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O TEMPO DO SENTIDO Sobre o caráter provisório da tarefa de Ser e Tempo UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA - MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA DA FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA CURITIBA 2004 Wagner Félix DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

Felix sobre Heidegger

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Análise da obra de Heidegger.

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  • 1O TEMPO DO SENTIDO

    Sobre o carter provisrio da tarefa de Ser e Tempo

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANSETOR DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA - MESTRADOREA DE CONCENTRAO: HISTRIA DA FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORNEA

    CURITIBA2004

    Wagner Flix

    DISSERTAO DE MESTRADO

  • 2O TEMPO DO SENTIDO

    Sobre o carter provisrio da tarefa de Ser e Tempo

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANSETOR DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA - MESTRADOREA DE CONCENTRAO: HISTRIA DA FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORNEA

    CURITIBA2004

    Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre. Curso de Mestradoem Filosofia do Setor de Cincias Humanas,Letras e Artes da Universidade Federal do Paran.Orientador: Prof. Dr. Joel Alves de Souza.

    Wagner Flix

  • 3

  • 4 famlia, e ao lugar.

  • 5queles a quem eu sou grato, devo dizer que listar seus nomes e seusfeitos no basta; mas, se esta lista vale como uma promessa de gratido,obrigo-me aqui com cada qual a honr-la em seu tempo certo. Nistoincluo os amigos, Marco Antonio, Flaviana, Alexandre e Mnia; osprofessores Pedro Costa Rego, Cludio Oliveira e Paulo Vieira Neto; eJoel Alves de Souza, sobre quem devo dizer, no me cabe determinar-lhe, nesta lista, um lugar.

  • 6Mas eu daria tudo para dormir. E, de repente, o importante no eraa morte, no era a agonia, no era a apaixonada suavidade de suaagonia. Era o sono. Caminhei no corredor e s pensava no sono.Quantas horas faltam para que outro venha me substituir? Como miservel, vil e triste ter sono diante da morte, no mais que sono.

    Nelson Rodrigues,A menina sem estrela

  • 7RESUMO

    O objetivo da presente dissertao compreender como o carter provisrio da tarefa de Ser

    e Tempo, a colocao da pergunta pelo sentido do ser em geral, enraza-se no modo de ser daquilo

    pelo que pergunta, o sentido. O sentido o mbito do projeto da compreenso em que j se move a

    pergunta pelo ser, tanto enquanto uma possibilidade privilegiada de ser do ente que ns mesmos

    somos, o ser-a, quanto como a questo decisiva tradicionalmente desenvolvida ao longo da filosofia

    em sua histria. Este mbito revela-se como a compreenso da verdade em geral, tal como deve-se

    concluir com a exposio do mtodo fenomenolgico da investigao. Porm, porque o ser do ser-a

    ele mesmo esta abertura e exposio, a pergunta pela verdade em geral, e em ltima instncia, a

    pergunta pela possibilidade da compreenso de ser em geral, exige que a analtica existencial do ser-

    a torne este ente por si mesmo transparente em seu ser, de tal modo que ele possa se mostrar na

    verdade, isto , em sua propriedade. Porque, no entanto, este ente mostra-se primeiro e na maior

    parte das vezes no modo de sua impropriedade, a cotidianidade mediana, impe-se a necessidade de

    perguntar pela possibilidade ontolgica de uma experincia originria do ser do ente que compreen-

    de ser, ou seja, a possibilidade de uma experincia prpria da verdade enquanto abertura do ser ele

    mesmo. O carter provisrio de Ser e Tempo reside, portanto, tal como o compreendemos, no desen-

    volvimento da pergunta pelo nexo entre ser e verdade.

    Palavras-chave:

    1. sentido; 2. verdade; 3. fenomenologia.

  • 8ABSTRACT

    The objective of the present dissertation is to comprehend in wich manner the provisional

    character Sein und Zeits task, to put the question on the meaning of Being in general, lays its foundation

    in that wich is questioned, the meaning itself. Meaning is the dimension of the project of

    comprehension in wich already finds istself the Being-question in the sense of both a privileged

    possibility of ourselves as an entity, the so-called Dasein, and of the decisive question traditionally

    carried on throughout the History of Philosophy. This dimension, as it shall be concluded with the

    demonstration of the phenomenological method of the inquiry, renders itself manifest as the

    comprehension of truth in general. However, because the being of Dasein is the revealing itself, the

    question on the truth, and ultimately, the question on the comprehension of Being in general demands

    an existential analysis through wich this entity becomes in its own being transparent in such a way

    that it could manifest itself truthfully, sc. in its authenticity. Nevertheless, because Dasein manifests

    itself first of all and for the most part in the manner of its inauthenticity, the ordinary everydayness,

    it is imposed upon the inquiry the necessity to pursue the ontological possibility of an original

    experience of the being of the entity that comprehends being, sc. the possibility of an authentic

    experience of truth as the revealing of Being itself. Therefore, the provisional character of Sein und

    Zeit lies, as we comprehend it, in the development of the question on the conexion between Being

    and truth.

    Keywords:

    1. meaning; 2. truth; 3. phenomenology.

  • 9SUMRIO

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    INTRODUO

    CAPTULO I

    A estrutura da compreenso e o conceitoexistencial de sentido

    a) O ser-no-mundo enquanto estrutura a priori da investigao

    b) O ser do a e o conceito existencial de sentido

    CAPTULO II

    A colocao da pergunta pelo ser da verdade

    a) Decadncia e angstia

    b) O fenmeno originrio da verdade

    CAPTULO III

    O desenvolvimento provisrio da pergunta pela verdade

    a) A situao hermenutica da investigao

    b) O poder-ser-todo prprio do ser-a

    c) A resoluo e o retorno pergunta pelo ser

    CONCLUSO

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    21

    41

    53

    53

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    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 85

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    INTRODUO

    Ser e Tempo tem como tarefa colocar a pergunta pelo sentido do ser em geral. A coloca-o desta pergunta exige uma preparao que se desdobra em uma dupla tarefa. Primeiro, trata-se de empreender a analtica existencial do ente em questo na pergunta pelo ser, o ente quequestiona, o ente que ns mesmos somos, apreendido terminologicamente como ser-a. Segun-do, conduzir a tarefa de uma destruio da histria da ontologia, na qual a ontologia tradicionalpode tornar-se transparente em si mesma e em seus limites, uma vez tendo-se assumido a neces-sidade da repetio da pergunta pelo ser.

    A preparao para a colocao da pergunta pelo sentido do ser deve, pois, despertaruma compreenso para o sentido desta pergunta, a qual toma para si, como meta provisria desua preparao, a interpretao do tempo como horizonte possvel de toda compreenso de serem geral.1

    Em sentido formal, a colocao da pergunta pelo sentido do ser descreve a estrutura detodo questionamento e as condies pelas quais o questionamento concreto pode corresponder sua estrutura. A estrutura da questo, desde a qual podem ser distinguidos seus momentosconstitutivos, dita simplesmente: Perguntar a procura que reconhece o ente no fato de seuser (Da-sein) e assim como ele (So-sein).2 O questionamento uma investigao concretaenquanto ele mesmo a determinao liberadora daquilo pelo que pergunta; daquilo que, noperguntar, reconhecido como o procurado. De fato, todo questionamento uma procura quereconhece que aquilo que , sendo previamente disponvel a uma procura, , tal como . O queh, pois, de ser reconhecido no questionamento o ser do ente interpelado, junto ao qual sepergunta, isto , o interrogado no questionamento. Porque em todo perguntar se d o reconheci-mento do ser do ente interpelado, em todo questionamento j se encontra presente uma compre-enso do ser, no como um conceito de ser de algum modo elaborado, mas primeiro como uma

    1 HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Tbingen: Max Niemeyer, 1993, p. 1. Daqui por diante, citado como: Seinund Zeit, seguido do pargrafo e nmero de pgina.2 Sein und Zeit, 2, p. 5.

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    visualizao prvia do que questionado, o ser, de tal modo que esta visualizao prvia o quearticula o ente em seu ser.

    Enquanto possibilidade de ser do ente que questiona, o questionamento mesmo tem omodo de ser deste ente; elaborado como um questionamento concreto, a investigao j seencontra naquilo que Heidegger nomeia uma vez a situao hermenutica.3 O desdobramentoformal dos momentos constitutivos da questo somente o projeto e o esboo daquilo quepertence ao perguntar, enquanto um modo de ser do ente que ns mesmos somos. A exposioapreende e elabora o que se abre na visualizao prvia a situao mesma em uma visoprpria, a transparncia (Durchsichtigkeit), que atravessa todos os momentos constitutivos doquestionamento e propriamente o coloca em sua situao, ou seja, na prvia compreenso doser.

    O ser, pois, encontra-se somente em uma compreenso do ser, que constitui a disponibi-lidade prvia do ser do ente primeiro reconhecida como a compreenso do ser vaga e medianaem que j sempre nos movemos em todo comportamento para com o ente, sem que para essecomportar-se fosse primeiro preciso a orientao de uma conceituao explcita do ser do ente.No questionar, o que procurado tomado tal como uma segunda vez, e somente nesta reto-mada, isto , neste reconhecimento, determinado em seu ser, o qual, uma vez que j se encon-tra previamente disponvel, no posto inicialmente pela questo, mas sim, j o que dado noquestionamento.

    A prvia compreenso do ser, portanto, envolve no somente uma determinadavisualizao do ser, mas esta mesma se enraza em um comportamento do ente que compreendeser, o ente que ns mesmos somos, com o ente compreendido. Assumir a necessidade da repeti-o da pergunta pelo ser , antes mesmo da exposio formal da estrutura do questionamento, omomento fundamental da colocao da questo, medida que ela mesma exige uma atitude eum comportamento que assuma a situao na qual se encontra, a situao hermenutica dainvestigao, a qual sempre precede o questionamento em seu desenvolvimento concreto e quese encontra presente em seu todo a cada momento deste desenvolvimento. A situao da inves-tigao somente a compreenso do ser na qual ns mesmos j sempre nos movemos em todocomportamento com o ente, ainda que em uma compreenso do ser vaga e obscura. Esta acompreenso, pois, que primeiro se insinua nos momentos da investigao, os quais so elesmesmos modos de ser do ser-a, como a maneira de visualizar o ser, de compreender e apreen-

    3 Cf. Sein und Zeit, 45.

  • 12

    der conceitualmente o sentido, a preparao da possibilidade da escolha correta do ente exem-plar, a elaborao do modo de acesso genuno a este ente.4

    Neste sentido, a Introduo de Ser e Tempo no descreve simplesmente as tarefas perti-nentes a um empreendimento investigativo, mas antes, a narrativa da situao em que seencontra o ente que pergunta em relao pergunta pelo sentido do ser, enquanto esta no umaquesto entre outras, mas aquela situao premente que nos interessa imediata e continuamenteem nosso ser. Esta situao revela-se como o fato, o achado fundamental de Ser e Tempo; de quens nos encontramos aqui e agora, sempre e a cada vez, em uma compreenso do ser do entecom o qual nos comportamos e de ns mesmos.

    Tal situao exige sobretudo mostrar em que sentido a pergunta pelo sentido do serpossui um privilgio e um primado diante de todo questionamento, e, do mesmo modo, em quesentido o prprio ente que questiona possui um primado enquanto ente em meio ao todo dosentes, como aquele a ser interrogado na pergunta pelo sentido do ser. Este primado mostra-se napergunta pelo ser medida que esta caracteriza-se como possibilidade de ser do ente que ques-tiona; Heidegger o nomeia assim o remetimento ou remisso prvia do perguntado o ser noser do ente que pergunta.5 Sendo de fato essencial, esta remisso no primeiro estabelecidapelo questionamento, mas atravs dele somente ela se desentranha como um carter de ser quepertence ao ser do ente que questiona, de tal modo que o determina no todo de seu ser, o qual compreender ser na e como compreenso do ser, que j sempre provisoriamente articula o entecom o qual nos comportamos em seu ser.

    Esta provisoriedade a princpio tem o sentido simplesmente daquilo que se mostraantes de toda determinao explcita de algo tal como ele em seu mostrar-se. Mostrando-setal como , o ente mostra-se como o ente de seu ser. Quando perguntamos: o que o livro? noencontramos o ser-livro em nenhuma perspectiva pela qual podemos apreender o livro que aest; o livro um conjunto de folhas encadernadas, assim como o livro o texto mesmo quecontm, ou a obra de um autor. Em todas essas perspectivas e nelas conjuntamente, queremosdizer o livro mesmo, mas de algum modo o ser-livro no se esgota em nenhuma delas. Noencontramos o ser-livro colocando lado a lado dois livros em comparao, nem mesmo compa-rando todos os livros que h. Procuramos o ser-livro nisto, que o livro, e no o encontramos.Somente procuramos o ser-livro de todo modo, entretanto, nos colocando na possibilidade de

    4 Sein und Zeit, 2, p. 7.5 Cf. Sein und Zeit, 2, p. 8.

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    encontr-lo, porque j dispomos de uma compreenso do ser-livro. O livro a presente parans enquanto livro segundo esta compreenso que articula o que no ente encontramos, o que aela pertence onticamente, e que, porm, no constitui o ser mesmo do ente, o qual se d em umacompreenso do ser. O ser, portanto, no nada de ntico.

    Procuramos o ser e no o encontramos como nada de ntico, como nenhuma determina-o que pertena ao ente; mas o ser sempre o ser de um ente. Mas este procurar mesmo, e tudoo que prprio ao procurar, pertencem ao ser do ente que ns mesmos somos, de tal modo quetoda possibilidade de ser deste ente essencialmente determinada pela compreenso de ser quese mostra explicitamente, enquanto compreenso do ser, somente em uma procura, sem que oser ele mesmo seja assim necessariamente conceituado, ou, de outro modo, sem mesmo quepossamos pensar algo sob o nome de ser. Pois o que se abre na procura a diferena mesmaentre o ente compreendido em seu ser, o ente que se mostra tal como ele , e a compreenso deseu ser; o ente , e, contudo, ele no o ser. Esta primeira perplexidade diante da questo do ser,que a todos os olhos o impasse auto-evidente para a colocao da pergunta pelo ser enquantotal,6 deve conduzir a colocao renovada da pergunta pelo ser, at que esta possa por si mes-ma uma vez tornar-se digna de questo.

    Por si mesma, significa, enquanto assumida como uma possibilidade de ser do enteque questiona em um questionamento concreto no qual est em jogo a compreenso do ser emgeral, ou seja, a ontologia em amplo sentido. A preparao que a tarefa de Ser e Tempo decisiva-mente requer, entretanto, no possui o carter de uma propedutica, o que se confirma continu-amente ao longo da obra posterior de Heidegger, sem que por isso a necessidade de uma prepa-rao seja abandonada: Inicialmente, parece que Ser e Tempo aspira apenas por uma espcie deteoria do conhecimento da ontologia (como a ontologia em geral possvel?). Ser e Temposeria assim um adendo metafsica. Mas o que est em questo o ser, no a ontologia. Ser eTempo talvez seja ento uma metafsica mais originria, mas de qualquer modo uma metafsica?No.7

    O carter provisrio da preparao para a colocao da pergunta enraza-se naquilo mesmopelo que pergunta o sentido do ser enquanto a j se encontra o ente que pergunta na e comocompreenso do ser, ou seja, em uma relao de ser com o ser, que constitui o prprio ser do ser-a, nomeado assim a existncia. O sentido do ser ele mesmo a situao em que consiste o

    6 Cf. Sein und Zeit, 1.7 HEIDEGGER, M. Nietzsche Metafsica e Niilismo. Trad. de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro:Relume Dumar, 2000, p. 134.

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    achado fundamental da investigao, aquilo que ela toma como dado, e, no entanto, no seoferece a uma descrio como algo simplesmente dado, mas se torna acessvel somente napergunta pelo ser, ou seja, no projeto da apropriao da compreenso do ser. A dignidade daquesto, porm, s se deixa comprovar, se de todo modo lhe cabe ser comprovada, na consuma-o do projeto, isto , no reconhecimento explcito do ser do ente em que somente o ente semostra em seu ser, enquanto o ente deste ser. A comprovao do primado da questo do ser,enquanto possibilidade de ser do ente que questiona, se funda assim em seu primado ntico,como o ente que deve ser interrogado em seu ser. Esta interrogao, que constitui a primeiratarefa preparatria de Ser e Tempo, a analtica existencial do ser-a, deve mostrar como a atitudee o comportamento que a colocao da pergunta exige concresce ela mesma da questo do ser,ou melhor, do que a est em questo o ser mesmo sendo propriamente a correspondnciaem uma possibilidade de ser do ser-a quela remisso prvia do ser que imediata e continua-mente lhe toca. O descerramento desta remisso pertence ao modo de ser do questionamento, eassim se mostra primeiro no testemunho da tradio de sua perplexidade diante da prpriaquesto. Heidegger compreende esta perplexidade, tal como narra o autor no 1 de Ser e Tem-po, como a abertura de um caminho para a repetio da questo, medida que ela no se esgotacom a renncia da tradio colocao da questo. Ao mesmo tempo, esta perplexidade nova-mente experienciada, e agora diante da prpria tradio, no significa de modo algum para opensador, por sua vez, uma renncia tradio, ou seja, filosofia, pois, justamente a se revelairrevogavelmente que a filosofia em sua possibilidade no se esgota em seu prprio testemunho.Por isso, a segunda tarefa preparatria deve levar a cabo uma destruio da histria da ontologia:

    Caso a pergunta pelo ser deva adquirir a transparncia de sua prpria histria,ento preciso abalar a tradio petrificada e remover os encobrimentos queatravs dela perseveram. Ns compreendemos esta tarefa enquanto a destrui-o do legado transmitido da ontologia antiga, que se consuma seguindo o fiocondutor da questo do ser, at se chegar s experincias originrias, nas quaisforam conquistadas as primeiras e desde ento orientadoras determinaes doser.8

    No horizonte de uma preparao, a analtica existencial deve, ao mesmo tempo, mostrara possibilidade e sentido da perplexidade diante da questo do ser e assim conduzir oquestionamento ao seu comeo, isto , sua origem, j sempre pressuposta, entretanto, no ar-

    8 Sein und Zeit, 6, p. 22.

  • 15

    ranjo da situao hermenutica da investigao. A primeira tarefa da preparao, portanto, jantecipa em si a segunda, enquanto pergunta pela possibilidade mesma de uma experinciaoriginria do que questionado, cujo sentido no est em estabelecer, isto , fundamentar, ascondies de possibilidade de uma tal experincia, mas precisamente em despertar uma com-preenso para o sentido desta questo. Como ento, perguntamos, vem a ser a provisoriedadeo trao essencial desta compreenso? Esta de incio nossa questo, aquela que pretendemosdesenvolver a fim de descobrir se ela nos permite de fato descerrar um caminho certamenteno o nico atravs de Ser e Tempo; no apenas atravs da obra que recebe este ttulo, masantes, da tarefa que ele nomeia.

    Como pode mesmo tal compreenso ser despertada, e o que isto significa? Isto , comopode a analtica existencial conduzir o questionamento at a perplexidade diante da perguntapelo ser, e a mesmo ainda assegurar-se da possibilidade da colocao da pergunta? Camos emperplexidade porque perguntamos pelo ser do ente, e encontramos sempre o ente em seu ser; oente , e no entanto, ele no o ser:

    Todo ente no ser. Ouvir tal coisa soa de modo trivial em nosso ouvido, quan-do no de modo ofensivo. Pois, pelo fato de o ente ter seu lugar no ser, nin-gum precisa preocupar-se. Todo mundo sabe: ente aquilo que . Qual a outrasoluo para o ente a no ser esta: ser? E entretanto: precisamente isto, que oente permanea recolhido no ser, que no fenmeno do ser se manifesta o ente;isto jogava os gregos, e a eles primeiro unicamente, no espanto.9

    Por isso, a pergunta fundamental, como a qual elabora-se o mtodo da investigao, omtodo fenomenolgico, no procura determinar o que o ente, mas pergunta por como o enteem seu ser, isto , como o ente mostra-se tal como . No entanto, Ser e Tempo no pergunta poreste ou aquele ente, mas pelo ente que ns mesmos somos. Como o ser-a em seu ser, aomostrar-se tal como , compreendendo ser na e como compreenso do ser, ou seja, existindocomo o ente de seu ser? A analtica existencial perfaz a exposio das estruturas daexistencialidade da existncia, enquanto elas dizem primordialmente o ser deste ente, e, nestesentido, j uma determinao de ser e no do ente da compreenso de ser na e como a qualo ser-a essencialmente j se encontra, compreendendo a si mesmo em uma possibilidade de seuser. Portanto, na pergunta pelo ser, assumida como possibilidade de ser, j reside uma idia da

    9 HEIDEGGER, M. O que isto a filosofia? in: Conferncias e Escritos Filosficos. Trad. de Ernildo Stein. SoPaulo: Abril, 1989, p. 17.

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    existncia, no horizonte da qual podem articular-se na exposio os momentos constitutivos daexistencialidade da existncia em seu todo. Este compromisso com a totalidade deve nos trazer,por fim, pergunta pela possibilidade da plena determinao da compreenso do ser, ou seja,pela possibilidade da compreenso do ser em geral.

    Heidegger elabora a exposio da fenomenologia como um conceito de mtodo, cujocarter tambm provisrio por corresponder antecipao da exigncia fundamental da colo-cao da pergunta pelo ser, qual seja, a abertura do horizonte do prprio perguntar. Esta aabertura mesma do sentido do ser, que h de coincidir, portanto, com a compreenso da verdadeem geral. Provisoriamente, porm, no permitido a Ser e Tempo tomar uma deciso sobre acompreenso da verdade, isto , dela se apropriar, mas antes, compreend-la como o horizontede toda apropriao, isto , o mbito mesmo de uma deciso. No se trata de suspender taldeciso; a provisoriedade ao mesmo tempo a preparao que, com a pergunta fenomenolgicapelo ser do ente, coloca uma vez a pergunta pelo ser da verdade.

    Enquanto conceito de mtodo, porm, a fenomenologia est necessariamente implicadana colocao da pergunta pelo sentido do ser, a qual orienta-se pela experincia grega doquestionamento. Seguindo este fio condutor, a articulao da questo esboada atravs da ex-plicao provisria da fenomenologia como o mtodo da investigao deve se haver com onexo entre ser e verdade, com o qual o autor lida explicitamente no 44 da obra.

    Com a abertura do a, o ser-no-mundo em seu todo j sempre se abriu na unidade dosmomentos constitutivos do a mesmo, o compreender, a disposio e o discurso. O discurso a articulao da compreensibilidade do mundo j aberto no horizonte do projeto do ser-no-mundo fctico, horizonte este que compreendemos como o sentido mesmo. Por isso, no dis-curso que se resguarda a compreenso prvia do ser do ente; de modo algum, porm, ela perma-nece com o ser-a, no sentido da reteno do que apreendemos. Ao resguardar a compreenso doser do ente, o ser-a ao mesmo tempo a confia ao mundo, como a significncia, desde e atravsdo discurso que a articula. Assim, o discurso, em seu sentido existencial, o fundamento paraque a compreenso do ser venha palavra: O discurso , existencialmente, a linguagem, por-que o ente cuja abertura ele articula em significncias tem o modo de ser do ser-no-mundolanado, confiado ao mundo (auf die Welt angewiesen).10 Como compreenso do ser, porm, alinguagem no um feito nem uma capacidade do homem, mas ela deve ser compreendidasegundo o modo de ser do ser-a. O discurso, ou seja, as palavras elementares em que o ser-ase pronuncia11 , porque conforma em palavras o sentido ele mesmo, pode ser chamado a teste-munhar o ser do prprio ser-a, e no somente uma determinada interpretao de si mesmo,

  • 17

    circunscrita aos limites histricos das significaes das palavras. Com base no que a hermenuticada facticidade arranca a esse testemunho, porque ela j pressupe mesmo esta compreenso, aanaltica existencial pode mostrar-se em sua historicidade prpria, e certamente crtica para simesma. Ela no pretende fixar os conceitos e suas relaes em um sistema, mas antes, aanaltica da existncia tem o propsito de deixar ver, demonstrar em seu todo essas articula-es, ou seja, adentrar o horizonte de sua compreensibilidade. Porque, no entanto, este horizon-te sempre aquele do qual veladamente partimos, esse movimento da compreenso para dentrodo mbito da compreenso, se, enfim, compreende-se a si mesmo em sua historicidade, h deesclarecer para o homem a necessidade singular de tornar-se contemporneo de si mesmo.

    Por fim, a pergunta pela totalidade do todo estrutural da existencialidade da existncia,a qual nos referimos anteriormente, no nada seno a exigncia da colocao da pergunta pelosentido, que no pode assim ser colocada como uma pergunta pelo ser do ente, se j se dispe deuma deciso sobre o horizonte mesmo em que o ente se mostra em seu ser, isto , em que sentido possvel responder pergunta pelo ser do ente. Isto significa que, na questo do ser, j resideuma compreenso do sentido do ser, ainda que por ela mesma, isto , pelo testemunho da tradi-o, o sentido do ser em geral no pde ter-se tornado plenamente explcito para essa mesmatradio. Esta compreenso da filosofia em sua histria joga Ser e Tempo em seu espanto, emsua perplexidade prpria: se o sentido do ser j sempre compreendido, porque preciso sem-pre uma vez mais perguntar pelo sentido, e assim, pensar novamente a questo at seu comeo?

    10 Sein und Zeit, 34, p. 161.11 Cf. Sein und Zeit, 44, p. 220: A aduo de tais testemunhos deve preservar-se diante de uma msticadesenfreada das palavras; entretanto, o ofcio da filosofia , no fim, resguardar a fora das palavras mais elementa-res, nas quais o ser-a se pronuncia, de se nivelarem, atravs do entendimento comum, incompreesibilidade,que por sua vez serve de fonte para pseudo-problemas.

  • 18

    CAPTULO I

    A estrutura da compreenso e o conceito existencial de sentido

    Reconhecidamente Ser e Tempo empenha-se e insiste repetidamente em arrancar com-preenso do ente que ns mesmos somos e problemtica da filosofia com a qual agora deve-mos lidar os preconceitos subjetivistas oriundos do pensamento moderno. Tais preconceitostendem a explicar o carter de ser do si mesmo (o eu) como o de um sujeito essencial-mente cindido do mundo, isto , do objeto, colocando, a partir da pressuposio dessaciso, o problema de sua possvel relao. Esta relao realizada no conhecimento enquantoconhecimento verdadeiro, isto , como a determinao do ser do objeto em uma pura percepointuitiva (o modo de ser do ente que conhece ser junto ao objeto do conhecimento), na qualreside a verdade originria e autntica1 , mas cuja verificao acontece somente na proposiosobre o objeto. Ao lado da discusso com tais preconceitos, que revelam sobretudo que atmesmo uma apreenso crtica da tradio pode permanecer excluda da discusso autntica desua prpria historicidade, encontramos, na obra de Heidegger, uma investigao fenomenolgicadas teses da ontologia, cujo propsito a liberao dos fundamentos impensados das determi-naes ontolgicas do ente enquanto ente, isto , da entidade do ente, a fim de que estas revelemos indcios da compreenso do ser ele mesmo e da sua articulao em que tais determinaesfundam-se. Tanto em Ser e Tempo quanto nos Problemas Fundamentais da Fenomenologia,ensaia-se antecipar com essas discusses a tarefa prevista da destruio ou desconstruo dahistria da ontologia. O carter negativo de uma tal destruio tem a funo provisria de dife-renciar o questionamento da analtica existencial da lida tradicional com as questes, que seorienta ontologicamente pelo conhecimento, no somente como uma relao exemplar entre

    homem e mundo, mas como aquela relao somente em que o homem e o mundo so apreendi-dos enquanto tais, na qual o homem pode apropriar-se de si como aquele que conhece, e assimalcanar propriamente sua posio no mundo.

    Esta constante diferenciao e delimitao negativa da analtica existencial diante de

    1 Cf. Sein und Zeit, 32, p. 171.

  • 19

    todo subjetivismo e seu aparente contrrio, o objetivismo, isto , de toda possibilidade deinterpretao da realidade do real simplesmente legada por uma tradio ainda no compre-endida em sua histria, no a simples contraposio de interpretaes. Trata-se de afastar apossibilidade de se precipitar em uma caracterizao da experincia fundamental desde a qual atarefa de Ser e Tempo pde mesmo ser assumida, e assim manter a investigao em prontidopara questionar seus prprios pressupostos, e, sobretudo, colocar em jogo a essncia do homem.No outro o sentido da analtica existencial do ser-a, do ente que questiona, o ente que nsmesmos somos; pois, se este ente determinado essencialmente pela historicidade, o ente quens mesmos somos tambm o homem da tradio, o homem do ocidente. Se lhe for possvelem seu ser colocar em jogo a prpria essncia, dever ser mostrado que em Ser e Tempo ohomem uma vez experiencia-se em seu ser j sendo dentro do mundo, essencialmente j emmeio aos entes que ele mesmo no . Desde esta experincia pode a obra tomar como o a priorida investigao o ser-no-mundo como constituio fundamental de ser do ser-a, e assim trazerao questionamento aquilo de que o homem no pensamento j se encontra apartado sua prpriafacticidade.

    O problema epistemolgico, no obstante, est base do surgimento da fenomenologia,e, consequentemente, est tambm uma discusso com os fundamentos de toda distino dotipo sujeito-objeto. No Prlogo s Investigaes Lgicas, Husserl expe as razes que o leva-ram a empreender tais investigaes, partindo de questes acerca da fundamentao da mate-mtica pura, na medida em que a matemtica pode ser tomada como paradigma de toda cincia.No entanto, ainda que a matemtica possa ser satisfatoriamente determinada objetivamente, aprpria subjetividade do conhecer depende de uma fundamentao psicolgica da lgica. Oproblema do conhecimento passa a ser compreendido como a relao entre a objetividade docontedo do conhecimento, ou a objetividade de toda cincia em geral, e a subjetividade doconhecer; a possibilidade do conhecimento, contudo, no pode permanecer comprometida compossibilidade da relao destas duas instncias de naturezas distintas, sendo necessria umanova fundamentao da lgica pura e da teoria do conhecimento.2 O projeto de uma cinciafenomenolgica no trata por isso do estabelecimento de uma conexo adequada entre estasduas instncias, como nos comprova Husserl: No saber atual, ao qual nos vemos reduzido altimo termo, a possumos [a verdade] como objeto de um juzo justo. Mas isto s no basta;

    2 HUSSERL, E. Investigaciones Lgicas. Traduo de Manuel G. Morente e Jos Gaos. Madri: Biblioteca de laRevista de Occidente, 1976, Prlogo, p. 22. Daqui por diante mencionado como Investigaes Lgicas, seguidodo nmero da parte e do nmero de pgina.

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    pois nem todo juzo justo, nem toda valorao de uma situao objetiva, ainda que concordecom a verdade, constitui um saber do ser ou no ser de tal situao.3

    Ao tratar desta questo e do deslocamento de seu mbito de fundamentao, Heideggerempenha-se em Ser e Tempo em mostrar o carter derivado do conhecimento, na medida em queconhecer uma possibilidade de ser-no-mundo, assim como uma modificao do modo de sercotidiano, no qual o ser-no-mundo na maior parte das vezes se mostra. Aquela ciso fundamen-tal entre dois modos de ser distintos no encontra no fenmeno do ser-no-mundo o nexo e alegitimao de sua concordncia, como se fosse posto entre estas duas instncias. Heidegger seantecipa ao entendimento esquemtico da analtica existencial, ao criticar, uma vez mais, ajustia da distino sujeito objeto, ao que parece imprescindvel a toda atitude terica:

    Que mais se apresentaria neste fenmeno a no ser um commercium dado deantemo entre um sujeito simplesmente dado e um objeto simplesmente dado?Esta interpretao aproximar-se-ia dos dados fenomenais se dissesse: o ser-a o ser deste entre. [...] Nesse caso, o entre j estaria sendo conceituado comoresultado da convenientia entre duas coisas simplesmente dadas. O seu pontode partida prvio j explode o fenmeno e seria insensato tentar recomp-lonovamente a partir de seus fragmentos.4

    Uma das conseqncias deste tipo de interpretao estabelecer para Ser e Tempo umpapel a desempenhar na Histria da Filosofia, interpretando sua tarefa como uma nova resolu-o para problemas recorrentes ao longo dessa histria e, por este critrio apenas, indiscutveisem sua legitimidade. Desta forma, contudo, permanecemos externos questo, pois externos prpria histria da filosofia, em uma posio na qual a pergunta pela histria edifica-lhe umaunidade artificial, aproximando, entre os filsofos, seus conceitos, temas e objetivos. Assim, arazo, a vontade, o livre-arbtrio so dignos de questo; como poderamos, porm, pergun-tar, desde o interior deste esquema, pelo que propriamente a histria, se ns mesmos constru-mos o objeto histrico antes de coloc-lo em questo? O ser-a justamente no uma cons-truo exigida pelo objetivo de resolver os problemas enfrentados pela filosofia; ns mesmossomos no modo de ser do ser-a. Com esta constatao, entretanto, chegamos decididamente aocerne de um questionamento que sabe de seu lugar na histria e nela se instala ao pertencer-lhegenuinamente? Chegamos ao instante em que podemos pr-nos a ns mesmos, como o que

    3 Investigaes Lgicas, p. 41.4 Sein und Zeit, 28, p. 132. Cf. tambm 13 da mesma obra.

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    somos, em questo?Mas no este o preciso deslocamento pretendido em Ser e Tempo ao conduzir o ho-

    mem, como quem pergunta, ao seu elemento, o cotidiano? Ainda mais: como, no interior desseelemento, d-se a ocasio de perguntar pelo sentido de todo comportamento como tambmo questionar , isto , do ser homem, a quem e somente a quem pode ser dado compreender noapenas o seu ser, mas o ser em geral?

    a) O ser-no-mundo enquanto estrutura a priori da investigao

    Enquanto estrutura a priori da analtica existencial, o ser-no-mundo a constituio deser que expressa formalmente, a princpio, o todo do ser do ser-a, desde a idia de existncia.Esta se abre na colocao da pergunta pelo sentido do ser em geral, medida que nesta perguntaest em jogo o ser do ente que questiona, sendo em seu ser a condio ntico-ontolgica depossibilidade da ontologia em geral. Existncia significa, primordialmente, compreenso deser; a existencialidade da existncia ela mesma a visualizao prvia do ser no horizonte daqual o ser mesmo questionado quanto ao seu sentido.

    A pergunta da analtica existencial pode ser elaborada do seguinte modo: como se mos-tra em si mesmo, desde si mesmo o ente cujo ser compreender ser? O mostrar-se do ser-a temo carter de expor-se a si mesmo, como o modo pelo qual o ser-a se d a compreender o todo deseu ser enquanto Cura (Sorge), como Heidegger interpreta o fenmeno originrio do ser do ser-a. Este fenmeno rene os momentos constitutivos do ser-no-mundo em sua totalidade estrutu-ral, sendo mesmo o termo da analtica existencial da cotidianidade. Porm, ao mesmo tempo,este fenmeno exige do questionamento a experincia da unidade originria desse todo existen-cialmente interpretado a partir da cotidianidade. A cotidianidade , justamente, o modo peloqual o ser-a se mostra em si mesmo, certamente, e, no entanto, desde a compreenso de si jdispersada em comportamentos fragmentados. A unidade originria do ser-a em seu todo en-quanto Cura dever ser demonstrada propriamente por Heidegger como o sentido que, existen-cialmente, j se mostra como a abertura mesma do horizonte em que o ser-a se d a compreen-der em cada modo de seu ser. O sentido dever ser demonstrado como a totalidade da aberturafctica do a em que se sustenta a compreenso do ser dos entes com os quais o ser-a se compor-ta e de si mesmo como aquele que se comporta. No 32 de Ser e Tempo teremos a oportunidadede lidar com a estrutura e interpretao existencial do sentido. Com isto, porm, no se alcana

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    uma resposta ao que significa o sentido do ser, e, ao mesmo tempo, qual o sentido da perguntapelo sentido do ser, desde o que ela demanda que sua colocao seja primeiro e somente provi-sria. Inicialmente, s podemos tratar do sentido como problema a partir da exposio da estru-tura do compreender (Verstehen) que, como existencial do ser-a, perfaz, juntamente com osexistenciais da disposio (Befindlichkeit) e do discurso (Rede), o ser do a isto , a prpriaabertura do a como o a em que o ser-a como ele mesmo existe.

    Em todo comportamento com os entes reside uma compreenso de ser; esta se mostra,se expe como tal, somente na descoberta do ente no horizonte de uma possibilidade de ser, aqual no uma possibilidade solta no ar, mas a cada vez um modo de ser junto aos entes quevem ao encontro dentro do mundo, quer dizer, os entes intramundanos, pelo qual o ser-a j sedecidiu prpria ou impropriamente: E porque o ser-a sempre essencialmente sua possibili-dade, este ente pode em seu ser escolher-se a si mesmo, ganhar-se, ele pode se perder, emesmo nunca, ou apenas aparentemente, ganhar-se.5 O carter desta compreenso j decidi-da, que pode por isso permanecer indiferente, e ao mesmo tempo se diferenciar em certaspossibilidades do ser-a transparentes para si mesmo, , como um modo de ser do ser-a, acotidianidade mediana. Este o modo pelo qual o ser-a se encontra a si mesmo sendo junto aosentes com os quais se comporta, que lhe vm ao encontro nas possibilidades que o dia lhe traz.No comportamento com os entes que o ser-a ele mesmo no e com os outros, os entes elesmesmos, porm, no se mostram vaga e obscuramente, e to pouco na nudez de algo simples-mente dado, mas justamente se mostram como algo, e certamente como aquilo com que ocomportamento tem de se haver em um mundo. Trata-se, no comportamento, deste livro quelemos, do martelo com que pregamos uma tbua, da viga de madeira suficientemente resistentepara sustentar a estrutura de uma casa. Desse modo, deste algo que, segundo a terminologia deSer e Tempo, descoberto, tal como , com o ser do ser-a, dizemos que ele tem sentido. O quesignifica sentido, porm, em seu conceito existencial, se agora apenas cotidianamente falamosdo sentido?

    Porque ao ser-a pertence essencialmente ser-no-mundo, o que anteriormente tem cartermeramente formal na colocao da pergunta pelo ser ser no nada de ntico, mas ser sempre o ser de um ente alcana agora seu sentido existencial, uma vez que o ser-no-mundopossa se mostrar como o mbito da compreenso do ser e da descoberta do ente. Isto no signi-fica que a compreenso do ser em geral venha palavra como tal em cada modo do ser-no-

    5 Sein und Zeit, 9, p. 42.

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    mundo j fragmentado nas possibilidades cotidianas; a analtica existencial, por isso, mostracomo se d a compreenso cotidiana de ser, em que o compreender entranha-se, e com ele, o ser,em sua diferena com o ente. Atravs da exposio da estrutura formal do ser-no-mundo desdeo fenmeno cotidiano em que ele encoberto, o encobrimento assim denunciado, provocandoa investigao comprometida com a colocao da pergunta pelo sentido do ser em geral a per-guntar pela abertura do ser-no-mundo em seu todo.

    Passamos agora a uma breve exposio da estrutura do ser-no-mundo, a fim de levantar asquestes relevantes para sua interpretao na perspectiva da compreenso existencial do senti-do que pretendemos esclarecer neste captulo. Como constituio de ser fundamental do ser-a,o ser-no-mundo uma estrutura unitria presente em sua totalidade em cada um de seus mo-mentos constitutivos, quais sejam: o ser-em; o mundo em que o ser-a ; e o ente que no mododo ser-no-mundo ele mesmo, aquele que responde pergunta pelo quem. Com a anlise des-tes momentos constitutivos, seguindo o fio condutor da idia de existncia, encerrada formal-mente no momento do ser-em (In-sein), Ser e Tempo alcana as determinaes de ser do ser-a,isto , as determinaes da relao de ser (Seinsverhltnis) do ser-a com seu ser e com mundo,que constituem todo comportamento deste ente. Estas determinaes so nomeadas a facticidade,a existencialidade e a decadncia; em cada qual, o ser-no-mundo em sua totalidade se encerra,isto , ele se retrai, ao mesmo tempo em que nesta retrao o ser-a se remete ele mesmo a cadamomento que lhe constitui desde a unidade de seu todo estrutural na perspectiva da totalidadedeste todo. A unidade mesma, desde a qual se estrutura a perspectiva da totalidade dos momen-tos estruturais do ser-no-mundo, reside, a princpio, na idia de existncia, sendo ela mesma aremisso do ser-a a si mesmo, no como uma articulao formal, mas como o prprio sendodeste ente em que e como o qual se sustenta o ser-no-mundo como o ser-no-mundo facticamenteexistente no mundo j aberto, em que o ser-a se encontra lanado.

    Mundo, porm, pertence ao ser do ser-a; o carter de j se ter aberto no umaconstatao do fato do mundo, mas sim pertence ao ser deste. O mundo ele mesmo se mostra nacompreenso de j se ter aberto como o mundo em que os entes vm ao encontro no horizontede uma possibilidade de ser-no-mundo, na qual o ser-a encontra a si mesmo.

    A analtica existencial pergunta por como se mostra o ser-a, o ente que ns mesmossomos, em si mesmo, desde si mesmo. A idia de existncia orienta a colocao desta pergunta;seu conceito prvio se articula do seguinte modo: Ns determinamos a idia de existnciaenquanto o poder-ser que compreende, para o qual est em jogo o seu ser. Enquanto sempremeu, porm, o poder-ser livre para a propriedade e impropriedade ou para sua indiferena

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    modal.6 A existncia, desse modo, no determina o que o ser-a, mas como ele . A perguntapelo como , pois, a pergunta fenomenolgica pelo ser do ente, e isto de tal modo que o ser-a ele mesmo, assim como os entes com os quais se comporta, no so determinados como oobjeto de uma investigao, cujo tema propriamente dito o ser ele mesmo. A pergunta pelocomo significa, como o ser ele mesmo se mostra no ente que ; por isso, a preparao exigeque, em primeiro lugar, o ente ele mesmo se mostre em seu sendo. O si mesmo do ser-a, en-quanto aquilo que se mostra, no pode por isso ser tomado como algo constantemente presenteque efetivamente , se esta efetividade precisa a cada vez se remeter plena determinao desua qididade. O si mesmo do ser-a deve ser lido, de outro modo, como este carter da existn-cia que Heidegger nomeia a Jemeinigkeit, o ser-sempre-meu. O ser-a a cada vez o ente de seuser, o que significa, ele se encontra a sendo somente aquele que responde pelo prprio ser.Respondendo pelo prprio ser, este ente ele mesmo para apropriar-se de si, quer dizer, para sero seu prprio ser, o qual ser-a, ou de outro modo, ser-o-a (Da-sein), como nomeado em Sere Tempo sua presena propriamente dita. Na apropriao de si mesmo, o ser-a se d a com-preender como ele mesmo. O si mesmo tem a o carter da mesmidade (Selbigkeit), o quesignifica, a mesmidade entre o ser que o ser-a tem de ser e o ser que ele j sempre . Nofenmeno da mesmidade, se sustenta o si mesmo como o qual o ser-a se encontra junto aomundo, com os entes com os quais se comporta, mesmo na compreenso imprpria de si mes-mo, como o chamado si mesmo-impessoal (das Man-selbst). Este modo do si mesmo funda-sena mesmidade, a qual originariamente acontece enquanto a abertura da possibilidade de ser naqual o ser-a se projeta como o seu prprio poder-ser que compreende. Ou seja, no se trata deum si mesmo do qual no temos conscincia e que acompanhe veladamente as possibilidades deser, mas o si mesmo como o ser-possvel pelo qual o ser-a responde em cada possibilidade.

    O si mesmo do ser-a, portanto, no se d em uma reflexo sobre si que permaneaencerrada em sua interioridade, a partir da qual se relaciona com o mundo. O si mesmo j umadeterminao do ser-a, como aquele que escreve, aquele que constri, aquele que procura einvestiga. A exigncia de que o ser-a se mostre em si mesmo desde si mesmo no pode sercumprida atravs de uma interpretao do ser deste ente, se esta procura encontrar o si mesmodeste ente enquanto algo acessvel na evidncia da constncia de sua identidade na mudana emultiplicidade das vivncias e comportamentos.7 A pergunta pelo modo de ser do si mesmo

    6 Sein und Zeit, 45, p. 232.7 Cf. Sein und Zeit, 25.

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    discutida somente na perspectiva da existencialidade da existncia, a qual se torna digna dequesto com a colocao da pergunta pelo sentido do ser. Apesar de que aparentemente no hcomo escapar a um crculo na argumentao, a radicalidade da abertura deste crculo enquantoo mbito da questo d a Ser e Tempo o fio condutor de sua preparao, pois a idia da existn-cia se enraza na compreenso e apropriao do remetimento prvio ou que retorna (Rck-oder Vorbezogenheit) do questionado (o ser) ao perguntar como modo de ser de um ente.8 Esteremetimento prvio se mostra enquanto compreenso do ser, e certamente no em qualquersentido contemplativo, mas como o trao fundamental da finitude do ser-a. Certamente a ana-ltica existencial logra demonstrar que a finitude no uma propriedade do ser-a, no sentido deuma qualidade de seu ser que o circunscreve transitoriedade e contingncia do mundo. Mascomo ento a finitude, que o ser-a experiencia sendo compreenso do ser em uma possibilida-de singular de ser-no-mundo? Como a pergunta pelo sentido do ser favorece ao ser-a colocar-seprivilegiadamente em sua singularidade? Devemos demostrar, tendo em vista esta questo, comoHeidegger expe o trao essencial do compreender enquanto projeto (Entwurf), em que se con-forma a assuno do poder-ser-no-mundo como o qual o ser-a j existe facticamente.

    A compreenso do ser pela qual o ser-a j sempre se decidiu em um compreender, e daqual se apropria no projeto, j rene em si a prvia determinao do ser-no-mundo em seu todocomo o ser que o ser-a no pode deixar de ser. O ser-a se encontra lanado como poder-ser-no-mundo em um mundo j aberto; projeto, pois, sempre o projeto lanado, o que antecipada-mente compreendemos como a correspondncia do ser-a sua prpria facticidade.

    Na estrutura do compreender procuramos o modo pelo qual o ser-a se mostra em simesmo, desde si mesmo; o horizonte em que compreensvel em seu ser, tal como ele se d acompreender. O ser-a se d a compreender cotidianamente quando reconhecemos, por exem-plo, que a mesa a diante a mesa em que nos encontramos sentados, conversando, com osoutros. Este reconhecimento no trata da descrio de uma cena, da qual em dado instante nosdamos conta; antes mesmo que cada coisa e cada qual possa se sobressair dentre os demais,reconhecemos nosso prprio ser a e ser a com o outro, e o reconhecemos igualmente na possi-bilidade de o trazer palavra tambm como a descrio, o esboo, deste ser-a-com enquantoencontro, reunio, como o que o ser-a ele mesmo se presentifica, isto , se d a compreender,tal como ele . Um encontro, e, por conseguinte, toda possibilidade de ser, , como modo de serdo ser-a, no a possibilidade de um eu agir em um mundo, mas o ser-o-a, aqui e agora

    8 Sein und Zeit, 2, p. 8.

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    em um mundo como possibilidade de ser. A possibilidade no se mostra como tal, mas ela seanuncia na descoberta dos entes que se renem na perspectiva dessa possibilidade, como aquiloque tem sentido. O sentido mesmo j est presente o sentido como a presena do que apresente, ou, segundo a palavra de Heidegger, sentido aquilo em que se mantm acompreensibilidade de algo.9 Por isso, porque h o sentido, a possibilidade de ser no precisa,para ser, isto , para se consumar, do conhecimento prvio de todo ente com o qual o ser-a secomporta, assim como o ser-a no precisa saber-se a si mesmo em uma reflexo.

    Por isso, esta compreenso de si mesmo do ser-a cotidiano no assim todependente da amplitude e penetrao do conhecimento das coisas enquantotais, mas da imediatez e originariedade do ser-no-mundo. Tambm o que vemao encontro apenas fragmentado, tambm o que compreendido em um ser-atalvez apenas primitivamente, o mundo da criana, , enquanto intramundano,igualmente carregado de mundo. preciso apenas que o ser-a existente, se-gundo sua possibilidade de existncia, seja suficientemente originrio, parapropriamente ver o mundo j desentranhado com sua existncia, faz-lo vir palavra e atravs disso torn-lo expressamente visvel para os outros.10

    O sentido se exprime existencialmente, em primeiro lugar, desde o reconhecimento deque todo comportar-se do ser-a comportamento com os entes em um mundo. No escrever,como um comportamento do ser-a, este j se encontra junto aos entes, e, cotidianamente, j seencontra o ser-a constantemente presente. Esta constncia, porm, no significa a subsistnciado ente que eu mesmo sou ao lado das coisas, mas se mostra no ser dos entes como umremetimento (Verweisung) possibilidade de ser do ser-a. O ser-a se encontra presente, isto ,ele se presentifica no e como escrever, construir, investigar, ou o que mais seja, e, no entanto,o ser-a no se encerra em nenhuma possibilidade; pode-se deixar de escrever, ou nunca t-loaprendido, e nem por isso o ser-a deixa de ser o ente que ele ; sendo, o ser-a j sempre comtodo o seu. Por isso, a compreenso do ser, na qual se determina o ser-no-mundo em seu todo, eque reside em cada comportamento em que se fragmentou o ser-no-mundo, tem no sentido aperspectiva de sua totalidade; o sentido d ao ser-no-mundo o limite de seu possvel.

    Como ttulo ontolgico, o ser de um possvel ser-no-mundo nomeado por HeideggerBesorgen, que traduzimos aqui por cuidado. Cuidado significa o ser do ser-no-mundo que j sedesentranhou em suas possibilidades fragmentadas, nos comportamentos com os entes que vm

    9 Sein und Zeit, 32, p. 151.10 HEIDEGGER, M. Grundprobleme der Phnomenologie. Frankfurt a. M.: Klostermann, 1976, 15, p. 244.

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    ao encontro dentro do mundo. Ainda que o cuidado seja o ser do ser-no-mundo desdobrado naspossibilidades que o dia nos traz, neste fenmeno ser possvel encontrar o ser-no-mundo emseu todo, atravs da pergunta fenomenolgica pelo ser do ente intramundano. O que estequestionamento procura, em ltima instncia, a verdade do ente, isto , o horizonte de suadescoberta enquanto o ente com o qual o ser-a trata no mundo de seu poder ser-no-mundo. Porisso, a pergunta pelo ser do ente em Ser e Tempo no visa a determinao do ente em suaqididade, mas sim, a remisso ao mundo em que o ser-a existe como tal, e em que se sustentaessa remisso; ou seja, trata-se da pergunta pela mundanidade do mundo.

    Porque a investigao toma como ponto de partida o cuidado cotidiano, o fenmeno domundo se mostra mais proximamente como o mundo circundante (Umwelt) do cuidado, ao qualo ser-a se atm cotidianamente. O mundo circundante assim o mbito em que o ente primari-amente se torna visvel tal como ele , e em que se d igualmente o ver como o qual o ser-a para si mesmo visvel, que se elabora como circunviso. Para Heidegger, mundo assim umconceito ntico; todavia, o ente ao qual se deve o carter ntico do mundo sempre o ser-a. Emuma universidade, por exemplo, j nos encontramos em um mundo; podemos mesmo cham-lode mundo acadmico, no qual nos dedicamos com os outros em nossos afazeres, obrigaes epossibilidades, e nos compreendemos sendo neste mundo como aluno, como professor. Mas omundo acadmico se anuncia igualmente medida que se mostram as mesas e as carteiras, assalas e ptio. Tudo isto so coisas deste mundo com as quais nos comportamos, isto , com asquais cuidamos de ser o que ns mesmos somos junto s coisas, em funo da possibilidade deser que assumimos como a nossa, e na qual podemos por isso ganhar a ns mesmos, ou perdermo-nos. Este mundo j aberto da academia ao mesmo tempo o mundo pblico ao qual se podemesmo ser indiferente, como o mundo que j trazemos conosco. Pois, sendo em meio publi-cidade comum do mundo, no se encontram a do mesmo modo o aluno e o professor, os funci-onrios e os passantes. Cada qual se encontra igualmente em uma relao de ser com o mundo,em que os entes podem ser descobertos, pois eles j pertencem em seu mostrar-se prprio a estemundo.

    Ns j sempre nos encontramos cuidando. A interpretao e explicao explcitas do serdo ente tambm uma possibilidade de ser do ser-a. comum o exemplo de que mesmo nesteofcio da interpretao e tematizao do ser, ou em toda possibilidade qual possa ser atribudao ttulo de atitude terica, fazemos uso do livro, de papis e cadernos, abrimos a porta do escri-trio e sentamos mesa de trabalho. Mas este exemplo evocado para dizer que a atitudeterica sempre deve algo atitude prtica. Este entendimento, porm, encobre o fenmeno do

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    cuidado, no simplesmente como tema da investigao, mas sobretudo como o modo de serdesta mesma.

    Enquanto investigao do ser, porm, ela [a saber, a exposio fenomenolgica]consuma, de maneira explcita e autnoma, a compreenso do ser que desdesempre pertence ao ser-a e que vive em cada lida com o ente. O entefenomenologicamente pr-temtico, aqui assim o utilizado, o que se encontrana produo, torna-se acessvel ao transpormo-nos a tais cuidados. Rigorosa-mente, o discurso sobre uma tal transposio conduz ao erro; pois ns noprecisamos primeiro nos transpor para esse modo de ser do cuidado da lida. Oser-a cotidiano j sempre neste modo.11

    Neste instante a investigao deve compreender que j se encontra no e como cuidado,no como a atitude terica se encontra em relao atitude prtica. Uma investigao passa porcima do fenmeno do mundo, e consequentemente, da cotidianidade, ao encobrir para si mesmaa remisso essencial que reside no ente que se mostra mais proximamente ao ser do ente que eumesmo sou, tal como ele se mostra cotidianamente. Esta remisso no propicia ao ser-a apenaso reconhecimento de si mesmo, como em um reflexo de si no mundo. Sobretudo, se concedidoao ser-a despertar da lida cotidiana, em que se encontra como que em uma ateno desatenta,de modo algum para neg-la, mas como que para se por escuta dessa remisso presente emcada ente, mas que sempre continuamente o ultrapassa em direo ao todo do contexto em queos entes se mostram, o que ele reconhece o seu prprio ser-a, quer dizer, sua presenaenquanto o ser dessa remisso.

    Desse modo, o ente que vem ao encontro no cuidado se mostra como o ente que pertencea este mundo, intramundamente, no simplesmente porque est ao alcance do olhar interessadodo projeto, mas sim, porque o ente que se manifesta por si mesmo, porque j foi liberado comoo ente apropriado ao cuidado no horizonte da possibilidade de ser que primeiro o deixa vir aoencontro. Neste sentido, segundo Heidegger, o ente mostra-se como instrumento (Zeug), j sem-pre em um certo contexto instrumental. Com a caneta escrevemos no papel que apoiamos sobrea mesa dentro do quarto; a janela abre para a paisagem com a qual nos deixamos distrair em umbreve intervalo do trabalho. Porm, o trabalho que est em jogo neste contexto, de onde reti-ramos nossa orientao e o que temos em vista na circunviso. O instrumento descoberto noem uma nomeao explcita, mas como manual (Zuhanden), medida que ele se mostra desde

    11 Sein und Zeit, 15, p. 67.

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    si mesmo. Sua instrumentalidade no algo que lhe atribudo a cada vez pelo uso e o manu-seio, mas, sem este uso em sua imediatez e espontaneidade, o ente to pouco vem ao encontroem sua manualidade especfica.

    Seguimos o exemplo de Heidegger: o martelo descoberto como instrumento para mar-telar. Ele descoberto no remetimento a um uso, no ser-para (Wozu) martelar. A manualidadedo instrumento se mostra apenas em uma possibilidade que no ela mesma um ente, mas ummodo do cuidado. No obstante, o que mais prprio ao martelo do que o martelar? Este umdesdobramento do cuidado que se remete, por sua vez, construo de um abrigo, que possa nosproteger das intempries. Em cada remetimento (Verweisung), o ente intramundano se mostraem seu ser, que Heidegger caracteriza com uma palavra de difcil traduo Bewandtnis.Bewandtnis o ser do ente intramundano, em que ele j sempre mais proximamente libera-do.12 Seu significado reside na expresso mit etwas bei etwas bewenden lassen. Abdicandode uma traduo fiel ao sentido corriqueiro dessa expresso na lngua alem, podemos compre-ender a Bewandtnis como um arranjo de possibilidades, de tal modo que, na perspectiva de umapossibilidade de ser, seja o aprendizado ou a proteo contra as intempries, se abre sempreuma totalidade de arranjos (Bewandtnisganzheit) como aquilo que cuidamos de consumar emfavor do projeto. Talvez possamos, assim, explicar tambm atravs de uma expresso corriquei-ra a expresso alem; o martelar do martelo, enquanto um arranjo, algo como dar um jeitode colocar um prego em um pedao de madeira. Construir um abrigo dar um jeito de nosprotegermos contra as intempries. Proteo, por sua vez, no mais um momento neste con-texto de remetimentos, mas a se rene a totalidade dos arranjos em uma remisso primordial aoser do ser-a em funo do qual cada possibilidade fragmentada desse todo.

    Essa explicao, porm, apenas evoca uma imagem; o arranjo no jamais a soluo deuma dada situao, para a qual podemos retroativamente retornar. O martelar no o modo peloqual o homem um dia deu um jeito de pregar uma tbua; a tbua, o prego e o martelo sosempre conjuntamente descobertos como aquilo que vem ao encontro no martelar, porque estemesmo s tem sentido no horizonte de um poder-ser-no-mundo em um mundo j aberto. Noh, de modo algum, uma precedncia entre um arranjo e outro; j sempre deu-se um jeito, ascoisas j se arranjaram, e assim elas so liberadas tais como elas so. O j-sempre-ter-feito-se-arranjar (Je-schon-haben-bewenden-lassen) que libera na perspectiva do arranjo um per-feito apriorstico (aprioristische Perfekt), que constitui ele mesmo o modo de ser do ser-a.13

    12 Sein und Zeit, 18, p. 84.

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    Perfeito significa, portanto, j tendo sido feito, j tendo se consumado, desde o que hmesmo um fazer no sentido do cuidado. O que pertence ao ser do ser-a o j se ter liberado oente em um arranjo, que, como o arranjo das possibilidades do cuidado, constitui mesmo omundo circundante em que mais proximamente nos encontramos. O que pertence ao ser-a omundo como o aberto que d ao cuidado a possibilidade de antecipar para si mesmo a cada vezo todo de uma situao, em que se perfaz a abertura do mundo; mas no de modo algumnecessrio que este todo tenha se tornado para o ser-a inteiramente transparente em seu poss-vel, assim como isto no quer dizer que o ser-a tenha a posse de seu abrir-se. O ser-a tem, noentanto, o seu ser como ser para possibilidades.

    b) O ser do a e o conceito existencial de sentido

    O carter fundamental do compreender como possibilidade deve ser demonstrado desdea facticidade do ser-lanado do ser-a que se abre com a disposio; no porque haja de qual-quer modo uma hierarquia entre compreender e disposio, sendo ambos igualmente originri-os. Mas neste ltimo modo abre-se para o ser-a a facticidade da responsabilidade de ser o enteque ele mesmo , o que metodologicamente a condio de possibilidade para que o ser-apossa se mostrar em si mesmo segundo o modo de ser da mesmidade (Selbigkeit). O mesmo quese mostra, porm, o ser do ser-a como compreender, enquanto a coincidncia entre a possibi-lidade de ser e o seu ser possvel. Este carter se apresenta primeiro corriqueiramente: Nsutilizamos no discurso ntico, por vezes, a expresso compreender algo com o significado depoder estar frente de algo, estar sua altura, poder algo. No compreender enquanto exis-tencial o que se pode no nenhum algo, mas o ser enquanto existir.14 Porque a facticidadede ser lanado que propriamente se d a compreender, nela somente o ser-a encontra o seupossvel. Compreender enquanto existencial a assuno do poder-ser que o ser-a j sempre ,como o qual ele se encontra lanado em uma possibilidade fctica de ser-no-mundo; despertar,adormecer, alimentar-se ou como sempre quer que seja. Sobretudo, a ele j pertence a possibi-lidade mais prpria de ser-a. O ser-a no simplesmente se escolhe em uma determinada possi-bilidade, pela qual ele passa a responder, porque lhe prprio responder por possibilidades, mas

    13 Sein und Zeit, 18, p. 85.14 Sein und Zeit, 31, p. 143.

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    sim, a possibilidade na qual se encontra j um modo de corresponder ao poder-ser que o lanasempre novamente em possibilidades. Poderamos mesmo dizer, ainda que simplificando a ques-to: no realizando possibilidades que o ser-a corresponde ao seu ser, mas sim, abrindo-as;essa abertura se resguarda somente medida que o ser-a confia a si mesmo ao mundo. Desdeessa confiana, no sentido da Angewiesenheit, que, como trao fundamental da disposio per-mite a abertura primria do mundo atravs dos meros afetos, o ser-no-mundo em seu todo seabre no compreender, no a cada vez para o ser-a como a tarefa de instaurar um mundo, masj desde uma familiaridade com o mundo (Vertrautheit mit der Welt), da qual o ser-a se apro-pria e qual se apropria em um compreender. Pois nesta apropriao o ser-a se remete tooriginariamente a si mesmo quanto ao mundo. Este remetimento especfico ao mundo o modopelo qual o ser-a resguarda a pr-compreenso do ser dos entes no modo do arranjo. Ora, amanuteno do ser-a que compreende em sua familiaridade com o mundo, ao qual ele mes-mo j se confiou, consiste mesmo no cuidado, como o modo pelo qual o ser-a antecipa a pr-compreenso do ser em favor da abertura de uma regio (Gegend) em que se estruturam asremisses entre os entes intramundanos.

    Na familiaridade com estas remisses o ser-a significa a si mesmo, ele doriginariamente seu ser e poder ser a compreender tendo em vista o ser-no-mundo. O ser-em-funo significa um ser-para (Um-zu), este um para-que(Dazu), este um junto a que (Wobei) do fazer arranjar-se (Bewenden lassen),este um com o que (Womit) do arranjo. Estas remisses so entre si mesmasconciliadas enquanto uma totalidade originria, elas so o que so enquantoeste signi-ficar (Be-deuten), em que o ser-a d a si mesmo a compreender seuser-no-mundo.15

    O que propriamente compreendido a abertura da significncia do mundo atravs epara o ser-em-funo de si mesmo do ser-a. Si mesmo, porm, somente o a pelo qual respon-de; no por uma casualidade, ainda que irrevogvel, que o ser-a se encontra em meio aosentes, ou seja, uma fatalidade sem sentido. Ao expor a estrutura da compreenso como aquiloque, em sua consumao, como o nexo do ser do ser-a o projeto lanado com o ser do enteintramundano, Ser e Tempo encaminha-se para a radicalizao de um problema que havia sidosomente indicado em meio discusso inicial da facticidade: O conceito de facticidade encer-ra em si: o ser-no-mundo de um ente intramundano, de tal modo que este ente pode se compre-

    15 Sein und Zeit, 18, p. 87.

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    ender enquanto unido em seu destino (Geschick) com o ser do ente que lhe vem ao encontrodentro de seu prprio mundo.16

    Destino no significa aqui um fim e uma finalidade. medida que compreendemosque a finitude do ser-a no se determina diante da finalidade, isto , de um ser at o fim, emque a finalidade de algum modo antecipada como o que o ser-a ainda no , e por isso, deveser, ainda que apenas idealmente, porm experienciada no ser-para-o-fim como ser-para-a-morte, enquanto este pertence ao ser do ser-a como o carter prprio de seu ainda no em seusendo, poderamos mesmo dizer: o existir no tem um porqu mas ele no sem sentido. Osentido de ser do ser-a ser-no-mundo, compreendendo ser na e como compreenso do ser,junto aos entes que vm ao encontro dentro do mundo. O destino do ser-a no est paraalm de seu ser, mas reside no projeto, ao qual, como projeto lanado, pertence a abertura dohorizonte do projeto, o mundo mesmo.

    De nenhuma maneira o projeto pode ser explicado atravs das noes de plano eplanejamento; ele mesmo no uma determinada possibilidade, como tornar-se sapateiro oupartir para a conquista do Plo Sul. No se trata da apreenso das condies pelas quais cumpri-mos com objetivos, mas, como ser para possibilidades, o projeto projeta o ser-a na possibilida-de de cumprir com o possvel de seu ser-no-mundo fctico, ao remeter-se o compreender significncia em que se resguarda a prvia abertura do mundo como um arranjo de possibilida-des. O que se resguarda na significncia, portanto, a remisso de cada possibilidade de arran-jos ao ser-em em funo do qual o ser-a ele mesmo . O ser-a existindo seu a significa:mundo a; seu ser-o-a (Da-sein) o ser-em. Este igualmente a, e certamente enquantoaquilo em funo de que o ser-a . No ser-em-funo o ser-no-mundo existente aberto en-quanto tal, cuja abertura foi nomeada compreender.17

    A distino marcada por Heidegger entre Dasein e Da-sein que se coloca primeiro coma anlise do ser-em enquanto tal deve demonstrar em que sentido o ser-em pode ser tomadodesde o incio da investigao como seu fio condutor. Ao mesmo tempo em que o ser-emcorresponde formalmente idia de existncia, ele interpretado atravs do testemunhoexistencirio da linguagem.18 Desse modo, pode-se mostrar que o em possui o significadoprimordial, expresso na antiga palavra innan, de habitar, morar, demorar-se junto ao mundo,s coisas do mundo. Com este sentido, ser em se diz simplesmente tambm eu sou, eu sou

    16 Sein und Zeit, 12, p. 56.17 Sein und Zeit, 31, p. 143.

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    junto a, isto , detenho-me nas proximidades do que me familiar. Enquanto palavra guia eexplcita orientao, o habitar mesmo antes uma idia que um conceito, em cujo testemunhoHeidegger procura a compreenso pr-ontolgica na qual se resguarda o reconhecimento doser-a de seu prprio ser-no-mundo. Habitar indica, pois, o sentido da presena do ser-a juntos coisas do mundo, do uso e do manuseio, ou seja, do que ontologicamente j nos apareceucomo o cuidado (Besorgen), que se funda ele mesmo na Cura (Sorge). 19

    Existencialmente, portanto, o habitar a prpria cotidianidade; porm, a cotidianidade justamente o modo como o ser-a se mostra no desde si mesmo, mas do mundo. Portanto, aanlise existencial do ser-em, ainda que no modo da cotidianidade, deve abrir a possibilidade deque o ser-a se mostre desde si mesmo, ao demonstrar o ser-em como o modo em que o ser-a cotidianamente ele mesmo. Ele mesmo significa sempre: sendo o ente de seu ser, ou seja, medida que ele mesmo o seu a: O ser-a traz de casa o seu a, prescindindo do qual ele nosomente no facticamente, mas sobretudo no o ente desta essncia. O ser-a sua abertu-ra.20

    Desse modo, o existencial da disposio (Befindlichkeit), que onticamente compreende-mos como os humores e os afetos, torna-se para a investigao uma abertura privilegiada do ser-a, medida que precisamente no modo dos afetos e humores que o ser-a traz de casa o seua, ao mesmo tempo em que por eles trazido por seu prprio ser para diante de seu a. De outromodo, podemos dizer: o ser-a encontra-se a (em um mundo que ele mesmo a) sendo (res-pondendo por) seu a (como o ente de seu ser).

    Os afetos (Stimmungen) so a tristeza e a alegria, a equanimidade, o temor e a angstia.A descrio existencial da disposio deve poder distinguir entre os afetos, tal como mais pro-ximamente os conhecemos, e o fenmeno do que e como se abre o ser do ser-a, isto , como se

    18 Cf Sein und Zeit, 12, p. 54.19 A orientao que concede a interpretao do ser-em como habitar no de modo algum apenas um exemploou analogia; o habitar, a meditao sobre a morada, torna-se, no pensamento de Heidegger posterior a Ser eTempo, e em especial na Carta sobre o Humanismo e nos textos reunidos em Ensaios e Conferncias, o mbitoprivilegiado de recolhimento do pensar em vista da questo da tcnica ou da maquinao como a mais extremarealizao do niilismo. A indicao ali [em Ser e Tempo] sobre o ser-em enquanto habitar no nenhumjogo etimolgico. A indicao na conferncia de 1936 sobre a palavra de Hlderlin Cheio de mritos, maspoeticamente habita / o homem sobre esta terra no nenhum embelezamento de um pensar que se salva dacincia na poesia. O discurso da casa do ser no nenhuma traduo da imagem de casa para o ser, mas, daessncia do ser, pensada segunda ela mesma, nos tornaremos um dia capazes de pensar o que significa casa ehabitar. HEIDEGGER, M. Brief ber den Humanismus. In: Wegmarken. Frankfurt: Klostermann, 1976, p.358.20 Sein und Zeit, 28, p. 133.

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    encontra o ser-a afetado (Gestimmt) em um mundo, como ser-no-mundo. Pois cada afeto assimnomeado tambm ele mesmo um ente. Certamente no se nos torna acessvel cotidianamentea tristeza assim como uma mesa, e, no entanto, a tristeza de algum modo. Porm, nenhumaimagem sua, uma definio, ou mesmo se lhe atribumos o carter de algo subjetivo pode deci-dir o carter ntico do afeto, pois este tem o modo de ser do ser-a. Os afetos podem somente sercompreendidos existencialmente como um modo da abertura do ser-a, e o que descrito porHeidegger na anlise da disposio so os traos fundamentais dessa abertura.

    O trao fundamental da disposio enquanto afeto est no que podemos descrever comoo deixar-se afetar por aquilo que se abre no afeto. O que se abre nos afetos conhecemos emcomo se est (Wie einem ist), isto , de que modo agora nos encontramos afetados, em quepodemos reconhecer tambm a transitoriedade desse estado. Porm, o reconhecimento da tran-sitoriedade dos afetos, de que nos valemos cotidianamente, encobre precisamente que o ser-a acada vez encontra-se afetado, e que o afeto no o que se d a reconhecer simplesmente, mas oque j sempre a, como o ser-o-a mesmo - jamais antes simplesmente algo ao qual pertence acapacidade de se deixar afetar. Ao reconhecer que o ser-a no se fixa em um humor, estacompreenso toma o ser-afetado, isto , o encontrar-se disposto, como o que para o homem omais transitrio, e que por isso no pode ser o testemunho mais prprio de seu ser. Mas justamente neste testemunho que reside a possibilidade da abertura originria que Heideggerreclama para a disposio, no de algo transitrio, em relao a um antes e depois, mas danudez do fato de ser, aqui e agora; na abertura dos afetos, em que e como ns j sempre nosencontramos, em que o ser-a trazido para diante de seu a.

    O que desse modo se abre com os afetos em que e como o ser-a j sempre se dispe afacticidade de ser-a. O fato da facticidade no diz respeito a um estado de coisas em que o ser-a se encontra, mas ao encontrar-se mesmo, e assim, sempre como o encontrar-se afetado(gestimmtes Sichbefinden), sendo tal como . Trata-se da abertura de que e como o ser-a seencontra disposto j sempre sendo o ente que ele tem de ser. Estes caracteres de j sempre eter de ser, contudo, no se estendem para alm deste encontrar-se, como que para determinaro ser-a em seu comeo e seu fim, mas se mostram somente enquanto o ser pelo qual o ser-a a

    cada vez responde transitoriamente nos afetos. Este carter de ser aberto do ser-a, veladoem seu desde onde e para onde, mas em si mesmo to mais desvelado, este que ele (Daes ist) ns nomeamos o ser-lanado deste ente em seu a, to certo, que ele enquanto ser-no-mundo o a. A expresso ser-lanado deve significar a facticidade da responsabilidade.21

    21 Sein und Zeit, 29, p. 135.

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    Este trao da abertura da disposio significa que o que afeta o ser-a mais originaria-mente a cada vez o seu prprio ser como ser-no-mundo, desde o que concedido ao ser-a porseu prprio ser o envio (Ankehr) ou desvio (Abkehr) de si mesmo, isto , a possibilidade decorresponder ou no ao a pelo qual j sempre responde. A descrio fenomenolgica da dispo-sio em Ser e Tempo no pretende desse modo constituir uma teoria dos afetos mesmoporque com isto ainda se confirmaria o privilgio da atitude terica sobre a abertura prpria dosafetos como o modo pelo qual o ente que eu mesmo sou se torna acessvel para si mesmo em seuser. Esta descrio antecipa existencialmente aquilo que, na colocao da pergunta pelo sentidodo ser, j se mostra como a disposio para o questionamento. No como uma propenso paracolocar questes, certamente, mas para ir ao encontro do que est em jogo neste questionamento, medida que pertence ao ser do ente que questiona o encontrar-se em geral. Pois atravsdessa abertura, que privilegiadamente se mostra na disposio, que o ser-a compreende tam-bm que ele mesmo encontra-se, em meio aos entes que ele no , tal como ele , ou seja,compreendendo ser, de tal modo que a compreenso neste sentido no seja primariamente aapreenso do ser do ente no sentido do conhecimento. A condio para tanto mostrar como nadisposio se abre o ser-no-mundo em seu todo, que, no compreender, o horizonte em que osentes intramundanos vm ao encontro no modo da mundanidade do mundo. O ser-a no apre-ende previamente o horizonte do compreender, mas sim, se encontra afetado por ele como ohorizonte em que ele mesmo se projeta o qual, em ltima instncia, constitui o sentido.

    A abertura do ser-no-mundo em seu todo j tem sempre no sentido o horizonte em que seorienta o ser-a no envio ou desvio de seu prprio ser, o que significa, j de algum modocorrespondendo ao seu ser facticamente. No carter de ser lanado que se abre na disposio, oser-a se encontra no procura do ser que ele deve ser, mas encontra-se como aquele que jsempre deve ter se encontrado, sem que, no entanto, transparea nesta totalidade igualmente odesde onde e o para onde deste encontro. Por isso, primeiro e na maior parte das vezes, oser do ser-a se lhe mostra como um peso, do qual cotidianamente este ente se desvia, e quepode, atravs mesmo dos humores, lhe ser aliviado, quer dizer, transitoriamente retirado. Con-tudo, o modo como o ser-a ento se envia ao seu ser nos afetos, quer dizer, como o ser-apropriamente corresponde facticidade da responsabilidade, no poder, ao contrrio, ser com-preendido como a simples assuno desse peso, desse fardo, como a admisso de uma fatalida-de. Pois mesmo em uma tal atitude, que se permite apreender o que se lhe abre nos afetosenquanto peso, mesmo que no lhe atribua um carter substancial, o deixar-se afetar comotal, quer dizer, o carter prprio de abertura da disposio, permaneceria fechado, em favor de

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    sua apreenso em uma teoria dos afetos.No somente o ser do ser-a, mas igualmente o ser dos entes que ele mesmo no se lhe

    abre com os afetos. Porque se d esta abertura, pode o ser-a desviar-se de si mesmo, uma vezque este desvio no significa uma negao de seu ser, mas, como desvio para o mundo, atambm o ser-a corresponde ao seu ser, ainda que impropriamente. No h neste desvio, po-rm, uma escolha do ser-a, no sentido de uma tomada de posio diante do que se abre nosafetos, que possa decidir pelo modo como o ser-a se deixa afetar, embora tambm cotidiana-mente possa o ser-a tornar-se transparente para si mesmo em uma compreenso explcita e

    assim vir palavra. Os afetos so, pois, to carregados de mundo quanto o compreender, eassim a disposio constitui igualmente a descoberta dos entes intramundanos. O ente junto aoqual o ser-a se encontra se abre na disposio como aquilo que nos toca, no somente porqueele nos atinge dentro da regio que a circunviso do cuidado abrange, mas porque na circunviso,como dizemos corriqueiramente, ns vemos o que temos olhos para ver.

    Assim, aquilo pelo que somos atingidos (betroffen) no se d em uma pura afeco, mas sempre algo determinado; este som do trnsito nas ruas, a parede spera, a claridade excessivado meio-dia. Algo como uma afeco no ocorreria atravs da mais forte presso e resistncia,e a resistncia permaneceria no descoberta, se o ser-no-mundo disposto j no se tivesse con-fiado a um poder-ser-tocado esboado atravs de afetos, atravs do ente intramundano.22 Jhavamos anteriormente antecipado a relevncia deste carter, a confiana do ser-a ao mundo,em que se funda a familiaridade com o mundo em que o compreender se movimenta. So estesremetimentos, que pertencem igualmente disposio e ao compreender, que constituem asignificncia, em que se resguarda a compreenso do ser na perspectiva do ser-no-mundo, e queconstitui o ser-o-a mesmo do mundo, desde onde o ente pode ser descoberto tal como ele emsi mesmo. O ente previamente liberado em seu ser, isto , no arranjo, segundo o horizonte doprojeto em que se conforma o compreender, vem somente ao encontro porque o ser-a que j seconfiou ao mundo se deixa atingir por aquilo que lhe toca, quer dizer, no por aquilo que aqui eagora acessvel aos sentidos, como uma sensao presente, mas por aquilo que tem sentido. Ohomem pode apenas deixar de ver, porque a viso lhe pertence essencialmente; porm, a visono desse modo a capacidade de ver, mas o poder ser atingido pelo que j em si mesmo visvel, no como um atributo do ente, mas como um carter de sua intramundanidade desco-berta. A privao da cegueira reside justamente em que, mesmo que se deixe de ver, o que

    22 Sein und Zeit, 29, p. 137.

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    assim visvel j sempre nos toca, interessa-nos essencialmente, ainda que desse modo se mostresomente em sua ausncia. Porm, o que propriamente ausente no aquilo a que atribumos ocarter de ser percebido pelos sentidos, mas, de outro modo, o sentido enquanto tal. O mos-trar-se do sentido est somente em ser ele mesmo o horizonte em que o ente se mostra, isto , emque o ente descoberto. O sentido jamais pode prescindir da descoberta do ente, mas ele mesmono descoberto; o sentido sempre o sentido do ser.

    Desse modo, toda interpretao que deve apreender o sentido depende da prvia abertu-ra do ente em seu ser, e to mais penetrante ser esta investigao quanto mais originariamentedeixar que o ente se mostre desde si mesmo. Por isso, juntamente com o compreender e adisposio, que, com o discurso, constituem o ser do a, quer dizer, o modo como o ser-a j elemesmo a, to relevante para a analtica existencial demonstrar como o ser-a se d a si mesmoa compreender como ser-no-mundo, isto , como o prprio poder-ser que est em jogofacticamente, em determinadas possibilidades. Heidegger trata da elaborao do compreenderem possibilidades no 32 de Ser e Tempo, intitulado Compreender e Exposio (Verstehen undAuslegung). Neste passo, teremos a oportunidade de lidar explicitamente com a estrutura existen-cial do sentido, da qual at agora procuramos nos aproximar.

    Em sentido existencial, o compreender possui o carter de projeto, o qual o modocomo o ser-a sua possibilidade enquanto possibilidade; isto significa, o projeto lana para simesmo o ser-possvel da possibilidade como a abertura do poder-ser em um mundo do ente aoqual pertence essencialmente o ser-no-mundo. Este poder-ser-no-mundo conforma-se no proje-to nas possibilidades em que se move o compreender, ou seja, na totalidade dos arranjos(Bewandtnisganzheit) dos quais o ser-a cuida com os entes intramundanos. Esta conformao a exposio mesma, e, como tal, o modo como o ser-a se d a compreender desde os remetimentosque j previamente se abriram em sua totalidade no horizonte do projeto. A exposio assim ocarter ontolgico da correspondncia do ser-a ao ser pelo qual ele responde como o seu pr-prio. O projeto do compreender tem a possibilidade prpria de elaborar-se. Ns nomeamos aelaborao do compreender exposio. Nela o compreender se apropria compreendendo de seucompreendido. Na exposio o compreender no se torna algo outro, mas ele mesmo.23

    Esta estrutura necessariamente circular do compreender descrita por Heidegger, nombito da analtica existencial da cotidianidade, desde a compreenso do mundo, ou seja, acompreenso imprpria do ser-a. Mas a compreenso imprpria do ser-a ela mesma a apro-

    23 Sein und Zeit, 32, p. 148.

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    priao da significncia que constitui o fenmeno do mundo; a exposio neste sentido aconsumao da compreenso do ser que reside no cuidado cotidiano e que, na descoberta doente em sua intramundanidade, se anuncia como o que j sempre se consumou. Esta compreen-so assim imprpria porque a exposio desse modo no d a compreender o ser-a desde simesmo, mas desde mundo, ou seja, desde o ser-o-a do mundo, em que, entretanto, o mundomesmo no se mostra como tal. O no mostrar-se do mundo a condio para que o enteintramundano seja descoberto no cuidado enquanto um manual (Zuhanden). A exposio queassim se d na descoberta do manual o descobre enquanto algo que, em si mesmo, apropria-do para que o cuidado cumpra com sua possibilidade, a qual tambm somente se mostra com adescoberta dos entes. A exposio descobre aquilo com que cuidamos enquanto mesa, enquantocadeira, enquanto a paisagem que se abre na janela, determinando aquilo que nos atinge nacircunviso desde o poder-ser-tocado que abre no afeto em que j se esboou a possibilidade dealgo vir mesmo a ser determinado enquanto algo em uma certa perspectiva. Por isso, a apropri-ao (Zueignung) da exposio consumada na circunviso do cuidado , ao mesmo tempo, aapropriao do ser-a do que previamente compreendido, a significncia do mundo, e suaapropriao ao mundo, que, no sentido mais prprio, o confiar-se ao mundo. Porm, ao cuida-do cotidiano que se move na impropriedade no pertence originariamente esta confiana; ocuidado nunca uma primeira vez, que seja assim a instaurao do mundo; o cuidado somente porque ele j se fia na familiaridade com o mundo no qual se resguarda a possibilidadeda qual ele cuida. A apropriao do ser-a ao e do mundo enquanto seu prprio ser-no-mundoacontece a cada vez como a retomada do que no compreender j previamente se abriu, mas detal modo que somente por esta retomada e repetio tal estrutura prvia vem compreenso.

    Quando o ente intramundano descoberto com o ser do ser-a, isto , vem compreenso, ns dizemos que ele tem sentido. Rigorosamente, porm, com-preendido no o sentido, mas o ente, e respectivamente, o ser. Sentido aqui-lo em que se mantm a compreensibilidade de algo. O que se pode articular noabrir compreensivo (verstehendes Erschlieens) ns nomeamos sentido. Oconceito de sentido abrange o arcabouo formal daquilo que pertence necessa-riamente ao que a exposio compreensiva articula. Sentido o horizonteestruturado do projeto atravs da posio prvia, viso prvia e concepoprvia, desde a qual algo enquanto algo torna-se compreensvel.24

    24 Sein und Zeit, 32, p. 151.

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    A compreensibilidade de algo assim a remisso do ente em sua descoberta, isto , emseu mostrar-se, luz, clareira, em que ele se mostra, e portanto, remisso ao ser do ser-a quepor si mesmo se ilumina como a clareira, mas que no se torna acessvel enquanto algo. Osentido, tal como Heidegger aqui o apresenta, enquanto aquilo em que se mantm acompreensibilidade de algo, a articulao dessas remisses, que se desdobram na posioprvia (Vorhabe), viso prvia (Vorsicht) e concepo prvia (Vorgriff), como a estrutura prviado compreender. Esta articulao, ao constituir o sentido, no simplesmente apresentadaformalmente, mas ela responde pergunta pelo fenmeno que, em sua unicidade, no ummomento desta estrutura, mas o seu todo, o que significa, o todo da compreenso do ser quereside em cada comportamento do ser-a para com o ente.

    No cuidado cotidiano, e insistimos no exemplo do escrever, a caneta, o papel, a mesa,so descobertos enquanto caneta, enquanto papel, enquanto mesa, primariamente na circunviso, medida que o escrever em que se conforma a possibilidade que deixa vir ao encontro o enteenquanto o ente que ele j se encontra a presente como o horizonte da circunviso, e assim,como a compreenso que o cuidado mesmo antecipa, ou melhor, qual o cuidado se antecipa nadescoberta do entes intramundanos. No h, pois, primeiro a determinao do projeto de escre-ver para que ento o cuidado reuna os entes com os quais pode cumprir com o projetado doprojeto, mas este mesmo em um mundo j aberto, e certamente como o mundo circundante, oua regio, do escrever. A antecipao do cuidado significa corresponder ao projeto que jsempre lhe precede, isto , no qual ele j se encontra, e que se mostra no carter de j ter-seaberto do mundo. O mundo j aberto a compreenso do mundo desentranhada enquanto atotalidade dos arranjos (Bewandtnisganzheit) em que os entes intramundanos so liberados, isto, em que eles podem vir ao encontro. A conformao desta possibilidade enquanto arranjodepende igualmente de que o seu possvel j tenha sido confiado ao mundo, esboado atravsdos afetos, e assim, sendo esboado o poder-ser-tocado do ser-a. O ser-a, pois, ao mesmo passoem que se apropria do ente que vem ao encontro enquanto algo, que na circunviso se mostracomo o instrumento apropriado ao arranjo do qual cuida de consumar (como precisa a canetapara que com ela se escreva de uma superfcie que a receba), ele mesmo, o ser-a, se apropria aomundo, como se, nesta apropriao, ele se colocasse de prontido para o ente que vem ao en-contro. O carter de possibilidade que configura cada um desses traos remete-se estruturaprvia do compreender, e aqui revela especificamente o momento que Heidegger nomeia aposio prvia (Vorhabe).

    A posio prvia assim a determinao no e como compreender da relao do ser-a

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    com seu ser enquanto ser-no-mundo, em que o ser-no-mundo em seu todo que se rene nomomento mundo se retrai na exposio. Como se d esta retrao? Ela primariamente o nomostrar-se do mundo enquanto mundo em favor do fenmeno do ente intramundano com oqual cuidamos de um possvel ser-no-mundo. medida que aquilo que nos toca descoberto, oque assim se retrai poder-ser-tocado enquanto tal, assim como se retrai a possibilidade do enteintramundano a sua manualidade especfica no uso e no manuseio propriamente ditos. Coma descoberta do ente intramundano, o mundo mesmo no enquanto tal exposto, mas ele vem compreenso como o horizonte da descoberta, atravs da remisso do ser do ente intramundano o arranjo totalidade dos arranjos em que o ser-a j se encontra enquanto este constitui suaposio prvia. Como a determinao na compreenso do modo pelo qual o ser-a j corresponde sua facticidade, o que na posio prvia rigorosamente se retrai o fato da responsabilidadedo ser-a pelo a que ele j sempre , porque o ser-a ele mesmo se recolhe em um mundo noqual lhe permanece velada a nudez de seu ser-lanado.

    Porm, o ser-lanado do ser-a nunca lhe plenamente encoberto; Seu desentranhamentose d sempre segundo a orientao de uma viso prvia (Vorsicht) em que se conforma a pers-pectiva do projeto no qual, como projeto lanado, o ser-a se apropria do que lhe dado a seapropriar, isto , daquilo que, na posio prvia, encontra-se entranhado na compreenso domundo enquanto arranjo de possibilidades. O desentranhamento da possibilidade, que sempreum poder-ser-no-mundo, acontece na viso prvia como a delimitao, o constrangimento dohorizonte do projeto facticidade e posio prvia em que se encerra. Assim, na viso prvia,no antecipado como que o fim do projeto, sua finalidade, no sentido da previso de suasconseqncias e do clculo das condies de sua realizao (o que o projeto no obstante possi-bilita compreenso imprpria do ser-a), mas de outro modo antecipada a consumao dodesentranhamento da possibilidade enquanto possibilidade, pois, com a abertura do mbito, dohorizonte do projeto, esta abertura j ela mesma o ser-possvel (o que possibilita) da possibi-lidade em que o ser-a j se encontra mundanamente. Assim, do mesmo modo como na posioprvia se retrai o ser-lanado do ser-a, na viso prvia se retrai o seu ser possvel, isto , oprojeto, como o poder-ser mais prprio do ser-a, em favor de uma determinada possibilidadeem que se d a descoberta, de algum modo assim aniquilada enquanto possibilidade.

    Deste modo, compreendemos o sentido como o fenmeno que se d enquanto a unidadedas retraes na estrutura prvia do compreender preenchida pela descoberta do ente como se o sentido fosse o que resta, o reverso do que se retrai.

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    CAPTULO II

    A colocao da pergunta pela verdade

    a) Decadncia e angstia

    A decadncia constitui o ser do ser-a originariamente com a existncia e a facticidade,e, assim, igualmente uma determinao de ser (Seinsbestimmung) do ser-a, ou seja, um traoessencial do modo como o ser-a ele mesmo seu a. O ser-o-a deste ente significa a aberturado ser-no-mundo em seu todo em uma possibilidade da existncia fctica do ser-a. A decadn-cia corresponde ao carter existencial do que procuramos compreender e descrever como aconsumao do projeto da compreenso do ser em que o ser-a j se encontra lanado. Estaconsumao significa a apropriao daquilo que se d a compreender na exposio, atravs daqual o ser-a se apropria daquilo que vem ao encontro ao mesmo tempo em que a ele se apropria,isto , medida que o ser-a se deixa tocar por aquilo a que ele j se confiou o mundo mesmo,compreendido enquanto o arranjo de possibilidades (a posio prvia) que se abre em funo deuma possibilidade do ser-a (a viso prvia). Nessa apropriao, o compreendido, isto , o ser doente, se d a compreender segundo seu modo prprio de doao, articulado na significncia domundo, desde a qual ele se torna ele mesmo, enquanto algo, conceptvel (a concepo prvia).

    Assim, a consumao do projeto da compreenso do ser em que o ser-a j se encontralanado na exposio se anuncia na descoberta do ente intramundano junto ao qual o ser-a seencontra a si mesmo. O si mesmo, enquanto este se determina como aquele que responde pelapossibilidade em que ele se encontra, o modo como o ser-a se d a compreender a si mesmona exposio, isto , como ele se apropria de si. Porm, primeiro e na maior parte das vezes, oser-a justamente no ele mesmo no mundo do cuidado cotidiano, mas sim, ele o si mesmoimpessoal, o que significa, ele no compreende a si mesmo como aquele que responde pelaspossibilidades cotidianas de outro modo, ele no se apropria em seu