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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Juliana de Oliveira Menezes A importância do corpo feminino nos contos de João do Rio Rio de Janeiro 2007

A importância do corpo feminino nos contos de João do Rio · Em pleno Naturalismo, escola representada por Émile Zola (1840-1902), o movimento decadentista surge na Europa. Justamente

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Juliana de Oliveira Menezes

A importância do corpo feminino nos contos de João do Rio

Rio de Janeiro 2007

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A IMPORTÂNCIA DO CORPO FEMININO NOS CONTOS DE JOÂO DO RIO.

Por

Juliana de Oliveira Menezes

Dissertação de Mestrado apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro para obtenção do título de mestre. Orientador Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho

UFRJ – Faculdade de Letras Rio de Janeiro

1º semestre de 2007

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Dedico este trabalho aos meus pais.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, antes de tudo, pela chance de dar mais um passo importante na

minha vida e pelos maravilhosos pais que tenho. Minha família teve grande importância para

a realização deste trabalho. Sem ela, nada seria possível.

A minha incansável mãe;

ao meu pai coruja;

ao meu querido irmão;

a minha zelosa tia Neuza, que sofreu junto, a cada obstáculo que surgia no caminho;

ao meu primo que esteve presente, mesmo em silêncio;

aos amigos pelo apoio nos momentos de medo e dúvida e

àqueles que (ainda) não fazem parte da família, mas que estiveram presentes e

ajudaram, mesmo distantes:

à querida Lu e ao meu namorado.

Muito obrigada a todos.

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MENEZES, Juliana de Oliveira. A importância do corpo

feminino nos contos de João do Rio. Rio de Janeiro,

UFRJ, Faculdade de Letras, 2007. Dissertação de Mestrado

em Ciência da Literatura – Semiologia, 81 páginas.

RESUMO

O presente trabalho é um estudo sobre a caracterização de algumas personagens

femininas nos contos de João do Rio. Estas se apresentariam como elemento sinalizador dos

tempos modernos, que chegam à cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Traçando

um histórico dos alicerces do movimento decadentista e da capital do Brasil na passagem do

século XIX para o século XX, o estudo aborda parte da vida de João do Rio, sua visão e

admiração pela Cidade do Rio e por escritores decadentistas europeus. Analisando a forma

com que o autor apresenta o corpo feminino, aqui, a mulher, e suas atitudes, comparamo-la

com as características e as condições conhecidas das mulheres do século anterior.

Associando a importância da composição de sua imagem no mundo moderno, sua imagem é

comparada a da Salomé decadentista. Notamos um desenvolvimento da mulher como corpo

ativo na sociedade em transição. Esta deixa a condição de corpo submisso para assumir uma

posição ativa no novo mundo.

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MENEZES, Juliana de Oliveira. A importância do corpo

feminino nos contos de João do Rio. Rio de Janeiro,

UFRJ, Faculdade de Letras, 2007. Dissertação de Mestrado

em Ciência da Literatura – Semiologia, 81 páginas.

ABSTRACT

The following work is a study about the characterization of some female characters

in João do Rio tales. Those would be presented as an element of the modern times arrival in

Rio de Janeiro City at the beginning of 20th Century. Making a historical review of

Decadentism bases and also Brazil’s capital at that time, this study broaches part of João do

Rio’s life, his view and admiration for his city and some decadentist European writers.

Analyzing the way the author presents the feminine body, in this work, the woman, and her

attitudes, we compare her characteristics and conditions to the ones known of the women in

the early centuries. Associating the appearance composition of woman image with the

modern times – her image is compared to the decadentist image of Salome – we notice her

development as an active body inside a society in transition: she leaves a submissive

condition to assume an active position in the modern world.

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SINOPSE

A importância do corpo feminino nos contos de João do Rio. Estudo sobre a

caracterização da mulher nos contos do autor. Associação da imagem da mulher à princesa

Salomé pintada por Gustave Moreau com a chegada da modernização à capital do Brasil na

passagem do século XIX ao XX.

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SUMÁRIO

Introdução ..............................................................................................................................9

1 O Decadentismo .................................................................................................................12

1.1 João do Rio e o Decadentismo ............................................................................24

1.2 A transfiguração da cidade sob o olhar de João do Rio ......................................34

2 O Feminino na obra de João do Rio ..................................................................................47

2.1 Figurações do feminino ......................................................................................55

2.2 A presença do feminino na obra de João do Rio ................................................66

3 Conclusões .........................................................................................................................74

4 Referências bibliográficas .................................................................................................77

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INTRODUÇÃO

Na passagem do século XIX para o século XX, encontramos, no cenário carioca, a

presença de João do Rio, jornalista, cronista, crítico e contista que registrou e celebrou as

mudanças sofridas pela Cidade do Rio de Janeiro naquele período. João do Rio também

escreveu algumas peças de teatro, mas destacou-se por sua escrita inovadora e ágil nos

jornais, que precisavam adaptar-se ao ritmo acelerado da modernização que chegava à

cidade.

Esse momento que chega, é acompanhado do desenvolvimento dos processos de

produção, que são reflexos da Revolução Industrial na Europa no século anterior. As

inovações arquitetônicas, pelas quais Paris passou, serviram de modelo para o Brasil e para

outros países. Símbolo de um novo tempo, a capital francesa tornava-se ícone de uma

modernização que o Rio de Janeiro necessitava para se restabelecer como área comercial.

João do Rio, nascido como Paulo Barreto na antiga cidade, testemunhou a

transformação da cidade, registrou, em suas obras, a metamorfose do início do século XX.

Os hábitos, assim como a aparência da cidade, mudavam de acordo com modelo europeu. A

moda, a arquitetura e as artes chegavam ao Brasil através de artigos importados ou de

brasileiros que dispunham de recursos e viajavam para a Europa. As viagens para Paris

tornaram-se um símbolo de status para o brasileiro, que parecia demonstrar um grande

interesse em sustentar uma imagem de civilização. Moderno e modernização, conceitos

distintos, porém complementares, nesta passagem de séculos XIX para o XX, tornam-se o

lema dos novos tempos iluminados pelo Positivismo, pelo desenvolvimento industrial e pelo

capitalismo.

Novas tecnologias, como o carro, o telefone e o cinematógrafo, ilustram os avanços

da ciência e o desenvolvimento dos centros urbanos. Dentro de toda essa transformação,

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encontramos uma nova mulher, menos submissa ao marido, mais independente, com idéias e

desejos próprios, que as alimentam e as fazem transformar a sua própria vida. Saindo de

dentro do lar, a dona-de-casa ganha o mundo com seu direito de freqüentar as ruas da cidade.

Anteriormente, caminhava acompanhada no trajeto de casa para a igreja e da igreja para

casa. A mulher, nas primeiras décadas do século XX, começa a ir ao clube, à modista, aos

teatros, a freqüentar conferências e até a praticar esportes. A mulher ganha novos espaços e

novas possibilidades. O mercado de trabalho, que já acolhia as mulheres de origem mais

humilde nas tarefas de vendedora e lavadeira, por exemplo, agora dá espaço à mulher em

novas carreiras, como a artística.

Nesse processo de modernização, a cidade que antes estava culturalmente

adormecida devido aos eventos políticos e manifestações populares, agora desperta diante

das novidades, do cinematógrafo, do número de teatros que cresce, das companhias artísticas

internacionais que chegam, juntamente com a reforma da urbe carioca.

É na escrita de João do Rio que podemos encontrar essas inovações: o registro da

transformação física da cidade, do comportamento e das idéias, assim como a influência de

autores europeus, que o ajudaram a definir a sua postura e visão de mundo. Uma vez

envolvido pela escrita de Jean Lorrain e Oscar Wilde, João do Rio não pôde deixar de

mencioná-los em seus escritos, nem de segui-los, o que tornou o jornalista e cronista

contraditório em um determinado aspecto: João do Rio, que teve sua formação positivista,

acaba por exaltar um estilo que contradiz sua educação.

Dessa forma, nessa dissertação, será apresentado, no capítulo 1, o movimento

decadentista, suas bases e os autores responsáveis pela influência do movimento sobre o

escritor carioca João do Rio e sua obra.

No capítulo 2, será explorada a condição do corpo feminino no Brasil e na Europa

do século XIX, suas figurações e sua caracterização na obra de João do Rio. A seleção de

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três de seus contos compõe o corpus a ser analisado. A análise será feita através do viés

decadentista, juntamente com a consideração dos artifícios que compõem e decoram o corpo

feminino, assim como sua face mortal associada à personagem bíblica Salomé, celebrada

pelo pintor Gustave Moreau e outros artistas de tendência decadentista.

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1 SOBRE O DECADENTISMO

Para compreender o sentimento com o qual o autor carioca, João do Rio (1881-

1921), identifica-se na passagem do século XIX para o XX, faz-se necessário uma visitação

ao contexto histórico e às idéias que embasaram o movimento decadentista na Europa.

Em pleno Naturalismo, escola representada por Émile Zola (1840-1902), o

movimento decadentista surge na Europa. Justamente um dos discípulos de Zola, escreve em

1884, a obra que mais tarde será considerada a principal referência do Decadentismo –

movimento que se contrapõe aos ideais celebrados pelo Naturalismo. Joris-Karl Hyusmans

(1848-1907), escreve Às Avessas, romance que influenciou autores como Oscar Wilde

(1854-1900), e se tornou importante referência sobre o movimento. Embora J. K. Huysmans

tenha tornado-se uma das maiores referências sobre o movimento decadentista, a primeira

obra, que agregou um número considerável de elementos decadentistas, foi escrita por

Theóphile Gautier (1911-1872), Mademoiselle de Maupin (1835)1.

O Decadentismo, assim como todo movimento artístico, reflete os acontecimentos

sociais de sua época. No século XIX, encontramos vários fatos científicos e históricos, e

estudos filosóficos que fundamentaram não só o movimento artístico como também muitos

outros movimentos artísticos do século XX.

Nas duas décadas finais do século XIX, observamos novidades importantes que

alavancam a vida moderna. Estas novidades impulsionam vida nas cidades e também a

produção artística. Dentre as novidades, surgiram a máquina de escrever, o elevador, o

cinematógrafo, a iluminação elétrica, o carro e a bicicleta, que facilitaram o trânsito nas

cidades, encurtando distâncias e tornando-se, assim, símbolos de liberdade.

1 FARIA, Gentil de. A presença de Oscar Wilde na “Belle Époque” literária brasileira. São Paulo: Parnnatz.1988. p. 57.

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Nesse momento, os ideais e as idéias da Revolução Francesa surtiam seu efeito nas

mentes dos cidadãos metropolitanos e a ciência desenvolvia-se marcadamente. Esta chegou a

ferir o sentimento de divindade que o homem possuía, desmentindo sua origem divina.

A teoria da evolução das espécies, de Charles Darwin (1809-1882), causou um

grande abalo no mundo ocidental. Até então, imaginava-se que a vida era criada por Deus, e

que os seres sempre tiveram a mesma forma desde o início dos tempos. A idéia que os seres

vivos estão em contínuas modificações e adaptando-se ao meio foi recebida com espanto,

influenciando as artes e tirando do homem umas das poucas certezas que havia.

Outras contribuições vieram de Augusto Comte (1798-1857) e Karl Marx (1818-

1883), que elaboraram grande parte dos estudos sociais da época, como a criação do

Positivismo, por Comte; e o desenvolvimento dos estudos sobre o capitalismo, por Marx. A

fé na ciência, como defende o Positivismo, é responsável pelo pensamento que habita a

corrente Realista/Naturalista na qual o Decadentismo surge; e o capitalismo, pela otimização

dos processos de produção na era industrial. A perda da individualidade cultivada pelos

tempos modernos – compreendendo esse período como o da modernização dos processos

que compõem a vida nas cidades, como a comunicação, o transporte e os meios de produção

– é um dos alvos do movimento decadentista. Para Augusto Comte, a vida em sociedade

poderia ser analisada através de um modelo científico e, assim como na teoria darwiniana, as

sociedades sofrem constantes mudanças, evoluindo de uma estrutura simples para uma mais

adaptada, superior.

No capitalismo, o homem é reduzido a objeto, instrumento de produção, quando

não pode fazer parte dos consumidores – parcela pequena das sociedades voltadas para a

produção de bens. Perdido na multidão de trabalhadores, massacrados pela exploração do

trabalho árduo, pelas longas horas de trabalho e o baixo salário, o homem perde suas

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características próprias, sua personalidade, uma vez que seus esforços concentram-se no

sustento de sua família.

Com o desenvolvimento da vida moderna nas cidades, desenvolve-se também uma

elite burguesa, construída sobre os alicerces do capitalismo, das ciências e de seus

benefícios. Essa sociedade, baseada no liberalismo, conhece um incremento da produção

artística, causada pela intensa atividade intelectual e literária, por sua vez desencadeada pelas

novidades científicas e sociais.

Em qualquer sociedade, a elite, sempre a menor parcela da população, é

beneficiada com a praticidade e o conforto que seus rendimentos podem oferecer. Diante das

injustiças sociais, juntamente com as mudanças de perspectivas sobre o mundo, a arte toma

seu lugar de crítica, reflexão e fuga. O artista decadentista critica o mundo utilitarista, que

deixa a celebração da arte em segundo plano, onde não proporciona o estímulo sensorial

celebrado e requisitado pelo movimento.

O artista, independente do movimento a que pertence, funciona como captador dos

sinais de mudança ou acomodação da sociedade. Refletindo, fazendo sua (re)leitura do

mundo, os artistas decadentistas passaram a expressar em suas obras o cansaço e a

incredulidade na ciência, uma vez que esta, juntamente com a religião, falhou em explicar e

promover o homem. Esse sentimento contrário ao que a ciência, e a própria arte, começam a

celebrar, faz com que alguns artistas, cansados da visão naturalista, busquem a inspiração em

épocas remotas, como o período bizantino2, de onde retiram sentimentos e idéias que irão

povoar o imaginário decadentista.

Outras referências contribuíram fortemente para formar os alicerces do

Decadentismo. Dentre elas, encontramos filósofos e artistas das artes plásticas, da música e

2 SEABRA PEREIRA, José Carlos. Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa. Coimbra: Coimbra Ed. 1975. p. 18.

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da literatura. Nas bases filosóficas, encontramos Arthur Schopenhauer (1788-1860) e

Friedrich Nietzsche (1844-1900), cujos pensamentos contraditórios ajudaram a formar o

pensamento complexo decadentista. O pessimismo defendido por Schopenhauer choca-se

com a vontade de fruição da vida defendida por Nietzsche. Essa contradição de idéias

explica o pensamento conflituoso que o homem finissecular desenvolve3.

Na música, Richard Wagner (1813-1883) e, na pintura, Gustave Moreau (1826-

1898), contribuíram artisticamente. Wagner, além da música, também escreveu textos

teóricos influenciado por Schopenhauer. Moreau, em seus quadros, produziu uma atmosfera

de mistério e beleza, com a qual artistas de tendências decadentistas identificaram-se. Alguns

de seus quadros, com o tema da princesa bíblica Salomé, influenciaram escritores como J. K.

Huysmans e Oscar Wilde, tornando-se importantes para o nosso segundo capítulo.

Dentro da produção literária que serviu de alicerce para a produção decadentista,

encontra-se Charles Baudelaire (1821-1867), poeta francês, cuja obra foi marcante para

muitos escritores. Estudou em Lyon e aprendeu inglês durante a infância, quando lia

romances góticos que despertaram grande interesse nos contos de Edgar Allan Poe. Foi

tradutor e grande admirador do escritor americano que, segundo Valéry4, teve grande

importância para Baudelaire. Se não fosse Poe, o poeta francês talvez fosse apenas um rival

de Gautier.

Para Baudelaire, a poesia só é aceita na forma de beleza superior e pura, nunca

deve ter outro propósito que não seja a própria sublimação. Essa idéia embasa o conceito de

arte pela arte, tão difundido no Decadentismo. Esse aspecto pode ser também compreendido

pela idéia do dandy de usufruir o que a vida e o mundo podem oferecer de melhor relaciona-

3 SEABRA PEREIRA, José Carlos. Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa. Coimbra: Coimbra Ed. 1975. 4 VALÉRY, Paul. The Position of Baudelaire. IN: PEYRE, Henri. Baudelaire: A collection of critical essays. New Jersey: Prentice-Hell, Inc. 1962.

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se com a solução estética que também é oferecida por Schopenhauer como saída para o

homem diante do sofrimento.

Baudelaire foi um dos primeiros poetas a descrever e a celebrar a vida nas cidades,

que estavam crescendo rápida e desordenadamente. Famoso por originar o movimento

simbolista, também é considerado um dos precursores da literatura modernista. É um dos

criadores da palavra modernidade, empregando-a em 1859 para se referir ao artista moderno.

Para o artista, seria possível enxergar uma beleza misteriosa, que estaria além da decadência

do homem na cidade-deserto. Eis o porquê do título de poeta da modernidade.

Ainda de acordo com Valéry, Baudelaire conjugou como ninguém a genialidade

poética e inteligência crítica5. A disciplina espiritual aliada com sua consciência artística

trabalhou a poesia presente no universo urbano mecanizado e comercial.

A respeito da estética, é possível dizer que Baudelaire primou por uma estética do

feio. A beleza na lírica do poeta francês limitou-se às formas métricas e a vibração da

linguagem. O conceito de beleza para Baudelaire não era o mesmo compartilhado pelo senso

comum até então. Motivo de idealização, sublimação, e sonho, o que era considerado belo

para os outros artistas e leitores de poesia, para Baudelaire, era comum e banal.

Sem valor poético, os elementos tornaram-se gastos com o uso exacerbado. O poeta

buscou em outros temas, outros objetos, pedras brutas para lapidar. Recorreu ao bizarro para

se desvincular do comum, que gerava sentimentos banais: a poesia deveria causar impacto

em seus leitores.

Baudelaire encontra em Edgar Allan Poe (1809-1849) o engenho pelo qual se

encanta e que lhe dá inspiração. Poe em 1840, no Burton's Gentleman's Magazine, publica,

pela primeira vez, o conto O homem na multidão que chama a atenção de Baudelaire para a

condição humana de utilitário nos novos tempos. 5 VALÉRY, Paul. The Position of Baudelaire. IN: PEYRE, Henri. Baudelaire: A collection of critical essays. New Jersey: Prentice-Hell, Inc. 1962.

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Sem identidade própria, o homem moderno se perde no trabalho rotineiro, exigido

pela indústria, e na exaustão física, por conta das horas extensas de trabalho mal

remunerado. Os indivíduos que compõem a multidão são vistos como partes de uma massa,

que é observada por um homem que não se deixou hipnotizar pelo movimento pendular

casa-trabalho-casa. Este homem consegue perceber as particularidades dos indivíduos que

transitam pelo espaço urbano, e que se perdem na multidão.

Para Baudelaire, admirador de Poe, o homem que consegue refletir sua função, seu

papel atribuído pela sociedade, pode recusar-se a seguir o passo da multidão. É a partir do

conto escrito pelo americano, que Baudelaire dá origem a uma das figuras marcantes do

Decadentismo: o flâneur.

Em suas transfigurações, sempre se utilizando de máscaras como as de flâneur, de

dandy e trapeiro, Baudelaire desafia as regras do jogo social, tentando, assim, salvar o poeta

da pobreza que a sociedade mercantilista poderia envolver.

Sua contribuição ao Decadentismo foi muito além da figuras do dandy, do flâneur

ou da lésbica. Os paraísos artificiais, as descobertas de perfumes raros, o encanto por jóias e

flores constituem formas de fruição das sensações, o que constitui uma forma de evasão para

um homem em crise6.

Ao abordar as figuras representativas do movimento decadentista, não podemos

ignorar a origem e a natureza de um personagem que é assumido na atitude de muitos

escritores finisseculares: o dandy.

6 SEABRA PEREIRA, José Carlos. Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa. Coimbra: Coimbra Ed. 1975. p. 35.

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Essa figura é um dos elementos mais ilustrativos, que surge no intervalo entre a

tradição e as mudanças da modernização. Conforme nos é explicado por Catharina7, é

interessante abordar suas características e seu primeiro expoente na Inglaterra.

No início do século XIX, na corte de George III, o jovem George Bryan Brummell

(1778-1840), conhecido como Belo Brummell, era filho e neto de empregados da corte e

amigo do príncipe regente. Para o esteta inglês, a maior arma de um homem era a ascese de

sua toalete, podendo tornando-se, em aparência, superior ao próprio príncipe8.

O dandy é aquele que encerra, em sua postura, a atitude e semelhança à obra de

arte, acima de tudo. A toalete dandy é a primeira característica a ser notada. A extravagância

de seu vestuário e de suas maneiras denuncia o seu culto às belas formas e à arte.

Nos dicionários, nos termos relacionados, o dandy é aquele que se vangloria pelo

refinamento da toalete ou de suas maneiras. Ainda seguindo os passos do pesquisador Pedro

Catharina, é atribuída ao Lord Byron (1788-1824) a utilização do termo dandy numa carta

em 18139.

Byron, quando cunhou o termo, referia-se a um grupo de seres superiores, e não

imaginou que, com o tempo, a palavra estaria relacionada com a baixeza de caráter,

parasitismo e covardia. Essas são as características de algumas personagens de Wilde, de

Huysmans, e também de João do Rio.

O dandy, em Baudelaire, ganha uma extensão moral, não ficando somente

envolvido com jogo social. O dandy celebra o artificial, despreza a natureza e por isso acaba

desenvolvendo uma repulsa ao corpo feminino procriador e submisso característico do papel

de mãe e esposa. Como lésbica e prostituta, a mulher entrega-se ao apelo do corpo. O

fragmento abaixo ilustra a idéia de Baudelaire sobre a mulher: 7 CATHARINA, Pedro Paulo G. F. As muitas faces do dândi. IN: BOUÇAS, Edmundo; MUCCI, Latuf Isaías. Dândis, Estetas e Sibaritas. Rio de Janeiro: Confraria do Vento. 2006. 8 Ibidem. p. 67. 9 Ibidem.

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A mulher é o oposto do dândi Deve pois nos causar repulsa. A mulher tem fome e quer comer – sede, e quer beber. No cio quer ser comida A mulher é natural, isto é abominável. Por isso é sempre vulgar, ou seja, o contrário do dândi.10

Não só o corpo feminino, mas qualquer corpo servil. O poeta francês afirma também, em

Meu coração a nu, parecer-lhe algo muito desagradável ser útil.

Como celebrador do artifício, Baudelaire vai celebrar, na mulher, a sua beleza e seu

encanto, que, para ele, só é completa quando acompanhada de algum adorno. Maquiagem,

sedas, todo tipo de artifício é considerado pelo poeta francês a extensão do corpo feminino:

“tudo que adorna a mulher, tudo que serve para realçar sua beleza, faz parte dela”11.

Devido a essa justificativa, a de recusar a missão de servir, a prostituta e a lésbica tornam-se

corpos-ícones decadentes, juntamente com o flâneur e o dandy.

O período decadentista, conforme anteriormente exposto, compreende o século

XIX e, mais fortemente, a sua segunda metade. Decadentismo e decadência não designam,

necessariamente, a mesma idéia e podem estar situados em momentos diferentes na

história12. Esse período, marcado pela melancolia e pelo pessimismo na produção artística,

traz uma escrita própria e anuncia uma passagem para o modernismo.

O título do movimento pré-modernista é algo a ser discutido, pois José Paulo Paes,

em Gregos e Baianos13, questiona a utilização e a ambigüidade desse termo. Se ele se refere

ao que antecede ao Modernismo, seja qual for o movimento literário, ou se o termo refere-se

a uma produção de artistas modernistas que aparecem antes do período modernista

propriamente dito.

10 BAUDELAIRE, Charles. Meu coração a nu. apud: BOUÇAS, Luiz Edmundo. Notas de Aula. 11 BAUDELAIRE, Charles. apud FARIA, Maria Cristina Brandão. A mulher e seus adornos em Baudelaire. Lumina/UFJF, V.4, nº 1, p. 137-152, Jan/Jun. 2001 12 MUCCI, Latuf Isaias. Ruína e Simulacro decadentista: uma leitura de Il Piacere. 1994. p.20. 13 PAES, José Paulo. Gregos e Baianos. São Paulo: Editora Brasiliense. 1985

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O sentimento de melancolia, que caracteriza o período da segunda metade do

século XIX, tem origem no estado de decadência social e cultural, e na sociedade injusta que

se instaura. Tomemos, como exemplo, a perda do foco na sublimação através da beleza, da

limitação e da vulgaridade ou do formalismo na arte. Juntamente com a nova escola artística

que surge, temos uma mudança em certas práticas ou, até mesmo, toda uma renovação de

conceitos.

É pouco correto afirmar que as principais características do Decadentismo seriam

apenas os sentimentos pessimistas. O período é repleto de características marcantes, como o

individualismo do escritor14, o culto ao artifício, o desprezo ao profanum vulgus, o gosto

pelo exótico, a perda do equilíbrio psíquico e nervoso, a vertigem, entre outras.

O homem decadentista está desiludido com a empolgação positivista do

Naturalismo e da ciência, que não o convence ou não explica a natureza humana e não

promove sua sublimação. Envolvidos com a espiritualidade, mas de uma forma diferente da

religiosidade até então exercitada, o homem decadentista vê sua fé renovada, com tendências

ao ocultismo, esoterismo e satanismo. Não é raro encontrar, nos textos decadentistas,

momentos de contemplação da morte e sentimentos de morbidez. Segundo José Carlos

Seabra,

[...]a religiosidade, como tema ou elemento literário, também pode ser, com efeito, ora uma derivação de bizarria ou de desequilíbrio psico-nervoso, satisfazendo exigências de artificialidade e esteticismo15.

O desgosto do homem decadentista com a sociedade fez com que ele se destacasse

do seu meio, criando, assim, uma aversão ao gosto comum e permitindo uma maior

sensibilidade e um gosto mais elaborado. Esse gosto, muitas vezes, chega às raias da

14 SEABRA PEREIRA, José Carlos. Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa. Coimbra: Coimbra Ed. 1975. p. 33. 15 Ibidem. p. 30.

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extravagância, alcançando a sinestesia, uma vez que o que é simples e comum não satisfaz

mais. Daí a necessidade de viver rodeado de luxo, de obras de arte e de objetos raros.

Nas obras decadentistas, alguns personagens destacam-se por conferir em suas

próprias figuras características-chave do movimento literário. A apreciação das artes, a

observação e reflexão do espaço urbano trazem novos protagonistas e anti-heróis para o

contexto decadentista: figuras como dandies, flâneurs, prostitutas e lésbicas povoam os

romances e contos. Os corpos que ganham destaques são os corpos que se recusam a servir, a

seguir o modelo ditado pela sociedade. São corpos com autonomia, que se revoltam e

atribuem a si próprios novos papéis.

O dandy é um esteta que se satisfaz com a admiração da beleza de objetos e

pessoas. A beleza para ele é essencial. O flâneur é aquele que vaga pela cidade e observa os

seus habitantes. Na recusa do trabalho, jaz a sua ideologia. Ambas as figuras são masculinas,

embora o dandy possa apresentar traços andróginos, devido a sua concepção de corpo como

objeto de arte e toalete exagerada.

Já as figuras femininas, a prostituta e a lésbica, representam a quebra dos ideais

femininos, até então partilhados pela sociedade. A mulher dona-de-casa, mãe zelosa e

obediente ao marido é completamente ignorada por essas figuras. Nelas, a vida pulsa e o seu

papel de procriadora é recusado. Elas não são corpos submissos aos olhos mais

conservadores, assim como não são o dandy e o flâneur.

Essas figuras do dispêndio16 são encontradas em várias obras que as tipificam nesse

período focalizadas, primeiramente, à estética simbolista, e seu protagonista anti-herói, des

Esseintes17, tornou-se um ícone da juventude afetada, aristocrata européia, do final do século

XIX.

16 BOUÇAS, Edmundo. Notas de aula. 17 HUYSMANS, Joris-Karl. Às Avessas. Trad. José Paulo Paes. São Paulo : Companhia das Letras, 1987

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Assim, essa obra opera uma quebra com o Naturalismo e se torna o exemplo

definitivo da literatura decadente. A obra foi referida em algumas páginas do romance de

Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray (1890). No único romance wildeano, o protagonista

envolve-se com um livro cujo título afeta profundamente sua visão do mundo.

Na história de Às Avessas, poucos acontecimentos têm espaço na trama, onde o

protagonista é des Esseintes, último membro de uma poderosa família de nobres. Ele viveu

uma vida decadente em Paris, que o fez desgostar do convívio com a sociedade, indo viver

em uma pequena casa no interior.

Des Esseintes preenche a casa com sua eclética coleção de arte – composta por

pinturas de Gustave Moreau. Lá, decide viver o resto de sua vida em contemplação estética e

intelectual. Passa o seu tempo estudando e pesquisando as literaturas latina e francesa, as

pinturas de Moreau Salomé e L’Apparition. Experimenta inventar novas fragrâncias de

perfumes, e também fez um jardim de flores venenosas. Em um episódio, uma tartaruga

morre por não agüentar o peso da própria carapaça toda recoberta de jóias e pedras preciosas,

ilustra a atmosfera de artificialidade celebrada por des Esseintes. Neste momento histórico,

influenciado pela ciência, surge um novo estilo, que envolve artistas em várias regiões da

Europa.

Essa variedade estética do fim do século XIX é reconhecida como art nouveau,

tendo sua presença assegurada em vários países europeus, e também americanos, na entrada

para o novo século. O movimento não possui um epicentro, surgindo paralelamente em

vários países. Além das capitais culturais Paris e Viena, a região dos Países Baixos também

se destacou pela produção cultural.

O art nouveau, como ficou conhecido na França e no Brasil, foi largamente

utilizado no mobiliário, em elementos decorativos como lustres e luminárias, assim como

inúmeros objetos domésticos. Nos países de língua inglesa, o movimento ficou conhecido

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como arts-and-crafts, na Alemanha, como Jugendstil e arte nova em países da língua

portuguesa. Nessa modalidade artística havia uma dualidade entre natureza e imaginação,

arte como comunicação de descrições e de idéias. “O art nouveau foi a culminação da

tentativa de dizer o novo usando uma versão da linguagem do velho”, como afirma

Hobsbawm18.

Na Europa, os artistas começavam a se recusar a seguir um academicismo,

exercitando a nova estética em outras áreas, nas quais a arte poderia ser aplicada, como a

arquitetura, onde, até então, campeava a imitação do gótico, do Renascentismo e do

Orientalismo. Com novos materiais, novas técnicas conquistadas com o avanço tecnológico,

o objetivo do art nouveau era criar formas novas e não somente copiar as antigas, premissa

de quase todo movimento artístico. Foi um dos primeiros estilos modernos a conquistar

todos os espaços19.

Considerando o art nouveau como atividade criadora, podemos dizer que ele não

pertenceu diretamente a uma escola, ou teve sua origem determinada em um só lugar ou um

só grupo de artistas. O movimento envolveu artistas de vários países, todos unidos pelo ideal

de reagir contra uma arte que só reproduzia e não criava. Havia uma oposição ao

Naturalismo: não era uma recusa ao natural, mas sim a negação da reprodução de uma

superficialidade. É na preocupação, na descoberta de estruturas interiores, que são os

processos ocultos das formas de vida, que o artista se inspira para produzir formas artísticas.

Encontramos essa manifestação artística também no Brasil. Assim como ocorre na

Europa, a elite brasileira busca atualizar-se, renovando suas idéias e parâmetros artísticos

trazidos de suas viagens ao exterior. O Brasil não foi um dos locais de surgimento do art

nouveau. A arte nova no Brasil ganhou suas cores locais, tendo poucos representantes

figurando a produção da belle époque brasileira. 18 HOBSBAWN, Eric. A Era dos Impérios 1875-1914. São Paulo: Paz e Terra. 7ª ed. 2002. p. 319. 19 Ibidem. p. 321.

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Dentro das temáticas, encontramos o orientalismo que pode ser exemplificado pela

escolha de motivos e personagens como Salomé. A personagem bíblica traz em si um

universo oriental, idealizado pelo ocidente. Essas idealizações são um resultado dos

estímulos do imperialismo comercial, sendo motivos japoneses e egípcios20 outras

referências orientais exploradas pelo estilo.

1.1 João do Rio e o Decadentismo

João do Rio é o mais popular dos aproximadamente dez pseudônimos assumidos

por João Paulo Alberto Barreto, em cerca de 2.500 escritos, entre contos, crônicas, peças de

teatro e reportagens21.

Jornalista, crítico e escritor de peças de teatro, Paulo Barreto foi nascido e criado na

cidade do Rio de Janeiro, onde testemunhou a reurbanização da cidade aos moldes europeus,

mais precisamente, franceses. Paris servia de modelo para o mundo no século XIX com sua

renovação na organização do espaço público, abrindo grandes avenidas de acesso ao centro

comercial e cultural.

Na capital francesa, transitavam as idéias das vanguardas artísticas e era para onde

grande parte das famílias abastadas passeava e mandava seus filhos para estudar. Na

administração do prefeito Pereira Passos, a cidade do Rio ganhava os mesmos requintes

europeus, sendo, muitas vezes, comparada a uma Paris tropical. Iniciaram-se em sua gestão

obras importantes para urbanização e modernização da cidade, como o alargamento da

20 HOBSBAWN, Eric. A Era dos Impérios 1875-1914. São Paulo: Paz e Terra. 7ª ed. 2002. 21 RODRIGUES, João Carlos. João do Rio: uma biografia. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.

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Avenida Central, juntamente com a construção de prédios públicos de fachadas inspiradas

nos padrões europeus da época22.

Maravilhado com a cidade em mudanças, João do Rio registrou, em seus textos, as

transformações realizadas e os efeitos produzidos nas relações sociais. Sua contribuição para

os estudos históricos da cidade é muito relevante, sendo mencionado por historiadores como

José Murilo de Carvalho23 e a socióloga Lúcia Lippi de Oliveira24, devido ao seu registro fiel

do desaparecimento de uma cidade e surgimento de outra. O que nos impressiona em seus

escritos é a flagrante inovação de sua escrita, que mesclava reportagem à crônica, criando

um novo gênero, híbrido, próprio para um período de transição.

João Paulo Alberto Barreto identificou-se tanto com esse momento de

modernização da cidade, que seu mais conhecido pseudônimo revela a intensidade com que

o espaço urbano se decalcou na identidade do escritor – João do Rio.

Alfredo Coelho Barreto, pai de Paulo Barreto, nasceu no Rio Grande do Sul, mas,

após a morte de seu pai, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde estudou Engenharia e

Mecânica na Escola Politécnica. Trabalhou como professor de Matemática e teve uma vida

simples. Era positivista e pregava em suas aulas a escola de Augusto Comte, na qual a

ciência servia de base para a religião. Seguindo o Positivismo, aos dois anos de idade, Paulo

Barreto recebeu o “sacramento da apresentação”25. Influenciado por seu pai, enredou pela

literatura realista de Balzac, Dostoievski, Eça de Queiroz e outros26.

22 PASTURA, Ângela F. Perricone. Imagens de Paris nos Trópicos. Rio de Janeiro: Papel &Virtual, 1999. 23 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo. Companhia das Letras, 2002. 3ª ed. 24 OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Cultura Urbana no Rio de Janeiro. IN: FERREIRA, Marieta de Moraes. Rio de Janeiro: uma cidade na história. Rio de Janeiro. FGV, 2000. p.141. 25 RODRIGUES, João Carlos. João do Rio: uma biografia. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p. 26. 26 Ibidem. p. 30.

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Sobre sua educação formal sabe-se muito pouco. Apenas alguns registros

comprovam que o jornalista freqüentou as aulas de português no colégio do Mosteiro de São

Bento, nos anos de 1894 e 1895. Lá, segundo o próprio João Paulo, inicio-se nas letras num

jornal estudantil chamado O Ensaio27.

Tendo sido aprovado em Letras no concurso do Ginásio Nacional aos quinze anos,

conclui-se que o jovem João Paulo foi autodidata nas disciplinas de Francês, Inglês,

Geografia, História e Literatura, sendo que seu pai o ensinou as matérias exatas, uma vez que

era professor de Matemática. Depois de formado em Bacharel em Letras, não seguiu a

carreira acadêmica, sendo essa uma das razões de ser alvo de ataques de seus adversários na

vida profissional.

A família de João do Rio não tinha posses. De fato, era uma família simples e se

esperava que João do Rio, ainda jovem, com seus dezoito anos ainda incompletos,

começasse a trabalhar. Era esperado, também, que o jovem tivesse interesse pelo jornalismo,

tendo, como tio, Ernesto Senna – redator do Jornal do Comércio – e contraparente de José

do Patrocínio – dono de A Cidade do Rio. O seu primeiro texto foi publicado em A Tribuna.

Contrariando o costume, o jovem preferiu não estrear num jornal ligado a sua família. Seu

texto consistiu numa crítica à montagem da peça de Ibsen, Casa de boneca, e, segundo João

Carlos Rodrigues, seu estilo foi considerado bombástico e paradoxal.

Quinze dias depois da sua estréia, começa a sua colaboração no jornal A Cidade do

Rio, onde fica até 1900. Desde o início de sua carreira já eram evidentes algumas

características que o acompanhariam até a maturidade, como notou José do Patrocínio:

era irreprimível, era impetuoso [...] como certos fenômenos da natureza que os poetas corporificam em deuses. Preto, musculoso, bocarra aberta e pulso grosso, só teve na vida uma atitude: a de ser portador de raios e de fulminante [...] ora chamando-nos de gênio, ora achando-nos piores que a poeira28.

27 RODRIGUES, João Carlos. João do Rio: uma biografia. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p. 27.

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O início do seu trabalho foi pouco conhecido, embora conseguisse provocar

certo escândalo. O tema de Impotência, um dos primeiros contos de João do Rio, publicado

duas semanas após completar dezoito anos, é ousado, mostrando uma nítida influência da

atmosfera proposta por Huysmans em Às Avessas, e também em parte da produção de Oscar

Wilde.

O conto narra a história de um homem que se choca com sua imagem no espelho

aos setenta anos de idade. Ele simplesmente não percebe a passagem do tempo, enquanto

sonha com jovens rapazes. O espelho remete a idéia do retrato de Dorian Gray, do romance

homônimo de Wilde. A personagem, virgem e homossexual, é uma amostra da ousadia da

qual o autor é capaz.

Um pouco mais tarde, Paulo Barreto publica Ódio ou Páginas do diário de um

anormal, onde o narrador e personagem Fábio de Aguiar conta sua relação sado-masoquista

com seu ex-vizinho de infância e colega de escola. São estes dois trabalhos os únicos contos

da primeira fase da carreira do jornalista29.

Como crítico de arte, escreveu críticas ao salão de Belas Artes em 1900, sob o

pseudônimo de Claude. Esses textos apresentam outra característica do seu estilo em

formação. Seu texto apresenta diálogos com personagens fictícios, de fundo satírico. Criou o

aluno André, que é um perfeito dandy: usa bota de pelica, calças de cachemira meio claro,

redingote, luvas de cor de ouro velho e monóculo com aro de tartaruga, sempre fulgurante.

André é uma possível descrição, segundo Rodrigues30, de João do Rio, ou um alter-ego do

que então gostaria de ser. Nessas características de André podemos perceber a influência da

literatura de Lorrain e Wilde.

28 RIO, João do. 1910. apud RODRIGUES, João Carlos. João do Rio: uma biografia. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p.31. 29 Ibidem. p.36. 30 Ibidem. p.37.

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Seguindo os passos da escola positivista de Augusto Comte, ensinada por seu pai,

João do Rio teceu fortes críticas aos românticos e simbolistas, por desacreditarem os

métodos científicos. Refletindo sua preferência pela dura realidade celebrada pelo Realismo

e Naturalismo, e que circunscrevia a cidade, João do Rio descrevia, em seus contos e

documentários jornalísticos, cortiços, ruas estreitas, vícios, e tudo aquilo que pudesse

lembrar a velha cidade e que incomodava àqueles que, de fato, admiravam o renascimento

do Rio de Janeiro.

No campo das artes plásticas, João do Rio demonstrava interesse por estilos mais

ousados e censurando as produções que seguiam a escola acadêmica, acabava por desprezar

a escola que tanto defende nas suas preferências literárias. É nas artes, no exercício de crítico

de arte, que João do Rio entra em contato com o art-noveau, movimento de reação ao

momento mecanicista e científico pelo qual o mundo passa, no fim do século XX. E assim,

com essas novas influências, as das artes plásticas e da literatura, João do Rio assume um

atitude nova, celebrada pela juventude aristocrata européia diante do novo, que surgia diante

das tradições. João do Rio assume-se dandy, demonstra-se um admirador do belo, do raro e

do artificial. De acordo com seu biógrafo, os únicos artistas a quem ele faz elogios têm

inclinação arte novista.

O temperamento forte do cronista traduzia-se não só nas suas críticas tecidas nos

cinco anos em que cobriu o Salão de Belas Artes, ou nos trabalhos ousados de início de

carreira. Seu guarda-roupa, com o tempo, também denunciava suas preferências literárias.

João do Rio apresentava-se publicamente, às vezes, como as personagens decadentistas

próprias de Huysmans, Wilde e Lorrain – vestindo-se de fraque branco, como des Esseints

de Às Avessas, ou usando terno e bengalas verdes, como Monsieur de Phocas, da obra

homônima de Jean Lorrain – não deixando de ser notado onde quer que estivesse.

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Jean Lorrain e Oscar Wilde constituem sua maior influência decadentista. No início

do Século XX, a presença desses nomes em suas obras torna-se comum, influenciando até o

seu modo de agir. Segundo seu primeiro biógrafo, R. Magalhães Júnior31, o nome João do

Rio foi escolhido por inspiração em Jean Lorrain que, erroneamente, o biógrafo afirmou ser

a tradução do nome do escritor francês Jean da Lorena. A origem do pseudônimo de Paul

Duval (1855-1906) é outra, sendo o verdadeiro responsável por inspirar João do Rio na

escolha do pseudônimo de outro francês, Napoleón-Adrien Marx, que assinava suas obras

Jean de Paris32.

Paulo Barreto, que aos vinte e dois anos de idade assume o seu pseudônimo mais

famoso, encerra dentro de sua natureza pelo menos duas das figuras marcantes do

Decadentismo. João do Rio apresenta-se com a extravagância estética e discursiva atribuídas

à imagem do dandy, ao mesmo tempo em que vaga, observa e reflete o centro urbano carioca

como o flâneur dos bulevares parisienses.

Mais uma terceira personagem, a prostituta, não está encarnada nas atitudes de

Paulo Barreto, mas na figura feminina que ele admira, como as atrizes portuguesas, que se

apresentam nas temporadas dos teatros da cidade que se renova. Num determinado aspecto,

o corpo da atriz, assim como o da prostituta, é o objeto de trabalho. Em ambos os casos, o

corpo que se insinua é objeto de desejo e curiosidade, pois falamos de um corpo que se

rebela contra regras de postura e comportamento de seu tempo. O corpo rebelde recusa do

papel da reprodução (o corpo feminino não está mais destinado somente à maternidade) para

se entregar ao prazer da produção.

A reformulação do espaço urbano carioca movimentou a vida cultural da cidade

com o ganho de teatros e cinematógrafos. Nesse momento, entram em cena artistas de todas 31 MAGALHÃES JUNIOR, R. A vida vertiginosa de João do Rio. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1978. 32 FARIA, Gentil Luiz. A presença de Oscar Wilde na “belle époque” literária brasileira. São Paulo: Parnnatz, 1988. p. 86.

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as áreas para saciar a sede da elite cultural que se desenvolvia. Atrizes e dançarinas

internacionais vieram ao Brasil para apresentar seu trabalho, que era recebido com um misto

de espanto e admiração. Sarah Bernard era um dos ícones mundiais. A maioria delas eram

figuras conhecidas de um público seleto, que estava acostumado a viajar para a Europa.

Falar da vida artística feminina nos faz refletir sobre a situação da mulher na

sociedade. Na passagem do século XIX para XX, a mulher, timidamente, começa a exercer

algumas atividades (que não as de dona-de-casa) que contribuiu para sua emancipação

financeira e familiar. Sua entrada no mercado de trabalho é sutil e pouco expressiva nas

primeiras décadas do século, e não poderia ser encarada de forma positiva pela sociedade

patriarcal, que exigia da mulher dedicação exclusiva para o lar, filhos e marido.

O envolvimento direto da mulher na vida artística sempre foi encarado com algum

preconceito, devido à exposição pública e a necessidade de deslocamentos constantes para

acompanhar os espetáculos. Essa vida artística não poderia ser compatível com a vida de

dona-de-casa e mãe. Encontramos, nas críticas de João do Rio, o vislumbramento por

grandes atrizes, que pode ser interpretado como uma admiração pelo corpo que se nega a

servir às convenções impostas pela sociedade.

Como um flâneur, Paulo Barreto circulava por toda a cidade do Rio de Janeiro,

freqüentando cafés que eram pontos de encontro de jornalistas, estudantes, escritores,

críticos e toda a elite da cidade. Circulava, também, por áreas menos favorecidas para

descrever as culturas diversas existentes no espaço carioca. Para João do Rio, flanar “é ser

vagabundo e refletir”33, atividades que trazem ao seu trabalho uma característica única e

torna único o objeto observado, esquecido no tumulto da multidão.

33 RIO, João do Rio. A alma encantadora das Ruas. Pará de Minas: Virtual Books M&M Editoras: e-book/pdf. p.5.

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Em suas andanças, escreveu sobre as religiões africanas – como o candomblé –

difundidas pelos escravos, praticadas nos subúrbios da cidade e rejeitada, durante a reforma,

por aqueles que estavam preocupados em sublimar a imagem da cidade. João do Rio

descreveu, pela primeira vez, as práticas dessas religiões num registro jornalístico intitulado

As Religiões do Rio, obra única do gênero na época34. Abaixo, segue um fragmento do

capítulo das Iauos:

A recordação de um fato triste - a morte de uma rapariga que fora à Bahia fazer-santo – deu-me ânimo e curiosidade para estudar um dos mais bárbaros e inexplicáveis costumes dos fetiches do Rio. Fazer-santo é a renda direta dos babaloxás, mas ser filha-de-santo é sacrificar a liberdade, escravizar-se, sofrer, delirar. Os transeuntes honestos, que passeiam na rua com indiferença, não imaginam sequer as cenas de Salpetrière africana passadas por trás das rótulas sujas35.

A identificação de alguns terreiros e outros lugares onde a prática dessas religiões

acontecia, levou, após a publicação do documentário, a extinção pela polícia de alguns

desses lugares36.

O cronista também circulou por textos literários, como os de autoria de Wilde.

Embora Wilde não tenha sustentado sua grande projeção no período vitoriano,

segundo Gentil de Faria37, o escritor conseguiu seu maior sucesso em outros países, como

Alemanha, França, Itália, Espanha e Estados Unidos. No Brasil, ganha repercussão graças

aos seus maiores divulgadores no país, Paulo Barreto e Elisio de Carvalho. O primeiro

traduziu algumas obras; dentre elas, encontramos O Retrato de Dorian Gray, Intenções,

Salomé e O Leque de Lady Windermare.

34 RODRIGUES, João Carlos. João do Rio: uma biografia. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p.56. 35 RIO, João do Rio. As religiões do Rio. Disponível em: http://www.biblio.com.br/templates/PauloBarreto/ asreligioesdorio.htm p. 5. 36 RODRIGUES, ibidem. p. 50. 37 FARIA, Gentil Luiz. A presença de Oscar Wilde na “Belle Époque” literária brasileira. São Paulo: Parnnatz, 1988.

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Se olharmos para o universo existente na obra de Oscar Wilde, podemos nos

deparar com a riqueza de seus detalhes e sua postura diante da arte e da sociedade. Sem

dúvida, um dos escritores considerados ícones que marcaram a escrita decadentista foi

considerado um escritor menor por compêndios de literatura inglesa, de acordo com Gentil

de Faria. Tendo sua formação acadêmica na Inglaterra e seguindo os moldes ingleses, a obra

do escritor é considerada como literatura inglesa, e não irlandesa. Wilde foi leitor de

Huysmans e uma prova desse fato foi o seu único romance, O retrato de Dorian Gray,

publicado, em 1890 e, posteriormente, alterado em 1891. No romance, há uma menção a

obra Às Avessas, de Huysmans. O nome da obra não chega a ser mencionado, mas a

descrição da personagem e da história não deixam dúvidas.

Wilde estudou em Oxford, tendo como tutor Walter Horatio Pater, crítico de arte e

escritor, de quem herdou sua formação clássica de estética e de artes. Sua formação clássica

reflete-se em sua obra, nas referências à cultura e a exaltação à beleza.

Pater escreveu Marius the Epicurean (1885), inspirado nos ideais de Epicuro,

filósofo grego do período helenístico. A obra narra a história de um jovem rapaz que, assim

como Dorian, personagem criado por Wilde em seu único romance, vê-se influenciado por

um livro – que no caso da obra de Pater é Metamorphoses de Apuleius.

Epicuro considera que o prazer deve ser o maior e o único fim e, ainda que

rejeitasse a idéia de dor como um mal, ele sabia que a dor era necessária como meio de

alcançar o prazer. Ambos os livros, o escolhido por Pater em seu romance, e o escolhido por

Wilde, tratam da necessidade da sublimação através dos sentidos, da arte e da beleza.

Wilde assume uma postura dândi e, em algumas obras, essa postura é refletida em

suas personagens, na ironia e humor das suas produções. É com essa postura que João do

Rio identifica-se.

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João do Rio teve, primeiramente, contato com o trabalho de forma indireta, através

da obra de Jean Lorrain. Depois, tornou-se tradutor de Oscar Wilde no Brasil. Segundo

Gentil de Faria, João do Rio passou a fazer referências sobre esses autores a partir de 1905,

quando encontrava oportunidade para mencioná-los. A admiração do jornalista tornou-os um

modelo para seu próprio estilo.

Jean Lorrain foi leitor e admirador de Wilde, e seu romance Monsieur de Phocas

foi inspirado no único romance escrito por Wilde, O Retrato de Dorian Gray. Wilde, por sua

vez, inspirou-se em Às Avesssas de Joris-Karl Huysmans.

Uma das obras de João do Rio que ilustra esta admiração é o conto A mais estranha

moléstia, publicado na coletânea Dentro da Noite. Neste conto, a personagem Oscar Flores

vê-se acometido de um mal do seu sentido olfativo. As descrições sobre a aparência de Oscar

remetem à delicadeza e a beleza do jovem Dorian Gray.

Oscar sofre de uma nevrose que abala o seu espírito, assim como des Esseintes, na

obra de Huysmans, que na sua nevrose pela estética, também cria em sua casa um

laboratório para descobrir novas fragrâncias. Flores tem uma “hiperacuidade de um sentido

dirigida com a estética38.” Além de possuir a sensação sinestésica própria do dandy:

[...]senti que poderia fazer um catálogo, dividindo em classes de almas e a diversa temperatura: perfumes quentes, semi-oleosos, perfumes tépidos, perfumes frios.39

O sobrenome de Oscar é Flores, que para o rapaz são

[...] as caçulas dos perfumes naturais. A natureza condensa nelas o olor das suas paixões, a alma dos seus desejos, as recordações de tonturas de frenesis ou de grandes repousos celestes40.

38 RIO, João do Rio. A mais e estranha moléstia. IN: ____. Dentro da Noite. Pará de Minas:Virtual Books M&M Editoras. E-book/pdf. p. 95. 39 Ibidem. p.96 40 Ibidem. p.96

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A vida de Oscar Flores consiste em encontrar um perfume que irá trazer-lhe paz e

tranqüilidade. Em um dado momento de sua vida, deparou-se com esse cheiro, e como ficou

completamente tomado por esse sentido, Oscar não consegue lembrar das feições da pessoa

que usava o perfume. A partir de então, sua vida resumiu-se à busca desse odor. É o que está

fazendo quando o narrador aproxima-se dele, de acordo com o próprio narrador, atraído pela

sua beleza.

Da mesma forma que Dorian Gray atraía olhares para si próprio, o jovem Oscar – e,

também, o escritor irlandês – atrai a atenção para sua delicadeza, “sua bengala de castão de

turquesa, a gravata presa de um raro esmalte, a atitude inquieta de um príncipe assassino e

radiante”41.

1.2 A transfiguração da cidade sob o olhar de João do Rio

“O Rio civiliza-se”42

Figueredo Pimentel

A célebre frase de Figueredo Pimentel, que serve, aqui, de epígrafe, traduz o

sentimento da elite diante da transformação da urbe carioca. A cidade não possuía água

encanada nem esgoto, e as ruas eram estreitas, o que gerava, principalmente no verão,

grandes epidemias devido ao calor. Por causa da sujeira e das doenças, muitos navios não

aportavam na cidade, e muitos estrangeiros evitavam passar pelo Rio de Janeiro.

41 RIO, João do Rio. A mais estranha moléstia. IN: ____. Dentro da Noite. Pará de Minas:Virtual Books M&M Editoras. E-book/pdf. p. 93. 42 PIMENTEL, Figueredo. apud BROCA, Brito. A vida literária no Brasil -1900. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1960. 2ª ed.

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Segundo Broca (1903-1961), antes da transformação, a cidade do Rio de Janeiro

sofria uma desarticulação dos focos monárquicos – a instauração da república era recente – e

também o abafamento da revolta de Canudos, garantiram um período de calma e

prosperidade, que seria a preparação financeira do programa de realizações do governo

Rodrigues Alves. Paralelamente, temos o controle de doenças infecto-contagiosas – que

tomavam conta da cidade – elaborado e articulado por Oswaldo Cruz43.

A transfiguração que a cidade passa no período de 1900 é inspirada na reforma pela

qual Paris passou no século XIX. Embora a reforma francesa tivesse fins estratégicos,

objetivos político-militares nas revoluções liberais de 1830 a 1848, a reforma da cidade

tropical era de caráter progressista. A finalidade era dar ao Rio uma fisionomia parisiense,

um aspecto europeu de civilização. O desenvolvimento desejado deveria ser visível.

O prefeito Pereira Passos, responsável pela reforma e modernização do Rio, é

comparado ao Barão Haussman, o responsável pela reforma de Paris. A cidade precisava se

modernizar para não perder espaço econômico e melhor acomodar a elite burguesa que ali se

desenvolvia. A educação era guiada pelos moldes franceses, assim como a moda vigente só

poderia ser proveniente da Ville Lumiére. Juntamente com a moda, as revistas e os livros,

chegam à cidade tropical as idéias européias, que logo tornam-se objeto de vislumbre da elite

intelectual da cidade.

As imagens seguintes ilustram a transformação da cidade através da

construção da avenida Central. As duas fotografias mostram a rapidez com que as obras

foram concluídas. Tendo início em 1904, as obras foram finalizadas em ainda na mesma

década. Nas imagens a seguir, temos a avenida Central sendo construída (fig.1) e parte dela

já terminada (fig.2).

43 BROCA, Brito. A vida literária no Brasil -1900. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1960. 2ª ed.

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Fig. 1

Os novos edifícios da avenida Central em fase de construção. João Martins Torres, 1905.44

Fig. 2

Desfilando da avenida central. Augusto Malta, 1906. 45

44 TORRES, Martins. apud KOK, Glória. Rio de Janeiro na época da Av. Central. São Paulo: Bei Comunicação, 2005. 45 Disponível em: www.educacaopublica.rj.gov.br.

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Com a moda, a decoração também segue o modelo europeu. O art nouveau chega

ao Brasil nas revistas e livros europeus e os lustres e armações com os quais se decoravam as

confeitarias, cafés e teatros. Estes locais tornaram-se pontos de encontro da elite da cidade.

A nova arte trouxe consigo o encantamento europeu, um novo conceito de beleza para a

decoração dos espaços do Rio de Janeiro.

Como reflexo da transformação da paisagem urbana e ideológica, temos a

transformação na paisagem social e literária carioca por conseqüência. A vida literária do

Rio foi anteriormente desarticulada pela revolta da Armada e a reação florianista em 1893.

Depois da calma retomada, ela começa a se recompor.

A imprensa moderniza-se também para poder acompanhar o passo acelerado da

reforma. Com o “Bota-a-Baixo”, que daria surgimento às grandes avenidas, demolindo

centenas de moradias, a imprensa ganhava dinamismo. A reportagem, que não era um gênero

muito explorado, ganhava corpo dentro dos jornais, assim como outros gêneros textuais

também passavam por adaptações.

As revistas são outra marca que o momento imprime. Também refletem a

modernização da urbe carioca e buscam afirmar essa imagem com uma produção requintada

de suas fotografias. Com a vinda dos primeiros automóveis, surge a revista Fon-Fon!,

publicada de 1907 a 1958, cujo nome alude ao som da buzina da máquina, que poderia

chegar a velocidade de 30 quilômetros horários.

A fotografia, que se torna popular em 1900 – que logo depois dará espaço para o

cinematógrafo –, assim como as ilustrações, são utilizadas pela literatura nas revistas de

época – Fon-Fon!, Selecta, Kosmos e Para Todos... para causar no leitor uma identificação

com os novos motivos sociais e mundanos46.

46 OLIVEIRA, Claudia. Fotografia e representação do Rio de Janeiro moderno em Fon-Fon! Selecta e Para Todos... (1907-1930). UNICAMP, 2006. Disponível em: http://www.studium.iar.unicamp.br/ 15/06.html?studium=index.html

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O conjunto destas revistas revela uma compreensão sobre os novos tempos, que

teria como característica a construção de uma imagem que articulava a beleza da nova cidade

ao progresso a que a capital deveria estar relacionada. O conjunto fotográfico buscava trazer

a sociedade brasileira ao mesmo ritmo das sociedades européias, ditas civilizadas. Dá-se o

início a uma nova época no cenário carioca: a belle époque.

Segundo Eugen Weber47, a belle époque representa o período de cerca de dez anos,

que antecedem 1914 na Europa. Esses anos caracterizam-se pela robustez da economia,

otimismo e pela produção. Já segundo José Paulo Paes48, a belle époque está balizada de

1870 até a Primeira Guerra Mundial, que é um período em que prosperou uma sociedade

burguesa brilhante, rica e fútil, que é amante do luxo, do conforto e dos prazeres. Surgiam

cabarés, o cancã e o cinema, e a arte tomava novas formas com o Impressionismo e o art

nouveau. Um pouco mais tardia foi a belle époque carioca, seguindo as mesmas

características do momento francês.

Em 1910, surge uma boêmia que Broca chama de “boêmia dourada”, que sai dos

cafés e toma o ambiente dos salões decorados com art nouveau. Surgiam novas figuras, que

se caracterizavam pelo refinamento e afetações de elegância. Eram os dandies e os raffinés,

num círculo mundano, onde a literatura era cultivada como um luxo semelhante a objetos de

decoração.

A Revista Fon-Fon! publica “O chá civiliza-se... tal qual o Rio”49, anunciando que

o café perdeu seu espaço para o chá. Este, que era tomado à noite, sem maiores cerimônias,

agora é tomado seguindo o modelo inglês de five o’clock tea, às cinco horas da tarde. Assim

47 WEBER, Eugen. 1988 apud MUCCI, Latuf Isaias. Ruína e Simulacro Decadentista: Uma leituraa de Il Piacere. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994. p. 17. 48 PAES, José Paulo. Gregos e Baianos. São Paulo: Brasiliense, 1985. 49 Apud BROCA, Brito. A vida literária no Brasil -1900. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1960. 2ª ed.

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como a cidade se renova, os costumes de seus habitantes também se renovam, à medida que

chegam novas referências européias.

Com essa mobilização em prol do novo, de novos hábitos e conceitos de beleza, o

que era comum tornou-se antigo e ultrapassado e, para continuar existindo, teve que se

deslocar para os subúrbios. O que já estava lá manteve-se intacto, escapando à caçada aos

vestígios deixados pelo império. O desenho das casas e os costumes dos residentes dos

subúrbios cariocas ainda hoje são referências de gosto simples e tradicional, enquanto que o

centro sempre procura renovar-se diante de novas tendências. Na belle époque, o chá que

toma o lugar do café é um exemplo dessa renovação forçada de hábitos.

Mesmo no centro da cidade carioca na belle époque, alguns redutos ainda

guardavam a obscenidade que o brilho dos salões, das confeitarias e dos teatros tentavam

ofuscar. Com sua visão apurada, João do Rio conseguiu documentar e reunir no livro A alma

encantadora das ruas (1908), crônicas e reportagens escritas entre 1904 e 1907, sua

perspectiva sobre os tipos que circulam na cidade do Rio de Janeiro e a própria natureza da

rua, cenário da vida na metrópole.

Parte da obra de João do Rio foi produzida tendo o teatro como uma de suas fontes

de inspiração. Suas críticas são responsáveis pela sua imagem de crítico exigente e

despreocupado com a opinião alheia. Sua admiração, não só pelas obras representadas, como

pelas belas e competentes atrizes tem como causa a paixão pelo teatro.

No início do século, o teatro não parece, de acordo com alguns registros de

viagem50, ter desenvolvido muito as técnicas já dominadas na Europa. Os espetáculos, em

sua maioria, pareciam refletir o gosto pouco refinado da audiência brasileira. As atrizes

valiam-se mais pela sua beleza física do que pelo talento de intérprete.

50 LEITE, Miriam Moreira (org). A condição feminina no Rio de Janeiro – Século XIX. São Paulo: HUCITEC, 1984.

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Já na segunda metade do século, e, mais precisamente, no final do século XIX, é

que chegam ao país as grandes companhias européias com suas luxuosas produções e

respeitado elenco. Os maiores e melhores teatros na cidade do Rio de Janeiro eram D. Pedro

II e Ópera Italiana, que eram subsidiados pelo governo, mas que nem sempre estavam com

algum espetáculo em cartaz. O grande público, de gosto mais simples, preferia outros dois

teatros, mais populares, com música, dança e belas atrizes.

Mesmo com tanta admiração pelas formas e modelos europeus, no Brasil, o que

poderia ser observado – mais pela ótica de um viajante estrangeiro – é uma tentativa, sem

muito sucesso, de se reproduzir a beleza das construções e o conforto das instalações.

O teatro D. Pedro II, situado no caminho do Botafogo, estava levando Fausto, no dia em que cheguei; como não tinha que fazer, tentei a aventura, e, depois de pagar um número incrível de mil-réis, tive a alegria de conseguir uma poltrona da platéia, leia-se “cadeira” numa sala muito grande e alta, toda branca e com dois terços de espectadores. Como nos teatros espanhóis, os camarotes ficam separados apenas por uma grande altura de um corrimão; a frente do camarote também é mais baixa que nos nossos teatros. Vê-se melhor e, sobretudo, se é visto; o aspecto geral é mais alegre, mais vivo, embora quase não haja ornamentação. [...] Não existe o que chamamos de balcão ou galeria [...]51

No prefácio de Psychologia Urbana, João do Rio trata seu leitor como único.

Pensando o seu número real de leitores, chega à conclusão que apenas um único leitor seria

suficiente para que o autor pudesse criar sua atmosfera de troca de confidências, criando ou

aumentando assim os laços com seu público.

No prefácio, além dessa aproximação do seu público, o cronista chama atenção

para um dos sintomas das mudanças que a cidade do Rio de Janeiro sofre: o número

crescente, ou a moda instaurada das conferências.

A cidade só tem uma preoccupação [sic] – ouvir e fazer conferências. É preciso fazer conferências! É preciso fazer conferências! O delírio, a

51 LEMAY, Gaston. IN: LEITE, Miriam Moreira (org). A condição feminina no Rio de Janeiro – Século XIX. São Paulo: HUCITEC, 1984. p.173.

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nevrose, a ancia [sic] da cidade – conferências! Sempre conferências! Só conferências! Nós estamos no paíz [sic] das conferências.52

A classe burguesa, ávida por conhecimento e cultura, esforça-se para ganhar o

status de culta. A sociedade que se desenvolve, referimo-nos só ao corpo masculino de

presença tão comum em espaços intelectuais, mas também à mulher, que saindo de casa para

circular pela cidade, ganha, também, a liberdade de freqüentar outros espaços, como os

institutos, clubes, associações, etc.

Segundo João do Rio, o tema das conferências não possuía importância, mas sim a

presença, e quanto maior fosse o número de conferências atendidas ou dadas, mais

interessante seria a conversa na hora do jantar.

Com esse olhar sobre o que se passa na capital brasileira, o título da coletânea não

poderia ser melhor:

A collecção [sic] chamei Psychologia Urbana, apenas porque me pareceu observarem esses trabalhos certos estados d’alma da cidade, de modo aliás urbanismo. Aos estudos juntei um discurso de recepção na academia, porque era ainda psychologia urbana urbanamente feita, e principalmente pelo desejo de mostrar que há no observador um fio de phylosofia que accentuou atravez dos annos [sic] com continuidade. Os observadores notam o que aos outros passa despercebido.53

Não deixando de divagar sobre a natureza do flâneur:

A princípio talvez por uma especie de hostilidade ao meio. Depois por prazer, por volúpia. E de notar erros e rediculos [sic], acabam por amar a humanidade exactamente [sic] por tudo no começo os feriria. 54

Com os apelos pelo moderno, a vida que pertencia somente às casas, passa a

freqüentar o espaço público, ganhando as ruas. Em seu livro, A Alma Encantadora das Ruas

–, obra comparada por críticos a obra francesa Les petits memoires de Paris de Jean de Paris

52 RIO, João do Rio. Psychologia Urbana. Rio de Janeiro: Garnier. 1911. p.5. 53 Ibidem. p. 12. 54 Ibidem. p. 12.

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por sua estrutura, na verdade, é uma “aclimatação, para o ambiente do Rio de Janeiro”55 da

obra do guatemalteco Gómez Carrillo − João do Rio expressa sua admiração e respeito a um

dos símbolos de qualquer cidade. Elemento sem o qual não seria possível a existência de

vilas, povoados ou cidades. A rua é elemento imprescindível para a existência dos mesmos,

assim também como do próprio homem56.

Com a nova cidade, diante de tantas modificações, algumas ruas foram refeitas,

outras foram criadas, e outras substituídas por grandes avenidas. Objeto de amor e respeito

do cronista carioca, mesmo com as mudanças na urbe, a rua serve de pano de fundo para

inúmeras intrigas, crimes, namoros, encontros e desencontros: a rua é palco da vida. Para

João do Rio, a rua é o elemento de suma importância e beleza na formação das cidades. Sem

ruas não há sociedade. A rua funciona como as artérias e veias que elevam os nutrientes aos

lugares para que eles cresçam. É a testemunha de inúmeros atos, de qualquer coisa que

aconteça fora das casas, é testemunha do crescimento da urbe, do homem. A rua é feita pelo

homem, é como homem; por isso, ambos têm a mesma natureza: nascem, crescem e,

também, morrem.

Segundo João do Rio, a rua, como testemunha, é cúmplice dos seus transeuntes, é

generosa, é renovadora da própria língua – impondo aos dicionários as palavras que inventa,

criando o calão que é patrimônio clássico dos léxicos futuros – é a mais socialista, niveladora

das obras humanas por presenciar o levantamento das casas, o suor dos pedreiros, sentindo,

em seus nervos, a miséria da criação. Ela é responsável pela criação do menino, que hoje é

encontrado nas ruas das grandes e pequenas metrópoles, que é descompromissado, tipo

característico das ruas. Um menino que contém em si a pureza e a malícia do próprio ser

humano.

55 FARIA,Gentil de. A presença de Oscar Wilde na “belle époque” literária brasileira. 1988. p.95. 56 RIO, João do Rio. A alma encantadora das Ruas. Pará de Minas: Virtual Books M&M Editoras: e-book/pdf.

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A rua é responsável não só pelo garoto, mas também por uma outra figura: o

flâneur, que vaga, observa e reflete sobre a cidade e seus habitantes. O flâneur é encarnado

pelo autor da obra, que para conseguir captar a alma das ruas, e ainda considerá-la

encantadora, deixou-se vagar pela obscena57 cidade do Rio de Janeiro.

Ao registrar o trabalho de tatuadores, de outras pequenas profissões, e de outros

habitantes pertencentes ao que durante e depois da reforma de Pereira Passos foi considerado

submundo, o escritor precisou andar e refletir o novo e o velho Rio de Janeiro. Duas

histórias, dois costumes, duas cidades que se tornaram antagônicas.

É nesse espaço tão democrático e acolhedor que surge a figura feminina, não só a

mulher simples, negra ou mestiça que precisa trabalhar para ajudar a família a viver,

vendendo doces, bananas ou outros itens. A senhora requintada, que antes ficava só dentro

de casa e, aos domingos, ia à missa, agora vai à modista e as confeitarias, começa a

freqüentar clubes esportivos e palestras.

Nos contos de João do Rio, são comuns passagens que marcam a visão do dandy e

do flâneur diante do mundo que os cercam, para exemplificar essa atitude nos contos de João

do Rio, utilizamo-nos do conto A mais estranha moléstia. Nas passagens apresentadas a

seguir, temos o primeiro parágrafo do conto, que exemplifica perfeitamente o proceder e o

olhar do flâneur diante da multidão que desfila a sua frente.

Era o momento verde, o momento do aperitivo outrora absinto, hoje uma série de envenenamentos de cores variadas e de nomes ingleses, a que a leve estética sem inventiva dos cafés e das confeitarias continuava de chamar sempre o momento da água glauca. Por hábito, sentara-me a uma das mesas do terraço de confeitaria, os olhos perdidos na contemplação de Avenida, àquela hora vaga tão cheia de movimento e de ruído58.

57 GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p.104. 58 RIO, João do Rio. A mais estranha moléstia. IN: _______. Dentro da Noite. Pará de Minas: Virtual Books M&M Editoras: e-book/pdf. 2002. p. 92.

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É marcada, além da observação do flâneur, a celebração do moderno, a beleza do

progresso, presente nos comentários sobre os detalhes do novo momento que invade as ruas

e a vida carioca no início de século XX.

No asfalto da rua era a corrida dos carros, apitos, trilos, largo bater de patas de cavalos, chicotadas estalando no pêlo das magras pilecas dos tílburis, carroções em disparada, cornetas de automóvel buzinando arredas, gente a correr, ou parada nos refúgios, à espera de um claro para poder passar, o estrépito natural do instante, à hora da noite nas cidades. Nas calçadas uma dupla fila de transeuntes sempre a renovar-se, o cinema colossal de homens das classes mais diversas, operários e dândis, funcionários públicos e comerciantes, ociosos e bolsistas, devagar ou apressados ao lado de uma multicor galeria de mulheres, a teoria infinita do feminino para os gêneros: pequenas operárias, cocottes notáveis, senhoras de distinção, meninas casadeiras, simples apanhadoras de amor. As sombras, a princípio de um azul-furiureáceo, depois de um cinza-espesso, iam preguiçosamente espalhando o veludo da noite na silhueta em perspectiva das grandes fachadas. À beira das calçadas, a pouco e pouco os pingos de gás dos combustores formavam uma tríplice candelária de pequenos focos, longos rosários de contas ardentes, e era aqui o estralejamento surdo das lâmpadas elétricas de um estabelecimento; mais adiante, o incêndio das montras faiscantes, de espaço a espaço as rosetas como talhadas em vestes d'Arlequins dos cinematógrafos, brasonando de pedrarias irradiantes as fachadas. Ah! os contos de fadas que são as cidades! Os meus olhos se fixavam na confusão miriônima das cores, vendo em cada roseta um caleidoscópio, sentindo em cada tabuleta o sonho postiço de um tesouro de Golconda, a escorrer para a semi-opacidade da noite cascatas de rubis, lágrimas de esmeraldas, reflexos cegadores de safiras, espelhamentos jaldes de topázios, e eu recordava outras cidades, outras casas, o eterno boulevard, suprema orquestração do bom gosto urbano. Que fazer? Os meus olhos descansaram na multidão59.

Na observação, não só da multidão, mas também da organização da cidade,

na riqueza que o torpor do vício e da beleza, o narrador mostra o senso estético do dandy.

Ao mencionar a lembrança de Paris, através da beleza do jogo de imagens que o observador

tem diante da profusão de cores e novidades. A cidade moderna é, enfim, comparada à um

conto de fadas diante das maravilhas.

59 RIO, João do Rio. A mais estranha moléstia. IN: _______. Dentro da Noite. Pará de Minas: Virtual Books M&M Editoras: e-book/pdf. 2002. p. 92-93.

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No mesmo conto encontramos na temática uma das características próprias

do Decadentismo, a nevrose.

Todos pensam que é um segredo porque ninguém imagina. E eu sofro desde criança. A princípio, na mais tenra idade, apareceu como escandalosa precocidade; até a adolescência tive-o como um crime horrível, castigo e prazer do pecado. Com a razão porque eu sou um sujeito muito razoável e muito refletido - vim a descobrir que era um desequilíbrio dos sentidos, a exaltação lírica, o desenvolvimento assustador de um dos sentidos, capaz de dominar os outros, submetê-los e virar aos poucos em fonte de todos os prazeres, em único foco das sensações agradáveis, em tirano da impalpável luxúria60.

No seguinte fragmento, encontramos mais uma característica do dandismo: a

sinestesia. Relacionada, principalmente, com a escolha de perfumes o sentido do olfato de

Oscar Flores procura por um cheiro nunca sentindo, capaz de estimular outros sentidos

como o paladar e o tato. O exótico é um elemento marcante e necessário ao estilo de vida

dandy.

Exatamente. Ainda era romântico e até aos dezoito anos tentei com um pouco de literatura e alguns conhecimentos químicos, o prazer dos perfumes, dos cheiros artificiais. Arranjei catálogos, estudei longamente, tive baterias de perfumes em frascos de cristal, fiz como todo sujeito lido em livros franceses, a sinfonia dos perfumes, a alegoria dos perfumes, a pintura sugestiva dos perfumes, combinando essências, renovando as camadas de ar do aposento com pulverizadores cheios de misturas sábias ao lado de incensários a queimar olências exóticas. Era perturbador e era irritante. O meu olfato desejava, tal as marafonas que a sorte eleva ao grande luxo, excessos de natureza, virilidades de ambiente. Esses perfumes que as mulheres usam, esses perfumes com que vocês se civilizam e se friccionam são ignóbeis. Na composição química da enorme quantidade por mim aspirada senti apenas que poderia fazer um catálogo, dividindo em classes de almas a diversa temperatura: perfumes quentes, semi-oleosos, perfumes tépidos, perfumes frios61.

A essência dos perfumes equivale à essência de seus donos e apreciadores. Os

perfumes de cada cultura também têm características próprias de sua origem. 60 RIO, João do Rio. A mais estranha moléstia. IN: _______. Dentro da Noite. Pará de Minas: Virtual Books M&M Editoras: e-book/pdf. 2002. p. 94. 61 Ibidem. 95-96.

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Os perfumes de Haubigant dão sempre a impressão de calidez, de calor opressivo. Os ingleses e os americanos fazem-nos frios, desses que a gente ao aspirar pensa em águas geladas e madrugadas hibemais. Meia dúzia de refinados franceses conseguem a meia temperatura, evolando-se lentamente. E há também os medíocres, os reles, os que lembram montras de boulevards em bluffs de luxo e de conforto, elegâncias por todo o preço de armazéns duvidosos62.

62 RIO, João do Rio. A mais estranha moléstia. IN: _______. Dentro da Noite. Pará de Minas: Virtual Books M&M Editoras: e-book/pdf. p. 96.

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2 O FEMININO NA OBRA DE JOÃO DO RIO

Para melhor entender a perspectiva pela qual a mulher é compreendida no espaço

geográfico da cidade do Rio de Janeiro, faz-se necessário compreender a visão da sociedade

européia sobre o corpo feminino, uma vez que o sentido do movimento do transplante

cultural faz-se no sentido Europa-Brasil.

Com a chegada de famílias inteiras ao país, ainda colônia, chegam também a terra

colonizada as concepções européias sobre o papel de cada um dentro da comunidade:

marido, mulher e filhos. Dentro de uma elite, mesmo que ainda muito pequena, o papel do

marido era manter a família; e o papel da mulher era cuidar da casa e dos filhos. Com o

desenvolvimento da colônia, esses papéis não mudaram para a elite, mas, para as famílias do

campo, o trabalho da mulher e dos filhos era igualmente importante para a subsistência da

família.

Na Europa, por volta de 1880, começam a surgir algumas representantes femininas

nas ciências, como Marie Curie, na literatura, como Emily Dickinson, entre outras, que

conseguiram quebrar a antiga e já desgastada imagem de sexo pouco competente.

No restante da sociedade, uma mudança que se observa é a diminuição no número

de filhos por casal. A criação dessas crianças torna-se dispendiosa, uma vez que o estudo

torna-se obrigatório, e para poder manter certa qualidade de vida para a família, opta-se por

um número menor de crianças. Outra razão para a diminuição da prole, para as famílias mais

abastadas é a manutenção do patrimônio familiar. Com menos filhos, há uma dispersão

reduzida dos bens familiares63.

Com menos filhos para criar, a mulher consegue mais tempo e, juntamente com o

desenvolvimento cultural e esportivo dos centros urbanos mais os ideais da Revolução 63 HOBSBAWN, Eric. A Era dos Impérios. São Paulo: Paz e Terra. 7ª Ed. 2002. p. 287.

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Francesa, consegue inserir-se em atividades outras que as tarefas domésticas. Lembrando

que para famílias de classe média o trabalho feminino representaria um empobrecimento da

família, o que restava a essa mulher, no princípio dos tempos modernos, era circular pela

cidade, conhecendo os novos espaços que eram criados, para encontros sociais e culturais.

O mercado de trabalho também começa a se desenvolver para as mulheres. Com o

advento do telefone e suas centrais, o trabalho de telefonista foi direcionado para as

mulheres, assim também como o mercado artístico prontifica-se a recebê-las. No trabalho,

embora houvesse ambientes que a presença masculina fosse única, ainda não havia trabalhos

que pudessem ser só femininos, sem a interferência masculina.

Dessa forma, temos uma interação dos corpos masculino e feminino fora dos

limites da casa, o que representa uma conquista para as mulheres. Mesmo que mal

remuneradas, comparadas aos homens, estas conseguem complementar a renda da família e,

também, bancar algumas próprias despesas.

Além do trabalho, outro meio que promovia a convivência entre homens e

mulheres, fora de casa, era a prática esportiva. O tênis, o golfe, e até mesmo o hipismo,

promovem um novo espaço a ser circulado pela mulher. A invenção do cinematógrafo

também representa uma ampliação do espaço que é conquistado a cada dia. A virada do

século XIX para o XX marca o trânsito do corpo feminino pela cidade, tornando-se esse

movimento marca sensível do século XX.

Já no Brasil, podemos dizer que manutenção do conceito de feminilidade e das

obrigações de mãe e dona de casa perduraram até o início do século XX. A mulher até então

não tinha a mesma influência do marido. Sempre considerada inferior ao homem, não

participava das decisões tomadas pelo dono da casa. Restava-lhe apenas o dever de obedecer

ao seu pai, ao seu marido ou ao seu tutor. Sua única opção era a de se tornar noviça, caso não

conseguisse um pretendente adequado a sua condição.

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As mulheres casavam-se muito cedo, o que de fato mudava era a pessoa a quem

devia obediência. Uma vez que seu trânsito pela colônia não era bem visto, só lhe restava ir à

igreja acompanhada. A rua era lugar de todos os vícios e perigos e também de mulheres

humildes que trabalhavam como vendedoras para conseguir algum dinheiro para ajudar no

sustento da casa.

O estudo era desencorajado, já que não ajudaria na execução de suas tarefas. Com a

vinda da família real e côrte portuguesa ao Brasil no final de 1807, inicia-se uma

modificação dos hábitos da colônia, um novo processo de urbanização. Assim, a vida da

mulher da elite começa a se modificar, embora a maior parte das práticas da sociedade

patriarcal tenham se mantido64.

A idéia geral que existe sobre a vida das mulheres no Brasil e na Europa, nos

séculos XVIII e XIX, muitas vezes não transmite uma idéia precisa sobre as dificuldades e o

sofrimento que as mulheres de fato sofriam.

Sobre a mulher no Rio de Janeiro no século XIX, encontramos textos descritivos

em diários de viagens, reunidos na coletânea de Miriam Moreira Leite, tratando sobre

diversos assuntos que concernem à vida feminina na capital e que provam a triste e injusta

condição em que a mulher brasileira encontra-se.

Nos relatos de E.C. e L.R. Agassiz, em 1865 é afirmado:

Efetivamente, nunca conversei com as senhoras brasileiras com quem mais de perto privei no Brasil sem delas receber as mais tristes confidências acerca de sua existência estreita e confinada. Não há só uma mulher brasileira, que, tendo refletidos um pouco sobre o assunto, não se saiba condenada a uma vida de repressões e constrangimento. Não podem transpor a porta de sua casa, senão em determinadas condições, sem provocar escândalo65.

64 CERDEIRA, Cleide Maria Bocardo. Os primódios da inserção sociocultural da mulher brasileira. Disponível em: http://unibero.edu.br/download/revistaeletronica/Mar04_Artigos/Cleide%20B%20Cerdeira.pdf p.3. 65 LEITE, Miriam Moreira (org). A condição feminina no Rio de Janeiro – Século XIX. São Paulo: HUCITEC, 1984. p. 74.

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Segregada do restante da sociedade, a mulher não necessitava de conhecimentos

específicos, cabendo-lhe apenas o conhecimento do francês e do piano para entreter o meio

familiar. Embora começasse a freqüentar alguns ambientes, como o teatro, e fosse alegre e

delicada, a senhora ainda demonstrava sua superficialidade, resultado de sua educação.

Quando falamos dessas senhoras com poucos direitos, falamos de uma pequena

parcela da população feminina, que possuía escravos a sua volta para executar grande parte

dos afazeres domésticos, incluindo, às vezes, o cuidado com os próprios filhos. Dessas

famílias abastadas apenas um grupo menor recebeu uma educação mais elaborada e, de fato,

podem ser consideradas educadas. Famílias semelhantes às famílias americanas ou inglesas

são raras, nas quais as mulheres tenham um pouco mais de estudo.

As meninas de famílias abastadas aprendem a ler e a escrever nas poucas escolas

públicas ou colégios para meninas que existem no Rio de Janeiro. Além das letras e de

economia doméstica, as meninas também aprendem a fazer trabalhos manuais, como

bordado e costura. Na coletânea organizada por Leite, encontramos o seguinte relato:

Assim que conseguem pronunciar algumas frases em francês e arranhar piano, está terminada sua educação. Saem da escola e são moças, que os pais, com o máximo cuidado, preservam de qualquer contato com os homens66.

A partir da segunda metade do século XIX, o número de escolas em todo o Brasil

começa a crescer. Com o fim do império, todo o sistema educacional brasileiro foi

transformado. Os métodos do regime monárquico foram descartados, em favor de planos

mais coerentes com as idéias e os princípios republicanos. O novo sistema escolar passa a ser

constituído de um curso primário, um secundário, um superior e um de educação especial.

Nos municípios, é criada a Diretoria da Instrução Pública responsável pela área

administrativa. 66 LEITE, Miriam Moreira (org). A condição feminina no Rio de Janeiro – Século XIX. São Paulo: HUCITEC, 1984. p. 85.

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As escolas femininas têm somente professoras, enquanto que as escolas para

meninos admitem professores de ambos os sexos. Existe uma grande diferença na formação

dessas crianças.

Aos meninos dão o direito de completarem seus estudos; às meninas, assim que

começam a falar um pouco de francês e ter algum conhecimento de música, os pais dão os

seus estudos como por acabados. Aos meninos cabe aprender química, história natural,

conhecimentos de trabalhos mecânicos e economia política, enquanto que jovens moças

ficam responsáveis por aprender línguas estrangeiras, um pouco de artes e trabalhos manuais

com agulhas.

De acordo com lei de 19 de abril de 1879, fazem parte da instrução as disciplinas

de desenho, canto, ginástica e costura simples para as moças. Essa mesma lei favorece ao

convívio de meninos e meninas na mesma instituição de ensino, muito embora os pais

evitem a todo custo o contato de suas filhas com qualquer homem. As escolas que possuíam

turmas de meninos e meninas juntos eram poucas, sendo em maior número os colégios para

meninos e colégios para meninas separados.

Nessas escolas públicas e privadas, poucas crianças pobres possuíam o direto de

freqüentar, criando-se, assim, uma imensa massa de jovens analfabetos que tinha como

maior grupo, o das jovens moças. Estas jovens enveredavam-se por diversos caminhos que

as levavam a toda sorte de trabalhos mal-remunerados.

Num país de cultura escravocrata como o Brasil, encontramos um número de

negros superior ao número total de brancos, e esse é o panorama racial em que encontramos

as principais cidades da República. Com a libertação dos escravos e a chegada de imigrantes

às terras brasileiras, o número de habitantes pobres que já era grande, ganha maiores

proporções.

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As mulheres, principalmente negras e mulatas, conseguem trabalhar como

vendedoras ambulantes, lavadeiras, empregadas e amas-de-leite. As mulheres que

conseguiam algum estudo conseguiam empregos como balconistas e professoras. Umas

poucas, com algum estudo e muitas idéias, assumiram a função de jornalista.

A pesquisadora e professora americana June E. Hahner, feminista, pesquisou não

só a mulher nos Estados Unidos, mas também na América Latina. No Brasil, por haver

poucas referências, Hahner publicou em 1976 o livro A mulher no Brasil que, de fato, é uma

coletânea de curtos comentários acompanhados de textos retirados de artigos de jornais e

cartas que documentam as características da vida das mulheres brasileiras desde o Brasil

colônia.

Ela afirma que a partir da segunda metade do século XIX, surgem os primeiros

jornais feministas no Brasil. Um dos primeiros jornais feministas era dirigido por Francisca

Senhorinha da Motta Diniz, que pregava como direito das mulheres uma educação melhor.

Para a diretora do jornal, a educação era o caminho para a independência feminina. Somente

com acesso a uma formação completa, a mulher poderia conseguir trabalhos mais bem

remunerados. Para as mulheres daquele tempo, dos poucos trabalhos que poderiam exercer,

o de professora era a ocupação mais fina.

O Sexo Feminino, jornal publicado em 1873, mostra claramente o sentimento e a

posição inferior das mulheres casadas no Brasil do século XIX. No extrato abaixo, observe o

sentimento de indignação diante do fato de que as mulheres não têm como se defender dos

maridos, que, por irresponsabilidade, colocam a perder os bens conquistados no casamento.

É inegável que a mulher (salvo poucas exceções) vive na mais completa ignorância de seus direitos, desconhecendo até aqueles em que a legislação do país a considera solidária – qual é a outorga na alimentação de bens imóveis Quantas mulheres casadas ignoram que o marido não pode dispor por maneira alguma de um imóvel do casal sem seu especial consentimento? [...] Quantas não vão por aí escrever por seu próprio punho uma sentença de condenação contra todo seu pecúlio, que tanto custou a ganhar a seus

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pais, mas que seus maridos esbanjadores comprometeram por dívidas que mais das vezes não foram contraídas em benefício do casal?67

Mais adiante, o texto diz o que de fato as mulheres naquele tempo desejam:

Queremos nossa emancipação – a regeneração dos costumes; Queremos reaver nossos direitos perdidos; Queremos a educação verdadeira que não nos tem dado afim de que possamos educar também os nossos filhos68.

Dentre as reivindicações feitas podemos encontrar uma que denuncia a condição

feminina de objeto de manipulação: “Queremos enfim saber o que fazemos, o porque

fazemos e pelo que fazemos; Queremos ser companheiras de nossos maridos e não

escravas”.

Num outro texto, intitulado Igualdade de Direitos, que tem a origem do mesmo

jornal, afirma o desejo feminino de derrubar os obstáculos sociais e morais que a velha

tradição estipulou para a sociedade. Os manifestos não são uma tentativa de reclamar

direitos iguais como se as mulheres tentassem alcançar a mesma posição dos homens. Existe

uma consciência sobre uma natureza sublime e superior feminina, que se completa com a

genialidade a ser desenvolvida com a ciência.

Cremos, com aquela boa fé que as nobres causas inspiram, que, esse ideal chegará mui breve à sua realidade, quando a mulher ilustrada e livre dos prejuízos e preconceitos tradicionais banir de sua educação as opressões e errôneos preconceitos como os que as cercam, e quando der pleno desenvolvimento a sua natureza física, moral e intelectual. Quando enfim, passeando de braço dado com o homem virtuoso, honesto e justo no jardim da civilização espiritual, subir no Capitólio de luz para lá coroar a beleza efêmera de sua fronte, com o diadema imortal da beleza, da ciência e do gênio69.

67 HAHNER, June E. A mulher no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. p. 81. 68 Ibidem. p. 82. 69 Ibidem. p. 82.

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Em seguida, no mesmo texto, a imagem da Vênus de Milo é recusada, para que

uma outra face de Vênus possa tornar-se a verdadeira imagem representante da mulher.

Nós mulheres não queremos ser a Vênus de Milo, mas sim queremos ser a Vênus Urânia, para que possamos percorrer brilhantemente todos os círculos concêntricos que a atividade humana tem de descrever a aurora da vida da humanidade e social da sociedade70.

A Vênus Urânia mencionada no fragmento acima e em O Banquete de Platão é a

inspiradora do amor etéreo, superior, que leva ao amor eterno. É o símbolo da sublimação

do sentimento amoroso que a mulher pode representar. É baseada em todos os papéis que a

mulher, naquele momento histórico, pode representar na vida do homem e da sociedade que

a autora do manifesto chega ao final de seu texto justificando a igualdade de direitos:

[...] lembrando-se que ela como mãe representa a santidade do amor infinito: Como filha, representa a ternura angélica; como esposa, representa fidelidade imortal, como irmã a dedicação e a amizade mais pura; portanto, as qualidades que foram distribuídas pelo Criador Supremo provam superioridade e não inferioridade e que a igualdade de ação deve ser posta em prática pelos senhores que proclamam a igualdade71.

Raimundo Teixeira Mendes, líder do Apostolado Positivista Brasileiro, A mulher.

Sua preeminência social e moral, segundo os ensaios da verdadeira ciência positiva72,

reforça a natureza pura da mulher, argumentando com isso que seu lugar é o lar e que ela

deva ser poupada do mundo considerado perverso. A igreja positivista, assim como a igreja

católica, ajudou a fortalecer a imagem da mulher como imagem da mãe Jesus Cristo, e como

tal devia apenas se ocupar com a família e não se deixar contaminar com o que o mundo

poderia oferecer de impuro.

70 HAHNER, June E. A mulher no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. p.83. 71 Ibidem. p. 83. 72 Ibidem.

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Talvez seja por toda essa cultura religiosa que certas reivindicações das feministas

sejam consideradas desnecessárias. No pensamento positivista brasileiro, imagens de

mulheres na rua, com tarefas outras que o trabalho honrado, choque a opinião pública e

sejam consideradas como sinais de degeneração da sociedade tradicional.

2.1 Figurações do feminino

Com as traduções das obras de Oscar Wilde, João do Rio conheceu e traduziu em

1905 a peça de teatro Salomé. Na peça teatral, Salomé tem uma natureza envolvente e uma

coreografia vertiginosa e misteriosa. A Salomé de Wilde, resgatada por Gustave Moreau e

Huysmans, do Novo Testamento, tem uma natureza envolvente e uma coreografia que

desperta, em João do Rio, o encantamento pelo corpo feminino, marca que pode ser

observada ao longo de sua produção de contos e, também, em sua admiração por grandes

atrizes de teatro.

A vertigem causada pela dança da filha de Herodias na obra de Wilde, fez com que

fosse considerada femme fatale por encantar, envolver e representar o perigo com sua

beleza. Assim como a serpente do paraíso, no Velho Testamento, e a sereia da mitologia, o

jogo de sedução encenado por Salomé desperta no corpo do outro desejos libidinosos que se

sobrepõem à razão, sendo responsável pela destruição do homem.

A dançarina bíblica inspirou inúmeros artistas de várias épocas, consolidando no

imaginário de muitas sociedades uma associação à idéia de sensualidade e erotismo. Dentre

vários artistas, tem relevância para esse trabalho o nome de Gustave Moreau, que, com sua

formação simbolista e talento, foi quem imortalizou Salomé para os decadentistas. Com a

sua pintura pôde transmitir a vertigem própria do Decadentismo. Huysmans, ao se deparar

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com a criação de Moreau, teve certeza que esta não deveria faltar à coleção de des Esseintes

em seu Às Avessas. Sendo Wilde leitor de Huysmans, ele não poderia deixar de mencionar

Salomé: escreveu uma peça teatral sobre a princesa bíblica, também inspirada no quadro

envolvente de Gustave Moreau.

A mulher, na virada do século, passa a exercer um papel ativo não só na sociedade,

mas também na construção de sua nova identidade, deixando de ser somente objeto de

desejo masculino. Salomé, assim, traz uma nova referência ao corpo feminino diante da

modernidade, na qual a mulher, assim como a própria cidade, é símbolo da evolução dos

tempos. Tanto nas crônicas apresentadas nas revistas da época, Fon-Fon!, Para Todos...,

entre outras, quanto nas crônicas publicadas pelos jornais, como nas de João do Rio, a

mulher aparece na paisagem da metrópole como elemento anunciador da modernização.

Juntamente com o automóvel, a luz elétrica, o cinematógrafo, a reforma da cidade, a mulher

renova-se, ganhando o direito de circular pelas ruas, mesmo que acompanhada por uma aia,

e também ganha novas possibilidades de trabalho.

Com os novos tempos, o corpo feminino ganha espaço e poder. Salomé torna-se

ícone representativo do corpo feminino na metrópole que surge. Ela, mulher que sai de casa,

e deixa de ser um corpo passivo, ganha as ruas e a literatura, onde exerce sua força de

mudança, de encantamento e de destruição.

A sensualidade e o erotismo despertados por Salomé têm raízes num momento

anterior ao Decadentismo. Na literatura que precede o momento Simbolista decadente,

encontramos um forte erotismo conjugado com indecência. Nos primórdios do Iluminismo

tudo era questionado, nada era sagrado. De acordo com Claudia Oliveira73, pesquisadora, a

produção erótica nesse período iluminista, o libertino poderia ser considerado filósofo, uma

73 OLIVEIRA, Claudia. Pérfidas Salomés: o tema do amor na estética simbolista e as novas formas de amar na belle époque carioca – Fon-Fon! e Para Todos...(1900-1930) », Número 7 - 2007, Nuevo Mundo Mundos Nuevos.

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vez que a literatura apresentada por Diderot, Verlaine, Marques de Sade e outros,

representava as reflexões em torno do Iluminismo.

O erotismo e perversão simbolizam a perda da razão e do controle, as quais

quebram as regras do jogo social, apresentando-se como ameaça constante à ordem social

instaurada, que zela pela manutenção da humanidade. Ao ceder aos impulsos naturais, o

homem presente na literatura erótica-filosófica, contesta a necessidade do jogo social,

afirmando que, ao ceder ao apelo da própria natureza, estará entrando em harmonia com o

mundo. Uma vez colocada à luz da razão a idéia, o autor da obra erótica estava definido

como livre pensador, “a libertinagem tornava-se, assim, uma forma de livre pensamento”,

afirma Oliveira74. Diante desse panorama de libertinagem no século XVIII, é que se

cristaliza a idéia de perversão a qualquer forma de manifestação de amor que não seja com

propósitos dignos, como o da procriação.

Ainda segundo Oliveira, é nesse contexto em que a envolvente dançarina oriental é

pintada por Gustave Moreau. Por sua natureza lasciva e sem limites, é considerada a femme

fatale, que evocava um desejo baseado num conjunto de imagens de prazer, beleza e dor.

Em uma lógica às avessas, elementos que antes estavam associados com sentimentos e atos

positivos, como graça e beleza, que eram relacionados com a sublimação do espírito, agora

se tornam instrumentos mortais para o homem. A cabeça de João Batista, que, na Bíblia é

apresentada a Salomé numa bandeja, representa o rompimento com a tradição que excluía a

mulher da sociedade75.

O uso de referências mitológicas nos contos de João do Rio chama a atenção para

um aspecto curioso sobre o caminho que essas referências tomam no texto moderno. Nele,

essas referências artísticas, de natureza diferente da literária, surgem no texto enriquecendo 74 OLIVEIRA, Claudia. Pérfidas Salomés: o tema do amor na estética simbolista e as novas formas de amar na belle époque carioca – Fon-Fon! e Para Todos... (1900-1930) », Número 7 - 2007, Nuevo Mundo Mundos Nuevos. 75 BOUÇAS, Edmundo. Notas de aula.

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a produção com suas simbologias. Interessantemente, símbolos, idéias e temas saídos da

literatura concretizaram-se em outras formas de arte, como a escultura e a pintura. Advindas

das letras, essas idéias retornam ao texto, desenvolvidas e enriquecidas na forma pela arte,

seguindo o mesmo caminho, mas no sentido inverso: se antes a idéia saía do texto, agora

retorna à escrita como fonte de inspiração.

Salomé, personagem recorrente neste trabalho, sendo uma personagem bíblica –

advinda da literatura –, serviu como fonte de inspiração para diversos artistas de diferentes

momentos históricos, retorna à literatura decadentista pelos quadros pintados por Moreau.

Graças aos traços e a atmosfera criada pelo pintor, a princesa bíblica retorna ao texto no

drama de Wilde, no romance de Huysmans, na ópera de Strauss, e disfarçada nos corpos

femininos celebrados por João do Rio.

Por abarcarmos uma pequena parte da produção de contos do cronista carioca,

tratemos agora as referências artísticas mencionadas em alguns dos contos do autor. Os

contos estão presentes na coletânea A mulher e os espelhos.

Em A menina amarela, surge uma menção à

escultura Perseu de Benvenuto (fig.3). No conto, a obra é

mencionada como referencial de beleza masculina, mas uma

observação mais detalhada aponta para o fato de Perseu ser o

único a conseguir matar Medusa decepando a cabeça da

górgona. A estátua representa o jovem segurando a cabeça

recém cortada de Medusa. Essa imagem de Perseu não pode

deixar de ser associada à imagem de Salomé. Se na pintura

de Moreau, Salomé conseguiu a cabeça de João Batista, representante de uma tradição,

Perseu representa o homem que conseguiu destruir a mulher fatal. A beleza do jovem Perseu

Fig.3

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A indumentária de Salomé, nos quadros de Moreau, nos faz refletir sobre a

importância da composição da imagem feminina e sobre sua relação com o encantamento do

outro. Recoberto por jóias e tecidos finos, o corpo da mulher é enriquecido, não só pelas

peças, mas também pelos ideais que a envolvem. Os adornos femininos, o artifício utilizado

para estender o corpo da mulher, são uma característica decadentista importante para o

desenvolvimento de nossa análise posterior.

Para Baudelaire, os adornos femininos nada mais são que extensões do próprio

corpo feminino. A maquiagem, a roupa, os acessórios, como jóias e afins tornam-se

elementos importantes e necessários para a contemplação da beleza feminina. Sendo

considerada como símbolo do natural e, por isso, rejeitada como paradigma decadentista, a

mulher, para ser aceita e admirada, deve ser adornada e possuir uma atitude que a diferencie

do modelo feminino tradicional.

Para Baudelaire, o artificial deve ser celebrado, pois, a natureza não ensina nada ao

homem. Exemplificando com o antropofagismo, ele afirma que a natureza é influência

negativa sobre o homem. Baudelaire afirma, também, que os bons sentimentos do homem

são artificiais porque estes foram ensinados ao homem através de deuses e profetas.

Assim, com o valor atribuído a sua artificialidade, justificam-se o brilho e o

glamour das grandes atrizes que surgem, como Sarah Bernard, tornando-se ícones de beleza,

talento e encanto para a multidão e também para João do Rio.

O olhar da Medusa e a dança de Salomé não são os únicos elementos sedutores. A

indumentária e os adornos característicos da toalete fazem parte do jogo de sedução da

femme fatale. A aparência torna-se, neste momento histórico, um elemento importante para a

caracterização da identidade moderna feminina.

Com a atenção voltada à questão estética e ao uso de artifícios, o artista

decadentista celebra, em sua obra, a beleza que a artificialidade pode promover. Sendo

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assim, a moda, não só a dandy, mas também a feminina tornam-se um aspecto importante

para a análise dos contos, apresentada mais adiante.

Na concepção da mulher da passagem dos séculos XIX para o XX, a moda exerceu

uma grande influência, permitindo uma liberdade nas formas que, até então, eram

aprisionadas pelo antigo e tradicional pensamento masculino.

A moda, de uma forma contraditória, propõe uma liberdade através de uma

identidade construída sobre sua insígnia mutante. Além das mudanças constantes de seus

conceitos sobre o que é belo, através dos tempos, a identidade proposta ao indivíduo é a

mesma proposta para o seu grupo. Numa tentativa de se destacar um indivíduo, o que

acontece é uma uniformização do grupo, perdendo-se, assim, qualquer traço particular,

característico de identidade.

Não só as jóias, mas também o restante da indumentária trazem consigo, além da

extensão do corpo feminino, uma extensão do pensamento de sua época. A moda, que neste

período de transição de séculos, traduz a quebra com antigos modelos, e, ainda sim, herda

características do momento anterior. A cada novo tempo, a moda transforma sua essência

adaptando-se a suas questões temporais, evolutivas e históricas. Suas formas são

transformadas, adaptadas, enfim reestruturadas. Nesse sentido, entendemos a moda,

conforme afirma Barthes78 , como sendo uma escritura sobre o corpo.

A moda, ou o figurino, como João do Rio afirma, em seu Psychologia Urbana,

atenta para a nova era, que se faz de ilusão, de artificialismo e de uma pintura que cobre

paredes, papel e almas. Para ele, é uma nova era que irá perdurar até o fim do mundo. O

78 BARTHES, Roland. Apud ABRANTES, Samuel. Erté e a Representação Estética do Feminino: Ambivalência, Rasura e Descontinuidade. IN: BOUÇAS, Edmundo; CORREA, Irineu E. Jones. (org.). O labirinto finissecular e as idéias do esteta (ensaios críticos). Rio de Janeiro: 7Letras, 2004.

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figurino, que toma proporções maiores no século anterior, testemunha a história, servindo ao

homem como documento histórico79.

Ainda em seu Psychologia Urbana, João do Rio chama atenção para a importância

da toalete feminina, dizendo que, quanto mais elegantes e luxuosas as mulheres são, mais

valor elas têm para a sociedade.80

Segundo Abrantes81, o modelo de beleza feminino mudou através dos tempos

adaptando-se ao estilo arte novista, no final do século XIX, com linhas curvilíneas e longas.

A silhueta feminina aproxima-se de um S, que lhe ressalta o poder envolvente. A mulher,

neste período, é eleita como um dos símbolos da moda.

O vestuário feminino amplia, então, além das ideologias, o reflexo do somatório de

formas e signos, que pode ser reforçado ou suavizado, dependendo da época. O jogo de

mostrar partes do corpo, como o colo, braços e pernas, ínsita ao sensual e ao glamour,

também exercitado na maquiagem. Esse jogo pode ser observado nos quadros de Gustave

Moreau: Salomé é mostrada, ora desnuda de suas sedas, com jóias, ora vestida num jogo de

mostrar partes do corpo, como pernas, braços e o colo. A elaboração da imagem feminina de

Salomé repete-se nas figuras femininas construídas por João do Rio em seus contos. No luxo

e poder de suas personagens encontramos a semelhança com Salomé.

Nos quadros pintados por Gustave Moreau, podemos encontrar Salomé pintada e

sempre adornada, e, nos quadros principais, aqueles mencionados na obra de Huysmans, ela

é encontrada em sua forma mais envolvente, com véus, pinturas no corpo e jóias.

Nos contos de João do Rio, por exemplo, em Penélope, a rotina da jovem viúva,

Alda Guimarães, é passear de automóvel e ir às modistas. Quando está na rua e vê o jovem

79 RIO, João do. Psychologia urbana. Rio de Janeiro: Garnier. 1911. p. 68-74. 80 Ibidem. p.75. 81 ABRANTES, Samuel. Erté e a Representação Estética do Feminino: Ambivalência, Rasura e Descontinuidade. IN: BOUÇAS, Edmundo; CORREA, Irineu E. Jones. (org.). O labirinto finissecular e as idéias do esteta (ensaios críticos). Rio de Janeiro: 7Letras, 2004.

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vendedor na loja, entra no estabelecimento para olhar alguns véus. Depois de encomendar

alguns, pede ao jovem para levá-los à sua casa. Lá, quando ele, ao manusear e admirar os

véus novamente, ela cria uma atmosfera com os tecidos estendendo a eles sua beleza.

Em A fada das pérolas, a atriz, mesmo fora do teatro, procura transitar maquiada,

com seus artigos extravagantes e jóias. Já em Uma criatura a quem não faltou nada, a

ausência de maquiagem e a simplicidade das roupas da personagem, ampliam a feiúra que

toma seu corpo com o passar do tempo e com a exploração do marido. Em Cleópatra,

Gladys Fire, não possuía muitos atributos físicos, de acordo com seu amante Raul, mas sua

apresentação e formação enriqueciam sua beleza.

2.2 A presença do feminino na obra de João do Rio

Trabalhando num recorte da obra de João do Rio, restringimos a alguns contos da

coletânea A mulher e os espelhos, o elemento escolhido para a análise pela qual o corpo

feminino, neste trabalho, a mulher, é apresentada. Nos contos desta coletânea, a mulher é

apresentada sob duas faces segundo o autor.

Em sua Carta Oferta, João do Rio explana sobre a natureza feminina e o

encantamento que ela exerce sobre o homem. Compara-a com deusas e com monstros. A

mulher tem o poder de salvar e de matar. Assim como a sereia e a harpia, elas podem seduzir

e destruir.

Ainda no mesmo texto, João do Rio afirma que os homens servem como espelhos

às mulheres. Muito além de um simples objeto de reflexão de imagens, o espelho é capaz de

refletir um estado mental, espiritual, uma visão com a perspectiva do próprio observador.

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Segundo João do Rio, assim como os espelhos podem distorcer a imagem refletida, os

homens também podem refletir uma mulher diferente. Dessa forma, a busca incessante da

mulher pela sua imagem verdadeira pode nunca acabar, considerando o fato do reflexo do

espelho variar de homem para homem.

Dentre as faces apresentadas, a escolhida para este trabalho é a face envolvente e

mortal por vezes, que devido a características estéticas e comportamentais, remete à Salomé

decadentista. É com base na semelhança com a princesa, que foram escolhidos para a análise

os contos A fada das pérolas, Cleópatra e Penélope.

Os títulos dos contos selecionados trazem à tona o corpo feminino. A fada das

pérolas, Cleópatra e Penélope são referências de uma idealização da figura feminina. Outros

contos de João do Rio também trazem em seus títulos uma referência à personagem

responsável pelo desencadear dos acontecimentos da narrativa.

As mulheres dos três contos analisados são diferentes entre si. Uma delas é atriz,

outra, uma jovem viúva e a última é amante de um grande empresário.

A fada, ser mitológico oriundo das culturas céltica e anglo-saxã, é responsável pela

a realização dos desejos de seus protegidos nos contos de fadas. No conto de João do Rio, a

atriz responsável pela interpretação da Fada das Pérolas, presenteia os filhos do carpinteiro,

exercendo também fora do palco o papel de fada madrinha e juntamente com o luxo de sua

toalete, mantém a imagem idealizada por Joana, mulher do carpinteiro.

Em Penélope, a personagem Alda Guimarães é comparada a esposa de Ulisses do

épico A Odisséia, de Homero. Na obra grega, Penélope aguarda fiel o retorno do marido da

guerra de Tróia, recusando qualquer pretendente e acreditando no retorno de Ulisses. Alda,

como a rainha, permanece intocada após a perda de seu marido, um militar de alta patente. A

relação de Alda e Penélope acaba quando a jovem viúva interessa-se por um rapaz, ainda

mais novo.

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Cleópatra, rainha do Egito antigo, é símbolo de poder e de sedução, é um dos

ícones da femme fatale. Assim como a soberana egípcia, Gladys Fire seduz. Como uma

soberana, Gladys tem o poder de decidir o fim de seus jovens amantes.

Outro aspecto, pertencente à natureza da femme fatale, é a inversão da posição dos

corpos. Nos três contos, o corpo desejante não é mais o corpo masculino. O homem deixa de

desejar e passa a ser um corpo desejado pela mulher. No conto Cleópatra, o jovem deixa

bem claro sua posição diante das investidas de Gladys, ele se deixa enredar pela americana, e

da mesma forma age o carpinteiro Serafim, em A fada das pérolas.

No desenvolver das tramas desses contos, a mulher demonstra de forma

interessante um contraste da imagem do corpo feminino nos textos de João do Rio, em

particular, o efeito que essa personagem feminina exerce em seu objeto de desejo. Nas

narrativas, encontramos imagens que transmitem delicadeza e refinamento, que, num

primeiro momento, não estariam diretamente relacionadas à morte ou aos sentimentos

mórbidos. Uma vez compreendido o momento decadentista e suas influências sobre João do

Rio, essa relação entre beleza e a destruição torna-se compreensível.

Em Penélope, a jovem Alda Guimarães, viúva, interessa-se por um jovem vendedor

de uma loja de modas, pelo qual perde o sono, e faz o que sua sensatez, para a época,

permita não apenas o flerte, mas o encontro sensual. Em Cleópatra, o jovem Raul Guimarães

envolve-se com uma americana excêntrica e envolvente; e, em A fada das pérolas, o

carpinteiro Serafim ao começar a trabalhar no teatro para melhorar os rendimentos da

família, relaciona-se com a atriz do espetáculo. Nesses dois contos, a relação com essas

personagens femininas levam os protagonistas a sua própria destruição, anunciando nessas

encenações a dança de Salome.

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Em A fada das pérolas, Serafim é um jovem carpinteiro português que chega ao

Brasil para tentar uma vida melhor com sua esposa, Joana, e seu filho. Em casa, Joana

trabalha como lavadeira e, com o passar de alguns anos, o casal tem mais filhos.

Mesmo com muito trabalho, Serafim aceita um trabalho no teatro para ganhar mais

dinheiro e, lá, conhece uma das atrizes do espetáculo em cartaz. Serafim envolve-se com a

atriz Maria do Carmo, responsável por interpretar a Fada das Pérolas. Aos poucos, Serafim

sofre o desgaste de manter dois trabalhos, seu casamento e a relação com a atriz. Sem tempo

para dormir e exausto, Serafim adoece e falece depois de estar à disposição dos desejos de

Maria do Carmo, que, com sua morte, parece sofrer com a perda do carpinteiro.

A atriz que, no conto, é apresentada sempre simpática e coberta de jóias, apresenta-

se, ao final do conto, despida de seus luxos diante do fim trágico de seu amante. Ao longo do

conto, o narrador descreve a visão de Joana, esposa de Serafim, sobre Da. Maria do Carmo.

A visão de que a atriz fosse uma entidade superior, juntamente com seu amor incondicional

pelo marido, fez com que Joana permitisse o caso de Serafim.

Interessantemente, a narrativa, em momento algum, descreve características físicas

da personagem Maria do Carmo. Ao contrário da descrição, por vezes minuciosa, de Joana e

de Serafim, o que de fato é apresentado pelo narrador são as jóias, as plumas, a maquiagem e

toda sorte de luxos que a atriz pudesse dispor.

Enfim, a descrição de seus artifícios em consonância com sua residência, que, ao

olhar da lavadeira, parece um palacete, com sedas e objetos em ouro, faz lembrar a imagem

de Salomé no palácio, pintada por Gustave Moreau. Na passagem em que a esposa apronta o

marido e pensa como deve ser o seu encontro com a atriz, o narrador revela:

- Faze uma boa janta. Ela suspirou: - Hás de vir com fome.

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Um silêncio angustioso caiu. Ele era bom, não lhe queria mal. Apenas nos seus olhos, Joana via a Fada das Pérolas com sua nudez, as suas jóias.82

O corpo nu, sustentando e ostentando a riqueza e beleza do artifício é característico

do imaginário decadentista. A beleza de Maria do Carmo jaz em seus adornos e riqueza. O

fim de Serafim só reforça a característica de femme fatale, de Salomé que a atriz encarna.

Quando surge o corpo morto de Serafim, e Maria do Carmo chega descaracterizada, com os

cabelos despenteados, por exemplo, é recebida pela esposa do carpinteiro de forma

inesperada.

- Senhora dona Maria, o homem morreu. Para que quer o cadáver? A Fada das Pérolas recuava, a dor espetaculosa suspensa. - Mas o que é isso, Joana? Está louca! - Há outros homens. Vá matá-los. Esse não presta mais. -Joana!83

Está claro, na mente da esposa, a responsabilidade da atriz com a morte de seu

marido Serafim. A consciência de que Maria do Carmo encarna uma femme fatale é

colocada de forma clara pelo narrador/autor, de acordo com o trecho acima citado.

O narrador deixa clara a personalidade de Serafim, de que ele não era um homem

conquistador, mas que se deixava conquistar por vaidade. Assim como Raul também

permitiu a aproximação de Gladys.

Essa informação, disponível no início do conto, reforça a natureza envolvente da

atriz e a sua responsabilidade diante do acontecido. A própria postura da atriz, ao presentear

os filhos do carpinteiro e dar a um deles uma conta no banco, demonstra a consciência de sua

culpa, como que, através de presentes, pudesse atenuar o sofrimento da pobre família, ou

também como forma de sedução da família do carpinteiro.

82 RIO, João do. A mulher e os espelhos. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca. 1990. p.69-70. 83 Ibidem. p.72.

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Outro fato que chama atenção, na relação de Serafim e Maria do Carmo, é a falta

de interesse da parte dele. Em nenhum momento do conto encontramos menção a algum

sentimento de carinho dele em relação à atriz. Da mesma forma, Raul Guimarães se

comporta em relação à Gladys Fire, jovem americana com quem se envolve em Cleópatra.

Neste conto, o jovem retorna ao Brasil após a morte de seu pai. Com sua herança,

perde a motivação de trabalhar e aproveita o seu tempo aprendendo jiu-jitsu e japonês, que,

de repente, tornaram-se necessidades urgentes para o jovem, que já falava inglês, lutava boxe

e nadava.

Raul conhece Gladys Fire por intermédio de seu professor de japonês, que o alerta

sobre o perigo que a jovem oferece. Desprezando o conselho do professor e os atributos da

americana, Raul envolve-se com Gladys sem perceber. Seu relacionamento com Gladys é

descoberto por Harry Goldschimidt, diretor de uma empresa e de quem Gladys é amante. Em

um encontro casual, depois de afastados por um tempo, Gladys convida Raul para mais um

encontro. O jovem não resiste e vai. No dia seguinte ao combinado, um amigo de Raul vê

numa manchete de jornal a morte misteriosa de seu amigo.

Diferentemente do primeiro conto abordado, a personagem feminina dispõe de

algumas descrições físicas, ainda que imprecisas. Gladys Fire não possuía os mesmos

atributos físicos que encantavam Raul. Ele gostava de mulheres loiras e fortes. Ela, morena,

pequena e frágil era dona de uma sensualidade terrível, ardente e voraz. Quando foi

contrariada por seu amante e este aparece morto, foi considerada suspeita de tê-lo matado.

A morte misteriosa de um amante abre margem para comentários e receios de

outros rapazes em relação à moça. No seu desejo e poder está a sua caracterização de

Salomé. Constatada a traição, ou insubordinação de seu amante, Gladys encarrega-se do

destino trágico do mesmo. Momentos antes de apresentar a morte do protagonista, o narrador

descreve Gladys.

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Na tarde do mesmo dia, Justino Gouveia jantava num dos restaurantes de luxo, quando viu entrar maravilhosamente vestida e pálida Gladys Fire. Acompanhava-a o velho truster Goldschimidt, de casaca. Gladys parecia vestida de lhama d’ouro. O seu corpo flébil dançava dentro do fulgor.84[...]

A morte do rapaz relaciona-se assim, a esses belos adornos e a dança que o corpo

feminino figura na cena descrita.

O narrador mostra sua consciência da alienação de Raul, evidenciando, com algum

humor, as atitudes que o jovem deveria ter diante do surgimento inesperado da americana em

sua cama.

[...] Se Raul tivesse lido muitos livros teria deixado o leito e, abrindo as janelas, exigiria explicações. Mas não lera. O seu movimento animal foi corresponder ao abraço. E, quando a mulher rolava um suspiro de fadiga, só então levantou-se e rindo, exigiu as razões da insólita aparição.85

Raul, com sua superficialidade, demonstra-se um representante de uma classe que

se importa mais com seus prazeres do que com assuntos sociais. O sentimento de urgência

em aprender uma nova língua e uma nova arte marcial está intimamente relacionado com a

necessidade da elite carioca de ostentar uma imagem superior. A superioridade nos novos

tempos é mostrada através do acúmulo de conhecimentos culturais.

O mesmo destino trágico não tem o jovem vendedor em Penélope. O jovem,

descrito como tendo alguns atributos do São Sebastião, pintado por Guido Reni, acaba por

envolver-se pelos artifícios de Alda Guimarães. Alda, jovem viúva séria, por quem nunca se

interessou após a morte do marido, vê-se atraída por um jovem rapaz chamado Manuel

Ferreira.

Alda sai à modista e, no caminho, interessa-se por alguns véus, descritos como

“uma curiosa e linda série de véus”86 e, na loja, é atendida pelo vendedor que,

84 RIO, João do. A mulher e os espelhos. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca. 1990. p. 112. 85 Ibidem. p. 110. 86 Ibidem. p. 136.

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imediatamente, lhe desperta sentimentos que nunca tivera antes por outro homem. A partir

do primeiro encontro, Alda cria estratégias para reencontrar Manuel novamente. Quando o

rapaz chega a sua residência ela é responsável por criar uma atmosfera envolvente, que os

leva a consumarem o desejo. Alda pede para ver sua encomenda, os lenços que comprou, e

no examinar as peças, ela simula, à meia luz, uma dança sensual com os movimentos dos

véus.

Na descrição do narrador, a residência de Alda é um palacete, devido aos fartos

rendimentos de seu marido, que era general. No seu interesse pelos véus, naquele dia,

somados ao seu desejo e seus artifícios, tendo como cena o palacete, encontramos,

novamente, uma relação com a princesa oriental.

Assim como a atriz Maria do Carmo, Alda está cercada de luxo, e sua residência

assemelha-se a um palácio, de acordo com os narradores. Uma característica que está

presente nos três contos é a inversão dos papéis dos corpos, masculino e feminino. Neles, os

corpos femininos assumem um papel ativo na conquista dos homens. Serafim acusa a atriz

de persegui-lo; Raul acorda certo dia com Gladys em sua cama; e, Manuel é seduzido por

Alda.

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CONCLUSÕES

Ao longo deste trabalho, abordamos inúmeros aspectos e elementos pertencentes ao

Decadentismo, assim como sua influência sobre o jornalista e cronista João do Rio, alcunha

do carioca Paulo Barreto. Discutimos, neste trabalho, a caracterização da mulher na

metrópole carioca e sua representação de elemento do mundo moderno, que se instaura na

passagem do século XIX para o século XX, precisamente na Cidade do Rio de Janeiro.

Essa modernização não foi exclusiva das grandes capitais européias. Reflexos das

Revoluções Francesa e Industrial, a modernização chega ao Brasil por necessidades

econômicas para se restabelecer na área comercial. Muitas das novidades, culturais, vieram

por intermédio de turistas brasileiros, que costumavam passar suas férias na capital francesa,

e também por correspondentes de jornais, que procuravam manter a elite brasileira

atualizada do que acontecia no velho mundo.

Mergulhado nesta transformação da Cidade do Rio de Janeiro, João do Rio, que por

admirar sua cidade, homenageia-a em seu mais famoso pseudônimo, registrou em suas

reportagens, contos e crônicas a transformação do Rio segundo seu olhar crítico,

influenciado não só pela sua formação positivista, mas também por escritores europeus de

identidade decadentista.

Esse conflito entre sua formação e o seu gosto artístico, exemplifica o paradoxo

que tipifica o homem decadentista. Seu trabalho, como crítico de arte, denuncia sua flanerie

e seu dandismo. Seus contos revelam a sua visão apurada sobre o novo cotidiano carioca.

Seus registros jornalísticos trazem à tona o Rio de Janeiro que a elite gostaria de esquecer e,

além disso, sua escrita ágil contribuiu para a renovação do jornalismo carioca.

Para compreender o Decadentismo e os autores que influenciaram o escritor

carioca, fizemos uma visitação às bases históricas e filosóficas desse movimento artístico,

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que se iniciou no século XVIII, passou pelo XIX e refletiu nas produções artísticas de vários

artistas e escritores. João do Rio foi influenciado indiretamente, ou diretamente, por autores

decadentistas europeus como Joris-Karl Huysmans, Jean Lorrain e Oscar Wilde. No Brasil,

João do Rio torna-se um dos representantes desse tipo de escrita.

Ao observar a cidade carioca e seus habitantes, João do Rio percebe e reflete o

surgimento de novas tecnologias e de novos hábitos. Assim como o flâneur e o dandy, o

cronista nota, nos detalhes da cidade nova, a beleza que o progresso traz e representa,

celebrando o barulho dos automóveis, o brilho das lâmpadas elétricas, a nova arquitetura e o

incremento da produção artística.

No meio do turbilhão de novidades, teatros e confeitarias, surge uma nova mulher,

que se destaca por uma nova postura. Essa mulher está presente em um alguns contos do

autor. A mulher dos tempos modernos ganha novos espaços, novas formas, freqüenta clubes,

teatros, conferências e também vai a modista. Mais independente e forte que suas

antecessoras, a mulher moderna decide abandonar uma postura submissa para assumir os

próprios desejos.

Realçado pela moda vigente, o corpo feminino chama atenção nas ruas e nos

palcos. Na biografia de João do Rio é relatada sua admiração por belas atrizes famosas. Sua

amizade com algumas delas demonstra sua atração pelo glamour dessas personalidades

femininas, que está representado na produção de contos do escritor carioca.

A moda ganha novos contornos, juntamente com a arte e a decoração. O art

nouveau chega ao Brasil através de revistas, objetos decorativos e as novas formas

arquitetônicas da cidade. Esse estilo mudou o layout de uma urbe de ruas estreitas e sem

esgoto para uma cidade moderna, de ruas largas, iluminada e seguindo os moldes

parisienses.

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A arte nova também traça contornos na toalete feminina, realçando curvas e linhas.

O corpo feminino ganha uma característica envolvente e sedutora, que se enriquece com as

cores da maquiagem e o brilho de jóias.

O delírio causado pelo corpo que encanta e anuncia sua própria libertação

diferencia-o do corpo que somente se recusava a servir a uma antiga tradição.

A semelhança desta mulher do início do século XX com a personagem bíblica

Salomé é o ponto analisado em três dos inúmeros contos de João do Rio. Os contos

selecionados foram retirados da coletânea A mulher e os espelhos: A fada das pérolas,

Cleópatra e Penélope. Além desses três contos, outros foram mencionados para exemplificar

idéias trabalhadas ao longo desta dissertação, como a da celebração da vida moderna através

do conto A mais estranha moléstia, da coletânea Dentro da Noite.

A caracterização das personagens, nos três contos escolhidos, remete, através da

toalete e de suas atitudes, a Salomé decadentista, celebrada por importantes escritores do

movimento. A princesa, que dançando para o padrasto, exige a cabeça de João Batista, torna-

se símbolo de uma mulher fatal. Assim como a princesa, as personagens femininas desses

contos assumem uma postura de corpo desejante, e não de corpo desejado. Nessa inversão de

posições dos corpos, masculino e feminino, jaz o rompimento com uma tradição repressora

da mulher. Nesse rompimento, através do olhar de João do Rio sobre o corpo feminino,

notamos essas suas escritas como uma caracterização da essência do moderno na capital do

Brasil daqueles anos.

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