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Ao final desta Unidade, o aluno será capaz de:
• dominar os conceitos de paradigma, método
científico, falseabilidade e hermenêutica.
Obje
tivos
CONHECIMENTO CIENTÍFICO
unidade
UNIDADE 4CONHECIMENTO CIENTÍFICO
1 INTRODUÇÃO
Antes de falar sobre a relação entre ciência e conhecimento,
alguns conceitos prévios são necessários. Como já foi visto, só se
pode conhecer o que se repete, o que tem regularidade. Um disco
voador que aparece para dois viajantes ou um fantasma que assusta
um morador solitário não são assunto da ciência. Por isso, ufologia
ou parapsicologia não são ciência, não porque os seus objetos sejam
estranhos, pois existem ciências bastante estranhas, mas porque
tratam de fenômenos que não se repetem, que não têm regularidade.
Se fosse possível marcar uma entrevista com um ET, então estaríamos
no campo da ciência. Algo é científico quando tem certa regularidade
e é previsível. Um exemplo disso são os cometas.
Cometas antigamente eram vistos como sinal de maus
presságios; que um novo rei iria surgir; ou que grandes catástrofes
iriam acontecer. Foi assim no nascimento de Jesus antecedido por
uma estrela, e que o rei Herodes interpretou como um novo rei que
nasceria, então mandou matar todos os meninos. Em 1696, Edmond
Halley descobriu que muitos dos cometas dos quais havia registro,
eram na verdade um único cometa que percorria uma órbita em torno
do Sol a cada 76 anos. Assim, os cometas deixavam de ser mensageiros
de maus presságios e passavam a ser objetos, não muito familiares,
mas previsíveis e explicáveis. Tão explicáveis quanto as chuvas de
março ou o vírus da gripe. Mas não se faz ciência do extraordinário,
embora este possa despertar muito interesse do grande público, pois
popularidade não é o motor principal da ciência.
Halley previu ainda que em 1758, 16 anos depois de sua morte,
o cometa passaria novamente próximo da Terra, em sua homenagem,
o cometa recebeu o seu nome. Halley não era um bruxo ou um profeta
que fazia previsões inexplicáveis, sua descoberta estava firmemente
apoiada em uma teoria desenvolvida por outro grande cientista, Isaac
Newton. Seu trabalho foi o de relacionar a teoria de Newton a corpos
que, embora não fossem planetas, estavam sujeitos às mesmas leis
que regem todos os fenômenos do universo. E isso nos dá uma noção
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do que faz o cientista: ele procura dar uma explicação racional para
os fenômenos, como faz o filósofo, mas testa a verdade de suas
teorias confrontando-as com os experimentos, ou efeitos que elas
predizem. Por exemplo, Aristóteles dizia que quanto mais pesado é
um corpo, mais rápido ele cai, porque a aceleração é proporcional ao
peso do objeto. Isso parece muito razoável de se pensar e durante
muitos séculos ninguém duvidou da verdade de Aristóteles. Somente
no século XVII, Galileu Galilei foi capaz de desafiar a autoridade de
Aristóteles propondo um experimento que poderia colaborar ou negar
a teoria de Aristóteles.
A novidade aqui é que uma teoria científica não é somente uma
construção lógica, ela precisa ser comprovada pela experiência. Eu
posso até ser muito religioso e achar que a Terra é plana como a Bíblia
diz e não redonda como demonstrou Galileu. Mas, independentemente
do que eu possa pensar, se viajar ao Japão, terei que ajustar o
meu relógio ao novo fuso horário, adiantando-o em doze horas. Ou
seja, a realidade é algo que se impõe a nós, indiferente as nossas
idiossincrasias. As teorias científicas não são para serem acreditadas
ou não, pois sua verdade não depende de nós acreditarmos nela, mas
de sua comprovação através do confronto com a realidade. Se resistir
aos fatos, então a teoria é válida.
Existem pessoas que dizem não acreditar na teoria da evolução
de Darwin. Mas Darwin não era nenhum Nostradamus para se
acreditar ou não. Suas teorias são fruto de pesquisas e observações
ATE
NÇ
ÃO
TESTANDO UMA TEORIA
Esse experimento você também pode repetir em sua casa:
pegue dois objetos sendo um o dobro do peso do outro (duas
pedras, por exemplo). Segure-os até a altura dos seus ombros,
então, os solte ao mesmo tempo e observe o que aconteceu.
Marque a teoria que melhor corresponde aos fatos:
a) quando o objeto mais pesado já tinha atingido o chão, o outro
ainda estava na metade do caminho (teoria de Aristóteles);
b) os dois caíram quase que ao mesmo tempo no chão (teoria de
Galileu);
c) o que você observou? Qual a teoria que corresponde aos fatos?
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Conhecimento CientíficoTeoria do Conhecimento
empreendidas durante décadas em várias partes do mundo. Se não
concorda com Darwin, é simples: monte um experimento que mostre
que Darwin estava errado. Em ciência, nenhuma teoria é sagrada;
assim que se prova que ela estava errada, prontamente é substituída
e a velha teoria vira assunto dos historiadores da ciência. Agora,
vejamos algo mais sobre o método científico.
2 A LÓGICA DA CIÊNCIA
Antes de falar sobre a lógica da ciência é preciso recordar
um pouco sobre os três tipos de inferência. Inferência é o processo
de concluir uma afirmação de outras afirmações. Por exemplo, “hoje
está sol”, logo podemos inferir que “está um ótimo dia para ir à praia”.
Existem três processos de inferência: dedução, indução e hipótese.
A dedução é o processo em que, partindo de premissas verdadeiras
e gerais, chegamos a uma conclusão igualmente verdadeira. Um
exemplo clássico é:
1. Todo homem é mortal.
2. Sócrates é homem.
3. Logo, Sócrates é mortal.
Nesse caso, as afirmações 1 e 2 são premissas e 3, a conclusão.
Se a verdade das premissas está garantida, a da conclusão também
estará, bastando que, para isso, sigamos as regras de validade dos
silogismos dedutivos. Uma delas é que o termo médio, que é o que
permite ligar uma premissa com a outra (no caso, o termo homem), não
deve aparecer na conclusão. Outra regra é que, na dedução, sempre
vamos do geral para o particular e de premissas particulares nada se
conclui. Portanto, em uma dedução, nós aplicamos conhecimentos
já garantidos a casos particulares que são uma aplicação dos casos
gerais. Logo, a verdade de uma conclusão é sempre universal e
necessária, ou seja, válida em todo tempo e lugar e independente
de circunstâncias particulares, pois ela extrai sua verdade de seu
aspecto formal.
Ao contrário da dedução, a indução vai do particular para
o geral. Por exemplo, ao observar que sol nasce todos os dias por
volta das seis da manhã, posso afirmar que ele nascerá amanhã.
O problema da indução é que sua verdade não é garantida como
na dedução, pois parte de casos particulares e contingentes, cujo
contrário é sempre possível. Um caso histórico que ilustra isso é o
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do cisne negro. Até 1697, na Europa, se pensava que todos os cisnes
eram brancos, então quando a Austrália foi descoberta, lá estavam os
cisnes negros e séculos de certeza desabaram. Isso acontece porque,
muitas vezes, nossa amostra não é suficiente. Por exemplo, alguém
está fazendo café na cozinha, bem na hora em que está colocando
açúcar, toca o telefone e ela precisa ir atender. Outra pessoa chega e
experimenta o café. Como o açúcar está todo no fundo ainda, ela pensa
que está sem açúcar e coloca mais. O resultado você pode imaginar...
O problema, nesse caso, é que a amostra não era homogênea. Em
pesquisas de opinião que trabalham com probabilidades, tenta-
se cobrir a heterogeneidade da população, selecionando-se grupos
representativos do conjunto, por exemplo, se metade da população
é composta de homens e a outra de mulheres, a pesquisa deve
refletir este dado no universo dos seus entrevistados. Quanto mais
se aproximar da realidade do total do universo da população, mais
precisa será a pesquisa, contudo, a margem de erro sempre existirá,
pois uma pesquisa só teria 100% de credibilidade se entrevistasse a
população inteira, mas aí não seria uma pesquisa, além dos custos
serem imensos.
O último caso de inferência é a hipótese. A hipótese é uma
inferência com poder explicativo como a dedução, mas que precisa
de confirmações para que possa ser demonstrada. Se confirmada,
a hipótese transforma-se em lei ou teoria, se negada pela não
ocorrência de suas previsões, a hipótese é abandonada em favor
de outra. Por exemplo, um fazendeiro encontra ossos enormes em
sua propriedade e chama um professor da universidade local. Esse
conclui que aquele osso parece ser do braço de um animal, mas é
grande demais para ser de um elefante, ou de uma girafa. Então
conclui que deve ter pertencido a um animal que era muito grande,
mas que não existe mais atualmente. Se puder encontrar mais ossos,
e, até mesmo, reconstruir parte do esqueleto, poderá corroborar
sua hipótese. Embora muitos pensem que as descobertas científicas
ocorram por fatores puramente acidentais e de ordem psicológica,
há epistemólogos, como Hans Reichenbach, que postulam que a
hipótese é um processo lógico, cujos passos podem ser reconstruídos
posteriormente. Dessa forma, Reichenbach distingue a “lógica da
descoberta” em que a hipótese surge e é testada, e a “lógica da
justificação” em que a teoria é explicada.
Vamos ver se você entendeu a diferença entre dedução,
indução e hipótese? Faça corresponder a coluna da esquerda com os
exemplos na coluna da direita:
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Conhecimento CientíficoTeoria do Conhecimento
a) hipótese ( ) Esses feijões são daquela saca. Esses feijões
são brancos. Logo, todos os feijões daquela saca
são brancos.
b) indução ( ) Todos os feijões daquela saca são brancos.
Esses feijões são daquela saca. Logo, esses feijões
são brancos.
c) dedução ( ) Todos os feijões daquela saca são brancos.
Esses feijões são brancos. Logo, esses feijões são
daquela saca.
3 A LÓGICA DA PESQUISA CIENTÍFICA
O processo científico pode ser descrito, de modo ideal, assim:
1. Observa-se um fenômeno ainda sem explicação, mas que é
possível de se determinar e estudar, pois acontece regularmente.
Por exemplo: observamos que o vinho azeda mesmo estando
em barris bem fechados. Por que será que isso acontece?
2. Formulamos hipóteses explicativas ou teorias: seria o
azedamento do vinho resultado de sua instabilidade química?
Vemos certos produtos mudarem suas características quando
expostos ao calor ou à luz. Ou seria isso resultado da ação de
organismos tão pequenos que seriam invisíveis a olho nu, mas
que estariam no vinho mesmo antes de ser embalado?
3. Formular uma dedução que possa ter a forma de um enunciado
experimental:
Para hipótese 1: O vinho azeda quando muda as condições de
temperatura ou de luminosidade. Logo, se expuser o vinho à
luz ou ao calor ele azedará.
Para hipótese 2: O vinho tem microorganismos dentro, mesmo
antes de ser colocado nos barris. Os microorganismos provocam
o azedamento do vinho. Logo, se eles forem eliminados o vinho
não azedará
4. Testar a hipótese através de um experimento:
Testando a hipótese 1: expor o vinho a luz está descartado
logo de início, pois as adegas são escuras e o vinho azeda
mesmo assim. Seria o calor? As adegas também são frias, mas
elevo a temperatura do vinho só para ver o que acontece. O
vinho não azeda.
Testando a hipótese 2: se existem microorganismos no vinho,
deve ser possível observá-los com o microscópio. Examino
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o vinho no microscópio e vejo os tais microorganismos. Mas
seriam eles os causadores do azedamento do vinho? Se
eliminá-los e o vinho não azedar isso provará que temos um
culpado. Aqueço o vinho por certo período a temperatura de
55°C, para que ele não perca suas propriedades como sabor e
aroma, apenas o suficiente para matar as bactérias.
5. Se a hipótese é falseada, ou seja, o enunciado experimental
não produziu o efeito previsto, então ela é descartada e
passamos para outra hipótese. Se ela funciona, então ela é
corroborada. Isto é, passou no teste. Mas isso não significa
que ela é verdadeira, apenas que é a melhor que temos. Pois
podem existir situações em que ela não funcione e terá que
ser revista.
6. Se a hipótese é corroborada, ela pode tornar-se uma teoria.
No caso da hipótese 1, ela é falsa. O vinho não azeda por
um problema químico, já que reações químicas não ocorrem
espontaneamente. A hipótese 2 mostrou-se correta, já que
o vinho sem bactérias não virou vinagre. Como funcionou
tão bem para o vinho, ficamos tentados a testar com outros
alimentos que também estragam como leite, cerveja, sucos etc.
Funciona também para eles, então se torna uma tecnologia, ou
seja, uma descoberta científica aplicada à produção.
Quem realizou a descoberta da causa da fermentação foi Louis
Pasteur em 1864. O método de aquecer os alimentos, durante certo
tempo para matar os microorganismos responsáveis pela fermentação,
recebeu o nome de pasteurização em sua homenagem. Mas além
de sermos muito agradecidos a Pasteur por ter nos permitido a
degustação de vinhos e cervejas, o que nos interessa aqui é a lógica
da pesquisa científica.
Segundo o filósofo Karl Popper (1902-1994), a ciência
empírica não se caracteriza pela unidade em torno de seus
objetos de pesquisa, mas sim pela sua metodologia. Tal
metodologia, porém, não se limita à estrutura lógica das
teorias (ausência de contradição interna). Do contrário,
quando estivéssemos diante de duas teorias muito
coerentes internamente não poderíamos dizer qual delas é
a melhor (no nosso exemplo, tanto a hipótese 1 como a 2
são bastante razoáveis). Portanto, faz-se necessário outro
critério metodológico, além da forma lógica das teorias para
determinar o que é uma teoria empírica. Como vimos, no
Figura 1 - Louis PasteurFonte: http://commons.wikimedia.org/
90 Módulo 2 I Volume 2 EAD
Conhecimento CientíficoTeoria do Conhecimento
exemplo acima, o critério é a falseabilidade, isto é, a possibilidade de
submeter a teoria a testes.
No entanto, não se pode testar a teoria como um todo, visto
que as teorias são formadas de enunciados universais. Para poder
testá-las, deve-se poder extrair conclusões, isto é, efeitos previstos
pela teoria que sejam observáveis. Tais efeitos são denominados por
Popper de enunciados básicos. Para que uma teoria seja falseável é
necessário que possua falseadores potenciais, isto é, os enunciados
que a contradizem, ou que ela exclui ou proíbe.
A teoria será falseada se houver algum enunciado básico que
a contradiga e que seja aceito. No entanto, o que permite que esse
enunciado seja aceito pelos cientistas, de modo que, tão logo este
se apresente, todos possam acatá-lo e dar por refutada a teoria?
Popper acredita que este acordo seja possível dada a objetividade
científica que estabelece o consenso na comunidade científica.
Objetivo quer dizer algo que independe do capricho de qualquer
pessoa, pois qualquer um pode testá-la e entendê-la. Ou seja, o que
faz com que um enunciado científico seja aceito por vários cientistas
é a possibilidade de submetê-lo sempre a testes. Para que os testes
sejam realizáveis, os cientistas têm de estar de acordo sobre as
normas e padrões aceitos pela comunidade científica. Portanto, o
que caracteriza a objetividade científica é o consenso acerca das
regras que governam os procedimentos científicos. Esse acordo entre
os cientistas é renovado a cada instante, cada vez que a teoria é
submetida a testes a fim de corroborá-la e dessa forma ampliar sua
aproximação da verdade ou de falseá-la. O que torna o consenso dos
cientistas possível é o fato de estarem empenhados em submeter as
teorias a testes.
4 AS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS
Descrita da forma como faz Popper, a ciência parece um
ambiente racional em completa ordem, moldado por procedimentos
universalmente aceitos. Mas na prática as coisas não são bem assim.
Thomas Kuhn (1922-1996), em seu livro A estrutura das revoluções
científicas, questiona algumas das ideias centrais de Popper. A começar
pela ideia de que experiência e observação podem determinar o
consenso da comunidade científica na escolha das teorias. Isso não
quer dizer que a experiência não seja relevante, apenas que este
fator não é “por si só” o determinante, como afirma Popper, na escolha
das teorias. Isso porque, segundo Kuhn, o que unifica a comunidade
Figura 2 - Karl PopperFonte: http://www.nndb.com/
Figura 3 - Thomas KuhnFonte: http://www.enc.hu/
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científica não é a uniformidade de sua metodologia e sim o fato de
partilharem de um mesmo paradigma. Mas o que é um paradigma?
Paradigma tornou-se um conceito que ficou na moda durante muito
tempo, graças ao livro de Kuhn. É comum se encontrar títulos como:
“novos paradigmas em educação”, na administração de empresas etc.
Mas nas palavras do próprio Kuhn, paradigmas são “as
realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante
algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma
comunidade de praticantes de uma ciência” (KUHN, 1991, p. 13). É
baseada nos problemas e soluções modelares que se praticam na
pesquisa científica, que Kuhn caracteriza o que chama de “ciência
normal”. Durante os períodos de ciência normal, a comunidade
científica está pouco preocupada com as regras da metodologia
científica, podendo avançar até mesmo na ausência delas.
A falta de uma interpretação padronizada ou de uma redução a regras que goze de unanimidade não impede que um paradigma oriente a pesquisa. A ciência normal pode ser parcialmente determinada através da inspeção direta dos paradigmas (KUHN, 1991, p. 69).
Nesse sentido, fica descartada a possibilidade de uma
“objetividade científica” assentada em regras aceitas pela comunidade
científica, como define Popper. Pois, em períodos em que o paradigma
responde satisfatoriamente aos resultados esperados pelos cientistas,
estes não estão preocupados em falseá-lo. Por exemplo, até para
Einstein prevalecia a visão newtoniana de tempo e espaço como
coisas absolutamente distintas. Como poucos fenômenos não se
encaixavam nessa visão, os cientistas não se preocupavam em refutá-
lo. “A ciência normal [diz Kuhn] não se propõe a descobrir novidades
no terreno dos fatos ou da teoria; quando é bem sucedida, não as
encontra” (KUHN, 1991, p. 77).
Imagine as milhares de pesquisas que estão sendo
desenvolvidas em universidades e grandes laboratórios privados sobre
genética. Algumas delas estão ocupadas em mostrar que não são os
genes que determinam determinadas características ou anomalias?
Claro que não! É justamente o contrário, todas estão ocupadas em
saber quais os genes que determinam quais características nos seres
vivos. Ou seja, se depender da ciência normal, nenhum conhecimento
revolucionário na genética ocorrerá intencionalmente, mas por acaso.
Como já vimos, para Popper o procedimento para corroborar
uma teoria ou refutá-la é o de tentar falseá-la através de confrontação
com a experiência empírica. Kuhn considera que a escolha das teorias
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Conhecimento CientíficoTeoria do Conhecimento
não passa por tal critério metodológico.
Nenhum processo descoberto até agora pelo estudo histórico do desenvolvimento científico assemelha-se ao estereótipo metodológico da falsificação por meio da comparação direta com a natureza (...) o juízo que leva os cientistas a rejeitarem uma teoria previamente aceita, baseia-se sempre em algo mais do que essa comparação da teoria com o mundo (KUHN, 1991, p. 108).
Além disso, não é possível decidir entre dois paradigmas
concorrentes dada a sua incomensurabilidade. Ambos utilizam-se de
argumentos circulares que satisfazem os critérios que o paradigma
atribui a si mesmo, mas que é incapaz de satisfazer alguns dos critérios
ditados pelo paradigma concorrente. Isso se deve ao fato de estarem
tratando o mesmo problema sob aspectos diversos, ou melhor, por
serem paradigmas de natureza diferente. “A tradição científica normal
que emerge de uma revolução científica é não somente incompatível,
mas muitas vezes verdadeiramente incomensurável com aquela que
a precedeu” (KUHN, 1991, p. 138).
Incomensurabilidade quer dizer que uma nova descoberta
científica não aproveita nada da teoria antiga, pois parte de um
paradigma diferente que, muitas vezes, significa pensar de uma
maneira completamente nova. Quando mudamos de paradigma, a
nossa visão do mundo e de ciência também muda.
Por exemplo, até o século XVII não havia uma teoria geral que
explicasse o fenômeno da combustão. Quando queimamos uma folha
de papel se a pesarmos antes e depois de ser queimada, observaremos
que ela perdeu peso. E isso acontece com a maioria dos materiais
quando queimados. Mas com os metais acontece o inverso. Eles se
tornam mais pesados depois de queimados. Por que isso acontece?
Em 1697, o médico e químico alemão Georg Ernst Stahl, publicou um
livro em que divulgava sua teoria do flogístico (do grego phlogiston,
que significa consumido pelo fogo).
Segundo a teoria de Stahl, quando um material era queimado,
ele perdia flogístico e o resto que não podia mais ser queimado
(chamado de cal) seria uma substância pobre em flogístico. Assim o
carvão era considerado rico em flogístico, pois depois de sua queima
sobrava pouca cal. Quando o metal era queimado, ele aumentava de
peso, porque possuía a propriedade de absorver flogístico do carvão.
Essa teoria foi aceita durante muito tempo tanto que o nitrogênio
descoberto em 1772, por Daniel Rutherford, foi denominado de
ar flogisticado; e o hoje oxigênio em 1774 era conhecido como ar
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deflogisticado.
Somente a partir de 1772, a teoria do flogístico começou
a ser questionada pelo químico francês Antoine Lavoisier (1743-
1794), em experiências realizadas sobre a combustão. Em 1777,
em experiências em ambiente controlado e com balanças de alta
precisão, ele comprovou que as substâncias não perdem peso quando
queimadas, e que a combustão na realidade era uma reação com
o oxigênio (descoberto poucos anos antes). A explicação para o
ganho de peso dos metais é que estes absorvem o oxigênio do ar,
ou seja, eles oxidam. A vantagem da teoria de Lavoisier é que ela
transformava a explicação sobre a combustão em algo demonstrável,
pois na ausência do oxigênio, nem carvão entrava em combustão, o
que provava que ele não tinha flogístico algum.
Uma vez comprovada a inexistência do flogístico, todos os
livros que tratavam do assunto viraram objeto de estudo apenas
dos historiadores da ciência, e praticamente não ouvimos falar no
assunto quando estudamos química. O que prova que os paradigmas
são incomensuráveis, pois quando abandonamos uma teoria,
abandonamos também certo modo de ver o mundo e explicar as
coisas.
Mas então se, para Kuhn, o consenso não é estabelecido pela
metodologia científica, qual é o critério que os cientistas utilizam para
mudar de paradigma?
A mudança de paradigma se dá quando a comunidade científica
reconhece deficiências no paradigma até então utilizado, o que
caracteriza um período de crise. A crise é uma condição necessária
para mudança de paradigmas e das revoluções científicas. Caso o
paradigma estivesse respondendo bem aos problemas, explicações
diferentes das dele seriam simplesmente ignoradas. Do mesmo
modo, não é qualquer problema que leva à crise, este deve ser uma
anomalia. “A descoberta começa com a consciência da anomalia, isto
é, o reconhecimento de que, de alguma maneira, a natureza violou as
expectativas paradigmáticas que governam a ciência normal” (KUHN,
1991, p. 78)
O surgimento de uma crise abala a confiança do cientista
no paradigma, o que pode terminar com a emergência de um novo
candidato a paradigma. A mudança de um paradigma a outro é
semelhante a uma mudança de Gestalt, o que reforça a tese da
incomensurabilidade dos paradigmas. Os problemas que eram
relevantes para o antigo paradigma podem tornar-se sem importância
frente ao novo campo de pesquisa que o novo paradigma abre (como
no exemplo do flogístico acima).
Figura 4 - LavoisierFonte: http://commons.wikimedia.org/
94 Módulo 2 I Volume 2 EAD
Conhecimento CientíficoTeoria do Conhecimento
Não existe uma resposta única sobre o que leva um cientista a
mudar de paradigma. Ao contrário de Popper que imagina um cientista
que age de um modo plenamente racional, baseado na lógica e nos
experimentos científicos (cientista este que age em acordo com sua
comunidade inteira), para Kuhn, o consenso é uma noção sociológica
que envolve diversos fatores, mas nenhum de per si determinante. A
mudança de paradigma do cientista é como uma conversão, em que
ocorre uma mudança abrupta semelhante a uma alteração da forma
visual (Gestalt).
Nenhum dos sentidos habituais do termo ‘interpretação’ ajusta-se a essas iluminações da intuição através das quais nasce um paradigma. Embora tais intuições dependam das experiências, tanto autônomas quanto congruentes, obtidas através do antigo paradigma, não estão ligadas, nem lógica, nem fragmentariamente a itens específicos dessas experiências, como seria o caso de uma interpretação. Em lugar disso, as intuições reúnem grandes porções dessas experiências e as transformam em um bloco de experiências que, a partir daí, será gradativamente ligado ao novo paradigma e não ao velho (KUHN, 1991, p.158).
Portanto, as revoluções científicas assemelham-se a grandes
rupturas em que ocorrem mudanças não só na forma como vemos as
teorias, mas na própria maneira como entendemos e interpretamos o
mundo. Galileu não só provou que a Terra não era o centro do universo,
ele nos expulsou de um cosmo criado por Deus exclusivamente
para o homem e, hoje, nos sentimos pequenos diante da imensidão
do universo com trilhões de estrelas e alguns bilhões de planetas
semelhantes ao nosso. Mas mudanças de paradigma não ocorrem
todos os dias, tampouco a ciência é aquela atividade engajada
em busca de novas descobertas. A ciência é produção humana e,
como tal, sujeita aos jogos de interesses e vaidades, cujos avanços
dependem, em grande parte, mais de acasos fortuitos do que de um
processo sistemático de investigação.
5 UM MAPA DAS CIÊNCIAS
Como vimos anteriormente, a ciência se caracteriza por
um processo metodologicamente acordado de investigação, cujos
resultados podem ser testados por outros membros da comunidade.
Mas essa descrição de ciência pode fazer parecer que só as ciências
SAIBA MAISO que é Gestalt?“A Teoria da Gestalt afirma que não se pode ter conhecimento do todo através das partes, e sim das partes através do todo. Que os conjuntos possuem leis próprias e estas regem seus elementos (e não o contrário, como se pensava antes). E que só através da percepção da totalidade é que o cérebro pode de fato perceber, decodificar e assimilar uma imagem ou um conceito”.
(http://www.mitologica.com.br/joomla/index.php?option=com_content&task=view&id=13&Itemid=2 )
Ou seja, você não consegue ver o saxofonista e a moça ao mesmo tempo, consegue?
Figura 5
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naturais, como a física ou a biologia, são ciências e que história
e psicologia não são ciências. Na verdade, existem cientistas que
pensam assim, mas isso é porque têm uma visão restrita do que seja
a ciência. Por exemplo, se admitirmos que só podem ser consideradas
científicas as proposições que podem ser testadas empiricamente,
o que poderíamos dizer sobre a matemática? Pois uma verdade
matemática não tem que obrigatoriamente ser uma descrição do
mundo, pois a matemática é uma ciência hipotética que trata de
mundos possíveis logicamente, e não de mundos reais. Dessa forma,
temos de admitir que as ciências naturais são uma parte do conjunto
das ciências, mas não as únicas. Segundo, que existem diversos tipos
de ciência com critérios diferentes de cientificidade. Pensando nisso,
o filósofo Charles Sanders Peirce elaborou a seguinte divisão das
ciências:
MATEMÁTICA – estuda como se pode supor que as coisas são.
CIÊNCIAS POSITIVAS – estudam como as coisas são.
FILOSOFIA – estuda os fatos mais gerais da vida cotidiana.
CIÊNCIAS ESPECIAIS – estudam fatos que são deliberadamente
procurados e frequentemente removidos da vida cotidiana.
Mas esta não é a única nem a mais completa forma de dividir
as ciências Nas universidades, por exemplo, costuma-se dividir as
ciências entre Ciências Humanas (História, Filosofia, Ciências Sociais
etc.), Ciências da Vida (Biologia, Medicina etc.) e Ciências Exatas
(Matemática, Física etc.). Essa divisão também não é boa, pois
coloca a matemática ao lado de ciências empíricas e dá a ideia de
que algumas ciências são “exatas”, enquanto outras são ciências do
“mais ou menos”. Além disso, ficam de fora as chamadas ciências
aplicadas que constituem campos tecnológicos direcionados para
a resolução de problemas concretos, como administrar empresas,
melhorar a produção agrícola ou a criação de animais, projetar e
realizar edificações etc.
Como as tecnologias estão em constante inovação, a todo
tempo surgem novas ciências aplicadas. Contraditoriamente, antigos
campos do saber, como as artes ou a educação, ainda continuam com
seu status científico não definido. De outra parte, a ideia de que todo
conhecimento se reduz em ciência, pode conter um ideal totalitário
e tecnicista de que toda forma de saber deve ser expressa na forma
das ciências naturais. O que reforça políticas universitárias de que só
os cursos voltados para as tecnologias e para acumulação de capital
deveriam existir. Assim, um curso de línguas poderia ser fechado,
96 Módulo 2 I Volume 2 EAD
Conhecimento CientíficoTeoria do Conhecimento
para dar espaço a um curso de turismo, por exemplo, sendo que sem
conhecer outras línguas é impossível desenvolver o turismo.
Em grande parte, tais equívocos são provocados pelo modelo
de ciência e de cientificidade que temos em mente, que faz equivaler
conhecimento e ciência como sendo sinônimos. Para alargar um
pouco nossa compreensão do que seja uma ciência, vamos explorar
brevemente a especificidade das ciências humanas e como os critérios
de falseabilidade das ciências naturais não cabem nesse caso.
6 AS CIÊNCIAS HUMANAS E SEUS CRITÉRIOS DE
CIENTIFICIDADE
“Ciências do Espírito” ou “Humanidades” é um termo com uma
longa tradição na Filosofia, para designar um determinado campo
do conhecimento humano ligado mais diretamente aos processos
mentais, ou que tem por objeto de reflexão o próprio ser humano.
Essa definição, porém, não garante um consenso sobre o que
exatamente estamos falando. Pois ainda resta muita discussão se a
psicologia ou a economia seriam ciências humanas, naturais ou um
pouco das duas. Para Wilhelm Dilthey (1833-1911), a resposta sobre
o que caracteriza as ciências do espírito não pode ser encontrada no
objeto ao qual se dedicam, pois também a fisiologia, por exemplo,
trata do homem. O que difere as ciências do espírito das ciências
naturais é a atitude frente aos objetos, ou seja, trata-se de uma
diferença epistemológica. Enquanto a atitude das ciências da natureza
é objetivante, instrumental, nas ciências do espírito é “por assim
dizer do interior que a realidade se abre para a vivência do sujeito”
(HABERMAS, s/d, p.158).
A realidade construída pelas ciências da natureza percorre um
caminho totalmente distinto, ela busca anular, o máximo possível,
a interferência que as vivências do pesquisador possam causar no
estudo do objeto. Para tanto,
[...] nós nos apossamos deste mundo físico pelo estudo de suas leis. Estas leis não podem ser descobertas a não ser que o caráter vivencial de nossas impressões da natureza, o conjunto no qual estamos postos, enquanto a natureza que somos, o agudo sentimento pelo qual a gozamos recue sempre mais, dando lugar a concepções abstratas da mesma segundo as relações do espaço, tempo, massa, movimento. Todos esses momentos concorrem para que o homem se elimine a si mesmo com o objetivo de construir, em base destas impressões, este
Figura 6 - Wilhelm DiltheyFonte: http://commons.wikimedia.org/
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grande objeto que é a natureza como se ela fosse uma ordem que obedece a leis. Ela torna-se então o centro da realidade para o homem (DILTHEY, apud HABERMAS, s/d, p. 157).
A possibilidade de anular a experiência vital é um dos critérios
mais importantes de objetividade das ciências da natureza, de modo
que seus modelos teóricos ou leis possam ser independentes da
historicidade e do contexto cultural em que se produzem. É comum
na transmissão de tais conhecimentos que sejam ignorados por
completo os contextos em que se desenvolveram, provocando muitas
vezes em seus receptores a impressão de que as ciências naturais
são desprovidas de história ou de ingerências políticas e econômicas.
Quando estudamos matemática, química ou física, as fórmulas
aparecem como se tivessem emergido do nada, sem história e como
se fosse verdades eternas reveladas desde sempre por Deus.
Nas ciências do espírito essa possibilidade de anulação da
vivência individual não existe, já que não se podem separar fatos
de teorias, pois estes se encontram amalgamados. As ciências do
espírito se movem dentro de outra lógica. Esta lógica, para Dilthey,
está centrada nas inter-relações entre vivência, objetivação e
compreensão. Desses três, o conceito de vivência é a chave para
compreender a teoria de Dilthey sobre as ciências do espírito.
Para Dilthey, a unidade da vivência é o que permite atribuir
uma significação aos acontecimentos assim como a experiência
histórica individual. Vivências são as ocorrências em nossas vidas que
aparecem enlaçadas em um sentido comum para o curso de nossa
existência, de modo que possamos identificar cada uma delas como
constituidoras de nossa história pessoal. A biografia individual é o
que permite atribuir um sentido às vivências individuais asseguradas
pelo eu-identidade. Ela permite estabelecer uma conexão entre
a vivência individual e a existência coletiva, na medida em que as
experiências vitais se desenvolvem em um processo histórico, em
que as significações atribuídas individualmente se constituem a
partir de um sistema de referências compartilhadas. “O ponto de
vista individual, corrige-se e se distende na experiência genérica da
vida. Com isso entendo proposições que se formam em um grupo
qualquer de pessoas que estão em relações uma com as outras e
cujos enunciados lhes são comuns” (DILTHEY, apud HABERMAS, s/d,
p. 168).
As vivências se exteriorizam em objetivações cujo significado
se pode compreender a partir da reflexão sobre as manifestações
vitais. Tal reflexividade constitui o pano de fundo da compreensão que
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Conhecimento CientíficoTeoria do Conhecimento
está presente nas interações humanas mediadas linguisticamente.
Ou seja, só compreendemos aquilo que podemos relacionar às
nossas próprias vivências, ou a vivências aprendidas coletivamente.
Como a compreensão se dá “a partir de dentro”, ela é sempre uma
interpretação do sujeito. Daí que as ciências humanas sejam ciências
hermenêuticas.
O termo “hermenêutica” remete ao deus grego Hermes, o
mensageiro dos deuses, aquele que traz notícias. O hermeneuta
seria aquele que tanto transmite quanto interpreta uma mensagem,
já que não é possível separar uma coisa da outra. Por conseguinte,
hermenêutica seria a arte de interpretar o sentido da palavra do
autor, principalmente de textos clássicos. Aqui entra tanto a condição
de possibilidade quanto a inevitabilidade da situação hermenêutica:
sempre que interpreto algo, o faço a partir do meu ponto de vista.
Não é possível que seja diferente, pois a minha vivência é a chave
para interpretar outras vivências.
Aqui se situa um problema com o qual a hermenêutica das
ciências do espírito de Dilthey tem que enfrentar: a compreensão
hermenêutica deve apreender em categorias inevitavelmente
universais, um sentido individual irredutível. Ou seja, ao formar um
corpo de conhecimentos é necessário que este se apresente sob a
forma de categorias universais, do contrário, não seria senão uma
mera repetição infinita de experiências individuais sem poder se
extrair nenhum conhecimento a partir delas. Ao mesmo tempo, a
universalidade tende a reduzir a particularidade e a deformá-la. O que
se deve e o que não se deve preservar do sentido vital individualizado
é uma questão metodológica central para hermenêutica.
Segundo Habermas, a compreensão hermenêutica se distingue
das proposições teóricas, isto é, daquelas capazes de serem reduzidas a
uma linguagem “pura” em que os enunciados formais foram purificados
de todos os elementos que não se articulam no plano das relações
simbólicas. Já a compreensão hermenêutica “não pode jamais analisar
a estrutura de seu objeto de tal maneira que todas as contingências
deste objeto fiquem eliminadas” (HABERMAS, s/d, p. 173). Isso
porque a hermenêutica tem em vista um contexto de significações
que são transmitidas por tradição; como não dispomos de regras para
reconstrução dos conjuntos-de-sentido legados pela tradição, temos
que tratá-los como se fossem fatos. Enquanto, nas ciências teóricas,
se busca anular a experiência biográfica individual para que estas
possam ser postas em categorias universais da linguagem; as ciências
hermenêuticas repousam justamente na especificidade da linguagem
ordinária que permite comunicar indiretamente categorias universais
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dentro das conexões concretas da vida. Ou seja, a linguagem
ordinária elabora sua própria metalinguagem sem que para isso seja
necessário criar uma linguagem artificial, operando como linguagem
e metalinguagem ao mesmo tempo.
A compreensão hermenêutica visa a três classes de
manifestações vitais: as expressões verbais, as ações e as expressões
vivenciais. As expressões verbais quando dissociadas de uma conexão
vital concreta, como no caso das linguagens formalizadas, dispensam
uma interpretação hermenêutica. Mas quando à expressão verbal
mistura-se algo que é próprio “ao pano de fundo obscuro e à plenitude
da vida da alma”, têm início os direitos da hermenêutica. Ela decifra
o que de início parece estranho na compreensão mútua entre os
falantes, algo que só pode ser comunicado de maneira indireta.
A interpretação seria impossível se as manifestações vitais fossem totalmente estranhas. Ela seria desnecessária, caso nada lhes fosse estranho. [A hermenêutica] se situa, portanto, entre estes dois pólos extremos. Ela é necessária sempre onde há algo de estranho, algo que a arte da compreensão deve assimilar (DILTHEY, apud HABERMAS, s/d, p. 176).
Na linguagem cotidiana há sempre um hiato a ser superado
pela interpretação entre os falantes, para evitar situações de
pseudocomunicação em que os participantes realmente não se
entendem acerca de algo, compreendendo-o de maneira equívoca.
Para facilitar o trabalho de interpretação, dispomos também de
termos extraverbais, além daqueles expressos através da linguagem.
A ação é uma dessas manifestações extraverbais. Embora a ação não
surja de uma intenção de comunicação, mas de uma relação para
com um fim, é possível observar certa regularidade nas ações e daí
depreender seu significado latente.
Uma terceira classe de manifestações são as expressões
vitais, que Dilthey considera serem as mais próximas da unidade
vital espontânea do que as expressões simbólicas da linguagem e da
ação. Por outro lado, são as de decifração mais difícil por remeterem
a intenções não expressas e a relação inexprimível do Eu com suas
objetivações e não terem um conteúdo cognitivo, o qual pudesse ser
integralmente explanado por meio de frases e ações. Assim, o seu
papel é muito mais de corroborar na interpretação das comunicações
manifestas através dos sintomas latentes que podem legitimar e
corroborar ou desmentir e rejeitar ou indicar a tentativa de enganar
um interlocutor colocando a comunicação sob suspeita. “Pois a
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Conhecimento CientíficoTeoria do Conhecimento
simulação, a mentira, o engano rompem a relação entre a expressão
e o espiritual expressado” (DILTHEY, 1944, p. 230).
A compreensão hermenêutica, portanto, deve levar em
consideração essas três classes de manifestações vitais, pois
na comunicação ordinária uma expressão raramente aparece
desacompanhada das outras. Dessa forma, a linguagem ordinária perfaz
sua própria metalinguagem na medida em que ela pode descrever a
comunicação extraverbal, ou seja, ela é capaz de se auto-interpretar.
Essa auto-interpretação consiste em explicitar os elementos ausentes
da linguagem não-verbal tornando-os comunicáveis. A linguagem
sempre se apresenta de modo fragmentário; sem o acesso aos
elementos não-verbais, essas lacunas seriam insuperáveis. A auto-
interpretação se opera, como já dissemos, através da metalinguagem
no interior da própria linguagem. Decifrar esta auto-interpretação, tal
é a tarefa da hermenêutica.
Aqui temos uma clara demarcação entre as ciências do espírito
e as ciências naturais. Por perfazer sua própria metalinguagem, a
interpretação hermenêutica jamais pode ser demonstrável. “Pois,
uma ‘prova’ para as chamadas interpolações só seria possível, caso
pudéssemos retraduzir um texto, legado por tradição, para ‘dentro’ da
práxis vital de sua época, uma práxis que um dia completou texto e
discurso” (HABERMAS, s/d, p. 180). Na tentativa de se aproximar da
interpretação, as ciências do espírito incorrem no denominado círculo
hermenêutico, como pode ser ilustrado com o seguinte exemplo:
percebo que a literatura produzida em determinada época reúne
certas similaridades que refletem outras manifestações culturais
que também ocorrem na mesma época. Então conceituo a produção
desses autores de Romantismo e descrevo as características de uma
literatura romântica em termos ideais. Depois volto sobre os autores
ditos românticos e descubro outras características não percebidas da
primeira vez. Então volto ao conceito e o modifico para apreender
melhor o objeto. Tais idas e vindas formam o círculo hermenêutico.
Círculo Hermenêutico
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Mas essa circularidade da hermenêutica não necessariamente
é viciosa, podendo ser bastante frutífera se a hermenêutica não se
reduzir exclusivamente à linguística ou a uma análise puramente
empírica. Pois, nesse caso, tratar-se-ia sim de um círculo vicioso. Mas
essa circularidade é evitada graças ao fato de os conteúdos legados
pela tradição e objetivados em palavras e em fatos, não serem,
ao mesmo tempo, tanto símbolos quanto fatos. “É por isso que a
compreensão deve combinar a análise linguística e a experiência. Sem
esta coação para tal combinação peculiar, o desenvolvimento circular
do processo interpretativo permaneceria preso em um círculo vicioso”
(HABERMAS, s/d, p.182). Assim se parte de um esquema exegético
provisório, antecipando de saída o resultado do processo exegético.
Ao se aplicar a chave interpretativa ao material, esse a modifica
levando à modificação das hipóteses antecipadas provisoriamente.
O fato de as ciências do espírito estarem mais presas ao
contexto vital, torna mais clara a sua perseguição de interesses
cognitivos. Tanto as ciências do espírito quanto as ciências naturais
perseguem interesses cognitivos. O interesse das ciências empírico-
analíticas é um interesse técnico e instrumental de aplicação desses
conhecimentos à realização de novas tecnologias. O interesse cognitivo
das ciências do espírito está em evitar a ruptura na comunicação,
ou seja, em conservar o entendimento intersubjetivo. O interesse
prático do conhecimento que domina a gênese das ciências do espírito
determina, também, o contexto de aplicação do saber hermenêutico.
Por estarem presas à interpretação que faz o historiador ou o
cientista social do fato ou fenômeno social que estuda, pode parecer
que as ciências humanas não são tão objetivas quanto às ciências
naturais, já que não existe experimento capaz de provar de uma
vez por todas que uma interpretação está certa e outra errada. Isso
acontece por duas razões.
1) A primeira e mais importante, é que ao contrário das
ciências naturais que estudam relações entre objetos ou entre sujeitos
e objetos; nas ciências humanas estuda-se a relação entre sujeitos.
Que diferença isso faz? Toda diferença, pois os objetos naturais
comportam-se de modo regular, o que nos permite elaborar teorias
que se aplicam à totalidade dos objetos do mesmo tipo. Percebemos
que alguns patos de uma determinada espécie migram para o sul
no inverno, então posso afirmar que todos os patos daquela espécie
migram no inverno e que migrarão nos anos seguintes também.
Quando me relaciono com um sujeito, ele também é um intérprete
tanto quanto eu. Ele observa o que eu estou tentando descobrir e
tenta adivinhar qual é a minha intenção. Dependendo do caso, ele
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Conhecimento CientíficoTeoria do Conhecimento
pode alterar sua resposta em função do que imagina que estou
pensando ou que vou pensar a seu respeito. Por exemplo, se estou
pesquisando o comportamento sexual dos coelhos, os coelhos não
vão fingir porque existe uma câmara os observando. Mas se pergunto
para homens casados com que frequência têm relações sexuais com
suas esposas e para esposas quantas vezes têm relações sexuais
com seus maridos, é possível que obtenhamos resultados diferentes
para homens e mulheres. Por quê? Obviamente, algumas pessoas
devem estar mentindo em suas respostas. Por que fazem isso?
Como cientista social, posso formular a hipótese de que os homens
pretendem projetar uma auto-imagem de que são viris, o que os
faria inflacionar um pouco os números. Note que aqui já entrou um
elemento de interpretação do comportamento do objeto, algo muito
diferente de explicar o comportamento do objeto, como se faz com
uma bactéria, ou uma partícula atômica. A diferença é que posso
provar que a bactéria se comporta de determinada forma, mas não
posso fazer o mesmo com pessoas, pois, ao tentar aplicar minha
hipótese explicativa, elas podem mudar de comportamento e derrubar
minha hipótese, justamente por estarem informadas sobre ela.
Como em pesquisas eleitorais, podemos explicar porque as pessoas
migraram sua intenção de voto do candidato x para o candidato y,
mas só depois que o fato tenha ocorrido. Mas nada garante como
o eleitor irá se comportar no dia da eleição, pois a própria pesquisa
eleitoral influencia na deliberação do eleitor.
2) A segunda razão é que o intérprete é também um ser social
e, portanto, não é neutro. Ele sabe que determinadas interpretações
favorecem ou legitimam este ou aquele grupo social, de acordo com
sua ideologia, o cientista social ou historiador privilegia determinadas
interpretações dos fatos em detrimento de outras. Onde um historiador
marxista vê conflito de classes e racismo, um historiador conservador
pode enxergar cordialidade e democracia racial.
Mas isso quer dizer que não existe objetividade nas ciências
humanas? A mesma pergunta poderia ser dirigida às ciências
naturais que, apesar da aparência de neutralidade, também são
ciências que dependem do consenso entre os cientistas acerca de
qual a interpretação descreve melhor os fatos. No caso das ciências
humanas, esse debate é público e ajuda a entender quais as diferenças
metodológicas, assim como os pressupostos ideológicos das posições
defendidas pelos diversos autores. Isso enriquece nossa compreensão
do problema, ampliando nosso conhecimento do mesmo. Evitar tal
debate só favoreceria ao ocultamento das ideologias em jogo.
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7 ATIVIDADES
As questões a seguir têm como objetivo ajudar a fixar tudo que aprendemos até agora. Elas seguem a ordem em que está organizado o texto, portanto, seria melhor respondê-las na sequência em que estão. Após respondê-las seria bom confrontar suas respostas com as dos colegas no Seminário Integrador e esclarecer as dúvidas com o tutor. Depois, reformule suas respostas, se for o caso, e entregue suas respostas ao tutor.
1. O que caracteriza a ciência empírica?2. Qual a relação entre paradigma e comunidade científica?3. Indique quais as diferenças entre Popper e Kuhn sobre como ocorrem as revoluções
científicas.4. A partir do texto “um mapa das ciências” como você classificaria a pedagogia? É a
pedagogia uma ciência? Justifique.5. O que diferencia as ciências humanas das ciências naturais?6. Qual o papel do círculo hermenêutico no avanço do conhecimento?7. É possível construir um conhecimento valorativamente neutro nas ciências
humanas? Explique.
ATIVIDADE
RESUMINDO8 RESUMINDO
A ciência moderna é baseada no critério empírico de testabilidade. Para que uma teoria científica seja aceita, não basta que ela seja rigorosamente construída em bases lógicas. É preciso que ela seja capaz de prever consequências e que tais efeitos possam ser testados por outros cientistas. Assim, Karl Popper elaborou o critério de falseabilidade como fundamento da investigação científica. Thomas Kuhn, porém, mostrou que, em seu desenvolvimento histórico, a ciência nem sempre se orienta dessa forma. Muitas vezes, os cientistas resistem a um novo paradigma e só em situações de crise, quando a ciência normal não é capaz de responder as anomalias que a realidade apresenta, é que se veem forçados a mudar de paradigma. A mudança de paradigma, entretanto, não ocorre como um processo de acúmulo gradual, ela é sempre uma ruptura em que o paradigma anterior é completamente abandonado. Pois não é só o velho paradigma que deixa de ter vigência, mas também a visão de mundo que ele continha.
Os processos de mudança de paradigma, que valem para as ciências naturais, não se aplicam ao campo das ciências humanas, já que vários paradigmas podem conviver durante muito tempo sem que um suplante definitivamente o outro. É o caso, por exemplo, das teorias de Marx e Weber no campo das Ciências Sociais. Isso porque as ciências humanas não são falseáveis, já que não existem experimentos sociais capazes de demonstrar a validade de uma teoria de uma vez por todas, já que as próprias teorias são também produtos históricos e sociais e acabam por afetar a percepção dos sujeitos sociais sobre si mesmos e sobre os outros; o que os pode levar a mudar o curso de suas ações, modificando os resultados previstos pela teoria. Assim, enquanto as ciências naturais têm como interesse principal o incremento tecnológico, as ciências humanas visam ao aumento da compreensão dos seres humanos sobre si mesmos.
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Conhecimento CientíficoTeoria do Conhecimento
9 REFERÊNCIAS
A Evolução do conceito de Calor: Fogo, Flogístico, Calórico e Formas de
Movimento. In: http://www.searadaciencia.ufc.br/folclore/folclore143.
htm
DILTHEY, W. El Mundo Histórico. México: Fondo de Cultura Econômica,
1944.
HABERMAS, Jurgen. Conhecimento e interesse. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, s/d.
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo:
Perspectiva, 1991.
POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, s/d.
RE
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