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1 Portugal, Brasil, Brasília: notas sobre estratégias. Antonio Carlos Carpintero 1 Resumo: Este texto compara condições, gerais e técnicas, disponíveis, no final do século XV, para as navegações portuguesas e espanholas, com aquelas, no final do século XVIII, que levaram a localização da nova capital do Brasil pelos republicanos, identificando algumas semelhanças de objetivos e estratégias. Abstracts: This issue compares general and technical conditions available on late fourteenth century for the portuguese and spanish navigations, with these, on late eigtheeenth, that set the location of the new capital of Brazil by republicans, exposing some likeness of targets and strategies. A Constituição da recém instalada república determinou, em 1891, a transferência da capital para o planalto central do Brasil. Luiz Cruls comandou a expedição que localizou e demarcou o quadrilátero dentro do qual viria, futuramente, ser construída a cidade e instalado o distrito sede da federação. A capital no interior do país era, naquele momento, condição de defesa e segurança do governo contra os ataques militares. A tecnologia bélica da época considerava o bombardeio pela artilharia, pelos canhões, embarcados em navios ou carregados em terra. No interior a ameaça vinha apenas pelos de terra mais fáceis de conter. Esta, contudo, não era a única razão para a determinação constitucional. A navegação era o principal meio de transporte intercontinental. Considerava-se que o Brasil era povoado apenas na costa e a área central do planalto Brasileiro pouco povoada, despertava cobiças externas sobre nosso território. As cidades brasileiras estavam no litoral, ou próximas dele: Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Fortaleza, Belém, mesmo São Paulo, com o porto de Santos. As excessões, Manaus e Cuiabá, em áreas interiores, tinham acesso por navegação fluvial. A planície Amazônica e as encostas contíguas dos planaltos Brasileiro e das Guianas, quase vazias de populações brancas, com potenciais riquezas, despertava interesses. No final do século XV, europeus, principalmente portugueses e espanhóis chegaram ao continente em busca de riquezas, novas terras para agricultura, minérios, 1 - Antonio Carlos Carpintero é professor da UnB-FAU. Nasceu em Marília-SP, 1945. Viveu e estudou até o segundo grau em Campinas-SP. Diplomou-se em arquitetura pela UnB Brasília-DF, em 1970, com mestrado, 1991, e doutorado, 1998, na USP São Paulo-SP. Foi Prefeito de Porto Velho-RO e atuou, como arquiteto, urbanista, pesquisador e professor universitário, em Cuiabá-MT, São Paulo- SP e em Vitória-ES.

2011 Portugal Brasil Brasilia Notas Sobre Estrategias VF

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Discussões sobre as relações entre Brasil e Portugal e sua influência na história da construção de Brasília.

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Portugal, Brasil, Brasília: notas sobre estratégias.

Antonio Carlos Carpintero1

Resumo: Este texto compara condições, gerais e técnicas, disponíveis, no final do século

XV, para as navegações portuguesas e espanholas, com aquelas, no final do século XVIII,

que levaram a localização da nova capital do Brasil pelos republicanos, identificando

algumas semelhanças de objetivos e estratégias.

Abstracts: This issue compares general and technical conditions available on late

fourteenth century for the portuguese and spanish navigations, with these, on late

eigtheeenth, that set the location of the new capital of Brazil by republicans, exposing some

likeness of targets and strategies.

A Constituição da recém instalada república determinou, em 1891, a

transferência da capital para o planalto central do Brasil. Luiz Cruls comandou a

expedição que localizou e demarcou o quadrilátero dentro do qual viria, futuramente,

ser construída a cidade e instalado o distrito sede da federação. A capital no interior do

país era, naquele momento, condição de defesa e segurança do governo contra os

ataques militares. A tecnologia bélica da época considerava o bombardeio pela

artilharia, pelos canhões, embarcados em navios ou carregados em terra. No interior a

ameaça vinha apenas pelos de terra mais fáceis de conter.

Esta, contudo, não era a única razão para a determinação constitucional. A

navegação era o principal meio de transporte intercontinental. Considerava-se que o

Brasil era povoado apenas na costa e a área central do planalto Brasileiro pouco

povoada, despertava cobiças externas sobre nosso território. As cidades brasileiras

estavam no litoral, ou próximas dele: Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Fortaleza,

Belém, mesmo São Paulo, com o porto de Santos. As excessões, Manaus e Cuiabá, em

áreas interiores, tinham acesso por navegação fluvial. A planície Amazônica e as

encostas contíguas dos planaltos Brasileiro e das Guianas, quase vazias de populações

brancas, com potenciais riquezas, despertava interesses.

No final do século XV, europeus, principalmente portugueses e espanhóis

chegaram ao continente em busca de riquezas, novas terras para agricultura, minérios,

1 - Antonio Carlos Carpintero é professor da UnB-FAU. Nasceu em Marília-SP, 1945. Viveu e estudou

até o segundo grau em Campinas-SP. Diplomou-se em arquitetura pela UnB – Brasília-DF, em 1970,

com mestrado, 1991, e doutorado, 1998, na USP – São Paulo-SP. Foi Prefeito de Porto Velho-RO e

atuou, como arquiteto, urbanista, pesquisador e professor universitário, em Cuiabá-MT, São Paulo-

SP e em Vitória-ES.

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plantas, se impuseram aos povos que aí viviam. Para isto se valeram dos recursos de que

dispunham então: naturais, humanos e tecnológicos como a construção de naves, as

técnicas de navegação, bússolas, astrolábios, os armamentos de pólvora para curta e

longa distância, assim como o conhecimento dos mares e de territórios até então

supostamente desconhecidos. Para tirar das condições naturais o melhor proveito

econômico, político e social, se valeram de estratégias que pressupunham o melhor uso

das técnicas da época.

Segundo o historiador português Jorge Couto, os interesses estratégicos dos

portugueses concentravam-se no caminho marítimo para as Índias. Diz ele que

... “a última década do século XV foi ... caracterizada pela intensa competição luso-castelhana

para obter a primazia no delineamento de uma rota marítima para o Oriente” (COUTO:121).

Dispunham, para isso, de técnicas de construção de embarcações apropriadas,

de navegação guiada pelos astros, o conhecimento dos ventos e das correntes marítimas.

Mas tinham objetivos que íam além da simples exploração de possibilidades. Couto

afirma:

(...) Em síntese, as variáveis geopolíticas, diplomáticas, econômicas e técnicas referidas apontam

incisivamente no sentido de que “o afastamento da frota para Ocidente estaria no plano da imperial

Coroa”,2 pelo que Cabral terá recebido instruções reservadas de D. Manuel I para. “... no decurso

da sua viagem para o Índico, explorar a região oeste do Atlântico Sul3 com o objetivo de encontrar

o prolongamento Austral do continente visitado por Colombo, Caboto e Duarte Pacheco, a fim de

aí estabelecer uma escala destinada a apoiar o funcionamento da rota do Cabo.” (COUTO:182).

O ‘afastamento para o ocidente’ proposto pelo rei tinha uma razão importante

no quadro da navegação do século XV: as correntes marinhas que, se bem aproveitadas,

aumentam as velocidades de deslocamento das naus.

No oceano Atlântico, uma delas, denominada Sul-Equatorial, corre ao longo da

linha do equador, no sentido leste-oeste, ou seja, da África para a América. Na altura do

cabo São Roque, ela se bifurca para noroeste, até a Venezuela, e para sudoeste,

margeando o litoral brasileiro. A rota noroeste favoreceu a viagem de Vicente Pinzón.4

A outra nos importa mais diretamente. Recebe o nome de corrente do Brasil e

acompanha a costa brasileira de nordeste para sudoeste seguindo o litoral, até pouco ao

2 - Nota do original - (230, p.28. COUTO:182) - Manuel Nunes Dias, “O descobrimento do Brasil:

tratados bilaterais e a partilha do Mar Oceano”, in Studia (Lisboa), 25(1968).

3 - Nota do original - (231:136. COUTO:182) - Cfr. Damião Peres, O descobrimento do Brasil por

Pedro Álvares Cabral. Antecedentes e Intencionalidade. Porto-Rio de Janeiro, 1949.

4 - Ver a propósito: ESPÍNOLA, Rodolfo. 2001. Vicente Pinzón e a descoberta do Brasil. Rio de

Janeiro-RJ, TopBooks.

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sul de Porto Seguro,5 quando muda seu curso para leste, em direção a África,

acompanhando, ligeiramente pelo norte, o trópico de Capricórnio. Ao encontrar o litoral

africano, na altura de Angola e da Namíbia, inflete novamente para norte, agora com o

nome de corrente de Benguela até que, no Golfo da Guiné, toma novamente o curso

para oeste retornando a corrente Sul Equatorial. Isso conforma um círculo de correntes

em sentido anti-horário pelo Atlântico Sul, entre o equador e o trópico de Capricórnio,

entre a América e a África. A mudança de rumo na costa brasileira, se dá pelo confronto

com uma corrente polar, fria, denominada das Malvinas, que sobe pela costa argentina,

uruguaia e brasileira, em sentido nordeste e explica o nome do cabo Frio.6

No Atlântico norte a corrente das Canárias, bordeja a costa africana desde o

Marrocos até o Senegal e prossegue em direção sudoeste até encontrar a corrente

Equatorial e conformando grosseiramente um círculo no sentido horário.

A ordem real para Cabral afastar-se da costa africana significava o máximo

aproveitamento destas correntes para atingir o cabo da Boa Esperança7. As viagens de

Bartolomeu Dias e Vasco da Gama, contornando proximamente o continente africano,

implicava navegar contra a corrente de Benguela, o que limitava a velocidade de

navegação.

O aproveitamento do círculo de correntes em sentido horário, conduz com mais

facilidade ao cabo da Boa Esperança se a navegação afastar-se do litoral africano e

aproximar-se da costa brasileira. O estabelecimento de uma escala, como Porto Seguro,

na altura dos 16º27’S, perto do ponto de inflexão para leste das correntes, era um apoio

importante para esta viagem. A viagem para as Índias ficava mais fácil.

Alguns dos principais historiadores brasileiros contemporâneos, como Boris

Fausto e Carlos Guilherme Mota mencionam, ao falar das razões das navegações

ibéricas, o astrolábio, instrumento de medição de altura ou ângulos verticais dos astros.

Este instrumento permite uma determinação precisa de latitudes mas é inútil para

longitudes. Disto resulta, entre os europeus dos séculos XV, XVI e XVII, o uso da

latitude, os paralelos, como principal definição de localização, com o consequente uso

de expressões como além do equador, ou no trópico de Capricórnio assim como a

definição de lugares apenas pela latitude sobre o litoral. A definição por léguas –

5 - Porto Seguro está nas coordenadas 16º27’S e 37º03’W Gr.

6 - O cabo Frio está nas coordenadas 23º00’S, e 41º58’W Gr.

7 - O cabo da Boa Esperança está nos 34º25’S.

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medida linear – do tratado de Tordesillas, com todas as incertezas que pairam sobre sua

interpretação é, talvez, o resultado mais evidente dessa insuficiência técnica. A bússola,

já então conhecida era coadjuvante, já que indica somente direções e sentidos. Seu uso

combinado com o astrolábio permitia apens alguma aproximação na definição de

longitudes, por triangulação, já que não se podia ainda contar com cálculos algébricos.

Nas discussões que antecederam a bula Intercœtera, de 1492, e o tratado de

1494, as divisões propostas eram feitas por paralelos, ou seja, por latitudes.8 Do mesmo

modo as divisões das capitanias hereditárias criadas era feita por latitudes, apesar de

medidas por léguas na costa.

O continente americano já era de alguma forma conhecido, como reconhece o

mesmo Jorge Couto, quando fala do prolongamento austral do continente visitado por

Colombo. Ao menos Colombo já havia visitado o continente antes de Cabral. Outros

autores sustentam, indiretamente, esta tese quando se referem a uma intencionalidade

no ‘descobrimento’ ou achamento’. Gavin Menzies, (2002), levanta uma hipótese no

mínimo intrigante.

Sustenta que, na terceira década do século XV, os chineses haviam feito

navegações por toda a parte do globo, inclusive o sul da América, a costa hoje

brasileira, uruguaia, argentina e chilena. Destas navegações, feita por astros9 com

medições precisas de latitudes e longitudes, resultaram mapas, cujos remanescentes

chegaram as mãos de portugueses e, possivelmente, de espanhóis, o que produziu

efeitos na geopolítica na época dos ‘descobrimentos’. Neste caso estavam em disputa

territórios conhecidos.

O continente sul americano pode ser grosseiramente compreendido como uma

grande planície, sobre a qual se elevam os Andes, na borda ocidental, ao longo da costa

do oceano Pacífico, e dois planaltos, o Brasileiro, conformando o lado oriental, do

oceano Atlântico, e o das Guianas, menor e mais ao norte aproximando-se das últimas

elevações dos Andes venezuelanos.10 Grandes rios correm por essas planícies por entre

as elevações: O Orenoco, entre o planalto das Guianas e os Andes, com sua foz, em

8 - Sobre o assunto ver COUTO, obra citada.

9 - A medição de longitude era feita, pelos chineses, pela medição de tempo de eclipses da lua

relacionada a passagem de determinadas estrelas pelo meridiano local comparado a feita em um

observatório na China. Na Europa, a determinação de longitudes se deu apenas no século XVIII. Ver

a propósito: MENZIES:481-92; Apêndice 4, A determinação de longitudes pelos chineses.

10 - Ver a propósito: CRULS:166-72.

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delta, imediatamente ao sul da península de Paria, onde Colombo pisara em sua quarta e

última viagem; o Amazonas entre o planalto Brasileiro e o das Guianas, com sua ampla

e complexa foz sobre a linha do Equador, se estendendo desde os 48º até os 50º W

Gr.;11 e o Paraguai12, entre os Andes e o planalto Brasileiro, fluindo pelo rio Paraná,

para o amplo estuário do rio da Prata, entre os 35ºS e 55º W Gr., na borda do mar, e os

36º20’S e os 56º 50’ W Gr. ao fundo, onde se localiza a cidade de Buenos Aires13.

Cabeceiras de alguns rios da bacia Platina e Amazônica14 estão muito próximas entre si,

a beira da região inundável no centro do continente, o Pantanal ou Chaco, o que permite

compreender o mito da ilha Brasil definindo o planalto Brasileiro.

O tratado de Tordesilhas, celebrado em 1494 entre os reis Católicos de uma

Espanha recém unificada sob os cetros de Aragão e de Castela, respectivamente

Fernando e Isabel, e João II, rei de Portugal e chanceler da Ordem de Cristo,

estabeleceu, para separar terras a pertencerem aos respectivos reinos

... uma raia ou linha direita de pólo a pólo, a saber do pólo árctico ao pólo antárctico, que é de

norte a sul. A qual raia ou linha se haja de dar e dê direita, como dito é, a trezentas e setenta

léguas das ilhas do Cabo Verde pera a parte do ponente, por graus ou por outra maneira como

melhor e mais prestes se possa dar ... (Tratado de Tordesilhas)

Há controvérsias sobre o significado real deste acordo ou seja, da localização

desta raia ou linha de polo a polo. Sem entrar em pormenores temos, de um lado, Jorge

Couto, que afirma

(A linha a)... 370 léguas, ... proporcionou a Portugal ... a faixa territorial brasileira compreendida

entre a baía de Maracanã15 (na costa oriental do Pará) e a Cananéia (na costa paulista).

(COUTO:146).

e, de outro Paulo Bertran dizendo

Pelo meridiano de 48º35’25” da linha de Tordesilhas ... como nos mostram com precisão os mapas

do Serviço Cartográfico do Exército. (BERTRAN:153-4.)

A versão mais favorável aos interesses de Castela é a do historiador português

enquanto o Serviço Cartográfico do Exército Brasileiro adota a interpretação, divulgada

11 - O rio Amazonas nasce nos Andes ao sul do Peru aos cerca de 15ºS e 73ºW Gr., e corre para norte até

as proximidades dos 5ºS e 76ºW Gr., quando toma o curso geral Oeste-Leste, até a foz. Seus

afluentes da margem direita, sul, mais propriamente, separam os Andes do planalto Brasileiro. O rio

Madeira com seus formadores, o Guaporé especialmente, contornam o extremo ocidental deste

altiplano.

12 - O rio Paraguai nasce na encosta sudoeste do planalto Brasileiro e corre de norte a sul a planície

inundável do Pantanal - ou Chaco.

13 - Buenos Aires se localiza aos 35º20’S e 58º25’W Gr.

14 - o rio Jauru, afluente do Paraguai, e o rio Guaporé, formador do rio Madeira, nascem a 30km de

distância um do outro e correm paralelos por cerca de 100km em direção sul até que o Guaporé

descreva uma curva e siga para noroeste, constituindo hoje, fronteira entre Brasil e Bolívia.

15 - A barra da baía de Maracanã está aos 0o37’S e 47º30’W Gr.

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oficialmente no Brasil, que se identifica aos interesses de nossos colonizadores e que

parece ser, de fato, a mais próxima de uma real intenção dos soberanos em 1494.

Estudando a viagem de Vicente Pinzón ao continente sulamericano, Espínola,

apoiado em Harisse, aponta em um mapa (ESPÍNOLA:44.)16 seis alternativas diferentes

para a longitude da linha divisória resultante do tratado de Tordesilhas, cada uma

atribuída a uma fonte diferente. No texto, se refere apenas a duas: o planisfério de

Cantino,17 de 1502, a que atribui a longitude de 40º30’W Gr.; e um mapa de Diogo

Ribeiro, de 1529, que traça a linha aos 49º40’W Gr. No mapa, constam ainda, quatro

outras marcações: a de Oviedo, 1543, aos 45º17’W Gr.; a de Ferrer, 1523 (?), 45º37’ W

Gr.; a de Enciso, 1518, 45º30’ W Gr.; e a de The Badajoz Experts, 1504, aos 46º30’ W

Gr. Encontramos ainda a versão de Gabriel Soares de Souza que diz:

... fazendo baliza na ilha de Cabo Verde,18 de barlavento mais ocidental, que se entende a de Santo

Antão, e contando dela vinte e um graus e meio equinociais de dezessete léguas e meia de cada

grau, e lançada daqui uma linha meridiana de norte-sul, que ficassem as terras e ilhas por descobrir

para a parte do Oriente, da Coroa de Portugal; ... (SOUZA, 1587:37).

Isso levaria a admissão de uma longitude ainda mais favorável ao reino de

Castela, nos cerca de 46º52’W Gr. Entretanto, mesmo se contradizendo sem o perceber,

ele prossegue no mesmo parágrafo:

... fica o Estado do Brasil da dita Coroa, qual se começa além da ponta do rio das Amazonas da

banda de este,19 pela terra dos charybas, donde se principia o norte desta província, e indo

correndo esta linha pelo sertão dela ao sul parte o Brasil e conquistas dele além da baía de São

Matías, por quarenta e cinco graus pouco mais ou menos, distantes da linha equinocial, e

altura do pólo antártico, e por esta conta tem de costa mil e cinquenta léguas, como pelas cartas se

pode ver segundo a opinião de Pero Nunes,20 que nesta arte atinou melhor que todos os de seu

tempo. ... (SOUZA, 1587:37)

Adotando uma linha na altura do golfo de San Matías, e atribuindo a ela os

quarenta e cinco graus pouco mais ou menos, Souza se refere a latitude com razoavel

acerto. De fato o, atual, golfo de San Matías no litoral da Argentina, se localiza entre os

41ºS e os 42ºS, de latitudes, e dos 63ºW Gr. aos 65ºW Gr., de longitudes, em seu

fundo21. A linha de 63ºW Gr. próxima da definição dos 45º S pouco mais ou menos, da

16 - HARISSE, Henry. The discovery of North América. Mencionado em ESPÍNOLA:295.

17 - O planisfério de Cantino é descrito em Espínola (:43-4) como elaborado por um cartógrafo

português, não identificado, por encomenda de um espião italiano, Alberto Cantino, que o remeteu

ao duque de Ferrara, Hércules de Este.

18 - Nota do original: (09) – O acordo aqui descrito é o conhecido Tratado de Tordesilhas, assim

denominado por ter sido assinado na povoação castelhana de Tordesillas, a 7 de junho de 1494, pelos

reis de Portugal e Castela.

19 - Nota do original: (10) - Em Varnhagem (1851 e 1879), “banda de oeste”.

20 - Nota do original: (11) - Em Varnhagem (1851 e 1879), “Pedro Nunes”.

21 - O fundo do golfo de San Matías está entre os 40º48’S e os 42º16’S em uma linha quase reta, aos

aproximadamente 65º06’ W Gr. Os 42º04’S estão no extremo norte da península Valdés, província

de Chubut, Argentina. O paralelo dos 42ºS divide as províncias argentinas de Rio Negro e Chubut.

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descrição de Gabriel Soares de Souza, cruza a costa norte da América do Sul na

península de Pária, hoje na Venezuela. Este meridiano está a mais de 16º diferente do

admitido por ele próprio.

Considerando o fato do autor ter escrito seu Tratado Descritivo em 1587,

portanto na vigencia da união das coroas portuguesa e espanhola, sem fusão de Estados,

pode-se hoje admitir a hipótese do erro decorrer de interesses da corte de Lisboa.

Contudo, a contradição do autor, evidencia o erro de longitudes. E mostra,

principalmente, um interesse no domínio das embocaduras do Amazonas e do Prata,

para o contrôle da ilha Brasil, o planalto Brasileiro. Tratava-se da ocupação pelo

contorno da ‘ilha’, para posterior subida ao altiplano.

A cidade de São Vicente foi fundada em 1532 por Martim Afonso de Souza

por ordem real, para marcar a posição portuguesa na costa já disputada pelos

castelhanos. Situa-se cerca aos 23º58’07”S e 43º23’16”W Gr, em uma ilha com o

mesmo nome, a 15km do sopé da serra que eleva uma parte importante da porção

meridional do planalto Brasileiro. A ilha, na baía de Santos, é cercada de uma planície

costeira com cerca de 15 quilômetros de largura, com canais navegáveis até o sopé da

serra do Mar, ou de Paranapiacaba. Por esta serra subia, desde antes da chegada dos

europeus, um caminho ou trilha indígena que recebeu, neste trecho o nome de Caminho

do Mar, e dava acesso a um extenso planalto inclinado para oeste, para o interior, para

além da linha demarcada em Tordesillas. Assim, este planalto tinha em sua borda mais

ou menos proxima ao mar suas maiores elevações. No trecho próximo a São Vicente,

estas elevações tem o nome de serra do Mar. Os conquistadores lusos tinham uma

noção, embora imprecisa, da proximidade da extremidade sul no litoral da raia de

Tordesilhas.

Cerca de 80km em direção nordeste, no altiplano, a 20km em linha reta da

costa, nasce um curso d’água que corre pelo planalto bordejando suas elevações ao

longo do litoral, para oeste-sudoeste. Ao chegar em seu ponto mais próximo de São

Vicente, cerca de 60km em linha reta, na altura do trópico de Capricórnio, já como um

rio, muda seu curso para oeste e depois noroeste e vai desaguar no rio Paraná, a mais de

1.000km de distância. Este rio, o Tietê, foi no século XVII rota importante dos maiores

exploradores do planalto Brasileiro, os bandeirantes.

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No no altiplano entre o alto da serra e o trecho deste rio mais perto de São

Vicente, haviam aldeamentos de populações autóctones, indígenas, que tinham

caminhos de subida da serra além de outros. Foi neste altiplano, as vezes denominado

planalto de Piratininga, que se instalaram alguns dos sítiosque vieram a ser importantes

colônias de europeus: Santo André da Borda do Campo, em 1553, e São Paulo, em

1554.

Entre a planície costeira e o planalto de Piratininga haviam, a época da chegada

dos europeus, caminhos indígenas, que acabaram por ser absorvidos pelos

colonizadores, dos quais parecem ser os mais utilizados na época, o caminho dos Índios

e o de Piaçaguera, conforme descreve Gonçalves. (1998:31-41)

As localidades de Cananeia, aos 25º01’S e 47º35’ W Gr., e Iguape, aos 24º42’S

e 47º33’W Gr., se situam em um braço de mar, quase uma laguna, com o nome de Mar

Pequeno, que separado do oceano Atlântico pela ilha Comprida, no litoral sul do estado

de São Paulo. Iguape, mais ao norte perto da foz do rio Ribeira de Iguape e Cananeia,

mais ao sul em uma ilha com seu nome. Iguape ficava, originariamente, em uma

restinga entre uma curva do rio e o Mar Pequeno. A foz do rio, ficava então diretamente

no oceano, junto a abertura norte do Mar Pequeno, cerca de 15km este nordeste de

Iguape. Nesta época a navegação chegava a cidade de Registro, aos 24º30’S e 47º50’W

Gr., cerca de 100km rio acima. Em meados do século XIX, foi aberto um canal de

ligação entre o rio Ribeira de Iguape e o Mar pequeno, o Valo Grande, para encurtar o

percurso em pouco mais de 10km. Resultou no assoreamento do rio e a extinção da

navegação.

O rio Ribeira de Iguape forma-se da confluência de tres rios: o rio Ribeira, o

rio Jacupiranga e o rio Pariquera-Açu. O vale do Ribeira, atravessa a Serra do Mar. Nas

nascentes está muito proximo das cabeceiras do rio Itararé, que flui para o

Paranapanema e para o Paraná.

O rio Paranapanema nasce no município de Capão Bonito-SP, aos 24°17'S e

48°16'W Gr., e corre quase exatamente no sentido leste oeste, até a foz, no rio Paraná.

Após receber, por sua margem esquerda, sul, o rio Itararé, faz a divisa dos estados de

São Paulo e Paraná. Próxima a sua foz ficava a missáo jesuítica do Guairá, de índios

Guarani, destruída pelos bandeirantes paulistas no século XVII.

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O meridiano de Tordesilhas, definido pelo Serviço Geográfico do Exército nos

48º35’25” W Gr., passa a pouco mais de 100km a oeste da barra do Valo Grande22, do

rio Ribeira de Iguape. Segundo a versão de Jorge Couto, 47º30’W Gr., está a pouco

mais de 6km a leste da mesma barra. A foz original do rio está cerca de 10km a leste

deste marco.

O porto de São Francisco do Sul, aos 26º14’S e 48º38’W Gr., se localiza na

ilha de São Francisco, no litoral norte do estado de Santa Catarina. A cidade está a beira

na baía de Babitonga que faz parte de um complexo de ilhas rios e canais que acessam o

interior, até cerca de 30km, semelhantes aos de São Vicente, chegando também, ao pé

da serra: o rio Palmital, o Cubatão do Norte, nas proximidades da cidade catarinense de

Joinville. A cidade de Guaruva-SC marca o pé da serra e o ultimo trecho navegável do

rio Palmital. Dista 25km do mar em linha reta, e 30 do porto de São Francisco do Sul a

sudeste. Do ponto tomado como as coordenadas de do lugar até a linha de Tordesilhas

adotada pelo Serviço Geográfico do Exército a distância é de 4,3km a oeste do

meridiano. Ficando pois este porto no limite da divisão deo mundo entre Castela e

Portugal, em território supostamente castelhano. Gonçalves nos dá conta que o

adelantado Cabeza de Vaca, vindo do reino de Castela, em 1542, para governar o

território platino em sua sede na cidade de Assunção (hoje Paraguai), desembarcou na

região de São Francisco do Sul, para dirigir-se a seus domínios.

O rio Iguaçú nasce cerca de 100km a nordeste de São Francisco do Sul, da

junção de dois pequenos rios, o Iraí e o Atuba, na região metropolitana de Curitiba, aos

25o29’S e 49º11’23”W Gr., corre cerca de 900km até desaguar no rio Paraná, na triplice

fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai.

Temos assim, na costa meridional brasileira, três pontos estratégicos para a

colonização europeia no século XVI: São Vicente, Cananeia e São Francisco. Todos

eles em baías que permitiam o estabelecimento de portos. Todos eles em estuários ou

lagunas nas proximidades de rios em planícies que chegavam ao sopé da serra, da

elevação do planalto. Todos eles tinham, no altiplano próximo, nascentes de rios de

grande porte que corriam (correm) para o interior. Principalmente, todos estavam

próximos ao meridiano definido no tratado de Tordesilhas, ainda que não se soubesse

muito bem sua precisa localização.

22 - Wikipedia. Verbetes: rio Ribeira e rio Ribeira de Iguape. Acessados em 12 de Março de 2011.

IBGE. Carta do Brasil ao Milionésimo, folhas SG 22 – Curitiba, 1998; e SG 23 – Iguape, 1998.

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Deve-se observar que desses rios, o Tietê corre para noroeste, apontando para o

centro do continente, ou para o centro do planalto Brasileiro, enquanto os outros dois, o

Paranapanema e o Iguaçu, fluem quase em linha reta para oeste acessando diretamente o

território guaraní, a região do Guairá.

Estes tres locais são apontados por Gonçalves (1998:09-10) como pontos de

entrada para o interior do continente, a ‘porta aberta para o sertão’. Estas três entradas

convergem, segundo o autor, para um único caminho, o Peabirú, que atingiria o império

Inca, passando pelo território Guarani. Por este, ou outros caminhos, o autor lista

diversos grupos entrando ou saindo por esses portos: Aleixo Garcia, em 1522-23, saindo

de São Francisco; Pero Lobo, em 1531, de Cananeia; Diogo Nunes, em 1539, de

Piratininga-São Vicente; Alvar Nuñez Cabeza de Vaca, adelantado do Rio da Prata, em

1542, de São Francisco do Sul; o Padre Leonardo Nunes, em 1549, de Cananeia; o

próprio Pe. Manuel da Nóbrega, em 1553, de São Vicente, para fundar a aldeia de

Maniçoba, 50 léguas (260km) terra adentro; além de diversos outros indo ou vindo do

Paraguai. (GONÇALVES:11).

Pode-se observar que, destes três pontos, São Vicente teve um tratamento

diferenciado pela coroa portuguesa. Foi ali que determinou a Martim Afonso construir

um primeiro assentamento oficial. O que chama a atenção é o fato de estar o lugar aos

23°58'16"S,23 portanto, 0o32’, cerca de 27km, em linha reta, ao sul do Trópico de

Capricórnio. É um porto excepcional24, de muito facil localização com o instrumental da

época, com possibilidades de chegar ao alto do planalto com relativa facilidade, uma

vez que ali já existiam caminhos indígenas subindo a serra e, finalmente, no altiplano de

Piratininga, as cabeceiras de uma rio, o Tietê, que corria em direção ao centro do

planalto, tudo isso, a apenas 0o5’, cerca de 9km, ao sul do trópico.25 Uma cidade neste

altiplano, por uma característica sua, a de inclinar-se para dentro, teria condições de

acessar todo o interior. O domínio de sua borda mais elevada permitiria sua ocupação. O

planalto seria melhor dominado partindo de seu ponto mais alto.

A ênfase na mudança da Capital reflete bem o período inicial da República. Ela

significou, além do mais, um rompimento com o Império e um predomínio, no caso, dos

23 - Tomado na praia.

24 - A cidade de Santos, fundada alguns anos depois, no outro lado da mesma ilha de São Vicente, abriga

hoje um dos maiores portos brasileiros.

25 - Tomamos para referência de medidas a foz atual do rio Tamanduateí no Tietê.

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militares positivistas que disputavam com os liberais, especialmente civis, o comando

da República.26 A transferência da capital para o interior configurava espacialmente a

centralização proposta pelos positivistas. Representava, por outro lado, uma decisão

militar de ocupação do território nacional a partir das terras altas, no centro do planalto

Brasileiro.

Floriano Peixoto, eleito vice presidente, pelo Congresso Nacional que resultou

da assembléia Constituinte, alçado a presidência pela renúncia do Marechal Deodoro da

Fonseca, decidiu, imediatamente, dar prosseguimento a determinação preconizada.

Assim, o ministro das Obras Públicas, Antão Gonçalves de Faria, em 17 de maio de

1892, mandou ao dr. Luiz Cruls, diretor do Observatório Nacional, as seguintes

instruções:

Em observância à disposição do artigo 3º da Constituição Federal, e para dar cumprimento

à resolução do Congresso Nacional que consignou na lei do orçamento em vigor a destinada à

exploração do planalto central da República e demarcação da área que tem de ser ocupada pela

futura capital dos Estados Unidos do Brasil, é nesta data nomeada a Comissão encarregada de tais

trabalhos, cuja direção é confiada ao vosso conhecido zêlo e provada competência.

No desempenho de tão importante missão deveis proceder aos estudos indispensáveis ao

conhecimento da po0sição astronômica da área a demarcar, da orografia, hidrografia, condições

cdlimatológicas e higiênicas, natureza do terreno, quantidade e qualidade das águas, que devem ser

utilizadas para abastecimento, materiais de construção, riqueza florestal, etc. da região explorada e

tudo mais que diretamente se ligue ao assunto que constitui o objeto de vossa missão. (CRULS:65)

A missão de Cruls era materializar a determinação. Os constituintes de 1891

haviam dado tão grande importância ao assunto, que alçaram a mudança da capital a um

dos elementos constitutivos da Nação já que colocaram a matéria no terceiro artigo da

Carta Magna, precedido somente pelos que definem o Estado Brasileiro e seu território.

Art 1º - A Nação brasileira adota como forma de Governo, sob o regime representativo, a

República Federativa, proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por união perpétua e

indissolúvel das suas antigas Províncias, em Estados Unidos do Brasil.

Art 2º - Cada uma das antigas Províncias formará um Estado e o antigo Município Neutro

constituirá o Distrito Federal, continuando a ser a Capital da União, enquanto não se der execução

ao disposto no artigo seguinte.

Art 3º - Fica pertencendo à União, no planalto central da República, uma zona de 14.400

quilômetros quadrados, que será oportunamente demarcada para nela estabeIecer-se a futura

Capital federal.

Parágrafo único - Efetuada a mudança da Capital, o atual Distrito Federal passará a constituir um

Estado.27

26 - Cf. FAUSTO: 243-260;

e também MOTA: 549-602.

27 - http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao91.htm; Acessado em 28 março

2011.).

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Cruls, estava consciente de sua responsabilidade, e iniciou seu trabalho pelo

estabelecimento de seus pressupostos históricos para só então passar a interpretação do

terceiro artigo da Carta Magna. Ele introduz seu Relatório dizendo:

Quando, em maio de 1892, o governo mandou nos chamar, a fim de nos confiar a missão de

explorar o planalto central do Brasil e nele demarcar a área que, ..., deve ser reservada ao futuro

Distrito Federal, e aí ser oportunamente mudada a nova capital da União, não nos iludimos a

respeito da magnitude do assunto, e ao mesmo tempo da responsabilidade que ia pesar sôbre nós

perante o país inteiro, aceitando tão honrosa quanto espinhosa tarefa.

... os membros da Constituinte, ..., inspiraram-se nos trabalhos anteriores e já antigos de estadistas

nacionais de grande nomeada, sobre o magno assunto da mudança da capital do Brasil, para algum

ponto no interior do território. ...

A Comisão não podia desconhecer, pois, as bases históricas em que se assentava êste projeto sob

pena de desvirtuar o pensamento do legislador. ... (CRULS:49-50).

Cruls considera aqui o já então clássico artigo publicado em 1808 no jornal Correio

Braziliense,

O Rio de Janeiro não possui nenhuma das qualidades que se requerem na cidade que se destina a

ser a capital do Império do Brasil;

... os cortesãos ... se iriam estabelecer em um país do interior, central e imediato às cabeceiras dos

grandes rios, edificariam ali a nova cidade ..., e lançariam assim os fundamentos do ... império, ....

Êste ponto central se acha nas cabeceiras do famoso rio S.Francisco. Em suas vizinhanças estão as

vertentes de caudalosos rios, que se dirigem ao norte e ao sul, ao nordeste e ao sueste, ...

(CRULS:59-60)

Menciona também em seu histórico, o registro feito pelo Dr. Alexandre José de Melo

Morais, sobre instruções ministradas aos deputados de São Paulo, em 182128, entre as

quais uma que diz:

Parece-nos também muito útil que se levante uma cidade central, no interior do Brasil, para

assento da côrte ou da regência que poderá ser na latitude, pouco mais ou menos de 15 graus,

em sítio sadio, ameno, fértil e regado por algum rio navegável. Desse modo fica a côrte ou

regência livre de qualquer “assalto” e “surpresa” extrema, e se chama para as províncias

centrais o excesso da povoação vadia das cidades marítimas e mercantis. Desta côrte central

dever-se-ão logo abrir estradas para as diversas províncias e portos de mar para que se

comuniquem e circulem com toda a prontidão as ordens do govêrno e se “favoreça” por elas o

comércio interno do vasto Império do Brasil. (CRULS:61-2)

Refere-se ainda ao Visconde de Porto Seguro que, em 1834, dissera:

“E a primeira lição que devemos colhêr é a de, já em tempo de paz atendermos mais aos meios de

resistência que deve oferecer êste importante pôrto, do qual permita Deus que seja “quanto antes”

retirada a capital do Império tão “vulnerável”, aí na fronteira e tão “exposta” a ser ameaçada

de um bombardeio e sofrê-lo com grande prejuízo de seus proprietários, “qualquer inimigo”

superior no mar, que se proponha a arrancar do govêrno, pela ameaça, comissões em que não

poderia se pensar se o mesmo govêrno “aí” se não achasse.

E isto quando a própria Providência concedeu ao Brasil uma paragem mais central, “mais

segura” mais sã e própria a ligar entre si os três grandes vales do Amazonas, do Prata e do

São Francisco, nos elevados chapadões, de ares puros, “águas boas e até de abundantes mármores,

vizinho ao triângulo formado pelas três lagoas Formosa, Feia e Mestre de Armas, das quais

manam águas para o Amazonas, para o São Francisco e para o Prata ... . 29 (CRULS:62.)

E continua pouco adiante:

28 - Cruls se refere aqui a História do Brasil-Reino e Brasil-Império de Dr. Alexandre José de Melo

Morais, pagina 85 parágrafo 9, capítulo II, com o título Negócios do Brasil.

29 - Cruls se refere aqui a História Geral do Brasil, do Visconde de Porto Seguro, 1834; tomo II, pág

814.

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“na extensão que acabo de percorrer há, porém, outra região não menos apropriada à

colonização européia, ... constituindo assim o núcleo que reúne entre si as três conchas ou

bacias fluviais do país.

Refiro-me a bela região situada no triângulo formado pelas três lagoas - Formosa, Feia e Mestre de

Armas, com chapadões elevados a mais de 1.000 metros, como nesta paragem requer, para a

melhoria do clima, a menor latitude, favorecidos com algumas serras mais altas da banda do norte,

que não só os protegem de alguns ventos menos frescos dêste lado, como lhes fornecerão,

mediante a conveniente despesa, os necessários mananciais.30 (CRULS:62-3.)

O próprio Cruls prossegue indicando preliminarmente duas áreas:

São dois chapadões de fácila acesso qualquer dos quais prestaria assento a uma povoação, desde

logo com a perspectiva de poder estender-se até mais de um milhão de almas.

Qualquer deles fica acima de 1.000 metros sobre o mar, em solo firme, seco de fáceis escoantes

e oferece à vista, de um lado ao menos, horizontes muito dilatados.

É o primeiro denominado por alguns – o da Gordura, perto de quatro léguas ao O.N.O. da

Formosa, na paragem onde a um tiro de fuzil se vêem, umas das outras as cabeceiras dos ribeirôes

Santa Rita, vertente do rio São Francisco pelo rio Prêto, Bandeirinha, vertente do Amazonas pelo

Paraná e Tocantins, e Sítio Novo, vertente do Prata, pelo São Bartolomeu e grande Paraná. 31

... encontra-se logo adiante obra de légua e meia ao N.O. outra localidade ainda mais alta e muito

superior a esta ... (CRULS:63-4)

Os negritos nas citações são meus. Nos textos de estadistas do Império

levantados por Cruls para apoiar sua decisão, são recorrentes as temáticas de defesa da

capital, e a da centralidade para atingir as ‘diversas províncias e portos de mar’ vias

fluviais, interligadas por estradas de ferro ou por estradas, bem como a localização

próxima as três lagoas, ou a serra dos Pirineus. A lógica que preside tais condições são

as próprias de sua época. A capital no litoral é vulnerável ao bombardeio das marinhas.

Equidistante das províncias ela desenvolve o país equilibradamente. Colocando o centro

de poder no alto do planalto, nas nascentes dos rios, levará inevitavelmente a ocupação

do território pois a navegação é ainda naquela época um meio de deslocamento mais

fácil e barato. Colocando-se europeus, e seus descendentes, neste lugar são eles que

terão o controle do território nacional.

É, portanto, com base nessas premissas históricas que Cruls interpreta o artigo

terceiro da Constituição. Para isso estabelece como princípios. Primeiramente a

expressão planalto central.

Vejamos, em primeiro lugar, qual o sentido das palavras do art. 3º da Constituição, onde se

encontra a expressão planalto central do Brasil. É evidente que por planalto central se deve

entender a parte do planalto brasileiro mais central em relação ao centro do território, isto é, mais

próximo dêste. Esta é indubitasvelmente a única interpretação exata da expressão planalto central

que figura na Constituição. (CRULS:50)

30 - Cruls se refere aqui a uma Comunicação que o mesmo Visconde de Porto Seguro, dirigira “mais

recentemente”, ou seja posterior a 1834, ao Ministro das Obras Públicas.

A palavra despesa do texto tem aqui o significado de decarga, vazão do rio.

31 - Cruls era belga e escrevia em francês, daí certas incorreções de grafia: o córrego Bandeirinha corre

para o rio Paranã, não Paraná, o que dispensaria a designação grande Paraná. Da mesma forma,

grafa rio Paranoá, como Paranauá.

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Depois, especifica:

... o planalto brasileiro, cujas altitudes, segundo os geólogos mais autorizados, variam entre 300 e

1.000 metros ou superior a 1.000 metros. A única parte, porém, dêste planalto que nos interessa, é

evidentemente a mais elevada, portanto só trataremos daquela cuja altitude é de 1.000 ou acima de

1.000 metros. (CRULS:50)

Seleciona:

Este planalto ocupa grande parte dos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais, parte do estado de

Goiás, e estende-se sob forma de faixas estreitas, uma na Bahia, a leste do rio São Francisco, outra

ao oeste dêste mesmo rio, até os limites do estado de Goiás com os do Maranhão e do Piauí, outra

finalmente ao longo do litoral em direção ao sul, até o Rio Grande ...

... Das três faixas do planalto que acima mencionamos, duas há que por serem evidentemente

demais excênticas, não preenchem uma das mais importantes condições a que deve satisfazer a

região a demarcar, são: 1º aquela que se extende ao longo do litoral, em direção ao Rio Grande do

Sul; 2º aquela que se acha a leste do rio São Francisco. A terceira faixa, (...) se prolonga para o

norte, entre os vales do Tocantins e do São Francisco, mais central que as duas outras, ...

(CRULS:50-1)

Para concluir:

Deste planalto, porém, a única parte à qual cabe a denominação de central é aquela que se acha nas

proximidades dos Pireneus, no estado de Goiás, não somente por ser, na realidade a mais próxima

do centro do Brasil, como também, por se acharem aí as cabeceiras de alguns dos mais caudalosos

rios do sistema hidrográfico brasileiro, isto é, o Tocantins, o São Francisco e o Paraná.

(CRULS:51)

E, mais que concluir, avançar:

Não devemos nos limitar a considerar as condições atuais da questão, mas também as condições

futuras. Os grandes rios que nascem na região do planalto central do Brasil, e por um capricho

singular da natureza, têm suas cabeceiras, como que reunidas em um só ponto, estão na atualidade

e, infelizmente, incompletamente navegáveis, por achar-se o curso de suas águas obstruído em

muitos pontos. Devemos, porém, esperar que, com o correr dos tempos, raie o dia em que eles

virão a tornar-se navegáveis em todo o seu percurso; quando chegar êste dia, e que um sistema de

vias férreas ligar a nova capital com os grandes rios, cujas águas descem para o norte, para o sul, e

para o leste, então achar-se-á realizada a palavra profética do Visconde de Porto Seguro.

(CRULS:51-2)

Ficou assim determinada a região onde seria localizado o então futuro Distrito

Federal. No centro do planalto, nas terras altas, nascentes de três das maiores bacias

hidrográficas do Brasil, com o sentido de ocupar o planalto Brasileiro pelo topo.

Como resultado podemos ver que foi ocupada a encosta setentrional,

amazônica, do planalto. Os problemas de desmatamento da floresta tropical, no

Tocantins, no norte de Mato Grosso, no sul do Pará, e em Rondônia são a comprovação

insofismável do acerto desta política.

Cumpriu-se assim a política portuguesa que, no século XVI, localizou uma

cidade, São Paulo, também no alto do planalto, sob o trópico de Capricórnio, na

nascente de um rio, o Tietê, que apontava ao centro do planalto e ligada a um porto,

Santos, na mesma ilha de São Vicente, que garantia a comunicação e o suporte logístico

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da metrópole europeia. Desta cidade partiram as expedições que garantiram a ocupação

portuguesa do planalto Brasileiro até o rio Madeira e até a confluência dos rios Araguaia

e Tocantins, antes mesmo da celebração do tratado de Madri, em 1750.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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história do Distrito Federal: do indígena ao colonizador. Brasília, Verano

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1587. Tratado descritivo do Brasil em 1587. São Paulo-SP, Editora Hedra,

2010.

IBGE. Carta do Brasil ao Milionésimo, folha SG 22 – Curitiba. 1998;

IBGE. Carta do Brasil ao Milionésimo, folha SG 23 – Iguape, 1998.

Brasília, 5 de abril de 2011

No prelo para publicação em: RILP. (Revista Internacional Lingua Portuguesa ???). – Cidades e Metrópoles. 2011. Lisboa, Portugal.