentos circulares que satisfazem os critérios que o paradigma

atribui a si mesmo, mas que é incapaz de satisfazer alguns dos critérios

ditados pelo paradigma concorrente. Isso se deve ao fato de estarem

tratando o mesmo problema sob aspectos diversos, ou melhor, por

serem paradigmas de natureza diferente. “A tradição científica normal

que emerge de uma revolução científica é não somente incompatível,

mas muitas vezes verdadeiramente incomensurável com aquela que

a precedeu” (KUHN, 1991, p. 138).

Incomensurabilidade quer dizer que uma nova descoberta

científica não aproveita nada da teoria antiga, pois parte de um

paradigma diferente que, muitas vezes, significa pensar de uma

maneira completamente nova. Quando mudamos de paradigma, a

nossa visão do mundo e de ciência também muda.

Por exemplo, até o século XVII não havia uma teoria geral que

explicasse o fenômeno da combustão. Quando queimamos uma folha

de papel se a pesarmos antes e depois de ser queimada, observaremos

que ela perdeu peso. E isso acontece com a maioria dos materiais

quando queimados. Mas com os metais acontece o inverso. Eles se

tornam mais pesados depois de queimados. Por que isso acontece?

Em 1697, o médico e químico alemão Georg Ernst Stahl, publicou um

livro em que divulgava sua teoria do flogístico (do grego phlogiston,

que significa consumido pelo fogo).

Segundo a teoria de Stahl, quando um material era queimado,

ele perdia flogístico e o resto que não podia mais ser queimado

(chamado de cal) seria uma substância pobre em flogístico. Assim o

carvão era considerado rico em flogístico, pois depois de sua queima

sobrava pouca cal. Quando o metal era queimado, ele aumentava de

peso, porque possuía a propriedade de absorver flogístico do carvão.

Essa teoria foi aceita durante muito tempo tanto que o nitrogênio

descoberto em 1772, por Daniel Rutherford, foi denominado de

ar flogisticado; e o hoje oxigênio em 1774 era conhecido como ar

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deflogisticado.

Somente a partir de 1772, a teoria do flogístico começou

a ser questionada pelo químico francês Antoine Lavoisier (1743-

1794), em experiências realizadas sobre a combustão. Em 1777,

em experiências em ambiente controlado e com balanças de alta

precisão, ele comprovou que as substâncias não perdem peso quando

queimadas, e que a combustão na realidade era uma reação com

o oxigênio (descoberto poucos anos antes). A explicação para o

ganho de peso dos metais é que estes absorvem o oxigênio do ar,

ou seja, eles oxidam. A vantagem da teoria de Lavoisier é que ela

transformava a explicação sobre a combustão em algo demonstrável,

pois na ausência do oxigênio, nem carvão entrava em combustão, o

que provava que ele não tinha flogístico algum.

Uma vez comprovada a inexistência do flogístico, todos os

livros que tratavam do assunto viraram objeto de estudo apenas

dos historiadores da ciência, e praticamente não ouvimos falar no

assunto quando estudamos química. O que prova que os paradigmas

são incomensuráveis, pois quando abandonamos uma teoria,

abandonamos também certo modo de ver o mundo e explicar as

coisas.

Mas então se, para Kuhn, o consenso não é estabelecido pela

metodologia científica, qual é o critério que os cientistas utilizam para

mudar de paradigma?

A mudança de paradigma se dá quando a comunidade científica

reconhece deficiências no paradigma até então utilizado, o que

caracteriza um período de crise. A crise é uma condição necessária

para mudança de paradigmas e das revoluções científicas. Caso o

paradigma estivesse respondendo bem aos problemas, explicações

diferentes das dele seriam simplesmente ignoradas. Do mesmo

modo, não é qualquer problema que leva à crise, este deve ser uma

anomalia. “A descoberta começa com a consciência da anomalia, isto

é, o reconhecimento de que, de alguma maneira, a natureza violou as

expectativas paradigmáticas que governam a ciência normal” (KUHN,

1991, p. 78)

O surgimento de uma crise abala a confiança do cientista

no paradigma, o que pode terminar com a emergência de um novo

candidato a paradigma. A mudança de um paradigma a outro é

semelhante a uma mudança de Gestalt, o que reforça a tese da

incomensurabilidade dos paradigmas. Os problemas que eram

relevantes para o antigo paradigma podem tornar-se sem importância

frente ao novo campo de pesquisa que o novo paradigma abre (como

no exemplo do flogístico acima).

Figura 4 - LavoisierFonte: http://commons.wikimedia.org/

94 Módulo 2 I Volume 2 EAD

Conhecimento CientíficoTeoria do Conhecimento

Não existe uma resposta única sobre o que leva um cientista a

mudar de paradigma. Ao contrário de Popper que imagina um cientista

que age de um modo plenamente racional, baseado na lógica e nos

experimentos científicos (cientista este que age em acordo com sua

comunidade inteira), para Kuhn, o consenso é uma noção sociológica

que envolve diversos fatores, mas nenhum de per si determinante. A

mudança de paradigma do cientista é como uma conversão, em que

ocorre uma mudança abrupta semelhante a uma alteração da forma

visual (Gestalt).

Nenhum dos sentidos habituais do termo ‘interpretação’ ajusta-se a essas iluminações da intuição através das quais nasce um paradigma. Embora tais intuições dependam das experiências, tanto autônomas quanto congruentes, obtidas através do antigo paradigma, não estão ligadas, nem lógica, nem fragmentariamente a itens específicos dessas experiências, como seria o caso de uma interpretação. Em lugar disso, as intuições reúnem grandes porções dessas experiências e as transformam em um bloco de experiências que, a partir daí, será gradativamente ligado ao novo paradigma e não ao velho (KUHN, 1991, p.158).

Portanto, as revoluções científicas assemelham-se a grandes

rupturas em que ocorrem mudanças não só na forma como vemos as

teorias, mas na própria maneira como entendemos e interpretamos o

mundo. Galileu não só provou que a Terra não era o centro do universo,

ele nos expulsou de um cosmo criado por Deus exclusivamente

para o homem e, hoje, nos sentimos pequenos diante da imensidão

do universo com trilhões de estrelas e alguns bilhões de planetas

semelhantes ao nosso. Mas mudanças de paradigma não ocorrem

todos os dias, tampouco a ciência é aquela atividade engajada

em busca de novas descobertas. A ciência é produção humana e,

como tal, sujeita aos jogos de interesses e vaidades, cujos avanços

dependem, em grande parte, mais de acasos fortuitos do que de um

processo sistemático de investigação.

5 UM MAPA DAS CIÊNCIAS

Como vimos anteriormente, a ciência se caracteriza por

um processo metodologicamente acordado de investigação, cujos

resultados podem ser testados por outros membros da comunidade.

Mas essa descrição de ciência pode fazer parecer que só as ciências

SAIBA MAISO que é Gestalt?“A Teoria da Gestalt afirma que não se pode ter conhecimento do todo através das partes, e sim das partes através do todo. Que os conjuntos possuem leis próprias e estas regem seus elementos (e não o contrário, como se pensava antes). E que só através da percepção da totalidade é que o cérebro pode de fato perceber, decodificar e assimilar uma imagem ou um conceito”.

(http://www.mitologica.com.br/joomla/index.php?option=com_content&task=view&id=13&Itemid=2 )

Ou seja, você não consegue ver o saxofonista e a moça ao mesmo tempo, consegue?

Figura 5

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naturais, como a física ou a biologia, são ciências e que história

e psicologia não são ciências. Na verdade, existem cientistas que

pensam assim, mas isso é porque têm uma visão restrita do que seja

a ciência. Por exemplo, se admitirmos que só podem ser consideradas

científicas as proposições que podem ser testadas empiricamente,

o que poderíamos dizer sobre a matemática? Pois uma verdade

matemática não tem que obrigatoriamente ser uma descrição do

mundo, pois a matemática é uma ciência hipotética que trata de

mundos possíveis logicamente, e não de mundos reais. Dessa forma,

temos de admitir que as ciências naturais são uma parte do conjunto

das ciências, mas não as únicas. Segundo, que existem diversos tipos

de ciência com critérios diferentes de cientificidade. Pensando nisso,

o filósofo Charles Sanders Peirce elaborou a seguinte divisão das

ciências:

MATEMÁTICA – estuda como se pode supor que as coisas são.

CIÊNCIAS POSITIVAS – estudam como as coisas são.

FILOSOFIA – estuda os fatos mais gerais da vida cotidiana.

CIÊNCIAS ESPECIAIS – estudam fatos que são deliberadamente

procurados e frequentemente removidos da vida cotidiana.

Mas esta não é a única nem a mais completa forma de dividir

as ciências Nas universidades, por exemplo, costuma-se dividir as

ciências entre Ciências Humanas (História, Filosofia, Ciências Sociais

etc.), Ciências da Vida (Biologia, Medicina etc.) e Ciências Exatas

(Matemática, Física etc.). Essa divisão também não é boa, pois

coloca a matemática ao lado de ciências empíricas e dá a ideia de

que algumas ciências são “exatas”, enquanto outras são ciências do

“mais ou menos”. Além disso, ficam de fora as chamadas ciências

aplicadas que constituem campos tecnológicos direcionados para

a resolução de problemas concretos, como administrar empresas,

melhorar a produção agrícola ou a criação de animais, projetar e

realizar edificações etc.

Como as tecnologias estão em constante inovação, a todo

tempo surgem novas ciências aplicadas. Contraditoriamente, antigos

campos do saber, como as artes ou a educação, ainda continuam com

seu status científico não definido. De outra parte, a ideia de que todo

conhecimento se reduz em ciência, pode conter um ideal totalitário

e tecnicista de que toda forma de saber deve ser expressa na forma

das ciências naturais. O que reforça políticas universitárias de que só

os cursos voltados para as tecnologias e para acumulação de capital

deveriam existir. Assim, um curso de línguas poderia ser fechado,

96 Módulo 2 I Volume 2 EAD

Conhecimento CientíficoTeoria do Conhecimento

para dar espaço a um curso de turismo, por exemplo, sendo que sem

conhecer outras línguas é impossível desenvolver o turismo.

Em grande parte, tais equívocos são provocados pelo modelo

de ciência e de cientificidade que temos em mente, que faz equivaler

conhecimento e ciência como sendo sinônimos. Para alargar um

pouco nossa compreensão do que seja uma ciência, vamos explorar

brevemente a especificidade das ciências humanas e como os critérios

de falseabilidade das ciências naturais não cabem nesse caso.

6 AS CIÊNCIAS HUMANAS E SEUS CRITÉRIOS DE

CIENTIFICIDADE

“Ciências do Espírito” ou “Humanidades” é um termo com uma

longa tradição na Filosofia, para designar um determinado campo

do conhecimento humano ligado mais diretamente aos processos

mentais, ou que tem por objeto de reflexão o próprio ser humano.

Essa definição, porém, não garante um consenso sobre o que

exatamente estamos falando. Pois ainda resta muita discussão se a

psicologia ou a economia seriam ciências humanas, naturais ou um

pouco das duas. Para Wilhelm Dilthey (1833-1911), a resposta sobre

o que caracteriza as ciências do espírito não pode ser encontrada no

objeto ao qual se dedicam, pois também a fisiologia, por exemplo,

trata do homem. O que difere as ciências do espírito das ciências

naturais é a atitude frente aos objetos, ou seja, trata-se de uma

diferença epistemológica. Enquanto a atitude das ciências da natureza

é objetivante, instrumental, nas ciências do espírito é “por assim

dizer do interior que a realidade se abre para a vivência do sujeito”

(HABERMAS, s/d, p.158).

A realidade construída pelas ciências da natureza percorre um

caminho totalmente distinto, ela busca anular, o máximo possível,

a interferência que as vivências do pesquisador possam causar no

estudo do objeto. Para tanto,

[...] nós nos apossamos deste mundo físico pelo estudo de suas leis. Estas leis não podem ser descobertas a não ser que o caráter vivencial de nossas impressões da natureza, o conjunto no qual estamos postos, enquanto a natureza que somos, o agudo sentimento pelo qual a gozamos recue sempre mais, dando lugar a concepções abstratas da mesma segundo as relações do espaço, tempo, massa, movimento. Todos esses momentos concorrem para que o homem se elimine a si mesmo com o objetivo de construir, em base destas impressões, este

Figura 6 - Wilhelm DiltheyFonte: http://commons.wikimedia.org/

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grande objeto que é a natureza como se ela fosse uma ordem que obedece a leis. Ela torna-se então o centro da realidade para o homem (DILTHEY, apud HABERMAS, s/d, p. 157).

A possibilidade de anular a experiência vital é um dos critérios

mais importantes de objetividade das ciências da natureza, de modo

que seus modelos teóricos ou leis possam ser independentes da

historicidade e do contexto cultural em que se produzem. É comum

na transmissão de tais conhecimentos que sejam ignorados por

completo os contextos em que se desenvolveram, provocando muitas

vezes em seus receptores a impressão de que as ciências naturais

são desprovidas de história ou de ingerências políticas e econômicas.

Quando estudamos matemática, química ou física, as fórmulas

aparecem como se tivessem emergido do nada, sem história e como

se fosse verdades eternas reveladas desde sempre por Deus.

Nas ciências do espírito essa possibilidade de anulação da

vivência individual não existe, já que não se podem separar fatos

de teorias, pois estes se encontram amalgamados. As ciências do

espírito se movem dentro de outra lógica. Esta lógica, para Dilthey,

está centrada nas inter-relações entre vivência, objetivação e

compreensão. Desses três, o conceito de vivência é a chave para

compreender a teoria de Dilthey sobre as ciências do espírito.

Para Dilthey, a unidade da vivência é o que permite atribuir

uma significação aos acontecimentos assim como a experiência

histórica individual. Vivências são as ocorrências em nossas vidas que

aparecem enlaçadas em um sentido comum para o curso de nossa

existência, de modo que possamos identificar cada uma delas como

constituidoras de nossa história pessoal. A biografia individual é o

que permite atribuir um sentido às vivências individuais asseguradas

pelo eu-identidade. Ela permite estabelecer uma conexão entre

a vivência individual e a existência coletiva, na medida em que as

experiências vitais se desenvolvem em um processo histórico, em

que as significações atribuídas individualmente se constituem a

partir de um sistema de referências compartilhadas. “O ponto de

vista individual, corrige-se e se distende na experiência genérica da

vida. Com isso entendo proposições que se formam em um grupo

qualquer de pessoas que estão em relações uma com as outras e

cujos enunciados lhes são comuns” (DILTHEY, apud HABERMAS, s/d,

p. 168).

As vivências se exteriorizam em objetivações cujo significado

se pode compreender a partir da reflexão sobre as manifestações

vitais. Tal reflexividade constitui o pano de fundo da compreensão que

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Conhecimento CientíficoTeoria do Conhecimento

está presente nas interações humanas mediadas linguisticamente.

Ou seja, só compreendemos aquilo que podemos relacionar às

nossas próprias vivências, ou a vivências aprendidas coletivamente.

Como a compreensão se dá “a partir de dentro”, ela é sempre uma

interpretação do sujeito. Daí que as ciências humanas sejam ciências

hermenêuticas.

O termo “hermenêutica” remete ao deus grego Hermes, o

mensageiro dos deuses, aquele que traz notícias. O hermeneuta

seria aquele que tanto transmite quanto interpreta uma mensagem,

já que não é possível separar uma coisa da outra. Por conseguinte,

hermenêutica seria a arte de interpretar o sentido da palavra do

autor, principalmente de textos clássicos. Aqui entra tanto a condição

de possibilidade quanto a inevitabilidade da situação hermenêutica:

sempre que interpreto algo, o faço a partir do meu ponto de vista.

Não é possível que seja diferente, pois a minha vivência é a chave

para interpretar outras vivências.

Aqui se situa um problema com o qual a hermenêutica das

ciências do espírito de Dilthey tem que enfrentar: a compreensão

hermenêutica deve apreender em categorias inevitavelmente

universais, um sentido individual irredutível. Ou seja, ao formar um

corpo de conhecimentos é necessário que este se apresente sob a

forma de categorias universais, do contrário, não seria senão uma

mera repetição infinita de experiências individuais sem poder se

extrair nenhum conhecimento a partir delas. Ao mesmo tempo, a

universalidade tende a reduzir a particularidade e a deformá-la. O que

se deve e o que não se deve preservar do sentido vital individualizado

é uma questão metodológica central para hermenêutica.

Segundo Habermas, a compreensão hermenêutica se distingue

das proposições teóricas, isto é, daquelas capazes de serem reduzidas a

uma linguagem “pura” em que os enunciados formais foram purificados

de todos os elementos que não se articulam no plano das relações

simbólicas. Já a compreensão hermenêutica “não pode jamais analisar

a estrutura de seu objeto de tal maneira que todas as contingências

deste objeto fiquem eliminadas” (HABERMAS, s/d, p. 173). Isso

porque a hermenêutica tem em vista um contexto de significações

que são transmitidas por tradição; como não dispomos de regras para

reconstrução dos conjuntos-de-sentido legados pela tradição, temos

que tratá-los como se fossem fatos. Enquanto, nas ciências teóricas,

se busca anular a experiência biográfica individual para que estas

possam ser postas em categorias universais da linguagem; as ciências

hermenêuticas repousam justamente na especificidade da linguagem

ordinária que permite comunicar indiretamente categorias universais

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dentro das conexões concretas da vida. Ou seja, a linguagem

ordinária elabora sua própria metalinguagem sem que para isso seja

necessário criar uma linguagem artificial, operando como linguagem

e metalinguagem ao mesmo tempo.

A compreensão hermenêutica visa a três classes de

manifestações vitais: as expressões verbais, as ações e as expressões

vivenciais. As expressões verbais quando dissociadas de uma conexão

vital concreta, como no caso das linguagens formalizadas, dispensam

uma interpretação hermenêutica. Mas quando à expressão verbal

mistura-se algo que é próprio “ao pano de fundo obscuro e à plenitude

da vida da alma”, têm início os direitos da hermenêutica. Ela decifra

o que de início parece estranho na compreensão mútua entre os

falantes, algo que só pode ser comunicado de maneira indireta.

A interpretação seria impossível se as manifestações vitais fossem totalmente estranhas. Ela seria desnecessária, caso nada lhes fosse estranho. [A hermenêutica] se situa, portanto, entre estes dois pólos extremos. Ela é necessária sempre onde há algo de estranho, algo que a arte da compreensão deve assimilar (DILTHEY, apud HABERMAS, s/d, p. 176).

Na linguagem cotidiana há sempre um hiato a ser superado

pela interpretação entre os falantes, para evitar situações de

pseudocomunicação em que os participantes realmente não se

entendem acerca de algo, compreendendo-o de maneira equívoca.

Para facilitar o trabalho de interpretação, dispomos também de

termos extraverbais, além daqueles expressos através da linguagem.

A ação é uma dessas manifestações extraverbais. Embora a ação não

surja de uma intenção de comunicação, mas de uma relação para

com um fim, é possível observar certa regularidade nas ações e daí

depreender seu significado latente.

Uma terceira classe de manifestações são as expressões

vitais, que Dilthey considera serem as mais próximas da unidade

vital espontânea do que as expressões simbólicas da linguagem e da

ação. Por outro lado, são as de decifração mais difícil por remeterem

a intenções não expressas e a relação inexprimível do Eu com suas

objetivações e não terem um conteúdo cognitivo, o qual pudesse ser

integralmente explanado por meio de frases e ações. Assim, o seu

papel é muito mais de corroborar na interpretação das comunicações

manifestas através dos sintomas latentes que podem legitimar e

corroborar ou desmentir e rejeitar ou indicar a tentativa de enganar

um interlocutor colocando a comunicação sob suspeita. “Pois a

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Conhecimento CientíficoTeoria do Conhecimento

simulação, a mentira, o engano rompem a relação entre a expressão

e o espiritual expressado” (DILTHEY, 1944, p. 230).

A compreensão hermenêutica, portanto, deve levar em

consideração essas três classes de manifestações vitais, pois

na comunicação ordinária uma expressão raramente aparece

desacompanhada das outras. Dessa forma, a linguagem ordinária perfaz

sua própria metalinguagem na medida em que ela pode descrever a

comunicação extraverbal, ou seja, ela é capaz de se auto-interpretar.

Essa auto-interpretação consiste em explicitar os elementos ausentes

da linguagem não-verbal tornando-os comunicáveis. A linguagem

sempre se apresenta de modo fragmentário; sem o acesso aos

elementos não-verbais, essas lacunas seriam insuperáveis. A auto-

interpretação se opera, como já dissemos, através da metalinguagem

no interior da própria linguagem. Decifrar esta auto-interpretação, tal

é a tarefa da hermenêutica.

Aqui temos uma clara demarcação entre as ciências do espírito

e as ciências naturais. Por perfazer sua própria metalinguagem, a

interpretação hermenêutica jamais pode ser demonstrável. “Pois,

uma ‘prova’ para as chamadas interpolações só seria possível, caso

pudéssemos retraduzir um texto, legado por tradição, para ‘dentro’ da

práxis vital de sua época, uma práxis que um dia completou texto e

discurso” (HABERMAS, s/d, p. 180). Na tentativa de se aproximar da

interpretação, as ciências do espírito incorrem no denominado círculo

hermenêutico, como pode ser ilustrado com o seguinte exemplo:

percebo que a literatura produzida em determinada época reúne

certas similaridades que refletem outras manifestações culturais

que também ocorrem na mesma época. Então conceituo a produção

desses autores de Romantismo e descrevo as características de uma

literatura romântica em termos ideais. Depois volto sobre os autores

ditos românticos e descubro outras características não percebidas da

primeira vez. Então volto ao conceito e o modifico para apreender

melhor o objeto. Tais idas e vindas formam o círculo hermenêutico.

Círculo Hermenêutico

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Mas essa circularidade da hermenêutica não necessariamente

é viciosa, podendo ser bastante frutífera se a hermenêutica não se

reduzir exclusivamente à linguística ou a uma análise puramente

empírica. Pois, nesse caso, tratar-se-ia sim de um círculo vicioso. Mas

essa circularidade é evitada graças ao fato de os conteúdos legados

pela tradição e objetivados em palavras e em fatos, não serem,

ao mesmo tempo, tanto símbolos quanto fatos. “É por isso que a

compreensão deve combinar a análise linguística e a experiência. Sem

esta coação para tal combinação peculiar, o desenvolvimento circular

do processo interpretativo permaneceria preso em um círculo vicioso”

(HABERMAS, s/d, p.182). Assim se parte de um esquema exegético

provisório, antecipando de saída o resultado do processo exegético.

Ao se aplicar a chave interpretativa ao material, esse a modifica

levando à modificação das hipóteses antecipadas provisoriamente.

O fato de as ciências do espírito estarem mais presas ao

contexto vital, torna mais clara a sua perseguição de interesses

cognitivos. Tanto as ciências do espírito quanto as ciências naturais

perseguem interesses cognitivos. O interesse das ciências empírico-

analíticas é um interesse técnico e instrumental de aplicação desses

conhecimentos à realização de novas tecnologias. O interesse cognitivo

das ciências do espírito está em evitar a ruptura na comunicação,

ou seja, em conservar o entendimento intersubjetivo. O interesse

prático do conhecimento que domina a gênese das ciências do espírito

determina, também, o contexto de aplicação do saber hermenêutico.

Por estarem presas à interpretação que faz o historiador ou o

cientista social do fato ou fenômeno social que estuda, pode parecer

que as ciências humanas não são tão objetivas quanto às ciências

naturais, já que não existe experimento capaz de provar de uma

vez por todas que uma interpretação está certa e outra errada. Isso

acontece por duas razões.

1) A primeira e mais importante, é que ao contrário das

ciências naturais que estudam relações entre objetos ou entre sujeitos

e objetos; nas ciências humanas estuda-se a relação entre sujeitos.

Que diferença isso faz? Toda diferença, pois os objetos naturais

comportam-se de modo regular, o que nos permite elaborar teorias

que se aplicam à totalidade dos objetos do mesmo tipo. Percebemos

que alguns patos de uma determinada espécie migram para o sul

no inverno, então posso afirmar que todos os patos daquela espécie

migram no inverno e que migrarão nos anos seguintes também.

Quando me relaciono com um sujeito, ele também é um intérprete

tanto quanto eu. Ele observa o que eu estou tentando descobrir e

tenta adivinhar qual é a minha intenção. Dependendo do caso, ele

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Conhecimento CientíficoTeoria do Conhecimento

pode alterar sua resposta em função do que imagina que estou

pensando ou que vou pensar a seu respeito. Por exemplo, se estou

pesquisando o comportamento sexual dos coelhos, os coelhos não

vão fingir porque existe uma câmara os observando. Mas se pergunto

para homens casados com que frequência têm relações sexuais com

suas esposas e para esposas quantas vezes têm relações sexuais

com seus maridos, é possível que obtenhamos resultados diferentes

para homens e mulheres. Por quê? Obviamente, algumas pessoas

devem estar mentindo em suas respostas. Por que fazem isso?

Como cientista social, posso formular a hipótese de que os homens

pretendem projetar uma auto-imagem de que são viris, o que os

faria inflacionar um pouco os números. Note que aqui já entrou um

elemento de interpretação do comportamento do objeto, algo muito

diferente de explicar o comportamento do objeto, como se faz com

uma bactéria, ou uma partícula atômica. A diferença é que posso

provar que a bactéria se comporta de determinada forma, mas não

posso fazer o mesmo com pessoas, pois, ao tentar aplicar minha

hipótese explicativa, elas podem mudar de comportamento e derrubar

minha hipótese, justamente por estarem informadas sobre ela.

Como em pesquisas eleitorais, podemos explicar porque as pessoas

migraram sua intenção de voto do candidato x para o candidato y,

mas só depois que o fato tenha ocorrido. Mas nada garante como

o eleitor irá se comportar no dia da eleição, pois a própria pesquisa

eleitoral influencia na deliberação do eleitor.

2) A segunda razão é que o intérprete é também um ser social

e, portanto, não é neutro. Ele sabe que determinadas interpretações

favorecem ou legitimam este ou aquele grupo social, de acordo com

sua ideologia, o cientista social ou historiador privilegia determinadas

interpretações dos fatos em detrimento de outras. Onde um historiador

marxista vê conflito de classes e racismo, um historiador conservador

pode enxergar cordialidade e democracia racial.

Mas isso quer dizer que não existe objetividade nas ciências

humanas? A mesma pergunta poderia ser dirigida às ciências

naturais que, apesar da aparência de neutralidade, também são

ciências que dependem do consenso entre os cientistas acerca de

qual a interpretação descreve melhor os fatos. No caso das ciências

humanas, esse debate é público e ajuda a entender quais as diferenças

metodológicas, assim como os pressupostos ideológicos das posições

defendidas pelos diversos autores. Isso enriquece nossa compreensão

do problema, ampliando nosso conhecimento do mesmo. Evitar tal

debate só favoreceria ao ocultamento das ideologias em jogo.

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7 ATIVIDADES

As questões a seguir têm como objetivo ajudar a fixar tudo que aprendemos até agora. Elas seguem a ordem em que está organizado o texto, portanto, seria melhor respondê-las na sequência em que estão. Após respondê-las seria bom confrontar suas respostas com as dos colegas no Seminário Integrador e esclarecer as dúvidas com o tutor. Depois, reformule suas respostas, se for o caso, e entregue suas respostas ao tutor.

1. O que caracteriza a ciência empírica?2. Qual a relação entre paradigma e comunidade científica?3. Indique quais as diferenças entre Popper e Kuhn sobre como ocorrem as revoluções

científicas.4. A partir do texto “um mapa das ciências” como você classificaria a pedagogia? É a

pedagogia uma ciência? Justifique.5. O que diferencia as ciências humanas das ciências naturais?6. Qual o papel do círculo hermenêutico no avanço do conhecimento?7. É possível construir um conhecimento valorativamente neutro nas ciências

humanas? Explique.

ATIVIDADE

RESUMINDO8 RESUMINDO

A ciência moderna é baseada no critério empírico de testabilidade. Para que uma teoria científica seja aceita, não basta que ela seja rigorosamente construída em bases lógicas. É preciso que ela seja capaz de prever consequências e que tais efeitos possam ser testados por outros cientistas. Assim, Karl Popper elaborou o critério de falseabilidade como fundamento da investigação científica. Thomas Kuhn, porém, mostrou que, em seu desenvolvimento histórico, a ciência nem sempre se orienta dessa forma. Muitas vezes, os cientistas resistem a um novo paradigma e só em situações de crise, quando a ciência normal não é capaz de responder as anomalias que a realidade apresenta, é que se veem forçados a mudar de paradigma. A mudança de paradigma, entretanto, não ocorre como um processo de acúmulo gradual, ela é sempre uma ruptura em que o paradigma anterior é completamente abandonado. Pois não é só o velho paradigma que deixa de ter vigência, mas também a visão de mundo que ele continha.

Os processos de mudança de paradigma, que valem para as ciências naturais, não se aplicam ao campo das ciências humanas, já que vários paradigmas podem conviver durante muito tempo sem que um suplante definitivamente o outro. É o caso, por exemplo, das teorias de Marx e Weber no campo das Ciências Sociais. Isso porque as ciências humanas não são falseáveis, já que não existem experimentos sociais capazes de demonstrar a validade de uma teoria de uma vez por todas, já que as próprias teorias são também produtos históricos e sociais e acabam por afetar a percepção dos sujeitos sociais sobre si mesmos e sobre os outros; o que os pode levar a mudar o curso de suas ações, modificando os resultados previstos pela teoria. Assim, enquanto as ciências naturais têm como interesse principal o incremento tecnológico, as ciências humanas visam ao aumento da compreensão dos seres humanos sobre si mesmos.

104 Módulo 2 I Volume 2 EAD

Conhecimento CientíficoTeoria do Conhecimento

9 REFERÊNCIAS

A Evolução do conceito de Calor: Fogo, Flogístico, Calórico e Formas de

Movimento. In: http://www.searadaciencia.ufc.br/folclore/folclore143.

htm

DILTHEY, W. El Mundo Histórico. México: Fondo de Cultura Econômica,

1944.

HABERMAS, Jurgen. Conhecimento e interesse. Rio de Janeiro: Zahar

Editores, s/d.

KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo:

Perspectiva, 1991.

POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, s/d.

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Suas anotações