293715_Paoli (D) - Os Estilos de Futebol

Embed Size (px)

Citation preview

i

OS ESTILOS DE FUTEBOL E OS PROCESSOS DE SELEO E DETECO DE TALENTOS

Por

Prspero Brum Paoli

_________________________________________

Tese Apresentada ao Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Educao Fsica da Universidade Gama Filho, como Requisito Parcial Obteno do Ttulo de Doutor em Educao Fsica

2007

ii

Dedico esse trabalho a Deus, que tem me possibilitado inmeras oportunidades. E, a minha esposa, companheira, amiga e grande amor da minha vida: Mnica. As minhas filhas, Thas e Luma, motivo de minha incansvel luta por dias melhores. E, a minha Me Adelaide, pelos ensinamentos e exemplo de vida.

iii

AGRADECIMENTOS Universidade Federal de Viosa pelo apoio e incentivo no processo de treinamento. Universidade Gama Filho, pela oportunidade; e aos professores da Instituio que contriburam para a construo do estudo. CAPES por ter investido na minha qualificao profissional. Ao meu orientador, Prof. Dr. Antnio Jorge Gonalves Soares, por aceitar o desafio de me orientar, pelo carinho e empenho que me dedicou e a relao respeitosa durante o processo de treinamento. Aos Professores Dr. Roberto Ferreira dos Santos e Dr. Marco Antnio Santoro Salvador pelo rigor e seriedade com que trataram o meu estudo e a colaborao dispensada no enriquecimento desta pesquisa. Ao Professor Dr. Jos Geraldo do Carmo Salles, minha eterna gratido, por todo o apoio recebido para a realizao do Doutorado. Ao Professor Dr. Joo Carlos Bouzas Marins, um grande amigo, e competente profissional, pelas suas inmeras contribuies ao estudo e o estmulo para que este momento se tornasse realidade. Aos meus amigos que tanto torcem por mim e vibram de forma positiva: Alexandre Grasseli, Amariles Paoli, Anselmo Perez, Bruno Abraho, Chafith Felipe, Conceio Paoli, Edson Camargo, Ivaldo Paoli, Itaboray, Jos Muanis, Mrio Alino, Lcio Csar Gomes, Ney Franco, Wladimir Braga. As funcionrias da Pr-Reitoria de Pesquisa e Ps-Graduao da UFV, Suely e Margarida, pelo apoio constante durante o processo de treinamento. Ao meu amigo Jorge Bernardo Fabri, pelo apoio constante. Aos Tcnicos, Observadores Tcnicos e Coordenadores dos Clubes pesquisados pela disponibilidade e boa vontade em conceder as entrevistas do estudo.

iv

Um sonho comea a ser realidade quando sonhamos juntos, olhamos para alm das limitaes e ousamos caminhar caminhos novos, s vezes pedregosos, s vezes escorregadios, mas sempre desafiantes. (Abraham Lincoln).

v PAOLI, P.B. (2007). Os estilos de futebol e os processos de seleo e deteco de talentos. (Tese de Doutorado). Rio de Janeiro: PPGEF/UGF. Orientador: Dr. Antnio Jorge Gonalves Soares

RESUMOO objetivo do estudo descrever e analisar o processo de deteco e seleo de talentos institudo em sete clubes da primeira diviso do futebol brasileiro. A pesquisa procurou revelar as fronteiras, os dilogos, os enfrentamentos, as negociaes, as estratgias culturais presentes neste campo profissional e compar-las com as narrativas identitrias presentes em nossa sociedade. Nesse sentido, buscamos compreender e interpretar os cdigos, valores e o grau de proximidade e interao entre representaes identitrias e prticas no cotidiano do futebol, no que se refere aos processos utilizados pelos clubes para a identificao e seleo de jogadores nas categorias de base. O problema do estudo verificar se as representaes identitrias sobre o futebol brasileiro e seu estilo orientam as prticas no processo de seleo e deteco de talentos? No plano emprico, este estudo est caracterizado como uma pesquisa qualitativa, de natureza descritiva. O trabalho de campo foi realizado em sete clubes pertencentes primeira diviso do futebol brasileiro, situados nas regies Sul, Sudeste e Centro Oeste. Tais clubes possuem processos de formao, deteco e seleo de talentos para o futebol profissional. Utilizamos como instrumentos entrevistas semi-estruturadas, construdas a partir dos conceitos e indicadores, extrados da reviso crtica da literatura sobre os estudos culturais das diferentes etapas vividas pelos jovens atletas. Os atores sociais foram constitudos pelos Tcnicos das categorias Sub 15, Sub 17, Sub 20, pelos Observadores Tcnicos e pelos Coordenadores das Categorias de Base nos clubes selecionados. A tese est estruturada em sete captulos. No primeiro so apresentados os caminhos da investigao. No segundo realizada uma anlise dos dilemas identitrios presentes nos discursos sobre os estilos nacionais a partir da relao entre futebol, cultura e identidade nacional. No terceiro, foi analisado o processo de constituio de uma identidade nacional e a construo de um estilo brasileiro de jogar futebol, especificamente a dualidade entre "futebol arte" e "futebol fora". No quarto, foi realizada uma anlise da relao do conceito de talento com o contexto do futebol. No quinto, o objetivo foi descrever e entender como ocorre o acesso e o desenvolvimento do fluxo de jogadores nas categorias de base do futebol brasileiro. O levantamento de informaes a respeito deste processo contribuiu para a identificao da estrutura organizacional e para o entendimento deste processo. No sexto, o objetivo foi problematizar e analisar o discurso dos treinadores e observadores tcnicos do futebol em relao aos critrios adotados no processo de deteco e seleo de talentos, nas diferentes etapas institudas nos clubes de futebol. No stimo foram realizadas as consideraes finais, tendo sido possvel concluir que as representaes identitrias do "futebol arte" e do "futebol fora" esto contidas no processo de avaliao, seleo e deteco de jogadores, no tendo nenhuma delas a primazia e/ou exclusividade, pois se complementam. O futebol uma mescla de todas essas qualidades, da juno das representaes do "futebol fora" e do "futebol arte". O discurso identitrio sobre o ideal proclamado do futebol brasileiro, isto , o "futebol arte", no o marco orientador das aes dos profissionais que esto envolvidos no processo de seleo e treinamento de talentos. Todavia, o discurso do futebol arte pode apresentar eficcia simblica no processo de comercializao de jogadores ou nos jogos de identidade. Palavras Chaves: Seleo e deteco de talentos - Estilos e formas de jogar futebol - Identidade

vi PAOLI, P. B. (2007). The styles of soccer and the processes of selection and detection of talents. (Thesis of Doutorado). Rio de Janeiro: PPGEF/UGF. Person who orientates: Dr. Antonio Jorge Gonalves Soares ABSTRACTThe objective of the study is to describe and to analyze the process of detection and selection of talents instituted in seven clubs of the first division of the Brazilian soccer. The research intends to disclose the underlying cultural borders, dialogues, confrontations, negotiations, and strategies in this professional field and to compare them with the existent identity narratives of our society. Furthermore, we seek to understand and interpret the codes, values and the degree of proximity and interaction between identity and practical representations on soccer daily routines, giving reference to the processes used by the clubs to identify and elect players in categories of base. The problem of the study is to verify if the identity representations on the Brazilian soccer and its style guide practical in the process of selection and the detection of talents? In the empirical plan, this study it is characterized as a qualitative research, of descriptive nature. The fieldwork was carried through in seven pertaining to the first division of the Brazilian soccer, situated clubs in the regions South, Southeastern and Center West. Such clubs possess processes of formation, detection and selection of talents for the professional soccer. We use as instruments interviews half-structuralized, constructed from the concepts and pointers, extracted of the critical revision of literature on the cultural studies of the different stages lived for the young athletes. The social actors were constituted for Technician of the categories Sub 15, Sub 17, Sub 20, for the Observers Technician and the Coordinators of the Categories of Base in the selected clubs. The thesis is structuralized in seven chapters. In the first one the ways of the inquiry are presented. In as an analysis of the identity quandaries is carried through gifts in the speeches on the national styles from the relation between soccer, culture and national identity. In third, it was analyzed the process of constitution of a national identity and the construction of a Brazilian style to play soccer, specifically the double between "soccer art" and "soccer force". In the room, an analysis of the relation of the concept of talent with the context of the soccer was carried through. In fifth, the objective was to describe and to understand as it occurs the access and the development of the flow of players in the categories of base of the Brazilian soccer. The survey of information the respect of this process contributed for the identification of the organization structure and for the agreement of this process. In sixth, the objective was to problematic and to analyze the speech of the trainers and observers technician of the soccer in relation to the criteria adopted in the process of detection and selection of talents, in the different stages instituted in the soccer clubs. In seventh the final consider had been carried through, having been possible to conclude that the identity representations of the "soccer art" and the "soccer force" are contained in the process of evaluation, selection and detection of players, not having none of them the priority and/or exclusiveness, therefore are complemented. The soccer is a mixture of all these qualities, of the junction of the representations of the "soccer force" and the "soccer art". The identity speech on the proclaimed ideal of the Brazilian soccer, that is, the "soccer art", is not the orienting landmark of the actions of the professionals who are involved in the process of selection and training of talents. However, the speech of the soccer art can present symbolic effectiveness in the process of commercialization of players or in the games of identity. Words Keys: Selection and detection of talents - Styles and forms to play soccer - Identity

vii

SUMRIO I. DEFININDO A INVESTIGAO 1.1. 1.2. 1.3.INTRODUO O PROBLEMA OBJETIVOS

01 01 08 10 10 10 11 14

1.3.1. Objetivo Geral 1.3.2. Objetivos Especficos

1.4.

METODOLOGIA

II. CULTURA E IDENTIDADE NACIONAL2.1. 2.2. 2.3. A FIFA NO PROCESSO DE IDENTIDADE CULTURAL AS COPAS DO MUNDO DE FUTEBOL E A RELAO COM OS PROCESSOS DE CONSTRUO DE IDENTIDADES AS CONQUISTAS DO FUTEBOL BRASILEIRO E SUA INFLUNCIA NOS PROCESSOS DE CONSTRUO DE IDENTIDADES

29 30

33

III. A RELAO ENTRE IDENTIDADE E A CONSTRUO DO ESTILO NACIONAL DE JOGAR FUTEBOL3.1. 3.2. A CONSTRUO IDENTITRIA DO FUTEBOL-ARTE A FORMAO DE ATLETAS E A RELAO COM OS ESTILOS DE JOGAR FUTEBOL

36 41 51

IV. FUTEBOL E O CONCEITO DE TALENTO4.1. 4.2. 4.3. O CONCEITO DE TALENTO ETAPAS DO TALENTO PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO DO

54 54 61 66

A FORMAO DO JOGADOR DE FUTEBOL

viii

V. ANLISE DO FLUXO DE JOGADORES NAS CATEGORIAS DE BASE DO FUTEBOL5.1. 5.2. 5.3. 5.4. 5.5. 5.6. 5.7. 5.8. 5.9. 5.10 OS COORDENADORES TCNICOS NA ESTRUTURA DO FUTEBOL DE BASE OS OBSERVADORES TCNICOS NA ESTRUTURA DO FUTEBOL DE BASE O PAPEL DOS EMPRESRIOS NO FUTEBOL O NEGCIO FUTEBOL DE BASE ESTRUTURAO DAS CATEGORIAS DE BASE DOS CLUBES DO FUTEBOL BRASILEIRO A ESTRUTURAO DAS CATEGORIAS DE BASE A PARTIR DAS FAIXAS ETRIAS OS OBJETIVOS DO PLANEJAMENTO DE TRABALHO DAS CATEGORIAS DE BASE O PLANEJAMENTO DE TRABALHO DAS CATEGORIAS DE BASE AS VIAS DE ACESSO UTILIZADAS PARA A CAPTAO DE JOGADORES NAS CATEGORIAS DE BASE PROCESSO DE PROGRESSO DE UM JOGADOR QUE J EST NO CLUBE, EM UMA DETERMINADA CATEGORIA, PARA A SUBSEQENTE. FAIXA ETRIA IDEAL PARA SE IDENTIFICAR UM TALENTO

70 70 71 73 78 83 88 92 94 99

112 117

5.11.

VI. RELAO DOS ESTILOS DE FUTEBOL COM OS CRITRIOS ADOTADOS PELOS SELECIONADORES DE TALENTOS6.1. 6.2. 6.3. CARACTERSTICAS CONSIDERADAS COMO PARA A DETECO E SELEO DE TALENTOS CRITRIOS

121131 139 152

CARACTERSTICAS UTILIZADAS COMO CRITRIOS PARA A DETECO E SELEO DE JOGADORES POR POSIO DIFERENAS DE CARACTERSTICAS OBSERVADAS NO PROCESSO DE DETECO E SELEO DE JOGADORES POR REGIO

VII CONSIDERAES FINAIS REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

159 165

ix

LISTA DE ANEXOS I. ROTEIRO DA ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA178

1

CAPTULO I

DEFININDO A INVESTIGAO

1.1. INTRODUO

Giulianotti (2002) afirma que o futebol uma das grandes instituies culturais, como a educao e os meios de comunicao de massa, que formam e consolidam identidades nacionais no mundo inteiro. Esse esporte e seus processos de difuso e informao (instituies esportivas, mdias, literatura, cinema, lazer e anlises acadmicas) socializam valores, gostos e sentimentos que permitem ao indivduo e s coletividades localizarem-se e identificarem-se num dado sistema social e cultural. A partir deste pressuposto, vrios estudos no campo das cincias sociais1 foram realizados nas ltimas trs dcadas, discutindo os processos de construo de identidades a partir do futebol e de outros esportes (DaMatta, 1982; Rosenfeld, 1993; Leite Lopes, 1994; Archetti, 1994, 1999; Murad, 1996; Guedes, 1998; Toledo, 2001; Helal, Soares & Lovisolo, 2001; Fiengo, 2000, 2003; Neto, 2002; Alabarces, 2002; Agostinho, 2002; Gastaldo, 2002; Damo, 2002 e outros). Como os processos de construo de identidades so sempre relacionais, tais estudos caminharam em dois nveis: um mais prximo das narrativas dos estadosnaes e outro mais aproximado das tenses vividas diante dos processos de globalizao e do crescente movimento reivindicatrio das minorias no interior destes estados. possvel, ento, conceituar esses nveis como: (a) afirmao de diferenciaes e de identificaes a partir da comparao entre as grandes unidades (estados nacionais) e (b) como afirmao das diferenas, semelhanas e hibridizao a partir do tenso e

1

Incluo aqui a produo dos estudos culturais vinculados ao campo da educao fsica e da comunicao.

2 complexo processo relacional de identificaes e pluri-identificaes presentes na psmodernidade. O primeiro nvel, no caso do futebol, se prope analisar as construes identitrias a partir do cotejo entre as naes nas competies esportivas em nvel internacional. Neste caso, as singularidades, os traos culturais, foram e so encontrados no sentido de distinguir a personalidade social, a identidade, e o carter nacional expresso no corpo, nas gestualizaes, nos movimentos, nas manifestaes, isto , nos sistemas simblicos da cultura dos povos (Geertz, 1989). Aqui as unidades de anlise so os estados-naes como comunidades imaginadas que inventaram, a partir de diferentes meios (espontneos ou intencionais), o esprito do povo em diferentes manifestaes culturais, dentre elas o esporte (Berlin, 1982; Anderson, 1983; Hobsbawm, 1987, 1990, 1997). O segundo nvel situa o futebol a partir da anlise dos processos de globalizao em curso, seja no plano econmico, seja no cultural. Tomando por base as interpretaes de Hall (2004), poder-se-ia afirmar que a tendncia da globalizao da cultura em curso, que rapidamente teve nos esportes um veculo de encontro, de trocas, de apropriaes entre os diferentes estados-naes, estaria transformando ou fragmentando as identidades nacionais, vistas no passado com maior grau de homogeneidade. Dois movimentos estariam em permanente dilogo: um de afirmao da cultura local e outro de manifestaes culturais que operam a partir de referenciais globais. Todavia, esses movimentos no so auto-excludentes, pois podem ser complementares. Isto significa que as expresses da cultura local se reinventam, hibridizando-se com outras pela globalizao. Os espaos continuam os mesmos; o que muda so as formas de pensar a cultura que dinmica - pelo contato mas mantm tambm a tradio, no interior de determinado estado-nao. Esse processo de afirmao de identidades atravessado, seja no campo do esporte ou no de outras manifestaes, pelas diferentes formas de identificao na psmodernidade (etnia, gnero, classe etc.). Ocorre um processo de negociao, de resistncias, de apropriaes, de confrontaes e de dilogos, a partir dos diferentes olhares, de lugares e no-lugares. Mesmo no espao do futebol, existe hoje uma espcie de pluri-identificao, pois os agentes (torcedores, dirigentes, jogadores) identificam-se

3 com selees, clubes locais e internacionais, jogadores de diferentes nacionalidades e etnias e com empresas vinculadas direta ou indiretamente ao esporte2. Apesar destas possibilidades de estudos da relao futebol-identidade, pode-se afirmar que boa parte da produo brasileira sobre o assunto concentrou-se, no primeiro nvel, em analisar os processos identitrios da construo do estilo brasileiro de jogar futebol, sob a lente do Brasil enquanto uma das comunidades imaginadas no sentido de Anderson (1983). Pode-se afirmar que, no Brasil, a tradio das anlises sobre o futebol tomou seus sucessos em articulao com o estilo de jogo e jogo de corpo como metonmia da nao. Tais estudos nas cincias sociais representam, em muitos dos casos, a continuidade das narrativas jornalsticas, literrias, cinematogrficas e populares sobre o futebol (Soares, 1999; 2001). A questo a ser observada que algumas anlises da relao futebol-identidade acabam por louvar, afirmar e reforar as identidades, ao invs de questionar os mecanismos de sua construo. Cuche (1999:187-188) lembra que o papel do analista social explicar os processos de identificao sem julg-los. Ele deve elucidar as lgicas sociais que levam os indivduos e os grupos a identificar, a rotular, a categorizar, a classificar e a faz-lo de certa maneira ao invs de outra. Do ponto de vista da construo intelectual sobre a relao futebol-identidade nacional, podemos ter em Gilberto Freyre o construtor desta tradio (Soares, 2003). Para Freyre o estilo brasileiro de jogar futebol espelha o processo singular de nossa formao cultural, tal estilo mais um dos produtos da miscigenao racial e cultural que teria imposto ao apolneo jogo ingls os traos culturais da afrobrasilidade (Freyre, 1938). Aqui a descrio e anlise do estilo de jogo brasileiro se amalgamam com a necessidade de afirmar uma identidade positiva do Brasil (Skidmore, 1994; Arajo, 1994; Reis, 1999). Em DaMatta (1982:89), guardadas as devidas diferenas, temos em parte a continuidade de Freyre ao tomar o futebol como objeto de anlise da sociedade. Para ele sabido no Brasil queO futebol nativo tem jogo de cintura, ou seja, malcia e malandragem, elementos inexistentes no futebol estrangeiro, sobretudo europeu, um futebol fundado na fora fsica, capacidade muscular, falta de improvisao e de controle individual de bola dos jogadores.

A identidade construda do Brasil, a partir do futebol, teria como o outro o europeu e, especificamente, o anglo-saxo. Para DaMatta (1989), a identidade nacional2

As marcas de indstrias e empresas esto amalgamadas com o fenmeno esportivo em nossos dias.

4 foi construda a partir de instituies secundrias, como carnaval, samba, religiosidade e futebol. Em contraposio, os pases europeus e os Estados Unidos possuiriam como fontes de identidade social a Constituio, o Congresso Nacional, o sistema universitrio, a ordem financeira, a histria poltica. Instituies que seriam centrais na criao de solidariedade e identidade. As esferas do lazer e do esporte, por sua vez, seriam fontes secundrias naqueles pases. Da tenso entre as expresses culturais (samba, capoeira, carnaval, futebol, religio etc) e a estrutura poltica e social no Brasil, que restringe a expresso e a mobilidade do indivduo, o futebol se transforma num espao de mobilidade social e fonte de expresso de cidadania (DaMatta, 1982) que, na leitura de Soares & Lovisolo (2003), representa uma cidadania s avessas ou fora de lugar. Essa configurao faria surgir um estilo de jogo estetizado. Da comparao entre a cultura anglo-saxnica e a brasileira extrai-se a singularidade do brasileiro e de seu futebol. No segundo nvel de anlise temos estudos que tomam a viso mais ou menos homogeneizante das comunidades imaginadas, e as problematizam em termos dos complexos e segmentados processos de identificao no interior e fora destas comunidades. Na verdade, os limites entre exterior/interior so tnue, mas deve-se ressaltar que o corte entre essas duas perspectivas de anlise no de fcil realizao. Na produo brasileira, Toledo (2000, 2002), trabalhando na perspectiva de um relativismo bem equilibrado, e, a partir de diferentes olhares (profissionais do esporte, especialistas, torcedores, jornalistas, manuais editados em diferentes perodos histricos sobre o jogo etc), tenta tornar inteligvel como o futebol, seus modelos tticos e estilos se tornaram uma questo nacional, sem vises homogneas e ufanistas da afirmao da nacionalidade. Para Toledo (2000) o futebol protagoniza contornos de um processo cultural de identificao, construdo e engendrado pelos diferentes agentes sociais em interao. Isto se deve apropriao inventiva, negociada, confrontada e conquistada pelos diversos agentes mobilizados em torno de sua prtica, ritual e cotidiana. O mesmo autor parte do pressuposto que o futebol pode ser pensado como um smbolo flutuante porque no produz consenso, ao menos na sua totalidade. Pode ser vislumbrado como um fenmeno cultural no qual todos articulam, com uma boa dose de especulao, cientificismo, magia e emoo, suas teorias e doutrinas. Os atores sociais investem determinados valores nas suas falas e saberes que, a sim, talvez produzam identidades em nveis diferenciados e segmentados. Por exemplo,

5 as formas e representaes estabelecidas no contexto futebolstico brasileiro de jogar carioca futebol-arte, e de jogar gacha futebol-fora. De fato, esse tipo de identificao varia, dependendo do contexto narrativo. Tais identificaes podem ser englobadas ou assumidas de modo que abarquem uma comunidade mais ampla. Giulianotti (2002), ao abordar o tema do estilo de jogo, afirma que os times do Rio de Janeiro so os verdadeiros pioneiros da esttica sul-americana, atravs de um estilo exibicionista e rtmico, fluindo entre a construo cuidadosa da conduo da bola e o ataque repentino. J as equipes do Rio Grande do Sul empregam uma abordagem mais uruguaia, jogando freqentemente com uma forte determinao de vencer, no importando os meios, e at utilizando a fora fsica como elemento principal.3 Partimos de uma narrativa identitria preexistente no Brasil que reconhecida por diferentes atores sociais do contexto futebolstico (jornalistas, torcedores, treinadores) entre os diferentes estilos presentes no futebol. Como as comunidades imaginadas, pouco importa se as narrativas coincidem ou no com as prticas. O que importa analisar a eficcia do discurso. Diante desses dois nveis de anlise dos processos de formao/construo de identidades ou identificaes,4 possvel afirmar que h uma massa de estudos afinados com o primeiro nvel de anlise, tanto no plano do debate acadmico quanto nas construes presentes na mdia. Boa parte das narrativas acadmicas e da mdia toma o futebol como espelho da essncia do ser brasileiro, tendo como lugar a singularidade das tcnicas corporais que distinguiriam o estilo de jogo (Soares & Lovisolo, 2003). Devido as inovaes tticas e tcnicas, no contexto da espetacularizao, da globalizao e da comercializao do esporte, at que ponto a insistncia na tradio

Observe-se que a interpretao de Toledo (2002) pode ser identificada nos atuais discursos dos profissionais de futebol no Brasil. O tcnico Abel Braga, numa entrevista concedida ao Jornal O Globo (09/05/2004), afirmou que o Flamengo para enfrentar o Vitria da Bahia, pelo Campeonato Brasileiro da 1 Diviso, deveria: marcar a gacha e atacar no estilo carioca. Corroborando com a imagem que a identidade do futebol brasileiro segmentada, Carlos Alberto Parreira, ex-tcnico da seleo brasileira, em entrevista ao programa Arena Sportv em 2004, afirmou que existem diferenas visveis entre os diversos estilos do futebol brasileiro. Trata-se de um pas continental, onde a identidade de cada estilo inevitvel, o que acaba por influenciar na seleo e deteco de talentos, na prpria ttica e na escolha do sistema de jogo. Parreira ainda acrescentou que algumas caractersticas so vitais no momento de identificar o perfil ideal de jogador: fora fsica; capacidade de improvisar; velocidade; habilidade tcnica; disciplina ttica; boa capacidade de marcar; driblador; que saiba preencher os espaos vazios, desmarcando-se com eficincia; bom de grupo e que saiba se relacionar; equilibrado emocionalmente; disciplinado e que saiba utilizar a catimba no momento certo. 4 Cuche (1999) acha importante a distino entre o conceito de identidade e identificao na medida em que o primeiro fornece uma idia mais esttica e fixa da identidade, j o segundo fornece uma imagem de processo mais ou menos fluido.

3

6 pode estar significando o sentimento de perda do futebol-arte, do estilo nacional, da alteridade num mundo globalizado? Aproximada da primeira perspectiva de anlise esboada aqui, a mdia em geral cumpre um significativo papel na construo e na manuteno da memria como uma das principais fontes de afirmao de identidades. No caso do futebol, a mdia apresenta a memria do futebol resgatando fatos, imagens, dolos, xitos e fracassos anteriores no sentido de construir uma tradio que refora a identidade do futebol brasileiro, servindo de elo entre as geraes dos aficionados pelo esporte. Como umas das guardis das tradies nacionais, a mdia valoriza e louva o jogo bonito, a jogada genial, particularmente essa sntese de sentido do estilo dito nacional que o drible, no raro envolvida pelas imagens de malandragem e ginga. Garrincha, o Rei do Drible, tornar-se- o smbolo mximo desse estilo que foi afirmado e reafirmado como expresso da prpria cultura e dos processos sociais de formao do Brasil. Sua biografia, escrita por Ruy Castro (1995), testemunha sua capacidade de ir alm das normas e regras, quer do esporte, quer da sociedade. A disciplina, como profissional e como cidado, no foi o lado forte de Garrincha. Observa-se que Garrincha apresentado como sntese do gnio do prprio povo que se expressa na arte do seu futebol. Outros jogadores do presente ou do passado tambm assumem essa marca do futebol alegre5, tal como ficou o epteto: Garrincha a alegria do povo; a alegria do povo uma marca resultante da identificao imposta pelos outros e da que o grupo afirma de si mesmo (Cuche, 1999). A mdia, quando se torna fonte desta memria, opera com esquecimentos essenciais na resignificao do passado, para garantir a continuidade e a atualizao da identidade nacional de tipo mais homogeneizante. Soares et al (2003), ao analisarem as narrativas jornalsticas de 1998 e 2002 que rememoram a Copa de 70, indicam que tais narrativas esquecem o papel da cincia, do treinamento fsico e do planejamento que estiveram fortemente marcados nos jornais da poca. O papel da Educao Fsica e da Medicina Esportiva esquecido a favor das narrativas identitrias do dom de nosso jogador.6 E, em ltima instncia, das narrativas sobre a comunidade imaginada no Brasil.

5 6

Ver Helal, 2003. Ver Souto, 2002.

7 No Brasil, o discurso romntico7 reafirma que o estilo de futebol brasileiro foi desenvolvido na vrzea ou nas peladas, com forte influncia dos afrodescendentes (Lovisolo & Soares, 2003). L que os talentos eram reconhecidos e detectados pelos olheiros8 para os times dos clubes. O talento se fazia sem planejamento, sem tcnica nem tcnicos, sem ordem nem disciplina imposta de fora; resultava da interao espontnea de jogadores, condies e cultura. Da liberdade para ser ele mesmo, para recriar e criar-se. O artista, quando visto como produto do dom, do talento, de uma formao extraordinria, excepcional, singular e inimitvel, estaria alm das normas que disciplinam os simples normais e mortais9. O futebol, ao longo de sua existncia, passou por inmeras adaptaes e modificaes10. Isto permitiu a dinamizao e a alterao radical nas formas e estilos de pratic-lo. Estas transformaes ocorreram em todos os aspectos da modalidade: tcnico, ttico, fsico, clnico, psicolgico, administrativo e at mesmo em suas regras. Hoje, no Brasil, os jogadores esto surgindo nas escolinhas, nos times de futsal, enfim, em atividades baseadas em normas e tcnicas, na disciplina e no respeito e, no raro, no treinamento sistemtico e intenso. Se assim for, mesmo os jogadores que sobressaem, que esto alm da mdia, tero uma socializao baseada no trabalho tcnico e disciplinado, e sero vistos mais como resultado de processos programados de formao do que da indeterminabilidade do talento ou do dom que se desenvolve no seio de uma cultura. Atualmente as condies de formao dos Clubes e das Escolas de Futebol estariam indo contra o discurso romntico do artista da bola, contra as narrativas identitrias? A responsabilidade profissional do jogador estaria ocupando o lugar do talento inato e, talvez, da identidade malandra?11 O jogo bonito passaria a ser visto como sendo produzido pelo treinamento? Observemos como os questionamentos contrapem as prticas hodiernas que ocorrem no futebol brasileiro e as representaes identitrias que a nao brasileira construiu sobre seu futebol.Sobre o romantismo conferir Berlin, 1982 e Campbell, 2001. Ocupao no mercado do futebol que descobrem e caam talentos. So espcies de headhunters. 9 Observemos que as relaes em pauta no so tpicas apenas do futebol brasileiro, outras realidades culturais partilham dos mesmos modos de entender a arte e o artista esportivo. 10 So cada vez maiores os recursos tecnolgicos utilizados (o material utilizado na confeco das chuteiras, camisas, bolas e luvas; a informtica; os testes de laboratrio; a utilizao de cmeras para filmagens dos jogos e edio de jogadas, entre outros) no sentido de interferir no processo de conduo e preparao das equipes, visando obter um desempenho mais eficiente dos jogadores. 11 Ver sobre identidade malandra (Soares, 1994).8 7

8 Desta forma, este estudo est estruturado em sete captulos. No segundo foram analisados os dilemas identitrios12 presentes nos discursos sobre os estilos nacionais a partir da relao entre futebol, cultura e identidade nacional. No terceiro captulo foi analisado o processo de constituio de uma identidade nacional e a construo de um estilo brasileiro de jogar futebol, especificamente a dualidade entre futebol arte e futebol fora. No quarto, foi realizada uma anlise da relao do conceito de talento com o contexto do futebol. No quinto captulo, o objetivo foi descrever e entender como ocorre o acesso e o desenvolvimento do fluxo de jogadores nas categorias de base do futebol brasileiro. O levantamento de informaes a respeito deste processo poder contribuir para a identificao da estrutura organizacional e o entendimento relacionado ao desenvolvimento deste processo. No sexto, o objetivo foi problematizar e analisar o discurso dos treinadores e observadores tcnicos do futebol referente aos critrios adotados no processo de deteco e seleo de talentos, nas diferentes etapas institudas nos clubes de futebol. Em que medida os estilos de jogo se transformam em critrios ou indicadores partilhados por profissionais responsveis pela deteco e seleo de jogadores. E, por fim, no stimo so destacadas as consideraes finais, em forma de concluso. importante ressaltar que o objetivo desta tese no propor nenhum modelo de deteco e seleo de talentos para o futebol brasileiro, mas compreender e interpretar os cdigos, os valores e o grau de proximidade e interao entre representaes identitrias e prticas no cotidiano do futebol, no que se refere aos processos utilizados pelos clubes para a identificao e seleo de jogadores nas categorias de base.

1.2. PROBLEMA

A construo de identidades no espao do futebol se d pela apropriao inventiva, negociada, confrontada e conquistada pelos diversos agentes mobilizados em12

Neste momento, nos preocuparemos com os dilemas arte em contraposio fora.

9 torno de sua prtica ritual e cotidiana. Segundo Toledo (2002), a apropriao cultural do futebol pode ser pensada a partir de trs naturezas que definem a atividade como esporte. A primeira delas ligada ao conjunto das regras, que so universalizadas, mas que no determina ou instrui totalmente as maneiras corporais de jogar. A segunda indica como, corporalmente, esse esporte pode ser apropriado em diferentes contextos culturais, revelando diferentes formas de jogar13, como uma espcie de segunda natureza. Tais naturezas estariam justapostas a uma terceira, identificadas nas representaes, nas narrativas, que consolidam as anunciadas escolas ou estilos de futebol14. Isto, teoricamente, acaba por determinar as maneiras de vivenciar o futebol praticado nas diversas partes do mundo, ou at mesmo de um mesmo pas ou de regies dentro do mesmo pas. Se a perspectiva analtica de Toledo correta, podemos pensar que a terceira natureza apontada pelo autor, as representaes e ou as narrativas sobre os estilos de jogo, possuem como objeto do discurso as tcnicas corporais (no sentido mausseano15) socializadas pelas diferentes maneiras de jogar que cada cultura pode elaborar. Assim, narrativas e prticas devem possuir algum grau de convergncia para se constiturem numa espcie de gramtica aberta que orienta a ao dos atores sociais. Neste percurso, podemos pensar que os atores sociais e as instituies do futebol (clubes, empresrios, olheiros e ou observadores tcnicos, etc.), no que se refere deteco e seleo de jogadores, orientam suas aes tendo como referncia a cultura futebolstica, local, regional ou nacional, em interao com as imagens do bom futebol partilhadas pelo grupo ou comunidade. A questo que se coloca a seguinte: asAs formas de jogar esto associadas a disposio os jogadores em campo, as estratgias, os sistemas de jogo, os tipos de marcao e zonas de marcao. 14 Modo pelo qual um determinado grupo se expressa e apresenta, de acordo com suas peculiaridades, produzindo uma maneira de praticar o futebol de acordo com certos princpios tticos, tcnicos, identitrios, culturais e sociais, refletindo sua identidade. 15 Maneiras como os homens, sociedade por sociedade e de maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos (Mauss, 1974). Percebe-se na afirmao de Mauss que se pressupe uma dada concepo de corpo, que o v como instrumento. No mbito das cincias sociais, a discusso sobre o corpo no nova. J em 1935, no texto As tcnicas Corporais, Marcel Mauss buscava mostrar como os corpos no so apenas biolgicos, mas construdos socialmente. Alm disso, ao utilizar o termo tcnicas corporais, o autor no estava apenas se referindo a determinadas tcnicas e as suas relaes com objetivos utilitrios, mas, tambm, chamando a ateno para os elementos simblicos que esto presentes em atos simples, como o caminhar. Isto pode ser identificado em outros aspectos relativos ao corpo, como, por exemplo, no caso especfico do futebol, o jogador ao utilizar seu corpo no ato de driblar. Isso nos permite compreender como as tcnicas do corpo so o resultado de uma aprendizagem constante do homem, influenciada por aspectos culturais da sociedade onde este homem se insere, atravs dos quais as sociedades e os grupos sociais tambm se distinguem uns dos outros, constituindo a sua identidade.13

10 representaes identitrias sobre o futebol brasileiro e seu estilo orientam as prticas no processo de seleo e deteco de talentos?

1.3. OBJETIVOS

1.3.1. Objetivo Geral

Descrever e analisar o processo de deteco e seleo de talentos instituda em sete clubes da primeira diviso do futebol brasileiro. Tal processo poder revelar as fronteiras, os dilogos, os enfrentamentos, as negociaes, as estratgias culturais e dos distanciamentos presentes neste campo profissional, comparando-as com as narrativas identitrias em nossa sociedade.

1.3.2. Objetivos Especficos Identificar em que medida os estilos de jogo se transformam em critrios ou indicadores partilhados por profissionais responsveis pela deteco e seleo de talentos. Analisar o grau de proximidade e interao entre representaes identitrias e prticas no cotidiano deste esporte. Levantar e analisar os critrios e representaes dos especialistas (tcnicos, observadores tcnicos e coordenadores tcnicos) que so utilizados na seleo de jogadores nas diferentes etapas institudas nos clubes de futebol. Descrever e analisar como se d o processo de seleo e deteco de jogadores nas categorias de base do futebol brasileiro.

11 1.5. METODOLOGIA

O plano terico-metodolgico foi construdo a partir do dilogo entre o debate acumulado pelas Cincias Sociais e pela Educao Fsica, para trabalhar conceitual e operacionalmente as noes de cultura e os processos de construo de identidade. Nesse sentido, inicialmente tomamos a distino indicada por Cuche (1999: 176) como um pressuposto de anlise:A cultura pode existir sem conscincia de identidade, ao passo que as estratgias de identidade podem manipular e at modificar uma cultura que no ter ento quase nada em comum com o que ela era anteriormente. A cultura depende em grande parte de processos inconscientes. A identidade remete a uma norma de vinculao, necessariamente consciente, baseada em oposies simblicas.

No plano terico realizamos uma anlise crtica da produo cientfica com o foco voltado para os conceitos cultura, aculturao, traduo e identidades no contexto ps-moderno da globalizao. Ainda neste plano, revisitamos e realizamos um levantamento da literatura scio-histrica, nacional e internacional, que trata da relao esporte, cultura e os processos de identificao social. No plano emprico, este estudo est caracterizado como uma pesquisa qualitativa, de natureza descritiva. Pela natureza dos procedimentos tcnicos utilizados, esta pesquisa consiste em um estudo de campo, sendo desenvolvida atravs da observao direta das atividades do grupo estudado e de entrevistas semi-estruturadas16 (Anexo I), com os atores sociais para captar suas explicaes e interpretaes do que na formao de jogadores de futebol no Brasil. A pesquisa teve como fonte sete clubes17, pertencentes primeira diviso do futebol brasileiro, situados na regio Sul, Sudeste e Centro Oeste que possuem institudos os processos de formao, deteco e seleo de talentos para o futebol profissional.

A entrevista semi-estruturada um instrumento no qual o entrevistador tem por objetivo obter informaes do entrevistado relacionadas a um objetivo especfico. Pode ser caracterizada pela formulao da maioria das perguntas previstas com antecedncia e sua localizao provisoriamente determinada. Na entrevista semi-estruturada o entrevistador tem uma participao ativa, apesar de observar um roteiro, ele pode fazer perguntas adicionais para esclarecer questes para melhor compreender o contexto (Colognese, S.A.; Mlo, J.L.B., 1998). Clube Atltico Paranaense-PR; Cruzeiro Esporte Clube-MG; Fluminense Fotball Clube-RJ; Gois Esporte Clube-GO; Grmio Foot-ball Porto Alegrense-RS; So Paulo Futebol Clube-SP e Sport Club Internacional-RS.17

16

12 A escolha destas regies se deu em funo, como pode ser visto na problematizao do estudo, da constatao dessas regies como possuidoras de escolas, estilos de jogo e culturas diferenciadas e do nmero de transferncias18 realizadas pelos Clubes dessas regies para o exterior (anexo II). So considerados clubes que contam com uma estrutura19 consolidada no mercado do futebol no que se refere s condies oferecidas para o desenvolvimento do planejamento de trabalho com as categorias de base. Os sujeitos deste estudo foram constitudos por trinta e oito (38) profissionais envolvidos diretamente com o desenvolvimento do processo de formao de jogadores, os quais sero denominados no transcorrer do texto de atores sociais. Realizamos entrevistas com os Coordenadores Tcnicos20, Treinadores das categorias Sub 15, Sub 17, Sub 20 e Observadores Tcnicos21 das categorias de base dos sete Clubes pertencentes a amostra da pesquisa. Os dados foram coletados atravs de entrevistas, realizadas pelo prprio pesquisador, nos centros de treinamento22, gravadas, transcritas na ntegra, e depois analisadas em triangulao com as observaes do trabalho de campo, com as imagens e contedos das entrevistas realizadas com os atores do campo, com a literatura tcnica e scio-antropolgica do futebol e com a experincia do pesquisador como professor e treinador de futebol. Cabe destacar, que como um de dentro, tentei, na medida do

18

Transferncias de Jogadores 851 jogadores transferidos em 2006. Fonte: www.cbfnews.com.br REGIO SUDESTE: 448 jogadores (So Paulo: 259; Rio de Janeiro: 93; Minas Gerais: 75; Esprito Santo: 21). REGIO SUL: 206 jogadores (Paran: 80; Rio Grande do Sul: 79; Santa Catarina: 47). REGIO NORDESTE: 109 jogadores (Alagoas: 29; Pernambuco: 20; Bahia: 18; Cear: 17; Rio Grande do Norte: 12; Maranho e Sergipe: 4; Paraba: 3; Piau: 2). REGIO CENTRO-OESTE:66 jogadores (Gois: 39; DF: 11; Mato Grosso: 10; Mato Grosso do Sul: 6. REGIO NORTE 22 jogadores (Acre: 6; Amazonas e Par: 5; Tocantins: 3; Rondnia: 2; Roraima: 1; Amap: 0).

Estes sete Clubes contam com Centros de Treinamento especficos para o desenvolvimento do trabalho com as categorias de base: campos para treinos, alojamento para os atletas, restaurante, academia de musculao, departamento mdico. Profissionais contratados pelos Clubes, responsveis pela coordenao do planejamento de trabalho das categorias de base. Profissionais contratados pelos Clubes, responsveis pela deteco e seleo de jogadores, por meio da observao direta em competies e nas diversas vias de acesso dos jogadores de futebol. Nas representaes nativas este profissional denominado de olheiro. Estrutura de recursos fsicos, humanos e materiais, disponibilizada pelos Clubes para o processo de formao de atletas de futebol.22 21 20

19

13 possvel, estranhar-me com o familiar. Acredito que esse esforo sempre atingido parcialmente. Esse estudo apresentou uma limitao quanto aos atores sociais. Na pesquisa de campo foram entrevistados os Observadores, os Coordenadores e os Tcnicos das categorias de base, ou seja, a representao dos discursos oficiais dos clubes, daqueles que esto no poder. Acredito que outros estudos poderiam dar voz aos demais atores sociais, entre eles, os atletas e empresrios.

14

CAPTULO II

CULTURA E IDENTIDADE NACIONAL

O objetivo deste captulo analisar os dilemas identitrios23 presentes nos discursos sobre os estilos nacionais, a partir da relao entre futebol, cultura e identidade nacional. O futebol, enquanto elemento fundamental nos contextos cultural, econmico e social, constitui-se em um instrumento valioso para a construo e para a formao de identidades. Isto se deve ao fato deste esporte ser considerado como um dos principais fenmenos que se articula com os processos identitrios, como o caso do Brasil, tendo um significado tradicional para muitos indivduos, na medida em que se tornou uma das principais fontes de identificao destes com seus respectivos pases. Para Giulianotti (2002), as anlises sobre futebol devem se basear no reconhecimento da atrao global da modalidade, produzindo uma paixo que se estende por todos os continentes. Conta com a participao ativa de seus adeptos, demonstrando sua importncia poltica e simblica atravs de sua centralidade cultural, j que o jogo pode contribuir, fundamentalmente, para as aes sociais e identidades culturais das diversas naes. A difuso do futebol, de acordo com Giulianotti, de um lado a outro do mundo, possibilitou que diferentes culturas e naes construssem formas particulares de identidade por meio de sua interpretao e prtica do jogo. Da mesma forma, para Hobsbawn (2002: 170-171), o esporte como um espetculo de massa, e apesar de suas infindveis controvrsias, simboliza os Estadosnaes, integrando parte da vida global, reforando a idia de que o surgimento dos esportes em geral, e principalmente o futebol, foi um aspecto importante e relevante no fortalecimento do ideal nacionalista:

23

Neste momento, nos preocuparemos com os dilemas arte em contraposio fora.

15Ocasies como os Jogos Olmpicos e partidas internacionais de futebol interessavam principalmente ao pblico de classe mdia (apesar de os Jogos Olmpicos j comearem a assumir ares de competies nacionais mesmo antes de 1914), e as partidas internacionais foram realmente organizadas com o objetivo de integrar os componentes nacionais dos Estados multinacionais. Eles simbolizavam a unidade desses Estados, assim como a rivalidade amistosa entre suas naes, reforava o sentimento de que todos pertenciam a uma unidade, pela institucionalizao de disputas regulares, que proviam uma vlvula de escape para as tenses grupais, as quais seriam dissipadas de modo seguro nas simblicas pseudolutas.

O futebol, como um local privilegiado de identificaes locais e nacionais, estruturou-se na configurao dos Estados nacionais, a partir do final do sculo XIX como fruto da expanso capitalista e dos projetos de modernizao, nem sempre consensuais ou planejados (Soares e Lovisolo, 1998), dos Estados ps-coloniais (Guttmann, 1994). possvel afirmar que esporte-moderno, identidade e nacionalismo sempre mantiveram uma estreita relao. Isto se deve ao fato de que o sentimento de unio dos atletas que representam o pas, em uma determinada modalidade de uma dada competio internacional, transforma-se nestas ocasies, na metonmia a parte que representa o todo - de uma nao. Esta situao acaba por reforar o nacionalismo, como foi o caso do futebol para o povo brasileiro. Neste sentido, o futebol alcanou um carter scio-histrico altamente desenvolvido, sendo que o processo no pode mais ser revertido. Est consolidado em praticamente todo o mundo, constitudo de diversos valores sociais, identitrios e culturais. No Brasil, em especial, integra amplas parcelas da sociedade, via identificao nacional. O futebol se transformou em um dos elementos mais valiosos na construo do imaginrio popular do que significa ser brasileiro. Toledo (2000) analisa que o futebol protagonizou os processos de descoberta da nossa identificao brasileira construdos pelos diversos agentes sociais em integrao. Para o autor, mais do que mero espetculo consumvel, o futebol consiste num fato da sociedade, linguagem franca de domnio pblico, dos fundamentos s representaes coletivas que reencanta a dimenso da vida cotidiana atravs da sua esttica singular. Soares (2004) ao analisar o futebol enquanto elemento de identidade nacional brasileira, estabelece que esse esporte funciona como um dado, entre tantos outros, recortado de nossa realidade e investido de significao paradigmtica na definio do que o Brasil como pas, e, do que somos como povo. Esse o discurso nativo e tambm de boa parte dos analistas sociais que tomam o futebol como objeto.

16 O conceito de identidade est diretamente relacionado auto-atribuio de uma determinada imagem, maneira de ser ou caracterstica que serve de espelho para a compreenso do mundo e de outros grupos sociais. A identidade, que se constri no interior das sociedades, compe diferentes formas de percepo pelos indivduos, norteando as relaes entre os grupos e entre as pessoas enquanto membros do grupo. Para Cuche (1999) a identidade uma construo que se elabora num modo de relao que ope um grupo aos outros grupos com os quais est em contato, sendo que na ordem dos modos de relao entre os grupos sociais que devemos tentar apreender o fenmeno identitrio (Barth, 1969). Na definio da identidade de um grupo, deve-se levar em conta o conjunto dos traos culturais distintivos, e a ento localizar entre esses traos aqueles que os membros do grupo utilizam para afirmarem e manterem uma distino cultural.(...) a diferena identitria no a conseqncia direta da diferena cultural. Uma cultura particular no produz por si s uma identidade diferenciada: esta ltima s pode resultar das interaes entre os grupos e dos procedimentos de diferenciao que esses grupos aplicam nas suas relaes. (Cuche, 1999:127-128).

Castells (2000) observa que as identidades constituem fontes de significado para os prprios atores sociais, por eles originadas, e constitudas por meio de um processo de individuao. Isto torna toda e qualquer identidade resultante de uma construo, que tem como objetivo organizar significados que se mantenham ao longo do tempo, em um determinado espao e em um contexto social e poltico fortemente marcado por relaes de poder. Poder-se-ia pensar, ento, que a identidade permite aos indivduos valorizar os smbolos de uma cultura especfica, possibilitando que o sujeito se identifique com as caractersticas de seu pas, internalizando-as e expandindo seus valores e significados como algo inerente sua condio nacional. Nesta linha de pensamento, Verdery (2000: 242)24 afirma que a identidade nacional existe em dois nveis: no sentimento do eu do indivduo como nacional e na identidade do todo coletivo em relao a outros da mesma espcie.

24

BALAKRISHNAN, G. Um mapa da questo nacional. Traduo: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.

17 O futebol compe de forma expressiva e significativa o contexto da cultura nacional, como o carnaval e o samba, marcas que, segundo Soares (1994) esto no discurso popular, refletindo o imaginrio social e a identidade nacional. Dentro desta perspectiva, DaMatta (1982) analisa que a literatura disponvel sobre o futebol no Brasil no deixa dvidas de que tal esporte, do modo como teorizado, discutido, vivido e praticado no Brasil, seria um modo especfico, entre tantos outros, pelo qual a sociedade brasileira fala, apresenta-se, revela-se, deixando-se, portanto, descobrir, reunindo valores tradicionais numa lgica universalista moderna:As apreciaes sobre futebol no Brasil so classificadas como discusses. No se fala simplesmente de futebol. Discute-se, toma-se partido, fala-se de modo srio. No se pode assumir uma atitude neutra quando se fala de futebol, mesmo para negar-lhe a importncia (DaMatta, 1982: 21).

Toledo (2000) analisa que uma das chaves para decifrar o enigma da construo da identidade nacional, via futebol, talvez esteja na prpria constituio dos diversos aspectos da nossa nacionalidade. Do modo como o futebol foi produzindo, para alm de uma identidade aparentemente homogeneizadora e consensual, os diversos encontros culturais entre as diferenas. possvel observar que, por mais que se fuja do senso-comum, quase todos os indivduos afirmaro que muito daquilo que so advm do fato de terem nascido em determinado pas, falarem determinada lngua e possurem os mesmos costumes O Brasil possui caractersticas que tornam complexa a definio do que vem a ser identidade brasileira, pois como afirma Hall (2000: 108), as identidades no so nunca unificadas, (...) nunca singulares, mas multiplamente construdas ao longo de discursos, prticas e posies que podem se cruzar ou ser antagnicas. A diversidade de raas e culturas, contemplando elementos indgenas, europeus e africanos, torna ainda mais difcil a busca por uma definio sobre o que vem a ser identidade nacional. As trs etnias envolvidas na constituio da nao brasileira, o branco, o negro e o ndio, no se caracterizavam pela homogeneidade. A variedade e a riqueza cultural so caractersticas de destaque no Brasil. Assim, ao se abordar o tema cultura, de uma comunidade especfica, deve-se levar em considerao a diversidade. A cultura, como estabelece Santos (1983), enquanto fenmeno expressivo e caracterstico das sociedades em geral, algo dependente da vida social, relacionando-se diretamente com a realidade onde existe e com todos os aspectos da vida social, sendo um produto coletivo da vida humana. Assim, como nada

18 do que cultural pode ser estanque a cultura faz parte de uma realidade onde a mudana um aspecto fundamental (Santos, 1983: 47). Desta forma, a cultura brasileira, por exemplo, formada por meio de traos das culturas europia, indgena e negra. No faz sentido considerar de forma isolada cada uma das formas culturais existentes em uma sociedade, o que nos leva a acreditar que a diversidade existente implica concluir que tudo relativo, de entender as realidades culturais no contexto da histria de cada sociedade, das relaes sociais dentro de cada qual e das relaes entre elas. Isto nos remete ao preconizado por Hall (2004), quando afirma que as identidades tm a ver com o uso que os indivduos fazem dos recursos disponibilizados pela histria, pela cultura e pela linguagem para a produo no daquilo que ns somos, mas daquilo no qual nos tornamos, e que a construo de identidades diz respeito ao modo como as sociedades tm sido representadas e ao modo como essa representao pode afetar a maneira de cada indivduo se apresentar. Soares (2004)25 ao abordar a relao entre os temas racismo, malandragem, identidade cultural e nacionalismo do brasileiro, analisa que:O esporte tal como se internacionalizou e instituiu as competies internacionais, tendo por base o Estado-Nao consolidado e emergente, permitiu por este tipo de "gramtica", altamente identificada com os estados-nao, a formao discursiva sobre a raa, o ethos, o "carter do povo", enfim, sobre a identidade de cada estado-nao. No caso do Brasil toda uma formao discursiva fez do futebol um espao de descoberta da alteridade. O futebol, junto com outras expresses disseminadas na cultura, tornou-se conscientemente um local de afirmao das singularidades, das qualidades e das deficincias (nos momentos da derrota) do povo. Sabemos que a raa, como uma categoria construda socialmente, pelo menos desde o sc. XIX foi central tanto para afirmar racismo quanto para louvar democracia racial. Neste ponto o futebol se tornou um espao privilegiado, ao longo da histria, que refletiu em diferentes momentos a tenso sobre nossa formao tnica, ou melhor, multicultural, no sentido de Stuart Hall. H uma narrativa sobre a raa presente na histria do futebol brasileiro.

Ao buscar uma definio do que seja identidade deve-se levar em considerao que tal noo um processo de produo e um efeito de discurso (Pcheux, 1990). Nesse sentido, sendo as identidades construdas no e pelo discurso, necessrio entend-las como produtos da histria e de instituies. no interior de prticas discursivas e pelo emprego de estratgias especficas que as identidades emergem (Pcheux, 1990: 82).

Entrevista de Antnio Jorge Gonalves Soares ao Boletim Brasileiro de Esporte Escolar. Goinia, Gois, v.01, n.07, dezembro de 2004.

25

19 Gerarce (2004:2), ao analisar o conceito de identidade, estabelece que a nao e a formao de uma cultura essencialmente nacional se expandem pelos sentidos histricos atribudas a ela e pelas representaes consensuais culturais e simblicas que possuem o poder de gerar um sentimento de identidade e lealdade:Portanto, pressupor uma cultura nacional construir um leque multifacetado de discursos que do sentidos, coerncia e organizao aos que se consideram possuidores de uma identidade nacional, pois atravs desses sentidos estabelecidos entre alguns elementos nacionais, o sujeito poder se reconhecer (identificar) com a nao.

Porm, a identidade nacional uma construo de um tipo mais generalizante das identidades das sociedades nacionais, por incorporar e integrar toda uma srie de identidades menores. Isso no significa como analisa Barbosa (1992), que a identidade nacional seja a mais importante que as pessoas possam desenvolver ou adquirir; identidade nacional apenas mais uma, entre um grande nmero de identidades possveis, que emerge em momentos especficos, quando o pas est em causa. Por isso, o tipo de identidade que sempre aparece mesclada a outros tipos de questes, como cidadania, patriotismo, entre outros fatores, pois atravs dela que nos definimos. Um bom exemplo o tipo de identidade que emerge quando da disputa da Copa do Mundo de Futebol. Nesse momento, toda a diversidade interna da sociedade brasileira dissolvida e anulada em face da nossa identificao com a seleo nacional (Barbosa, 1999). Nesse momento, as outras identidades, construdas tendo como base a etnia, o gnero e/ou a classe so absorvidas e homogeneizadas pela identidade construda tendo como base a nao brasileira. O processo de formao de identidade no se estabelece de forma aleatria, implica uma afirmao de ns perante os outros. Quando algum grupo social, ou um indivduo, enquanto membro de um determinado grupo se define ou se atribui determinadas caractersticas, ele o faz atravs de um processo de comparao, explcita ou implcita, de si com os outros grupos do mesmo teor. A identidade surge por oposio, jamais se afirma isoladamente (Barbosa, 1999). fundamental observar, contudo, que os contrastes, as oposies, os lugares mutuamente definidos no se encontram numa posio igualitria, os elementos no se apresentam num plano equivalente de valor (Barbosa, 1999). A cada atribuio corresponde um peso, dado pelos grupos envolvidos, pois os mecanismos de poder e dominao so aspectos fundamentais dessa dinmica, e so constitutivas dessas respectivas atribuies e construes.

20 Se Max Weber estabelece que o homem um animal que vive preso a uma teia de significados por ele mesmo criada26, pode-se considerar que a cultura um sistema de smbolos e significados. Para Geertz (1989), a cultura nunca particular, mas sempre pblica. Os elementos que constituem as teias propostas por Weber, no tm criadores identificveis. Os fatos inovadores nascem e evoluem numa reproduo espontnea e despercebida dos agentes culturais. Como um sistema de signos passveis de interpretao, a cultura no um poder, algo ao qual podem ser atribudos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituies ou os processos (Geertz, 1989). Ela um contexto, um fenmeno natural e social, cuja gnese, manuteno e transmisso esto a cargo dos atores sociais. Para Hall (2000: 51-52):As culturas nacionais so compostas no apenas de instituies culturais, mas tambm de smbolos e representaes. As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a nao, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos esto contidos nas estrias que so contadas sobre a nao, memrias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela so construdas.

Na viso de Balakrishnan (2000: 213):Toda nao tem seu prprio conjunto de imagens, seus deuses, anjos, demnios ou santos, que vivem nas tradies dela, e cujas histrias e feitos so contados pela ama-seca aos que esto sob seus cuidados, assim os conquistando ao lhe impressionar a imaginao (...). Alm dessas criaturas imaginrias, na memria da maioria das naes, especialmente das naes livres, vivem tambm os antigos heris da histria de seus pases. (...) Esses heris no vivem apenas na imaginao de suas naes; sua histria, a recordao de seus feitos, liga-se a festivais pblicos, competies nacionais, a muitas das instituies internas ou assuntos externos do Estado, a casas e bairros famosos, com monumentos e templos pblicos.

O nacionalismo anterior idia de nao, pois se o primeiro envolve sentimentos, a segunda os legitima e, a partir deles, se institucionaliza. Nessa perspectiva, Hobsbawn (2002) afirmar, ao analisar a constituio dos Estados-naes que, a base dos nacionalismos se assemelha com a presteza com que as pessoas se identificam emocionalmente com a sua nao. Neste contexto, pode-se exemplificar tal afirmao com o jogo realizado em 22 de junho de 1986, no Estdio Asteca, onde Argentina e Inglaterra disputaram uma vaga para a semifinal do 13 Mundial. Ao final, vitria argentina: 2x1. Este confronto foi considerado pelos argentinos como o jogo da vingana. Um pouco antes de a partida comear, diante da espera de 115.00 expectadores, uma corrente entre os jogadores no

26

Geertz, Clifford. A interpretao das Culturas. Zahar. Rio de Janeiro, 1973, p.15.

21 vestirio tomou a partida como a possibilidade de redeno depois da trgica derrota para a Inglaterra nas Malvinas, quatro anos antes. Maradona foi um dos muitos naquela equipe a sentir o jogo como uma responsabilidade nacional e, talvez, inconscientemente, a assumir a idia de que o futebol a continuao da guerra por outros meios:Era mais do que ganhar uma partida era mais do que tirar a Inglaterra do Mundial. Ns, de alguma maneira, considervamos culpados os jogadores ingleses por tudo que ocorreu, por tudo que o povo argentino havia sofrido na Guerra das Malvinas. Sei que parece uma loucura, um disparate, mas era, de fato, o que sentamos. Era mais forte que ns: estvamos defendendo nossa bandeira, os rapazes mortos, os sobreviventes... Por isso, creio, meu gol teve tanta transcendncia. (Agostino, 2002: 139).

Porm, nos dias atuais, comum encontrarmos autores que apontem a existncia de uma crise das identidades tradicionais. Ao tratar da questo identitria na psmodernidade, Hall (2004) afirma que as identidades modernas esto sendo descentradas, ou seja, passam por um processo de deslocamento ou fragmentao. De acordo com Hall (2004: 67-68) a globalizao est deslocando as identidades culturais nacionais:(...) como argumenta Anthony McGrew (1992), a globalizao se refere queles processos, atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizaes em novas combinaes de espao-tempo, tornando o mundo, em realidade e em experincia, mais interconectado. A globalizao implica um movimento de distanciamento da idia sociolgica clssica da sociedade como um sistema bem delimitado e sua substituio por uma perspectiva que se concentra na forma como a vida social est ordenada ao longo do tempo e do espao (Giddens, 1990, p.64). Essas novas caractersticas temporais e espaciais, que resultam na compresso de distncias e de escalas temporais, esto entre os aspectos mais importantes da globalizao a ter efeito sobre as identidades culturais.

A globalizao do futebol exigiu uma alterao na organizao de suas formas e tambm dos grandes clubes do futebol mundial, em especial, os espanhis, os italianos e os ingleses. importante remetermos ao preconizado por Giulianotti (2002: 9), quanto diviso do futebol em trs fases:A tradicional, ou pr-moderna, onde vestgios da era pr-industrial ou pr-capitalista so ainda muito influentes, (...) de modo geral, isso envolve a aristocracia ou a classe mdia tradicional; (...) a modernidade, relacionada rpida urbanizao e ao crescimento poltico da classe trabalhadora (...), em matria de lazer (...) ocorre a diviso entre alta cultura (burguesa e legitimada) e baixa cultura (operria e popular), sendo que o futebol passa a ser um marco desta ltima categoria; (...) e a ps-modernidade, marcada pela dimenso crtica ou pela rejeio real da modernidade (...), as identidades sociais e culturais tornam-se cada vez mais fluidas e neotribais em suas tendncias de lazer (...). A globalizao dos povos, da tecnologia e da cultura d origem a uma cultura hbrida e a uma dependncia econmica das naes em relao aos mercados internacionais.

22 Neste contexto, uma das caractersticas principais da globalizao, de acordo com Hall (2004), a compresso espao-tempo, a acelerao dos processos globais, de forma que se sente que o mundo menor e as distncias mais curtas, que os eventos em um determinado lugar tm um impacto imediato sobre pessoas e lugares situados a uma grande distncia. Nesta linha de pensamento, torna-se necessrio refletir e analisar como o futebol se insere neste processo global, na medida em que, sendo considerado um dos esportes mais populares do mundo, ele no fica isento s transformaes que esto ocorrendo. A tendncia da globalizao da cultura na modernidade teve tambm nos esportes um veculo de encontro, de trocas, de apropriaes entre os diferentes Estados-Naes (Hall, 2003). Os esportes, especialmente o futebol27, possibilitaram que os pases da Amrica Latina participassem do mercado das naes. Vieira (2004) destaca que de 1990 a 2004 atingimos o pice do crescimento e do processo de globalizao do futebol. Agora, o futebol transcende as barreiras das distncias e dos plos comerciais e econmicos mundiais, assistimos, torcemos e nos familiarizamos com campeonatos, times e jogadores do mundo inteiro. De acordo com Soares & Lovisolo (2002), na Copa de 2002, quase todas as selees tinham jogadores que atuavam nos pases da Europa, o maior mercado do futebol e que rene o que de melhor existe no mundo. Sob este ponto de vista, podemos considerar que presenciamos uma copa europia na sia. Quase todas as nacionalidades e etnias esto na Europa representadas por seus jogadores: africanos, brasileiros, argentinos, uruguaios, coreanos, japoneses, curdos, etc. O intercmbio de treinadores tambm constante. Jogadores com diferentes caractersticas de jogo (dribladores, marcadores, etc), independentemente da nacionalidade, esto nessa vitrine da excelncia do futebol. Esta afirmao pode ser tambm confirmada por Soares e Helal (2004: 269):(...) De fato, o futebol como narrativa nacional perde fora se observarmos que, nesta ltima Copa, 48% dos jogadores estavam atuando na Europa, independentemente de sua nacionalidade. Neste Mundial, houve um aumento da ordem de 16% em relao ltima Copa. O mercado tambm se expressa entre o centro e a periferia no futebol, se compararmos que a Europa teve 529 atletas, contra 84 da Amrica do Sul, mesmo se considerarmos que nas oito edies do evento esses continentes possuam, antes da vitria do Brasil, oito ttulos cada. A estrutura da Federao Internacional de Futebol Associao (Fifa), principalmente durante a gesto de Jules Rimet (1921-1954), internacionalizou-se e acabou por organizar um mercado transnacional do esporte. Disponvel em http://www.fifa.com.27

23 Na Copa da Alemanha em 2006, dos 736 jogadores inscritos, 345 jogavam nos cinco principais campeonatos europeus. Da mesma maneira, 15 dos 32 tcnicos treinavam selees de pases onde no nasceram. Alguns, como Zico, no Japo, mudaram conceitos e adotaram sistemas de jogo desconhecidos para os atletas locais, como por exemplo, a adoo do 4x4x2. Com esse intercmbio, natural que as formas de jogar se tornem semelhantes. Tosto (2006)28 dentro desta linha de pensamento analisa que:Com a globalizao e o mundo ps-moderno, cada dia mais pessoas se sentem pertencentes a um mundo sem ptria, econmico e virtual. Esse sentimento ainda mais comum no futebol com a presena de jogadores de vrios pases em um mesmo clube. Na Copa de 2006, mesmo sem serem naturalizados, cerca da metade dos treinadores das selees nasceu em outros pases. Progressivamente, diminui em todo o mundo o orgulho e a alegria de se fazer parte de uma nao. Isso ainda no problema na Seleo Brasileira. No futuro, haver chuteiras sem ptria, em vez de ptria de chuteiras, como escreveu Nelson Rodrigues.

Este fenmeno da globalizao, de acordo com Parreira29, acabou por nivelar o futebol e conseqentemente os clubes e selees, no que se refere principalmente s formas de jogar. Considerando a evoluo dos componentes fsicos e tticos, talvez seja possvel perceber que o futebol tenha atingido uma padronizao nas formas de jogar. Se o futebol comeara a ser incorporado como um dos elementos da nacionalidade brasileira a partir dos anos 30 e 40, nas dcadas posteriores aos anos 50 que ele se sagra definitivamente como esporte nacional e o Brasil como a terra do futebol, graas s vitrias da seleo brasileira em 58, 62 e 70. De acordo com Moura (1998) a constituio do futebol como esporte est estreitamente ligada, tanto no Brasil quanto na Europa, industrializao e ao surgimento das grandes cidades:O futebol, como uma necessidade de aproveitamento esportivo nas horas livres, no pode ser desvinculado das condies histricas que marcaram o fim do sculo XIX e o incio do sculo XX. Porm, somente nas primeiras dcadas do sculo XX que comea a popularizao do esporte. Sua democratizao e consagrao como elemento da cultura nacional d-se nos anos de 1930, quando ocorre a profissionalizao em 1933 (Moura, 1998: 19).

Para Soares e Salles (2002) a partir dos anos de 192030 os bons resultados do futebol brasileiro e o processo de massificao desta prtica foram englobados nas narrativas de construo nacional. E a partir dos anos 30, o futebol legitima-se comoColuna Tosto, Jornal do Brasil, 20-11-2006. Caderno de Esportes. Entrevista no Programa Linha de Passe do Canal Sportv, no dia 12/04/2004. 30 As vitrias mais expressivas do futebol brasileiro neste perodo foram o Sul-americano de 1919 e a Copa Rio Branco em 1932.29 28

24 pura expresso da nacionalidade nas narrativas de Mrio Filho, Jos Lins do Rego, Gilberto Freyre e outros jornalistas, intelectuais e literatos. O estilo marcado pela virtuose individual comeou a ser cantado como marca de singularidade que o Brasil teria imprimido ao modelo anglo-saxo de futebol. Desta forma, como estabelece Rodrigues (2004), muitos dos estudos referentes ao futebol brasileiro preconizam que o sucesso do Brasil se legitimou via atributos raciais do negro e da miscigenao. Entretanto, deve-se considerar que algumas narrativas acerca da forma brasileira de jogar futebol so essencialmente mticas, verdadeiras vises romnticas sobre o futebol e a cultura brasileira. Soares (2003: 160) analisa que:No Brasil, o processo de inveno da nao ou das singularidades de nosso povo (miscigenao, samba, futebol, culinria etc.) vem de uma tradio iniciada por Varnhagen em 1850 e que vai ter em Freyre e nos anos trinta a mais forte expresso desses sentimentos (Reis, 1999). , portanto, importante que retomemos Freyre para refletirmos sobre boa parte da historiografia e das anlises sociolgicas do futebol brasileiro, reconhecendo que sob a aspirao das novas elaboraes encontramos a reiterao dos elementos de uma tradio de interpretao da cultura e da identidade brasileira.

Assim, influenciado entre outros, por Gilberto Freyre, o sucesso do futebol brasileiro pode ser explicado, como afirma Machado (2000), em funo do carter mestio do povo, revestindo o esporte de uma alma brasileira ligada a idia de um encontro idealizado entre brancos, negros e ndios, base da noo de democracia racial como ideologia. Essas explicaes racistas exacerbam o lado positivo do nacionalismo e associam o futebol constituio tnica da populao e da nao que, para elas, antecede a prpria histria nacional. Entretanto, Pereira (2000: 17) destaca que:Mais do que um meio de afirmao da identidade entre os brasileiros, como nas disputas realizadas pelo selecionado representativo do pas, o jogo ganharia ento em contornos de um esporte tido como autenticamente nacional. Na base desse processo estava um movimento mais geral, que tinha em Gilberto Freyre um de seus artfices principais. Passando a ver a herana negra do pas no mais como um problema, mas como uma grande vantagem, esse movimento levantava para os times brasileiros a possibilidade de construo de um modelo de futebol. Ao naturalizar nos negros e mestios caractersticas tidas como imanentes sua raa, como a ginga e a malandragem, firmava-se a viso que fazia do futebol praticado no pas a juno da tcnica e da disciplina europia com a malemolncia africana, na constituio de um modelo verdadeiramente brasileiro de lidar com a bola.

Nesta mesma linha de pensamento, Gil (1994) relaciona o futebol com a criao de um dos aspectos da nao brasileira, demonstrando como a imagem do futebol-arte

25 se vincula com a idia de povo brasileiro harmonicamente miscigenado. Isto se deve a uma feliz associao entre negros, brancos e mulatos, de tal modo que a partir do futebol elaborou-se uma viso essencialmente mestia de nossos jogadores e de nossa cultura. O jornalista Mrio Filho e seu livro O Negro no Futebol Brasileiro (NFB), de 1947, sempre foram referncias de pesquisa da histria do futebol brasileiro. Mrio Filho difundiu a idia de que o negro teria sido o criador da ginga, do drible, do estilo brasileiro de se jogar futebol. Porm, Soares (2001) afirma que a utilizao, a posteriori, do livro de Mrio Filho pelos cientistas sociais criou uma espcie de interpretao nica, muito ajustada com os ideais da construo de uma nao brasileira com menos antagonismos entre as raas, e que a anlise acaba em muitos dos casos por reforar a viso nativa. Para Soares (2001), Mrio Filho estava ajustado aos ideais de afirmao da identidade nacional, um discurso prprio da poca. Neste sentido, os intelectuais pegaram o NFB e jogaram um holofote sobre a questo racial para criar um discurso, transformando o negro no criador do drible, da ginga, do futebol arte. Franzini (2000), ao analisar esta temtica, analisa que atento ao processo de massificao do futebol, e principalmente mistura integradora de raas e classes sociais que ela promovia nos gramados, Gilberto Freyre, em Casa-Grande & Senzala, faz uma afirmao corajosa de crena no Brasil, no mestio e no negro, na medida em que Freyre pensava o Brasil em termos culturalistas. Assim, o caldeiro cultural que caracterizava o Brasil, era seu principal vigor. Eram trs culturas, convivendo em um mesmo lugar. J em Sobrados e Mucambos31 o autor, mais que constatar um fato que vinha ocorrendo h pelo menos duas dcadas, sugere que tal ascenso do mulato no meio originalmente elitista e europeizado do nosso futebol implicava uma significativa mudana na forma de pratic-lo aqui nos trpicos: o seu abrasileiramento. Observemos, nas anlises de Freyre, sua preocupao com a questo da identidade nacional. Em vrios momentos de sua obra, percebem-se tentativas de valorizao do negro e do mulato na formao social e cultural brasileira. Neste contexto, Gilberto Freyre estabeleceu uma relao entre futebol e fundao da identidade nacional:

Livro, considerado por Freyre, como diz em seu prefcio, uma continuao dos estudos apresentados em Casa-Grande & Senzala.

31

26Acabou de se definir de maneira inconfundvel um estilo brasileiro de futebol, e esse estilo uma expresso a mais do nosso mulatismo gil em assimilar, dominar, amolecer em dana, curvas ou em msicas, as tcnicas europias ou norte-americanas mais angulosas para o nosso gosto: sejam elas de jogo ou de arquitetura. Porque um mulatismo o nosso, psicologicamente, ser brasileiro ser mulato, inimigo do formalismo apolneo sendo dionisaco a seu jeito, o grande mulato(Freyre, 1945: 432).

E, ainda ressaltou:O mesmo estilo de jogar futebol me parece contrastar com o dos europeus por um conjunto de qualidades de surpresa, de manha, de astcia, de ligeireza e ao mesmo tempo de brilho e de espontaneidade individual em que se exprime o mesmo mulatismo de que Nilo Peanha foi at hoje a melhor afirmao na arte poltica. Os nossos passes, os nossos pitus, os nossos despistamentos, os nossos floreios com a bola, alguma coisa de dana e capoeiragem que marcam o estilo brasileiro de jogar futebol, que arredonda e s vezes adoa o jogo inventado pelos ingleses e por eles e por outros europeus jogado to angulosamente, tudo isso parece exprimir de modo interessantssimo para os psiclogos e socilogos o mulatismo flamboyant e, ao mesmo tempo, malandro que est hoje em tudo que afirmao verdadeira do Brasil (Freyre, 1945: 432).

Gomes (2000), ao analisar o pensamento de Gilberto Freyre destaca que um fato chama a ateno de imediato nos textos sobre o futebol brasileiro: a exaltao ao negro. Gilberto Freyre entende que o estilo brasileiro de jogar futebol deve-se influncia negra. Entretanto, dentro desta questo uma outra surge como derivada, qual seja, a pouca ateno dada pelo autor s influncias indgenas. Freyre restringe o estilo brasileiro em funo das influncias culturais e raciais africanas, sendo que a brasilidade futebolstica pode ser definida a partir da contraposio entre um padro de cultura apolneo (formal, racional, ponderado), que seria prprio dos europeus, e outro dionisaco (individualista, emocional, impulsivo), caracterstico da nossa ndole mulata. Gomes (2000) afirma que a descendncia no um fator determinante, e tambm que o contexto scio-cultural em que os indivduos se inserem mais complexo que simples adjetivos reducionistas (apolneo e dionisaco). Esta vinculao do estilo dionisaco raa negra e o do estilo apolneo raa branca acaba por vincular ao dionisaco a ginga, conseqentemente uma maior habilidade no futebol. Nota-se que a cultura/raa indgena deixada margem desta discusso. Esta mesma anlise pode ser transferida para a Argentina, visto que aquele pas apresenta uma miscigenao entre apolneos (europeus) e amerndios32. Desta forma, seguindo a anlise de Freyre poder-se-ia chegar concluso de que os argentinosArchetti (1998) apresenta esta miscigenao entre europeus e indios na Argentina em artigo referente ao imaginrio do futebol deste pas.32

27 possuram um estilo de jogo sem a dana dionisaca do negro brasileiro, em virtude da pouca relevncia do ndio. Archetti (1998) analisa que a miscigenao tambm vista como um fator positivo, sendo apresentada como responsvel pela espontaneidade e pela qualidade tcnica do futebol argentino. Deve-se ter bem claro que esta miscigenao evocada fundamenta-se na predominncia dos imigrantes latinos. Entretanto, bom ressaltar que na miscigenao ocorrida na Argentina, no aparece a figura do negro. Porm, Archetti acrescenta que esta oposio entre dionisaco e apolneo pode ser identificada no contexto argentino. O futebol britnico era visto como disciplinado, metdico e baseado na coletividade, na fora e no poder fsico, portanto um estilo maqunico. J o futebol argentino miscigenado, graas influncia latina, apresentava-se como individualista, com menor disciplina, com maior inquietude e baseava-se no esforo pessoal, na agilidade e no virtuosismo. Observa-se ento, como o apolneo equipara-se com o maqunico, assim como o dionisaco equipara-se ao criollo (como era/ chamado este jogador mestio na Argentina). Gomes (2000) ainda reitera que ao mesmo tempo em que a tese de Freyre foi reducionista, ela apresentava uma anlise de determinados aspectos super generalizadora. O jogador negro apresenta-se nos textos de Freyre como a nica possibilidade de um requinte tcnico frente ao apolneo jogador europeu. Ou seja, reduzia-se o fenmeno futebol ao negro e generalizava-se a pouca habilidade do jogador branco. Soares (2002) analisa que possvel notar, na opinio de Freyre, uma das muitas evidncias que existem para demonstrar como foi construda uma histria da identidade brasileira, via futebol. No entanto, no se pode tomar tal opinio como um argumento que legitime ou explique o sucesso do futebol brasileiro via integrao racial, miscigenao ou embate racial no futebol. Apesar de muitos dos estudos sobre o futebol brasileiro aceitarem essas premissas, suas narrativas acabam naturalizando, essencializando e legitimando tal construo social atravs de uma histria que se explica pelos atributos raciais do negro e da miscigenao. Para Manhes (2002), o mulatismo, a afirmao verdadeira do Brasil, no dizer de Freyre, conflitavam com o desejo e a necessidade dos setores dominantes em disciplinar a sociedade. Ao mesmo tempo em que era enaltecido o brilho do esporte nacional advindo de uma espontaneidade individual, caracterstica de uma suposta

28 brasilidade, se tornava necessrio uma organizao que imprimisse disciplina a essa vontade criadora. A narrativa da arte em oposio fora se vale de representaes tnicas da arte dos negros e a partir da, via Freyre, comea a construo positiva da identidade brasileira, em oposio a idia da representao da fora, pensada sobre os brancos europeus. So as constituies sobre esses povos que, em ltima instncia, vo determinar as representaes nacionais sobre o estilo brasileiro. Poder-se-ia pensar que tal estilo adaptado aos diversos pases, de acordo com suas peculiaridades, apesar do futebol possuir regras uniformizadas. No Brasil, o estilo nacional de jogar futebol comeou a ser consolidado a partir de 1930, quando da participao em Copas do Mundo, e dos confrontos com equipes de outros pases. Mas o estilo brasileiro s vai conseguir consagrar-se internacionalmente a partir da vitria na Copa do Mundo da Sucia em 1958. Para Hobsbawn (2002) o esporte tornou-se uma expresso de luta nacional, com os esportistas representando seus Estados ou naes. A Copa do Mundo de futebol surgiu em 1930 e se transformou em um momento competitivo que serviu e serve para a auto-afirmao nacional e a emerso de sentimentos nacionalistas. Neste sentido, Helal e Soares (2004: 260) analisam que:Mesmo diante desse processo de fragmentao das identidades nacionais, da formao de outras formas de identificao hibridas, dos processos de resistncias e de reforo das identidades locais, a Copa do Mundo ainda traz uma estrutura narrativa que representa os nacionalismos afirmados entre os sculos XIX e XX.

Os anos 30, de acordo com Franzini (1998), so caracterizados como um momento decisivo na relao entre o futebol e a sociedade brasileira. Enquanto o meio poltico-cultural comeava a redefinir as concepes acerca do nacional, a popularidade do futebol era impulsionada tanto pelo desenvolvimento do rdio, como meio de comunicao de massa, quanto pela oficializao do profissionalismo dos jogadores, fato que transformou o jogo em trabalho, modificando as relaes dos jogadores com os clubes. O futebol concretizou-se como um instrumento de integrao e ascenso scioeconmica para as camadas populares historicamente excludas, bem como se tornou um dos elementos que viriam a caracterizar a identidade nacional brasileira. Helal & Gordon (1999) identificaram que sem o profissionalismo no haveria meios pelos quais os extratos scio-econmicos inferiores pudessem fornecer

29 sistematicamente jogadores de futebol com o devido preparo atltico para competir em torneios oficiais, organizados pelas ligas. De acordo com Ribeiro (2002), esta profissionalizao correspondia a um movimento cultural e poltico mais amplo, envolvendo tanto os interesses de disciplina social do Estado, a dinmica especfica do futebol, quanto um clima cultural, que perpassava toda a sociedade, de produo de uma identidade nacional forte. Existia uma tenso entre a tradio elitista e amadora dos primrdios da prtica esportiva e a necessidade de regulamentar nos clubes, numa conjuntura de popularizao do futebol, a participao cada vez mais crescente de jogadores remunerados, em sua maioria de origem pobre e negra. Pereira (2000) destaca que, ao transformar o esporte em uma prtica definidora da identidade nacional, fez com que os brasileiros se auto-representassem como mestres do futebol, a partir da suposio de um talento para o jogo que, aparecendo como uma caracterstica quase natural, confirmaria e daria um sentido inquestionvel ao sentimento de identidade que une os brasileiros do pas. A reafirmao do nacionalismo, atravs do esporte, ganhou maior destaque no fim do sculo XIX, exatamente quando o futebol foi difundido, chegando a diversos pases, em muitos dos quais se haviam constitudo federaes nacionais. Segundo Giulianotti (2002, p.42):A difuso internacional do futebol, durante o final do sculo XIX e o incio do sculo XX, ocorreu quando a maior parte das naes na Europa e na Amrica Latina estava negociando suas fronteiras e formulando suas identidades culturais.

Em um breve espao de tempo, o futebol estabeleceria uma rotina prpria, firmada pela comercializao, pelo ciclo das competies, pelo papel na integrao social e nacional, caracterizado, de acordo com Hobsbawn (1997), como uma das tradies inventadas no curso do sculo XIX.

2.1. A FIFA NO PROCESSO DE IDENTIDADE CULTURAL Ao considerarmos o processo de modernizao, a criao da Fdration Internationale de Football Association (FIFA) em 1904, na cidade de Paris na Frana, e a conseqente difuso do futebol foram fenmenos, que podem ser considerados prvios atual onda globalizadora.

30 A FIFA foi concebida no pice do nacionalismo europeu (1904), tendo atualmente 20733 Associaes nacionais afiliadas. Sua fundao tinha como misso torn-la uma instituio de natureza internacional, j que seus membros so confederaes representantes dos estados nacionais. A FIFA tem um papel fundamental na difuso e na popularizao do futebol, especialmente transformando a modalidade em um dos maiores produtos da economia mundial do final do Sculo XX. Um dos objetivos bsicos desta organizao internacional foi, e tem sido alm de homogeneizar, normatizar e promover a prtica do futebol entre as naes, a de organizar competies esportivas, a exemplo da Copa do Mundo, em que se confrontam representaes nacionais, possibilitando que as identidades possam ser vivenciadas a partir do enfretamento entre as selees. Parece surpreendente a afirmao de que existem mais pases filiados FIFA do que Organizao das Naes Unidas (ONU):Parte indelvel desta realidade configurou-se na segunda metade do sculo XX, quando o mundo assistiu a um fluxo ininterrupto da formao de novas naes, resultado do processo de descolonizao afro-asitico. Neste momento, para aqueles que lutavam pelo direito de autodeterminao, ficava claro o quanto valia o reconhecimento de uma Federao esportiva como um dos componentes essenciais da afirmao da soberania. 0 futebol atingiu uma projeo bastante relevante, sendo um dos elementos decisivos na formao da identidade nacional que se seguiu imploso dos velhos imprios. (Agostino, 2002: 202).

Somente em 1930, aps superar inmeras resistncias nacionais, a FIFA conseguiu efetivar a idia de um torneio mundial, que pudesse congregar todos seus filiados: a Copa do Mundo de Futebol.

2.2. AS COPAS DO MUNDO DE FUTEBOL E A RELAO COM OS PROCESSOS DE CONSTRUO DE IDENTIDADE. A Copa do Mundo de Futebol assumiu o papel de fato social total34, passando a despertar um interesse determinante no aparelho estatal, no s pela popularidade do futebol, mas tambm pela fora que o espetculo esportivo representava em uma sociedade de massas, conferindo inmeras possibilidades de ritualizao da fidelidadeDados disponibilizados em www.fifa.com. Acesso em 01/06/2007. Como assinala M. Mauss, fato social total aquele no qual vemos em funcionamento traos ou vestgios das instncias fundamentais da sociedade: familiar, educativa, poltica, econmica, religiosa e recreativa. (Costa, 2004, p.56).34 33

31 nacional e da legitimao da ordem existente. Tambm era capaz de promover a unidade na diversidade, propiciado pelas experincias coletivas em torno da afirmao da identidade nacional. Desta maneira, como afirma Costa (2004: 56):No ser difcil verificar que o futebol apresenta em sua prtica diversos traos e vestgios destas seis instncias fundamentais da sociedade: familiar, educativa, poltica, econmica, religiosa e recreativa. Mas, na sua estrutura mais profunda e nos ideais que precederam ao seu aparecimento, o futebol, funciona tambm como um fenmeno verdadeiramente planetrio, vivido da mesma maneira no universo inteiro, instaurando festas e celebrando acontecimentos capazes de unir toda a humanidade numa comunho universal que nenhum outro fato capaz de conseguir.

Esta afirmao pode ser confirmada por Vieira (2004) ao analisar que:(...) A FIFA e as Copas do Mundo so essenciais propagao do futebol e a forma que interagem com os interesses de diversas naes. A soma destes mecanismos com outras situaes scio polticas (guerras, catstrofes, tipos de governo) preenchem de forma frtil as explicaes a cerca dos motivos e meios da massificao e globalizao do futebol contemporneo. A copa do mundo de futebol tem uma especificidade no encontrada em outros esportes. Enquanto a maioria das modalidades tem nas Olimpadas o seu momento mximo, no futebol isso ocorre apenas nas Copas do Mundo. Ser campeo Olmpico de futebol no fornece o mesmo status e reconhecimento do que ser campeo mundial. Pois, nas olimpadas, existe uma limitao na convocao de jogadores, as selees nacionais no podem ser compostas em sua maioria por jogadores acima de 23 anos, majoritariamente ela deve ser constituda por jogadores que estejam abaixo desta faixa de idade. Por isso, mesmo que uma seleo ganhe, ela no passa de uma campe olmpica, num campeonato reconhecidamente inferior a uma copa do Mundo, no qual as selees levam seus melhores jogadores profissionais. Assim, as copas do mundo de futebol so momentos singulares da vida esportiva mundial, no tendo nenhum acontecimento isolado de qualquer outro esporte que possa dela se aproximar em significado.

Observemos que pelo menos no Brasil, como afirma Gastaldo (2006), a Copa considerada o apogeu do mundo dos esportes, sendo-lhe dada mais importncia social do que a prpria Olimpada. A Copa do Mundo de futebol transformou-se em um instrumento fundamental para a conformao e confrontao dos sentimentos que formam as naes. Tornou-se um espao privilegiado para a construo da alteridade em um novo mercado global, no qual, os corpos e seus estilos se transformaram em produtos com marca identitria, sendo que para parte considervel das pessoas, independentemente de gostar ou no de futebol, apoiar a seleo brasileira, especificamente durante jogos da Copa do Mundo, uma clara declarao de fidelidade ao Brasil, transformando-o naquele momento em um objeto de devoo, mesmo que seja para atender a interesses individuais. Notemos, entretanto, que tal sentimento tambm pode ser observado em outros pases, como

32 Itlia, Argentina, Inglaterra, Espanha. Mas no Brasil, ao que parece, esta tenso mais perceptivel para ns. Para Helal (2001: 153), o futebol no Brasil tratado como uma questo nacional:Com efeito, quando a seleo sofre uma derrota em competies importantes tendemos a procurar um culpado que possa personificar determinado insucesso. Afinal, somos o pas do futebol, assim pelo menos nos identificamos para dentro e para fora. A imprensa insistente em dizer que depositamos na seleo desejos e temores. Talvez, por esta razo, as construes das vitrias e derrotas sejam to reveladoras de sentimentos mais profundos, que no se esgotam em anlises tcnicas de partidas.

Guedes (