A ESCRITA DO CORPO FEMININO NEGRO NA POESIA DE MIRIAM ALVES

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A ESCRITA DO CORPO FEMININO NEGRO NAPOESIA DE MIRIAM ALVES

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  • Revista da ABPN v. 5, n. 9 nov.fev. 2013 p. 37-56 37

    A ESCRITA DO CORPO FEMININO NEGRO NAPOESIA DE MIRIAM ALVES1

    Cristian Souza Sales2

    RESUMO

    Este trabalho tem por objetivo analisar como a produo literria feminina afro-brasileira contempor-

    nea tem colaborado para construir outras formas de escrita do corpo feminino negro. Atravs de suas

    poesias, partindo de um ponto de vista privilegiado e particular, escritoras afro-brasileiras como Miriam

    Alves, apresentam olhares que se distanciam, questionam e rasuram imagens estereotipadas,

    etnocntricas e falocntricas, elaboradas historicamente por uma tradio cultural brasileira.

    Palavras-chave: Poesia afro-brasileira, escrita feminina, corpo, Miriam Alves.

    THE WRITING of BLACK FEMALE BODY IN THE POETRY OF MIRIAM ALVES

    ABSTRACT

    This study aims to analyze how contemporary Afro-Brazilian female literary production has collaborated

    to build other forms of writing the black female body. Through their poetries, from a privileged and

    particular point of view, Afro-Brazilian writers like Miriam Alves, presents glances that are distance

    themselves, and also they inquire and erase stereotypical, ethnocentric and phallocentric images,

    historically developed by a Brazilian cultural tradition.

    Keywords: Afro-Brazilian poetry, female writing, body, Miriam Alves.

    IMPRESSION NOIR ET BLANC CORPS FEMININ DANS POSIE DE MIRIAM ALVESRSUM

    Cet article vise examiner comment la femelle afrobrasileira la production littraire contemporaine a

    permis de construire dautres formes de lcriture du corps fminin noir. Grce sa posie, partir dun

    point de vue et en particulier les Afro-brsiliens des crivains tels que Miriam Alves, ont les yeux qui

    sont loigns, et les images strotypes, question rasuram ethnocentriques et phallocentrique,

    historiquement dvelopp par une tradition culturelle brsilienne.

    Mots-cls: La posie afrobrasileira, lcriture fminine, corps, Alves Miriam

    1As reflexes apresentadas neste artigo foram desenvolvidas durante a elaborao da

    dissertao de mestrado intitulada Composies e Recomposies: o corpo feminino negro

    na poesia de Miriam Alves. (SALES, 2011).

    2Professora de Literatura brasileira e afro-brasileira, Universidade Aberta do Brasil-UAB.

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    LA ESCRITURA DEL CUERPO FEMENINO NEGRO EN LA POESA DE MIRIAM ALVESResumen

    Este trabajo tiene el objetivo de analizar cmo la produccin literaria femenina afrobrasilea

    contempornea aporta en la construccin de otras formas de escritura del cuerpo femenino negro.

    Partiendo de un punto de vista privilegiado y particular, a travs de sus poesas, escritoras afrobrasileas

    como Miriam Alves presentan miradas que se alejan, cuestionan y tachan imgenes estereotipadas,

    etnocntricas y falocntricas constituidas histricamente por una tradicin cultural brasilea.

    Palabras clave: Poesa afrobrasilea, escritura femenina, cuerpo, Miriam Alves.

    1. CONSTRUINDO UM HORIZONTE DE REFLEXO SOBRE O CORPO FEMININONEGRO

    Compor, Decompor,Recompor

    Olho-me espelhos

    Imagensque no me contm

    Perdem-sede meu corpo

    as palavrasDecomponho-me

    [...]Recompondo-me

    sentada na

    salade

    esperafalando com

    meus

    fantasmas (ALVES, 1985, p. 32, grifos meus).3

    3Poema publicado pela autora em sua segunda antologia potica Estrelas no dedo em 1985.

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    O corpo a primeira forma de visibilidade humana que desperta interesses, teorias e interpreta-es em diferentes reas do conhecimento. Da medicina s artes, da biologia cultura, multiplicam-seexplicaes quanto aos seus aspectos anatmicos, tnicos e estticos. No campo natural e biolgico,o corpo fsico dado como uma materialidade finita. Contudo, para alm de seu carter biolgico, ocorpo humano sofre interferncias ideolgicas, culturais, religiosas, polticas, assim como de gnero,raa e classe.

    Em Corpo, conhecimento e educao: notas esparsas, Carmem Soares (2006, p.3) afirmaque em um sentido mais agudo de sua presena, como materialidade polissmica, constitudo pormltiplas significaes, o corpo invade lugares exige compreenso, determina funcionamentos soci-ais, mas tambm sofre determinaes pedaggicas4. Nele, a sociedade circunscreve o seu retrato,impondo limites sociais e psicolgicos a sua conduta moral. Esta tambm fixa sentidos e valores,submetendo o corpo a normatizaes, a disciplinamentos e as coeres, alm de privilegiar um dadonmero de atributos fsicos e padres estticos que o transformam e o definem dentro de uma escalaentre o aceitvel e o inaceitvel. E o modo como este se move e modifica-se revela trechos da histriado contexto histrico-social a que pertence (SOARES, 2006, p. 110)5.

    Em possvel realizar uma histria do corpo, Denise Bernuzzi SantAnna (2006, p. 3) apre-senta abordagem semelhante a de Soares, j que considera a possibilidade de leitura do corpo a partirde duas dimenses, abrindo espao para reflexes sobre o tema, tanto na esfera biolgica quanto nacultura e/ou simblica. Para a autora, o corpo uma instncia biocultural que determinada poraspectos naturais, morais, religiosos e histricos. Territrio simblico onde atuam foras que nocessam de inquietar e confrontar. um verdadeiro arquivo vivo: talvez seja o mais belo trao damemria da vida dos sujeitos (SANTANNA, 2006, p. 3).

    4Refiro-me ao artigo intitulado Corpo, conhecimento e educao: notas esparsas, publicado

    no livro Corpo e histria, organizado pela autora. Nele, Soares desenvolve a sua abordagem

    sobre o corpo no mbito da educao.

    5Ao mencionar disciplina e coeres, estou me referindo s reflexes propostas por Michael

    Foucault, em Vigiar e Punir (1975). Foucault (1997, p.132) observa que durante a poca

    clssica, houve uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder, tornando-se

    artefato de controle, principalmente, por causa de elementos significativos, relativos ao

    comportamento, linguagem, aos movimentos e sua organizao. Conforme explica o

    autor, durante o sculo XVIII havia muitos processos disciplinares para os corpos, os

    quais eram normalmente realizados em conventos, nos exrcitos, nas prises e nas

    oficinas. Entretanto, outras formas gerais de dominao dos corpos comearam a aparecer

    em outros lugares e de outras maneiras a partir daquele sculo.

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    De acordo com SantAnna, investigar seus segredos e sua histria uma tarefa ampla e escor-regadia, pois quando se pesquisa o corpo por meio de suas inmeras via - biolgica, cultural, educa-cional, poltica, antropolgica, entre outras -, preciso destacar uma questo geral: como uma dadacultura ou um determinado grupo social criou maneiras de conhec-lo e control-lo? (SANTANNA,2006, p. 3).

    Portanto, diferentemente de realizar uma histria do corpo, SantAnna orienta que talvez sejamais instigante realizar investigaes sobre algumas das ambies de govern-lo e organiz-lo,pois cada vontade de manter o corpo sob o controle constituda por ideologias, especificidades egeneralidades culturais. Assim exposto, a autora ressalva que preciso levar em conta como umadada cultura o define e o interpreta, ou ainda, de que forma um determinado grupo social crioumaneiras de conhec-lo, govern-lo e control-lo, impondo-lhe condutas morais, sociais, raciais ede gnero ou definindo padres estticos. (SANTANNA, 2006, p. 3).

    Numa vertente de reflexo mais restrita, Nilma Lino Gomes (2006, p. 261), em Sem perder araiz: corpo e cabelo como smbolo de identidade negra, corroborando com as reflexes propostaspor SantAnna e por Soares, diz que para alm do princpio de apreenso do corpo em suaespecificidade biolgica ou mesmo em suas funes puramente fisiolgicas, aproximando-o dasrelaes de sentido e de significao, interpretado em sua materialidade simblica, o corpo estlocalizado em um terreno social e subjetivamente conflitivo6.

    Segundo Gomes, ao longo da histria, o corpo se tornou emblema tnico, smbolo a serexplorado, manipulado e transformado nas relaes de poder e de dominao para marcar assimetriassociais, classificar, hierarquizar e estabelecer desigualdades na distribuio de poder entre gruposraciais distintos por causa de fentipos como a cor da pele. Assim, a sua aparncia fsica passou adifundir mensagens e a integrar significados ideolgicos relacionados a atributos negativos e positi-vos, introjetados por regras sociais, padres estticos, cdigos de comportamento moral, transfor-mando-se em objeto de reflexo e de apelo da cultura dominante, sendo por ela, tocado, modela-do, modificado, violentado e agredido (GOMES, 2006, p. 261-262).

    Nesse sentido, a autora passa a discorrer sobre o corpo negro, pois segundo ela, no processohistrico, cultural e poltico brasileiro, o corpo negro foi tocado, modificado, agredido e violentado nasrelaes de poder mantidas entre brancos e afrodescendentes. Gomes explica que o corpo negro foi usado

    6O trabalho realizado pela autora sobre o corpo negro, em particular, sobre o cabelo, est

    relacionado esttica, beleza e identidade negra presente no universo dos sales tnicos.

    Embora Gomes no trate das representaes literrias do corpo feminino negro, suas

    consideraes sobre o significado deste corpo no mbito da cultura so importantes para

    a composio de nossa reflexo.

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    como um dos sinais diferenciadores mais evidentes pelo racismo para estabelecer hierarquias entre asclasses sociais no Brasil e para marcar a referncia negra de um sujeito, e, dessa forma, justificar suaposio social subalterna. (GOMES, 2006, p. 261). Sobre este, agiram duplamente a violncia fsica esimblica, investindo no controle de sua aparncia, movimentos, gestos, expresses, desejos, vontades,experincias com vistas a manter em equilbrio a sociedade brasileira e suas Instituies7.

    Essa uma das razes pelas quais, na construo de sua identidade, na sociedade brasileira, osnegros, sobretudo, as mulheres negras por meio de um aprendizado contnuo, precisam aprender alidar, desde sempre, com um movimento tenso de aceitao e rejeio, negao e aceitao deseus corpos. (GOMES, 2006, p. 262). Ainda meninas, as mulheres afrodescendentes so impelidas aconviver, cotidianamente, com os referentes de beleza, de poder, de pertencimento, de insero e deexcluso social, estabelecidos pelos padres da esttica branca, vinculados ao corpo da mulher,concernentes forma, ao movimento, proporcionalidade, cor da epiderme e textura do cabelo.

    Na menina, na moa e na mulher negra, isto gera trs tipos de posicionamentos, relacionados aomodo como elas veem o seu corpo negro: a aceitao de suas diferenas, de seus traos tnicos e,como, consequncia elevao de sua autoestima a autoafirmao de sua esttica afrodescendenteou mesmo a rejeio do que visualizamos diante do espelho. Essa ambivalncia entre a aceitao e arejeio de nossas diferenas, significa o estar no mundo primeiro no plano da rejeio paraento, depois, nos aceitarmos e nos afirmarmos como pessoas, como sujeitos pertencentes a umgrupo tnico racial (GOMES, 2006, p. 262).

    Para as mulheres negras e escritoras, neste caso, utilizo como referncia a escrita do corpofeminino negro, construda por Miriam Alves, em suas poesias, em que pensar na imagem social destecorpo, em princpio, refletir sobre essa tenso, a que se refere Nilma Lino Gomes: rejeio, aceita-o, autoafirmao da diferena e valorizao dos traos tnico-raciais. Por esse motivo, a poetisaafro-brasileira no se refere somente ao corpo fsico, biolgico ou natural em suas funes puramentefisiolgicas. (GOMES, 2006, p. 261). O corpo interpretado em seus versos tambm como umterritrio cultural e simblico simultaneamente. (SANTANNA, 2006, p. 3).

    Longe de ser um termo inerte, passivo e a-histrico, diz Elizabeth Grosz (2002, p.77), emCorpos reconfigurados, segundo a leitura que fao, nos poemas de Miriam Alves, o corpo femininonegro aparece como um termo crucial para entender como interdies, mutilaes e intervenesatuaram sobre as mulheres negras ao longo da histria no Brasil, a partir de uma perspectiva interna.(SOARES, 2006, p. 109). Alvo do poder e de poderes, de ambies individuais e coletivas, refletindoo pensamento de um determinado grupo racial - o branco -, sobre seus corpos agiram leis sociais

    7Retomo o pensamento de Michael Foucault em Vigiar e Punir sobre a dominao dos

    corpos.

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    pedaggicas construdas para fins de controle e disciplina de seus movimentos, funcionamentobiolgico, conduta moral e aparncia fsica, entre muitos aspectos.

    A emblemtica afro-feminista e militante negra Llia Gonzalez (1983), em seu trabalho pio-neiro sobre Racismo e o Sexismo na cultura brasileira, denuncia como essas formas de repre-sentao das mulheres negras e de seus corpos determinaram os lugares ocupados por elas nasociedade brasileira, atravs das relaes de poder mantidas entre brancos e negros historica-mente.

    Para Gonzalez, nessas figuraes expressam-se os modos de rejeio contra a negra e amulher, assim como os aspectos simblicos do racismo e do sexismo, os quais devem serpensados em termos de contextos e lugares, funes e papeis sociais naturalmente atribudos mulher negra como a mucama, a me-preta, a mulata rebolante, atualizadas nas passistas docarnaval, sem esquecermo-nos da atual empregada domstica (GONZALEZ, 1983, p. 226-227).

    Essas questes, levantadas por Gonzalez, so atualizadas nas reflexes propostas pela feministae afro-americana bell hooks8 (1995), em Intelectuais Negras. Embora as autoras pertenam a espa-os geogrficos diferentes, ambas compartilham experincias sociais e culturais semelhantes que seentrecruzam, visto que so mulheres, negras e intelectuais, e isso torna as linhas do tempo e de frontei-ras quase que imperceptveis.

    Para hooks, em decorrncia dessas imagens produzidas pelo discurso dominante, o sexismo e oracismo agiram (agem) duplamente sobre a mulher negra, tentando produzir uma iconografia de re-presentao, que imprime na conscincia cultural a ideia de que ela est neste planeta para servir aosoutros e ser governada. Desde a escravido, conforme define hooks, o corpo da negra tem sido vistopelos ocidentais como o smbolo quintessencial de uma presena feminina natural e orgnica, maisprxima da natureza animalstica e primitiva. (HOOKS, 1995, p. 468). Por isso, a autora reitera:

    [...] as negras tm sido historicamente vistas como encarnao de uma perigosanatureza feminina que deve ser governada. Mais do que qualquer mulher [...], as negrastm sido consideradas como s corpo sem mente. [...] a utilizao de corpos femininosnegros na escravido como incubadoras para a gerao de outros escravos eraexemplificada prtica da ideia e que as mulheres desregradas deviam ser controladas(HOOKS, 1995, p. 469, grifos meus).

    8Bell hooks o pseudnimo de Gloria Jean Watkins, escritora afro-americana, que escolheu

    esse apelido para assinar suas obras como uma forma de homenagem aos sobrenomes

    da me e da av. Grafo o nome dela em letras minsculas, atendendo ao pedido da prpria

    autora que afirma o seguinte: o mais importante em meus livros a substncia e no

    quem sou eu.

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    Na tica desses pensamentos racistas e sexistas esto afirmaes sobre os perfis dirigidoss mulheres afrodescendentes, cujas marcas simblicas de representao so elaboradas combase em categorias fenotpicas, orientadas por uma viso masculina essencializada para classific-las a partir de seu tom de pele: negrinha, pretinha, moreninha ou mulatinha entre muitas outrasescalas cromticas e diminutivos racializadores9.

    Por outro lado, marcando o seu lugar de enunciao como sujeito e objeto de sua produ-o literria, evidenciando a sua identidade racial e de gnero, o discurso potico de MiriamAlves contesta as representaes literrias j existentes sobre o corpo feminino negro, denuncia osilenciamento, a desumanizao, a represso e a invisibilizao a que este foi submetido, ao passoque reelabora novos desenhos.

    2. EM CENA, O CORPO FEMININO NEGRO NA POESIA DE MIRIAM ALVES.

    Nascida em So Paulo, Miriam Alves (1952) autora de um trabalho intelectual em plenoprocesso de produo at a primeira dcada do sculo XXI, constitudo por um amplo e variadorepertrio sobre temas e questes ligadas afrodescendncia: de textos ficcionais (poemas econtos) a no ficcionais (artigos e ensaios etc.). A escritora afro-brasileira iniciou a sua carreirainiciou nos finais dos anos setenta do sculo XX. Fez parte do Grupo Quilombhoje Literatura(1982), responsvel pela edio e publicao dos Cadernos Negros (1978), convivncia quedurou nove anos, indo de 1980 a 1989, compondo com os escritores afrobrasileiros EsmeraldaRibeiro, Jamu Minka, Mrcio Barbosa e Oub Ina Kibuko, a chamada segunda gerao.

    Em 1982, publicou seus primeiros trabalhos nos Cadernos Negros10. Ainda na dcada deoitenta, a poetisa negra lanou duas antologias poticas: Momentos de Busca (1983) e Estrelasno dedo (1985), suas primeiras obras individuais. Em edies mais recentes, publicou o livroBrasilafro autorrevelado: literatura brasileira contempornea (2010), contendo artigos que,em sua maioria, refletem sobre a escrita da mulher negra, alm da coletnea de contos Mulher

    9Destaco as terminologias utilizadas por Ldia Avelar Estanislau, em Feminino Plural: negras

    no Brasil, artigo publicado no livro Brasil Afrobrasileiro, organizado por Maria Nazareth

    Fonseca (2000). Neste texto, a autora apresenta retratos de mulheres negras que

    ultrapassaram as bordas do silncio, mostrando a efetiva participao da mulher negra

    na formao da sociedade brasileira.

    10 As mais recentes publicaes podem ser conferidas no volume 34, Cadernos Negros:

    contos afro-brasileiros, lanado em 17 de dezembro de 2011, com a narrativa intitulada O

    velrio. Miriam Alves s esteve ausente de nove edies dos Cadernos.

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    Matri(z): Prosas de Miriam Alves, lanada em 201111.Evidenciado os seus lugares de enunciao, racial e de gnero, observo que Miriam Alves tem

    buscado contestar as representaes estereotipadas e significaes depreciativas disseminadas pelodiscurso literrio brasileiro e contemporizadas como verdades para o imaginrio social sobre oscorpos das mulheres negras. Diante dos desenhos sociais construdos, a escritora tem buscadodesvencilh-los das marcas de racializao e sexualizao impostas historicamente pela dominaomasculina falocntrica e branca, antes de revesti-los de outros significantes literrios. Assim, a sua vozfeminina negra tem se ocupado em questionar o modo como essas imagens foram elaboradas, denun-ciando os efeitos que elas produziram para a trajetria social das afrodescendentes, como pode serlido no poema a seguir:

    CUIDADO! H NAVALHAS.[...]

    As palavras de concessesso navalhas

    retalham minha pelediluem meus sentimentos

    soltam-nos ao ar[...]

    Palavras de concessesso mordaas

    aveludam os sons do passadoensurdecem sentimentosforam a minha negao

    pressionam o meu ser [...]

    (ALVES, 1985, p. 27).

    Sob o pretexto de civiliz-los e domestic-los, por trs do interesse de organizar seus movimen-tos e controlar seus desejos sexuais, considerados infrenes, indica Mary Del Priore (1995), moti-vados pela inteno de torn-los atraentes e dceis para serem explorados como corpo-objeto(no exerccio do trabalho forado) e corpo-sexual pela dxa masculina, como sustentam, respecti-

    11 Optei por citar algumas obras e trabalhos publicados por Miriam Alves, pois a escritora

    afro-brasileira possui um amplo e variado repertrio de publicaes at 2012, inclusive

    com artigos, ensaios e obras literrias traduzidas em lnguas estrangeiras: ingls, espanhol

    e alemo.

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    vamente, Michel Foucault (1997) e Pierre Bourdieu (1999): os corpos das mulheres afrodescendentesaparecem moldados e marcados nos discursos ficcionais brasileiros por uma rede simblica designificantes, para usar expresso cunhada por Bhabha (1998), configurando o ponto de vista dasclasses dominantes e privilegiadas da sociedade brasileira desde o sculo XIX.

    Essa rede de significantes, a voz potica feminina negra chama de palavras de concesses,responsvel pela anulao, inferiorizao e aviltamento social das mulheres negras e de seus corpos12.Palavras que tentaram diluir sentimentos, experincias e expectativas sociais. Termos negativos quepodaram desejos e vontades, mas impuseram outros/outras. Palavras que aveludaram episdios deviolncia sexual, abusos e castigos fsicos, sob o pretenso argumento da permissividade dos corposfemininos negros.

    Versos que amarram a existncia das afrodescendentes aos seus prprios corpos, abreviados aesteretipos raciais e sexuais. Expresses que funcionaram como navalhas, retalhando a pele negra, oscorpos femininos negros, decompostos em fragmentos, soltos no ar da invisibilidade social. Reduzidosa mnimas e especficas partes: s feies do rosto, textura do cabelo, tonalidade da epiderme, aoformato e a uma relao inexaurvel de desqualificantes textuais.

    O poema em questo, Cuidado! H navalhas, traduz a conscincia da opresso vivenciadapelas mulheres afrodescendentes. Diante dessa realidade, a voz enunciativa manifesta o sentimento deuma revolta contida pelo tempo em silncio, trazendo tona o processo de desumanizao a queforam submetidos os corpos de suas ancestrais no passado colonial. Contudo, as palavras da autorademonstram que apesar de sofrerem com o alijamento social e serem obrigadas a negar a si mesmas,em outros contextos, enquanto pessoas, como sujeitos; por outro lado, as mulheres negras brasileiraspodem atravs de sua escrita literria reinventar formas de existncia de si e de seus corpos. oque anuncia o eu-potico na ltima estrofe: [...] as navalhas das concesses, quebrar-se-o, quebrar-se-o no fio lento da minha dura vivncia.

    De acordo com Susan Bordo (1997, p. 23), em O Corpo e a reproduo da feminidade: umaapropriao feminista de Foucault, os textos produzidos por mulheres que tiveram seus corposperturbados por representaes marcadamente ideolgicas, exageradas e hiperblicas, como

    12 Recordo-me da anlise realizada por Maria Nazareth Fonseca (2000, p.105), no artigo

    Visibilidade e Ocultao da diferena: imagens de negro na literatura brasileira, a respeito do

    romance Gabriela: cravo e canela. Para a autora, mesmo que a inteno desse texto literrio

    seja a de glorificar a beleza da mulata, ao apelar para os atributos fsicos, o narrador, no

    entanto, fortalece esteretipos raciais e sexuais, como os da mulata sensual e exuberante.

    Ainda de acordo com Fonseca, apesar de a obra denunciar os preconceitos da sociedade

    brasileira, o texto termina por reiterar traos que, na mulher negra e na mulata, reforam

    a bipolaridade entre esposa/amante; polos que, ideologicamente, esto relacionados

    tambm cor da pele da personagem.

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    caso das mulheres negras brasileiras, precisam ser lidos como um texto agressivamente descritivopara quem o interpreta: um texto que insiste e exige mesmo ser interpretado como uma afirmaocultural e posio de gnero13. Para Bordo, s vezes, sem recorrer poltica e a voz, mas sempre auma linguagem de protesto (ou a tudo ao mesmo tempo), os textos femininos ou que apresentamposio de gnero esto endereados ao pensamento racista e androcntrico de uma determinadasociedade (BORDO, 1997, p. 27).

    Penso que, referindo-se ao corpo feminino negro, Miriam Alves utiliza todos esses recursosmencionados por Susan Bordo. Seus textos, na maioria das vezes, esto direcionados ao sexismo e aoracismo brasileiro, responsveis diretamente pelas imagens estereotipadas que integram os discursosliterrios brasileiros de autoria masculina. Assim sendo, elaborando o seu discurso ficcional oucontradiscurso potico-literrio, as contraimagens, os contradesenhos, a escritora afro-brasileira fazuso de uma linguagem de protesto, tentando cicatrizar as feridas abertas pelas palavras de conces-ses, ao passo que solicita.

    Ser pessoa

    Nego as forjasas armaduras

    Lapidadas na aparnciabruta da lama

    Nego as mscarasindiferentes

    forjando distnciaNego o resguardo do

    silncio (ALVES, 1985, p. 42).

    Retiradas de sua condio humana, respectivamente, pela dominao masculina, branca e peloracismo brasileiro, tratadas como um corpo sexual em excesso, pronto para o consumo do desejoalheio, expostas nos textos literrios nacionais como possuidoras de uma natureza animalstica e pri-

    13 Evidentemente, a autora, neste artigo, no se refere aos textos produzidos pelas escritoras

    negras no Brasil e ao modo como seus corpos aparecem impressos nos discursos literrios

    nacionais. Mas, sua leitura sobre o corpo feminino e a forma de interpretao deste corpo

    pela cultura dominante, inscrito nas relaes de poder, permite-nos essa interpretao/

    aproximao. Partindo mais ou menos dessa viso apresentada por Bordo, considero que

    as poesias de Miriam Alves so exemplares nesse sentido. Considero, ainda, que os corpos

    das mulheres negras foram construdos no discurso ficcional brasileiro, por

    representaes ideolgicas, exageradas e hiperblicas (ALVES).

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    mitiva, corpos negros sem mente, conforme acusa bell hooks, (1995), em Intelectuais Negras,concebidas como criaturas ameaadoras, como seres assexuados, desumanizados e inferiores.Questiona Cornel West (1994)14, em Questo de Raa, as vozes literrias femininas negras denunci-am a explorao racial e de gnero sofrida pelas afrodescendentes, mas, em paralelo, constroem assuas reivindicaes.

    O eu-lrico reivindica a sua existncia humana e reconhece que preciso negar os discursosforjados, os quais foram responsveis pelo silenciamento, pelos julgamentos, pela imposio da vio-lncia fsica e simblica conferida aos corpos das mulheres negras. Logo, preciso negar as mscarasindiferentes construdas por representaes sociais com as quais as mulheres afrodescendentes nose identificam. Recusar as armaduras que foraram a sua invisibilizao social, impondo-lhes a clausurade rostos e corpos femininos negros. Negar a submisso feminina negra. Afirmar a sua voz, o seu olhare o seu discurso literrio sobre si, como um canto de denncia, de rebeldia e de renovao: investir emsua imagem social como pessoa a cada linha potica.

    Como o discurso no simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominao,mas aquilo pelo qual e com o qual se luta, o prprio poder de que procuramos assenhorear-nos, segundo Michel Foucault (1970, p. 2), em A Ordem do Discurso, as reiteraes empregadasem primeira pessoa, na poesia Ser Pessoa, reforam e podem ser lidas como sinnimos de apelo, derepulsa e de rejeio, s representaes do corpo feminino negro, coisificado e objetificado pelaliteratura nacional. As afirmaes e negaes no discurso de Miriam Alves contradizem o discursoverdadeiro e exclusivo sobre e pelo qual se tinha respeito e terror, ao qual era necessrio submeter-se porque reinava (FOUCAULT, 1970, p. 3).

    Interpreto esses discursos literrios nacionais em termos do que Foucault, embora no tenhaestudado as estratgias do discurso nesse campo, chama de discurso pronunciado, por quem detin-ha exclusivamente o poder e segundo o ritual era requerido. Um discurso que dizia a justia e atribuaa cada um a sua parte, o seu espao, o seu lugar; o nico discurso que, profetizando o futuro dasmulheres afrodescendentes, o uso de seus corpos femininos, no apenas anunciava o que haveria depassar-se com estes, mas contribua para a sua realizao, atravs da construo de imagens ficcionaisnegativas. Um discurso que obtinha a adeso dos homens (da maioria dos autores brasileiros) e,desse modo, se entretecia, definindo o destino de muitas de ns (FOUCAULT, 1970, p. 4).

    14 Saliento que, embora analise a realidade dos afro-americanos, Cornel West refere-se s

    formas de viver na dispora. Por isso, consideramos que o tema extrapola o sentido

    geogrfico de suas reflexes, permitindo-me inferncias sobre questes relativas s

    experincias afro-brasileiras.

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    Nos dois poemas analisados, o discurso potico de Miriam Alves apresenta uma nova forma decomunicao sobre o corpo feminino negro. Nele, a poetisa insere uma boa dose de ousadia paracaminhar no sentido contrrio ordem j instituda pela tradio cultural brasileira. As palavras quesurgem ainda insones vo despertando desejos, vontades, sentimentos vrios, e, principalmente,conscincia de uma nova forma de existncia humana para a mulher negra brasileira, constituda noplano literrio por novas identidades. Essas novas identidades femininas negras que vo sendo forma-das, moldadas e esculpidas pelas mos da poetisa, nascem a partir de um Estranho Indagar, cujasfiguras projetadas so lidas como um vulto ou fumaa, gerada pela tentativa de preencher as faltas,os vazios e as perdas15:

    [...]O vulto no vulto

    sou eu

    A imagem est turvao vulto est ntido

    vejo sua bocaostentando dentes

    como teclas de pianoquerendo devorar

    engolirdegustar

    anular[...]

    Vejo sua lngua salivandolouca raivosa

    babando palavrasdesconexas

    O vultoNtido

    RefletidoEscondido

    Me toma todas as manhsPenetrando em mim como verdade

    [...](ALVES, 1983, p. 12-14).

    15 O referido poema abre a primeira antologia potica, Momentos de Busca, editada e

    publicada pela autora em 1983. O texto foi escrito em 14 de Novembro de 1980, quando a

    autora ainda no publicava seus trabalhos na srie literria Cadernos Negros.

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    De acordo com Stuart Hall (2006, p. 38), em Identidade Cultural na ps-modernidade, aidentidade realmente algo que vai se formando ao longo do tempo, por meio de processos incons-cientes, e no como algo inato, existente na conscincia no momento do nascimento. Para o autor,ela sempre est incompleta, est em processo, sempre sendo formada. Por isso, ao invs de falarda identidade como uma coisa acabada (imagem definida), Hall sugere um emprego do termo identi-ficao, vendo-a como um processo em andamento (ou como um vulto), conforme explica:

    [...] a identidade surge no tanto da plenitude da identidade que j est dentro de nscomo indivduos, mas de uma falta de inteireza que preenchida a partir de nossoexterior pelas formas atravs das quais ns imaginamos ser vistos por outros (HALL,2006, p.39).

    Embora reconhea que a imagem projetada sobre si ainda esteja turva e apresente-se comoum vulto, revelando etapas de um processo contnuo na busca por uma nova identidade femininanegra, o eu-potico insiste: sou imagem. Esse novo desenho que aos poucos se configura, apresen-ta-se em um Eu feminino que se auto afirma, constitudo por embates travados com os discursoshegemnicos, o que revela em tese, a dura vivncia que ser, ao mesmo tempo, mulher e negra, emum pas racista e sexista.

    Trata-se de um Eu que insiste continuamente na desconstruo das representaes sociaisdepreciativas produzidas para os corpos das mulheres negras, como pude detectar nas pistas deixadaspelo modo irnico com que o sujeito potico interpela o olhar da dxa masculina sobre si: vejo suaboca ostentando dentes, como teclas de piano, na poesia Estranho Indagar. Ao pronunciar nasequncia as palavras devorar, engolir, degustar e anular, verbos que esto acompanhados por seusinmeros significados, cujo contedo individual revela o modo ora perspicaz e sempre perverso deconstruo de certos sentidos e esteretipos sobre os corpos das mulheres afrodescendentes vialinguagem ficcional, o olhar crtico de Miriam Alves faz com que as expresses percam a sua fora deao, questionando-as: vejo sua lngua babando palavras desconexas.

    Por outro lado, a ideia de um vulto significa um ritual de nascimento de corpos e de vidasmarcadas pela opresso patriarcal e, estando ao mesmo tempo ntido, aparece na imagem femininarefletida diante do espelho, representando uma nova etapa na construo da identidade da mulhernegra, cuja materializao acontece de forma simblica na poesia de Miriam Alves16. o corpo femi-nino negro metaforizado que pretende significar um novo enredo, uma nova figura, recuperando hist-

    16 A poesia completa escrita pela autora em 1979 constituda por vinte e oito perguntas,

    oitenta e sete linhas poticas, entre as quais, a palavra vulto aparece pelo menos sete

    vezes. Quanto palavra imagem, esta surge pelo menos trs vezes. Alm disso, destacam-

    se outros signos como corpo (trs vezes) e procuro (quatro vezes).

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    rias, constitudo por novos traos, novos contornos e novos movimentos. Um corpo negro que desejase depreender das amarras do silncio, promovendo contnuas reversibilidades:

    Quero correr em desafiosoltar meu corpolamber sem sentidoas verdadesas mentirasno ditasno ditasverdades escritasque no posso entender[...]Como um aflitolibertar num grito- Quero Viver! Quero Viver!QUERO VIVER! (ALVES, 1983, p. 26).

    Em Vozes Femininas no Atlntico negro, Florentina Souza (2006, p. 340) analisando as re-presentaes do feminino no texto de autoras negras, observa que algumas escritoras contempor-neas, africanas ou brasileiras, tem se voltado para o questionamento do prprio sentido e lugar dofeminino: seus ritos e seus mitos. Nesse sentido, a autora diz que o corpo assume papel significativo,se no principal, pois

    [...] trazendo inscritos em si signos, histrias, verdades e sutilezas das experincias devida, com sua exuberncia, vitalidade ou rugas, o corpo revela os caminhos trilhados,as mudanas vivenciadas, as escarificaes dos tempos e do corao. Em razo dascircunstncias da ordem da cultura e da natureza, a mulher vivencia significativasespecificidades de mudanas no corpo (SOUZA, 2006, p. 340).

    De acordo com Souza, []s mulheres tm sido, na maior parte das tradies, negado o direitode decidir sobre como agir com seus corpos. Silenciadas ou marcadas pelas tentativas dedescorporificao, elas continuam reagindo firmemente contra as vrias formas de opresso, princi-palmente a racial e a de gnero. Assim exposto, ao refletir sobre o papel das mulheres afrodescendentesneste processo de recomposio do corpo por outras imagens ficcionais, discutindo em particular asua condio feminina em todas as dimenses (sociais, polticas, econmicas etc.), na qual elas saem

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    da situao de objeto, assunto ou tema para tornarem-se sujeito de sua prpria escrita, Souzalembra que:

    [...] terica ou poeticamente, as mulheres demonstram a preocupao em apontar equestionar os papis e os lugares definidos para si, colocando-se como vozes autoriza-das para falar de suas sensaes e percepes-tendo em vista que a autoimagens estofundamentadas nas experincias de dor, prazer, ou desprazer que o corpo obriga-se asentir e a pensar [...] corpo [...] espao qualificado historicamente para a grafia e aleitura das experincias passadas e cotidianas, para a inscrio de sonhos e desejos.(SOUZA, 2006, p.340, grifos meus).

    Ao mencionar e reiterar mais uma vez a necessidade de se libertar o corpo feminino negro dasamarras elaboradas pelas vozes dos autores brasileiros, das mordaas de linguagem, das morda-as ideolgicas do racismo e das imposies da dominao masculina e branca, o sujeito poticofeminino negro confirma o que diz Souza na citao17. O corpo feminino que aparece concebido napoesia Cena do Cotidiano, obriga-se a pensar nas imagens estereotipadas do passado, nas expe-rincias de dor e de desprazer vivenciadas, ao longo da histria, pelas mulheres afrodescendentes(SOUZA, 2006, p. 340).

    Entretanto, apesar de ressentido, segregado e violentado por mentiras, um corpo femininoque deseja se distanciar dos lugares definidos para si. Apresenta-se como um corpo em ao e ativo,negando, mais uma vez, a imagem do corpo negro feminino submisso e subalterno construda pelostextos literrios nacionais. um corpo feminino negro que performatiza a luta, a rebeldia e a resistnciafeminina negra, emudecida nas histrias narradas sobre a presena da mulher negra na sociedadebrasileira.

    Um corpo feminino negro que faz contestaes ao imaginrio institudo sobre sua representa-o social: quero correr em desafio... as mentiras e as verdades inscritas que no posso entender.Este provoca o aprisionamento e a recluso do silncio, mediante atuao de uma voz potica negra,que seguindo o ritmo desse novo corpo, coloca-se imperativa: quero viver! E esse apelo que seexpressa em um grito, repetido trs vezes no texto, demonstra a nsia de mudana, o desejo detransformao, de se constituir outra. Por essa razo, no agenciamento destas propostas, o eu literrioser categrico em suas solicitaes:

    Estou a toque de mquinacorro, louca, voo, suo

    17As aspas correspondem s afirmaes feitas por Miriam Alves, no ensaio Mulheres negras:

    vozes na literatura que integra o livro BrasilAfro Autorrevalado: literatura brasileira

    contempornea, organizado pela poetisa.

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    a fumaa sou eu[...]Paro, mas estou sempre correndodoem as pernas, os pse este corpo o meu[...]Indago, mas no estou escutandoa pergunta anda soltae ningum explicouque a resposta sou eu(ALVES, CN, 1982, grifos meus).

    De vulto a fumaa, para alm de seu carter biolgico e natural, o corpo feminino negro interpretado no poema como um territrio simblico e biolgico, onde so inscritas outras formas derepresentao. Nos versos, so descritas as sensaes naturais deste corpo por meio das palavrassuar e doer, contrariando mais uma vez a perspectiva de um corpo animado, sem vida, sem sensibilida-de, materializado fora, suscetvel apenas prtica dos prazeres sexuais e o exerccio do trabalhoforado, representaes bastante difundidas pela literatura brasileira.

    Por outra rota de anlise, a dor fsica e o cansao dos ps, das pernas, do corpo inteiro, menci-onados na poesia Fumaa, tambm representam uma dor simblica, sentida e vivenciada secularmen-te pelas afrodescendentes em diferentes contextos histricos, j que foram herdadas de suas ancestraisafricanas escravizadas. Significam a agonia e a aflio de ter que viver sempre negando as mscaras,as mentiras e a subordinao da mulher negra em diferentes momentos da histria no Brasil. Dessaforma, esto tambm incorporadas outras questes subjetivas: voar (libertar), indagar e responder,aes e sentidos que esto diretamente relacionados posio adotada pelas mulheres negras, no quediz respeito ao modo como elas percebem o lugar ocupado por seus corpos femininos na atualidade.

    No poema, percebo que o corpo feminino negro no um produto ou objeto de uma naturezacrua e passiva, que civilizada e polida pela cultura dominante. Ao mesmo tempo, ele definido porMiriam Alves como um elemento cultural e produo da natureza simultaneamente. um lugaronde so feitas contestaes, inscries simblicas e subjetivas, no qual ocorre uma srie de lutas:intelectuais, culturais, estticas, sexuais e raciais18 (GROSZ, 2002, p.77).

    Representa um ente, carregado de significaes, tornado para a trajetria da populaoafrodescendente, em particular, para as mulheres, um espao que se constitui como snteses de so-nhos, frustraes, realizaes e ambies (SOARES, 2006, p. 3). Um corpo que, reelaborado pelo

    18Embora no se refira s questes de raa e classe estudando o corpo feminino, apresento

    aqui a minha leitura com base nas reflexes propostas pela auto

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    olhar feminino negro, vai produzir contestaes e fazer exigncias, saindo da condio de meroobjeto manipulado pela cultura dominante onde foi colocado, para se tornar e se estabelecer como umtecido social, poltico e cultural, entrelaado a particularidades de raa e de gnero (GROSZ, 2002,p. 74).

    Dessa forma, o estar no mundo parece acessvel quando se articula e se explicita na voz daescritora negra em nvel lingustico e literrio, essas questes: a raa e o gnero. Ao pensar a relaocom o seu corpo feminino, o sujeito potico provoca: [...] a resposta sou eu... este corpo meu. Overbo ser marca intimamente a presena da identidade de gnero e tnica do sujeito literrio, deixan-do assinalados os lugares de enunciao desses eus do corpo que se expressam na poesia emquesto. J o uso do pronome possessivo agencia o rompimento das ideias e olhares historicamentecristalizados sobre a figura e o papel da mulher negra na sociedade brasileira, reforando a funo desua escrita literria feminina e posio poltica, colocando-se como vozes autorizadas para falar desuas sensaes e percepes de si (SOUZA, 2006, p. 340).

    Apresenta-se como um corpo feminino negro que pode agora, enfim, (re)composto - na visode Miriam Alves, solto, alforriado -, vivenciar sua liberdade individual. Corpo-territrio onde o ser-mulher-negra pode exercer e organizar a sua liberdade de transformao. Corpo feminino negro queproduz questionamentos e constri respostas as suas interpelaes, inquietaes e frustraes. Corpofeminino negro em luta que se movimenta e se contrape a todas as formas de opresso. Corposfemininos negros que guardam vontades reprimidas, que falam de amor vida e ao outro, mas quetambm refletem sobre sua sexualidade (ALVES, 2010, p. 70).

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    Recebido em novembro de 2012Aprovado em janeiro de 2013