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1 SILVA, Katiene Nogueira da. “A gestão do tempo e do espaço na escola”, texto didático produzido para a disciplina A gestão do tempo e do espaço na escola” do Curso Gestão da Escola para Diretores, Programa REDEFOR, SEE/USP, São Paulo: 2010/2011 (www.redefor.usp.br , acesso em x/x/xx) “A gestão do tempo e do espaço na escola” Katiene Nogueira da Silva Prezados cursistas, nesta disciplina abordaremos a gestão do tempo e do espaço na escola, a utilização do espaço e as relações com o tempo, tanto do ponto de vista legal, a partir de documentos que visam a organizar o trabalho na escola, quanto do ponto de vista teórico, a partir de textos que nos ajudam a compreender a questão. Temporalidades da nossa vida O tempo é um dos elementos que constitui o nosso cotidiano e ele adquire diferentes concepções na sociedade, que podemos chamar de temporalidades. As temporalidades impõem um ritmo à nossa vida e regulam o nosso cotidiano (PINEAU, 1989). Entendemos por temporalidades as diferentes modalidades de experimentação do tempo pelas pessoas. Há diferentes marcações do tempo no espaço social como, por exemplo: o tempo da escola, o tempo do trabalho, o tempo do lazer. As ideias sobre o tempo não são inatas, elas foram construídas a partir da reflexão sobre a ação. Se hoje em dia podemos pensar em nossa rotina como algo “natural”, ao olharmos para o passado é possível compreender que ela foi construída de modo a garantir que diversas operações sociais pudessem ocorrer com regularidade. Para que a sociedade se organizasse era necessário que a vida das pessoas também estivesse organizada e obedecesse a um determinado ritmo, com horários determinados para acordar e para dormir, para estudar, para comer, para trabalhar, independente da vontade e da disposição que as pessoas tivessem para acordar, para comer, para trabalhar, etc. Assim, embora existam diferenças entre o tempo físico – aquele passar do tempo comum a

A gestão do tempo e do espaço

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A gestão do tempo e do espaço. Katiene Nogueira da Silva

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SILVA, Katiene Nogueira da. “A gestão do tempo e do espaço na escola”, texto didático produzido para a disciplina

“A gestão do tempo e do espaço na escola” do Curso Gestão da Escola para Diretores, Programa REDEFOR,

SEE/USP, São Paulo: 2010/2011 (www.redefor.usp.br, acesso em x/x/xx)

“A gestão do tempo e do espaço na escola”

Katiene Nogueira da Silva

Prezados cursistas, nesta disciplina abordaremos a gestão do tempo e do espaço na

escola, a utilização do espaço e as relações com o tempo, tanto do ponto de vista legal, a

partir de documentos que visam a organizar o trabalho na escola, quanto do ponto de

vista teórico, a partir de textos que nos ajudam a compreender a questão.

Temporalidades da nossa vida

O tempo é um dos elementos que constitui o nosso cotidiano e ele adquire

diferentes concepções na sociedade, que podemos chamar de temporalidades. As

temporalidades impõem um ritmo à nossa vida e regulam o nosso cotidiano (PINEAU,

1989). Entendemos por temporalidades as diferentes modalidades de experimentação do

tempo pelas pessoas. Há diferentes marcações do tempo no espaço social como, por

exemplo: o tempo da escola, o tempo do trabalho, o tempo do lazer. As ideias sobre o

tempo não são inatas, elas foram construídas a partir da reflexão sobre a ação. Se hoje

em dia podemos pensar em nossa rotina como algo “natural”, ao olharmos para o

passado é possível compreender que ela foi construída de modo a garantir que diversas

operações sociais pudessem ocorrer com regularidade. Para que a sociedade se

organizasse era necessário que a vida das pessoas também estivesse organizada e

obedecesse a um determinado ritmo, com horários determinados para acordar e para

dormir, para estudar, para comer, para trabalhar, independente da vontade e da

disposição que as pessoas tivessem para acordar, para comer, para trabalhar, etc. Assim,

embora existam diferenças entre o tempo físico – aquele passar do tempo comum a

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todos – e os tempos individuais – aquele sentido de um modo diferente por cada pessoa

– todos são levados a obedecer a um mesmo ritmo estabelecido pelo calendário e pelo

relógio. Mas como experimentamos o tempo?

Às vezes, quando estamos em um momento difícil, não temos a sensação de que

o tempo está demorando a passar?

Se, por acaso, trancamos a chave dentro do carro e temos um compromisso

importante, estamos atrasados e aguardamos a chegada do chaveiro, não parece que o

intervalo entre o aparecimento deste problema e a solução levou uma “eternidade”?

Ou então, quando vivenciamos uma situação que nos dá muito prazer, não é

comum sentirmos que o tempo passa rápido demais?

Depois de dias de trabalho intenso, não é comum sentirmos que o final de

semana “passou voando”?

Portanto, se contarmos no relógio o período de uma hora, de acordo com a

atividade que estivermos realizando somos capazes de sentir o tempo passando de

maneiras muito distintas. Durante a nossa infância, a entrada na escola é um evento que

marca a nossa história de diversas maneiras, afetando diretamente a nossa relação com o

tempo e com o espaço – como veremos adiante. Quanto ao tempo, é na escola que

experimentamos o sentimento da rotina imposta por um espaço público, exterior à nossa

casa: é nela que vivenciamos a nossa primeira experiência em uma rotina imposta pelo

tempo no espaço público. É lá que aprendemos a obedecer a um ritmo diferente

daquele imposto por nossa família. Na escola, todas as atividades são reguladas: há um

tempo para brincar, o recreio, há um tempo para comer, o intervalo, há um tempo para

aprender, a aula. Há um horário específico para chegar e outro para ir embora. Além

desse ritmo que a escola impõe ao nosso cotidiano, quando iniciamos a nossa

escolaridade, os anos das nossas vidas também passam a ser estruturados de outra

maneira a partir deste evento: a nossa disponibilidade para viajar, passear e visitar os

familiares que moram longe passa a existir que acordo que o período no qual não

precisaremos ir à escola - as férias. Na infância e na juventude, no período em que

freqüentamos a escola experimentamos uma relação com o tempo semelhante àquela

que vamos sentir na idade adulta, com relação ao tempo do trabalho: aprendemos a

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obedecer a um ritmo que não é o nosso, que é o da instituição na qual estamos inseridos,

seja a escola, seja o trabalho, mas que passa a estruturar a nossa vida.

O tempo na escola de outros tempos

E a escola brasileira existiu sempre assim? Não, no Brasil, até o início do século

XIX a educação das crianças era realizada principalmente em casa ou na comunidade,

fato conhecido como socialização endógena ou socialização primária. A partir de então,

a educação das crianças passou a ter um lugar próprio para acontecer: as escolas, que

inicialmente eram chamadas como “escolas de primeiras letras” ou “escolas isoladas” e,

posteriormente, surgiram os grupos escolares, que foram os primeiros edifícios

construídos para funcionarem como instituições escolares (FARIA FILHO, 1996;

HILSDORF, 1996; SOUSA, 1996). A socialização realizada nestes casos é conhecida

como exógena ou secundária, por ocorrer fora do ambiente familiar. Até meados do

século XIX, como a sociedade precisava principalmente da cultura oral para a sua

manutenção, a socialização primária, realizada no lar, era suficiente para garantir às

pessoas o aprendizado de que precisavam para sobreviver, conviver umas com as outras,

trabalhar e formar uma família. Com a organização dos Estados modernos e também da

burocracia criada junto com eles, a cultura oral passou dar lugar em importância à

cultura escrita. Assim, a escolarização foi aos poucos se tornando cada vez mais

necessária para a sobrevivência, para o trabalho e para a vida das pessoas. Isso porque

os contratos e os documentos passaram a multiplicar-se e a necessidade de que as

pessoas aprendessem a escrever para produzi-los, obedecê-los e assiná-los também.

Desta forma, a escola passou a ser considerada a instituição que seria capaz de oferecer

às pessoas os elementos de que necessitavam para manutenção da vida em sociedade,

nela as pessoas aprenderiam a ler, a escrever e a contar (FARIA FILHO, 1996).

Se no século XIX os tipos de educação ministrados eram múltiplos e diversos, no

início do século XX começou a existir um sistema de ensino unificado, sistematizado,

gratuito e obrigatório. Nesse momento o Estado encarregou-se da educação formal,

substituindo a Igreja. O poder, nessa época conhecida como “moderna”, tornou-se

exclusividade do Estado, que legitimava a sua autoridade através de regras, da

magnificência da arquitetura dos edifícios, do currículo formal e da organização dos

sistemas e ensino. A legitimação do poder do Estado ocorre através da adoração aos

símbolos pátrios – a bandeira, o hino, fazendo com que a interioridade de cada um seja

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voltada para uma abstração. Enfim, tal legitimidade é construída através de todos os

objetos que possam dar visibilidade a algo passa a ser fundamental, mas que é abstrato: a

palavra, que passa da forma oral para a escrita (FARIA FILHO, 2000). Submeter às

crianças atividades organizadas, de modo a regular o seu tempo, garantindo a sua

ocupação incessante, poderia ajudar a controlar o seu comportamento, mas também

geraria disposições em relação à regularidade. Sujeitar o desenvolvimento da vida dos

indivíduos a uma divisão em seqüências temporais previstas antecipadamente e levá-los

a “fazer as coisas na hora certa” seria o tipo de comportamento propício à aquisição da

noção do dever. As ações organizadas visariam não somente a controlá-los, mas também

a levá-los a adquirir hábitos de vida regular, assiduidade e pontualidade. Segundo Rita

Gallego (2008), a relação do tempo com o conhecimento, que foi instaurada ao longo do

século XIX, em um período no qual houve a difusão mundial da “escola de massas” –

escolas concebidas para atender a população em geral – marcou a tal ponto a concepção

das pessoas em relação às funções que caberiam à escola, que é comum que atribuam a

ela a tarefa de garantir a transmissão de um determinado número de saberes em um

tempo delimitado. A maneira como a escola foi organizada através da distribuição dos

tempos e dos espaços produziu uma representação – um modo tido por muitas pessoas

como o ideal ou mesmo como o único possível - da aquisição dos saberes e da

estruturação das aprendizagens. Assim, o que hoje em dia pode ser considerado como

“natural”, como a relação entre idade e série, ou o estabelecimento de determinado

conteúdo de acordo com o nível de ensino, foi construído socialmente e é fruto de um

processo histórico. Com a organização do sistema de ensino e a criação dos grupos

escolares, cada vez mais o tempo escolar se impôs à sociedade, marcando diferenças em

relação a outros tempos sociais, como o tempo do lar, da família, do lazer e do trabalho,

influenciando também esses outros tempos. Por ordenar o cotidiano das crianças a partir

do momento em que elas ingressavam na escola, o tempo escolar passou a ordenar

também o tempo do lar e da família (GALLEGO, 2008).

O tempo na escola atualmente

Como foi visto no módulo II, na disciplina “O Projeto Pedagógico e Autonomia

da Escola”, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em vigor, a Lei nº

9394/96, vinculou pela primeira vez autonomia escolar e projeto pedagógico num texto

legal, oferecendo às escolas a oportunidade construir o seu próprio projeto pedagógico

(AZANHA, 2006). Segundo José Mário Pires Azanha (2006) “o artigo 12 (inciso I)

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estabelece como incumbência primordial da escola a elaboração e execução de seu

projeto pedagógico e os artigos 13 (inciso I) e 14 (incisos I e II) estabelecem que esse

projeto é uma tarefa coletiva, na qual devem colaborar professores, outros profissionais

da educação e as comunidades escolar e local” (op. cit., p. 93). Dentre as referências

com relação ao tempo, na referida Lei, é importante salientarmos o artigo 23, que diz o

seguinte: “a educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais,

ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com base na

idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização,

sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar. Parágrafo 1º:

A escola poderá reclassificar os alunos, inclusive quando se tratar de transferências

entre estabelecimentos situados no País e no exterior, tendo como base as normas

curriculares gerais. Parágrafo 2º: O calendário escolar deverá adequar-se às

peculiaridades locais, inclusive climáticas e econômicas, a critério do respectivo sistema

de ensino, sem com isso reduzir o número de horas letivas previsto nesta Lei.” O

segundo parágrafo do artigo 23 expressa uma tentativa de conciliação entre o tempo da

escola e os tempos sociais, uma vez que visa a respeitar as particularidades dos

municípios, como as festividades locais e a cultura regional. O artigo 24 também nos

interessa especialmente com relação ao tempo. Ele diz que “a educação básica, nos

níveis fundamental e médio, será organizada de acordo com as seguintes regras comuns:

I - a carga horária mínima anual será de oitocentas horas, distribuídas por um mínimo de

duzentos dias de efetivo trabalho escolar, excluído o tempo reservado aos exames finais,

quando houver; II - a classificação em qualquer série ou etapa, exceto a primeira do

ensino fundamental, pode ser feita: a) por promoção, para alunos que cursaram, com

aproveitamento, a série ou fase anterior, na própria escola; b) por transferência, para

candidatos procedentes de outras escolas; c) independentemente de escolarização

anterior, mediante avaliação feita pela escola, que defina o grau de desenvolvimento e

experiência do candidato e permita sua inscrição na série ou etapa adequada, conforme

regulamentação do respectivo sistema de ensino; III - nos estabelecimentos que adotam

a progressão regular por série, o regimento escolar pode admitir formas de progressão

parcial, desde que preservada a seqüência do currículo, observadas as normas do

respectivo sistema de ensino; IV - poderão organizar-se classes, ou turmas, com alunos

de séries distintas, com níveis equivalentes de adiantamento na matéria, para o ensino

de línguas estrangeiras, artes, ou outros componentes curriculares; V - a verificação do

rendimento escolar observará os seguintes critérios: a) avaliação contínua e cumulativa

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do desempenho do aluno, com prevalência dos aspectos qualitativos sobre os

quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre os de eventuais provas finais;

b) possibilidade de aceleração de estudos para alunos com atraso escolar; c)

possibilidade de avanço nos cursos e nas séries mediante verificação do aprendizado;d)

aproveitamento de estudos concluídos com êxito; e) obrigatoriedade de estudos de

recuperação, de preferência paralelos ao período letivo, para os casos de baixo

rendimento escolar, a serem disciplinados pelas instituições de ensino em seus

regimentos; VI - o controle de freqüência fica a cargo da escola, conforme o disposto no

seu regimento e nas normas do respectivo sistema de ensino, exigida a freqüência

mínima de setenta e cinco por cento do total de horas letivas para aprovação; VII - cabe

a cada instituição de ensino expedir históricos escolares, declarações de conclusão de

série e diplomas ou certificados de conclusão de cursos, com as especificações

cabíveis”. Como é possível observar a partir dos referidos artigos da LDB, há uma

orientação geral acerca da utilização do tempo nas escolas, mas a sua organização fica a

critério das escolas. No artigo 25, é estabelecido que “será objetivo permanente das

autoridades responsáveis alcançar relação adequada entre o número de alunos e o

professor, a carga horária e as condições materiais do estabelecimento”. Nesse sentido,

de acordo com a legislação cabe ao governo oferecer as condições para que a educação

seja realizada, mas cabe à escola pensar na melhor forma de conduzi-la. Os Parâmetros

Curriculares Nacionais (1997), que foram criados a partir da promulgação da Lei nº

9394/96, visam à orientar o trabalho nas escolas, mas, assim como a LDB, eles também

não tem o objetivo de conduzir rigidamente os processos de ensino e aprendizagem,

nem tampouco de “engessar” as atividades e a organização do cotidiano das escolas, já

que ambos partem da ideia de que é preciso que as instituições educacionais trabalhem

com autonomia. Portanto, cabe a cada escola pensar na melhor maneira de utilizar e

organizar o seu tempo, de modo a atender os objetivos do seu projeto pedagógico

(AZANHA, 2006).

Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), “a consideração do tempo

como variável que interfere na construção da autonomia permite ao professor criar

situações em que o aluno possa progressivamente controlar a realização de suas

atividades. Por meio de erros e acertos, o aluno toma consciência de suas possibilidades

e constrói mecanismos de auto-regulação que possibilitam decidir como alocar seu

tempo” (op. cit., p. 102). É por esse motivo que são importantes as atividades nas quais

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o professor é considerado como um orientador do trabalho, deixando com os alunos a

responsabilidade pela execução e pelo planejamento, levando-os a refletir, a ponderar, a

decidir e a vivenciar os resultados de suas escolhas acerca da utilização do tempo. Nesse

sentido, os estudantes passam de participantes a protagonistas das tarefas realizadas na

escola. Mas o documento adverte: “delegar esse controle não quer dizer, de modo algum,

que os alunos devam arbitrar livremente a respeito de como e quando atuar na escola. A

vivência do controle do tempo pelos alunos se insere dentro de limites criteriosamente

estabelecidos pelo professor, que se tornarão menos restritivos à medida que o grupo

desenvolva sua autonomia. Assim, é preciso que o professor defina claramente as

atividades, estabeleça a organização em grupos, disponibilize recursos materiais

adequados e defina o período de execução previsto, dentro do qual os alunos serão livres

para tomar suas decisões. Caso contrário, a prática de sala de aula torna-se insustentável

pela indisciplina que gera” (op. cit., p. 102) Ao permitir que as crianças e os jovens

controlem a utilização do tempo, a escola está fazendo desta tarefa um momento de

aprendizagem, ensinando-os a utilizar o tempo.

Com relação ao horário escolar, os Parâmetros Curriculares Nacionais indicam

que ele deve obedecer ao tempo mínimo estabelecido pela legislação em vigor para cada

uma das áreas de aprendizagem do currículo: “a partir desse critério, e em função das

opções do projeto educativo da escola, é que se poderá fazer a distribuição horária mais

adequada. No terceiro e no quarto ciclos, nos quais as aulas se organizam por áreas com

professores específicos e tempo previamente estabelecido, é interessante pensar que uma

das maneiras de otimizar o tempo escolar é organizar aulas duplas, pois assim o

professor tem condições de propor atividades em grupo que demandam maior tempo

(aulas curtas tendem a ser expositivas)” (op. cit., p. 102).

Intervalos no tempo

Os intervalos no tempo são marcações, como os aniversários, os feriados, as

férias, que impõem um ritmo às nossas atividades. Na escola, o recreio é um intervalo

importante na marcação do tempo: nele, há um espaço para a recreação e para o lazer.

Tanto na vida social, quanto na vida escolar, o lazer é um tempo que cada tem para si

mesmo, após ter cumprido as suas obrigações com relação à família, à casa, ao trabalho e

à escola (PINEAU, 1989). O tempo do lazer representa um momento no qual as pessoas

ocupam-se de si mesmas, voltam-se para si mesmas, o que nem sempre pode ocorrer

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quando estamos envolvidos em atividades profissionais e escolares e utilizamos nosso

tempo em relação ao outro. Seja mediante o descanso, a diversão, as atividades

esportivas, culturais ou intelectuais, o lazer representa um intervalo importante no nosso

tempo porque ele nos leva a buscar a satisfação das nossas próprias necessidades. Não é

por acaso que as pessoas referem-se a esses períodos como momentos no qual “as suas

energias são recarregadas”. Mas a escola também ensina as crianças a utilizarem os seus

intervalos no tempo? Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), as escolas

devem oferecer uma educação que ultrapasse os conteúdos das disciplinas, visando à

formação ética dos alunos. Desta forma, as atividades extraclasse e o recreio – que seria

originalmente um momento de descanso realizado durante as aulas - também podem

representar uma ocasião em que haveria um trabalho voltado ao desenvolvimento e ao

cultivo dos valores morais, de acordo com o projeto político-pedagógico da escola. Um

elemento importante que influencia a condução das atividades no recreio dos alunos é o

espaço que poderá ser utilizado nesse tempo. E o espaço será o tema de que trataremos a

seguir.

Sentidos dos espaços

Vamos retomar o exemplo do recreio e continuemos pensando a propósito dele.

Seja ele dirigido, quando ele é compreendido pelo projeto político-pedagógico, de modo

que ele também consista num momento de aprendizagem para os alunos, seja ele

“livre”, quando os alunos podem descansar e conduzir o seu tempo naquele intervalo, o

espaço que a escola possui para a realização do recreio influencia diretamente o tipo de

atividade que poderá existir ali. Se a escola possui uma área aberta, como um parque,

um pátio ou uma quadra, os dias de chuva irão alterar a rotina dos alunos que precisarão

permanecer na sala de aula para que não se molhem, exigindo muitas vezes que os

próprios professores trabalhem durante esses intervalos, propondo atividades para

ocupar o tempo das crianças na impossibilidade de utilização do espaço destinado ao

lazer. A reflexão sobre o espaço busca compreendê-lo como uma construção não apenas

arquitetônica, mas também cultural. O espaço da escola também pode ser considerado

como uma forma de ensino: ele é um elemento significativo do currículo e uma fonte de

experiência e aprendizagem (ESCOLANO e VINÃO FRAGO, 2001). Segundo Antonio

Vinão Frago (2001), em um momento em que o mundo está globalizado e sofre

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constantes transformações, o espaço não pode ser visto apenas mediante a ótica da

necessidade de uma ordem determinada e pelo ponto de vista fixo. A organização do

espaço deve ter em conta o aleatório e o ponto de vista móvel, permitindo ao espaço ser

uma possibilidade e não uma limitação. Mas como isso seria possível? Nessa

perspectiva, o espaço estaria em constante transformação, adequando-se às necessidades

daqueles que nele habitam e transitam. O espaço não representa apenas um lugar no

qual podemos habitar, como a nossa casa, passear e nos locomover, como a rua,

trabalhar, como uma empresa, uma loja, um oficina, etc, ou aprender, como a escola: o

espaço também educa.

Assim como pensamos no lugar, poderíamos pensar no não-lugar (AUGÉ,

1994). Para Marc Augé (1994), enquanto o lugar seria aquele espaço personalizado que

nos acolhe, como a nossa casa, o não-lugar pode ser entendido como o espaço público

no qual as pessoas estão de passagem, como as estações de metrô, as rodoviárias e os

aeroportos, por exemplo. Enquanto o lugar está relacionado com a identidade das

pessoas, o não-lugar é marcado pelos deslocamentos impessoais. No âmbito da

pesquisas na área educacional, o espaço escolar, a sua transformação em lugar, foi

objeto de atenção tanto daqueles que se preocupavam com questões relativas à

organização, ao currículo e à didática, quanto daqueles que analisavam os tipos de

distribuição espacial que as instituições educacionais oferecem, assemelhando-se muitas

vezes a instituições de outra natureza, como os hospitais e os quartéis, como veremos

mais adiante. Essa forma de olhar para o espaço escolar e investigá-lo interessa

sobretudo à historiografia da educação e à história cultural das instituições escolares. As

investigações historiográficas recentes, que se interrogam acerca das práticas e da

cultura escolar, tentam reconstituir o cotidiano da escola e as suas práticas. José Mário

Pires Azanha (1991), partindo de um questionamento sobre a crise em educação,

defendeu que se processasse um estudo das práticas escolares, de forma a realizar um

mapeamento cultural da escola, privilegiando a sua constituição histórico-social. A

respeito desse tipo de pesquisa, Azanha afirmava: “O que interessa é descrever as

‘práticas escolares’ e os seus correlatos (objetivados em mentalidades, conflitos,

discursos, procedimentos, hábitos, atitudes, regulamentações, ‘resultados escolares’,

etc.). Somente o acúmulo sistemático dessas descrições permitirá compor um quadro

compreensivo da situação escolar, ponto de partida para um esforço de explicação e de

reformulação. (...) Que interesses objetivos (mas nem sempre explicitados) se associam

à formação e persistência dessas práticas?” (op. cit., p. 67) O autor questionava as

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reformas educacionais, defendendo que era no interior do espaço escolar que se definia

o destino das políticas públicas, pela forma como os professores lidavam com as

mudanças e pelas alterações nos padrões de trabalho. No seu entender, somente seria

possível entender as resistências apresentadas nas conexões entre a vida escolar e as

prescrições legais acerca dela mediante uma investigação que partisse de um estudo dos

indícios, para além dos estudos sobre as grandes reformas e os pedagogos ilustres.

Segundo Faria Filho et al. (2004), ao elucidar sobre a importância de um estudo acerca

das práticas escolares, Azanha “demonstrava a proficuidade do conceito na

operacionalização de análises sobre a instituição escolar a partir de diferentes vertentes

do conhecimento pedagógico” (op. cit., p. 141). Na mesma época em que Azanha

(1991) incentivava esse tipo de pesquisa, André Chervel (1990) propunha o estudo

sobre a história das disciplinas escolares e Jean Claude Forquin (1992) defendia a

interação entre as dinâmicas sociais e a cultura escolar. Para Faria Filho et al., no início

dos anos de 1990 dava-se início a uma reflexão que atingiria um grande número de

pesquisas educacionais. A preocupação com a questão da cultura escolar passou a fazer

parte dos trabalhos em história da educação por uma aproximação com a disciplina de

história, pela forma de lidar com as fontes, através de levantamento e sistematização de

documentos, e também “pelo acolhimento de protocolos de legitimidade da narrativa

historiográfica” (op. cit., 142). Os trabalhos que fazem uso da cultura escolar como

categoria de interpretação também partem de outras áreas disciplinares que compõe a

pedagogia, como a sociologia da educação, a psicologia da educação, a filosofia da

educação e a didática. Ao mesmo tempo em que as práticas evidenciavam elementos

que constituíam o cotidiano escolar, elas também consistiam em exercícios para a

formação de hábitos, ensinando não apenas a utilizar o espaço como também a estar no

espaço.

Assim como foi visto no módulo II “O projeto pedagógico e autonomia da

escola”, como discutimos o funcionamento da escola, é preciso que consideremos toda a

sua cultura escolar, os seus pressupostos e a sua história. No âmbito na história da

educação, a antiga história das idéias pedagógicas e das grandes reformas foi substituída

por uma nova forma de se fazer história. Esta antiga história se constituía de um saber

subsidiário, que contemplava uma repartição de conhecimentos sobre educação. Um dos

seus ramos era a história da pedagogia, que fornecia matérias para a reflexão filosófica

sobre os fins da educação, fornecendo ao pedagogo um conjunto de ideais

11

corporificados em grandes sistemas pedagógicos (CARVALHO, 1998). Sob a

influência de uma perspectiva distinta, a história cultural, que trouxe novos objetos para

o cerne das questões históricas, como, por exemplo: os sistemas de parentesco e as

relações familiares, a atitudes perante a vida e a morte, as crenças e os comportamentos

religiosos, as formas de sociabilidade, os rituais, as modalidades de funcionamento

escolar, consagrou novos territórios ao historiador, por intermédio da anexação de

espaços antes dominados por outras ciências (CHARTIER, 1990). A mudança resultou

em uma ‘nova história’, que passou a apropriar-se de novos objetos, aplicando a eles um

novo tratamento, uma nova forma de se fazer pesquisa. A história cultural concilia

novos domínios de investigação, tendo em vista os postulados da história social, que

visava a uma nova legitimidade científica, baseando-se em aquisições intelectuais que

haviam fortalecido o seu domínio institucional. O principal objetivo deste tipo de estudo

cultural é identificar a forma como em momentos e lugares distintos uma mesma

realidade social é construída, pensada. Este tipo de trabalho pode apresentar vários

caminhos: o primeiro diz respeito às classificações, divisões e delimitações que

organizam a apreensão do mundo social como categorias fundamentais de percepção e

apreciação do real. A propósito dessa questão, Roger Chartier (1990) apresenta a

seguinte consideração: “variáveis consoantes às classes sociais ou os meios intelectuais

são produzidas pelas disposições estáveis e partilhadas, próprias do grupo. São estes

esquemas intelectuais incorporados que criam as figuras às quais o presente pode

adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado” (op. cit., p. 17)

Com isso, a história da educação teve seu território redesenhado, e seus

interesses agora compreendem uma nova concepção de escola, de seus agentes e de suas

práticas. Segundo Marta Carvalho (1998): “Da História da Educação espera-se, agora,

capacidade de perspectivar o olhar e problematizar o estabelecido, historicizando-o, o

que se traduz na incorporação de procedimentos lastreados em ‘referenciais teóricos

atentos aos processos históricos de constituição de objetos investigados’. Nesse

processo são, sobretudo as perspectivas abertas e as questões lançadas pela chamada

Nova História Cultural que vêm redesenhando as fronteiras e redefinindo os métodos e

objetos da História da Educação” (op. cit., p. 32). Então, o modelo escolar educacional

começou a ser interpretado como uma construção histórica derivada da confluência de

dispositivos políticos, científicos, pedagógicos e religiosos. Novas questões e novas

modalidades de tratamento das fontes tem tornado possível a construção da história da

escola, que conta com a investigação acerca da cultura e das práticas que se constroem

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no interior do espaço escolar. Para o estudo da cultura escolar é preciso efetuar uma

análise das relações pacíficas ou conflituosas que ela mantêm, a cada época, com o

conjunto de culturas que lhe são contemporâneas, como a cultura política, a cultura

religiosa ou a cultura popular. Dominique Julia (2001) definiu a cultura escolar como

um conjunto de normas que definem os conhecimentos que devem ser ensinados e as

condutas que devem ser incorporadas, e um conjunto de práticas que possibilitam a

transmissão de tais conhecimentos e a incorporação de determinados comportamentos,

que sofrem alterações de acordo com a época vivenciada. O autor realizou uma crítica

aos historiadores da educação que, ao trabalharem com textos normativos, tendiam a

superestimar modelos e projetos e a compreender a cultura escolar isolada do mundo

exterior. Ele defendia que a atenção dos historiadores deveria voltar-se para o

funcionamento interno da escola. Julia atentava para que o pesquisador não se deixasse

“enganar” pelas fontes normativas com que trabalha, porque “a história das práticas

culturais é, com efeito, a mais difícil de se reconstruir porque ela não deixa traço: o que

é evidente em um determinado momento tem necessidade de ser dito ou escrito?” (op.

cit., p. 15). As mudanças por que passaram os estudos realizados no âmbito da história

da educação, recusando pesquisas essencialmente externalistas, evidenciaram uma

aproximação entre as análises macropolíticas e as investigações acerca do interior do

espaço escolar, fazendo com que a metáfora aeronáutica da “caixa preta” adquirisse

valor de argumentação (FARIA FILHO et al., 2004). A cultura escolar, esse conjunto de

valores, regras, normas, objetos, é construída através de conflitos e em função de

dinâmicas sociais. Os processos organizacionais que existem no interior na instituição

escolar fazem referência a este jogo educacional e cultural formado pela estruturação do

saber e pela transmissão de conteúdos cognitivos e simbólicos. Através do conceito de

cultura escolar são colocadas em foco as práticas que constroem a sociabilidade escolar

e, de uma forma também escolar, de transmissão cultural. (CARVALHO, 1998) O

estudo sobre a cultura escolar permite desnaturalizar a escola, concebê-la enquanto uma

instituição fundada com o intuito de promover não apenas o ensino da leitura, da escrita

e do cálculo, mas também a socialização das pessoas e a disciplina e sujeição dos corpos

a normas e regras, desvelando, de certa forma, o caráter intencional de suas práticas, da

utilização do seu tempo e da organização do seu espaço.

Exercício 1

13

“Antigamente, as moças chamavam-se mademoiselles e eram todas mimosas e

muito prendadas.(...) Havia os que tomaram chá em criança, e, ao visitarem família da

maior consideração, sabiam cuspir dentro da escarradeira. Se mandavam seus respeitos

a alguém, o portador garantia-lhes: ‘Farei presente’. Outros, ao cruzarem com um

sacerdote, tiravam o chapéu, exclamando: ‘Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo’, ao

que o Reverendíssimo correspondia: ‘Para sempre seja louvado’. E os eruditos, se

alguém espirrava — sinal de defluxo — eram impelidos a exortar: ‘Dominus tecum’.

Embora sem saber da missa a metade, os presunçosos queriam ensinar padre-nosso ao

vigário, e com isso metiam a mão em cumbuca. Era natural que com eles se perdesse a

tramontana. A pessoa cheia de melindres ficava sentida com a desfeita que lhe faziam,

quando, por exemplo, insinuavam que seu filho era artioso. Verdade seja que às vezes

os meninos eram mesmo encapetados; chegavam a pitar escondido, atrás da igreja. As

meninas, não: verdadeiros cromos, umas tetéias. (...) Mas tudo isso era antigamente, isto

é, outrora”. (“Antigamente”, Carlos Drummond de Andrade In Quadrante (1962), obra

coletiva reproduzida em Caminhos de João Brandão José Olympio, 1970)

No poema “Antigamente”, Carlos Drummond de Andrade (1962) brinca com

palavras muitos utilizadas no passado, deixando transparecer o comportamento que era

esperado das crianças e das jovens: as moças deveriam ser “mimosas” e “prendadas”, as

crianças deveriam “cuspir dentro da escarradeira” ao visitar familiares. No tempo

presente, o poeta relembra o tempo de outrora. Construa uma pequena reflexão acerca

da forma como você entende que as pessoas experimentam os diferentes tempos sociais,

especialmente com relação às diferenças que marcam o tempo do lar e o tempo da

escola. Tente recuperar em sua própria história fragmentos das relações com o tempo

nos dois casos citados (de casa e da escola).

Semelhanças entre os espaços

Ao pensarmos na configuração das nossas escolas, podemos nos interrogar

acerca dos princípios que orientaram a sua construção. Quais semelhanças existem entre

14

o espaço escolar e os outros espaços sociais? Michel Foucault (1994), em Vigiar e

Punir, nos ajuda a pensar mais demoradamente sobre essa questão. Neste livro, o autor

investiga o nascimento da prisão, trata da questão da disciplina e da forma como

ocorreu o processo de sujeição dos corpos às ordens e ao adestramento. No período que

compreende os séculos XVII e XVIII, o corpo foi descoberto como objeto e alvo de

poder. Ao tratar da formação do soldado, o autor afirma que ela dizia respeito a um

treinamento que o deixava eficiente como uma máquina: todos os seus gestos eram

calculados para que ele agisse na hora exata e com precisão. Nesse momento, o corpo

passou a ser visto como algo que precisava ser modelado e treinado. Contudo, este

treinamento era conquistado através de pequenos gestos e não de grandes ordens. No

período anterior a esse citado pelo autor, o controle sobre o comportamento das pessoas

era realizado de maneira bastante distinta: aqueles que não contribuíam com a ordem e

não agiam de acordo com lei, fosse ela ditada pelo Estado, pela monarquia ou pela

Igreja, corria o risco de ser queimado, de ter a sua cabeça decepada por um golpe de

guilhotina ou mesmo de ser surrado. Mas em qual espaço essas ações ocorriam? Em

praça pública. O fato das punições ocorrerem no espaço público – e também este tipo de

utilização do espaço - consistia numa estratégia disciplinar já que visava a dar

visibilidade à punição alheia, demonstrando a todos o que poderia acontecer com

aqueles que não se sujeitassem às normas e às regras estabelecidas. Mediante a

pesquisa realizada, Foucault defende que há um avanço nas “tecnologias do poder”,

uma modificação nas estratégias utilizadas para disciplinar as pessoas, que passam do

espaço público para o espaço privado. O nascimento da prisão altera a lógica disciplinar

anterior, já que a punição passa a ser realizada nos interior das instituições. Aliadas à

prisão, como estratégias de punição e de correção surgiram uma série dispositivos que

tinham por objetivo controlar o comportamento das pessoas. A própria arquitetura dos

edifícios obedecia a essa orientação. Nesta perspectiva, é possível entender que a

disciplina não é algo que sempre existiu da mesma forma, conquistada mediante tantos

detalhes, ela passou a contar com tantas prescrições quando foi dada uma maior ênfase

ao corpo: “o momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do

corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco

aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o

torna tanto mais obediente quanto é mais útil e inversamente.” (op. cit., p. 127) Este

treinamento ao qual são submetidos os corpos consiste na disciplina, encontrada não

apenas em quartéis, mas em todas as instituições formadas pelos homens. A disciplina

15

tem o poder de colocar ordem, controlar as pessoas, organizar os espaços: “importa

estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos,

instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o

comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos.

Procedimento, portanto, para reconhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um

espaço analítico.” (op. cit., p. 131) As prisões nascem ocupando uma estrutura

arquitetônica conhecida como “panóptico”. Esse termo foi concebido pelo filósofo

inglês Jeremy Bentham, em 1785, ao pensar um modelo penitenciário que considerou

ideal, por permitir, a um baixo custo, uma vigilância constante daqueles que estivessem

encarcerados. A utilização do espaço, neste caso, foi pensada estrategicamente de modo

que apenas um vigilante, localizado em uma torre de observação construída no pátio

central da prisão, pudesse observar todos os prisioneiros sem que eles pudessem saber

se estavam ou não sendo vigiados, submetendo-os sob seu controle. Essa estrutura de

edifício de modo anelar ou retangular com um pátio interno também pode ser observada

em hospitais, escolas e fábricas. O espaço no interior destes prédios – as celas, os

quartos ou as salas – compreende em sua superfície dois tipos de janela: uma voltada

para o exterior de modo a permitir a entrada da luz e outra voltada para o pátio, de modo

a garantir a vigilância. Nesse sentido, a organização espacial era pensada para promover

a disciplina. Além da estrutura arquitetônica, para que a prática disciplinar se efetivasse

eram utilizadas “micropenalidades”, castigos e sanções que visavam a fazer com que o

indivíduo as incorporasse até que pudesse agir da forma esperada, sem que fosse preciso

verbalizar ou efetuar tal sanção. Tratava-se de processos sutis, como castigos leves,

privações temporárias ou pequenas humilhações que sinalizavam que a postura

assumida estava errada. No espaço escolar, havia ainda a recompensa, que reforçava o

bom comportamento através da oferta de medalhas, elogios e presentes. Mediante as

sanções exercidas, positivas ou negativas, o comportamento daqueles que as sofrem

tornam-se homogeneizados, tornando mais fácil o seu governo. Cada um passa a atuar

de acordo com aquilo que foi interiorizado, com o que foi estabelecido enquanto padrão

esperado de comportamento. A disciplina, seja ela utilizada na escola, no hospital, o

exército ou em qualquer outra instituição, com a finalidade de formar hábitos

adequados, gestos eficientes e impor ordem, pelo poder que ela exerce sobre as pessoas,

ela também humilha, exclui, reprime e censura. Controlando a diversidade, os mais

afetados nesse processo seriam os diferentes, aqueles que se desviassem do padrão

estabelecido. A disciplina controla as pessoas, organiza os espaços e estende-se dos

16

quartéis para as escolas, os hospitais, as igrejas, as famílias, enfim, para todas as

instituições onde há sempre um poder a ser exercido e ordens a serem cumpridas. A

escola, por sua vez, enquanto instituição disciplinadora e formadora é dotada de todas as

características que podem controlar o comportamento dos indivíduos porque um “corpo

disciplinado”, segundo o autor, “é a base de um gesto eficiente”: nela, as crianças são

castigadas ou premiadas, são vigiadas permanentemente, possuem horários fixos para as

atividades, formam filas e usam todas um mesmo tipo de roupa, os uniformes escolares.

Na escola, a organização do tempo e do espaço também submetem os alunos à

disciplina. Segundo Carlos Eduardo Guimarães (1982), a disciplina enquanto submissão

a normas é condição para o domínio de determinada matéria e deve estar presente no

processo de ensino e de aprendizagem. Nas palavras do autor, “a disciplina mostra-se

como condição para que se atinja, cognitivamente, ou para que se modifique alguma

coisa. A ação disciplinada opõe-se à ação desregrada, caótica, que só acidentalmente

pode ser bem sucedida. Com a ação disciplinada pretendemos ser, necessariamente, bem

sucedidos” (op. cit., p. 34). Nesta perspectiva a disciplina seria a condição para

chegarmos ao nosso objetivo, neste caso, ensinarmos a matéria pretendida pelo projeto

pedagógico aos nossos alunos: “não há uma disciplina pela disciplina, mas uma

disciplina para conhecer melhor, uma disciplina para agir melhor, uma disciplina para

fazer melhor” (op. cit., p. 35). É importante ressaltarmos que, de acordo com

Guimarães, a disciplina possibilita ao sujeito que alcance a liberdade. De que forma? À

medida em que ela pode permitir que ele adquira o domínio sobre a matéria, ou seja,

que ela pode fazer com que ele não aprenda história simplesmente, mas que ele aprenda

a pensar historicamente, que ele não aprenda matemática simplesmente, mas que ele

aprenda a pensar matematicamente: à medida em que ela, a disciplina, pode permitir

que o aluno tenha domínio sobre a matéria, de modo a manejá-la em seu próprio

benefício, possibilitando a compreensão, a inserção social e a resolução de problemas. E

não seria esse o objetivo que nós, educadores, temos quando construímos o projeto

pedagógico? Buscando formar os nossos alunos para que sejam “cidadãos críticos e

participativos”? E que, como sugerem os nossos Parâmetros Curriculares Nacionais

(1997) desenvolvam “competências e habilidades”? Assim, a disciplina promovida

também pela organização do tempo e do espaço tem uma finalidade pedagógica

importante, para além do controle do comportamento dos alunos. É preciso levar o

aluno a disciplinar-se, fazendo com que ele se submeta às regras impostas pela escola

em função da aprendizagem pretendida.

17

A arquitetura dos grupos escolares

Segundo Agustín Escolano (2001), nem o tempo, nem o espaço são elementos

neutros do ensino. Para o autor, eles funcionam como uma espécie de discurso que

promove, através da sua materialidade, um conjunto de aprendizagens motoras e

sensoriais e um sistema de valores estéticos, ideológicos e culturais. Se pensarmos na

configuração do espaço escolar no final do século XIX, é possível notarmos

semelhanças entre os edifícios dos grupos escolares e o panóptico investigado por

Foucault. Muitas escolas construídas até as primeiras décadas do século XX conservam

ainda hoje suas características iniciais, como o pátio interno utilizado como espaço de

circulação dos alunos no horário dos intervalos das aulas (SOUSA, 1996). Além de

significarem a constituição de um espaço pensado especialmente para que a educação

fosse realizada, os grupos escolares também simbolizavam o projeto educativo

republicado – que tinha a educação como um dos pilares da organização nacional - e,

por este motivo, precisavam ter visibilidade e destaque nas cidades nas quais eles

fossem construídos, daí a monumentalidade e a magnificência destes edifícios. Desta

forma, a arquitetura escolar pública teve por objetivo propagar a iniciativa que os

governos empreendiam pela educação. Os prédios das escolas deveriam então divulgar a

imagem de prosperidade e de nobreza das administrações. A monumentalidade seria

conseqüência da preocupação em tornar muito evidentes os edifícios das escolas

públicas, mostrando que os mesmos eram espaços mantidos pelo governo (FARIA

FILHO e VIDAL, 2000). Os grupos escolares representavam então uma aposta que o

governo republicado fazia no futuro da nação mediante a ordenação do sistema de

ensino e dos espaços destinados a realização educação escolar. Mas como eles eram

construídos? Os grupos escolares poderiam ter, em geral, 4, 8 ou 10 salas de aula, um

ou dois andares, biblioteca escolar, museu escolar, sala dos professores e sala da

administração. Construídos de forma simétrica ao redor de um pátio central, eles

ofereciam espaços diferentes para o ensino das meninas e dos meninos - neste período

ainda não havia o ensino misto. Esses prédios também possuíam entradas diferentes

para os alunos e para as alunas. Dentro as salas de aula, as carteiras eram fixas e o local

que o professor deveria ocupar era bem demarcado: no centro e à frente. Segundo

Luciano Faria Filho e Diana Vidal (2000), “a rígida divisão dos sexos, a indicação

18

precisa de espaços individuais na sala de aula e o controle dos movimentos do corpo na

hora do recreio conformavam uma economia gestual e motora que distinguia o aluno

escolarizado da criança sem escola” (op. cit., p. 25). A conformação, a adequação das

crianças a um novo espaço, diferente de suas casas ensinava também uma forma de ser,

de estar e de se comportar neste lugar, de maneira distinta daquela que elas estavam

habituadas no ambiente familiar, ocasionando então um elemento de distinção, uma

marca visível na conduta daqueles que haviam freqüentado o espaço escolar. A

escolarização promove a conformação do ser humano como “pessoa-no-mundo”, de

maneira organizada e intencional (VINÃO FRAGO, 2001). Além disso, “o convívio

com a arquitetura monumental, os amplos corredores, a altura do pé-direito, as

dimensões grandiosas de janelas e portas, a racionalização e a higienização dos espaços

e o destaque do prédio escolar com relação à cidade que o cercava visavam incutir nos

alunos o apreço à educação racional e científica, valorizando uma simbologia estética,

cultural e ideológica constituída pelas luzes da República” (op. cit., 25) O ambiente

deveria ser educativo e os princípios que regiam as construções escolares eram pautados

pelas necessidades pedagógicas, de ensino, de aprendizagem, de disciplina e de

recreação; higiênicas, de iluminação e de ventilação adequadas e estéticas, devendo

promover o gosto pelo artístico e pelo belo. Assim, a arquitetura dos grupos escolares

não apenas fazia com que as crianças aprendessem a se comportar e a habitar esse

espaço como também promovia o desenvolvimento do respeito dos pequenos cidadãos à

República que se instaurava, através da grandiosidade de seus edifícios. Se a

imponência dos edifícios públicos pode ser percebida até os dias atuais, imaginem o

destaque que eles possuíam na virada do século XIX para o século XX, ou mesmo nas

décadas posteriores, em 1910, 1920? A sensação das crianças ingressando nos grupos

escolares naquele momento pode talvez assemelhar-se em alguns aspectos com a nossa

entrada em um teatro municipal, em um fórum ou até mesmo em uma catedral. Nós,

adultos, não nos sentimos pequenos diante da monumentalidade destes edifícios e dos

símbolos que eles carregam? Imaginem a sensação que essas escolas produziram nas

crianças naquela época! Além da magnificência destes prédios, outro fator que precisa

ser levado em consideração com relação à sensação, à forma como as crianças percebem

os espaços é que a sua percepção espacial é relativa ao seu tamanho (ESCOLANO,

2001). Por exemplo: vocês já tiveram a oportunidade de voltar, depois de muito tempo,

a um lugar que freqüentaram durante a infância? Quem já passou por essa experiência

deve ter percebido que as lembranças dos lugares que registramos na nossa memória

19

sobre o tempo no qual éramos crianças raramente coincide com a sensação que temos

quando voltamos a esses espaços na idade adulta. Normalmente guardamos na memória

a sensação de que os espaços são muito maiores do que percebemos quando voltamos a

eles quando somos adultos.

O espaço escolar sob influência do movimento da Escola Nova

Voltemos à história do espaço escolar brasileiro. O desejo de impor ordem ao

espaço escolar refletiu a vontade de se ordenar a sociedade como um todo, rumo ao

progresso. No período republicano (1889-1930), supunha-se que a causa de todas as

crises do país vinha da ignorância do povo e do analfabetismo. Com isso, a educação

passou a ser apresentada como o grande pilar da organização social. De acordo com

Marta Carvalho (1997), havia todo um discurso que atribuía o mau desenvolvimento do

país ao povo, considerado mal organizado, sujo, e ignorante, por isso foi dada tanta

ênfase aos cuidados com a higiene e o corpo. Logo, a educação sanitária teve um

enorme valor, e a escola, conseqüentemente, seria o meio propício por excelência para a

manutenção e o revigoramento da saúde, daí a importância também que o discurso

médico-higienista teve para as construções escolares. A disciplina entra em

funcionamento muito cedo na escola, e como ela é considerada como um lugar que

impõe ordem e abriga a juventude, o futuro da nação, é a melhor instituição para se

começar a mudar a mentalidade de um país. Os uniformes escolares também foram

elementos que fizeram parte desta mudança, a legislação vigente prescrevia que eles

deveriam estar sempre limpos e asseados. Além de manter os alunos com um aspecto de

limpeza, os uniformes permitiam que fosse controlado o tipo de roupa que haveria de

ser usada nas escolas. Eles contribuíam para ordenar as crianças no espaço escolar.

Assim como as carteiras, úteis para que os alunos fiquem sentados e quietos durante as

aulas, os uniformes se prestavam a homogeneizá-los, mascarando as diferenças e

condições sociais de cada um, através de um único tipo de roupa, usada o ano todo.

Antes da República a escola não tinha uma função importante junto à economia,

permanecendo como agente de educação para o ócio ou preparando para as carreiras

liberais destinadas especialmente aos jovens vindos das famílias de maior poder

aquisitivo. Por volta da década de quarenta, quando, por ocasião da segunda guerra

mundial, o mercado brasileiro teve a chance de se expandir, sendo que os países que

antes importavam mercadorias para o Brasil já não o faziam, foi preciso que se

formassem pessoas aptas ao trabalho e que fossem também qualificadas. Então, a escola

20

brasileira passou a evoluir em função dos papéis que lhe reconhecia a economia

mundial. A partir daí foi feita uma reforma no ensino, impulsionando o

desenvolvimento de escolas profissionais, para isso uniram-se a elas instituições

auxiliares como, os museus, o escotismo, os pelotões de saúde e as caixas escolares,

promovendo novas configurações no espaço escolar (CARVALHO, 2001).

Nos anos de 1920, o movimento da Escola Nova começou a influenciar muitos

educadores brasileiros, refletindo também nas construções escolares. Nascida na França

em 1899, a partir do projeto do pedagogo francês Edmond Demolins (1852 – 1907), que

pretendia criar uma escola considerada “nova”, capaz de formar as novas elites,

preparando as crianças, que deveriam ser responsáveis pela sua própria educação,

voltada para a vida prática, a “École des Roches” visava à formação de um homem novo

(DUVAL, 2009). Essa experiência inicial faz parte do movimento que ficou conhecido

como Escola Nova e que se espalhou pelo mundo nas décadas seguintes. No Brasil, ele

começou a esboçar-se nos anos de 1920, época marcada pelo crescimento industrial,

pela imigração e pela expansão urbana. Nestas condições históricas e sociais, um grupo

de intelectuais que contava com nomes como o de Anísio Teixeira, o de Fernando de

Azevedo, o de Lourenço Filho, entre outros, difundiu o movimento no país, tomando a

educação como algo que precisaria ser revisto e remodelado para que a sociedade

pudesse estar preparada para acompanhar esse desenvolvimento social e econômico. Os

ideais da Escola Nova, ao defenderem a formação integral, uniforme, obrigatória e

comum para todas as crianças e ao incentivarem tanto o trabalho coletivo quanto o

trabalho individual para garantir o bem-estar do grupo, incutiriam nos alunos a sensação

de dever para com os outros e despertariam sentimentos de solidariedade mediante o

cumprimento de responsabilidades que garantiriam o bom funcionamento da

comunidade. O projeto escolanovista visava a contribuir para a configuração de um

modelo de escola que, ao cuidar da educação, almejava cuidar também da organização

do povo em uma sociedade industrial que estava em expansão. Sob a influência da

biologia e da psicologia, e educação renovada promoveria a adaptação das crianças às

novas condições sociais (CARVALHO, 2001). Concebendo-as como agentes de sua

própria educação, o movimento pretendia ensinar as crianças a fazer o uso racional da

liberdade. O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, publicado em 1932, que

teve como redator Fernando de Azevedo, defendia a universalização de uma escola

pública, laica e gratuita e que esta fosse organizada como uma “comunidade de vida”,

baseada nos princípios da solidariedade, da cooperação, da ação e da liberdade. Sob sua

21

influência, educadores, engenheiros, médicos, arquitetos e psicólogos eram convidados

a opinar sobre as construções escolares. As crianças deveriam ser estimuladas pelos

professores a desenvolver as suas atividades com prazer mas também para trabalhar

pelo bem da comunidade e do espaço escolares. De acordo com o documento citado, a

Escola Nova não seria um aparelho de instrução, mas buscaria desenvolver uma

educação integral, e proveria, de forma articulada, a “educação física, moral e cívica”,

desenvolvendo também nas crianças hábitos higiênicos, despertando o “sentido da

saúde”, a resistência e “vitalidades físicas”, a “alegria de viver” (AZEVEDO, 1932).

Entre os ideais da Escola Nova também estava o ensino misto, pois os defensores deste

movimento acreditavam que os meninos e as meninas deveriam conviver juntos no

espaço escolar. Nesta perspectiva, não deveria mais haver separação nos prédios

escolares entre os espaços nos quais deveriam circular as meninas e naquelas nos quais

deveriam transitar os meninos, já que eles deveriam conviver em um mesmo ambiente.

A entrada que dava acesso à escola também sofreria uma mudança: ao invés de duas

portas, uma para os alunos e outra para as alunas, haveria uma só para ambos os sexos.

A forma de utilização da sala de aula também sofreu alterações.

Afinal, como era possível ensinar as crianças a lidar com a própria liberdade se

nem as suas carteiras poderiam sair do lugar?

Então foram abolidas as carteiras fixas, e as cadeiras e as mesas móveis

permitiram uma nova utilização do espaço da sala de aula no qual os alunos e os

professores pudessem circular. Essa reordenação do espaço estabeleceu uma nova

relação entre os professores e os alunos, alterando tanto o trabalho docente quanto as

atividades realizadas pelas crianças.

Hoje em dia, não é comum orientarmos os alunos para que se organizem em

grupos e realizem atividades coletivamente?

Essa forma de conduzir o trabalho e de utilização do espaço que encontramos

hoje em dia nas escolas é uma construção cultural. Como tal, ela traz consigo a

influência dos mais variados discursos – médico, psicológico, higienista, etc – que

determinaram a sua configuração. No ano de 1971, a Lei de Diretrizes e Bases nº

5.692/71 estabeleceu o ensino fundamental de 8 anos, extinguindo os grupos escolares.

Neste momento, o antigo “ensino primário” e o “ensino ginasial” deram lugar ao ensino

fundamental de “oito séries”.

As primeiras experiências no espaço organizado

22

Um artigo publicado no jornal “O Estado de São Paulo” em 2 de maio de 2011,

intitulado “Construção da escola influencia aprendizado”, chamava a atenção para a

importância que a construção da escola tem para a educação ali realizada e também para

o quanto a arquitetura escolar influencia o aprendizado. Além disso, o texto sugere que

os espaços devem levar em conta as característica da comunidade. Segundo Doris

Kowaltowski, professora da Unicamp que realizou um estudo sobre a arquitetura escolar

e foi ouvida pela reportagem, “cada comunidade tem os seus próprios valores. Uma

escola vai ser mais bem aceita e bem cuidada à medida em que a população é inserida

(...) uma boa estratégia para facilitar esse convívio é apresentar uma maquete do projeto

e ouvir o que os futuros usuários têm a dizer” (op. cit., p. A18). Ao investigar o espaço

escolar enquanto forma de ensino, Agustín Escolano (2001) analisa o relato de um

homem que volta à escola que freqüentou em sua infância após um período de quarenta

anos. Entre as suas impressões, é fértil observarmos a seguinte passagem: “as salas de

aula lhe pareceram sem dúvida menores; os corredores, mais estreitos; a escadaria, pela

qual se subia ao andar superior, onde estavam as salas de aula das meninas, com menos

degraus; o pátio do recreio, reduzido. Como poderíamos – ele pensou – brincar e nos

mover nele, os mais de trezentos meninos e meninas que coabitávamos naquele limitado

território? Mas a memória não lhe era infiel: o espaço que contemplava era, ainda que

menor, o mesmo cenário de sua infância, e os lugares que observava correspondiam aos

seus primeiros esquemas perceptivos” (op. cit., p. 22) Essas primeiras experiências no

espaço organizado, o espaço escolar vivenciado pelas crianças, deixam marcas na

acomodação psicofísica das primeiras pautas do esquema corporal, na forma como as

crianças desenvolvem a consciência do seu corpo e da sua utilização em função do

espaço que habitam. Segundo Escolano (2001), “a arquitetura escolar é também por si

mesma um programa, uma espécie de discurso que institui na sua materialidade um

sistema de valores, como os de ordem, disciplina e vigilância, marcos para a

aprendizagem sensorial e motora e toda uma semiologia que cobre diferentes símbolos

estéticos, culturais e também ideológicos” (op. cit., p. 26). A arquitetura escolar,

definida pelo autor como uma “forma de escritura no espaço”, expressa e institui um

discurso, influenciando no desenvolvimento da educação formal ali realizada.

O espaço escolar reflete e expressa em sua construção as teorias e os discursos

que o legitimaram, que influenciaram a sua constituição. Desta forma, é pertinente

observar que as influências que o movimento da Escola Nova trouxeram à configuração

23

do espaço escolar ainda nos grupos escolas são enunciadas até hoje pelos pedagogos e

pela legislação educacional, como é possível observar nos Parâmetros Curriculares

Nacionais (1997). Acerca da organização do espaço nas escolas, o referido documento

apresenta a seguinte sugestão: “uma sala de aula com carteiras fixas dificulta o trabalho

em grupo, o diálogo e a cooperação; armários trancados não ajudam a desenvolver a

autonomia do aluno, como também não favorecem o aprendizado da preservação do

bem coletivo. A organização do espaço reflete a concepção metodológica adotada pelo

professor e pela escola. Em um espaço que expresse o trabalho proposto nos Parâmetros

Curriculares Nacionais é preciso que as carteiras sejam móveis, que as crianças tenham

acesso aos materiais de uso freqüente, as paredes sejam utilizadas para exposição de

trabalhos individuais ou coletivos, desenhos, murais. Nessa organização é preciso

considerar a possibilidade de os alunos assumirem a responsabilidade pela decoração,

ordem e limpeza da classe. Quando o espaço é tratado dessa maneira, passa a ser objeto

de aprendizagem e respeito, o que somente ocorrerá por meio de investimentos

sistemáticos ao longo da escolaridade. Como o espaço de aprendizagem não se restringe

à escola, é necessário propor atividades que ocorram fora dela. A programação deve

contar com passeios, excursões, teatro, cinema, visitas a fábricas, marcenarias, padarias,

enfim, com as possibilidades existentes em cada local e as necessidades de realização do

trabalho escolar. No dia-a-dia devem-se aproveitar os espaços externos para realizar

atividades cotidianas, como ler, contar histórias, fazer desenho de observação, buscar

materiais para coleções. Dada a pouca infra-estrutura de muitas escolas, é preciso contar

com a improvisação de espaços para o desenvolvimento de atividades específicas de

laboratório, teatro, artes plásticas, música, esportes, etc.” (p. 103) Seguindo as

orientações da Lei de Diretrizes e Bases em vigor, os PCNs, quando se referem à

organização do espaço escolar, também visam à construção da autonomia, tanto da

escola e de sua equipe, quanto dos alunos.

Como é dito no documento, a organização do espaço reflete a concepção

metodológica adotada pelo professor e pela escola, ou seja, a configuração do espaço

de uma escola deve refletir os ideais e os objetivos que estão em seu projeto

pedagógico. Se este documento expressa a intenções de uma equipe que vise à

construção de uma gestão democrática que valorize a participação dos alunos nas

decisões da instituição, o espaço deverá refletir essa concepção. Permitir que os alunos

assumam responsabilidades pela conservação e pela decoração do espaço escolar, é

oferecer a eles a oportunidade de sentir que o espaço coletivo pertence a todos e que,

24

por este motivo, ele deve refletir a identidade daqueles que nele habitam. Ao estabelecer

uma identificação entre o indivíduo e o espaço, cria-se um vínculo com instituição e um

compromisso com aquele lugar. A idéia, neste caso, é que as crianças e os jovens

percebam que o espaço público não é o “espaço que não é de ninguém” e que por esse

motivo poderia ser sujo e depredado, mas é o “espaço que é de todos”, e que por isso

precisa ser cuidado e conservado. Se as crianças aprendem a se relacionar com a escola

como um espaço público, como um lugar que pertence a elas, elas poderão aprender a

desenvolver também uma outra relação com o espaço da rua, do museu, do parque, do

teatro, da praça, etc.

Como são construídas as relações entre as crianças e os jovens nas escolas hoje

em dia?

Será que as crianças e os jovens sentem que o espaço da escola lhes pertence?

Como fazer da escola um espaço de convivência?

São muitas as questões que requerem uma reflexão mais demorada quando

pensamos no espaço escolar atualmente. Depois da casa onde se mora e de alguns locais

próximos a ela, a escola promove uma experiência crucial na aprendizagem das

primeiras estruturas espaciais e formação do próprio esquema corporal da pessoa, que é

a consciência do corpo como meio de comunicação com o ambiente e consigo mesmo

(ESCOLANO, 2001). O esquema corporal se organiza pela experiência que o corpo da

criança vai realizando gradativamente no espaço que ela habita. O pleno

desenvolvimento do esquema corporal é percebido quando as pessoas apresentam uma

boa evolução da motricidade, das habilidades motoras, das percepções temporais e

espaciais e também da afetividade.

Atualmente, as teorias da percepção concebem o espaço escolar como um

mediador cultural na formação dos primeiros esquemas motores e cognitivos, ou seja,

um elemento importante do currículo, uma forma de ensino e uma fonte de

aprendizagem. De acordo com o mesmo autor, os espaços educativos carregam

significados e transmitem uma quantidade importante de estímulos, valores e conteúdos

do “currículo oculto”, ao mesmo tempo em que impõem uma organização disciplinar,

como a racionalidade panóptica, como vimos anteriormente (ESCOLANO, 2001). O

“currículo oculto” é constituído por todos os aspectos do ambiente escolar que

contribuem de forma implícita para aprendizagens sociais, sem que façam parte do

currículo oficial (SILVA, 2003). A propósito do “currículo oculto”, vale a pena

retomarmos as palavras de Tomaz Tadeu da Silva (2003): “eram as características

25

estruturais da sala de aula e da situação de ensino, mais do que o seu conteúdo explícito,

que ‘ensinavam’ certas coisas: as relações de autoridade, a organização espacial, a

distribuição do tempo, os padrões de recompensa e castigo. (...) o que se aprende no

currículo oculto são fundamentalmente atitudes, comportamentos, valores e orientações

que permitem que crianças e jovens se ajustem da forma mais conveniente às estruturas

e às pautas de funcionamento, consideradas injustas e antidemocráticas e, portanto,

indesejáveis, da sociedade capitalista. Entre outras coisas, o currículo oculto ensina, em

geral, o conformismo, a obediência, o individualismo. (op. cit., p. 78-79). Com relação à

dimensão do gênero, o “currículo oculto” também ensina como ser homem ou mulher.

No ambiente escolar, há vários elementos que contribuem para essas aprendizagens.

Uma das fontes que constituem este currículo são as relações sociais da escola, as

relações entre a administração e os alunos, entre os alunos e o seus colegas e entre os

professores e os alunos. Além disso, “a organização do espaço escolar é outro dos

componentes estruturais através dos quais as crianças e os jovens aprendem certos

comportamentos sociais: o espaço rigidamente organizado da sala de aula tradicional

ensina certas coisas; o espaço frouxamente estruturado da sala de aula mais aberta

ensina outro tipo de coisas. Algo similar ocorre com o ensino dos aspectos relativos ao

tempo, através do qual se aprende a pontualidade, o controle do tempo, a divisão do

tempo em unidades discretas, um tempo para cada tarefa etc. O currículo oculto ensina,

ainda, através de rituais, regras, regulamentos, normas” (op. cit., p. 79). Desta forma,

dentro do ambiente escolar a aprendizagem não ocorre apenas de maneira intencional,

mas acontece também segundo procedimentos implícitos. Os estudos acerca do tempo e

do espaço escolar são muito férteis, pois nos levam a considerar que os nossos alunos

não aprendem apenas através do que lêem, enxergam ou escutam, mas aprendem

também mediante o que sentem e como se comportam em relação ao outro, em relação

ao espaço e em relação ao tempo.

Exercício 2

Fenômeno comum nas grandes cidades, as escolas pichadas e depredadas

demonstram através da violência a pouca identidade construída entre os alunos e o

26

espaço físico por eles habitado diariamente. De que forma o projeto pedagógico poderia

promover uma relação mais produtiva entre os alunos e o espaço escolar?

O tempo escolar

Conforme vimos anteriormente, nem o tempo e nem o espaço escolar são

elementos neutros das instituições de ensino. Mesmo não sendo alvo de discussões

constantes nas escolas, o tempo e a maneira como ele é organizado, influencia as

atitudes e a forma como as pessoas habitam, convivem, se relacionam, aprendem e

ensinam nas instituições de ensino. A escola toma para si grande parte do tempo dos

seus alunos e das suas alunas, pois as crianças e os jovens passam em média cinco horas

diárias dentro desta instituição em um período que compreende cerca de quinze anos.

Para muitos, esse tempo atualmente é ainda maior. Com o fato dos pais trabalharem fora

de casa e não terem com quem deixar os seus filhos é comum que os bebês sejam

deixados nas creches, em seguida nas escolas de educação infantil e depois nas escolas

de ensino fundamental. Nesses casos, as pessoas passariam quase dezoito anos de suas

vidas freqüentando instituições educacionais, especialmente em um período crucial de

seu desenvolvimento físico e emocional: a infância. Ao crescerem, as pessoas aprendem

a interpretar os sinais temporais que são utilizados na sociedade, em casa e na escola, e

a conduzir o seu comportamento em função deles, coordenando o seu tempo fisiológico

no mesmo compasso do tempo social. Embora as pessoas possuam tempos e ritmos

diferentes, no âmbito escolar eles são uniformizados, pois os alunos são levados a

viverem todos da mesma maneira os dias letivos, as provas, os conteúdos do currículo.

Além disso, a temporalidade escolar está entranhada no cotidiano e estrutura a vida das

pessoas através do período letivo, da matrícula, da época da provas, da recuperação e

das férias (GALLEGO, 2008). Assim como o currículo, o tempo e o espaço também

ensinam. Mas o que os alunos aprendem através deles? A disciplina talvez seja o

resultado mais explícito deste ensino, pela forma como a organização temporal e

espacial interferem no comportamento das pessoas, controlando as suas atividades e as

suas ações. Num espaço e num tempo totalmente regulados, cada um submete sua

27

atividade aos princípios e às regras que a regem. As escolas conduzem as atividades e

regulam o comportamento dos alunos, dos funcionários e dos professores mediante o

estabelecimento da disciplina, fixando com rigor e detalhes cada atividade do dia. Mas o

tempo e o espaço também contribuem com a aprendizagem dos conteúdos disciplinares

e, desta forma, podem ser conduzidos de modo a melhorar a qualidade da educação

escolar.

O tempo escolar e a construção do projeto pedagógico

Quando pensamos na construção do projeto pedagógico, consideramos

fundamentalmente a proposição de três elementos: algo (matéria) será ensinada (pelo

professor) a alguém (aluno). Para que haja o ensino e a aprendizagem é necessário que

exista uma adequação entre o conteúdo que será ministrado e o tempo que será

necessário para que o professor o ensine e para que o aluno o aprenda. Desta maneira, a

adequação do tempo ao conteúdo disciplinar pode favorecer ou não a aprendizagem.

Pensemos a propósito da recuperação, por exemplo. O que ela significa? Entre outras

coisas, o momento da recuperação representa um tempo maior que alguns alunos têm

para tentar aprender aquilo que os outros alunos aprenderam no tempo “regular”,

naquele tempo que havia sido planejado para o desenvolvimento de determinado

conteúdo. Quando pensamos no sucesso e no fracasso escolar dos nossos alunos, há

muitos fatores que precisam ser levados em conta. No entanto, neste momento,

pensemos em um desses fatores: no papel do tempo com relação ao fracasso e ao

sucesso escolar.

Em nosso cotidiano, muitas vezes nos deparamos com representações sobre a

educação e a escola – que acabam fazendo parte do senso comum – que divulgam uma

idéia equivocada acerca da qualidade do ensino, atribuindo muitas vezes a um número

restrito de instituições, em muitos casos particulares, o rótulo de “escolas fortes” nas

quais se acredita que as crianças e os jovens aprenderiam mais. Pensemos mais

demoradamente sobre isso, especialmente em relação ao tempo. É comum, entre essas

instituições consideradas bem sucedidas com relação ao ensino, que haja um

investimento maior em cada aluno realizado pela própria família como, por exemplo, o

auxílio na realização da lição de casa e a possibilidade de aulas particulares. Vamos

conversar mais sobre esses dois eventos.

28

Qual é o papel da lição de casa para uma aprendizagem bem-sucedida? A lição

de casa representa uma extensão do momento no qual determinado conteúdo disciplinar

foi apresentado pelo professor ao aluno. Após a explicação do professor é comum que

haja um diálogo acerca da matéria e que atividades sejam realizadas de modo a

exercitar o conhecimento adquirido e familiarizar os estudantes com os novos

conteúdos. Se para alguns alunos o momento da lição de casa pode significar uma

possibilidade de reforçar o que foi aprendido na sala de aula, para outros este pode ser

também um momento de aprender aquilo que não foi possível naquele tempo

estabelecido pelo horário da aula. Para o aluno cujo ritmo e a dificuldade ultrapassam a

delimitação do horário da aula, o momento da lição de casa representa uma ocasião

importante de aprendizagem. É evidente que para isso é necessário que alguém

acompanhe as crianças na realização destas tarefas, tentando solucionar as suas dúvidas

e orientando as suas buscas pelas respostas. Ainda assim, esse é um tempo que precisa

ser levado em conta quando pensamos no sucesso e no fracasso escolar. Mas podemos

sempre contar com o momento da lição de casa como uma oportunidade de

aprendizagem? De acordo com a origem sócio-econômica dos estudantes e com as

condições materiais nas quais eles vivem, sabemos que muitos dos nossos alunos, no

período do dia no qual não estão na escola, não têm quem os acompanhe na realização

destas tarefas. Aqueles que têm quem os acompanhe durante a realização da lição de

casa, saem em vantagem com relação aos outros. Este é um fator que precisa ser

levado em conta quando pensamos no papel que a lição de casa pode desempenhar

para contribuir com uma aprendizagem bem-sucedida.

Como as aulas particulares interferem no tempo escolar? Mesmo não sendo

realizadas na escola, as aulas particulares também funcionam como uma espécie de

extensão do tempo escolar, uma vez que se constituem numa oportunidade de

aprendizagem daqueles conteúdos que, na sala de aula, alguns alunos não

compreenderam. Considerando as aulas particulares enquanto momentos que apenas

alguns alunos podem desfrutar por ter ao seu dispor uma atenção individualizada e um

tempo maior para a compreensão de determinados conteúdos disciplinares, é preciso

considerar que essas aulas são privilégio de apenas alguns poucos alunos, cuja família

possui recursos financeiros que possibilitam esse momento de ensino individualizado. O

que tanto as lições de casa quanto as aulas particulares nos mostram é que, por

diferentes motivos, alguns alunos não conseguem aprender naquele tempo determinado

pela escola e precisam de um tempo maior para compreender aquilo que está previsto

29

no projeto pedagógico. E o que isso significa? As pessoas possuem ritmos diferentes e

muitas vezes há um descompasso entre o ritmo do aluno para compreender e o ritmo

planejado pela escola para ensinar. Como sabemos que nem todas as crianças – muitas

vezes apenas uma minoria delas – têm quem as acompanhe durante as lições de casa e

têm a chance de serem submetidas a aulas particulares, é importante pensarmos acerca

da relação entre o tempo estabelecido para o ensino dos conteúdos curriculares e as

dificuldades de aprendizagem originárias dos diferentes ritmos que os alunos têm para

compreender. Refletir acerca desta relação pode contribuir para que entendamos melhor

como acontece o fracasso e o sucesso escolar, ou seja, como a aprendizagem pode ser

ou não bem-sucedida.

Os diferentes tempos da escola, os ritmos dos alunos e a aprendizagem

O período de planejamento do ano letivo e da construção do projeto pedagógico

é um primeiro momento no qual os professores, o coordenador, o diretor e toda a equipe

pedagógica podem pensar acerca da melhor maneira de organizar o tempo em função do

ensino e da aprendizagem bem-sucedidos, adequando os conteúdos disciplinares aos

ritmos das crianças e dos jovens. Além deste momento inicial, as avaliações que

acontecem durante todo o ano também são oportunidades importantes de identificar

possíveis inadequações entre a matéria proposta e a compreensão dos alunos, gerando

lacunas no processo de ensino e de aprendizagem. O momento da avaliação poderia

então reconduzir os alunos em desvantagem, reorganizando seu tempo, revendo em um

tempo maior o conteúdo não aprendido de modo a auxiliá-los a superar o obstáculo, a

recuperar o que não foi compreendido e a reencontrar o percurso da classe, seguindo o

roteiro comum estabelecido para todos. Tais lacunas no processo de ensino e de

aprendizagem tornam-se dificuldades na aquisição dos conteúdos posteriores, gerando

novas lacunas no percurso da vida escolar dos estudantes. Assim vai sendo obstruído o

acesso aos conteúdos disciplinares, na medida em que o aluno tem dificuldades e não

aprende no seu ritmo. O fracasso escolar originado também pela inadequação entre o

tempo estabelecido para o ensino dos conteúdos e o tempo que os alunos levam para

aprendê-los promove um distanciamento cada vez maior entre os estudantes e o

30

conhecimento que a escola pretende transmitir a eles (SAMPAIO, 2004). A avaliação

da aprendizagem e a reprovação escolar são questões relacionadas ao tempo. A

reoganização do tempo deve ser realizada em função das necessidades das crianças,

em função do tempo que levam para compreender: em função do seu tempo de

aprendizagem.

A propósito da reprovação como uma retomada do ano escolar perdido, Maria

das Mercês Sampaio (2004) afirma que a simples repetição dos conteúdos disciplinares

aos alunos, a submissão das crianças e dos jovens ao mesmo espaço de tempo e

processo que se mostrou ineficaz anteriormente também não promove a aprendizagem

bem-sucedida. Para a autora, sem que haja um redimensionamento e uma revisão das

condições que geraram o fracasso escolar, é possível que os alunos prossigam

carregando problemas até que o seu acúmulo interrompa o seu prosseguimento de

maneira definitiva: “mesmo quando os alunos ficam retidos logo que os problemas

aparecem, não se encontram indícios de propostas ou tentativas de superação, pois a

única opção é a repetição da série, ou seja, repetição da transmissão e exercitação de

todos os conteúdos, assimilados e não-assimilados, sem que seja promovida uma nova

relação de ensino, voltada às condições de aquisição dos alunos com dificuldades” (op.

cit., p. 89). Sampaio tece uma crítica a um elemento que durante várias décadas fez

parte das nossas práticas escolares e da cultura das nossas escolas: a reprovação

enquanto um dispositivo eficaz para promover a aprendizagem. Submeter os alunos

novamente a uma mesma situação pedagógica que já se mostrou ineficaz, simplesmente

pela possibilidade dos conteúdos serem revistos pelos alunos durante o mesmo período

de tempo anterior, não se traduz em uma aprendizagem significativa e bem-sucedida.

Acerca das possibilidades de recuperação que as escolas normalmente oferecem aos

alunos, a autora ressalta a existência da recuperação paralela feita a cada bimestre e da

recuperação realizada ao final do ano, asseguradas legalmente. No entanto, para

Sampaio, as recuperações bimestrais são normalmente reduzidas à aplicação de novas

provas e a a recuperação ao final do ano letivo compreende alguns exercícios e em

seguidas são aplicadas novas provas. Para ela, “a distribuição e a organização do tempo

letivo permitem apenas, como recuperação, a oferta de momentos para novas cobranças;

não possibilita recuperar o que foi perdido. Mesmo quando o calendário de recuperação

final prevê algumas aulas para cada disciplina, a extensão do que ficou para trás não

permite falar de recuperação realmente – é o tempo para reler e fazer exercícios, tirar

algumas dúvidas e fazer provas. A montagem do currículo, portanto, não se relaciona

31

apenas ao caráter imediatamente classificatório da avaliação. Ao garantir a marcha

ininterrupta do ensino, tais mecanismos permitem não só classificar e selecionar os

menos aptos, mas impedem também a recondução destes alunos ao percurso normal”

(SAMPAIO, 2004, p. 89 -90 – grifos nossos). Quando pensamos na construção do

projeto pedagógico, pensamos também em uma proposta curricular.

O que deve ser ensinado?

Para quem?

Como?

O currículo é o resultado de uma seleção: de um universo de conhecimentos e

saberes são selecionados alguns que devem ser aprendidos pelos alunos. A etimologia

da palavra “currículo”, que é originária do latim “curriculum”, significa “pista de

corrida”. A propósito disso, vale a pena lembrarmos as palavras de Tomaz Tadeu da

Silva (2003), ao afirmar que “podemos dizer que no curso dessa ‘corrida’ que é o

currículo acabamos por nos tornar o que somos. Nas discussões cotidianas, quando

pensamos apenas em conhecimento, esquecendo-nos de que o conhecimento que

constitui o currículo está inextricavelmente, centralmente, vitalmente, envolvido naquilo

que somos, naquilo que nos tornamos: na nossa identidade, na nossa subjetividade.

Talvez possamos dizer que, além de uma questão de conhecimento, o currículo é

também uma questão de identidade” (op. cit., p. 15-16). O currículo representa uma

trajetória, um caminho que deve ser seguido pelos estudantes e, como todo percurso,

cada um tem um ritmo diferente para percorrê-lo. Contudo, o que importa, quando

pensamos em uma aprendizagem significativa e numa educação de fato formadora, não

é a velocidade com a qual cada um percorre esse caminho, mas sim se todos chegam ao

destino pretendido. E, nesse caso, em alguns momentos a marcha do ensino parece

precisar ser interrompida para sofrer ajustes de modo a beneficiar a aprendizagem dos

nossos alunos, atendendo às suas pausas e aos seus ritmos. A realização do programa

precisa levar em conta interrupções e alterações em função do desenvolvimento e da

compreensão dos alunos.

A série, o ciclo e o curso: o tempo dos professores e o tempo dos alunos

A forma como as diferentes matérias são organizadas no projeto pedagógico

pode obedecer a diferentes lógicas. As mais conhecidas nas nossas escolas são

32

principalmente duas: a organização das disciplinas em cursos divididos em séries e a

organização das disciplinas em cursos divididos em ciclos plurianuais. A organização

das matérias nas séries atende a uma adequação entre o ano letivo e o ano do calendário,

enquanto que a organização das matérias nos ciclos plurianuais obedece a uma tentativa

de ampliar o tempo escolar, de modo que ele ultrapasse o tempo do calendário. Ou seja,

o ano escolar não termina junto com o ano do calendário – como ocorre com o sistema

seriado -, ele é prolongado. Segundo Philippe Perrenoud (2004), os ciclos de

aprendizagens plurianuais têm sido discutidos em sistemas educacionais de vários

países pela sua capacidade de favorecer a aprendizagem escolar. A idéia dos ciclos é

que as etapas anuais de progressão sejam substituídas por período de, ao menos, dois

anos, fixando objetivos de aprendizagem para cada ciclo – proporcionando um tempo

maior para a familiarização dos conteúdos disciplinares pelos alunos – e investindo na

formação dos professores para orientar e facilitar os diferentes percursos de formação

das crianças e dos jovens. A organização do tempo escolar em ciclos rompe com a

lógica da reprovação ao final do ano e altera profundamente a organização do trabalho

escolar.

No estado de São Paulo, podemos inicialmente pensar na experiência realizada

em 1985 para resolver o problema da repetência em massa nas séries iniciais. Intitulado

como “Ciclo Básico”, a união entre as duas primeiras séries eliminava a possibilidade

retenção dos alunos ao final do primeiro ano do ensino fundamental. O Ciclo Básico foi

introduzido com algumas medidas estruturais, assegurando a passagem obrigatória da 1ª

para a 2ª série e oferecendo apoio suplementar aos alunos que manifestassem

dificuldades de rendimento (BARRETO, 1992). Com relação ao tempo dos professores,

a iniciativa garantia horas extraordinárias cumpridas em reuniões que tinham por

objetivo proporcionar a discussão da experiência e a reflexão acerca dos seus resultados.

Além disso, a jornada única de trabalho para esses professores acompanhava a duração

do período escolar para os alunos, que permaneciam seis horas diárias na escola. O

professor deveria permanecer mais tempo na escola, de modo a conhecer melhor os seus

alunos e as suas necessidades. Desta forma, eles passaram a lecionar quarenta horas

semanais na mesma escola, atendendo a uma só turma e destinando o restante do seu

tempo para o preparo das aulas, a correção dos trabalhos e as reuniões. Segundo Elba

Barreto (1992), as medidas tomadas no âmbito da implementação do Ciclo Básico

possibilitaram um salto qualitativo nas condições de trabalho na escola, ao menos no

que concerne às duas séries iniciais.

33

Podemos perceber mediante experiências como a da implantação do Ciclo

Básico, que tentativas de promover melhorias na qualidade do ensino são realizadas

também através da reordenação do tempo e do espaço escolar, alterando profundamente

a organização do trabalho dos professores e dos alunos. A possibilidade dos professores

passarem mais tempo em uma mesma escola lhes permite conhecer mais os seus alunos

e planejar melhor as suas atividades, de acordo com as necessidades de sua turma. No

entanto, ao elaborarmos o projeto pedagógico da nossa escola, precisamos considerar

que muitos dos nossos professores trabalham em várias escolas e, muitas vezes, se não

em dois até em três períodos do dia! Desta forma, pensar na organização do tempo

escolar na construção do projeto pedagógico é trabalhar constantemente entre o ideal e

o real. Ou seja, nosso desafio é tentar articular os pressupostos que consideramos ideais

para realizarmos uma educação de qualidade com as condições materiais com as quais

nos defrontamos cotidianamente.

No Brasil, o debate acerca da organização dos ciclos de aprendizagens

plurianuais está fortemente articulado à tentativa de superação do fracasso escolar, às

questões relativas à repetência e à evasão escolar. A educação escolar organizada em

ciclos procura, de algum modo, resolver esses problemas, trazendo consigo a premissa

da não interrupção da escolaridade durante um período maior de tempo do que ocorre

no sistema seriado. Em relação às condições de funcionamento da escola, essa maneira

de organizar o tempo escolar – em ciclos plurianuais – provoca alterações tanto no

trabalho pedagógico, quanto na administração e na organização escolar. Isto porque este

sistema apresenta uma necessidade maior de revisão constante do projeto pedagógico

mediante reuniões com a equipe da escola, altera o número de membros do corpo

docente, revê a questão da rotatividade dos professores – porque é desejável que,

quando exista, seja reduzido o número de professores que permanecem pouco tempo na

escola. Além disso, a organização em ciclos requer apoio e recursos pedagógicos. Desta

forma, para que esse sistema produza bons resultados, ele envolve toda a comunidade

escolar e mobiliza tanto recursos humanos, contando com a participação dos

professores, dos coordenadores, dos supervisores, dos diretores, dos orientadores, etc,

quanto recursos materiais, relativos à infra-estrutura da escola.

A organização da escola em ciclos de aprendizagem plurianuais representa uma

mudança em toda a estrutura escolar. Segundo Philippe Perrenoud (2004), diversos

aspectos do sistema escolar devem ser revistos e estruturados segundo uma nova lógica

espacial e temporal, modificando a estrutura curricular, a maneira de avaliar e de

34

organizar o trabalho na escola. Para o autor, essas mudanças devem atingir diretamente

as práticas e a cultura escolares. As práticas profissionais também deveriam sofrer

alterações, rompendo com o individualismo e primando pela valorização da cooperação

e do trabalho em equipe. Mudanças estruturais como a da organização do tempo escolar

em ciclos plurianuais não ocorrem sem que existam conflitos e resistências. Cláudia

Fernandes (2007), que estudou o impacto que a organização da escolaridade em ciclos

teve nas escolas brasileiras, afirmou o seguinte: “a escola em ciclos, por ser uma escola

na qual exige-se uma mudança, torna-se mais do que as outras, uma escola em conflito,

inquieta, uma vez que diversos aspectos estão sendo questionados: a forma de avaliar, a

maneira de se entender o conhecimento, a didática utilizada, a organização dos tempos e

dos espaços. A escola em ciclos administra conflitos. Se considerarmos que o cotidiano

escolar é marcado por urgências, por questões que muitas vezes não podem esperar, que

é um espaço marcado por relações humanas e, portanto, por natureza, complexo,

podemos afirmar que as tentativas de alterar práticas já consolidadas e legitimadas pela

comunidade escolar e pela sociedade, fazem com que a escola em ciclos torne-se, mais

ainda, uma escola conflituosa” (op. cit., p. 9). Na prática, o que é possível observar

quando a escola é organizada em ciclos – em muitos casos - é que, de modo geral, os

membros da equipe pedagógica atuam conjugando duas lógicas: tanto a lógica dos

ciclos quanto a lógica da seriação. Mas por que isso acontece? Quando nos tornamos

professores, trazemos conosco toda uma representação – uma idéia acerca daquilo que

consideramos ideal ou mesmo daquilo que consideramos possível – acerca do que seja a

melhor forma de realização do trabalho docente e da educação escolar. Diferentemente

de outras profissões, no caso do trabalho docente isso ocorre porque, antes de desejar

seguir a carreira docente ou qualquer outra carreira, as pessoas passam muito tempo e

grande parte de suas vidas nas instituições escolares, carregando consigo as impressões

e as concepções relativas à organização da instituição escolar e ao papel desempenhado

por cada um de seus membros.

Na época em que somos alunos, durante a nossa infância e a nossa adolescência,

somos capazes de responder, a nosso modo, o que faz o professor, o diretor, o

coordenador, o inspetor, etc, porque convivemos muito tempo com pessoas que

desempenham essas funções de maneira muito próxima a nós. Quando nos tornamos

professores, articulamos essas representações da época na qual freqüentamos a escola

como alunos com a vivência que adquirimos ao longo do exercício da nossa profissão.

As características da escola seriada estão tão arraigadas nas nossas representações

35

quanto na cultura escolar e, por esse motivo, uma mudança em relação ao uso e à

organização tempo na escola não existe sem que haja conflito e resistência. Desta forma

entendemos porque é tão comum que, mesmo trabalhando em ciclos plurianuais, muitos

professores se auto-determinem como “professor da primeira série do primeiro ciclo” e

façam exigências com relação ao cumprimento do conteúdo programático como se,

como o final do ano do calendário, terminasse também o ano escolar – como se o ano

correspondesse a uma série e não como uma parte do tempo do ciclo. De acordo com

Fernandes (2007), as concepções dos professores e de toda a equipe pedagógica são

ilustradas através das “decisões sobre quais ações realizar com seus alunos, seja em

relação à seleção de conteúdos, seja quanto às práticas de avaliação e decisões de

promoção ou retenção. A escola, para operar entre duas lógicas, conforma práticas de

ambas as concepções de ensino, isto é, um ensino ora com ênfase no que se ensina, ou

seja, no programa, e ora com ênfase no que se aprende, portanto nas aprendizagens que

os alunos podem realizar. Mesmo considerando a complexidade da ação educativa e que

nossas práticas conjugam diferentes concepções e lógicas, arrisco dizer que a escola em

ciclos, tal qual está posta hoje, apresenta-se como uma instância intermediária entre a

escola seriada e uma outra escola que ainda está por vir: uma escola mais coerente com

as questões, problemáticas, concepções, tensões, conflitos e verdades provisórias do

século XXI” (op. cit, p. 10). Quando pensamos em mudanças na organização das nossas

escolas precisamos pensar, sobretudo, na possibilidade de mudanças das representações

que os agentes da escola – professores, diretores, coordenadores, supervisores,

funcionários, etc – têm desta instituição. Assim como os nossos alunos, também

precisamos de um tempo para compreender mudanças organizacionais, principalmente

quando elas entram em conflito com as nossas representações e com os nossos ritmos.

Outro marco importante que entrou em conflito com as nossas representações

acerca sobre a escola pública atualmente foi a implantação do ensino fundamental de

nove anos. Nas “Orientações Gerais” produzidas pelo Ministério da Educação acerca do

Ensino Fundamental de Nove Anos (2004), vale a pena lembrarmos o trecho referente

ao tempo escolar, que, ao citar Rubem Alves, diz o seguinte: “os currículos e os

programas têm sido trabalhados em unidades de tempo e com horários definidos, que

são interrompidos pelo toque de uma campainha. Assim, a escola acaba reproduzindo a

organização do tempo advinda da organização fabril da sociedade. Uma situação como

essa remete-nos a Rubem Alves, quando afirma que ‘a criança tem de parar de pensar

o que estava pensando e passar a pensar o que o programa diz que deve ser pensado

36

naquele tempo’. Daí que emergem as questões sobre a necessidade de se repensar a

organização do tempo escolar, acompanhando as mesmas inquietações de Rubem

Alves: ‘o pensamento obedece às ordens das campainhas? Por que é necessário que

todas as crianças pensem as mesmas coisas, na mesma hora e no mesmo ritmo? As

crianças são todas iguais? O objetivo da escola é fazer com que as crianças sejam

todas iguais?’ Enfim, o que se tem aprendido com um currículo que fragmenta a

realidade, seus espaços concretos e seus tempos vividos? Trata-se de um modelo

disciplinar direcionado para a transmissão de conteúdos específicos, organizado em

tempos rígidos e centrado no trabalho docente individual, muitas vezes solitário por

falta de espaços que propiciem uma interlocução dialógica entre os professores. É com

esse cenário que as escolas são convidadas a pensar sob uma outra perspectiva, para

provocar mudanças no tradicional modelo curricular predominante em grande parte das

escolas de nosso país. É, assim, imprescindível debater com a sociedade um outro

conceito de currículo e escola, com novos parâmetros de qualidade. Uma escola que

seja um espaço e um tempo de aprendizados de socialização, de vivências culturais, de

investimento na autonomia, de desafios, de prazer e de alegria, enfim, do

desenvolvimento do ser humano em todas as suas dimensões. Essa escola deve ser

construída a partir do conhecimento da realidade brasileira. Nesse processo, é preciso

valorizar os avanços e superar as lacunas existentes no projeto político-pedagógico, ou

seja, melhorar aquilo que pode ser melhorado” (op. cit., p. 10). O trecho extraído do

documento produzido pelo governo federal é um convite aos diretores, aos professores,

aos coordenadores e a toda a equipe escolar a pensar sobre a organização do tempo nas

escolas, não em função da ordenação dos conteúdos, mas em função dos diferentes

ritmos de trabalho e de aprendizagem.

Exercício 3

1) Como é possível adequar o tempo escolar aos diferentes ritmos dos alunos?

2) Como a construção do projeto pedagógico pode promover o favorecimento da

aprendizagem pela adequada organização do tempo escolar? Pensar exemplos de

iniciativas capazes de favorecer essa organização.

37

O espaço escolar

Com vimos anteriormente, assim como o tempo escolar, o espaço também

ensina, permitindo a interiorização de comportamentos sociais. Assim como acontece

com o tempo escolar, forma como o espaço é construído e organizado influencia as

atitudes e a maneira como as pessoas habitam, convivem, se relacionam, aprendem e

ensinam nas escolas. Além disso, a construção do espaço escolar reflete - e refletiu ao

longo da história da educação brasileira - as teorias educacionais e as necessidades

sociais e econômicas do momento. A construção dos espaços adequados para o ensino

está associada não apenas à possibilidade da escola cumprir as funções sociais que lhe

são delegadas, mas também à produção da singularidade da instituição escolar e de sua

cultura (FARIA FILHO e VIDAL, 2000). A exemplo disso, podemos pensar na

construção dos grupos escolares no período republicano como espaços

arquitetonicamente planejados para ensinar que marcam profundamente as diferenças

entre a instituição escolar e o ambiente doméstico, ensinando às crianças as distinções

entre o comportamento adequado ao espaço público e aquele adequado ao espaço

privado. Tanto semelhanças com relação à organização panóptica que projeta o espaço

visando à promoção da disciplina e do controle acerca do comportamento das pessoas

quanto a concepção taylorista que visa à racionalização das tarefas de modo a promover

a maior eficiência podem ser encontradas na constituição daquelas escolas

(ESCOLANO, 2001). Aproximações entre a condução dos alunos no espaço escolar e

dos operários nas fábricas também são evidenciadas por elementos comuns aos dois

espaços, como a utilização do sinal de marca o horário de entrada e de saída, a formação

de filas, a utilização de uniformes, etc. Acerca do poder disciplinar que é gerado pelo

espaço escolar, vale a pena recorrermos novamente às palavras de Agustín Escolano

(2001), ao afirmar que “a ‘espacialização’ disciplinar é parte integrante da arquitetura

escolar e se observa tanto na separação das salas de aulas (graus, sexos, características

dos alunos) como na disposição regular das carteiras (com corredores), coisas que

facilitam além disso a rotina das tarefas e a economia do tempo. Essa ‘espacialização’

organiza minuciosamente os movimentos e os gestos e faz com que a escola seja um

‘continente de poder’” (op. cit., p. 27-28). A espacialização referida pelo autor pode

38

promover a disciplina dos alunos sem que seja necessário um ato explícito por parte dos

professores. Por exemplo, a maneira como as carteiras são organizadas na sala de aula

pressupõe determinado comportamento das crianças: se são fixadas no chão e alinhadas

umas atrás da outras, imobilizam os alunos e dificultam o contato com os colegas, se

são móveis e leves, favorecem o relacionamento com os colegas durante o período da

aula e flexibilizam a postura das crianças, oferecendo a elas uma maior liberdade. A

localização da escola também é uma variável do programa pedagógico comportado pelo

espaço e pela arquitetura da escola. A proximidade com a natureza e com áreas verdes e

livres favorece estímulos, ações, brincadeiras e jogos ao ar livre, promovendo tanto a

utilização didática do entorno quanto a contemplação estética da paisagem

(ESCOLANO, 2001). As escolas que possuem jardins e hortas possibilitam uma relação

mais próxima entre as crianças e a natureza – especialmente no caso daquelas crianças

que vivem em grandes áreas urbanas - favorecendo o contato dos alunos com a terra e

com as plantas. No caso do ensino de ciências e de biologia, os professores podem se

beneficiar desses espaços para a realização de atividades práticas, favorecendo o ensino

ativo e estimulando os diferentes sentidos dos alunos, para além dos exercícios

realizados dentro do espaço da sala de aula. Além disso, cuidar do espaço da escola

representa também um aprendizado do cuidado com o mundo, e este é um objetivo

educacional.

O espaço escolar e os símbolos na escola

Com relação à arquitetura escolar, também precisamos considerar que ela é um

elemento cultural e pedagógico não apenas pelos condicionamentos induzidos pelas

suas estruturas, mas também pela simbolização que ela desempenha na vida social

através da magnificência e imponência que os edifícios impõem ao espaço público. O

edifício da escola costumava ser, e alguns ainda são, construídos de forma diferente dos

outros prédios, que visam a uma maior praticidade. Da mesma maneira que os templos,

os palácios, as câmaras, os teatros e os quartéis foram construídos, o edifício escolar, no

dizer de Agustín Escolano (2001) “é uma forma que comporta determinada força

semântica através dos signos e símbolos que exibe, como variante que é da chamada

arquitetura institucional. O viajante que toma contato pela primeira vez com uma

população, pode observar e nela diferenciar, ainda sem conhecê-la, a singularidade de

certas construções. Sua localização, o volume, o traço geométrico, os sinais que o seu

39

desenho mostra, os símbolos que incorpora... tornam inconfundível seu objetivo e

permitem sua fácil identificação” (op. cit., p. 34) Cabe ressaltar que essa característica

marcante e imponente dos edifícios escolares não era assim antes que fosse configurada

a arquitetura escolar como um gênero específico da ordem espacial, ou seja, antes que

existisse uma intencionalidade na construção de espaços destinados especificamente

para promover o ensino e a aprendizagem, para receber os alunos, os professores e toda

a equipe pedagógica, e nada mais. Assim, o esforço investido pelos políticos e pelos

técnicos na construção de escolas exuberantes visava a demonstrar a valorização e a

atenção dispensada à educação, mas também tinha por objetivo demonstrar através da

magnitude desses edifícios o valor e o poder do Estado, fazendo das escolas símbolos de

ostentação deste poder, influenciando a consciência coletiva da população e também a

construção da sua identidade. Além disso, historicamente, “essa dignificação da

arquitetura escolar acrescentaria, também, o prestígio do professor e elevaria a estima

que os alunos têm para com a educação. O prestígio da escola dependerá, pois, de como

essa esteja instalada, de seu tamanho, limpeza, orientação. E esse modelo influirá,

depois, na casa que a criança buscará no futuro, para melhorar as condições de vida de

seus pais” (BALBÁS apud ESCOLANO, 2001, p. 37). Neste caso, o autor refere-se a

um momento no qual a escola primária foi difundida mundialmente – como vimos

anteriormente, no caso brasileiro podemos pensar na construção dos nossos grupos

escolares da virada do século XIX para o século XX que tinham por objetivo oferecer o

ensino primário para todas as crianças em idade apta à escolarização – e que contou

com a arquitetura de seus edifícios como um dos elementos de contribuiria com a

valorização dos professores e dos alunos. O autor ainda ressalta que o ambiente escolar

habituaria as crianças e os jovens a certas atitudes – como a organização, a limpeza e até

mesmo a valorização estética - e que, ao sair da escola, eles buscariam mantê-los em sua

vida, organização as suas casas sob essa inspiração. Quando pensamos em crianças e

jovens que foram os primeiros membros da família a freqüentar a escola, já que seus

pais não tiveram essa oportunidade naquele momento - como era comum no início do

século XX – podemos entender o quanto era forte a influência que esta instituição

poderia exercer sobre os hábitos de seus alunos e, inclusive, o quanto muitas vezes as

maneiras e as atitudes que a escola desenvolvia nas crianças entravam em choque com

aquelas às quais elas estavam habituadas com as famílias e em seus lares. Desta forma,

a escola cumpriria também através da sua arquitetura uma função higienizadora e

modernizadora dos hábitos familiares e através da criança era atingida a sua família.

40

Além da influência que a arquitetura pode exercer sobre os sujeitos que habitam

determinados espaços, ela também é capaz de influenciar a sociedade como um todo,

favorecendo o seu desenvolvimento: “ao transcender o funcionalismo banal que só daria

cobertura às necessidades físicas, dá origem a uma nova forma de comunicação cultural,

que também é pedagógica no sentido mais amplo e generoso” (op. cit., p. 38). Desta

forma, a função prática da arquitetura adquire uma dimensão simbólica: ao mesmo

tempo em que é funcional (os espaços precisam ser arejados, iluminados, adequados às

atividades que neles serão desenvolvidas) ela carrega símbolos que deixam traços que

guiam e marcam a conduta das pessoas (se os espaços são lúdicos e informais, se são

sóbrios e frios, etc). Para além da construção de seus prédios, a arquitetura escolar

também contempla outros símbolos, cívicos, morais e religiosos. Neste caso, podemos

ressaltar, por exemplo, cores diferenciadas que marcam os espaços destinados ao uso

dos meninos e das meninas, a bandeira nacional, o relógio, os retratos de homens

ilustres e os crucifixos que expressam dispositivos em uso no espaço escolar a serviço

da propagação e da manutenção de ideais nacionais, religiosos e sócio-morais.

Pensemos agora a propósito das nossas escolas, dos espaços que freqüentamos

diariamente, no qual trabalhamos.

Quantos símbolos elas carregam?

Quantas delas não possuem, ainda hoje, ao menos um crucifixo pregado em uma

parede?

Todos estes símbolos educam e marcam a trajetória escolar dos nossos alunos.

Portanto, ao pensarmos na configuração do espaço das nossas escolas e nos símbolos

que elas carregam, é importante atentarmos para isso: assim como o currículo, o espaço

escolar não é neutro, ele é impregnado de valores e carregado de intencionalidades.

Ainda de acordo com Agustín Escolano (2001), o espaço e a arquitetura escolar,

ao serem planejados, oferecem as condições para que sejam alcançados os objetivos

educativos de cada instituição de ensino, fazendo parte do programa pedagógico. Ao ser

elaborado pela equipe da escola, o projeto pedagógico deve levar em conta não apenas

as condições espaciais concretas daquela instituição como também a melhor utilização

que poderá ser feita dela, de modo a beneficiar o ensino e a aprendizagem. A

constituição de um espaço construído especialmente para promover o ensino e a

aprendizagem também é um dos elementos que está associado ao surgimento da forma

escolar. De acordo com Bernard Lahire, Daniel Thin e Guy Vincent (2001), a forma

escolar corresponde a uma forma inédita de relação social, entre um “mestre” e um

41

“aluno”, relação que hoje chamamos de “pedagógica”. Antes disso, aprender se fazia

por ver fazer e ouvir dizer, aprender não era diferente de fazer. Isso ocorria com as

próprias famílias e dentro das próprias casas. A autonomia da relação pedagógica

instaura um lugar específico – independente do espaço doméstico - onde se realizam as

atividades sociais: a escola. A constituição da forma escolar acompanhou a instauração

de uma nova ordem urbana, uma redefinição dos poderes civis e religiosos: “colocar

todas as crianças, até mesmo as pobres, nas escolas é um empreendimento de ordem

pública. Trata-se de obter a submissão, a obediência, ou uma nova forma de sujeição”

(op. cit., 14). Mediante as relações estabelecidas neste espaço, as crianças aprendem a

obedecer a determinadas regras de convívio social e de comportamento no espaço

público, como a maneira considerada correta de comer, de assoar o nariz, de escrever,

etc, através de normas que fazem parte da ordem escolar e que se impõem a todos que

pertencem à instituição escolar, atingindo tanto os alunos quanto os seus professores. A

ordem escolar existe a partir do momento em que as crianças precisam aprender a se

comportar dentro do espaço escolar, o que torna possível ensinar muitos alunos ao

mesmo tempo. Diferente das escolas confessionais, esses professores que não pregam –

já que não são padres - mostram o que é a relação pedagógica: uma submissão do

mestre e dos alunos a regras impessoais. A emergência da forma escolar, que

acompanha a constituição do tempo e do espaço escolar, se dá a partir de um conjunto

coerente de traços: a constituição de um universo separado da infância, a importância de

regras de aprendizagem, a organização racional do tempo, a multiplicação e a repetição

de exercícios, cuja função consiste em aprender conforme as regras. Assim, para além

de ensinar a ler, a escrever e a contar, a sociabilidade exercitada na escola ensinaria

também civilidade e visaria à formação do cidadão respeitoso e obediente, conhecedor

de seus direitos e, sobretudo, de seus deveres. Ligações profundas unem a escola e a

cultura escrita num todo sócio-histórico: a constituição do Estado moderno, instituição

de viria a se impor a todos; a generalização da alfabetização. A escola e a constituição

das relações sociais de aprendizagem estão ligadas à imposição da cultura escrita e à

formação de saberes escriturais formalizados, relacionados tanto ao que é ensinado

quanto à maneira de ensinar, tanto à prática dos alunos quanto à prática dos professores.

Trata-se de fazer com que os alunos interiorizem determinados saberes que

conquistaram coerência pela escrita e de fazer reviver, por um trabalho específico, a

prática pedagógica, os resultados do trabalho passado e da cultura acumulada pelos

homens historicamente. Portanto, quando nos referimos ao espaço escolar estamos nos

42

referindo a um espaço de ensino e de aprendizagem no qual é estabelecida a relação

pedagógica, ou seja, um espaço no qual há uma intencionalidade educativa.

Escolas para quem?

Conforme vimos anteriormente, a arquitetura escolar é impregnada de

significados e, assim como o currículo, ela não é neutra. Ela educa e é capaz de

condicionar o comportamento dos alunos. Portanto, no espaço escolar há uma

intencionalidade educativa. Desta forma, quando pensamos da utilização do espaço da

escola e sabemos que ele próprio é formativo, devemos nos interrogar acerca dos nossos

propósitos educativos. Conforme vocês estudaram no módulo II, na disciplina “O

Projeto Pedagógico e Autonomia da Escola”, quando trabalhamos na construção do

projeto pedagógico da nossa escola devemos ter clareza acerca dos objetivos que

visamos alcançar a partir da sua implementação, ou seja, devemos ensinar o quê?

Como?

Para quem?

Quem iremos formar? Quando pensamos na organização do espaço escolar,

devemos ter mente essas mesmas perguntas.

Quem pretendemos formar?

O que queremos que nossos alunos aprendam?

Todos os espaços escolares possuem potencialidades educativas e devem ser

considerados em função do projeto pedagógico e da intencionalidade educativa de cada

instituição. Portanto, os elaboramos o projeto é preciso refletir sobre esses espaços:

1- Salas de aula

2- Corredores

3- Pátio

4- Banheiros

5- Jardim

6- Quadras

7- Limites: muros, portões

8- O prédio

Quando construímos o projeto pedagógico, trabalhamos para projetar o futuro.

O projeto pedagógico representa a nossa carta de intenções acerca do trabalho de

queremos desenvolver em função da formação que almejamos realizar com os nossos

43

alunos. O espaço escolar, além carregar toda uma simbologia que atua junto à formação

das crianças e dos jovens, também é o suporte que sustenta a realização do projeto

pedagógico. Por exemplo: como podemos construir um projeto que vise à realização de

experiências se a escola não possui laboratório? Como podemos pensar em construir

hortas sem a escola é inteiramente pavimentada? Para além das limitações físicas dos

espaços também é fundamental que façamos a seguinte pergunta: essa escola é

destinada a quem? Quem receberemos e formaremos nela? A acessibilidade do espaço

escolar também deve ser considerada. O artigo 3º da LDB em vigor, a Lei nº 9.394/96,

define que o ensino será ministrado com base nos princípios de “igualdade de condições

para o acesso e permanência na escola”. A educação pública é um direito de todos,

garantido por lei, e o seu acesso a ela também é. Para que todas as crianças tenham

acesso à educação não basta simplesmente que existam vagas nas escolas para elas, é

preciso que o acesso físico às escolas também exista.

No ano de 1994, uma reunião que contou com representantes de vários países do

mundo todo, organizada pelas Nações Unidas em Salamanca, na Espanha, discutiu os

procedimentos que deveriam ser adotados para oferecer a cidadania plena às pessoas

portadoras de deficiências, equalizando as suas oportunidades de acesso a todas as

instituições sociais. Esse encontro faz parte de uma tendência mundial de promoção e de

consolidação da educação inclusiva. Essa reunião deu origem ao documento intitulado

“Declaração de Salamanca”, que trata dos princípios, das políticas e das práticas que

devem orientar a inclusão das pessoas portadoras de necessidades especiais nas escolas

e em toda a sociedade. Para que a escola promova uma educação inclusiva, além dos

recursos humanos (professores habilitados em linguagem de sinais, em braile,

psicólogos, etc) também é fundamental que a instituição disponha de recursos físicos,

como o material especializado, a sala de recursos, os banheiros projetados para receber

pessoas que se locomovem mediante o uso de cadeiras de rodas, rampas de acesso ao

edifício, elevadores, etc. Promover a acessibilidade de todos à escola requer uma

organização específica do espaço escolar. No momento em que construímos o nosso

projeto pedagógico, se não levamos em conta as nossas condições concretas e as nossas

possibilidades de mudanças – de reformas e alterações do espaço - ao longo do ano,

corremos o risco de elaborar algo que não será transformado de intenção em prática. E,

nesse caso, o nosso projeto pedagógico, a nossa carta de intenções não servirá a

ninguém, nem aos nossos propósitos, nem aos nossos alunos, nem a nós mesmos.

44

Espaço escolar: um espaço em transformação

Sabemos que a escola é uma construção histórica e social e, como tal, está

constantemente em transformação. Da mesma forma como ela continua a sofrer

influências externas que a modificam, ela pode ser transformada também a partir de seu

interior: mediante ações daquelas pessoas que habitam este espaço e o gerem. Se a

escola deve refletir e representar a identidade da comunidade escolar, cabe aos gestores

o desafio de transformá-la. Quando fazemos o projeto pedagógico da nossa escola,

planejamos aquilo que pretendemos realizar: projetamos o futuro modificando o

presente. Segundo Moacir Gadotti (1994), “todo projeto supõe rupturas com o presente

e promessas para o futuro. Projetar significa tentar quebrar um estado confortável para

arriscar-se, atravessar um período de instabilidade e buscar uma nova estabilidade em

função da promessa que cada projeto contém de estado melhor do que o presente. Um

projeto educativo pode ser transformado como promessa frente a determinadas rupturas.

As promessas tornam visíveis os campos de ação possível, comprometendo seus atores

e autores” (GADOTTI apud VEIGA, 2002, p. 12) O projeto pedagógico orienta a

organização do trabalho pedagógico de duas formas: como a organização da escola em

geral e como a organização da sala de aula. Desta forma, o projeto busca promover a

organização do trabalho na escola em sua totalidade, incluindo a gestão do tempo e do

espaço. De acordo com Ilma Passos Veiga (2002), “a escola, de forma geral, dispõe de

dois tipos básicos de estruturas: administrativas e pedagógicas. As primeiras asseguram,

praticamente, a locação e a gestão de recursos humanos, físicos e financeiros. Fazem

parte, ainda, das estruturas administrativas todos os elementos que têm uma forma

material como, por exemplo, a arquitetura do edifício escolar e a maneira como ele se

apresenta do ponto de vista de sua imagem: equipamentos e materiais didáticos,

mobiliário, distribuição das dependências escolares e espaços livres, cores, limpeza e

saneamento básico (água, esgoto, lixo e energia elétrica)” (op. cit., p. 24-25). A

estrutura pedagógica determina a ação da estrutura administrativa, ou seja, esta organiza

a escola – e o seu espaço - de modo a alcançar as suas finalidades educativas. Mas o

espaço escolar tem sido levado em conta quando construímos o nosso projeto

pedagógico? Muitas vezes observamos escolas que possuem projetos bastante

45

dinâmicos e inovadores, mas possuem espaços que mantém um modelo estrutural e

arquitetônico bastante conservador. Quando uma comunidade se apropria da escola,

também tem o direito de participar de eventuais mudanças neste espaço físico de modo

a atender os seus objetivos pedagógicos. Contudo, é possível observar que existem

muitas escolas nas quais várias pessoas passam por ela, mas poucas dela se apropriam,

o que nos leva a acreditar que há pouca reflexão acerca da função pedagógica do espaço

físico da escola e de sua transformação por seus protagonistas, por aqueles que a

ocupam e a constroem.

O espaço da sala de aula

Enxergar a si próprio como protagonista, como alguém que é capaz de modificar

o seu espaço em função de um propósito educativo pode repercutir positivamente em

uma mudança de mentalidade que influenciará o nosso trabalho e forma como gerimos a

escola. Desta forma, em alguns casos, para que possamos tentar modificar o espaço da

escola que ajudamos a organizar é preciso que pensemos primeiro em modificar a nós

mesmos e as nossas representações acerca desta instituição. Carlos Rodrigues Brandão

(1994), ao refletir acerca do espaço da sala de aula em um texto no qual relembra as

suas experiências escolares enquanto membro da “turma de trás” ou da “turma do

fundão”, como é popularmente conhecido o local da sala da aula habitado mais ao fundo

e mais distante dos olhos dos professores, apresenta a seguinte consideração: “na cabeça

de quase todo mundo a sala de aula admite espacialmente uma única oposição: a mesa

do professor versus o lugar coletivo dos alunos. Necessária ou perversa, esta divisão

ancestral dos lugares de ofício que ocupam esses cúmplices e rivais na sala de aula tem

sido ultimamente posta em questão, seja para criticar o verticalismo autoritário que ela

enuncia, seja simplesmente para lembrar que chegou afinal o tempo de inovações

arquitetônicas e pedagógicas quanto ao assunto. Creio que a sala de aula é um espaço

múltiplo que sempre comportou outras relações e oposições importantes e, no entanto,

esquecidas por não serem possivelmente tão visíveis, do ponto de vista da ortodoxia

pedagógica” (op. cit., p. 105). O autor discute a organização tradicional da sala de aula,

como era aquela que ele freqüentou na época em que foi aluno. As nossas experiências

escolares produzem representações que influenciam a nossa prática educativa. Se não

fizermos o exercício, como faz Brandão, de refletir sobre elas, corremos o risco de

reproduzir e proporcionar as mesmas experiências – já que agora estamos na posição

46

inversa, como educadores – com os nossos alunos. No caso da disposição dos móveis

dentro da classe, por exemplo, é natural mantermos a ordenação tal qual nos habituamos

no tempo em que éramos alunos. É nesse sentido que chamamos a atenção para a

importância da reflexão acerca da própria história de vida escolar e da própria formação.

Quais marcas elas produziram em nós mesmos e nas nossas práticas como

educadores?

Em que medida as nossas atitudes reproduzem as atitudes dos professores que

nos ensinaram?

Como cada um de nós se relaciona com os espaços da escola em nosso processo

de formação?

Pensar acerca destas questões pode nos sinalizar alguns caminhos possíveis que

levariam à transformação do espaço da escola a partir da nossa própria transformação:

se não somos capazes de imaginar que o ensino e a aprendizagem aconteçam em um

espaço organizado de maneira distinta daquele no qual aprendemos e fomos

escolarizados, dificilmente seremos capazes de sermos protagonistas em alguma

mudança.

Voltemos ao Brandão (1994), enquanto aluno que fazia parte da “turma de trás”

da classe, ao refletir sobre a sala de aula que freqüentou ele percebeu que “as antigas

(atuais?) repartições formais e espontâneas dos usos da sala de aula refletem

internalizações de papéis escolares ou culturais trazidos para dentro da escola. Para nós,

os da ‘fila de trás’, a oposição fundamental do lugar sagrado do estudo não era aquela

entre o professor e os alunos, em geral, mas uma outra. Era uma divisão entre o lado da

norma versus o lado da transgressão. Situados à frente (o professor de frente para nós

todos, os alunos ‘aplicados’ de costas) da sala, os ocupantes do espaço reservado ao

cumprimento das tarefas previstas. Após uma zona neutra de dos estudantes do ‘meio da

sala’, o lugar social da transgressão pedagógica” (op. cit., p. 120). O autor chama a

atenção em suas memórias para a maneira como os seus professores o avaliavam de

acordo com a posição que ele ocupava na sala de aula. Na ordenação tradicional da

classe, o lugar do professor fica à frente e as crianças posicionam-se em filas no restante

do espaço. Desta forma, a “turma de trás” é aquela que está mais distante dos olhos do

mestre. Os alunos que se posicionam nas primeiras fileiras seriam aqueles considerados

“bons alunos”, que estariam sempre atentos à aula e ao professor.

Ao refletirmos sobre essa configuração espacial, podemos notar que ao mesmo

tempo em que ela oferece abrigo àqueles considerados “transgressores”, ela também

47

favorece a “transgressão” pela forma rígida como dispõe as pessoas no espaço.

“Divididos os espaços” conclui Brandão “internalizados os papéis, culturalmente

estabelecidas e consagradas as identidades, constituídos os grupos e subgrupos entre

colegas de ofício por um ano ou mais, a ‘classe’ funcionava não como o corpo simples

de alunos-e-professor, regidos por princípios igualmente simples que regram a chatice

necessária das atividades pedagógicas. Ela organizava a sua vida a partir de uma

complexa trama de relações de aliança e conflito, de imposição de normas e estratégias

individuais ou coletivas de transgressão, de acordos (entre categorias de colegas, entre

alunos e professores, entre professores ‘chapas’ e a direção do colégio). A própria

‘atividade escolar’, como o ‘dar aula’, ‘ensinar’, ‘fazer a prova’, era apenas um breve

corte, no entanto poderoso e impositivo, que interagia, determinava relações e era

determinada por relações sociais, ao mesmo tempo internas e externas aos limites da

norma pedagógica” (op. cit., p. 121). O autor considera que o que se fazia no interior

das salas de aulas na época em que ele estudou, entre os anos de 1950 e 1960,

conspirava contra o desejo das crianças e dos jovens e, desta forma, fazia com que os

mesmos produzissem “estratégias” que tornavam a sua permanência naquele espaço e

durante aquele tempo suportável. Para ele, o esforço e as tentativas de inovação

promovidas pelas pedagogias ditas “modernas” consistem em aprender as estratégias de

relações entre as pessoas utilizadas por aqueles ditos “transgressores” das normas

rígidas de conduta no espaço escolar que tornariam a submissão às regras escolares ao

menos suportável.

É preciso ponderar que as “transgressões” às normas escolares que ocorriam nos

anos de 1960 não eram as mesmas que ocorrem hoje em dia, chegando a casos extremos

de atos de vandalismo e de depredação do espaço escolar até violência e agressões

contra professores e alunos. Contudo, a reflexão do autor nos faz pensar que, assim

como o projeto pedagógico que, para que de fato atenda às necessidades da clientela

escolar de determinada instituição, precisa ser fruto de uma construção coletiva, o

mesmo acontece com o uso do espaço da escola. Se as decisões são partilhadas e

resolvidas democraticamente, há pouco espaço para a transgressão, pois as regras não

são vistas como imposições e sim como acordos. É evidente que as decisões coletivas

não são tomadas de forma simples, normalmente são o resultado de um longo processo

de negociação. Agir dessa forma constitui um desafio que acena para resultados

promissores.

48

Exercício 4

No livro Maldito profe!, Nicolas Revol (2000) relata aspectos do seu cotidiano

como professor de uma escola considerada “problemática e violenta”, localizada na

periferia de Paris. Acompanhemos alguns trechos da história deste professor ao assumir

as aulas nesta escola:

“(...) à primeira vista, [a escola] Eugène-Sue não se parece nada com um

estabelecimento degradado. Foi renovado recentemente, com materiais contemporâneos,

os espaços são bem luminosos e os revestimentos muito limpos. As oficinas são amplas

e bem equipadas. Fico a saber que tenho a sorte de ter uma sala de aulas única para o

ano inteiro: assim não tenho que andar a arrastar o meu material pelos quatro cantos do

liceu, os alunos é que terão de se deslocar para assistirem às minhas aulas. Faço parte

dos privilegiados. É verdade que não vou ter espaço suficiente para guardar os trabalhos

dos alunos, mas apesar de tudo a sala é espaçosa e bem orientada para o sul. Até tenho

um pequeno anexo que posso fechar à chave para guardar os trabalhos volumosos. Só

uma coisa me preocupa: estou muito isolado. A minha sala fica no terceiro e último

andar. As aulas aqui são raras. Estarei freqüentemente sozinho” (p. 28-29)

“Primeiras horas: tempo de deixar entrar os alunos, instalá-los atrás de uma carteira,

baixar o volume sonoro especialmente elevado no início do ano, e já passaram dez

minutos. Primeira surpresa: a porta abre-se e fecha-se vinte vezes até eu poder pensar

em apresentar-me. Há os alunos lá de fora que vão e vêm. Os retardatários, antes de se

sentarem, dão um aperto de mãos a cada um. Depois, exatamente como no ano passado,

o mínimo incidente perturba-os. Um aluno dá um tranque e toda a turma se afasta do

culpado, deixando sozinho no canto da sala” (p. 31-32).

“Quando o volume sonoro atinge de novo um nível insuportável e alguns objetos

começam a voar pela sala, peço aos alunos que pousem as canetas. Faço questão que a

ficha seja corrigida em conjunto. Este exercício tão lúdico quanto instrutivo permite-me

captar melhor a personalidade de cada um: os mais ‘destravados da língua’ fazem tudo

para atrair as atenções, os tímidos enfiam-se nas suas tocas atrás das carteiras, os

‘Picassos’ fazem o seu brilharete. E como sempre, os mais calões passam o tempo a

mandar abaixo os que se dignam participar no exercício” (p. 35-36).

Nestes trechos do seu relato, Revol (2000) apresenta alguns aspectos do espaço escolar

e conta algumas das situações de indisciplina que enfrentava. Sabemos que a

49

indisciplina tem várias causas, mas especialmente considerando possibilidades do

espaço escolar, construa uma reflexão acerca da maneira como ele poderia ser utilizado

de modo a atenuá-la e a favorecer o ensino e a aprendizagem.

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