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A LINGUAGEM EM HEIDEGGER: Considerações sobre o tema e algumas de suas possibilidades educacionais. lúta Lercher Vieira Rocha Abordar a linguagem no pensamento de Heidegger é ta- refa complexa, uma vez que conduz à essência da problemá- tica existencial humana, como veremos a seguir. Neste pequeno trabalho pretendo esboçar a posição hei- deggeriana no tocante à linguagem, explorando um pouco as potencialidades do tema, arriscando, ainda, algumas reflexões sobre educação pela linguagem. Tomo como referência pri- meira o estudo de Thaís Curi Beaini expresso no livro A Es- cuta do Silêncio (editado em 1981, pela Cortez Editora). Para Heidegger a linguagem se identifica com o ato de revelação do ser. ~ através dela que o homem é o que é, constituindo-se no atributo essencial do homem. Assim, "o homem, ente que fala, possui um contexto existencial: o mun- do como o lugar de suas possibilidades, o campo onde de- senrola-se a abertura para o ser que gera a linguagem". (1) Ainda no dizer de Beaine, a linguagem "é o traço de união entre homem e ser, o fruto de duas aberturas que se inter- penetram, se entregam para integrar-se. A linguagem perten- ce ao ser, pois é ele quem se oferece a nós, mostra-se em seu dizer silencioso. ~ des-velamento (aletheia - como di- zlarn os gregos), o âmbito do aparecer que o ser delimita e dá ao homem para mover-se, ou, como diz Heideqqer: a Iin- -guagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o ho- mem." (2) Explicitando melhor, poderíamos dizer que a casa é o lugar onde reside alguém que procuramos, mas só pode- mos entrar se o morador estiver presente e nos abrir a porta. Assim, o ser aparece na Linguagem. Educação em Debate, Fortaleza, 4/5 (2/1) : 49-54, [ul/dez. 1982 jan/jun. 1983 49

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A LINGUAGEM EM HEIDEGGER:

Considerações sobre o tema e algumasde suas possibilidades educacionais.

lúta Lercher Vieira Rocha

Abordar a linguagem no pensamento de Heidegger é ta-refa complexa, uma vez que conduz à essência da problemá-tica existencial humana, como veremos a seguir.

Neste pequeno trabalho pretendo esboçar a posição hei-deggeriana no tocante à linguagem, explorando um pouco aspotencialidades do tema, arriscando, ainda, algumas reflexõessobre educação pela linguagem. Tomo como referência pri-meira o estudo de Thaís Curi Beaini expresso no livro A Es-cuta do Silêncio (editado em 1981, pela Cortez Editora).

Para Heidegger a linguagem se identifica com o ato derevelação do ser. ~ através dela que o homem é o que é,constituindo-se no atributo essencial do homem. Assim, "ohomem, ente que fala, possui um contexto existencial: o mun-do como o lugar de suas possibilidades, o campo onde de-senrola-se a abertura para o ser que gera a linguagem". (1)Ainda no dizer de Beaine, a linguagem "é o traço de uniãoentre homem e ser, o fruto de duas aberturas que se inter-penetram, se entregam para integrar-se. A linguagem perten-ce ao ser, pois é ele quem se oferece a nós, mostra-se emseu dizer silencioso. ~ des-velamento (aletheia - como di-zlarn os gregos), o âmbito do aparecer que o ser delimita edá ao homem para mover-se, ou, como diz Heideqqer: a Iin--guagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o ho-mem." (2) Explicitando melhor, poderíamos dizer que a casaé o lugar onde reside alguém que procuramos, mas só pode-mos entrar se o morador estiver presente e nos abrir a porta.Assim, o ser aparece na Linguagem.

Educação em Debate, Fortaleza, 4/5 (2/1) : 49-54, [ul/dez. 1982jan/jun. 1983 49

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Em linhas gerais, parece muito simples o processo dereciprocidade em que homem e ser estão intimamente vincu-lados através da linguagem num "comum-pertencer" - o serse envia ao homem, se des-vela, numa entrega em que ambosse constituem: o homem como aquele que se relaciona com oser e o diz; o ser como o dom que é experienciado e dito pelohomem. No entanto, a linguagem não é apenas a casa do Ser,mas o reino da aparência e daí decorrem todas as ambigüi-dades e distorções no seio das quais nos debatemos. Alémdisso, a casa do Ser "é uma casa muito engraçada" como aque foi cantada por Vinicius de Moraes para as crianças: olugar da casa do ser é o tempo (O homem é temporal; é otempo que demarca o homem como ser-no-mundo. Não sepode perder de vista o vínculo existente entre ser e tempo eeste com o "lugar" da manifestação do ser tornado palavra.)

Esta "casa muito engraçada" está construída nas pala-vras humanas. Ela tem portas e janelas, mas não tem trincos,nem cortinas. Para conhecer seu estranho morador (o ser)não é preciso ser doutor de muitas palavras, por estranho quepareça, importa mais saber ouvir e ser simples. Nessa casamuito engraçada mora alguém que embora goste de ser visi-tado, prefere brincar de esconde-esconde, ou de aparecer edesaparecer. Só quem for muito cuidadoso pode encontrá-lo,Aí então é preciso usar a palavra para explicitar o ser e parazelar por sua mensagem, isto é, zelar para tornar palavra odizer do ser.

Com Heidegger tomamos consciência que a linguagemnão é apenas um advento des-velador, mas também veladordo ser. Pode ser o lugar de manifestação do ser, como tam-bém o lugar da negação, do ocultamento da verdade, sendoesta segunda possibilidade muito mais freqüente em nossosdias que a primeira. Dizendo de outro modo, a linguagem, nasua essência, traz à luz o "é" dos entes, operando assim aprodução da verdade, o que não significa que esta essênciaseja "fatalmente" concretizada, nem que a linguagem edifiquenecessariamente a verdade e, muito menos, que a edifiquesempre. Para distinqürr as duas possibilidades passo a desig-ná-Ias como linguagem essencial e linguagem empobrecida,respectivamente.

Nossa linguagem cotidiana é inautêntica e distante da lin-guagem essencial, na medida em que bem poucos se man-têm relacionados com o ser (numa "relação hermenêutica",no dizer de Heidegger, ou seja, o homem colocando-se a ser-

viço do ser para anunciá-to e, deste modo, cumprir sua refe-rência à solicitação que lhe é feita). Na maioria das vezesencontramos o homem deserdado de si mesmo, afastado doseu núcleo interior, perdido no palavreado e na opinião de"todo o mundo". Distorcida, a linguagem passa a servir, porexemplo, como instrumento de dominação do homem, e opensamento se transforma em atividade acadêmica, ou ainda,as possibilidades inesgotáveis de Ser s·e cristalizam num ounoutro modo de ser dos entes particulares transformando-seem critério único de verdade ou de sabedoria, a tal ponto quepodemos dizer que os modos da linguagem, em diferentes si-tuações e épocas, decidem os modos de produção da verda-de, intervindo nos rumos da história.

O homem ainda comporta-se como se fosse o criador eo senhor da linguagem, invertendo a verdadeira relação deanterioridade da linguagem em relação à subjetividade huma-na. Neste sentido, a linguagem essencial não depende de in-tenções subjetivas, não nos pertence; é propriedade do ser.O homem, nessa visão, não é o produtor da palavra, mas um"produto" dela, sendo ela quem fala. Heidegger não consi-dera a linguagem essencial como um simples meio arbitráriode expressão, nem tampouco admite que ela possa ser mani-pulada ou atribuída ao homem, sob pena de se empobrecer.Preservando o que foi uma vez aberto, revelado, a palavracapacita as coisas a tornarem-se o que são. Ela cria a ima-gem e a imagem atrai a influência correspondente, tal é o seupoder instaurador.

Para compreender melhor esta postura é bom relembrarque a abordagem de Heidegger não se reduz à dicotomiasubjetivo-objetivo, não se explica no âmbito do dominador edo dominado mas no plano da entrega comum, da reciproci-dade, da consciência situada; é antes de mais nada um pen-sar questionante, bem diverso do pensamento metafísico, queabandona o ser, concebendo o homem como um "animal ra-cional". Ora, o esquema subjetivo-objetivo só capta um póloda realidade, dissimulando o ser, desprezando o fundamen-to oculto que tudo revela.

Feitas estas reflexões, cabem algumas incursões no terre-no educacional. O que é educar pela linguagem?

Penso que Heidegger oferece valiosos subsídios para otratamento das questões pertinentes à educação e linguagem.

O educador não é, necessariamente, um artista ou umpensador, aqueles que para Heidegger possibilitam a situa-

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ção e o momento privilegiados de realização da linguagemessencial, mas não deixa de ser um intermediário entre a re-velação do ser que se faz palavra. Pode contribuir de algummodo para o despertar das consciências, investe-se da tarefade ensinar mais que o conteúdo acabado, o próprio processode aprender, de ascender à verdade. O diálogo é o ponto departida de uma relação verdadeiramente educadora. A pala-vra é a ferramenta de seu fazer pedagógico. A partir daí jáse pode compreender melhor que educar, mais que qualqueroutra relação, se faz pela linguagem e na linguagem. Tentareiaqui apontar algumas possibilidades.

O mestre precisa estar atento à sua própria linguagem,de modo a levar a interpretações fixas da realidade que é di-nâmica. Ele não deve ser um mero repetidor de verdades jáfeitas: "ele abre uma perspectiva sobre a verdade, porque averdade é sobretudo um caminho para ela." (3)

Cultivar o zelo pela palavra, como instrumento de apre-ensão da verdade, levando em conta que a linguagem dizsempre mais do que diz. Gadotti mostra no ensaio Comuni-cação Docente que a pedagogia geral tem se caracteriza-do por uma confiança ilimitada na eficácia da palavra. ~como se apresentar um discurso perfeito, uma exposição eru-dita e bem preparada fosse sinõnimo de uma comunicaçãoeficiente. Não se leva em conta que, até mesmo numa classenumerosa, o monólogo docente atinge os alunos como sefosse uma série de pequenos diálogos particulares, cada umcom seu valor e sentido. Isto porque nenhuma linguagem étão inteiramente impessoal e formal como se possa pensar,nem existe uma sensibilidade puramente intelectual, distintada sensibilidade global do ser humano. Assim, "o mestrequando expõe é também um mestre que se expõe". (4)

Gadotti prossegue no mesmo ensaio, dizendo que "mui-tas vezes não é a palavra calculada, ou bem preparada aque toca e influencia o discípulo. Palavras às vezes nãomuito pretensiosas são as que conseguem o fruto de um ama-durecimento, de um despertar, no discípulo. Isto aconteceporque o outro é sempre um mistério, e não é porque a pala-vra é tecnicamente pronunciada que produzirá fruto. ( ... ) Di-rigir a palavra é sempre expor-se ao outro, assumir o risco denão ser compreendido, de ser contestado, de ser humilhado,de ser agredido. Mas é apenas ao dirigir a palavra que pode-mos realmente ajudar o outro." (5)

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Outro aspecto importante da educação pela lingu g mtreinar a habilidade de ouvir atentamente, para que o di curso não-pronunciado possa aparecer, possibilitando o f I r.(Heidegger diz que a origem da linguagem é o dizer silencio-so do ser.) E ouvir aqui não significa apenas ouvir o que omestre ou os colegas dizem, embora também seja importante,mas envolve também saber ouvir a realidade e a si próprio.Este aspecto tem sido muito descuidado em nossa época,que valoriza tanto o pensamento exclusivamente funcional eprático, as verdades acabadas, prontas para serem consumi-das de fora para dentro, como um bem de consumo a mais.Ensinar a ouvir atentamente os livros ou, por outra, ler de modoreflexivo é outra necessidade.

Muito freqüentemente o educador é confundido ou seconfunde com a verdade, perdendo-se de vista seu papel demediador da descoberta do aluno por ele próprio, na medidaem que a verdade ~ acessível a um indivíduo isolado pela me-diação de outrem. Ou ainda, na perspectiva do discípulo, odesvendamento da verdade não se faz solitariamente, o que,no entanto, não justifica a atitude normalmente conferida aosmestres de "donos da verdade".

~ preciso evitar as palavras desnecessárias para perma-necer atento à escuta do ser. Não considerar que a palavrado educador é necessariamente a verdade, pois que ela podeaparecer ao educando de modo até mais luminoso e claro.

O mestre tem que deixar seus alunos se exprimirem maise aceitar ouvir, para que eles possam aprender a pensar porconta própria e a se tornarem responsáveis perante a verda-de. Em todos os casos prevalece uma relação dialógica e to-dos estes movimentos de análise da linguagem, de cuidadocom a linguagem, visam a que, através dela, o ser possa apa-recer, o acesso à verdade possa ser facilitado, de modo quetambém seja explicitada melhor, de acordo com as exigên-cias da própria ciência que supõe descrição rigorosa, bemalém do tratamento superficial dos fenômenos.

Mais do que em qualquer outro espaço, a palavra deveser tratada e trabalhada na escola. Haverá que se descobrirainda muitos outros modos de fazê-Io, do mesmo modo quena linguagem desembocam e se integram muitos campos doconhecimento. Todavia, é com Heidegger que ela aparece emsua feição originária - não como um utensílio à disposiçãodo homem, mas como o acontecimento fundamental que lhepossibilita ser homem.

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REFER~NCIAS BIBLIOGRÁFICAS

. 1 - BEAINI Thaís Curi. À Escuta do silêncio; um estudo sobre a lingua-gem no pensamento de Heidegger. São Paulo, Cortez Editora,1981. p. 77.

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3 - GADOTTI, Moacir. Comunicação docente; ensaio da caracterizaçãoda relação educadora. 2. ed., São Paulo, Ed. Loyola, 1981, p. 71.

---- p. 60---- p. 61

4----

5----

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