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Estilos da Clínica, 2003, Vol. VIII, n o 15, 140-159 140 Artigo A INFÂNCIA QUE INVENTAMOS E AS ESCOLAS DE ONTEM E DE HOJE 1 L eandro de L ajonquière Psicanalista, professor livre-docente da Universidade de São Paulo, co-coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais sobre a Infância (LEPSI) do IP-USP/FE-USP. H oje em dia, os debates pedagógicos não mais ignoram a polêmica tanto histórica quanto so- ciológica aberta pelo trabalho pioneiro de Philippe Ariès sobre o aparecimento do “sentimento de in- fância”. De fato, se a infância, seja o que ela for, é uma invenção societária, com data de aparição mais ou menos certa, então, ela bem pode deixar de exis- tir num segundo momento histórico. Assim, suce- dem-se teses e antíteses sobre a origem e os ditos fatores sociais responsáveis tanto pelo surgimento quanto pelo desaparecimento da infância ou, se pre- ferirmos, das infâncias, no plural. No entanto, não vamos nos deter, neste ensaio, nos detalhes desse debate que perpassa as fronteiras dos estudos históricos, sociológicos e pedagógicos. Apresentaremos, mesmo que sinteticamente, uma das formas possíveis de se operar um desloca- mento no interior desse mesmo debate, em torno da realidade da infância, graças à utilização de ferra- mentas conceituais construídas no interior de um raciocínio psicanalítico. Como assim também espe- Contribuição ao debate atual sobre a invenção e o desaparecimento da infân- cia graças a ferramentas conceituais psicanalíticas. Infância; modernidade; instituição escolar THE CHILDHOOD WE INVENT, AND THE SCHOOLS FROM YES- TERDAY AND FROM TODAY The present article is a contri- bution to the discussion about the invention and the disappe- arance of childhood due to the conceptual tools provided by psychoanalysis. Childhood; modernity; educational institution

A INFÂNCIA QUE - pepsic.bvsalud.orgpepsic.bvsalud.org/pdf/estic/v8n15/v8n15a11.pdf · Em suma, para refletirmos sobre a tese do desaparecimento da infância, propomos termos bem

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Estilos da Clínica, 2003, Vol. VIII, no 15, 140-159140

Artigo

A INFÂNCIA QUEINVENTAMOS E AS

ESCOLAS DEONTEM E DE HOJE1

Leandro de Lajonquière

Psicanalista, professor livre-docente da Universidadede São Paulo, co-coordenador do Laboratório de

Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionaissobre a Infância (LEPSI) do IP-USP/FE-USP.

Hoje em dia, os debates pedagógicos nãomais ignoram a polêmica tanto histórica quanto so-ciológica aberta pelo trabalho pioneiro de PhilippeAriès sobre o aparecimento do “sentimento de in-fância”. De fato, se a infância, seja o que ela for, éuma invenção societária, com data de aparição maisou menos certa, então, ela bem pode deixar de exis-tir num segundo momento histórico. Assim, suce-dem-se teses e antíteses sobre a origem e os ditosfatores sociais responsáveis tanto pelo surgimentoquanto pelo desaparecimento da infância ou, se pre-ferirmos, das infâncias, no plural.

No entanto, não vamos nos deter, neste ensaio,nos detalhes desse debate que perpassa as fronteirasdos estudos históricos, sociológicos e pedagógicos.

Apresentaremos, mesmo que sinteticamente,uma das formas possíveis de se operar um desloca-mento no interior desse mesmo debate, em tornoda realidade da infância, graças à utilização de ferra-mentas conceituais construídas no interior de umraciocínio psicanalítico. Como assim também espe-

Contribuição ao debateatual sobre a invenção e odesaparecimento da infân-cia graças a ferramentasconceituais psicanalíticas.Infância; modernidade;instituição escolar

THE CHILDHOOD WE INVENT,

AND THE SCHOOLS FROM YES-

TERDAY AND FROM TODAY

The present article is a contri-bution to the discussion aboutthe invention and the disappe-arance of childhood due to theconceptual tools provided bypsychoanalysis.Childhood; modernity;educational institution

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ramos poder observar, esta operação de deslocamento conceitualtem uma série de implicações para o debate educacional de nossosdias, e, em particular, para aquele que gira em torno da supostanecessidade de superarmos, graças à aplicação dos saberes científi-cos mais variados, a escola herdada – a dita tradicional –, ou seja,aquela que freqüentamos quanto pequenos e na qual certamenteainda operava, de diferentes formas e intensidades, algo disso quechamamos narrativa pedagógica moderna.

DA HISTÓRIA DAS MENTALIDADES ÀINSTITUIÇÃO DE UM SUJEITO NUMA HISTÓRIA

A psicanálise nos possibilita recolocar o debate sobre os sen-timentos, as representações, o surgimento da infância e seu declí-nio, num contexto outro, para além da clássica tensão entre biolo-gismo e culturalismo. Tanto num quanto no outro, uma vez que adeterminação jamais acontece no sentido forte do termo, não há lu-gar para se pensar as vicissitudes próprias da instituição de uma subje-tividade.

Não é gratuito falarmos de subjetividade. O debate inauguradopor Ariès padece de sua própria marca de origem, qual seja, a idéiade mentalidade. Devemos aos Annales a tese de que nas situaçõeshistórico-sociais opera um conjunto inorgânico de conteúdos men-tais, além das idéias esgrimidas de forma explícita e sistemática nasclássicas histórias oficiais. A assim chamada história das mentalidades,porém, não pode pensar a irredutibilidade das experiências históri-cas, uma vez que supõe uma humanidade de base, substrato de umdevir temporal que não produziria seu próprio substrato.

Assim, permitimo-nos deixar de lado a idéia habitual de umadeterminação social ou biológica. Tanto numa quanto na outra,trata-se de uma subjetividade resultante de um processo de atu-alização de determinações prévias à emergência propriamente dita.Em suma, para refletirmos sobre a tese do desaparecimento dainfância, propomos termos bem claro que cada situação engendra,institui, determina ou estabelece de forma inevitável sua subjetivi-dade. Ou seja, o ato de determinação marca e significa. Ele é efeitode discurso que se tece junto à matéria-prima inconclusa a ser de-terminada.

Justamente, é nesse ponto que certo percurso pela psicanálisepermite demarcarmos um divisor de águas.

A tríade lacaniana Real, Simbólico e Imaginário possibilita insti-tuirmos a tese seguinte: o homo sapiens nasce incompleto, mas toma-

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do num impulso à complementação biologicamente impossível.O caráter incompleto da matéria-prima biológica é real, en-

quanto a ânsia de totalidade, a busca de complemento, faz pulsar oregistro que chamamos imaginário. O “complemento” é simbólico, eele é, precisamente, entre aspas, um complemento, uma vez que osimbólico é falho, inconsistente, e, portanto, em sintonia com certafilosofia, devemos dizer que o complemento simbólico é de fatoum suplemento que repõe uma outra vez a incompletude real.

Nesse sentido, o que faz do homem um homem não é apertinência genérica à espécie. A humanidade é instituída social-mente. Ela resulta de marcas práticas discursivas sobre a indeter-minação de base da cria sapiens. Onde se dá a marcação por exce-lência é precisamente na sujeição da carne a uma genealogia, res-ponsável pelos três princípios básicos – o de identidade, o de dife-rença e o de causalidade – que dotam a palavra de seu poder “hu-mano”.

No entanto, cabe assinalar que a humanidade ou, se preferir-mos, a subjetividade instituída por discursos sociais nunca é exaus-tiva, uma vez que a instauração em si dos sentidos possíveis pro-duz, também, um avesso de sombra. Dessa forma, o “homem”instituído em situação social não se esgota na figura visível dosdiscursos, na série das representações: há sempre um a mais, umresto, isso que chamamos real. O “homem” sempre é descentradopor esse efeito excedente produzido pelo instituído, e, portanto, nointerior do campo psicanalítico fala-se em termos de um sujeito divi-dido, cindido, do desejo.

O postulado desse avesso de sombra é necessário para pen-sarmos as mutações da subjetividade instituída em situação social.Caso contrário, deveríamos recorrer a uma instância autônomacapaz de engendrar as mutações históricas e, assim, ficaríamos àmercê das garras de qualquer essencialismo platônico. Em suma, orecurso à psicanálise permite sustentar que as próprias práticas deprodução de subjetividade engendram também “o outro” da subjetivi-dade instituída, ou seja, o real, capaz de alterá-la, bem como dealterar também o laço social entre os “homens”.

Por outro lado, cabe observar que a subjetividade não é nemuma substância nem uma estrutura dada para sempre. Ela é um con-junto de operações ou, se preferirmos, na trilha de Wittgenstein, jogos delinguagem instaurados na carne do sapiens por dispositivos sempresocietários. A simples presença desses dispositivos discursivos obrigao candidato-a-sujeito a produzir uma série de operações que cha-mamos subjetivas. Essa produção dará, precisamente, ao sujeito-efeito-ainda-por-vir a chance de outorgar sentido ao fato de habi-tar o laço social.

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Dessa forma, deixamos de lado a idéia de representaçõesmentais variáveis com o tempo, para, assim, fazermos avançar nos-so raciocínio graças à noção de um operador sujeito, tanto causa quan-to efeito discursivo, no âmago mesmo do laço social.

DA CHEGADA DE UM SER PEQUENO AOMUNDO

Quando um desses seres pequenos que temos o hábito intelec-tual de chamar criança chega de fato ao mundo, já faz um tempo queo adulto o habita. A chegada implica uma reordenação do mundo,já que a “criança”, não sendo um adulto em miniatura no real, instalauma diferença, que, feita tensão temporal, moverá o devir adulto. Todoadulto, quando se endereça a uma “criança”, demanda-lhe deixaratrás essa sua condição de infans – ou seja, o fato de ser privada depalavra –, derivada da própria presença antecipada do adulto nomundo. Mas o adulto sabe da impossibilidade de o pequeno sujeitoresponder no real à altura de sua demanda, ou seja, o adulto sabe dotempo próprio à espera.

De fato, não há vestígios de que os adultos, por mais “anti-gos” ou “primitivos” que tenham sido, não tenham posto as crian-ças numa certa quarentena do mundo adulto. Isto é importante deser salientado, pois, para além do debate sobre a natureza das re-presentações e sentimentos nutridos pelos adultos em diferentesépocas, o fato de se pôr esses seres pequenos numa certa quaren-tena seria uma espécie de constante histórica e sociológica. O mun-do adulto sempre prevê a doação de um certo tempo de espera,uma vez que sabe inconscientemente da impossibilidade do ato porparte dos pequenos. A exceção estaria limitada a episódios singu-lares, como, por exemplo, a educação dispensada a seus filhospelo médico e pedagogo alemão Daniel Gottlieb M. Schreber, daprimeira metade do século XIX, toda ela tomada na delirante exi-gência de que suas crianças viessem a responder sem resto algum àsua demanda. Ou, jogando um pouco com as palavras, lembran-do que assinalamos logo no início que todo discurso, além dosentido, produz também um avesso de sombra, então podemosdizer que o médico e pedagogo alemão exigia que seus filhos lherespondessem sem sombra de dúvida2. Onde o resto de respostaé sombra discursiva e, portanto, instala dúvidas na relação entre asgerações.

O adulto demanda à criança, enquanto dá tempo ao tempo,apostando no desdobramento da diferença posta na origem – en-

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quanto real – pela simples chegada aeste mundo da cria sapiens. Em suma,o adulto doa inconscientemente o tempode espera ao pequeno sujeito chegadoao mundo um tempo depois.

Já à criança, tomada nesse dis-positivo temporal, sempre lhe esca-pa o “ponto de vista” do adulto –isto é, o desejo que anima a demandaeducativa. Por essa razão, ela passa asupor inconscientemente ao adultoum saber fazer com a vida, ou seja, umsaber viver. Mais ainda, a criança passaa desejar saber esse saber suposto aos gran-des sobre o desejo e, dessa forma,às vezes de brincadeira, outras vezesnão tanto, faz questão, uma e outravez, de entrar num mundo semprevelho ou, se preferirmos, no mundodos velhos.

No entanto, quando por fimchega sua vez, a “criança”, agora jáconvertida em “adulto”, defronta-secom o fato de que “o ponto de vistasuposto aos grandes” na aurora desua vida não é tão sabido assim e,portanto, que o tempo, isto é, a es-pera que a própria quarentena outrorafabricava, era tão-só para ser fruído,em suma, era para ser gasto.

Como vemos, a introdução da“criança” numa história em curso ins-taura uma tensão no campo do dis-curso entre o lado de lá – aquele doinfans – e este outro de cá – o doadulto. Em que ambos os termos,infans e adulto, não são pontos de umalinha genético-evolutiva rumo a umarazão mais ou menos iluminada, con-forme o postulam as clássicas psico-logias do desenvolvimento – herdei-ras paradoxais do ideário iluminista–, mas são posições no discurso comrelação ao desejo – à palavra do Outro.

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Para que semelhante giro de posiçãoaconteça, ou seja, para que o infansadvenha no lugar de adulto, é neces-sário que o adulto tome como metá-fora o inevitável desencontro no real comesse pequeno ser no mundo.

Educar é precisamente isso; étransmitir marcas simbólicas – in-ventar metáforas – que possibilitemà cria sapiens usufruir de um lugar nomundo a partir do qual possa se lan-çar às empresas impossíveis do de-sejo. A intervenção educativa, à diferen-ça do adestramento, capaz de desenvol-ver um saber fazer natural, possibilitao desdobramento de um saber viver arti-ficial. A educação não aperfeiçoa umser infantil, retirando metodicamenteuma lógica já dada no organismo,mas inocula e alimenta os germesculturais, alojados no campo Outrodas línguas humanas, sem os quaisnão haveria esperança alguma, ouseja, ela insere e sustenta as legalida-des próprias dos jogos de linguagemhumanizantes.

Dessa forma temos que o ad-vento do adulto, no lugar do infansde outrora, comporta um giro nocampo da palavra e da linguagem,graças ao fato de o adulto tomarcomo metáfora a impossibilidade dea criança responder no real à alturada demanda educativa.

Esse giro de posição discursiva– ou seja, de objeto a sujeito da palavra,do desejo dos outros/do Outro – é aprópria condição de possibilidade deque venha a ex/istir – existir fora de si– um tempo de infância.

Quando o infans deixa de ser tal,pois agora é um adulto, a infância passaa existir como perdida, e, assim, tor-na-se presença de uma ausência no

mundo adulto. A infância passa aexistir como perdida, mas não todaela. O que resta do encontro de umacriança com o mundo adulto, emparte, inscreve-se psiquicamentecomo desejo sexual e infantil, ou, emoutras palavras, como aquilo quepassa a fazer falta num mundo adulto.No entanto, uma outra parte dessemesmo desencontro, ou falta de pro-porção entre o adulto e a criança,precipita sob a forma de gozo infan-til. Para que tudo isso – ou seja, o in-consciente, o mesmíssimo tempo deinfância – se desdobre não é precisofazer muita coisa. Mais ainda, comojá Freud alertara, é irrelevante aquiloque adultos deliberemos perseguircomo metas pedagógicas. Entretan-to, paradoxalmente, aquilo que osadultos persigamos na vida com as cri-anças, também, não é sem conseqü-ências, como veremos no final. Emsuma, cabe supor que esse funciona-mento discursivo mínimo – a infân-cia – é objeto de inflexões tantomúltiplas quanto históricas, sendo,portanto, produtor de realidades “hu-manas” e infâncias diversas. Precisa-mente, o fato de tratarmos todas es-sas infâncias plurais como A infânciano singular é a prova do caráter tan-to universal quanto natural sonhadopara a infância moderna que, embo-ra não tão pregnante quanto antes,ainda hoje é referência discursiva paranós.

Nesse contexto, afirmamos quea infância – desencontro no real dotempo entre gerações – não é umdado existencial de partida, ora a sersuperado, ora a ser cultivado, mas tão-somente inscrição psíquica, dupla etensa no a posteriori.

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A infância não é um mal necessário, condição próxima da doanimal, simples pecado ou fonte de erros, como sustenta a tradi-ção inaugurada por Platão, recuperada por Santo Agostinho e re-moçada por René Descartes. A infância, também, não é um coá-gulo de sinceridade ou de bondade natural. Justamente, não setrata simplesmente de se inverter mais uma vez o platonismo, natrilha já aberta por Jean-Jacques Rousseau. Trata-se de pensar ainfância além do registro habitual de “idade natural” da vida hu-mana, passível de padecer representações sociais diversas, segundoa época e a geografia. Em suma, propomos subverter o paradig-ma inerente às psicologias do desenvolvimento, que reduzem odevir infantil ao progresso mais ou menos inelutável de um sabernatural encarnado no organismo.

A matéria-prima para a produção da infância, como subjeti-vidade ou realidade psíquica, é, como dizia Lacan, o cachorro humano,embora a humanidade não esteja dada em potência no organismodito humano. Sobre essa matéria biológica, indeterminada enquan-to humana, mas também impossível em ser animal, toda educaçãoinstitui uma infância como quarentena. Como quarentena mais oumenos prolongada, ora em bloco, ora segundo proporções diver-sas – conforme a história, a geografia, a classe social, etc. – domundo adulto do sexo, do trabalho e da política. Espécie de exílio domundo adulto metaforizado singularmente pela narrativa escolarmoderna.

A humanidade não está em potência no organismo; ela está emgerme no campo da palavra e da linguagem. Por outro lado, aanimalidade também é impossível enquanto destino para o homem.Isso não impede, porém, que seja a barbárie um destino possível,porém, funesto.

Mas retomemos. Afirmávamos que do processo instituinteque é a educação resulta a infância, como tempo de espera a ser fruídopor seres mais ou menos pequenos. Em outras palavras, resulta ainfância como marca e realidade psíquica, efeito do usufruto tempo-ral instalado como possibilidade pelo caráter metafórico da de-manda educativa adulta. No entanto, cabe afirmar que desse mes-mo processo instituinte resulta também o real da infância, ou seja, oexcesso que cinde o sujeito produzido, o infantil. Esse suplementode produção é corrosivo das condições de possibilidade da mes-míssima infância. Mas, na medida em que – retomando uma fór-mula lacaniana – “não cessa de não se inscrever”, esse excedentetambém relança, uma e outra vez, sobre si mesmo o processoinstituinte de uma infância numa história.

Em suma, a infância, seja como marca temporal, miolo da ope-ratória psíquica, seja como resto infantil que excede toda reintegra-

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ção total, ela, a infância, é – longe dequalquer essencialismo – simples epura diferença discursiva no âmagodo próprio laço social no decorrerdos tempos.

INFÂNCIA EMODERNIDADE

O homem sonha-se a si mesmoe, assim, inventa-se sempre outro. Namodernidade, o homem passou a serelacionar consigo mesmo e com osoutros – isto é, a experimentar o de-vir temporal – de uma maneira nova.Assim, aquilo que sempre resta e fazfalta em seus sonhos deixou de sercreditado a um paraíso perdido nopassado, e vivido junto aos deuses,para ser, ao contrário, buscado nestemundo de homens. O homem lan-çou-se à sua procura, mesmo saben-do que isso – o paraíso perdido –sempre falta ao encontro, pois estásempre num outro lugar neste nossoúnico mundo humano, e, assim, foi-se tornando moderno enquanto se-cularizava a vida política. Isso que ohomem passou a esperar para o ama-nhã aqui na terra – e fora chamadoutopia por Thomas Morus em 1516– foi esculpindo aos poucos o rostode uma infância radicalmente outra.

A insatisfação pulsional, o mal-estar no discurso, na cultura, comodizia Freud, outrora equacionadograças à referência a um passado vi-vido em companhia dos deuses, pas-sou na modernidade a insuflar a idéiade um futuro diferente aqui mesmona terra.

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A gestação de um futuro alme-jado como diferente entranha umaretrospectiva, o gesto de se inventa-riar o passado uma e outra vez, de“passar a limpo” a tradição, de “ne-gar o que aí está” – como dizia omoderno Hegel a propósito do pen-samento. Por outro lado, essa cons-trução de verdades históricas resultantesimplica, segundo a psicanálise, umaoutra relação com o vivido e, por-tanto, possibilita experimentar umpresente “novo”, ou seja, experimen-tar um outro sentido que não estejacontido no passado.

O gesto retrospectivo cavoucauma diferença no passado, na série tem-poral dos devires, e assim produztanto uma história quanto um restotemporal por vir, ou seja, um tempo amais além da história narrada. A cri-ança, tendo chegado ao mundo de-pois que os adultos, se faz rapidamen-te depositária imaginária dessa dife-rença temporal a mais produzidapelo próprio mundo adulto.

Assim, a moderna diferença en-tre passado e história deu impulso à in-venção de uma infância tambémmoderna, da mesma forma que ashistórias infantis que os adultos noscontaram, e, uma outra vez, embala-ram o tempo de infância em cada umde nós.

A infância moderna, essa espé-cie de sonho que o homem passou asonhar para si, é um ponto numa tra-ma contraditória de ilusões e, por-tanto, encerra em si mesma uma ten-são de equacionamento delicado. Ainfância passou a ser na modernida-de o ponto de fuga no horizonte dossonhos adultos em que se tocam deforma assintótica desejo e narcisismo.

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Ou, em outras palavras – parafraseando Hannah Arendt na suareferência ao registro moderno dos acontecimentos passados –,ela foi o precipitado da imortalidade terrena à qual aspirava a idademoderna.

O homem moderno acabou-se entregando ao sonho de ummundo diferente, de uma sociedade secularizada ou desencantada– como dizia Max Weber –, mas não por isso desprovida de so-nhos. O homem moderno entregou-se ao sonho de um mundoem que imperasse a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Essa figura-ção da utopia, em particular, foi sonhada, disputada e reivindicadacom insistência por muitos e, assim, chegou a se perfilar como aprópria invenção do espaço democrático. Os homens passaram aconsiderar-se livres e, assim, autorizaram-se no engajamento públi-co “usando” a palavra que os “desnaturalizava” enquanto cidadãos;iguais na responsabilidade de sustentar a polis que os via nascer; efraternos na orfandade de origem que os lançava na fundação deuma nova narrativa.

O sonho moderno resumiu uma maneira nova de o homeminterrogar-se sobre o impossível que permeia sua relação com seus se-melhantes – sobre a impossibilidade da relação do sujeito ao Outro.E foi por isso que, à diferença de outrora, todos os assim conside-rados antigos regimes foram, antes de mais nada, enterrados noparlatório público e generalizado3.

Em suma, o espírito da modernidade implicou uma outra eco-nomia psíquica do desejo, ou uma outra figuração, em termos freu-dianos, da idéia de pai – como esperamos tê-lo mostrado no texto“Psicanálise, modernidade e fraternidade”, que escrevemos em 2000para uma coletânea organizada por Maria Rita Kehl. Por sinal, assi-nalamos que o fato de se pensar que o sonho moderno é umaoutra figuração da metáfora paterna é fundamental para tambémproduzirmos um deslocamento no interior do debate psicanálise-cultura, que, como sabemos, costuma girar em torno da tese laca-niana sobre o dito declínio da imago social do pai atrelada à lei dacontração da família – enunciada, entre outros, por Durkheim e,hoje, contestada por não poucos historiadores e sociólogos, atémesmo no que tange ao Brasil.

Na modernidade, o adulto passou a esperar que a criança vi-esse a usufruir no futuro esse outro mundo terreno, mas tambémse dedicou a instalar na cabeça dela o sonho de sua possibilidade.Assim, a diferença criança/adulto virou objeto de máxima e singu-lar tensão psíquica e social. Talvez como nunca antes na história doshomens.

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A ESCOLA DA REPÚBLICA E AS FAMILIARESESCOLAS DE HOJE

A “escola da República” foi a figuração institucional – isto é,discursiva – mais acabada dessa infância. A escola foi reivindicadacomo direito a despeito da vontade de alguns, que sempre queremque os direitos sejam de fato privilégios de poucos. Por quê? Porque a escola foi reivindicada para sua descendência, entre outros,pelos nossos antepassados imigrantes? Pois bem, simplesmente, por-que todos intuíam que a escola detinha naquela época a chave deacesso à infância, e esta, por sua vez, era a chave que dava acesso aum mundo Outro aqui mesmo na terra.

A escola incorporou a tensão narcisismo/desejo embutida nainfância, e, assim, além de ter exprimido, como toda instituição, umprojeto de moralização “à la Durkheim” – lembrando o estudo deHeloísa Fernandes (1994) –, a escola da Republica também funcio-nou como uma máquina movida a desejo e possuidora de grandeforça subjetivante e sublimatória.

As folclóricas legalidades cotidianas da família nuclear e daescola, ambas articuladas em torno da assimetria discursiva adulto-cri-ança, continham em si mesmas a possibilidade de operar a recupera-ção metafórica do resto excedente na produção da própria infância.Em outras palavras, o cruzamento entre as assimetrias adulto-cri-ança e família-escola possibilitava fazer diferir o suplemento do mes-míssimo processo instituinte da infância de época. Por sinal, a viradado século XIX para o XX também inventou a psicanálise comoum outro dispositivo discursivo capaz de fazer diferir metaforica-mente esse suplemento de produção da infância que chamamosinfantil.

O teatro escolar gira em torno de uma paradoxal demandaendereçada às crianças. Ele implica, por um lado, uma dialéticaentre o lado criança e “sua psicologia infantil”, recalcados à intimi-dade privada do lar, e o lado aluno que freqüenta a escola e, portan-to, que passa a ficar sob o olhar do público – isto é sob os olhos daRepública.

Por outro lado, a escola também implica tanto uma diferenci-ação máxima adulto/criança quanto, paradoxalmente, numa nega-ção da mesma. Em suma, a escola desponta como um lugar “ou-tro” que aquele familiar, ela é o cenário no qual as “crianças” –agora alunos – são interpeladas a responder como se fossem osadultos que ainda não são.

O folclore escolar que costumamos chamar “tradicional” re-duzia-se à fórmula: “Ei, menino, faça de conta que é adulto!” As-

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sim, a legalidade escolar, ao tempoque reconhece a diferença adulto/criança, também a denega, uma vez queinterpela a criança num lugar não maisfamiliar, um lugar não infantil. Omundo que a escola ensina, mostraàs crianças está escolarizado, pasteu-rizado, pois não é de fato o mundoadulto aquele outro de verdade verda-deira, como costumam dizer as cri-anças. O professor aparece aos olhosinfantis como o embaixador desseOutro mundo, encarregado de neleintroduzir as crianças segundo umadosagem e um tempo escolar. A es-cola chamava à ordem seus alunos –como nos lembrou Estanislao Ante-lo num colóquio do LEPSI _ valen-do-se da pergunta retórica seguinte:“Onde pensa que você está?” Ouseja, “atenção aí! ... você não está nasua casa, está num cenário outro, pú-blico, em que as infantilidades nãodevem ser dadas a ver”. As infantili-dades devem ser esquecidas em casa.Não só a criança não as deve levar àescola, quanto esta não se deve pre-ocupar por elas.

Essa divisão dos mundos possi-bilita a denegação da própria demandaadulta feita escola. Ela não pede àscrianças para serem adultas, mas só paraparecê-lo. Entretanto, hoje em dia o apa-gamento da distinção entre o escolar eo familiar, na esteira do esvaziamentoda diferença entre o público e privado,implica uma demanda que não sedenega a si mesma e, portanto, con-dena as crianças a responder no realdo ato. Nos dias de hoje, a confusasubstância amorfa família/escola –resultante não só do imperialismo daescola particular, mas também do psi-cologismo cotidiano – pede às cri-

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anças para “serem normais”, ou seja, pede a elas para serem “aí”,onde assim o prescreve alguma norma de desenvolvimento psico-lógico natural.

Dessa forma, essa confusão atual dos cenários retira da de-manda escolar seu espírito de “fazer de conta”. Agora, a criançaé obrigada a entregar suas infantilidades a um leque de profissio-nais psi que tudo vêem, tudo sabem. As crianças, sem mais direitode serem, por exemplo, preguiçosas na escola ou tímidas só empúblico, agora são, independentemente do lugar, das más ou boascompanhias, do horário, sempre uma mesma coisa: imaturas, hi-percinéticas, deficientes, etc.

Na escola “tradicional”, as crianças, interpeladas no lugar de alu-nos4, e não de crianças, eximiam-se de dar sua opinião, bem comoexiladas do sexo e da política, aprendiam, no entanto, a usar e a dara palavra e, dessa forma, acabavam sendo tomadas no ser peladisciplina própria das palavras que nos sujeita à palavra que faz ato.

Na escola as crianças trabalham sem receber uma remunera-ção como seus pais e professores assalariados. Ou, sem receber, aínfima remuneração daquelas “outras crianças” exploradas pelocapital nos trabalhos já adultos.

O fruto do trabalho escolar é diferente: trata-se de vir a serum cidadão que, por sua vez, se dedicará a um trabalho já decidi-damente adulto. Entretanto, há uma diferença importante do pon-to de vista psíquico para as crianças. Como dissera certa vez umacriança5 – que bem poderíamos dizer que participa de um certoideal kantiano –, embora ser adulto não nos liberte do trabalho, aomenos entranha a possibilidade de falarmos e sermos levados asério, em suma, de nos engajarmos em nome próprio na vida da polispara, assim, emitir em público nossos próprios julgamentos racio-nais.

A escola precipita um dispositivo arbitrário que entranha otempo de espera de uma recompensa sempre a ser sonhada. As-sim, o engajamento do candidato no trabalho escolar é movido adesejo. Diferente seria se o “prêmio” pelo esforço fosse de um ou-tro estofo, por exemplo, qualquer figuração terrena e material da“felicidade”. Neste caso, como a posse do prêmio seria o não-desejar, então, a legalidade do dispositivo educativo sofre um des-garro. A promessa do desejo, o tempo psíquico da espera, dissipa-sequando o dispositivo discursivo que tenta bordejar a diferença noreal do devir temporal revela ser não-metafórico.

Todo dispositivo discursivo para produzir efeitos de metá-fora deve estar articulado em torno de uma falta de relação, ouseja, de uma assimetria arbitrária, não natural, mas inexorável. Naproporção de “alguma coisa” faltar, então, o dispositivo é passí-

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vel de fazer desdobrar o infantil.No entanto, na medida em que

a escola de hoje em dia tenta montarum cotidiano de “relações adequa-das”, acaba pondo a intervenção jun-to à criança na dimensão da comple-mentaridade. Assim, faz com que osadultos apareçam aos olhos infantiscomo indivíduos movidos por neces-sidades claras e distintas, e, portanto,não mais como seres movidos a dese-jo – isto é, como embaixadores ani-mados por um espírito sempre es-trangeiro, sempre Outro.

Hoje, os adultos confundem acriança com seu semelhante. A criançaé vista como se fosse um outro adul-to na polis, a respeito do qual o adul-to deveria engajar-se eticamente numdiálogo sempre renovado, em tornodaquilo que a ambos escapa de for-ma estranha e inquietante.

Dessa forma, perdida a diferen-ça movida a desejo entre o adulto ea criança, ambos passam a se con-frontar, cada um esgrimindo justifi-cativas, umas mais explicáveis que asoutras, até que as “ciências do com-portamento” façam ponto de bastaracional. Assim, a criança perde todareferência simbólica que a ajude emsua travessia de pequeno Ulisses deum lado ao outro no campo da pa-lavra e da linguagem.

Um adulto pode se dispor a dia-logar sobre tudo com uma criança,mas sempre haverá um ponto queescapará. O adulto não pode com-partilhar esse ponto, pois escapa tam-bém a ele aquilo que essa criança re-presenta inconscientemente. Isso queescapa faz suplemento inevitável derelação e, portanto, foge a qualquerdemocratização das relações entre os

adultos e as crianças. Entretanto, oadulto pode fazer diferir esse suple-mento quando o reclama para si emnome do desejo que o habita e, des-sa forma, baliza a castração simbólicapara a criança. Ou, pelo contrário, oadulto pode impossibilitar sua metá-fora tentando sua impossível reabsor-ção num logos qualquer e, assim, ins-crever a educação no registro da frus-tração imaginária.

Há já algum tempo que as mo-das pedagógicas começaram a pas-sar cada vez mais rápido. Todos osdias, especialistas tentam aggiornara escola aos “novos tempos” deforma tal, que ela se remoce e setorne mais “eficaz”, mais viva, de-tentora de ISO 9000. Entretanto,essas iniciativas psicotecnocráticasimpossibilitam que se opere umdesdobramento fértil da crise esco-lar que se pretende contornar e,portanto, infelizmente, vão na con-tramão de uma institucionalizaçãorenovada da realidade da infânciaque conhecíamos.

Não estou propondo um retor-no a velhas formas escolares, pois otempo passado não pode ser reex-perimentado. Só pretendo alertarpara o fato de que aquilo que hojediagnosticamos como crise escolar estáatrelado ao descompasso do cotidi-ano escolar atual a respeito da ética dodesejo, da lei da castração.

Nesse sentido, afirmo que é ilu-sório a atual reivindicação dos adul-tos de que as crianças respondamcomo outrora à demanda escolar.Elas não respondem mais como an-tes, uma vez que a “infância” passoua ser sonhada no registro do natural-mente necessário.

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Assim, a infância que estamos perdendo é esse dispositivo dis-cursivo que tenciona o cotidiano desses seres pequenos no sentidode se tentar a impossível conversão do real em ideal.

As ilusões (psico)pedagógicas (De Lajonquière, 1999) mascaram aperda de uma infância que, em suma, carrega consigo o sonho deo homem vir a inventar um mundo mais justo na polis. A infância(psico)pedagogizada – seja aquela de ricos ou a de pobres – é umapseudo-infância esvaziada de desejo. É precisamente por isso que elaimpera entre nós. Ela resulta do estreitamento da dialética psíquicados tempos em cujas entrelinhas articula-se o desejo. É claro, adiferença de classes dá seu toque de distinção a essa pseudo-infân-cia, affaire de gozo ou, se preferirmos, de consumo de quinquilhariasdiversas.

A infância, longe de sofrer, em velocidades diferentes segundoas latitudes, uma inflexão ou extensão semântica, corre o risco dedesaparecer como realidade psíquica. Por quê? Pois bem, pela simplesrazão de que o desarranjo ou desproporção no plano das práticascontemporâneas dificulta o trabalho de metáfora sobre o real pro-duzido pela própria introdução de uma criança num mundo jáadulto. Assim, esse suplemento fica à mercê de retornar no real e,portanto, já não mais de forma invertida como toda mensagemrecalcada.

A DÍVIDA PARA COM A INFÂNCIA DAMODERNIDADE

Como vimos, o gesto adulto de se endereçar a uma criançaestá implicado na produção psíquica da infância e, portanto, naemergência de uma subjetividade.

Pois bem, perguntemo-nos por que um adulto é levado a ocu-par uma posição educativa perante esses seres pequenos?

Além das pequenas escusas de nossa vida cotidiana, os adultosendereçam-se às crianças na esperança de vir a saldar uma dívidasimbólica que outrora, quando pequenos, contraíram com aquelesadultos significativos para eles. Como sabemos, todos deixamosna vida alguma conta pendente no cartório das expectativas paren-tais. Independentemente de nosso esforço, da magnitude das dívi-das e da teimosia cobradora de nossos pais, sempre se decanta aexperiência subjetiva de que estamos em dívida para com eles.

Assim, não podendo conhecer a magnitude do devido, o adultoresolve sabiamente reconhecer que alguma coisa deve e que, por-tanto, pagará, embora passando para a frente aquilo que, sem dúvi-

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da nenhuma, irá sempre restar. A dí-vida que o pequeno recebe via edu-cação, longe de vir a zerar com o tem-po, mantém seu poder de endividarde forma tal, que quando ele crescerrepetirá a renegociação ensaiada peloadulto anterior. Assim, cada um denós tenta na educação de uma criançavir a repor algo que ficou pendentealguma vez, ou, em outras palavras,educamos em nome da dívida que recebemosde um outro, que por sua vez a con-traiu na época de sua educação nasmãos de outro. Em suma, aquilo quetoda educação tenta repor é experi-mentado como falta.

Essa falta de ser para outro – oufalta em ser – é creditada como umaespécie de fracasso educativo a serreparado. Vejamos.

Em primeiro lugar, se um pai,quando educa seu filho, transmiteuma dívida existencial, é porque devea seus próprios pais; em segundo, sedeve, é porque deixou a desejar quan-do de sua educação nas mãos de seupróprio pai; em terceiro e último lu-gar, se deve, é porque a educação porele recebida revelou ser fracassada nosentido de que o avô em questão nãoconseguiu obter o sucesso imagináriopretendido. Logo, a educação visa aarticular simbolicamente um manda-to restituidor de uma ordem – deuma exigência – sempre perdida, bemcomo cada um educa do lugar da dívidade seu pai.

Nesse sentido, cabe afirmar que,se a intervenção educativa adulta ins-titui a subjetividade infantil, então,aquilo que está em causa é a posiçãodo adulto a respeito da dívida comseus antecessores. A modernidadeforjou-se como uma forma nova de

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posicionamento perante a tradição,de equacionar a dívida simbólica paracom os ancestrais, de inventar os pre-cursores, e assim deu lugar a uma in-fância singular como figuração radi-cal da falta de proporção entre as ge-rações.

No entanto, o dito desapareci-mento da infância, nos dias de hoje,poderia ser pensado como um desa-juste não-metafórico no nível dosdispositivos societários das crias sapi-ens. Descompasso discursivo que atin-ge em cheio as crianças e que seria amarca de um espírito adulto já nãomais moderno, ou seja, de uma posi-ção não mais moderna do adulto dehoje a respeito dos antecessores. Emoutras palavras, o esgotamento sim-bólico da infância seria função de umaposição particular a respeito do pro-jeto de vida moderna na polis, isto é,função da posição inconsciente doadulto a respeito daqueles ancestraisque fundaram a modernidade. O cha-mado desaparecimento, que não éoutro que a impossibilidade de semetaforizar o resto produzido no en-dereçamento às crianças, exprime arecusa dos adultos da dívida simbóli-ca para com os pais da democratiza-ção da vida societária.

Certamente, o desaparecimen-to da infância que soubemos inven-tar dará lugar a uma outra coisa di-ferente que talvez continuemos, ounão, a chamar da mesma maneira.Isso não deveria ser objeto de nos-sa preocupação. No entanto, o quedeve preocupar-nos é que o esgota-mento instituinte da infância é o sin-toma de um mundo que não quersaber mais da exigência devida dese tentar o impossível de um sonho,

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que não quer mais inventariar uma eoutra vez o passado, que não quermais fazer memória para não ter dese confrontar com aquilo que tam-bém somos, brutti, sporchi e cativi,como no belo filme de Ettore Sco-la.

O esgotamento da infância é osintoma de um mundo “adulto” quese entrega ao pesadelo dos mercadosmais variados e, assim, se esquece deque nenhum consumidor, por mais in-formado que ele seja, chegará à altu-ra do cidadão.

Retorno no real de uma espéciede esquecimento, aquele do dever detentarmos – e aqui parafraseamosFlorestan Fernandes, quando se refe-ria ao objetivo da educação – uma eoutra vez a impossível invenção deuma civilização sem barbárie.

Em suma, o dito esgotamentoda infância não derivaria nem da su-posta falta de adequação científica daeducação às crianças de hoje, nem damaior ou menor presença parentalnos lares e nas escolas, como costu-mam afirmar a mídia e as autorida-des de plantão.

Parece-nos, ao contrário, ser osintoma de um mundo adulto quenão quer saber mais nada do deverde educarmos o soberano – o povo –,como repetia aquele incansável dapena e da palavra, “padre del aula”6,conforme aprendemos na infância –sempre lembrado por Euclides daCunha –, que fora Domingo Fausti-no Sarmiento.

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NOTAS

1 Este texto retoma idéias apresentadas ulti-mamente em diversas oportunidades (coló-quios nacionais e internacionais, bem comoem concursos docentes para o cargo de pro-fessor titular). Trata-se de tema desenvolvi-do no contexto de um projeto de pesquisaauxiliado pela FAPESP e o CNPq.2 O médico e pedagogo francês Jean Itard seendereçava de forma “reeducativa” a Victorda mesma forma. Consulte-se, de nossa au-toria, “Itard Victor! Ou o que não deve serfeito na educação das crianças”. In: Banks-Leite, L. & Galvão, I. (2000). A educação deum selvagem. São Paulo: Cortez. Bem como“Duas notas psicanalíticas sobre as criançascom necessidades educativas especiais”. RevistaPro-Posições, Vol. 12, nº 3 (36), pp. 47-59,2001.3 Em não poucos ensaios psicanalíticos so-bre o laço social na modernidade insiste-sesobre o caráter inaugural – porém regressivodo ponto de vista de seu desdobramento –do regicídio. Entretanto, assinalamos que é a“liberação” da palavra que marca a fogo a

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modernidade, bem como que se trata – obviamente – de um acontecimento fértil.4 Ou seja, interpelados como seres pequenos que fazem de conta serem os adultosque ainda não são.5 Trata-se do depoimento de uma criança belga num vídeo projetado na Biennalede l’ Éducation et de la Formation realizada em Paris, em 2000. A criança reclama queas demandas escolares não lhe dão sossego, uma vez que, a cada tarefa concluída,segue uma outra. Dessa forma, ela é demandada a trabalhar sem descanso (emfrancês, se diz que uma criança trabalha na escola, mas não que estuda na escola).Interpelada pelo adulto que a entrevistava sobre qual seria, então, o ganho devirar “gente grande”, uma vez que sempre se está às voltas com o trabalho, elaresponde: “Ao menos, quando um adulto fala, ele é levado a sério”.6 A narrativa pedagógica argentina fez de Sarmiento o “pai da sala de aula”.Operação que não é sem conseqüências, pois inventou um pai na tradição demestres, um precursor na formação de professores, aí onde não poucos pretendemhoje pôr os nomes anônimos da ciência psicopedagógica e assim constituir ummito morto no dizer de Maud Mannoni.

Aceito em novembro/2003.Recebido em setembro/2003.