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A GLOBALIZAÇÃO E O DIREITO ADMINISTRATIVO' DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NET0 2 1. A história, o mito e a crítica. 2. A globalização. 3. O Estado em mutação. 4. Administrar as mudanças. 5. Renovados valores jurídicos para um direito administrativo em transformação. 6. Conclusão: a Administração Pública deixa de ser apenas execução, para envolver a para jurisdição e, como dado novo, a negociação de interesses. Quanto à globalização .. Uma nova economia surgiu em escala global nas duas últimas décadas. Chamo-a de informacional e global para identificar suas características fundamentais e enfatizar sua interligação." 3 Manuel Castells Quanto ao direito .. O legalismo exacerbado matou definitivamente o positivismo! Conseqüên- cia inesperada do predomínio formal absoluto das Leis, com o que se pensou eliminar a todas as demais fontes do Direito" 4 Eduardo García de Enterría , Conferência de encerramento do Seminário Brasil-Espanha de Direito Administrativo, em homenagem ao Professor Eduardo García de Enterría, realizado de 24 a 26 de outubro de 2000, na Universidade Cândido Mendes, sob os auspícios desta Instituição e da Procuradoria GeraI do Estado do Rio de Janeiro. 2 Professor titular de Direito Administrativo da Universidade Cândido Mendes, Procurador do Estado do Rio de Janeiro, Presidente do Instituto Atlântico e Membro da Academia Internacional de Direito e Economia. 3 Manuel Castells, A Sociedade em rede, São Paulo, Editora Paz e Terra, 1999, p. 87. 4 Eduardo García de Enterría, Justicia y seguridad jurídica em un mundo de leyes desbocadas, Madrid, Cuadernos Civitas, 1999, p. 103. R. Dir. Adm., Rio de Janeiro, 226: 265-280, out./dez. 200 1

A GLOBALIZAÇÃO E O DIREITO ADMINISTRATIVO' · 2018. 10. 3. · Eduardo García de Enterría , Conferência de encerramento do Seminário Brasil-Espanha de Direito Administrativo,

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A GLOBALIZAÇÃO E O DIREITO ADMINISTRATIVO'

DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NET02

1. A história, o mito e a crítica. 2. A globalização. 3. O Estado em mutação. 4. Administrar as mudanças. 5. Renovados valores jurídicos para um direito administrativo em transformação. 6. Conclusão: a Administração Pública deixa de ser apenas execução, para envolver a para jurisdição e, como dado novo, a negociação de interesses.

Quanto à globalização .. Uma nova economia surgiu em escala global nas duas últimas décadas. Chamo-a de informacional e global para identificar suas características fundamentais e enfatizar sua interligação." 3

Manuel Castells

Quanto ao direito .. O legalismo exacerbado matou definitivamente o positivismo! Conseqüên­cia inesperada do predomínio formal absoluto das Leis, com o que se pensou eliminar a todas as demais fontes do Direito" 4

Eduardo García de Enterría

, Conferência de encerramento do Seminário Brasil-Espanha de Direito Administrativo, em homenagem ao Professor Eduardo García de Enterría, realizado de 24 a 26 de outubro de 2000, na Universidade Cândido Mendes, sob os auspícios desta Instituição e da Procuradoria GeraI do Estado do Rio de Janeiro. 2 Professor titular de Direito Administrativo da Universidade Cândido Mendes, Procurador do Estado do Rio de Janeiro, Presidente do Instituto Atlântico e Membro da Academia Internacional de Direito e Economia. 3 Manuel Castells, A Sociedade em rede, São Paulo, Editora Paz e Terra, 1999, p. 87. 4 Eduardo García de Enterría, Justicia y seguridad jurídica em un mundo de leyes desbocadas, Madrid, Cuadernos Civitas, 1999, p. 103.

R. Dir. Adm., Rio de Janeiro, 226: 265-280, out./dez. 200 1

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1. A história, o mito e a crítica

Neste mundo fascinante, culturas neolíticas dispersas ainda convivem com uma cultura de âmbito planetário, desenvolvida no decurso de milênios de intercomuni­cação entre grupos, clãs, tribos, raças, nações, impérios, regiões e continentes.

As redes de comunicação, que se foram densificando com os séculos, permitiram que várias civilizações, aqui entendidas como realizações concretas de certas cultu­ras, que demonstraram capacidade de transcender os desafios do viver e do conviver, emergissem em inúmeros pontos da Terra e, no dinamismo cada vez mais eficiente de suas interações, produzissem a História.

Mas nem todas as culturas logram produzir esse dinamismo que lhes permitissem desenvolver civilizações, o que equivale a dizer que, aquelas que permaneceram isoladas, se estagnaram, não geraram propriamente História, produzindo apenas mitos, que nem sempre são recolhidos em suas crônicas.

O mito é, pois, uma produção espontânea das sociedades humanas, tanto no sentido que lhe atribui a Antropologia, de regras práticas para a orientação do homem5 como no sentido preferido pela Sociologia, em que designa a criatividade cultural que existe fora do empírico.6

Assim, de tudo o que passa à memória coletiva, legada durante o prolongado transcurso dos eventos culturais, são essas recordações persistentes que restam e passam a orientar as atitudes e os comportamentos dos grupos humanos. O mito surge como o resíduo de uma História ainda mal definida: é o que remanesce dos fatos, impregnado de simbolismos e de interpretações, daí, simultaneamente, a sua transcendência nas culturas e a sua distinção da realidade histórica.

Mas, não obstante, os mitos são importantes, mesmo nas civilizações, porque eles sobrevivem e continuam a conviver com a História e a impregná-la com seus símbolos e valores, tanto tomados isoladamente, como sedimentados em complexas estruturas míticas, expressas nas crenças, em ritos e em atitudes cognitivas, que, embora desenvol­vidas à margem da racionalidade, estão aptas a gerar poderosos dogmas, que prescindem de comprovação e, pelo mesmo motivo, tampouco admitem refutação.7

Ora, um conjunto de dogmas, estruturado com alguma coerência interna, por vezes com alguma elaboração racional, pode ingressar na História como um falso dado de civilização e com aptidão para gerar uma visão cósmica do mundo e da vida: uma Weltanschaung sedutora, quase sempre com um imenso potencial mobi­lizador, por seu profundo apelo emocional, e, por isso, em suas expressões mais acabadas, capaz de estruturar ideologias, aptas a organizar complexas estruturas mentais fechadas e acríticas e a polarizar correlatas estruturas de poder, geralmente, de caráter intolerante e autoritário.8

5 Bronislaw Malinowski, Mylh in Primilive Psychology; in Magic, Science, Religion anti Olher Essays, Glencoe III., Free Press, 1948, p. 70. 6 Robert McIver, The Web ofGovemment, New York, McMillan, 1947, pp. 3 a 12. 7 Neste sentido, um conhecimento extracientífico, de acordo com a epistemologia popperiana. 8 M. Rockeach, em The Open and Closed Mind (New York, Basic Books, 1960), H.J. Eisenk,

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Essa contingência, que nos faz conviver permanentemente com o mito e a realidade, desafia-nos, por isso, a cada instante, a um exercício crítico que nos permita distingui-los e a extricá-Ios, na busca de um fio de racionalidade prospectivo que nos ajude na compreensão das circunstâncias históricas e na tomada de decisões.

É por isso que constantemente nos vemos na difícil contingência crítica de fazer distinções entre mito e realidade, notadamente em se tratando de conceitos polissê­micos e plurivalentes, tais como o são Estado, democracia, público e, entre tantas outras, mais esta agora, posta em moda: a globalização. Mas, afinal, qual o conteúdo, e o que de mítico e o que de real existe nessa palavra, sobre a qual disputam filósofos, cientistas sociais, políticos, empresários, jornalistas e, Gomo não poderia deixar de ocorrer, os indefectíveis curiosos?

2. A globalização

Um exame sumário da globalização comporta duas linhas de compreensão: como fato e como valor.

Como fato, ela pode ser considerada historicamente, como uma dilatação dos horizontes de interesses das sociedades humanas, o que, afinal, não é um fenômeno novo, mas, ao contrário, muito antigo, pois segue a lógica inexorável da expansão dos interesses e de sua conseqüente e inevitável instrumentação pelo poder.

Com esse sentido, ela se tem manifestado com grande nitidez em alguns períodos de intensa difusão cultural e dinamismo do poder, geralmente seguidas da ampliação de fronteiras políticas, do desenvolvimento dos intercâmbios econômicos ou da propagação religiosa.

É por isso que a globalização já foi, em épocas distintas, predominantemente cultural, pelo poder do exemplo, como se deu no mundo helênico; hegemonicamente política, pelo poder da espada, como se passou na expansão do mundo romano; notadamente econômica, pelo poder das riquezas, como ocorreu na dilatação do mundo ibérico pelos descobrimentos e preponderantemente religiosa, pelo poder da fé, como sucedeu na propagação do cristianismo.

Mas outros movimentos globalizantes apresentaram também combinações des­ses interesses, como sucedeu com os fenômenos aparentados, como o da expansão do Islã e do imperialismo moderno, este último, desdobrado em importantes sub­manifestações específicas, como os imperialismo inglês, norte-americano e soviético, para lembrar os mais importantes.

Ocorre, porém, que esta atual globalização, que se propaga desde o último quartel do século vinte, ultrapassa todas essas experiências. Ela não só é mais ampla

em The Psichology of Politics (London, Routledge & Kegan Paul, 1954) e K. Roughmann, em Dogmatismus anti Autoritarismus (Meinsenheim am Glan, Hain, 1966), apresentam notáveis con­vergências ao apontar constantes conexões entre dogmatismo, ideologia e autoritarismo, o que psicologicamente explicado pelo fato de que as pessoas preferem receber idéias acabadas a entre­garem-se ao raciocínio.

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e mais diversificada como, sobretudo, é mais profunda, pois se apresenta como uma conseqüência inevitável da Revolução das Comunicações, um movimento tão intenso que tem promovido mudanças radicais nas características da civilização dominante no planeta e, por isso, veio sob o signo da permanência.

Sob seu influxo, de seus novos meios e de suas novas mensagens, o mundo se vai encolhendo e os indivíduos, os grupos, as sociedades e os Estados ficam cada vez mais próximos e interagentes, todos integrados pelo desenvolvimento científico e tecnológico que, notadamente nos últimos cem anos, disseminou ecumenicamente o conhecimento e possibilitou a eclosão dessa nova etapa civilizatória em que vivemos, denominada, pelo brilhante sociólogo espanhol Manuel Castells, de quem se pediu de empréstimo uma epígrafe, de Era da Informação. 9

Os desdobramentos sociais deste fenômeno são complexos e vertiginosos: as populações passam, sucessivamente, a ter amplo acesso ao conhecimento, e, porque o conhecimento as muda irreversivelmente, a tomar consciência de seus interesses, a reivindicar participação e, como conseqüência, a se organizar cada vez mais e a exigir eficiência no atendimento de suas necessidades.

Fácil identificar, nesta seqüência caus.:!, a íntima correlação da globalização com a democracia, aqui tomada em seu sentido material, portanto, democracia enquanto realização de valores convivenciais, e não apenas em seu sentido formal, como mera técnica de sufrágio.

E, a este ponto, se passa à Segunda acepção da expressão globalização -enquanto valor - o que nos remete à eriçada polêmica que sempre a acompanha, uma vez que, conforme os diversos ângulos de entendimento que o conceito com­porta, com seus respectivos conteúdos valorativos, ela pode ser vista com um bem ou como um mal, como um anátema ou como uma esperança para um mundo melhor.

Por isso é que, diante da irredutível ambivalência da voz globalização - por ser inteligível simultaneamente como fato e como valor - ela será do mesmo modo considerada, para os fins e limites deste discurso, ora como fato e, por isso, um dado objetivo, sem muita margem para dissenso, ora como valor, e, sob esse aspecto, um dado subjetivo, este sim, passível de ponderação 10, como a que a seguir se procederá,

9 Manuel Castels, A Era da Informação - Sociedade, Economia e Cultura, tradução do original em inglês, São Paulo, Editora Paz e Terra S.A., 1999,3 volumes. 10 De modo semelhante, sem preocupar-se, porém, com implicações antropológicas do fenômeno, Zigmunt Bauman apresenta essa palavra na Introdução de sua difundida monografia Globalization: The Human Consequences, Cambridge/Oxford, 1998, Polity Press, traduzida em português sob o título Globalização: As Conseqüências Humanas, Rio de Janeiro, 1999, Jorge Zahar Editor (v. p. 7): "A globalização está na ordem do dia; uma palavra da moda que se transforma rapidamente em um lema, uma encantação mágica, uma senha capaz de abrir portas de todos os mistérios presentes e futuros. Para alguns, "globalização" é o que devemos fazer se quisermos ser felizes; para outros, é a causa da nossa infelicidade. Para todos, porém, "globalização" é o destino irremediável do mundo, um processo irreversível; é também um processo que nos afeta a todos na mesma medida e da mesma maneira. Estamos sendo todos" globalizados" - e isso significa basicamente o mesmo para todos. "

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já com vistas à avaliação de suas conseqüências sobre o Direito Administrativo, que é o propósito desta exposição.

Mas faz-se, antes, mister um esclarecimento: alude-se ao Direito Administrativo tal como hoje se apresenta, e não mais ao que em seu conceito clássico dele se tinha, como uma Disciplina jurídica referida apenas ao Estado, já que, nessa evolução, ele se vem transformando em um direito comum voltado à realização de interesses transindividuais juridicamente relevantes e não mais um isolado ramo do Direito Público, como argutamente consignou Sabino Cassese na seguinte passagem da Quinta e recentíssima edição de suas Bases do Direito Administrativo:

li ... o direito administrativo não é, em nenhum país, parte do Direito Público, consistindo, ao contrário, em uma combinação das normas e princípios publicistas e das normas e princípios privatísticos, sem uma (unitária) hierarquia entre as duas." 11

Inegavelmente, aí está evidenciado um primacial e quiçá mais importante efeito da globalização sobre o Direito Administrativo, pois desse texto se depreende que é a sua própria essência científica que necessariamente se altera e se transfigura, para adequar-se às transformações da administração pública em um Estado em mutação.

Não se sustentam, portanto, os receios dos que imaginam que as transformações em curso no Direito Administrativo tenderão a condená-lo à redução e ao desapa­recimento e, muito menos, à perda de importância; muito ao contrário, elas não só o ampliam além do público estatal ao público não-estatal, em fronteiras ainda sem limites, e o valorizam, uma vez que elevam, no processo, o seu referencial, que deixa de ser o Estado para ser o cidadão.

3. O estado em mutação

A palavra-chave introduzida pela globalização no Estado em mutação, é efi­ciência. Tanto em sua atuação externa como interna, não mais apenas o primado da eficiência bélica, que fora tão importante na Era das grandes potências, mas o de uma nova e peculiar eficiência política para atuar nas relações multilaterais. Não mais apenas a simples eficiência econômica, entendida como o aumento da produção, com redução de insumos e aumento de lucros, mas, além disso, a eficiência sócio econômico, que consiste em produzir bens e serviços de melhor qualidade, mais rapidamente e em maior quantidade, para atender a sociedades cada vez mais de­mandantes; não mais apenas a eficiência que depende somente da ação do Estado,

11 " .. il diritto amministrativo non e in nessum Paese parte dei diritto pubblico, consistendo invece, di uma combinazione di nonne e principi publicisti e di norme e principi privatistici senza una (unitaria) gerarchia tra i due." (Sabino Cassese, Le Basi dei Diritto Amministrativo, Milão, Garzanto, 2000, 5" edição, p. 120.

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mas, acrescida a ela, da eficiência proporcionada pelo concurso de uma sociedade solidarizada pela democracia; e, ainda, não mais apenas a eficiência que depende da atuação de Estados isolados, mas a que se logra através de um concerto institucio­nalizado de Estados solidários.

Ora, essa eficiência passa a ser vital para as nações no processo de globalização; um imperativo não só de desenvolvimento como de sobrevivência, em um mundo em que as demandas não podem deixar de ser atendidas a contento: seja pelas instituições públicas, seja pelas instituições privadas.

Com efeito, as pessoas querem ter seus interesses satisfeitos, pouco importando quem o faça ou deles se ocupe: se uma entidade privada ou governamental e se será uma entidade nacional, multinacional ou estrangeira. Com isso, o nacionalismo deixa de ser uma idéia-força, uma aspiração ou um mito capaz de compensar a pobreza, o sacrifício e o subdesenvolvimento para voltar a ser apenas mais uma referência, entre outras, já não mais capaz de justificar falhas e omissões, mesmo aquela habitual, não conhecida e passivamente tolerada ineficiência estatal, que muito embora criti­cada, sempre foi absorvida nas culturas impregnadas por uma forte relação de subordinação do privado ao público, como remanescente do conceito absolutista da supremacia realenga que adentrou o Estado nação contemporâneo disfarçadamente, travestida como o perigoso postulado da supremacia do interesse público.

Assim é que a reabilitação pós-positivista dos princípios, ao redefinir a supre­macia dos direitos fundamentais, e o efeito-demonstração, amplamente disseminado pelas experiências juspolíticas mais exitosas, puseram em evidência um novo con­ceito operativo para a administração pública, que parte de uma precisa e adequada vocação das funções cometidas a cada entidade prestadora, de modo a que se satisfaça, a melhor maneira possível, e com os menores custos, as demandas tradi­cionais e emergentes das sociedades de todas as latitudes, não importando tanto se quem fará, afinal, tais prestações: se será uma entidade pública, privada, local, regional, nacional, multi ou metanacional.

É nessa perspectiva, de uma visão funcionalista do Direito Administrativo, que assomam de importância tanto as micro-organizações político-administrativas do Estado-local, como sejam: o município, o county, a mairie, o kreis etc, como as macro-organizações político-administrativas de um Estado-nação expandido, que conformarão as comunidades de Estados, os blocos econômicos ou, mais modesta­mente, os mercados regionais.

São as novas organizações administrativas, funcionalmente orientadas, resul­tantes das tensões centrípetas e centrífugas do poder, que hoje buscam a sua medida adequada de concentração para se tomarem eficientes. Eis porque, em curioso e aparente paradoxo da globalização, dela decorrem tanto a micro, como a macro-re­gionalização: tanto o reforço do poder local, como o surgimento dos centros de poder transnacionais.

Deve-se, sem dúvida, à falência do mega-Estado, em seus dois modelos vinte­centistas, o do Bem-estar social e o Socialista, dominantes durante quase todo o século, o ressurgimento da consciência de que certos problemas não podem ser resolvidos por um poder central, por mais hipertrofiado e poderoso que seja, e até mesmo por esta razão, de seu gigantismo.

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Assim é que essa constatação de acerto da conhecida advertência de Daniel Bell, de que o Estado se tornou grande demais para os pequenos problemas e pequeno demais para os grandes problemas, tem efeito ambivalente, pois as atenções políticas se têm direcionado tanto para as potencialidades das unidades metacionais, quanto para as das unidades infraestatais, dependendo das funções a serem desempenhadas.

Os descompassos funcionais do Estado já eram evidentes na passada década dos oitenta, quando então começaram a ser identificadas os primeiros impulsos da globalização e ficaram expostas as grandes fragilidades da economia internacional, causadas pelos modelos estatizantes, do bem-estar social e socialistas. Mas, de modo ainda mais contundente, revelou-se plenamente que esses sistemas políticos haviam produzido, ao longo de um século de guerras e de ideologias, milhões e milhões de excluídos, como resultado da cegante hipertrofia de poder neles existentes e de suas decorrentes políticas públicas equivocadas. Observa-se, ainda, que esta constatação não partiu de nenhuma corrente político-partidária ou de qualquer País específico, mas simplesmente despontou como resultado de estudos e pesquisas realizados por instituições internacionais. 12

Os desacertos e as crises dos modelos de em estar social e socialistas ficavam então claramente patentes e, ainda que os ocorridos nos Estados socialistas houves­sem provocado comoções políticas mais violentas, que culminaram com a emble­mática queda do muro de Berlim, foram, porém, as crises dos Estados do bem-estar social que se mostraram ainda mais contundentes em seus impactos econômicos e sociais. \3

Assim foi na economia, antes de tê-lo sido em quaisquer outros setores, que começaram a se alinhar as primeiras diretrizes para a retomada do crescimento pela globalização dos mercados, suportadas nas seguintes premissas:

1. a necessidade de remover o entulho protecionista acumulado pelo modelo do Estado do bem-estar social;

2. a necessidade de reduzir os custos de pesquisa e de produção; 3. a necessidade de os países em desenvolvimento enfrentar solidariamente a

competição com grandes países ou blocos de países; 4. a necessidade de transformar qualitativamente os fluxos de comércio com o

objetivo de priorizar os fatores de produção competitivos em cada país. Estas foram razões pelas quais a integração econômica assomou como impor­

tante solução para reverter o processo, ao ampliar escalas e estimular a competi ti vi-

12 Agustin Gordillo, prestigioso administrativista argentino, em obra particularmente interessante sobre a reforma do Estado, sob a óptica da experiência em seu País, localiza na década dos oitenta a crítica e a mudança de orientação econômica dos organismos mundiais que anteciparam a globalização (Después de la Refonna dei Estado, Buenos Aires, Fundación de Derecho Adminis­trativo, 1996, p. 1-15). \3 Jaime Rodríguez Arana, sintetiza o fenômeno e cita ampla literatura sobre a crise em interessante obra de análise sobre as relações entre mercado e função pública, que se tornavam cada vez mais problemáticas (Ética Institucional, Mercado 'versus' Función Pública, Madri, Ed. Dickinson, 1996, pp. 74 e ss.).

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dade, de modo a proporcionar resultados eficientes, o que passou a processar-se em três níveis:

1. o mais simples, da integração das zonas de livre comércio, nas quais se dá uma substancial eliminação de direitos alfandegários;

2. o intermédio, da integração das uniões aduaneiras, em que se promove a homogeneização de tarifas e da política comercial de importação; e

3. o avançado, da integração dos mercados comuns, em que se alcança a livre circulação dos fatores de produção em grandes espaços geopolíticos.

E essa integração econômica conduz a uma conseqüente integração política, que se dá também em três níveis:

1. o da integração confederativa, caracterizada pela criação de um centro de governo central capaz de dispor diretamente sobre certos assuntos, mas sem supres­são da soberania dos Estados membros;

2. o da integração federativa, caracterizada pela concentração da soberania no Estado central, que dispõe, concertadamente com os Estados membros, apenas au­tônomos, sobre assuntos de sua exclusiva competência; e

3. o da integração comunitária, com o passo político posterior e mais além da formação de mercados comuns, para formar comunidade de nações, em que se pode distinguir dois níveis de soberania: a nacional e a comunitária.

Em suma: a globalização pôs em marcha um conceito novo e expandido de eficiência política, em que a organização de poder, fosse qual fosse e na dimensão que tivesse, bem como as funções a serem desempenhadas, se deveriam adequar subsidiariamente às novas demandas, na medida em que, como isso, se iria reduzindo paulatinamente, como resultado da informação, a velha e desconcertante tolerância com a ineficiência do setor público.

Como se observa, todas as demandas sociais quantitativa e qualitativamente expandidas, levaram à ampliação do espaço público, transformando-o em um espaço de interesses transindividuais: um espaço público não estatal, em progr~ssivo cres­cimento, que passou a exigir uma disciplina jusadministrativa também expaNJida, que, por, isso, não mais se contém no Direito Privado nem no Direito Público tradicionais.

Tornou-se necessário um Direito Administrativo disciplinador desses interesses transindividuais juridicamente relevantes para mobilizar todas as instituições que devem concorrer solidariamente para atendê-los, desde as organizações não gover­namentais, incluindo todas as executoras de atividades privadas de interesse geral, às estruturas administrativas convencionais e às novas agências reguladoras indepen­dentes.

E é neste sentido que se pode falar de um novo Direito Administrativo, sucin­tamente, como um direito disciplinador de interesses transindividuais: um direito do cidadão, entendido não apenas como uma referência ao Estado em que goze de direitos políticos convencionais, mas a qualquer Estado em que se encontre, vivendo trabalhando ou recreando-se, gozando dos direitos humanos fundamentais, que lhe são inatos.

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4. Administrar as mudanças

Como já se expôs, toda e qualquer mudança histórica enfrenta mitos existentes e, gera, por seu turno, novos mitos. A globalização não escapa à regra, daí a facilidade com que o discurso sério dos fatos se perverte em estéreis debates emocionais ou ideológicos.

O fato inconteste está, porém, no surgimento de uma nova forma de entender o que seja o público: não mais como algo inerente e próprio ao Estado, como se havia erigido como um mito poderoso do século vinte, como nos dá conta Ernest Cassirerl4

, mas como um espaço decisório compartilhado com a sociedade, o que rompe um presumido monopólio estatal sobre variadas funções de interesse transin­dividual.

A conseqüente desmonopolização do poder, que vem a ser, em última análise, uma recuperação de um espaço próprio da sociedade, individual ou coletivamente considerada, que, a pretexto de dispor sobre tudo o que fosse público, havia sido paulatinamente absorvido pelo Estado, como não podia deixar de ser, tem aspectos positivos e negativos. Inúmeros desses aspectos não são, ainda, imperceptíveis, mas logo o serão, pela crítica voltada a uma serena apreciação dos fatos e de suas conseqüências, engajada a um mínimo de valores tradicionalmente estabelecidos como essenciais às sociedades humanas organizadas, como a liberdade e o respeito pela pessoa.

Distinta, porém, se apresenta a crítica ligeira e precariamente fundada, que resulta de mera avaliação superficial das realidades políticas, sem outra referência que pseudo-valores, emergentes no torvelinho da conjuntura, e que não são mais que recorrentes mitos do passado.

Assim é que questões habitualmente postas, como estatização versus desestati­zação, regulação versus desregulação, publicização versus privatização, intervenção versus desintervenção e quejandas, nada mais são que falsos dilemas, se consideradas genericamente, pois cada uma dessas relações necessita ser ponderada em situações concretas, para que suportem um tratamento racional; no contrário, não suscitarão mais que confrontações retóricas e estéreis, em que os componentes míticos, e mui provavelmente ideologizados, predominarão na vápida e inútil tônica argumentativa.

Por isso é que os refrões mítico-ideológicos, tão comuns em tema de globali­zação, apenas produzem atitudes e argumentações estereotipadas, que oscilam entre posturas catastrofistas, saudosistas ou conspiratórias, ou uma combinação delas.

A atitude catastrofista, que vê na globalização um prenúncio de anarquia, e, por isso, uma séria ameaça à própria liberdade.

A atitude saudosista, que vislumbra, na globalização, apenas o fim do Estado­providência, e, com ele, a gostosa proteção paternalista, bem como os favores e os privilégios, nada restando senão enfrentar a dura competição atual.

A atitude conspiratória. que considera a globalização como uma estratégia de

14 Emest Cassirer, The Myth ofthe State, New Haven, Londres, Yale Univertsity Press, 1946,5" ed.1963.

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dominação, em que nem mesmo a competição, afinal, restaria, comportando duas variantes: a primeira, a conspiração política, em que a dominação se daria por parte de um Estado hegemônico, quase sempre, et pour cause, apontados os Estados Unidos, ou, em hipótese mais ampla, um grupo de Estados desenvolvidos, que se constituiriam numa espécie de cartel neo-imperialista, e a Segunda variante, em que a dominação seria econômica, esmagadoramente exercida por ávidas e pode­rosas empresas transnacionais que a todos subjugariam, afinal, a seus interesses financeiros.

Já se vê que não é possível estabelecer-se um debate racional e produtivo sobre premissas desse jaez, ainda porque, essas três atitudes revelam, afinal, um completo desconhecimento do poder e de suas leis. 15

Isso não significa, porém, que sejam todos infundados, os receios que possam ser levantados, independentemente das posturas assumidas. Mesmo evitando cuida­dosamente emocionalismos e radicalismos fáceis, é preciso manter uma atitude crítica indispensável para que cada indivíduo, cada grupo, cada empresa e cada país, possa administrar a globalização a seu favor, maximizando as vantagens e minimi­zando as desvantagens, tarefa que exige racionalidade e, que valha a insistência, deve ser empreendida casuística e concretamente: de país a país, de situação, e, sobretudo, sem refrões nem panacéias.

Administrar as mudanças causadas pela globalização vem a ser, portanto, adotar soluções racionais, fundadas em princípios norteadores de comprovada validade e sempre abertos à crítica. Ora, se afunção administrativa se volta, em última análise, à disciplina do espaço público, nele compreendidos todos os interesses transindivi­duais, sem que importe qualificá-los de públicos ou privados, ela deve ter caracte­rísticas que possibilitem reunir racionalmente as vantagens críticas das disciplinas privada e da pública, que confluem para regrá-lo, como o são, destacadamente, as da subsidiariedade e da flexibilidade.

A subsidiariedade, para definir a exata responsabilidade originária de atuação do Estado em relação a cada tipo de problema, e a flexibilidade, para manejar a alteração dos órgãos e das funções com vistas a alcançar os melhores resultados, o que acarreta uma reversão do que a tradição organicista até agora nos tem legado, ou seja: o resultado precedendo a definição da função e, esta, a do órgão.

A subsidiariedade, desde seu nascedouro na pequena Suíça, com sua grande experiência multissecular de coexistência multicultural, à elevação a princípio de doutrina constitucional e à adoção nos Tratados da União Européia, reverte o que restou das cinco fortes características cratológicas do Estado moderno: ser uma estrutura de poder concentrado, unitário, centralizado, absoluto e totalitário.

Dessas cinco características restam vigentes hoje apenas três, uma vez que as outras duas se revelaram recessivas - o absolutismo e o totalitarismo, superadas, que foram, pelo carisma dos ideais de liberdade desenvolvidos nos anos setecentos e manifestados em duas grandes revoluções políticas liberais, a americana e a francesa, embora tenham, dramaticamente ressurgidos durante o século vinte, como

15 V., do autor: Teoria do Poder. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1993.

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uma hipertrofia de poder que foi quase uma inevitável conseqüência dos enfrenta­mentos ideológicos, políticos e militares, que tristemente o marcaram.

Restaram, porém, para serem eliminadas e superadas pelo aprimoramento do Estado Democrático de Direito, ainda três daquelas características: uma excessiva e teimosa concentração de poder no aparato político, notadamente no ramo governa­mental; o dogma, quase sacralizado, da unidade jurídico-política, ligado ainda a um arcaico conceito de soberania; e a centralização das funções estatais.

É neste ponto que se apresenta como resposta, a oferecida por essa dádiva do pragmatismo suíço expressa no princípio da subsidiariedade, que vem a ser, na prática, uma nova doutrina de repartição de poderes, e que consiste, apenas, na adequada e precisa definição dos sucessivos níveis de concentração do poder e das decorrentes descrições de competência, desde necessárias para atender as demandas da sociedade do modo mais eficiente possível, e sempre com respeito pelos espaços de decisão menores, reservados, sucessivamente, aos indivíduos e aos grupos sociais secundários.

Assim, tudo o que puder ser provido pela sociedade, por seus próprios entes e por seus respectivos meios, deverá sê-lo, assim como tudo o que puder ser atendido pelas organizações políticas locais, não deverá passar às regionais e, sucessivamente, o que as entidades regionais tiverem condições de resolver não deverá ser transferido ao Estado Central que, por sua vez, deverá atuar apenas subsidiariamente na solução de quaisquer problemas que depassem suas próprias possibilidades de atuar eficien­temente.

Cabe aqui uma consideração a latere a respeito do municipalismo e do regio­nalismo, quanto aos aspectos fiscais indispensáveis à sua atuação administrativa, para sublinhar que a subsidiariedade deve informar não apenas as partilhas de competência mas, paralelamente, os critérios de partilha tributária, de modo que se preserve, ao máximo, para a sociedade, a disponibilidade dos recursos por ela produzidos, procedendo-se à distribuição dos recursos obtidos impositivamente entre as sucessivas entidades políticas, conforme suas respectivas funções, sempre subsi­diariamente consideradas.

Com isso, federalismo, regionalismo e municipalismo perdem muito da cono­tação formal que os acompanha, na algidez das descrições de competências, para adquirirem uma nova e humanizada dimensão substantiva, uma vez iluminados por esse princípio da subsidiariedade, que leva às descrições de finalidades, o que, acrescente-se, não só justifica plenamente a insistência do magistério da Igreja Católica em sua pregação social, desde seu primeiro desenvolvimento, expresso na Encíclica Quadragesimo Anno, de Pio XI, até sua enfática reafirmação na Mater et Magistra, de João XXIII, como a expressa juridicização do princípio no artigo 5° do Tratado de Amsterdam, como critério de distribuição de poder político.

Como se observa, a globalização, que hoje estimula a criação de grandes unidades políticas metaestatais, ao contrário de empalidecer as entidades políticas infraestatais, uma vez inspirado e temperado pela subsidiariedade, também as valo­riza e as revigora, na medida em que, cada vez mais, as fronteiras políticas interna­cionais se esbatem e se tornam permeáveis e o mundo vai deixando de ser um mosaico

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de países para se tornar um mosaico de regiões e, dentro delas, um ecumênico mosaico de municípios.

No plano metanacional, a regionalização tem passado pela formação de blocos econômicos concertados em relações minilaterais entre países geograficamente pró­ximos e, de certo modo, economicamente complementares. Assim, a regionalização, nessa linha, pode ser considerada como uma forma de integração, em que, até certo nível, prevalecerá a necessidade econômica e, mais adiante, seguramente assomará a política.

5. Renovados valores jurídicos para um direito administrativo em transformação

Como não poderia deixar de ocorrer, essas rápidas e profundas mudanças das sociedades humanas, trazidas pela Revolução Científico-tecnológica e, em seu bojo, pela Revolução das Comunicações, tornaram simultaneamente obsoletos os modelos de Estados dominantes no século XX, e hoje, embora não se saiba qual o modelo que afinal virá a prevalecer no atual século, já se antevê o que deve ser feito para livrá-lo das amarras, que impedem sua eficiência, notadamente no desempenho de suas funções essenciais.

A considerar-se válida a asserção de Norberto Bobbio, a que faz coro nosso saudoso José Guilherme Merchior, de que a democracia tem sua afirmação histórica assegurada nas sociedades livres, pode-se vislumbrar um elenco de tendência que, de um modo ou de outro e com distintos graus de realização, ditarão a conformação dos modelos políticos prevalecentes para s próximas décadas.

À vista do que foi parcialmente desenvolvido, passando agora a uma análise mais detalhadal6, podem ser alinhadas, entre outras, as seguintes tendências forte­mente impactantes sobre a função administrativa pública e o seu Direito: participa­ção democrátiva, pluralismo, subsidiariedade, transnacionalização, sócio-capitalis­mo, fiscalidade competitiva, despolitização, consensualidade e govemabilidade.

A primeira delas, a participação democrática, desejável e inevitável numa sociedade permeada pela comunicação, marcará a transição das democracias re­presentativas, refletindo-se, por isso mesmo, na transformação do tipo de Estado que Massimo Severo Giannini denominou de Estado monoclasse ou biclasse, enten­dido como um feudo de estamentos dominantes, em um Estado pluriclasse, sem hegemonias, o que obriga a administração pública a se pluralizar para atender, mais direta e significativamente, os vários setores de interesses transindividuais que vão emergindo e reclamando disciplina jurídica.

No campo econômico, o Estado deverá se aperfeiçoar como o grande agente de fomento público, voltado a propiciar mais um desdobramento do capitalismo, muito além do primitivo modelo de capitalismo industrial, depois transformado, sucessi­vamente, em capitalismo bancário, estatal e, hoje, em capitalismo institucional, que vem a ser um promissor desdobramento social, possivelmente a ser caracterizado

16 V. nosso Sociedade, Estado e Administração Pública, Rio de Janeiro, Editora Topbooks, 1996.

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pelo crescente acionaria to popular, o que levará a Administração pública a ampliar ainda mais a sua atuação de fomento, transcendendo a assistência paternalista para o real estimulo da aptidão individual e empresarial para competir. E sempre que o Estado troca a assistência pelo estimulo, estará ensinando a pescar em vez de dar o peixe - que é a única receita duradoura e não demagógica de progresso.

No mesmo sentido, afiscalidade, que suportará a atividade administrativa, bem como a respectiva política fiscal, deverá ser direcionada de modo a conciliar a obtenção dos recursos para as atividades estatais com a necessidade de gerar pou­pança privada interna e, ao mesmo tempo, de estimular a competitividade externa do País.

Finalmente, visando à governabilidade, caberá ao Estado se concentrar no campo das decisões políticas, que devam ser tratadas pelos métodos decisionais que lhe são próprios, despolitizando, em conseqüência, todas as decisões administrativas a seu cargo, que possam ser mais eficientemente tomadas com métodos decisionais voltados ao manejo de predominantes subsídios técnicos, como é o caso emblemático dos Bancos Centrais e das agências reguladoras de toda natureza, que devem ser cada vez mais autônomos e distanciados relativamente à vida política, marcada por suas preferências e caprichos partidários.

Todavia, mesmo em seu próprio campo, que é o das questões políticas, o Estado deverá se reservar, cada vez mais, para as decisões em que apenas a ele caiba atuar, em razão de seu monop6lio da imperatividade, passando a valer-se, paulatina e preferentemente, da cooperação e da colaboração em tudo o que puder ser mais vantajosamente atendido pela consensualidade, notadamente com a ampliação do campo de debate aberto e de negociação de interesses meta individuais, flexibilizan­do, assim, um outrora mamóreo e inexorável conceito de interesse público, que deixa de ser, cada vez mais claramente, aquele confundido com o seu próprio, para ser não mais que aquele que o Direito põe a seu cargo.

Pode-se vislumbrar, na esteira dessas tendências, algumas mudanças importan­tes nas três funções básicas do Estado: a de legislar, a de administrar a coisa pública e a de dirimir judicialmente os conflitos. É o que se verá a seguir.

6. Conclusão: a administração pública deixa de ser apenas execução, para envolver a paralegislação, a para jurisdição e, como dado novo, a negociação de interesses

No Estado Liberal clássico, afunção legislativa era não só característica, como quase um monop6lio dos parlamentos, uma vez que dizer o direito era expressar a mais relevante vontade popular. Aos poucos, por várias razões, entre as quais a lentidão das decisões tomadas em grandes colegiados e, parte, o surto das autocracias no século vinte, essa função passou a ser compartilhada ou usurpada, pelos Chefes de Estado, legitimados ou não pelas urnas.

Atualmente, nos modelos de Estado Democrático de Direito, prevalece uma estreita cooperação entre Poderes na feitura das leis, em que se incluem as reservas de iniciativa do Chefe do Executivo, além do poder de veto e de editar legislação limitada no tempo ou em conteúdo.

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Mas o antigo e glorioso privilégio dos parlamentos, de serem as fontes exclusivas da norma legal, vem sendo desbastado nos últimos decênios sob o influxo dos movimentos de flexibilização da função administrativa decorrentes das políticas ditadas pela globalização.

Com efeito, de um lado, admitem-se fontes autônomas intraestatais, não só pelo crescente prestígio das decisões normativas das entidades menores, quanto pelo surgimento e reconhecimento de novas fontes de direito não-estatal, como, por exemplo, a das agências privadas de legatárias de funções públicas. De outro lado, surgem novas fontes de direito extra e metaestatais, como, por exemplo, as comu­nitárias e as emanadas de certas organizações internacionais.

Assim, pouco a pouco, substitui-se um monopólio legislativo por um sistema de comandos normativos descentralizado e polivalente, remanescendo, todavia, com as Casas Legislativas nacionais, apenas o monopólio da política legislativa, que vem a ser a competência para firmar princípios e baixar as normas gerais, que deverão ser observadas pelas demais fontes intraestatais; é o movimento que hoje se tem denominado de regulática.

Sob outro ângulo, a regulática nada mais é que a aceitação de espaços de autonomia da vontade coletiva, geralmente recobertos, nas sociedades organizadas, pelas entidades intermédias. Em suma, caminha-se para a substituição de um direito fundamentalmente imperativo por um direito também consensual, que prescinde da necessidade de definições políticas e do emprego imediato da coerção.

É, todavia, no campo da função administrativa que a consensualidade vem abrindo espaços com maior largueza, propiciando o recente ressurgimento de antigos instrumentos contratuais que haviam caído em desuso, como é o caso das concessões de serviços públicos e de bens públicos e do desenvolvimento de novos e imagina­tivos instrumentos contratuais e complexos, como a concessão de obras públicas precedendo a de serviços, os concursos financeiros (project financing), os acordos de programa e os acordos substitutivos entre outras modalidades de disposição pela Administração da própria competência, algo até há pouco tempo considerado um tabu do Direito Administrativo.

A consensualidade, por certo, não estará destinada a substituir as formas tradi­cionais de ação imperativa do Estado, mas, sem dúvida, já representa uma mudança substancial em suas modalidades de atuação, prestigiando o que hoje, embora com certa impropriedade científica, se vem denominando de parceria com a sociedade.

Essas tendências atuam no sentido de despojar-se a Administração Pública das características burocráticas que assumiram nos países de tradição jurídica continental européia, na linha do Direito Administrativo gerado pela Revolução Francesa, e, de cada certa forma, agravadas e desvirtuadas pela herança ibérica colonial de cunho patrimonialista.

As mudanças não poderiam deixar de se refletir sobre o mais conservador dos subistemas estatais, o executor da função jurisdicional, ao se convocar a Adminis­tração Pública para cooperar com uma atuação vestibular de solução de controvérsias, não mais apenas no estrito controle de legalidade, que sempre a caracterizou, como no da legitimidade e até da licitude.

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Existe, com efeito, um extenso número de conflitos, que, não obstante suas preponderantes características técnicas, se acumulam nos tribunais e que os afogam de trabalho. São processos raramente versativos sobre questões substancialmente jurídicas, que poderiam ser objeto de composição fácil, rápida e especializada por órgãos parajudiciais, cujas decisões só seriam admitidas para serem revistas na justiça comum, se fossem identificadas violações de direitos e garantias individuais.

É chegada, assim, a hora da consensual idade se levada também à solução dos conflitos pelas amplas vias, já extensa e universalmente desenvolvidas, da concilia­ção, da mediação e da arbitragem, afastando, de vez, a confusão ainda existente entre monopólio da jurisdição, de sentido coercitivo, e monopólio da justiça, em que a força do consenso das partes em conflito é que conduz a uma fórmula de composição.

Atuando nesse campo, que se vai abrindo com rapidez em alguns países de vanguarda, da solução administrativa de conflitos, deve-se reconhecer ao Estado a necessária flexibilidade para ponderar interesses em jogo e definir, a partir de processos administrativos, abertos e transparentes, aquelas fórmulas, concretas ou gerais, que se mostrem as mais eficientes sob o critério finalístico, ou seja, como se há de lograr o mais completa e celeremente possível o pretendido pelo Direito, o que necessariamente conduz a uma profunda revisão do que, afinal, é ou não indis­ponível para o Estado administrador. 17

Em suma, afastados os mitos e encarada como um/ato, a globalização apresenta um poderoso estímulo ao desenvolvimento das Ciências da convivência, notadamen­te, ao do Direito Administrativo, por lhe possibilitar uma expansão que não poderia ter sido imaginada há menos de duas décadas, em benefício do homem, que afinal, é o único e último destinatário do Direito.

Por outro lado, e paradoxalmente, essa redefinição em curso do papel do Estado, em lugar de reduzi-lo em importância, como poderia parecer à primeira vista, vem reforçar também a necessidade de sua existência. Não mais, por certo, com poderes concentrados e monopolizados que já o caracterizaram em passado recente e que tantas infelicidades semeou, mas adequadamente concentrado em funções em que tanto o exercício da coação legítima, como o de concentração de interesses e de fomento continuam indispensáveis.

Por outro lado, também a multiplicação dos interesses metaindividuais a serem disciplinados, suscitados pelo desenvolvimento científico, tecnológico, econômico e social, amplia continuamente o âmbito material de atuação da administração pública, abrindo, com isso, novas e dinâmicas perspectivas de evolução para o novo Direito Administrativo.

Sem dúvida, estamos vivendo uma Era fascinante, em um pequeno segmento da História, que poderá ser lembrado como o heróico preâmbulo de uma civilização ecumênica. Por isso, cada vez mais, devemos estar atentos à velha lição de Cícero

17 A referência, aqui, interessa, especialmente, à disciplina das várias modalidades de acordos substitutivos, casuísticos ou gerais, como previstos em legislações de vanguarda, como as da Itália e da Espanha.

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ao nos recomendar: "ceder ao tempo, ou seja, obedecer à necessidade, é sempre hábito de sabedoria" .18

Mas a globalização é, sobretudo, um desafio a ser vencido, pois, no torvelinho das mudanças que, por vezes, não nos é dado sequer captar em seu sentido pleno, cabe-nos sempre a busca da melhor orientação científica, a mais razoável e a menos conflituosa, jamais ditada por simpatias políticas ou inclinações emocionais, mas pela firme convicção de que nosso Direito Administrativo deve e pode ser um instrumento de preservação da liberdade e de facilitação do desenvolvimento eco­nômico e social.

Eis uma missão que vale todos os esforços e todas as penas, a ser desempenhada em nossas tarefas profissionais, por mais singelas que sejam ou nos pareçam ser, com os olhos postos nos superlativos valores da pessoa humana, estes sim, supremos e indisponíveis, para que possamos trabalhar sob essa inspiração, no dia-a-dia, como o camponês de Emerson: atrelando o arado a uma estrela.

18 Tempori cedere, id est necessitati parere, semper sapientis est habitum. CÍCERO, ad fam. 4, 9. (T. livre do A.).

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