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1 A Alta Moda e o Discurso do Poder Econômico Autoria: Marcelo Aureliano Monteiro de Andrade, Marlusa Gosling, Mariana de Freitas Coelho, Nara Carvalho Vieira da Cunha, Maria Goreti Boaventura Resumo Este artigo analisa como o discurso do poder econômico é trabalhado na indústria da alta moda, dentro de uma lógica de discurso e poder em Foucault (1979; 1999). Utilizou-se como objeto de estudo o editorial e um anúncio da revista do Shopping Iguatemi. Os métodos de análise foram a Semiótica e a Análise Crítica do Discurso, com base em Fairclough (2001). As conclusões sugerem que a principal intenção da indústria da alta moda é comunicar que as suas mercadorias simbolizam poder econômico, mas que isso é feito principalmente por meio do discurso imagético.

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A Alta Moda e o Discurso do Poder Econômico

Autoria: Marcelo Aureliano Monteiro de Andrade, Marlusa Gosling, Mariana de Freitas Coelho, Nara Carvalho Vieira da Cunha, Maria Goreti Boaventura

Resumo Este artigo analisa como o discurso do poder econômico é trabalhado na indústria da alta moda, dentro de uma lógica de discurso e poder em Foucault (1979; 1999). Utilizou-se como objeto de estudo o editorial e um anúncio da revista do Shopping Iguatemi. Os métodos de análise foram a Semiótica e a Análise Crítica do Discurso, com base em Fairclough (2001). As conclusões sugerem que a principal intenção da indústria da alta moda é comunicar que as suas mercadorias simbolizam poder econômico, mas que isso é feito principalmente por meio do discurso imagético.

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1 - Introdução A alta moda é um campo que trabalha produtos do vestuário voltados para o luxo. A importância funcional desses produtos, portanto, é secundária, sendo a simbologia relativa a comportamento, valores e culturas o mais importante para o consumidor (D’ANGELO, 2004). O luxo se caracteriza pela raridade e pelo altamente desejado (LIPOVESTY, 2007). É muito mais ligado a um universo simbólico que ao material. Na sociedade atual, ele é muito desejado não só pelo conforto e qualidade que os objetos de luxo normalmente proporcionam (até mesmo porque, conforto e qualidade semelhantes já são largamente encontrados em outros objetos ligados à indústria de massa), mas por seus diferenciais estéticos e principalmente pelo apelo simbólico que têm de demonstrar riqueza, sucesso e poder (BOURDIEU, 1983). Sua função central é trabalhar no campo do desejo humano e não na supressão de necessidades básicas do dia-a-dia. O objetivo deste trabalho é analisar aspectos silenciados no discurso publicitário da alta moda no Brasil, especialmente a capacidade que esta tem de excluir aqueles que não detêm poder econômico. Defende-se que a alta moda ressalta em seu discurso, além das questões estéticas - que muitas vezes são colocadas como fator secundário, mas que são explicitadas -, o poder que seus produtos têm de excluir quem não os consomem. É, assim, um discurso que procura salientar o custo monetário para se obter uma marca de alta moda e com isso criar uma barreira entre aquele que tem a capacidade de consumir mercadorias dessa natureza frente aos que não têm essa condição. É importante que esse aspecto seja salientado no discurso da moda, mas é também relevante que ele não seja explicitado – o que poderia soar como politicamente incorreto ou gerar problemas de ordem moral a uma marca. Ele precisa ser mostrado, mas de forma sutil, indireta, muitas vezes silenciada. Para tanto, o discurso da moda deve buscar formas diversas de se expressar e o que não pode ser explicitado é dito de formas indiretas, normalmente de maneiras imagéticas. Destaca-se que um dos pontos mais importantes da indústria do luxo é a segmentação extrema, é, portanto, manter seus produtos inacessíveis à grande massa (LIPOVETSKY, 2007), pois do contrário são perdidos alguns de seus principais diferenciais, especialmente os de ordem simbólica. A alta moda pode nessa perspectiva ser vista como a materialização do “Espetáculo” de Debord (1997), ou seja, cria-se uma simbologia em torno de uma marca com a finalidade de separação, de cisão entre os indivíduos por meio de demonstração de poder econômico. Assim, aqueles que têm a capacidade de se mostrarem espetaculares por meio da alta moda reafirmam a sua distinção do todo, como aquele que tem a capacidade de arcar com o espetáculo e que detém poder financeiro.

No espetáculo, uma parte do mundo representa-se perante o mundo, e é-lhe superior. O espetáculo não é mais do que a linguagem comum desta separação. O que une os espectadores não é mais do que uma relação irreversível com o próprio centro que mantém o seu isolamento. O espetáculo reúne o separado, mas reúne-o enquanto separado. (DEBORD, 1997, p. 29)

A alta moda na maioria dos casos não se apresenta como uma verdadeira obra de arte. Seu objetivo é primordialmente mercadológico e seu processo de produção se assemelha ao de qualquer outro item da indústria cultural, apesar de dar um pouco mais de ênfase a alta qualidade funcional e estética dos produtos (LIPOVETSKY, 2007). Isso significa que normalmente ela é pensada em função do seu poder de comercialização e não em função do seu valor estético e artístico - apesar de haver muita ênfase no discurso dessa indústria de que um de seus pilares é um valor estético elevado. Benjamim (1983) defende que uma obra de arte não deve ser feita para

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ser vista, mas sim para expressar um tempo e lugar únicos. Ela deve ser emancipada da função de audiência, sob pena de perder sua essência e beleza, a que ele chama de “Aura”. Idéia também compartilhada por Adorno (DUARTE, 2007), que via nos produtos da indústria cultural, onde se enquadra a alta moda, a perda da essência artística e da beleza estética – defende-se aqui, contudo, que nem sempre a indústria cultural cria produtos de baixo valor estético e artístico. O campo do luxo, que já se caracterizou por financiar verdadeiras obras de arte em outras épocas, tem tomado um sentido claro de negócio e é cada vez mais dominado por grandes conglomerados industriais (LIPOVETSKY, 2007). Houve nas últimas décadas um vigoroso crescimento desse segmento, que veio atender a demanda crescente da classe abastada, que se proliferou, especialmente em economias emergentes. Lipovetsky (2007) salienta que, cada vez mais, pequenas empresas independentes dão lugar às grandes marcas, que adotam estratégias que provaram seu valor nos mercados de massa. Ele aponta ainda que a indústria do luxo criou ramificações que possibilitam inclusive uma certa massificação de seus produtos. Vale destacar que o autor não se mostra totalmente contrário à cultura do luxo, sua reflexão se mostra até mesmo acrítica em alguns momentos. Ele, no entanto, admite que essa cultura e a busca pelo espetáculo criam nos indivíduos ansiedade, angústia e até depressão. Obviamente, uma marca ou empresa para alcançar o status de alta moda precisa passar pelo crivo da crítica especializada e formadores de opinião como algo diferenciado em termos estéticos e de qualidade (BORDIEU, 1983). Uma vez alcançado esse patamar, contudo, é possível cobrar valores absurdos por mercadorias que muitas vezes têm a mesma origem que os demais produtos de massa. Interessante observar que a literatura de marketing aborda muito o poder que determinadas marcas de alta moda têm de cobrar preços elevados, muitas vezes absurdamente maiores, simplesmente por estamparem seus símbolos em um produto (AAKER, 1999). Há estudos sobre o assunto que demonstram que um mesmo produto passa a ter um valor muito maior simplesmente por usarem símbolos que remetem a status e poder social e econômico (BAKER, 2005). O campo do marketing também traz uma série de ferramentas que auxiliam o produtor da moda a criar essa simbologia em torno dos produtos. Há exemplos que mostram que parte das marcas da alta moda terceiriza sua produção atualmente (GALHATONE, 2009) para reduzir os custos de produção, mesmo que isso implique na perda da qualidade. Nessa lógica, os profissionais da alta moda e de marketing que trabalham no campo precisam não só dar um bom padrão estético a seus produtos, especialmente quando uma marca ainda não se consolidou no campo, mas também construir uma simbologia de representação do poder econômico em torno da mercadoria. Algumas marcas de alto valor simbólico, por exemplo, conseguem cobrar valores absurdos em produtos triviais, ou feitos maciçamente. Bourdieu (1983) aponta que um perfume de baixa qualidade pode obter um valor muito superior, 30 vezes de acordo com o autor, a partir do momento que estampa a marca “Chanel”. É a idéia do penico de Marcel Duchamp (BOURDIEU, 1983), que passou a ter valor como obra de arte e seu valor aumentado simplesmente pela assinatura do autor – destaca-se que ele a fez com essa finalidade, ou seja, como forma de contestação sobre os rumos que a arte havia tomado.

Você tem um perfume do Monoprix por três francos. A griffe transforma-o num perfume Chanel valendo trinta vezes mais. É o mesmo mistério do urinol de Duchamp, que se constituiu como objeto artístico porque ao mesmo tempo foi marcado por um pintor que lhe colocou a assinatura e enviado para um lugar consagrado que, ao recebê-lo, fez dele um objeto de arte, assim transmutado econômica e simbolicamente. A griffe é a marca que muda não a natureza material, mas a natureza social do objeto (BOURDIEU, 1983, p. 7).

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Essa questão remete também aos conceitos de Marx de valor de uso e valor de troca da mercadoria. Para Marx (1991), uma mercadoria apresenta um valor de uso e um valor de troca. Ao primeiro aspecto, o valor de uso, Marx (1991) aborda a funcionalidade da mercadoria, portanto ela servirá para atender a uma necessidade humana, ela tem assim um valor qualitativo: “O valor de uso só tem valor para o uso e se efetiva apenas no processo de consumo (MARX, 1991, p 36)”. Toda mercadoria é fruto da transformação, por meio do trabalho, de uma matéria prima em algo utilizável no cotidiano e isso dará a ela seu valor de uso. Esse valor, contudo, não será o único determinante. Há ainda o valor de troca, ou seja, o valor que a mercadoria assumirá para ser trocada por outra. Esse é um valor quantitativo, mensurável – um número “x” da mercadoria “y” poderá ser trocado por um número “z” de outra mercadoria. A esse valor que será dada uma referência monetária. O valor de troca é também para o autor fruto de um processo histórico. Diferentemente do valor de uso, o valor de troca foi criado no contexto mercantil. Ao valor de troca são considerados outros aspectos da mercadoria, além da sua funcionalidade simples, como a qualidade, sua escassez ou o status que este carrega. Sobre o valor monetário, ou o dinheiro, usado para medir o valor de troca, Marx (1991, p. 55), destaca:

Preso às concepções do sistema monetário, apresenta o tipo particular de trabalho real através do qual são obtidos o ouro e a prata com o trabalho que põe o valor de troca. E pensa efetivamente que o trabalho burguês não precisa produzir diretamente valor de uso, mas sim mercadoria, um valor de uso que através de sua alienação, no processo de troca, é capaz de se apresentar como ouro e prata, ou seja, como dinheiro, ou seja, como valor de troca, ou seja, como trabalho geral objetivado.

Importante destacar que para Marx a produção capitalista afasta o produtor da mercadoria do seu uso, do seu consumo. O trabalho necessário para a transformação da mercadoria perde seu valor e torna-se fator de alienação. Àquele que produz, não será dado como contrapartida o produto resultante do seu trabalho. Outro aspecto importante da teoria de Marx (1991) que se aproxima do que fora apresentado até aqui é o conceito de fetiche da mercadoria. Para o autor, o fetichismo é a transformação das relações entre pessoas em coisas e das coisas em pessoas. No fetiche, a mercadoria também é fator alienante, pois é transformada em algo que tem uma função simbólica, assim como a religião, indo, portanto, além da sua importância funcional. Por meio do fetiche, o valor de troca da mercadoria é aumentado de maneira substancial. BAUDRILLARD (2005) segue a mesma linha. Para o autor, já não se consomem mais coisas, mas signos. Os consumidores interessam-se mais pela simbologia das mercadorias do que pela necessidade funcional a qual ela atenderá. Além disso, ele acredita que as pessoas atualmente vivem em função dos objetos, diferentemente de outros períodos, em que os objetos serviam às pessoas. Exageros à parte (pois nem todo consumo pode ser tomado dessa forma), pode-se considerar o consumo do luxo, consequentemente da alta moda, dentro dessa lógica, pois o objeto nesses casos tem normalmente pouco valor funcional e grande valor simbólico. Na alta moda, ou moda de luxo, o valor de troca das mercadorias é muito mais condicionado pela simbologia do produto do que por seu valor funcional. Muito mais importante que atender necessidades básicas, portanto, é atender ao desejo simbólico daqueles que consomem, desejos muitas vezes, provavelmente na maioria, ligados ao status proporcionado pelo símbolo da moda e não por seu valor estético ou artístico elevado. As empresas de alta moda, nessa lógica, precisam construir um discurso que saliente o poder econômico do consumidor, mas essa questão traz um problema. Muitas coisas que precisam ser

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ditas para isso não podem ser verbalizadas, ou precisam ser ditas nas entrelinhas no discurso publicitário. É importante destacar que este trabalho não tem o objetivo de discutir estratégias de marketing e de comunicação para a alta moda do ponto de vista da eficácia. Ao contrário, pretendeu-se mostrar uma visão crítica sobre essas práticas, vistas como destituídas de reflexões éticas - especialmente sobre as conseqüências que trazem para a vida das pessoas e da sociedade. Apesar do consumo de luxo ter uma função econômica importante (GALHANONE ET ALL, 2009; LIPOVETSKY, 2007; D’ANGELO, 2004), pois cria uma cadeia de valor que gera empregos e riquezas, ele pode ser bastante maléfico à grande maioria das pessoas e ao sentido de coletividade em geral exatamente por seu princípio de divisão e de individualismo. Ele pode, assim, ser motivo de frustração e angústia àquelas pessoas que não têm acesso às marcas de luxo, mesmo sendo fortemente estimuladas a consumi-las, ou até mesmo àquelas que as consomem por meio de grande sacrifício pessoal (normalmente membros da classe média burguesa). Ele é, portanto, mais um fator desnecessário de competição e divisão de classes entre as pessoas. Visou-se aqui refletir sobre esse campo não por uma ótica financeira e funcional, mas principalmente pelas conseqüências sociais e especialmente individuais geradas pelo mercado de luxo e seu sentido de exclusão em uma sociedade já tão dividida e desigual. 2 - Alta moda, discurso, poder e silêncio A moda é antes de tudo um discurso. A forma como uma pessoa se veste, as cores do seu vestuário, os símbolos que carrega em sua roupa, dentre outras características, são uma forma de expressão pessoal, uma maneira de um indivíduo dizer características próprias (ALBRECHT et al, 2009). Ela é também um meio de expressar o grupo ao qual pertence uma pessoa. Por meio da moda, assim como de outros símbolos do consumo, é possível comunicar de onde vem o indivíduo, seu grupo profissional, seus valores pessoais e, ao que mais interessa a alta moda ou à indústria do luxo, seu meio social. Para Miranda (2007), a moda é, portanto, uma forma não verbalizada do sujeito mostrar características da sua identidade e da sua origem. Esse autor ainda destaca a importância que as marcas de moda têm nesse contexto. O uso de uma marca de moda expressa valores e intenções de uma pessoa e isso é relevante à análise deste artigo. O princípio de discurso que interessa aqui se baseia na concepção de poder e discurso em Foucault (1979). O autor serviu como parâmetro para a compreensão de como o discurso pode funcionar como um mecanismo de imposição e legitimação de poder. Os métodos, que serão descritos a seguir, baseiam-se nas concepções Foucaultianas e na análise crítica do discurso, com base em Fairclough (2001). A questão do silêncio também é ponto importante a este trabalho. O silêncio no discurso apresenta-se como o não dito no texto, mas que tem significado, tem sentido no processo discursivo. É aquilo que não pode ser explicitado, mas que se compreende no implícito (ORLANDI, 2007). Foucault (1999) entende que o discurso é a manifestação principal do poder. É por meio do discurso que o poder se impõe. Nesse sentido, é importante que existam instituições de legitimação do discurso como poder, verdade ou como saber. Institutos como a escola, a filosofia, a medicina ou outros campos do conhecimento e da ciência cumprem esse papel e o mesmo acontece no campo da alta moda. O mesmo ocorre no discurso da religião e, na lógica deste artigo, no discurso da alta moda, que cumpre o papel de afirmação de poder de determinadas marcas como símbolos de status, riqueza, distinção social, etc. A alta moda utiliza-se para isso de uma série de mecanismos midiáticos que lhe permitem institucionalizar-se como uma verdadeira representação de status e riqueza.

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O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como a força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso (Foucault, 1979, p. 8).

Foucault (1979) defende também haver uma polifonia de discursos. Há discursos vindos de todas as partes e que constantemente entram em conflito no cotidiano. Um discurso dominante hoje não necessariamente o será amanhã. A luta pelo poder, e consequentemente pelo discurso de dominação, é constante. Apesar do poder dominante ter a primazia do discurso, uma vez que domina os meios de produção e reprodução do saber legitimado, há sempre a possibilidade do discurso dominante se alterar, na medida em que o poder se altera. Ele parte do princípio que a história não é resultado de um contínuo, mas sim de relações caóticas de embate e poder. Isso também ocorre no campo da alta moda, onde uma diversidade de corporações competem pelo discurso dominante. Sobre o silêncio do discurso, o que interessa a este trabalho é o conceito de “Silêncio Local”, que remete às censuras sobre o que pode ser dito em determinados contextos: “O silêncio local: que se refere à censura propriamente (àquilo que é proibido dizer em uma certa conjuntura). (ORLANDI, 2007, p. 24)”. Parte-se aqui da idéia que o discurso da alta moda e do luxo não pode verbalizar a simbologia do poder econômico, a ostentação, pois sofreria uma penalização moral e mesmo mercadológica sobre isso. É importante à indústria da alta moda, contudo, expressar sua capacidade de simbolizar riqueza e isso normalmente é feito por meios não verbais. Tudo isso, assim, não costuma ser explicitado, provavelmente porque soaria grosseiro ou politicamente incorreto. Esse lado do discurso da moda costuma ser silenciado no discurso verbal e explicitado em outras esferas discursivas, como: pelo preço inacessível dos produtos à maioria das pessoas; pelo local onde são comercializadas as mercadorias, acessíveis principalmente aos abastados; por meio do uso de imagens publicitárias que representem o poder econômico; etc. A intenção deste artigo é mostrar empiricamente essa questão, especialmente no discurso publicitário. 3 - Metodologia A metodologia elaborada para este estudo tem base na Análise Crítica do Discurso (FAIRCLOUGH, 2001), que serviu de parâmetro às análises de discurso verbal da alta moda, e na Semiótica (SARAIVA, 2009), que auxiliou na análise das imagens ligadas ao discurso da alta moda. Vale destacar que ao adotar uma perspectiva crítica de discurso deve-se pensar sob a ótica da crítica, ou, como afirma Misoczky (2009), de acordo com sua “ética”. Por isso, defende-se aqui ser importante pensar um discurso e suas intenções não só sob a perspectiva daquele que o enuncia, mas de todos os interlocutores. É preciso na lógica da crítica analisar o poder em todos os seus âmbitos, inclusive daqueles que sofrem sua coação. O intuito foi exatamente pensar os mecanismos do discurso da alta-moda criados para excluir, para separar. A revista escolhida para análise é a “Revista I” (IGUATEMI, 2012), edição 46, do Shopping Iguatemi, de São Paulo - característico por abrigar algumas das principais marcas do luxo no Brasil e como ícone da riqueza paulistana. Nesse local, já se realizaram alguns desfiles da semana de moda “São Paulo Fashion Week”, maior evento da alta moda do país. A escolha do objeto de estudo, portanto, foi por julgamento. A pesquisa, além disso, caracteriza-se por ser de natureza exploratória (LAVILLE, 2007). Foram escolhidos dois textos dessa revista: o seu editorial, que foi analisado apenas no aspecto verbal; e um anúncio publicitário, em que foi analisado

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principalmente o discurso imagético, tendo em vista haver pouco discurso verbal (apesar dessa parte também ter sido objeto de análise). O primeiro tipo de análise utilizado tem base no modelo tridimensional (Figura 1) de Fairclough (2001), que visa avaliar aspectos: textuais (ligados à parte estrutural do texto), de prática discursiva (produção, distribuição e consumo do discurso) e de prática social do discurso. Essa concepção de análise visa interpretar todos os aspectos presentes em um discurso e não apenas suas características estruturais. Para Fairclough (2001), a Concepção Tridimensional busca reunir três tradições importantes da análise do discurso.

Essas são a tradição de análise textual e linguística detalhada na linguística, a tradição macrossociológica de análise da prática social em relação às estruturas sociais e a tradição interpretativa ou microssociológica de considerar a prática social como alguma coisa que as pessoas produzem ativamente e entendem com base em senso comum compartilhado. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 100)

Figura 1: Concepção Tridimensional do Discurso

Fonte: Fairclough (2001) Houve ainda a análise semiótica de um anúncio publicitário da mesma revista. Vale destacar que a maior parte dos anúncios publicitários dessa publicação não apresenta textos que mereçam análise. A parte textual nesses casos resume-se ao nome da marca e da loja onde ela é vendida. Esses anúncios, contudo, são carregados de significados em suas imagens. Praticamente todos remetem a símbolos de status e sinalizam elementos do produto que simbolizam poder econômico, como o uso de pedras preciosas, tecidos sofisticados, etc. Seus cenários também são carregados de símbolos de status e riqueza. O anúncio escolhido, no entanto, traz alguns elementos verbais que também mereceram análise. O modelo de análise Semiótica foi baseado no trabalho de Saraiva (2009), que tomou como parâmetro os conceitos de Baeder (2007). Na perspectiva desse autor, uma imagem deve ser estudada a partir da identificação e análise dos seguintes aspectos (SARAIVA, 2009, p. 92):

– da localização original da imagem: Diz respeito a onde se localizava originalmente a imagem colhida, de forma a identificar seu papel em um contexto de comunicação social. – dos principais elementos da imagem: Dizem respeito aos elementos que chamam a atenção inicialmente para a imagem, uma espécie de síntese visual.

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– dos aspectos plásticos: Os aspectos plásticos de uma imagem dizem respeito à forma pela qual os elementos são visualmente apresentados. – dos principais aspectos semânticos: Refere-se ao que os aspectos plásticos remetem, em uma linha de interpretação dos elementos visuais apresentados. – das estratégias plásticas do enunciador em relação ao enunciatário da imagem: Diz respeito à forma pela qual o enunciador da mensagem organiza as imagens de maneira a causar um efeito determinado no enunciatário. – das estratégias de persuasão enunciativa: Qualquer imagem encerra uma intenção de persuadir o enunciatário a focalizar sua atenção sobre alguns aspectos em detrimento de outros, para isso fazendo uso da disposição dos recursos visuais. – das categorias formais plásticas: Referem-se aos elementos usados pelo enunciador ao organizar a imagem, como oposições físicas – claro x escuro, retilíneo x curvilíneo – cores, sentido de leitura da imagem, disposição dos planos visuais etc.) – das categorias de conteúdo: A partir dos percursos semânticos e dos elementos visuais, é possível identificar conteúdos que podem ser agrupados em categorias, e analisados tomando como referência os elementos da imagem.

Destaca-se que a semiótica é uma ciência de estudo dos signos, sejam eles verbais ou de qualquer natureza de imagem. Sua intenção central é compreender o processo de significado e significante que exercem esses signos com as pessoas. Primeiramente, vale tecer alguns comentários sobre o conceito de imagem. Santaella et al (2010) apontam que o conceito de imagem normalmente se divide em dois campos. O primeiro aborda a imagem direta, perceptível, de um objeto – como os que foram utilizados aqui. O outro aborda a imagem mental simples, que na ausência de estímulos visuais pode ser evocada. Quando se houve ou lê a palavra “cachorro”, por exemplo, pode-se visualizar mentalmente a figura do animal. Pode, ainda, haver um grau de interpretação mais complexo, remetendo a imagem do cachorro a momentos de vida ou experiências. As imagens ou signos que chegam às pessoas, portanto, trazem graus diferentes de significação conforme o indivíduo, mas podem ter significados compartilhados dentro de um grupo de pessoas que apresentam características em comum. Na alta moda, há a importância de se trabalhar as imagens como mecanismos de discurso, no sentido de gerar imagens que tenham significados importantes ao público-alvo da informação e também signos que não tenham significado para o público de baixa renda. Destaca-se que a análise de imagens por meio da Semiótica pode se tornar um processo infindável, por isso é importante estabelecer um limite, uma vez que o processo de significação de uma imagem nunca acaba (PENN, 2007). Destaca-se ainda que a imagem é normalmente o principal componente de informação nos veículos publicitários, que são carregados de artifícios dessa natureza (LOIZOS, 2007). Vale ressaltar também que nas metodologias de análise de imagens há grande influência do julgamento do pesquisador e isso deve ser explicitado, até mais que em outros métodos das ciências sociais (que também sempre trazem influências de julgamento dos autores). 4 - Análises 4.1 - Análise de Discurso do Editorial A primeira parte analisada refere-se à imagem a seguir (Figura 2), retirada do Editorial da Revista.

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Figura 2

Fonte: Iguatemi (2012, p. 11) Segue o texto acima:

Para rechear a revista de fim de ano com o clima da estação, listamos 25 dicas para que 2012 seja um período realmente inesquecível. Nesse discurso vibrante e com boas energias, mergulhamos no “hot hot hot” da conferência do jornal britânico International Herald Tribune, evento patrocinado pelo Iguatemi e que fará muita gente bacana desembarcar no Brasil pela primeira vez. O encontro promete arrematar o mercado de luxo com histórias de sucesso protagonizadas por Mario Testino, Sarah Burton – responsável pela criação do vestido da princesa espanhola -, além de figurões como Suzy Menkes, Marc Puig, Christian Louboutin, Diane von Furstenberg, entre outros. Por aqui, o burburinho adianta a chegada da ultrachique Bottega Veneta, que, com muita qualidade, trará coleções atuais e cobiçadas para os cenários brasileiros. Já a grife de Marc Jacobs, estilista adorado pelo pelotão de fashionistas, aporta com aquele charme encantador que tanto caracteriza seu portfólio. Adolpho Domingues – qua faz até a rainha ibérica Sofia suspirar – coloca os pés em Alphaville para alegria geral, enquanto Hugo Boss, que dispensa maiores apresentações, abre as portas em Porto Alegre. Percebeu como 2012 tem tudo para ser incrível? (IGUATEMI, 2012, p. 11).

Dentro da concepção de Fairclough (2001), o primeiro aspecto a ser analisado é o textual. Essa análise pode ser organizada em quatro itens: vocabulário (análise das palavras individuais), gramática (análise das palavras organizadas em orações e frases), coesão (ligação entre orações e frases) e estrutura textual (propriedades organizacionais de larga escala dos textos). Importante salientar que um texto é construído por intertextualidades, portanto por signos que de alguma forma terão significados entre aqueles que participam do processo discursivo. As palavras

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utilizadas, por exemplo, são palavras “de outros” textos, que devem ter significado compartilhado entre quem emite e quem recebe o discurso. Sobre o vocabulário escolhido para o texto acima, fica claro haver uma série de termos e nomes que se ligam ao luxo, como o nome de personalidades da realeza espanhola e de grandes estilistas, que provavelmente significam algo àqueles que leem esse tipo de publicação. É assim uma estratégia lexical. Interessante também notar a ênfase dada ao “International Herald Tribune”, um evento internacional que discute os rumos da indústria do luxo. Apesar disso, pode-se dizer que não há palavras de origem erudita, que sejam de domínio apenas de pessoas com alto grau de letramento. Ao contrário, são utilizadas até mesmo palavras e expressões coloquiais, como “gente bacana” ou “ultrachique”. Uma palavra que chamou a atenção dos pesquisadores foi “Glam”, no título. Trata-se de uma gíria, um diminutivo para o termo “Glamour” - isso só foi descoberto quando houve a consulta a um dicionário informal na internet, que trouxe também o uso da expressão em alguns blogs de moda. Tudo isso pode sugerir que há a intenção de se criar a identificação com o público de alta renda por meio do uso de nomes que têm grande significado a essas pessoas (nomes inclusive que não tinham sentido a alguns dos pesquisadores deste estudo), sem dar à publicação uma sofisticação estética e cultural, o que provavelmente restringiria a leitura de muitos indivíduos desse meio, provavelmente a maioria. Esse aspecto reforça a ideia de que o discurso da alta moda não enfoca um alto valor artístico sofisticado dos seus produtos, mas principalmente sua ligação com símbolos do status e poder econômico. A estrutura gramatical e a coesão, da mesma forma, apresentam-se de maneira bastante simplificada. Não há nas orações formações complexas e nem o uso de tempos verbais rebuscados. Vale destacar que, conforme Fairclough (2001, p. 104): “As pessoas fazem escolhas sobre o modelo e a estrutura de suas orações que resultam em escolhas sobre o significado (e a construção) de identidades sociais, relações sociais e conhecimento e crença.”. A gramática e a coesão do texto acima indicam a intenção de se utilizar um código linguístico que seja de fácil compreensão, o que também foge da idéia do luxo se conectar ao belo e à verdadeira arte. Sobre a estrutura do texto, ou sua arquitetura, percebeu-se, assim como nos demais aspectos, um baixo grau de erudição. O segundo aspecto a ser analisado, conforme a orientação de Fairclough (2001), é a Prática Discursiva nos seus aspectos de produção, distribuição e consumo. Esses aspectos têm a ver com o contexto social em que foram produzidos, distribuídos e consumidos os textos. O trecho acima foi produzido por pessoas do próprio Shopping, ou a mando dessas pessoas. É, portanto, a reprodução do discurso da direção da organização. Há assim o objetivo de criar identificação com o público consumidor - no caso do Iguatemi, paulistanos de alta renda - e salientar a essas pessoas que o espaço de vendas possui os produtos de luxo procurados. As estratégias adotadas pelos produtores para a persuasão, conforme análises anteriores, envolvem a escolha de nomes que fazem parte do cotidiano desse público e que não devem ser do entendimento da maioria da população (assim como de expressões em inglês), e ao mesmo tempo a adoção de uma linguagem simplificada do ponto de vista da gramática, coesão e estrutura textual. Apesar do emissor ser identificado, a mensagem, que tem uma natureza de propaganda, traveste-se de linguagem jornalística ao ser publicada em uma revista. Essa é uma estratégia de persuasão bastante utilizada atualmente nos meios de comunicação. Ao invés de usar uma linguagem explícita de propaganda, em que o leitor de antemão sabe que houve o pagamento por aquele espaço midiático para convencê-lo, usa-se um veículo de natureza jornalística, visto no senso comum como algo neutro, isento.

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Sobre a distribuição da publicação, há a entrega da versão impressa apenas ao público consumidor do shopping, portanto de alta renda, apesar de haver também a versão eletrônica, como a que foi utilizada para este artigo. O consumo desses textos, portanto, se dá normalmente no meio mais abastado da população paulistana, mesmo que seja possível o acesso às informações por outros públicos (como acadêmicos). Esses textos, além disso, são consumidos, provavelmente, num curto espaço de tempo, até mesmo porque as informações contidas são muito triviais e abordam o luxo, que se caracteriza pela efemeridade. Interessante observar que os nomes de ícones do luxo que são recorrentemente utilizados restringem a leitura, portanto o consumo, àqueles que dominam esses códigos, normalmente pessoas de alta renda. O último aspecto a ser analisado é do Discurso como Prática Social. Nessa perspectiva, Fairclough (2001) propõe que o discurso seja analisado sobre as condições de ideologia e poder em que são produzidos e consumidos. Sobre ideologia, vale a pena observar a visão do autor a respeito:

As bases teóricas que tenho em mente são três importantes asserções sobre ideologia. Primeiro, a asserção de que ela tem existência material nas práticas das instituições, que abre o caminho para investigar as práticas discursivas como formas materiais de ideologia. Segundo, a asserção de que a ideologia “interpela os sujeitos”, que conduz à concepção de que um dos mais significativos “efeitos ideológicos que os linguistas ignoram no discurso é a constituição dos sujeitos. Terceiro, asserção de que os “aparelhos ideológicos de estado” (instituições tais como a educação ou a mídia) são ambos locais e marcos delimitadores na luta de classe, que apontam para a luta no discurso subjacente a ele como foco para a análise de discurso orientada ideologicamente (FAIRCLOUG, 2001, p. 117).

Sobre a ideologia que permeia o discurso da “Revista I”, recorreu-se à literatura analisada anteriormente. O discurso da revista do Shopping Iguatemi é fruto de uma ideologia que visa ao hiper consumo das pessoas, sendo nesse caso de produtos supérfluos, como os de luxo. O objetivo é incutir, legitimar na mente do público alvo, a ideia de que é normal e necessário o consumo dessas mercadorias como forma de distinção social ou demonstração de poder. Quando se observam os nomes do luxo associados ao texto, isso fica bastante nítido. Os grandes estilistas citados, a referência ao evento do luxo, dentre outros aspectos, só reforçam o objetivo no texto de institucionalizar a ideologia do luxo como uma verdade. Importante observar que até mesmo a palavra luxo aparece no texto, o que reforça a ideia de que a publicação objetiva reforçar esses ideais. Sobre a questão do poder, Fairclough (2001) salienta que toda prática discursiva é constituída de elementos ideológicos que visam à manutenção ou alteração de um poder vigente. No caso do discurso analisado, a intenção clara é manter na mente do leitor o poder exercido pelo luxo como forma simbólica de separação social, de distinção do todo. Percebeu-se, enfim, que o texto não aborda diretamente, explicitamente, o luxo e a alta-moda como formas de representação de poder financeiro, mas usa claramente mecanismos textuais que remetem a esse objetivo. Além disso, quando se analisam seus aspectos de práticas discursivas e de discurso como prática social, reforça-se a ideia de que o texto procura ressaltar a ideologia do luxo, especialmente a sua capacidade de simbolizar poder econômico.

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4.2 Análise Semiótica do Anúncio Publicitário A imagem (Figura 3) a seguir foi retirada da mesma publicação. Trata-se de uma propaganda de peças de vestuário de algumas marcas de luxo do shopping. Apesar de haver textos verbais, a maior parte das informações contidas é de natureza imagética, como normalmente ocorre no discurso da alta moda. Além desse, a maioria dos anúncios são muito carregados de imagem e trazem poucas informações verbais. Figura 3

Fonte: Iguatemi (2012, p. 59) A análise a seguir tem base em uma metodologia da semiótica proposta por Saraiva (2009). Conforme destacado anteriormente, muito do discurso da alta moda, provavelmente a maior parte, dá-se por meio de imagens. Por meio do discurso imagético a alta moda reforça sua ideologia de status, poder econômico e valor estético. O que se defende nesse artigo é que a simbolização do poder econômico é o principal mecanismo de persuasão desse campo, mas que isso normalmente é dito de forma sutil, utilizando-se de imagens ou simplesmente de estratégias de comercialização (estabelecimento de altos preços, escolha do local de vendas em pontos de circulação do público abastado, escolha de vendedores que dominam a linguagem do público de alta renda, etc). O julgamento dos autores, conforme destacado anteriormente, teve forte influência na análise a seguir. A imagem analisada, no entanto, foi disponibilizada, para que o leitor possa também tirar suas conclusões. O texto no canto superior direito do anúncio diz: “Cardigã, ANIMALE, Calça de seda, Lita Mortari, Óculos, Chanel, bolsa, Victor Hugo, e escarpins CAPODARTE”. Do ponto de vista da análise ele tem pouco a acrescentar. A única relevância das informações é que todas as marcas

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apontadas pertencem ao universo da alta moda e possuem preços elevados (apesar de não serem marcas de luxo extremo, a exemplo de outros anúncios do periódico). Conforme descrito na metodologia deste trabalho, foram realizadas 8 análises, dentro dos conceitos de semiótica, a fim de compreender o discurso do anúncio acima. A primeira delas, “sobre a localização original da imagem”, remete ao veículo onde a imagem fora publicada. Trata-se de uma publicação jornalística, mas com claros objetivos de propaganda, do Shopping Iguatemi, ícone paulistano de marcas de luxo e de público de alta renda. Esse aspecto, portanto, já aponta para o objetivo dos editores de estimularem o consumo dos itens de luxo. Sobre o segundo item, “dos principais elementos da imagem”, chama a atenção o cenário utilizado: um estacionamento de um Shopping e ao fundo um automóvel que é um ícone de classe média alta e classe alta (PORTAL G1, 2009). Esse discurso dá a entender a intenção do shopping de se associar a símbolos do poder financeiro. No terceiro item analisado, “dos aspectos plásticos” e também das “estratégias plásticas do enunciador”, destacam-se a angulação da foto e a pose da modelo. Diferentemente de uma foto publicitária tradicional, o ângulo e a pose da modelo sugerem uma situação cotidiana de uma mulher elegante, jovem, bonita e independente chegando ao trabalho ou a um centro de compras. As cores vibrantes fazem também alusão ao período da publicação, verão de 2012. Sobre as “estratégias de persuasão enunciativa”, o ponto que se destaca são os ícones da alta moda associados à modelo, que representa uma mulher abastada, na medida em que utiliza diversas mercadorias de alto preço, e bonita. Chama atenção também a pose, de uma pessoa centrada no celular e caminhando, o que remete a uma mulher ativa, conectada e independente. A partir do último item, “das categorias de conteúdo”, que remetem aos percursos semânticos da imagem, foi possível agrupar três discursos na imagem: o primeiro são os elementos da mulher, que, como já dito, remetem a uma jovem, bonita, independente, rica e conectada ao mundo; o segundo são os símbolos de riqueza financeira da imagem, carregada de ícones do universo do luxo, informação de extrema relevância para o público feminino que consome esse tipo de discurso; e o terceiro são os elementos do cenário, cores e angulação da foto, que foram propositalmente pensados em função das demais categorias, ou seja, como forma de reforçar os outros elementos do discurso. Interessante observar que a imagem não faz nenhuma alusão a símbolos da arte ou da estética elevada, mas apenas a símbolos de sucesso econômico. Há, contudo, diversas imagens na revista que se utilizam de elementos da arte erudita, como nomes e cenários ligados a esse campo. Todas, contudo, apresentam a arte como pano de fundo, como mero elemento de composição da imagem e não como ponto central. Nessas imagens, o destaque fica para as mercadorias, os modelos e para personagens da elite paulistana. 5 - Conclusões Este trabalho claramente carece de análises mais robustas sobre o campo da alta moda e do luxo. Seria interessante para conclusões mais ricas o uso de outros métodos, como de entrevistas de consumidores dessas mercadorias, ou mesmo o uso desses métodos para a análise de um número maior de anúncios. Valeria também uma análise mais acurada acerca das ideologias que influem sobre esse campo, pois tudo o que se observou é reflexo disso. Os resultados, no entanto, sugerem haver no discurso das organizações da alta moda uma grande ênfase na capacidade que suas mercadorias têm de simbolizar poder econômico. Esse lado do discurso, apesar de recorrente e dominante, é dito nas entrelinhas ou por meio de imagens (como colocado anteriormente, é provável que não seja verbalizado para não gerar problemas de ordem moral ou mesmo comercial às marcas), assim como por meio de estratégias comerciais de

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distribuição e precificação das mercadorias. Em contrapartida, aspectos que remetam a um elevado nível estético, de erudição e de arte passam ao largo nessas publicações, diferentemente do que apregoam muitos defensores do campo. Como mostrado no texto do editorial da revista analisada, há a preocupação em usar vocábulos que geram identificação com o público rico, como o nome de grandes estilistas ou de feiras internacionais, mas que nada têm a ver com uma estética elevada. Ao contrário, as estruturas do texto são bastante simples, simplórias até, de forma que o leitor possa compreender o código utilizado e ao mesmo tempo criar identificação com os ícones da alta moda e do luxo citados. Vale destacar ainda que a própria revista possui uma série de outros exemplos de textos e imagens que reforçam o que fora proposto aqui. Há, por exemplo, uma parte destinada à coluna social que apresenta eventos realizados em um campo de golfe e em uma exposição de arte. No caso da exposição, as fotos mostram as obras de arte ao fundo, sem sequer citá-las, e destacam personagens da alta sociedade paulistana que participaram do evento. Mesmos os anúncios de marcas populares também se adequam à linguagem da publicação e à forma exclusiva pela qual o público do Shopping deseja ser tratado. A Imagem abaixo (Imagem 4), por exemplo, ilustra tal situação. Nesse anúncio, o Banco do Brasil coloca os consumidores do Shopping como pessoas destacadas socialmente e enfatiza as conquistas financeiras desses sujeitos, salientando uma ideologia economicamente liberal, que apregoa que quem tem posses fez por merecer. Imagem 4

Fonte: Iguatemi (2012, p. 65) Percebeu-se também que há uma quantidade imensa de material a ser trabalhado na perspectiva deste artigo. Essa temática é importante para os estudos críticos de organizações, pois as ideologias por trás dos discursos das empresas do luxo, e mesmo das demais, só podem ser compreendidas quando vistas nas entrelinhas. Destaca-se nesse sentido a necessidade de que os estudos organizacionais críticos levem mais em conta os discursos imagéticos das empresas, pois muito do que não pode ser verbalizado é dito por meio desse tipo de linguagem. Referências AAKER, D. A.. Marcas: brand equity, gerenciando o valor da marca. Ed Negócio, 1999.

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