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A Economia Social · ram num 1.º Encontro Internacional, realizado em Barcelona, simbolica - mente no Museu de História da Catalunha, nos dias 14 e 15 de Fevereiro de 2019, tendo

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  • A Economia Sociale a Economia Solidáriae os seus Diálogos com a História Económica e Social

    Dezembro de 2019

  • EdiçãoACEESA (Per Review)

    N.o de registo na ERCNota: isenta de registo na ERC ao abrigo do decreto regulamentar 8 / 99 de 9/06 artigo 12ª - 1 - a

    FotografiasAntónio Ferreira Pacheco

    Design GráficoCresaçor / Criações Periférica

    Execução GráficaCoingra, Lda.

    ISSN1647 - 5968

    Depósito Legal293560/09

    Tiragem250 exemplares

    Dezembro 2019Papel 100% reciclado

    FICHA TÉCNICA

    Financiamento: Apoio:

    ACEESARua D. Maria José Borges, n.º 1379500 - 466 Ponta DelgadaSão Miguel – Açores – Portugal

    T + 351 296 099 433 | + 351 296 281 554

    [email protected]

    https://www.facebook.com/CentrodeEstudosdeEconomiaSolidariadoAtlantico/

  • Director / Editor - in - chief

    Rogério Roque AmaroInstituto Universitário de Lisboa (ISCTE – IUL) – Portugal

    ACEESA – Associação Centro de Estudos de Economia Solidária do Atlântico – Portugal

    Diretora Executiva / Executive Editor

    Catarina Pacheco BorgesACEESA – Associação Centro de Estudos de Economia Solidária do Atlântico – Portugal

    Conselho Editorial / Editorial Board

    Artur MartinsACEESA–Associação Centro de Estudos de Economia Solidária do Atlântico–Portugal

    Catarina Pacheco BorgesACEESA–Associação Centro de Estudos de Economia Solidária do Atlântico–Portugal

    Célia PereiraCRESAÇOR–Cooperativa Regional de Economia Solidária dos Açores–Portugal

    Jean – Louis LavilleCNAM–Conservatoire National des Arts et Métiers–França

    Jordi EstivillUniversidade de Barcelona–Catalunha–Espanha

    Rogério Roque AmaroInstituto Universitário de Lisboa (ISCTE – IUL)–Portugal

    ACEESA–Associação Centro de Estudos de Economia Solidária do Atlântico–Portugal

    Comissão Científica Internacional / International Advisory Board

    Rogério Roque AmaroInstituto Universitário de Lisboa (ISCTE – IUL)–Portugal

    ACEESA–Associação Centro de Estudos de Economia Solidária do Atlântico – Portugal

    Jean – Louis LavilleCNAM–Conservatoire National des Arts et Métiers–França

    Jordi EstivillUniversidade de Barcelona – Catalunha – Espanha

    Ana Margarida EstevesCEI – IUL–Centro de Estudos Internacionais–Portugal

    António David CattaniUFRGS–Universidade Federal do Rio Grande do Sul–Brasil

    Casimiro BalsaFaculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa–Portugal

    Cláudio FurtadoUniversidade de Cabo Verde–Cabo Verde

    Clébia Mardonia FreitasUNILAB–Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro - Brasileira–Brasil

    Emanuel LeãoInstituto Universitário de Lisboa (ISCTE – IUL)–Portugal

    Genauto França FilhoUFBA–Universidade Federal da Bahia–Brasil

    José Fialho FelicianoUniversidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias–Portugal

    José Manuel HenriquesInstituto Universitário de Lisboa (ISCTE – IUL)–Portugal

    Leão LopesAtelier – Mar–Cabo Verde Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e Cultura – Mindelo – Cabo Verde

    Luciene RodriguesUNIMONTES – Universidade Estadual de Montes Claros – Minas Gerais – Brasil

    Luís Inácio GaigerUNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Rio Grande do Sul – Brasil

    Maliha SafriDrew University – Estados Unidos da América

    Maria de Fátima FerreiroInstituto Universitário de Lisboa (ISCTE – IUL) – Portugal

    Paul Israel SingerUSP – Universidade de São Paulo – Brasil

    Pedro HespanhaFaculdade de Economia da Universidade de Coimbra – Portugal

    Victor PestoffInstitute for Civil Society –Ersta Skondal College–Suécia

    Redação / OfficesACEESA – Associação Centro de Estudos de Economia Solidária do Atlântico – Portugal

    Rua D. Maria José Borges, 1379500–466 Ponta DelgadaSão Miguel – Açores – Portugal

    [email protected]

    Plataformas On – line

    Latindex, socioeco.org

  • Nota EditorialRogério Roque Amaro

    Similitudes e diferenças entre os enfoques da economia social e solidária em diferentes países da europa do sul (Catalunha, França, Itália e Portugal)Rogério Roque Amaro

    Utopie et émancipation sont synonymes qui prennent sens au XIXe siècle au sein d’associations dont l’origine remonte aux sociétés de secours mutuelMichèle Riot-Sarcey

    L’associationnisme solidaire, de l’oubli à la réactualisation.Le cas françaisLE ROLE DE L’ECONOMIE SOCIALE ET SOLIDAIRE DANS L’HISTOIRE SOCIALEJean-Louis Laville

    A Economia Social em Portugal – um balanço teórico em perspectiva históricaÁlvaro Garrido

    L’Estat de la qüestió. balanç bibliogràfic sobre l’economia social i solidaria a catalunya Jordi EstivillMarc Dalmau

    Une lecture historique du mouvement associatif et coopératif ou comment mieux appréhender l’actualité de l’économie sociale et solidaire en SicileElisabetta Bucolo

    O papel da Economia Social e Solidária na construção de um mundo sustentável: desafios a superarMayra Gonçalves

    The impact of community gardening as a form of solidarity economy on community development in Germany, using the example of Prinzessinnengarten in BerlinHanna Flachs

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    Nota Editorial Rogério Roque Amaro

    É óbvio que a História e as estórias da Economia Social e da Eco-nomia Solidária têm uma relação íntima com os factos e os eventos dos seus contextos e tempos históricos e, portanto, necessariamente com as narrativas e as interpretações correspondentes.

    Mas, até que ponto a História da Economia Social e a História da Economia Solidária incluíram, nas suas análises, os contributos da His-tória Política, Económica e Social do seu tempo e, vice-versa, até que ponto esta última beneficiou e incluiu as narrativas daquelas? Que diá-logos estabeleceram estas três interpretações historiográficas ? Como se podem enriquecer mutuamente?

    Foi com estas preocupações que vários investigadores e actores e vá-rias investigadoras e actrizes, ligados/as à Economia Solidária se junta-ram num 1.º Encontro Internacional, realizado em Barcelona, simbolica-mente no Museu de História da Catalunha, nos dias 14 e 15 de Fevereiro de 2019, tendo a organização local ficado a cargo da XES - “Xarxa Cata-lana de Economia Solidària” (“Rede Catalã de Economia Solidária”) e da “Fundació Roca i Galès”.

    Durante esses dois dias, investigadores e investigadoras, actores e actrizes da Economia Solidária da Catalunha, França, Itália e Portugal partilharam os seus conhecimentos e as suas interrogações, tendo como referência o tema central do Encontro: “O papel da Cultura Cooperativa e da Economia Social e Solidária na História Social”. Este número da Revista dá conta de algumas das principais contribuições nele apresen-tadas. Dada aliás a riqueza das reflexões partilhadas, combinou-se no Encontro publicar essas contribuições nas suas línguas nacionais neste número da Revista e, numa tradução em catalão, num livro, a editar em Barcelona, estando actualmente no prelo.

    Antes, contudo, de passar a apresentar este número, é importante introduzir algumas considerações gerais sobre o tema.

    Os três princípios e valores fundamentais, que deram identidade, na origem, à Economia Social (depois, em grande parte, esquecidos e abandonados...) e que foram recuperados e actualizados pela Econo-mia Solidária - Reciprocidade, Solidariedade e Democracia - existem, nomeadamente em lógicas informais, populares e comunitárias, desde tempos imemoriais e em várias geografias, muito antes de a Economia Social se afirmar, no século XIX. Só que foram normalmente ignoradas pelos estudos sobre estas questões, ou consideradas como manifesta-ções “apenas” sociais e culturais “do passado” (“em vias de extinção”), e raramente como processos económicos também. Por isso, praticamente os únicos investigadores que lhes deram atenção foram Antropólogos, Sociólogos ou Historiadores, em particular da Antropologia Económica,

  • 8Nota EditorialRogério Roque Amaro

    como Marcel Mauss (1872-1950)1, Karl Polanyi (1886-1964)2 e Maurice Godelier (1934- -)3.

    A Reciprocidade, de que eles falam, implica Dar, Receber e Retribuir, sem uma lógica mercantil e meramente económica, e não foi reconhecida, nem estudada, nem ensinada, pela Ciência Económica das Academias, por não ser da mesma natureza e “eficiência” do princípio económico em ascensão nos inícios da Modernidade (séculos XVIII e XIX), para se tornar dominante e O princípio a privilegiar e a estudar pela Economia desde então - o do Mercado.

    E, contudo, a Reciprocidade, com esse ou com outro nome4, é um prin-cípio económico muito usado na Economia Real, em todas as latitudes e longitudes, nalguns contextos até de maneira predominante. Sendo económico, porque sustenta laços e funções económicas fundamentais (produção, emprego, rendimento, consumo, poupança e investimento), nunca é só isso, é muito mais do que isso, é também e indissociavelmente social, cultural, ambiental, territorial, cognitivo, político e ético, estando sempre associado e “embebido”5 de todas ou de algumas dessas outras dimensões. Por isso, é aquilo que Karl Polanyi chamou de Visão Subs-tantiva da Economia, que a Ciência Económica nunca contemplou, e em que o Valor de Uso é mais importante do que o Valor de Troca.

    A Solidariedade é o princípio da Entreajuda, da Cooperação e do Mu-tualismo ou da Ajuda Mútua6, que exprime uma dinâmica e um princípio de organização da Vida, muito presente na espontaneidade da Natureza e nas relações comunitárias de sobrevivência, de garantia da descendên-cia e de vitalidade colectiva, em alternativa ao pressuposto dominante da Competição e da luta sem tréguas, entre seres da mesma espécie, na chamada luta pela sobrevivência7, e que a Economia de Mercado adop-tou como princípio de organização e de regulação da vida económica su-postamente mais eficiente.

    É este princípio de Cooperação que a Economia Solidária, de forma mais assumida e explícita, e sobretudo mais radical, do que a Economia Social, tem afirmado como pilar de uma Economia da Vida e com Futuro, logo Sustentável.

    Contudo, historicamente, se, no início, no século XIX, a Solidariedade ou Ajuda Mútua entre os mais desfavorecidos, como “iguais” na pobre-za ou na marginalização, foi o cimento (horizontal) das suas iniciativas cooperativistas, mutualistas e associativas, pioneiras da Economia So-cial, foi posteriormente substituída, a partir de meados do século XIX, em muitos processos, por uma Solidariedade vertical, dos “que podem” para com os que “não têm”, numa lógica essencialmente de Filantropia8, correspondendo ao que Hobsbawm designou pelo “segundo século XIX”9.

    A Democracia é o terceiro princípio nuclear da Economia Solidária. Esteve na origem da Economia Social e das suas iniciativas cooperativis-tas, mutualistas e associativas pioneiras, procurando “casar” Economia com Democracia, através do princípio de “Um Homem, um voto”, na ges-tão das suas organizações, praticando assim a lógica da auto-gestão10. Conjugava-se intimamente com o princípio da Solidariedade, que assim era afirmada e praticada como uma Solidariedade Democrática e como dinâmica de democratização da Sociedade e de luta pela Igualdade11.

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    SA Mais tarde, a partir de meados do século XIX, como já se referiu12, a Democracia foi sendo corroída, deixando de ser um princípio essencial da Economia Social, ou submetendo-se aos formalismos da Democracia Representativa, tanto no seu próprio funcionamento, como na subordi-nação à tutela do Estado Social (sobretudo a partir do final da 2.ª Guerra Mundial)13.

    Este princípio, na sua pluralidade, combinando Democracia Repre-sentativa com Democracia Participativa, e ampliando a Acção desta ao espaço público14, foi agora retomado, de forma explícita e bem afirmada, pela Economia Solidária, num contexto histórico de crise da Democracia e da necessidade de “democratizar a Democracia”15, tornando-se um dos seus pilares mais importantes.

    Percebe-se pois facilmente as relações íntimas entre a História da Economia Social e a História da Economia Solidária, por um lado, e a História Política, Económica e Social, em geral, por outro.

    É pois nesse sentido que este número 13 da Revista de Economia Solidária é organizado, dando conta de algumas das reflexões que foram partilhadas no Encontro referido.

    No primeiro artigo, eu próprio apresento uma análise comparativa entre os enfoques e as práticas da Economia Social e da Economia So-lidária em quatro países da Europa do Sul (Catalunha, França, Itália e Portugal), sublinhando os diferentes contextos históricos, políticos, económicos e sociais de cada uma destas sociedades e as consequentes semelhanças e diferenciações nas suas práticas e expressões.

    No segundo artigo, a historiadora francesa, Michèle Riot-Sarcey, apresenta algumas notas de enquadramento sobre o sentido das Utopias e da Emancipação na França do século XIX, nomeadamente a partir das experiências das associações de Socorro Mútuo, que foram organizações pioneiras nas práticas dessas lógicas.

    No terceiro artigo, Jean-Louis Laville reflecte algumas das relações entre a Economia Social e Solidária e a História Económica e Social, no caso francês, a partir de uma releitura do papel do Associativismo Soli-dário, desde os seus primórdios, na primeira metade do século XIX, até à actualidade, sublinhando o contributo, por vezes esquecido, deste movi-mento para as experiências de Solidariedade e Democratização emanci-patórias na História, chamando ainda a atenção para as potencialidades que apresenta para responder a muitos dos desafios actuais, ligando-se aos novos caminhos da Economia Solidária.

    No quarto artigo, o historiador português, Álvaro Garrido, propõe uma reflexão teórico-histórica sobre a evolução da Economia Social em Portugal, tendo em conta os contributos de vários autores e estudiosos, que a procuraram definir e interpretar, além dos enquadramentos políti-cos, institucionais e legislativos que a foram contextualizando e apoian-do... ou dificultando.

    No quinto artigo, os catalães Jordi Estivill (sócio economista) e Marc Dalmau (sociólogo) procedem a um balanço bibliográfico e histórico so-bre a Economia Social e Solidária na Catalunha, tendo particularmente em conta três gerações de estudiosos sobre o cooperativismo e os contex-tos históricos contemporâneos.

  • 10Nota EditorialRogério Roque Amaro

    No sexto artigo, a socióloga italiana, Elisabetta Bucolo, começa por analisar as relações e as tensões epistemológicas entre a História e a Sociologia, para tentar depois proceder a uma base de leitura histórica do movimento associativo e cooperativo e apreender as lógicas actuais da Economia Social e Solidária na Sicília e das suas relançou a máfia.

    No sétimo e no oitavo artigos, concretizamos uma das apostas da Revista, que é a de dar expressão de publicação aos melhores trabalhos dos Alunos e das Alunas dos Mestrados em Economia Social e Solidária e em Estudos de Desenvolvimento do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, por escolha e revisão de dois dos seus professores. Neste caso, são ambos do Mestrado em Estudos de Desenvolvimento: o sétimo, de Mayra Gonçalves, licenciada em Relações Internacionais, aborda o papel da Economia Social e Solidária na construção de um Mundo Sustentá-vel, tendo em conta os vários desafios que tal implica; o oitavo, de Hanna Flachs, licenciada em Estudos Culturais Internacionais, analisa os im-pactos de uma Horta Comunitária, na zona de Berlim, como estratégia de Economia Solidária, no Desenvolvimento Comunitário das Comuni-dades envolvidas, e como alternativa à Economia Capitalista.

    No quadro da publicação deste número, é fundamental evo-car aqui os importantes contributos que a Professora Cremilde Tápia, que infelizmente deixou-nos há poucos meses, deu para a causa e para a concretização da Economia Solidária nos Aço-res, em Portugal e na Macaronésia. A Professora Cremilde este-ve nos principais momentos pioneiros dos inícios da Economia Solidária, nomeadamente apoiando, com a força e o carinho da sua motivação e empenhamento, a criação da KAIRÓS e da CRE-SAÇOR. A sua figura imponente, a sua dedicação, os incentivos que nos dava e a força que transmitia deixam-nos saudades, mas a sua Memória e a sua Presença nunca nos deixarão, a nós todos e todas que tivemos o Privilégio de a conhecer e de receber o seu acolhimento, os seus abraço e beijos intensos e sentidos e os seus estímulos.

    Este número da Revista presta-lhe uma Homenagem muito sentida e comovida.

    Muito obrigado, Professora Cremilde! Nunca a esqueceremos!

  • N O TA S

    1 Ver, por exemplo: Mauss, Marcel (2008). Ensaio sobre a Dádiva. Lis-boa: Edições 70, 224 páginas.

    2 Ver, por exemplo: Polanyi, Karl (2012). A Grande Transformação - As origens políticas e económicas do nosso tempo. Lisboa: Edições 70, 540 páginas.

    3 Ver, por exemplo: Godelier, Maurice (2000). O Enigma da Dádiva. Lisboa: Edições 70, 288 páginas.

    4 No Crioulo de Cabo Verde, corres-ponde ao Djunta Mon; no Brasil, ao Mutirão; no Forro de São Tomé e Príncipe, ao Kitembu; nos Andes, ao Minka; em Trás-os-Montes, à Ajuda-da...

    5 Embedded é a expressão utilizada por Karl Polanyi.

    6 É fundamental, desse ponto de vista, revisitar (ou descobrir) os testemu-nhos e as reflexões interessantíssi-mas de Piotr Kropotkin (1842-1921). Ver sobretudo: Kropotkin, Piotr (2009). Ajuda mútua: um fator de evolução. São Sebastião : A Senhora Editora, 272 páginas.

    7 São muito interessantes as reflexões a que se entrega Kropotkin, na obra referida, em contraposição com o que ele designa por uma interpretação estrita e reduzida da “luta pela so-brevivência” da proposta de Charles Darwin (ver, por exemplo, o capítulo 1, pp. 19-39).

    O próprio Darwin escreveu que “Aquelas comunidades que possuíam o maior número de membros mais cooperativos seriam as que melhor floresceriam e deixariam a prole mais numerosa” (2.a ed. inglesa do Livro The Descent of Man and Selection in Relation to Sex (1874). London: John Murray, p. 163).

    Kropotkin aliás argumenta que “Quem são os mais aptos: aqueles que vivem em guerra ou aqueles que se apoiam mutuamente?”, vemos de imediato e sem sombra de dúvida que são estes últimos. Os que ad-quirem hábitos de ajuda mútua têm mais chances de sobreviver e atin-gem, em suas classes respectivas, o desenvolvimento mais elevado do intelecto e da organização corporal” (op. cit., p. 22). E citando um repu-tado zoólogo russo, Kessler, “É óbvio que não nego a luta pela sobrevivên-cia, mas sustento que o desenvolvi-mento progressivo do reino animal, e principalmente da humanidade, é muito mais favorecido pela ajuda mútua do que pela luta de todos contra todos” (op.cit., p.23).

    8 Ver, a este propósito: Laville, Jean--Louis (2018). A Economia Social e Solidária - Práticas, Teorias e De-bates. Coimbra: Edições Almedina, 344 páginas. Cf. sobretudo o capítulo 2 (“Capitalismo e moralização dos pobres”, pp. 65-81): “A solidariedade democrática corresponde à primeira forma de solidariedade. Centrada tanto na auto-ajuda como na ex-pressão reivindicativa (...). Contra esta expressão da solidariedade como princípio de democratização, resultando de ações coletivas, outra versão é progressivamente promo-vida, substituindo o vocabulário da igualdade pelo da benevolência e da

    solicitude. A solidariedade filantrópi-ca corresponde a esta segunda forma de solidariedade que remete para a visão de uma sociedade ética dentro da qual os cidadãos, motivados pelo altruísmo, honram os seus deveres uns para com os outros numa base voluntária” (op. cit., p. 79).

    9 Cf. Hobsbawm, E. J. (1980). L’ère du capital, 1848-1875. Paris: Fayard, 468 páginas.

    10 Cf., por exemplo, Laville (op. cit., capítulo 1, “Democracia e Associati-vismo Solidário”, pp. 41-63).

    11 Ver Laville, op.cit.12 Dependendo obviamente dos países e

    das dinâmicas político-sociais.13 Cf., a este propósito: Laville (op. cit.,

    capítulo 3, “Estado Social e Econo-mia Social”, pp. 83-100).

    14 À maneira de Habermas.15 Cf. Santos, B. S. (2005). Democra-

    tizar a Democracia - Os Caminhos da Democracia Participativa. Porto: Edições Afrontamento, 568 páginas.

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    “Similitudes e diferenças entre os enfoques da economia social e solidária em diferentes países da europa do sul” (Catalunha, França, Itália e Portugal)1

    Rogério Roque Amaro

    Rogério Roque Amaro

    É licenciado em Economia, pelo ISEG, doutorado em “Analyse et Planification du Développement”, pela Université des Sciences Soiciales II de Grenoble (França), com equivalência ao grau de Doutor em Economia, em Portugal. Actualmente, é Professor Associado do Departamento de Economia Política, da Escola de Ciências Sociais e Humanas, do ISCTE-IUL. Pertence à RIPESS - Rede Intercontinental de Promoção da Economia Social e Solidária (ramo Europa) e à RIUESS - Rede Inter--Universitária de Economia Social e Solidária. Colabora e apoia vários projectos e iniciativas de Desenvolvimento Comunitário e de Economia Solidária, tendo sido consultor da ONU e da OIT para Portugal e para vários Países Africanos de Lín-gua Oficial Portuguesa.Contacto: [email protected]

  • PALAVRAS-CHAVEECONOMIA SOCIAL

    ECONOMIA SOLIDÁRIAPERSPECTIVA HISTÓRICA

    SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS

    KEYWORDSSocial Economy

    Solidarity Economyhistorical perspective

    similarities and differences

    RESUMOO objectivo deste artigo é o de comparar, numa perspectiva histórica, em quatro países (Catalunha, França, Itália e Portugal), os contextos, os factores e as características da emergência de dois conceitos: Economia Social, a partir do século XIX, e Economia Solidária, nos últimos cerca de 30 anos. Desta análise resultam semelhanças interessantes e diferenças importantes entre os quatro países, determinadas por diferentes contextos políticos, sociais, institucionais e culturais, apesar das proximidades geográficas. Tenta-se, sempre que possível, encontrar explicações para as situações encontradas. Por último, partilham-se algumas interrogações e desafios que a Economia Solidária apresenta, nos quatro países, perante as grandes questões do Mundo actual, dos pontos de vista da Democracia, da Economia, da Sustentabilidade e dos modelos de regulação.

    ABSTRACTThe aim of this article is to compare the emergence of two concepts - Social Economy, from the 19th century, and Solidarity Economy, from the last 30 years - in four countries (Catalonia, France, Italy and Portugal). Both concepts will be examined in a historical perspective, regarding the national contexts, factors and characteristics. This analysis results in interesting similarities and important differences between the four countries, determined by different political, social, institutional and cultural contexts, despite their geographical proximity. Whenever possible, we try to find explanations for the situations encountered. Finally, we share some questions and challenges raised by the Solidarity Economy in the four countries, in the light of the major issues facing the world today, particularly those of Democracy, Economics, Sustainability and regulation models.

  • 14Rogério Roque Amaro

    1. INTRODUÇÃOEste artigo resulta de uma comunicação apresentada no I Encontro Internacional sobre “O Papel da Cultura Coope-rativa e da Economia Social e Solidária na História Social”, organizada pela Fundació Roca i Galès, em Barcelona, em 14 e 15 de Fevereiro de 2019, com o mesmo título aqui re-produzido, por convite da organização.Tem, como principais objectivos: propor uma leitura de al-gumas das semelhanças e diferenças que os conceitos, mas sobretudo as práticas de Economia Social e Solidária apre-sentam, quando comparamos os quatro países da Europa do Sul, presentes no referido Encontro - Catalunha2, França, Itália e Portugal; sugerir algumas pistas de reflexão e desa-fios, que resultem dessa análise para a construção de diálo-gos e de eventuais acções conjuntas entre os/as actores/ac-trizes de Economia Social e Solidária destes quatro países.Para esse efeito, organizou-se o artigo em mais quatro pon-tos, para além desta Introdução:

    - No ponto 2, procura-se situar e enquadrar esta refle-xão do ponto de vista epistemológico, delimitando o que está em causa e em que parâmetros, quer científi-cos, quer mais pragmáticos, se pretende apresentá-la;

    - No ponto 3, compara-se a afirmação histórica da Eco-nomia Social nos quatro países, a partir do século XIX, procurando enunciar as suas semelhanças e diferen-ças, mas também as suas relações e influências;

    - No ponto 4, analisa-se a emergência, mais recente, a partir dos anos 1980, da Economia Solidária nos qua-tro países, em interacção ou mesmo em reacção ou contraposição à Economia Social e, claro, à Economia de Mercado e ao Estado Social, tentando sublinhar, mais uma vez, as suas semelhanças, diferenças, rela-ções e influências mútuas;

    - Finalmente, no último ponto, procura-se sugerir algu-mas reflexões, interrogações e desafios para o futuro, nomeadamente quanto a potenciais diálogos e acções conjuntas entre os/as principais protagonistas dos quatro países considerados.

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    Similitudes e diferenças entre os enfoques da economia social e solidária em diferentes países da europa do sul (Catalunha, França, Itália e Portugal)

    2. UMA QUESTÃO EPISTEMOLÓGICAÉ importante começar por dizer que a reflexão que aqui se partilha é mais constituída por interrogações e hipóteses do que por certezas e seguranças. Por duas (boas) razões:

    - Porque o conhecimento em que se baseiam estas re-flexões é muito desigual, no que se refere aos quatro países analisados, quer em termos de conhecimento directo das suas práticas e iniciativas, quer quanto aos autores consultados;

    - Porque se coloca a questão epistemológica de saber exactamente o que se deve esperar de uma análise comparativa das realidades de um tema com designa-ção comum, entre quatro países, que, apesar das pro-ximidades geográficas e de algumas similitudes e pa-ralelismos históricos, políticos, sociais e económicos, apresentam muitas outras diferenças e divergências e até de contextos e enquadramentos histórico-políticos, que podem determinar e influenciar situações distin-tas, mesmo que com a mesma denominação - é este o ponto que se discutirá de seguida.

    Normalmente nestas análises comparativas existe uma espécie de “esperança implícita”de que haja, pelo menos, algumas convergências, sobretudo quando se está a falar de países/sociedades onde existem pontos em comum e so-bretudo num contexto de intercâmbios e de diálogos (entre actores e actrizes desses países) sobre um tema (Economia Social e Solidária), através do qual se perfilam e se dese-nham desafios e utopias comuns de construção de Futuros de Dignidade e Sustentabilidade, que invertam os cami-nhos actuais de indignidade e de insustentabilidade, que nos deveriam envergonhar e nos encaminham para várias catástrofes ambientais, mas também sociais, culturais, territoriais, cognitivas, políticas e económicas.Mas a questão (epistemológica) que se pode colocar é se, para o efeito referido, são mais importantes as convergên-cias ou as divergências. Ou ainda, de uma certa forma re-lacionada com a questão anterior, se é mais importante e

  • 16Rogério Roque Amaro

    fecundo que se tenda para a homogeneidade ou para a di-versidade de conceitos e experiências práticas3.Nesta reflexão, a opção epistemológica que se assume é que, para efeitos práticos e políticos da possibilidade de estabe-lecimento de diálogos e plataformas de Acção comum entre os/as protagonistas dos quatro países, o que é fundamen-tal é que as convergências se verifiquem em pontos essen-ciais, para que as referências e princípios nucleares sejam os mesmos, sendo de esperar e admissível (senão mesmo desejável) que existam divergências, tanto acessórias como também nalguns pontos essenciais, defendendo-se aqui que esse é o caminho da Diversidade e da Pluralidade, como pressupostos básicos da Vida.Deste ponto de vista, aliás, é interessante constatar que, enquanto que historicamente a Economia Social, surgida no século XIX, foi tendencialmente mais eurocêntrica e francófona4, pelo menos nas suas origens filosófico-ideológi-cas e culturais, já a Economia Solidária, na sua afirmação recente, a partir dos anos 1980, é muito mais multicultural e policêntrica, nas suas origens, expressões e influências, contando-se, pelo menos três versões - a latino-americana, a francófona e a da Macaronésia5 -, sem que tenha de se tender para um sincretismo entre elas6.Assinala-se também que, enquanto o conceito de Economia Solidária afirmado na Macaronésia assenta numa perspec-tiva ecocêntrica da Solidariedade, envolvendo igualmente todos os Seres Vivos e inclusive os elementos não tróficos do Planeta, a versão predominante na Europa assume-se como fundamentalmente antropocêntrica, centrada, antes de mais, na Solidariedade entre os Seres Humanos, bem na linha de uma certa influência marxista, ao passo que, na América Latina, se propõe uma visão tendencialmente in-termédia, mais popular, mas também com influências das cosmovisões indígenas, abertas a uma lógica mais ecocên-trica (embora sem o teorizar explicitamente dessa forma) e em África parece emergir uma perspectiva mais cultural e identitária, ainda que, por enquanto, pouco explícita e teorizada7.

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    3. ECONOMIA SOCIAL - DIFERENÇAS E SEMELHANÇASNeste ponto, tentar-se-à identificar algumas das princi-pais semelhanças, diferenças e influências mútuas, entre os quatro países mencionados (Catalunha, França, Itália e Portugal), no que se refere à afirmação, prática e teórica, da Economia Social, a partir do século XIX, quando ela sur-giu como uma resposta e uma alternativa aos problemas e às falhas da Economia de Mercado e às concepções da Eco-nomia Política, então em consolidação.Sublinham-se os seguintes elementos de reflexão8:

    a) Os quatro países apresentam, desde o início (século XIX), as três principais formas jurídico- institucionais, que caracterizam a Economia Social, nas suas conquis-tas legais históricas: cooperativas, mutualidades ou as-sociações de socorros mútuos e associações populares.

    Portugal apresenta contudo uma fórmula jurídico-ins-titucional alargada, as Misericórdias9, que lhe é mui-to específica, pelo seu peso, dentro da Economia So-cial10, e que tiveram uma origem “proto-estatal”, uma vez que a primeira, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, foi criada em 15 de Agosto de 1498, pela Rai-nha D. Leonor, no tempo dos chamados “Descobrimen-tos”11, em honra de Nossa Senhora da Misericórdia, seguindo o modelo das “Misericórdias” que já existiam em Itália, para aplicar as designadas “obras de mise-ricórdia” da religião cristã, em particular para acudir e apoiar os órfãos e as viúvas (nomeadamente em re-sultado das mortes de marinheiros nas acções maríti-mas de Portugal) e outras pessoas com dificuldades de sobrevivência, numa espécie de antecipação do futuro Estado-Providência, uma vez que foi uma iniciativa de responsabilidade pública12. Posteriormente as “Miseri-córdias” ficaram entregues à Igreja Católica, tendo-lhe sido retiradas durante a fase anti-clerical de laicização generalizada, correspondente à 1.ª República (1910-1926), que acabou com a Monarquia, até se dar um Golpe Militar, que permitiu a chegada de Salazar ao poder, instituindo um regime ditatorial, até ao 25 de Abril de 1974.

  • 18Rogério Roque Amaro

    Actualmente, as Santas Casas da Misericórdia são da responsabilidade da Sociedade Civil, funcionando, do ponto de vista jurídico-legal, como uma associação pri-vada laica13, embora com a designação de “Irmanda-des” e os/as seus/suas associados/as de “irmãos/ãs”.

    b) Verifica-se uma expansão do movimento associativo ligado à Economia Social, que é relativamente simul-tâneo nos quatro países, na segunda metade do século XIX, em particular no que se refere a mutualidades (ou associações de socorros mútuos) e a cooperativas14.

    c) Há contudo uma certa “especialização” de cada um dos países, sendo as cooperativas particularmente mais presentes na Catalunha e sobretudo na Itália (do tipo A e do tipo B), as mutualidades em França e as associa-ções em França, Portugal e, menos, na Catalunha. Es-tes perfis ainda actualmente são visíveis, como se pode ver no Quadro 1, onde são apresentados dados para o “Emprego remunerado”, por categorias de entidades de Economia Social, para 2014-2015, em comparação com os pesos relativos das populações residentes, em cada país. No Quadro estão a negrito as situações de maior peso relativo, comparando com a proporção de-mográfica15.

    QUADRO 1 - EMPREGO REMUNERADO, POR ENTIDADES DE ECONOMIA SOCIAL,E POPULAÇÃO RESIDENTE, EM QUATRO PAÍSES DA UNIÃO EUROPEIA

    (COM 28 PAÍSES), EM 2014-2015

    COOPERA-TIVAS

    PAÍSES Nº NºNºNº Nº % %%% %

    FRANÇA 2 372 812 66 865 144**1 927 557308 532 136 723 17,4 13,121,47,3 33,5

    ITÁLIA 1 923 745 60 537 709635 6111 267 603 20 531 14,1 11,87,130,2 5,0

    215 963 10 300 300186 75124 316 4 896 1,6 2,02,10,6 1,2PORTUGAL

    MUTUALI-DADES

    ASSOCIAÇÕESE FUNDAÇÕES

    TOTAL POPULAÇÃO*

    UE-28 13 621 535 511 876 252**9 015 7404 198 193 407 602 100,0 100,0100,0100,0 100,0

    * Dados para 2017 ** Dados provisórios

    FONTES: CESE - Comité Économique et Social Européen / CIRIEC - Centre international de recherches et d’information sur l’économie publique, sociale et coopérative (2017). Évolutions récentes de l’économie sociale dans l’Union européenne. Bruxelles: Union Européenne, p. 79; EUROSTAT.

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    Similitudes e diferenças entre os enfoques da economia social e solidária em diferentes países da europa do sul (Catalunha, França, Itália e Portugal)

    d) Na Itália a expressão e o conceito de Economia Social sempre foi muito menos afirmado, sendo muito mais utilizados os conceitos de Economia Civil e, mais tarde, de Terceiro Sector.

    e) É possível identificar influências comuns e mútuas en-tre os quatro países analisados, até pela acção dos in-telectuais que circulavam na Europa, sobretudo os que tinham a França ou a Inglaterra como pontos de pas-sagem ou até de migração ou de exílio, sendo frequente encontrar, em obras de autores dos quatro países em análise, referências aos escritos e às ideias de alguns dos principais nomes associados às filosofias e às ideo-logias da Economia Social, nas suas origens, como Jean Charles Sismondi, Pierre-Joseph Proudhon, Charles Fourier, Robert Owen, Frédéric Le Play, Charles Gide e outros16.

    f) Há ênfases diferenciadas contudo nessas influências: o anarquismo (de Proudhon, por exemplo) e o socia-lismo utópico (de Charles Fourier e de Robert Owen, por exemplo) estão presentes nos quatro, mas de forma mais nítida na Catalunha e em França; o solidarismo católico (acentuado com a influência da Encíclica “Re-rum Novarum”) tornou-se mais presente na Itália e em Portugal, um tanto na Catalunha e menos em França, pelo menos de um ponto de vista relativo (comparan-do com as outras inspirações); o solidarismo maçónico também se encontra nos quatro, mas com mais força na Catalunha e em França.

    g) A inflexão que Frédéric Le Play introduziu em França, de uma Economia Social predominantemente de raiz operária, para outra de matiz mais católica, só apare-ceu mais tarde em Portugal e na Catalunha, entre fi-nais do século XIX e inícios do século XX, quando a in-fluência católica da Encíclica papal “Rerum Novarum” (publicada pelo Papa Leão XIII, em 1891) se passou a fazer sentir mais no discurso sobre a Economia Social.

  • 20Rogério Roque Amaro

    h) Em França, sob a influência directa da Revolução Francesa e dos seus ideais (“Liberté, Égalité et Frater-nité”), a emergência da Economia Social está associada à luta por uma Utopia, centrada naqueles valores e na ideia de Democracia, o que é menos evidente e directo nos outros três países, sem desvalorizar a influência que aquela Revolução teve em todos eles, por inspira-ção indirecta.

    i) Em todos os quatro países há ligações claras entre a afirmação da Economia Social e as lutas dos seus mo-vimentos operários e de conquista dos seus direitos sindicais, sobretudo nos países de maior industriali-zação (Catalunha, França e Norte de Itália) e/ou com forte influência inicial do anarco-sindicalismo (como nos casos da Catalunha e de Portugal), com maiores referências, nestes casos, aos princípios da auto-gestão e do controle operário nas organizações de Economia Social.

    j) Três destes países (Catalunha, Itália e Portugal) co-nheceram períodos de regimes ditatoriais de ideologias fascistas, que tentaram inibir e controlar a Economia Social de base popular (sob a forma de cooperativas, de mutualidades e de associações), enquadrando-as nos seus processos de controle corporativo, pelo que, entre finais dos anos 1920 e os anos 1970, verificou-se nesses países períodos de uma espécie de desertos na afirma-ção da Economia Social, durante a vigência daqueles regimes17.

    k) Em contrapartida, nas fases democráticas dos quatro países, as experiências de Economia Social floresceram e desenvolveram-se, com apoios e incentivos por parte do Estado, passando, em todos eles, a haver uma cer-ta complementaridade, senão mesmo promiscuidade, com as diferentes modalidades de Estado Social que neles existiram, mais tardiamente na Catalunha e em Portugal.

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    l) Em Portugal, as organizações de Economia Social, mais centradas em práticas de solidariedade filan-trópica, frequentemente de natureza assistencialista, a maioria ligadas à Igreja Católica, ou reconhecendo--se na sua doutrina, tornaram-se, na verdade, depen-dentes do Estado, dos pontos de vista financeiro e das orientações estratégicas e operacionais, quase sempre sob o estatuto de reconhecimento político, designado por IPSS-Instituições Particulares de Solidariedade Social, depois de 1974, convertendo-se numa espécie de entidades em “outsourcing” ou em delegação exter-na das funções sociais do Estado Social, podendo-se, nestes casos, falar de uma situação de isomorfismo institucional estatal.

    m) Nos quatro países verificou-se, por outro lado, sobretu-do depois da 2.ª Guerra Mundial, por parte de muitas cooperativas, uma aproximação funcional, filosófica e ideológica às lógicas do Mercado capitalista, por ra-zões de sobrevivência, de concorrência, de abandono ou desleixo dos seus princípios originais18 e/ou de falta de alternativas com criatividade, passando a ser influen-ciadas e formatadas pela Economia de Mercado, confi-gurando situações que se podem designar, neste caso, por isomorfismo institucional mercantil, particu-larmente mais explícito em França e em Portugal.

    n) Apesar disso, as cooperativas continuaram a jogar um papel importante na afirmação da Economia Social nos quatro países, mas muito em particular na Catalunha e na Itália, embora com características diferentes.

    o) Também em todos eles verificou-se, sobretudo depois da 2.ª Guerra Mundial, uma perda assinalável de im-portância das associações de socorros mútuos ou mu-tualidades, em parte pela existência do Estado Social, com as suas funções de Previdência e Protecção Social, mas também por enfraquecimento do impulso solida-rista horizontal e democrático que as anima, sendo esta perda generalizada, é certo, mas particularmente acentuada em Portugal.

  • 22Rogério Roque Amaro

    p) As associações de base popular estão presentes nos quatro países, como já se referiu, tendo tido um cresci-mento e uma afirmação notáveis, em Portugal, depois da Revolução Democrática de 25 de Abril de 1974, co-brindo todo o território, em áreas muito diversas, como a cultura, o desporto, as actividades recreativas e a acção social. Nem sempre foram reconhecidas e valori-zadas como pertencendo, de pleno direito, à Economia Social, tendo sido, durante muito tempo, o seu “parente pobre”, talvez por não pertencerem às suas três gran-des “famílias” nestes países: o movimento operário, a Igreja Católica e as diversas influências maçónicas. Ultimamente têm vindo a ser reinterpretadas e revalo-rizadas, nomeadamente em França19 e na Catalunha20.

    q) Em geral, nos quatro países, verificou-se, nas últimas décadas, uma tendência para o predomínio da Solida-riedade Filantrópica e Vertical (de quem pode para quem não tem), muito por influência de uma certa in-terpretação dos Solidarismos de base Religiosa (nor-malmente de matriz cristã e católica), sobretudo em Itália e em Portugal, acompanhada por uma perda de importância da Solidariedade Democrática e Horizon-tal, mais de raiz operária e alternativa... até surgir, nos anos 1980, o conceito e as práticas de Economia Solidária, sobretudo na Catalunha e em França, como se verá no ponto 4.

    r) Nos quatro países foram aprovados, nos últimos dez anos, quadros legais específicos para a Economia So-cial21: a Lei de Economia Social22 (“Ley de Economia Social”) 5/2011, de 29 de Março, em Espanha; a Lei de Bases da Economia Social23 nº 30/2013, de 8 de Maio, em Portugal; a Lei de Economia Social e Solidária24 (“Loi ESS”), nº 2014-856 de 31 de Julho, em França; a Lei de Reforma do Terceiro Sector25 (“Legge delega pera la riforma del Terzo Settore”) n. 106/2016, de 6 de Junho, na Itália; um novo Projecto de Lei sobre as Em-presas Sociais (Lei 112/17), em 2017, e novos Decretos--Lei de regulamentação do Terceiro Sector (“Codice del

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    Terzo Settore”), apresentados em 2017 (3 de Julho), 2018 (3 de Agosto) e 2019 (4 de Julho), em Itália; uma proposta de Lei de Bases da Economia Social e Soli-dária26, apresentada em Fevereiro de 2019, pela XES - Xarxa de Economia Solidaria de Catalunya, na Cata-lunha. Estes vários quadros legais têm alguns pontos em comum, outros diferentes27, sendo contudo de assi-nalar o facto de apenas a Lei francesa e a proposta da Catalunha indicarem o novo conceito de Economia So-lidária, cuja definição, de uma forma mais completa e transformadora e menos funcionalista, é nesta última que se encontra28.

    s) Note-se que, na Itália, a Economia Civil ou Terceiro Sector sempre funcionou mais numa base regional e só depois nacional, havendo inclusive leis regionais específicas em pelo menos três regiões (Lombardia, Piemonte e Toscana). Contudo, a Lei n. 106/2016 e os consequentes Regulamentos (“Codice”), bem como a criação de um Registo Único Nacional do Terceiro Sec-tor (RUNTS - “Registro Unico Nazionale del Terzo Set-tore”), têm tendido a definir alguma uniformização29.

    4. A EMERGÊNCIA DO(S) CONCEITO(S) E DAS PRÁTICAS DE ECONOMIA SOLIDÁRIANeste ponto, pretende-se analisar as semelhanças e dife-renças existentes nos quatro países referidos (Catalunha, França, Itália e Portugal), no que se refere à emergência, a partir dos anos 1980, do conceito e das práticas de Econo-mia Solidária, como resposta às crises e às falhas da Eco-nomia de Mercado Capitalista, do Estado Social, do Siste-ma Socialista e da própria Economia Social, de que ela é “descendente”, e ainda como proposta de Alternativa, para uma era pós-capitalista, que se reja pela Dignidade e pela Sustentabilidade da Vida, a todos os níveis, da Nossa Casa Comum.Comece-se por sublinhar o carácter policêntrico e multicul-tural da Economia Solidária, uma vez que emergiu (ou res-surgiu) simultaneamente e com autonomias relativas em

  • 24Rogério Roque Amaro

    várias regiões do Mundo, sendo de assinalar sobretudo a sua afirmação específica, pelo menos, na América Latina, na Europa e no Canadá “francês” (Quebeque), na Macaro-nésia, nos E.U.A. e em África. Pode-se mesmo considerar que existem actualmente, pelo menos, três/quatro versões relativamente bem formuladas e estabilizadas: a versão “latino-americana”, a versão ‘francófona”, a versão “da Ma-caronésia” e a versão da “Parecon” (ou da “Participatory Economics”)30.

    Relativamente à análise comparativa, entre os quatro paí-ses, quanto a este tema, sublinham-se as seguintes refle-xões31:

    a) O conceito e as práticas de Economia Solidária estão particularmente afirmadas na Catalunha, onde se criou a Rede de Economia Solidária mais dinâmica, consistente, abrangente, fundamentada e influente (politicamente, em particular) da Europa32, e, a seguir, em França. Menos na Itália e, sobretudo, em Portugal.

    b) O caso de Itália é curioso, uma vez que a designação de “Economia Social” nunca foi muito utilizada33, e surgiu o conceito de Economia Solidária, sem se ter passado por aquela, um pouco à semelhança do que ocorreu na América Latina, onde se passou da Economia Popular para a Economia Solidária, praticamente sem gran-de afirmação da Economia Social (ao contrário do que aconteceu nos outros três países).

    c) A Economia Solidária tem, nestes países, nas suas ma-trizes de influências, várias inspirações, com ênfases diferenciadas, nomeadamente: o anarquismo (e os neo--anarquismos34), sobretudo na Catalunha; o socialis-mo utópico renovado e algumas bases neo-marxistas, mais em França; os movimentos ecologistas e de tran-sição, praticamente em todos, com expressões obvia-mente variadas; algumas posições católicas, fora da instituição, marcadas pelas influências da Teologia da Libertação da América Latina35 e pela filosofia da Eco-

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    Similitudes e diferenças entre os enfoques da economia social e solidária em diferentes países da europa do sul (Catalunha, França, Itália e Portugal)

    logia Integral do Papa Francisco36, mais visíveis em Portugal e também na Itália; as reflexões e propostas da Economia Feminista, bem presentes em França e, mais recentemente, na Catalunha.

    d) De um ponto de vista epistemológico, a perspectiva da Economia Solidária dominante na Catalunha e em França é fundamentalmente antropocêntrica (tendo os interesses e o bem dos seres humanos, Mulheres e Ho-mens, no centro), em grande parte pelas influências marxistas e anarquistas, enquanto que, em Portugal, tende a afirmar-se, nos círculos da Economia Solidá-ria, uma visão mais ecocêntrica (tendo os interesses e o bem de todos os seres vivos, de forma partilhada, no seu epicentro), por influência da versão do conceito da Macaronésia37. No caso de Itália, existem tendências diversificadas, com predominância da primeira pers-pectiva.

    e) Consequentemente, enquanto que, sobretudo na Cata-lunha e em França, mas em parte também na Itália, o conceito de Economia Solidária é abordado, fundamen-talmente, como a conjugação entre as três dimensões tradicionais (já adoptadas para a Economia Social, ainda que com conteúdos reformulados) - económica, social e política -, na Macaronésia e com influência em Portugal, consideram-se explicitamente, além daque-las, mais seis outras dimensões fundamentais - cultu-ral, ambiental, territorial, do conhecimento, da gestão e ética38. Na prática, contudo, estas diferenças não são sempre tão acentuadas nem tão explícitas quanto indi-cado, verificando-se, muitas vezes, uma maior valori-zação das três primeiras dimensões39.

    f) De uma forma bastante generalizada, associado ao tema da Economia Solidária, tem surgido/ressurgido o debate sobre os “Comuns”, enquanto recursos, bens e serviços de apropriação, gestão e/ou utilização comuni-tária (e, portanto, nem pública nem privada, dicotomia que predominou e se impôs desde o século XIX, mo-

  • 26Rogério Roque Amaro

    nopolizando as lógicas de organização e de regulação da economia e da sociedade), ou melhor ainda, como co-actividades de regulação comunitária40, passando a integrar, de uma forma inovadora, novos “Comuns”, nomeadamente imateriais, tais como os valores cultu-rais, o conhecimento (dos mais velhos, por exemplo), os “numéricos” (como o software e os programas infor-máticos), os sistemas urbanos, a moeda, entre muitos outros41.

    g) No que se refere às relações entre a Economia Soli-dária e a Economia Social, as situações prevalecentes nos quatro países são bastante diferenciadas, podendo assinalar-se as seguintes tendências:

    - A Economia Solidária assume-se fortemente, contra-pondo-se (ou mesmo afrontando) à Economia Social tradicional, distinguindo-se claramente desta e nego-ciando com ela plataformas e legislação de interesse comum, em igualdade de posições e de poderes, com acontece actualmente na Catalunha.

    - O mesmo se verifica parcialmente em França, mas de um modo menos afirmado, optando-se, muitas vezes, por opção táctica, pela não diferenciação, pelas conver-gências, quase pela fusão e osmose, ou, pelo menos, de forma sumativa, falando-se de “Economia Social e So-lidária”, sem gerar afrontamentos.

    - Já na Itália não parece ser sequer uma questão re-levante, tendo nomeadamente em conta o que se re-feriu atrás sobre a quase inexistência de referências à expressão e ao conceito de “Economia Social” neste país42, não se constatando esta relação de tensão e/ou de ambiguidades entre estes dois conceitos.

    - Em Portugal, verifica-se um claro confronto e des-confiança em relação à Economia Solidária, que tem tido muitas dificuldades em ser reconhecida como expressão própria, correspondendo a uma realidade

  • 27Articuler communs et économie solidaire : une question de gouvernance ?

    específica e a um conceito, com validade científica e reconhecimento político-institucional. Esta reacção ne-gativa à Economia Solidária tem sobretudo origens em duas das componentes e dos “lobbies” mais fortes e com mais poder e influência da Economia Social em Portu-gal: i) A corrente católica mais tradicional, que se assu-me como a inspiradora “original e autêntica” do valor (moral e filantrópico) da Solidariedade e, portanto, do “ramo solidário da Economia Social”, considerando-se, por isso, a “legítima proprietária” de uma “Economia Solidária”43; ii) A corrente maçónica mais importante em Portugal, que se arroga da “autêntica e original Economia Social” e que rejeita e desconfia da expres-são ‘Economia Solidária”, não só pela sua apropriação católica, como também porque se pretende guardiã do sentido histórico fundador destas áreas, rejeitan-do quaisquer riscos de deturpação ou desvio, e ainda porque entende que a Economia Solidária é, quando muito, um conceito da América Latina, proveniente da Economia Popular, que não faz sentido adoptar na Eu-ropa e, por consequência, em Portugal44.

    h) Sintomaticamente, como se viu na alínea r) do ponto 3, só em França e na proposta da XES para a Catalu-nha se acolheu o conceito de Economia Solidária nas recentes leis de enquadramento da “Economia Social e Solidária”, nesses casos designada dessa forma Foi muito sintomático o caso de Portugal, onde a expres-são “Economia Solidária” foi explicitamente recusada na nomeação da Lei de Bases e nos seus articulados, bem como, depois e sucessivamente, no nome da Régie Cooperativa (cooperativa de interesse público de res-ponsabilidade limitada, ou seja, um organismo semi--público) de enquadramento institucional das redes de Economia Social, designada por CASES - Cooperativa António Sérgio para a Economia Social45, e da mais re-cente CPES - Confederação Portuguesa de Economia Social 46.

  • 28Rogério Roque Amaro

    i) Quanto às relações entre o Estado e a Economia Soli-dária nestes quatro países, para além dos apoios pres-tados à Economia Social, já referidos no ponto 3, só na Catalunha e em França existem, como já se men-cionou, políticas assumidas de apoio à Economia So-lidária, normalmente em conjugação com a Economia Social.

    Em França, esse reconhecimento político tem-se expri-mido pela existência de áreas de governação dedicadas à Economia Social e Solidária, a nível nacional, ainda que com várias interrupções (Secretaria de Estado da Economia Social e Solidária, entre 18 de Outubro de 2000 e 6 de Maio de 2002; Ministério delegado encarre-gado da Economia Social e Solidária, entre 16 de Maio de 2012 e 18 de Junho de 2012; Ministério delegado encarregado da Economia Social e Solidária e do Con-sumo, entre 21 de Junho de 2012 e 31 de Março de 2013; Secretaria de Estado encarregado do Comércio, Artesanato, Consumo e Economia Social e Solidária, entre 2 de Abril de 2014 e 10 de Maio de 2017; e Alto Comissariado da Economia Social e Solidária, no âm-bito do Ministério da Transição Ecológica e Solidária, desde 2017), também a nível dos Departamentos e de muitos Municípios.

    Em 2015 foi criado, no Município de Barcelona, o Co-missariado de Economia Cooperativa, Social e Soli-dária, tendo sido promovido um Plano de Desenvolvi-mento para a Economia Social e Solidária para o perío-do 2016-2019. Em 17 de Maio de 2017 foi criada, por 31 Municípios da Catalunha, uma Rede de Municípios pela Economia Social e Solidária, “para fomentar for-mas novas de produzir e consumir que sejam democrá-ticas, solidárias e sustentáveis, com o objectivo de rea-lizar una transição para um modelo económico mais resistente aos efeitos das grandes crises”47.

  • 29Articuler communs et économie solidaire : une question de gouvernance ?

    Na Itália e em Portugal, como já se referiu, a Econo-mia Solidária não tem sido objecto de políticas públi-cas específicas, a não ser nalgumas regiões, como no caso da Região Autónoma dos Açores - Portugal (onde aliás tiveram início, nos princípios dos anos 1990, as primeiras experiências e iniciativas de Economia Solidária em Portugal), em que foi criada, em 2000, a primeira Rede de Economia Solidária portuguesa (a CRESAÇOR - Cooperativa Regional de Economia Solidária dos Açores, cooperativa de segundo grau, agrupando 22 organizações que se identificavam com aquele conceito) e o Governo Regional promoveu polí-ticas e medidas de apoio a esta área, nomeadamente no quadro das políticas sociais, da luta contra a po-breza e a exclusão social e o desemprego e do progra-ma de Microcrédito, para apoio ao Empreendedoris-mo Inclusivo48.

    De qualquer modo, nestas duas últimas décadas, nos quatro países, as políticas públicas de apoio à Econo-mia Social e Solidária desenvolveram-se e foram mar-cadas por três tipos de influências, em parte contradi-tórias: i) Por “recomendação”, mais ou menos impera-tiva, da União Europeia49, também no quadro do factor que se indica a seguir; ii) Por aplicação da ideologia e das argumentações neo-liberais, dominantes desde os anos 1980, que têm defendido e promovido a “desesta-tização”, a liberalização e a privatização das políticas públicas, em particular nas áreas sociais, a favor do Empreendedorismo Social, do que se tem designado por “Inovação Social” e da delegação de funções do Es-tado Social para a Economia Social e Solidária e para a Responsabilidade Social das Empresas50, abrindo tam-bém as portas para um novo tipo de capitalismo, “mo-ralista” ou “filantrópico”, em que se têm afirmado, por exemplo, o “Social Business” e os “Negócios Sociais”51; iii) Por afirmação de políticas públicas efectivamente alternativas, na promoção de um modelo pós-capita-lista52, como se tem defendido nalgumas formulações, como por exemplo no caso da criação do Comissaria-

  • 30Rogério Roque Amaro

    do de Economia Cooperativa, Social e Solidária, pelo Ajuntament de Barcelona, e da sua promoção de um Plano de Desenvolvimento para a Economia Social e Solidária para o período 2016-2019, como se referiu anteriormente.

    j) Nos últimos anos, o aparecimento das “teorias” e das propostas do “Social Business”, dos “Negócios Sociais”, das “Empresas Sociais” e dos “Social Impact Bonds” (ou “Títulos de Impacto Social”), entre outros, tem cor-respondido a uma forte investida do Capitalismo e da Economia de Mercado nas áreas sociais (e ambientais e culturais), configurando o que se pode designar por tentativas (e tentações...) de moralização do Capitalis-mo e de passagem a uma nova fase de “Capitalismo Moralista ou Filantrópico”, anunciando a junção do “melhor de dois mundos”, a “bondade da missão so-cial” com a “eficiência empresarial”, com três expres-sões principais53: i) “Canto de sereia” para atrair as organizações de Economia Social para a sua “empre-sarialização”, nomeadamente nos métodos de gestão54, tornando-se “eficientes” e convertendo-se em “empre-sas sociais”; ii) Entrada das empresas da Economia de Mercado nos “mercados sociais”, mercantilizando (ou “mercadorizando”) a área social, tornando-a mais um “negócio” interessante para os seus objectivos lu-crativos e... sociais (donde a aplicação da terminologia “Negócios Sociais” ou “Social Business”), apresentados com uma face mais limpa; iii) Aumento e sofisticação das estratégias de “Responsabilidade Social Corporati-va” (ou das Empresas, ou ainda “Cidadania Empresa-rial”, na formulação mais usual nos E. U. A.), para as quais o Estado Social poderá delegar algumas da suas funções.

    Estas lógicas surgiram transversalmente nos quatro países analisados, com pesos e expressões diferencia-das, com mais resistências e “vacinas” na Catalunha e, a seguir, em França, mas de forma mais “desprotegi-da” na Itália e em Portugal.

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    Similitudes e diferenças entre os enfoques da economia social e solidária em diferentes países da europa do sul (Catalunha, França, Itália e Portugal)

    Uma das traduções mais significativas da influências e dos impactos destas lógicas foi o acrescentamento, na legislação sobre Economia Social (e Solidária) e/ou Terceiro Sector, do conceito e da modalidade de “Em-presas Sociais”55 ou a sua consideração em legislação à parte, de certo modo na sequência das recomendações nesse sentido da Resolução do Parlamento Europeu de 2009 sobre a Economia Social, referindo-se explicita-mente a “uma nova família” desta área, “a saber, as empresas sociais”56.

    Dos quatro países considerados, a França e a Itália são os que incluem explicitamente as Empresas Sociais nas suas Leis de enquadramento geral deste sector.

    No caso da França, indica-se, na sua Lei da Economia Social e Solidária (“Loi n° 2014-856, de 31 de Julho), como estando incluídas neste sector as “sociedades co-merciais que, nos termos dos seus estatutos, (...) res-peitem as condições fixadas (no artigo 1.º desta Lei) (...), visem uma utilidade social, no sentido do artigo 2 (...) e apliquem os princípios de gestão (indicados)”57.

    Na Itália, define-se mesmo, na sua Lei delegada de Re-forma do Terceiro Sector (“Legge delega pera la rifor-ma del Terzo Settore”, n. 106/2016, de 6 de Junho), a “empresa social” como “uma organização privada que desenvolve actividades empresariais para fins de uti-lidade (...) (cívica, solidária e social), afecta os lucros prioritariamente para realizar o seu objecto social (...), adopta modalidades de gestão responsável e transpa-rente, favorece a maior participação possível dos seus empregados, utilizadores e outros parceiros interessa-dos nas suas actividades”58.

    Em Portugal, não há uma referência explícita, na sua Lei de Bases da Economia Social, ao termo “Empresas Sociais”59, embora alguns autores e publicações consi-derem que, apesar disso, várias das entidades consi-deradas (como, por exemplo, as que têm o estatuto de

  • 32Rogério Roque Amaro

    reconhecimento político de I.P.S.S. - Instituições Parti-culares de Solidariedade Social e as Pessoas Colectivas de Utilidade Pública) podem ser consideradas como cumprindo os requisitos operacionais da definição usa-da na União Europeia60.

    Pode-se contudo considerar que algumas medidas po-líticas, assumidas nos últimos anos, são convergen-tes com o conceito operacional de Empresa Social da União Europeia, como é o caso da Lei nº 18/2015 (de 4 de Março), que define o regime jurídico do capital de risco, do Empreendedorismo Social e do investimento alternativo especializado, transpondo várias directivas e regulamentos da União Europeia, e também do Novo Código Cooperativo (Lei nº 119/2015, de 31 de Agosto) que, como já se referiu, criou a figura de “membro in-vestidor” e da possibilidade de serem atribuídos “votos plurais”61.

    Na Catalunha, assinale-se que no “Plan de Impulso de la Economía Social y Solidaria en Barcelona”, promo-vido pelo Ajuntament de Barcelona, se refere explici-tamente que as “novas iniciativas podem surgir tan-to como empreendimentos sociais e colectivos, como através da reconversão de empresas mercantis em for-matos de ESS”62, o que configura uma certa abertura à ideia de Empresas Sociais, desde que assumam o for-mato (e os princípios) da Economia Social e Solidária. Por outro lado, a proposta de Lei da Economia Social e Solidária, preparada pela XES - Xarxa (Rede) de Eco-nomía Solidaria, não contém nenhuma referência ex-plícita às Empresas Sociais.

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    5. ALGUNS DESAFIOS E INTERROGAÇÕES Tomando em consideração as análises comparativas dos pontos anteriores, parece importante sublinhar algumas reflexões, como desafios e interrogações para o futuro da Economia Social e Solidária. Sugiro as seguintes:

    a) Que contributo político podem dar as iniciativas de Economia Solidária dos quatro países para a revitali-zação da Democracia, para democratizar a Democra-cia, num momento em que ela está tão em perigo, em tantos países, sabendo que a Democracia Participativa (interna, na organização, e externa, no espaço público) é um dos pilares distintivos e decisivos da sua defini-ção e das suas práticas ?

    b) Que contributo político podem dar também, nos quatro países, para um novo projecto político (de Esquerda ?) para o século XXI, que recupere as fontes mais inspira-doras da Solidariedade, da Equidade e da Dignidade (o Socialismo ?) e lhes acrescente os desafios e as propos-tas do Ecologismo, do Feminismo e das Epistemologias do Sul, entre outros, para uma nova visão (Ecocêntrica e Integral) das sociedades do século XXI, tendo em con-ta que essas são algumas das componentes essenciais da Economia Solidária ?

    c) Que contributo político podem dar ainda, nos quatro países, para a redefinição e uma nova delimitação do que é o “político” e quais são as novas configurações dos “espaços públicos”, com a inclusão dos Comuns e das regulações comunitárias, recusando as dicotomias simplistas predominantes no século XX (Estado - Mer-cado; Público - Privado; Socialismo - Capitalismo...), como os novos desafios que, desse ponto de vista, a Economia Solidária alberga, nomeadamente no alar-gamento comunitário do que é o “público”, que, dessa forma, deixa de ser monopólio do Estado, passando a ser partilhado com as Comunidades63 ?

  • 34Rogério Roque Amaro

    d) Que contributos pode dar a Economia Solidária, nos quatro países, para uma Governança Partilhada e Par-ticipativa64, como um novo modelo de regulação das so-ciedades e da economia para o século XXI, implicando uma efectiva parceria equitativa entre o Estado (aos seus diferentes níveis geográficos - nacional, infrana-cional, supranacional e global), a Sociedade Civil (em particular, as Organizações da Economia Solidária) e as Empresas (numa lógica de Responsabilidade Social Corporativa), sem se confundir com a lógica claramen-te de inspiração neo-liberal, inerente às propostas de Tony Blair, sobre uma “Terceira Via” ou de David Ca-meron, sobre uma “Big Society”65 ?

    e) Que contributos podem dar as experiências de Eco-nomia Solidária, nos quatro países, para uma visão plural da Economia, para a sua redefinição como con-ceito substantivo (e não meramente técnico-formal), como práticas e como pedagogia (de ensino nos cursos de Economia) ? Que novas perspectivas para a Ciên-cia Económica e para as teorizações económicas, por se passar a incluir o Princípio Económico de Recipro-cidade, que constitui o ADN da Economia Solidária, (e também o de Domesticidade, inerente à Economia Doméstica, também ela esquecida...), para além dos tradicionais e dominantes Princípios Económicos de Mercado e de Redistribuição (pelo Estado), que são os que as universidades ensinam66 ?

    f) Que fusões e interacções, e não apenas diálogos, são possíveis entre a Economia Solidária, nos quatro paí-ses, e as interrogações, críticas e propostas da Econo-mia Feminista, que tem sugerido múltiplas perspec-tivas inovadoras, com expressões variadas naqueles países67 ?

    g) Que fusões e interacções entre as experiências de Eco-nomia Solidária dos quatro países e as suas iniciativas de Desenvolvimento Comunitário, tendo em conta que são duas correntes práticas e teóricas que têm mui-

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    tos pontos em comum e muitas sinergias e influências mútuas, pelo que só têm a ganhar em cooperar e tra-balhar em conjunto, dos pontos de vista da produção e da inovação do Conhecimento, mas também da Acção Política e das estratégias práticas comuns ?

    h) Que contributos assumidos, nos quatro países, a partir da Economia Solidária, para se conseguir uma re-sig-nificação do conceito e das práticas de Desenvolvimen-to Sustentável e do seu diálogo e interacções políticas e de acções conjuntas com os princípios inerentes às expressões congéneres de Sumak Kawsay, Suma Qa-maña e Buen Vivir, provenientes de outras cosmovi-sões e de epistemologias do Sul, na luta por um Futuro com Dignidade e Sustentabilidade68 ?

    i) Que contributos das histórias (e das estórias) da Eco-nomia Social e da Economia Solidária, nestes quatro países, para dialogar, interrogar, reler e enriquecer a História Económica e Social das suas sociedades e do Mundo, em geral ? E, vice-versa, que desafios e inter-rogações coloca esta àquelas, para enriquecer a sua compreeensão ?69

    j) Quais as articulações, cooperações e interacções de tra-balho entre estes quatro países, no que se refere a estes domínios, e, por exemplo, entre as suas Redes de Eco-nomia Solidária, tendo nomeadamente em conta que elas se encontram em estádios muito diferentes de afir-mação e de reconhecimento académico, político e social: já com bastante visibilidade e poder a da Catalunha, separada da Economia Social; tendencialmente mais envolvidas (ou “enroladas” ?) com a Economia Social, as que existem em França; bastante dispersas, geográ-fica e institucionalmente, as que se tentam afirmar na Itália; quase na clandestinidade e (ainda) sem reconhe-cimento político e com resistências, por parte dos prin-cipais “lobbies” da Economia Social, em Portugal ?

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    1 Este texto é escrito, por opção do autor, segundo as regras da ortografia anterior da Língua Portuguesa.

    2 É certo que a Catalunha ainda não é um país independente, mas aqui designa-se como tal, por três razões: por solidariedade com os nossos Companheiros da XES - Xarxa (ou Rede) de Economia Solidaria da Catalunha, uma das mais dinâmicas da Europa, que se têm afirmado maioritariamente independentistas e lutado coerentemente por tal objectivo; por respeito e fidelidade à lógica que subjazeu ao Encontro referido; e por crença na inevitabilidade da independência da Catalunha, sobretudo depois de ter participado activamente, com a minha Companheira destas e doutras Aventuras e Caminhos, Bárbara Ferreira, em Outubro de 2017, nalgumas das iniciativas emblemáticas da afirmação desse sonho de tantos e tantas catalões e catalãs.

    3 Esta questão é particularmente pertinente quando se discute o conceito e as práticas (relativamente recentes) de Economia Solidária, atendendo à diversidade de concepções, expressões e representações de que ela tem sido objecto. Um bom exemplo disso foi o que se passou no (4.º) “Encontro Internacional de globalização da Solidariedade” (ou de promoção da Economia Social e Solidária), promovido pela RIPESS - Rede Intercontinental de Promoção da Economia Social e Solidária), realizado, em 2009, no Luxemburgo, subordinado ao tema “Existe uma outra Economia: as inovações da Economia Social e Solidária”, em que, a propósito da diversidade de noções de Economia Solidária, muitos/as dos/as participantes dividiram-se em duas posições: a dos que, defendendo a uniformização e homogeneidade do conceito (sobretudo europeus), justificaram provisoriamente aquela diversidade pelo facto de ser um conceito ainda recente e, portanto, pouco amadurecido, mas que deveria tender, inevitável e desejavelmente, para uma definição única; a dos que, defendendo a pluralidade e heterogeneidade (sobretudo latino-americanos), fundamentaram, como definitiva e desejável, aquela diversidade, pelas suas origens plurais e multiculturais.

    4 Mas, ainda assim, dando azo a várias interpretações e delimitações, com divergências, sobretudo após a “entrada em cena” das terminologias, mais anglo-saxónicas, de “Terceiro Sector”, “Sector não lucrativo” ou “Organizações sem fins lucrativos” (“non profit organizations”).

    5 Assim se designa o conjunto de três regiões insulares (Região Autónoma dos Açores - Portugal, Cabo Verde, Região Autónoma das Canárias - Espanha e Região Autónoma da Madeira - Portugal), no quadro da qual se afirmou, no início dos anos 1990, uma versão autónoma de iniciativas e do conceito de Economia Solidária - cf. AMARO, R. R. (2009). A Economia Solidária da Macaronésia - Um Novo Conceito. Revista de Economia Solidária, 1, pp. 11-28 e AMARO, R. R. (2016b). A Sustentabilidade das Organizações de Economia Solidária - proposta de conceptualização e de avaliação. Revista de Economia Solidária, 10, pp. 98-123. E ainda se pode referir uma quarta versão, correspondente à proposta da “Participatory Economics” ou Parecon, com origem nos E.U.A. - cf., por exemplo: ALBERT, M. (2003). Parecon - Life after Capitalism. London - New York: Verso, 334 p; FOTOPOULOS, T. (1997). Towards an Inclusive Democracy - The crisis of the growth economy and the need for a new liberatory project. London and New York: Cassell, 401 p; e FOTOPOULOS, T. (2005). Participatory Economics (Parecon) and Inclusive Democracy. The International Journal of INCLUSIVE DEMOCRACY, Vol.1, No.2, January, pp. 1-23.

    6 Ver nota 4.7 Cf.: AMARO (2009); CORAGGIO,

    J.L. (2011). La presencia de lá Economia Social y Solidaria (ESS) y su institucionalización en América Latina. Revista de Economia Solidária, 3, pp. 36-73; e LAVILLE, J.-L. (2018). A Economia Social e Solidária - Práticas, Teorias e Debates. Coimbra: Almedina / CES-Centro de Estudos Sociais, 344 p.

    8 Cf., entre outros, para os pontos refletidos: CESE - Comité Économique et Social Européen / CIRIEC - Centre international de recherches et d’information sur l’économie publique, sociale et

    coopérative (2012). L’ Économie Sociale dans l’ Union Européenne. Bruxelles: Union Européenne, 127 p; CESE - Comité Économique et Social Européen / CIRIEC - Centre international de recherches et d’information sur l’économie publique, sociale et coopérative (2017). Évolutions récentes de l’économie sociale dans l’Union européenne. Bruxelles: Union Européenne, 139 p; ESTIVILL, J. (2009). Navegando por los Mares de lá Economía Social y Solidaria. Existe un rumbo mediterráneo ? Revista de Economia Solidária, 1, pp. 69-85; ESTIVILL, J. (2015a). “Mouvement associatif en Espagne: ouverture démocratique et permanence historique”, in J. Laville, A. Salmon (dir.), Associations et action publique. Paris: Desclèe de Bouwer, pp. 349 - 378; ESTIVILL, J. (2017a). Os primórdios da economia social em Portugal. Contributos de Ramon de la Sagra - I Parte. Sociologia: Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Vol. XXXIII, pp. 19-45; ESTIVILL (2017b). Os primórdios da economia social em Portugal. Contributos de Ramon de la Sagra - II Parte. Sociologia: Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Vol. XXXIV, pp. 11-26; ESTIVILL (2018). Europa a les fosques - Politiques socials en els feixismes”. Barcelona: Icaria Editorial, 343 p; EUROFOUND (2019), Cooperatives and social enterprises: Work and employment in selected countries. Luxembourg: Publications Office of the European Union, 69 p; GARRIDO, A. (2016), Uma história da economia social. Lisboa, Tinta da China, 317 p; LAVILLE, J.-L. (2015). Asociarse para el bien común - Tercer Sector, Economía Social y Economía Solidaria”. Barcelona: Icaria Editorial, 214 p; MARTINEZ- RODRIGUEZ, S. (2010). Catalunya, un País de Cooperatives - Recuperació i digitalització del patrimoni cooperatiu de Catalunya: L’Arxiu Històric del Govern Civil de Barcelona. Barcelona: Generalitat

  • de Barcelona / Departament de Treball - Unió Europeia / Fons Social Europeu, Estudi d’ Aposta, SCCL, 115 p; SANTOS, J. H. (2009). Maneiras cooperativas de pensar e agir: Contributo para a História do Cooperativismo. Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas, 289 p; e ZAMAGNI, S. (s.d.). La Geografia dell’ Economia Civile dell’ Italia Repubblicana. Bologna: AICCON - Associazione Italiana per la Promozione della Cultura della Cooperazione e del Non Profit, 31 p.

    9 Existem “Misericórdias”, ou melhor, ‘Santas Casas da Misericórdia”, em todos os 308 concelhos portugueses (278 em Portugal Continental, 19 na Região Autónoma dos Açores e 11 na Região Autónoma da Madeira), sendo que alguns concelhos têm mais do que uma.

    10 Só existem “Misericórdias” em mais onze países, além de Portugal: a Itália, que é o país onde surgiram pela primeira vez (em 1244, em Florença) e que ainda tem 700 “Misericórdias”, Angola, Brasil (ambos por influência portuguesa), Espanha (onde ainda existem sete, sendo a mais antiga a de Barcelona, criada em 1583), França (com uma “Misericórdia”, criada em Paris, em1994, para apoiar os emigrantes portugueses), Luxemburgo (onde também foi criada uma, em 1996, igualmente para apoiar os emigrantes portugueses), Macau (com uma das “Misericórdias” mais antigas, criada em 1569, pelos portugueses), Moçambique (por influência de Portugal), Palestina (criada uma em Belém, em 2013, por influência de Itália), São Tomé e Príncipe (uma, igualmente por influência portuguesa) e Ucrânia (que foi retomada nos anos mais recentes, após ter sido proibida no tempo da União Soviética).

    11 1498 foi exactamente o ano de um dos feitos mais importantes desse processo histórico, o da chegada à Índia das naus portuguesas, sob o comando de Vasco da Gama, por caminho marítimo, circundando o continente africano, a primeira vez na História que tal aconteceu.

    12 Embora, nessa altura ainda não possamos falar da existência de um Estado, no sentido moderno. Daí a referência a uma lógica “proto-estatal”.

    13 Com excepção da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que é uma pessoa coletiva de direito privado e utilidade pública administrativa, pelo que depende do Governo, sendo a Mesa Administrativa por ele nomeada, além de assumir, na prática, as funções da Acção Social pública na Cidade de Lisboa, substituindo a Segurança Social.

    14 Jordi Estivill, numa investigação bem documentada sobre esse período, apresenta alguns dados que o comprovam, comparando Portugal, a Espanha, a França e a Itália, a partir de informações recolhidas em autores, como, respectivamente: GOODOLFIM, C. (1876). A Associação. História e desenvolvimento das Associações Portuguesas.Lisboa: Imprensa Nacional; CASTILLO, S. (1994). “Las sociedades de Socorros Mutuos em lá España Contemporanea, in CASTILLO, S. (ed.). Solidaridad desde abajo. Trabajadores y socorros mutuos en la España contemporánea. Madrid: U.G.T. - Centro de Estudios Históricos, pp. 1-29; SOLÀ, P. (1994). “El mutualismo contemporáneo en una sociedade industrial. Anotaciones sobre El caso catalán (1880-1939), in CASTILLO, S. (ed.). Solidaridad desde abajo. Trabajadores y socorros mutuos em la España contemporánea. Madrid: U.G.T. - Centro de Estudios Históricos, pp. 71-86; GUESLIN, A. (1987). L’invention de l’ économie sociale. Paris: Ed. Economica; QUERUBIN, A. (1977). Storia delta Previdenza Sociale.Roma: Ed. Riuniti. Cf. ESTIVILL (2017a: 37).

    15 Cf., entre outros: CESE/CIRIEC (2017: 75-110), ESTIVILL (2009), MARTINEZ-RODRIGUEZ (2010) e ZAMAGNI (s.d.). Os dados sobre as entidades de Economia Social foram retirados de CESE/CIRIEC (2017: 79). Não foi possível obter dados equivalentes para a Catalunha, pelo que se apresenta apenas para a Espanha, no seu todo.

    16 Cf., a este propósito, ESTIVILL (2017a) e ESTIVILL (2017b).

    17 Para o caso português, cf., por exemplo: GARRIDO (2016); SANTOS (2009). Em ESTIVILL (2018) encontram-se elementos de comparação entre estes três países.

    18 Nomeadamente no que se refere aos princípios da auto-gestão e da democracia e da procura de uma lógica económica assente no primado do interesse comum e do interesse geral sobre o interesse particular e na prossecução de fins sociais e não lucrativos, como na Economia de Mercado.

    19 Cf., por exemplo, LAVILLE (2015).20 Cf., por exemplo, ESTIVILL (2015a).21 Na sequência e por incentivo da

    adopção da Resolução do Parlamento Europeu, de 19 de Fevereiro de 2009, sobre a Economia Social (2008/2250(INI)), que convidava os Estados membros a melhorar a visibilidade da Economia Social, adoptando, entre outras medidas, legislação visando reconhecê-la e promovê-la. Nessa sequência, também foram aprovadas posteriormente leis similares na Roménia (2015) e na Grécia (2016).

    22 Definida como “o conjunto das actividades económicas e empresariais, que no âmbito privado levam a cabo aquelas entidades que, em conformidade com os princípios (...) (a) Primazia das pessoas e da finalidade social sobre o capital (...); b) Aplicação dos resultados obtidos da actividade económica principalmente em função do trabalho realizado e do serviço ou actividades realizada

  • (...); c) Promoção da solidariedade interna e com a sociedade (...); d) Independência em relação aos poderes públicos), prosseguem tanto o interesse colectivo dos seus membros, como o interesse geral económico ou social, ou ambos” (Art. 2.º e Art. 4.º).

    23 Definida como “o conjunto das atividades económico-sociais, livremente levadas a cabo pelas entidades (...), cooperativas, associações mutualistas, misericórdias, fundações, instituições particulares de solidariedade social (...), associações com fins altruísticos (...), entidades abrangidas pelos subsectores comunitário e autogestionário (...) e outras entidades (...), que têm por finalidade prosseguir o interesse geral da sociedade (...)” (Art. 2.º, nos. 1 e 2 e Art. 4.º).

    24 Definida como “um modo de empreender e de desenvolvimento económico adaptado a todos os domínios da actividade humana ao qual aderem pessoas morais de direito privado que preenchem as condições cumulativas seguintes: 1.º Uma finalidade diferente da que só visa a distribuição dos lucros; 2.º Uma governança democrática (...); 3.º Uma gestão de acordo com os seguintes princípios: a) Os excedentes são maioritariamente consagrados ao objectivo de manutenção ou de desenvolvimento da actividade da empresa; b) As reservas obrigatórias constituídas não podem ser partilhadas nem distribuídas (...)” (Art. 1.º - I),

    25 Definido como “o complexo de entidades privadas constituídas para a prossecução, sem fins lucrativos, de finalidade cívica, solidária e de utilidade social e que, em aplicação do princípio de subsidiariedade e em coerência com os respectivos estatutos ou actos constitutivos, promove e realiza actividades de interesse geral, mediante formas de acção voluntária e gratuita ou de mutualidade ou de produção e troca de bens e serviços” (Art. 1, nº 1).

    26 Definida como “um conjunto de iniciativas, cujos membros, de forma associativa, cooperativa, colectiva ou individual, criam, organizam e desenvolvem democraticamente e sem que tenham necessariamente

    fins lucrativos, processos de produção, de trocas, de gestão, de distribuição do excedente, moeda, consumo e financiamento de bens e serviços para satisfazer necessidades, que se regem por relações de solidariedade, cooperação, dádiva, reciprocidade e autogestão defendendo os bens comuns, naturais e culturais e a transformação equitativa da economia e da sociedade com a finalidade do bem viver e da reprodução e da sustentabilidade da vida do conjunto da população” (Art. 1.�