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A Obra de Sartre - WordPress.com...Já em 1939, em seu belíssimo ensaio sobre o romance de Faulkner, O som e a fúria[2], Sartre afirmou que O desespero de Faulkner me parece anterior

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  • SobreAobradeSartreFranklinLeopoldoeSilvaEste livro pode ser visto como o encontro de duas atitudes que

    convivemnummesmoautoreovinculamàquelequeéo seuobjetodeestudo: aprofunda a nidade políticae a enorme discordância losó caque se podem constatar na relação entre István Mészáros e Jean-PaulSartre.Seestivéssemosdiantedeumacontradiçãointransponível,olivronão teria sido possível, mas, felizmente, trata-se de uma diferençaprodutiva, aquela que ocorre entre guras intelectuais comprometidascom ahistória e a verdade, no sentido concretode quenessa relação sepassa o drama da emancipação humana. O que se eleva acima dascontrovérsiasconceituaiséadefesadeumacausa,oresgatedeesperançaseexpectativasmaioresdoqueosinstrumentosdoutrinaisqueutilizamosparatentarrealizá-las.

    E disso dá testemunho o texto do próprio Mészáros na introdução

    desta nova edição: o que ele admira em Sartre é a intransigência e acoragemquesemprepautaramsuacondutapessoal,intelectualepolítica.O lósofodaexistênciaedahistória,queemseutrajetoafrontoutodosos preconceitos das tradições e das doutrinas, passando ao largo dosdogmatismos; e o militante político, que, sem concessões de qualquerespécie, sempresecolocoudecisivamentecontra todasasopressõesondequerqueelasocorressem.Existênciaehistóriasãotemasdeuma loso adaliberdade,eautenticidadeeemancipaçãosãoos nsconcretosaseremincansavelmenteperseguidospelosquevivemeagemcomconsciênciadaresponsabilidadehistórica.Todavia,énalinhacontínuaqueseestabeleceentre as exigências losó cas de rigor re exivo e as questões suscitadaspelapráxishistóricaqueseencontramo lósofoeocomentador,namaispura comprovação de que autor e leitor, se envolvidos no mesmoengajamento, completam-se pelas próprias divergências, contribuindodessaformaparaoesclarecimentodasideiaseapertinênciadaação.

  • Dentre os elementos que foram revistos e introduzidos nesta novaedição, destacam-se as consideraçõescríticas acerca da loso a sartrianadahistória,apartirdaCríticadarazãodialética.Noçõescomoindivíduoe escassez são examinadas com grande argúcia, os pressupostos e oslimites dos argumentos são claramente desvendados, nunca compropósito negativo ou desquali cador, mas sempre na linha de umacompreensãodaoriginalidadedeSartreedareconhecidagrandezadeseuempreendimento, que conserva a singular virtude, apontada cominsistência por Mészáros, de incomodar a consciência acomodada donossotempo.

  • “Cadahomemtrazdentrodesitodaumaépoca,domesmomodoquecadaondatrazdentrodesitodoomar.”

    ThePurposesofWriting

    “Nãodependosenãodeles,quenãodependemsenãodeDeus,eeunãocreioemDeus.Vejamsesereconhecemnisto.”

    Aspalavras

    “Nãotenhoculpasearealidadeémarxista.”SartrecitandoCheGuevara

    “Aquestãofundamentalé:quefezvocêdesuavida?”LaQuestion

  • NOTADAEDITORAEstaéumanovaedição,ampliada,revistaeatualizada,do livroAobradeSartre,publicadonoBrasilem

    1991pelaeditoraEnsaio(combasenooriginaleworkofSartre:searchforfreedom (AtlanticHighlands,N.J.,HumanitiesPress,1979).Naatualversão,queaBoitempodisponibilizaaosleitoresdelínguaportuguesaaomesmotempoqueaversãoemlínguainglesaélançada(NovaYork,MonthlyReviewPress,2012),foraminseridospeloautorcapítulosnovosealgunspublicadosanteriormentecomopartedolivroEstruturasocialeformasdeconsciênciaII:adialéticadaestruturaedahistória(SãoPaulo,Boitempo,2011).Todosforam,porém,revistoseatualizadosparaestaedição.

    NOTADOTRADUTORA coleção de ensaiosSituations, bastante citada por Mészáros, compõe-se de dez volumes publicados

    originalmenteemfrancês,pelaGallimard,entre1947e1976.OsseteprimeirosvolumesforamlançadosemLisboapelaEuropa-América,eodécimo,pelaA.Ramos.Oprimeirovolume,Situações1:críticasliterárias, foipublicadonoBrasilem2006pelaCosacNaifyealgunstextosforameditadosseparadamente,comoQueéaliteratura?(2.ed.,SãoPaulo,Ática,1993).Eminglês,hátambémumaediçãointituladaapenasSituations,quenãoserefereaoprimeirovolumedasérie,massimaumacoletâneadeensaiosretiradosdetodososvolumes.

  • Prefácioàediçãoampliada

    PREFÁCIOÀEDIÇÃOAMPLIADAEmabrilde1992,operiódicotrimestralRadicalPhilosophy, emumaentrevista

    publicada no número 62, fez-me a seguinte pergunta: “Você conheceu Sartre em1957.Porquedecidiuescreverumlivrosobreele?”.

    Estafoiminharesposta:

    SempresentiqueosmarxistasdeviammuitoaSartre,poisvivemosnumaeraemqueopoderdocapitalé dominador, uma era em que, signi cantemente, a ressonante platitude dos políticos é que “não háalternativa”, quer se pense na sra.atcher, quer se pense emGorbachev, que repetiu in nitamente amesmacoisaatédescobrir, comoa sra.atcher,queno mdascontas tinhadehaverumaalternativapara ambos. Mas isso continua se repetindo e, se olharmos em volta e pensarmos em como é feito odiscurso dos políticos do [Partido] Conservador e do Trabalhista, eles sempre falam que “não háalternativa”,easpressõessubjacentessãosentidasemtodososlugares.

    Sartre foi umhomemque semprepregou exatamente o oposto: háuma alternativa, devehaverumaalternativa;comoindivíduos,devemosnosrebelarcontraessepoder,essemonstruosopoderdocapital.Osmarxistas,demodogeral,nãoconseguiramdarvoza isso.Nãodigoque,paraadmiti-lo, seja,portanto,necessário tornar-se um existencialista, mas não há ninguém nos últimos cinquenta anos de loso a eliteratura que tenha tentado martelar isto com tanta pertinácia e determinação quanto Sartre: anecessidadedequetemdehaverumarebeliãocontrao saberdo“nãoháalternativa”edevehaverumaparticipaçãoindividualnela.Nãoadotoasideias losó casdeSartre,mascompartilhoplenamentedesuameta.Cabeacadaumsabercomorealizaressametanocontextodesuaprópriaabordagem;masametaéalgosemoquenãochegaremosalugarnenhum.

    Sartrehoje,naFrança,éumapessoabastantedesconcertanteatéparasermencionada.Porquê?Oqueaconteceufoique,emnomedoprivatismoedoindividualismo,elessevenderamtotalmenteaospoderesdarepressão,umacapitulaçãoàsforçasdo“nãoháalternativa”,eéporissoqueSartreéumalembrançaterrível. Quando olhamos o passado dessas pessoas sobre as quais falamos, “pós-modernistas” de umagrandevariedade,percebemosquemuitasvezeselasforampoliticamenteengajadas.Masseuengajamentofoisuper cial.Algumasdelas,porvoltade1968,erammaismaoistasqueosmaoistasextremosnaChina,eagora adotaram a direita de maneira mais entusiasmada; ou então faziam parte do grupo francês“SocialismoouBarbárie”etornaram-semascatesdasmaisestúpidasplatitudesda“pós-modernidade”.

    Essas pessoas perderam seu quadro de referência. Na França, a vida intelectual costumava serdominada,deumamaneiraoudeoutra,peloPartidoComunista.IssotambémvaleparaSartre,quetentoucriticá-lo de fora e impulsioná-lo na direção que defendia, até que teve de concluir que trabalhar emcolaboração comoPartidoComunista era “tantonecessário quanto impossível” – o que é terrível, umduro dilema. Ele disse isso na época da guerra da Argélia, quando o papel do Partido Comunista foitotalmente deplorável. Necessário porque é preciso um movimento de oposição à força repressiva doEstado;eimpossívelporcausadapróprianaturezadessemovimento.

    Porcerto,oqueaconteceufoiadesintegraçãodoPartidoComunistafrancês,assimcomoocorreucomváriosoutrospartidosdaTerceiraInternacionalnasduasúltimasdécadas.E,comonaufrágiodessegrandebarcoemrelaçãoaoqualosintelectuaisfranceses,durantemuitotempo,de niam-sedeummodooudeoutro, eis que os intelectuais caram para trás: o barco naufragou e todos estão em botes in áveis,arremessando dardos uns nos outros. Não é uma visão muito reconfortante: e não sairão dessasimplesmentepor fantasiar sobrea individualidadequenãoexiste;porqueaverdadeira individualidadeéinconcebívelsemumacomunidadecomaqualpossamosnosrelacionarenosdefinir.[1]

    Nesse sentido, a importância da mensagem intransigente de Sartre sobre a

  • necessária alternativa ao “não há alternativa” é maior hoje do que já foianteriormente.EissoseriaválidomesmoqueadefesaapaixonadadeSartrepudesseserexplicitada,dosprimeirosescritosemdiante,somentenaformadeumanegaçãoradicaldoexistente.

    Jáem1939,emseubelíssimoensaio sobreo romancedeFaulkner, Osomeafúria[2],Sartreafirmouque

    OdesesperodeFaulknermepareceanterioràsuametafísica:paraele,comoparatodosnós,ofuturo

    estávedado. Tudo o que vemos, tudo o que vivemos nos incita a dizer: “Isso não pode durar” – e noentantoamudançanãoénemmesmoconcebível,anãosernaformadecataclismo.Vivemosnotempodasrevoluçõesimpossíveis,eFaulknerempregasuaarteextraordináriaparadescreveressemundoquemorredevelhiceenossaas xia.Apreciosuaarte,masnãoacreditoemsuametafísica.Umfuturovedadoaindaéumfuturo.[3]

    AobstinadadeterminaçãocomaqualSartrepoderiacontinuardesa andotodas

    as vantagens dos que reivindicavam (e continuam reivindicando) uma mudançaradicalpermaneceexemplartambémemnossaépoca.Poisasapostassósobemcomopassardotempo.Nessaconjunturacríticadahistória,elasresultamemnadamenosque uma ameaça à própria sobrevivência da humanidade. Ameaça numa épocadecisiva,quandoofuturopareceestarfatalmentevedadopelacriseestruturalcadavezmais profunda do capital e pelo poder demasiadamente óbvio da destruiçãoinjusti cadaqueemanadelaemrelaçãoàsnecessáriasemancipaçãoe transformaçãorevolucionárias.

    Contudo,éextremamentesignificativoqueSartrenãosedetenhaemdarenfoqueapenas à grave facticidade dofuturo vedado. Sua obra é da maior relevânciaprecisamenteporque elepôde realçar,mesmo em seusmomentosmais obscuros epessimistas, que “um futuro vedado ainda é um futuro”, salientando ao mesmotempo a responsabilidade direta de cada indivíduo em encarar o desa o históricocorrespondente. Foi por essa razão que ele teve de se tornar – emummundo deacomodaçõesmesquinhaseevasõesbuscadascomorespostacegamenteautoimpostaaoagravamentodacrise–umalembrançaconstrangedoraeumapresençaincômoda.

    Há mais de cinquenta anos, em 1958, em um artigo chamado “De ratos ehomens”, Sartre expressou da maneira mais engenhosa sua preocupação com amagnitude aparentemente proibitiva da tarefa que deveria encarar. Assim disse elenaquelaépoca:

    Lembro-medequandoviumcachorrinhodepoisdaremoçãoparcialdocerebelo.[...]Pensavamuito

    antes de contornar um objeto, precisando de grande dose de tempo e de pensamento para executarmovimentosaqueantesnãodavaatençãoalguma.Na linguagemdaépoca,dizíamosqueocórtexhavia

  • assumido,nele,determinadas funçõesdas regiões inferiores.Eleeraumcãointelectual. [...]ele tinhaoudemorrer,oudereinventarocachorro.

    Do mesmo modo, nós – ratos sem cerebelos – somos também feitos de tal modo quedevemos oumorrer,oureinventarohomem .[...]semnósafabricaçãosedarianoescuro,poremendaseremendos,senós,os“descerebrados”,nãoestivéssemosalipararepetirconstantementequedevemostrabalharsegundoprincípios, que não é uma questão deremendar, mas de medir econstruir, e, nalmente, que ouahumanidadeseráouniversalconcreto,ounãoserá.[4]

    Seria verdade que o cão parcialmente descerebrado “reinventou o cão” na

    qualidadede“cãointelectual”paranãomorrer?Ofatoéqueétotalmenteirrelevantese o lhote realmente teve êxito em reinventar o cão.Aquestão em jogonão é a“verdade literal” (ou não) da situação descrita, mas algo incomparavelmente maisfundamentalqueisso.Éamesmaverdadevitalqueafetadeformaindelévelavidadetodosos sereshumanosemseuambiente inevitavelmentehistórico;avidadecadaumdeles,nadamaisnadamenosqueavisãodeseus lósofosepoetasengajadosdeformaprofundaquetentamtornarexplícitasaspreocupaçõescomunsdeseutempoem consonância com a desagradável adversidade histórica, em constantetransformação, dahumanidade.Essa “verdadenão literal” é amesma salientadanaprimeirametadedoséculoXIXpelograndegêniopoetadaHungria,SándorPető ,quando,nacelebraçãodosurgimentodasprimeirasviasférreasportodaaEuropa,elefezerespondeusuaperguntafundamentaldestamaneira:

    Porquenãoconstruíramferroviasnopassado?Nãohaviaferrosuficiente?Arrebentemederretamtodososgrilhões,Poisdevehaverferrosuficiente!

    A verdade de Petö equivale à crença existencial fundamental de Sartre

    concernente à sobrevivência da humanidade. Só mudaram as circunstâncias. Seusigni cadotambémécompartilhadonosentidodequeanecessária“reinvençãodohomem”–quenãopodeserrealizada,comodizSartrecorretamente,“noescuro,poremendas e remendos”, mas somente pelaconstrução guiada porprincípios – étotalmente impossível sem “arrebentar e derreter todos os grilhões”. No sentidoliteral, assim como no sentido gurativo mais amplo. E isso torna imperativa aabertura revolucionária do “futuro vedado” antes que seja tarde. Por essa razão, amensagemsartriana,indoàraizdenossosproblemas,éaindamaisrelevantehojedoquenopassado.

    Em 1979, quando publiqueiA obra de Sartre: busca da liberdade na série

  • HarvesterPhilosophyNow,editadopelomeuqueridoamigoRoyEdgley,deveriater havido um segundo volume sob o títuloO desa o da história, analisando aconcepçãosartrianadahistória.Outraobracontribuiuparaoatrasodacompletudedesseprojetoemodi coualgunsdosdetalhespretendidosnoinício.Osproblemascomplexosenvolvidostiveramdeserexploradosemseucenáriomaisabrangente–oquetenteifazerprincipalmenteemmeuslivrosOpoderdaideologia[5] eParaalémdo capital[6], bem comonos dois volumes publicados recentemente doEstruturasocial e formas de consciência[7] –, incluindo a dimensãopositiva da alternativanecessáriaquetevedepermanecer,atéofim,ausentedanegaçãoradicalqueSartrefazdoexistente.Semseencarregardessaobracomplementaremseunecessárioquadrogeral, o protesto apaixonado de Sartre sobre a carga paralisante das “revoluçõesimpossíveis” – que marcou seus últimos anos de vida com um pessimismoirreparável–nãopoderiasercolocadoemsuaperspectivaapropriada,historicamentemutável.

    Na épocadapublicaçãodaprimeira ediçãodeste livro, que agora recebe comoacréscimoumaterceirapartebemampla,umcríticoescreveuque

    AobradeMészároséumestudo losó co[...].NãosóforneceumaexpressivacríticadeSartrecomo

    tambémosituaemrelaçãoaopensamentodoséculoXX.SuaabordagemdeSartreabrangetodasassuasmanifestações – romancista, dramaturgo, lósofo e político – efaz jus a esse homem muitíssimoextraordinário.[LabourWeekly]

    Embora jamais compartilhe do pessimismo abertamente confesso ou implícito

    deSartresobreassoluçõesfactíveis,aorientaçãogeraleoespíritodoprojetoagoraterminado são os mesmos pretendidos originalmente.Trata-se de pôr em relevo,contra deturpações diametralmente opostas e igualmente tendenciosas, não só osdilemas e antinomias insolúveisdanegação radical deSartre, como formuladosdaperspectiva de sua classe, contra a qual se rebelou com a maior integridade, mastambémseuvalorrepresentativoesuarelativavalidadehistóricaparaatotalidadedanossaépocacrítica.Para“fazerjusaessehomemmuitíssimoextraordinário”–nossoverdadeirocompanheirodearmas.

  • Introduçãoàprimeiraedição

    INTRODUÇÃOÀPRIMEIRAEDIÇÃOSemcairnomaniqueísmo,deve-seexaltaraintransigência.Noextremo,toda

    posiçãodeesquerda–namedidaemqueécontráriaaoquepretendeminculcaratodaasociedade–éconsiderada“escandalosa”.Issonãoquerdizerquesedevabuscaroescândalo–issoseriaabsurdoeine caz–massimquenãosedevetemê-lo:seaposiçãotomadaforcorreta,elevirácomoefeitocolateral,comoumsigno,comoumasançãonaturalcontraumaatitudedeesquerda.[8]

    Jean-PaulSartreéumhomemqueviveumetadedavidasobasluzesdaextremanotoriedade.Umintelectualque,jáem1945,tevedeprotestarcontratentativasquevisavam à institucionalização do escritor, transformando suas obras em “bensnacionais”, clamando: “não é agradável ser tratado enquanto vivo como ummonumentopúblico”[9].

    Oquetambémdeveserdesagradáveléestarconstantementesujeitoainjúrias.Eofatoéqueescritoralgumfoialvodetantosataques,deorigensasmaisvariadasepoderosas,quantoJean-PaulSartre.

    Quais as razões disso? Como abordar a obra desse homem, nossocontemporâneo?

    1Em outubro de 1960, uma manifestação de veteranos de guerra na Champs-

    Élyséesmarchasobapalavradeordem:“FuzilemSartre”.Namesmaépoca,oParis-Matchpublicouumeditorialcomotítulo:“Sartre,amáquinadaguerracivil”.

    Alguns dos manifestantes, ou dos leitores doParis-Match, não estavambrincando: no dia 19 de julho de 1961 houve um atentado a bomba contra seuapartamento,eoutropoucosmesesdepois,em7dejaneirode1962.Poiscomosepoderiadeixarempazuma“máquinadaguerracivil”?

    Em outubro de 1960 não foi a primeira vez em que ele foi chamado de“máquina de guerra”. Em junho de 1945 – e, nessa época, do lado oposto dabarricada – foi atacado como “fabricante da máquina de guerra contra omarxismo”[10].Queironia!SeráqueSartremudoutantoassim?Ouseráque,talvez,esseardorosodefensordaplenaresponsabilidadedecadaindivíduoemmeioàsforçasde institucionalização impessoal seja considerado irrecuperável e, assim, por umaestranhalógica,devaserdeclaradoumcorpoestranho,umamáquina–defato,umamíticamáquinadeguerra?Quãoreveladoraéessaimagembombásticapartilhadaportantos?Porqueéqueinstituiçõespoderosas,aodefrontarcomindivíduossolitários,representam a relação de forças “de cabeça para baixo” e denunciam a voz dadissidênciacomooruídosinistrodeumapoderosamáquinadeguerradoinimigo?

    Em1948,nadamenosdoqueumapotênciacomoogovernosoviéticoassumiu

  • posição o cial contra Sartre: seus representantes diplomáticos em Helsinquetentaram pressionar o governo nlandês a proibir a exibição da peça de SartreLesmainssales[Asmãossujas].Elafoivistacomo“propagandahostilcontraaURSS”–nadamais,nadamenos!

    Queméessehomem,essa“machinedeguerre”,armadodetaispoderesmíticos?Durante a guerra, quando Churchill procurava fundamentar seus argumentosfazendo referências ao papa, Stalin observou, com senso de realismo e francocinismo: “Quantas divisões você disse que tem o papa?” Em 1948, maisamadurecido, teria Stalin pensado que Sartre estava prestes a desencadear umainvasão,commuitomaisdivisões sobseucomandodoqueopapa jamais sonharater?

    Eporfalarnopapa,devemosnoslembrardequenaquelemesmoano,em30deoutubrode1948,umdecretoespecialdoSantoOfíciocolocounoIndextodaaobradeSartre.FoinoespíritodesseIndexque,dezesseisanosmaistarde,emoutubrode1964, quando da rejeição do PrêmioNobel por Sartre, o polidoGabrielMarcel,porta-voz do existencialismo cristão, bradou contra ele, com voz nada cristã,chamando-o de “difamador inveterado”, “blasfemo sistemático”, homem de“opiniões perniciosas e venenosas”, “patente corruptor da juventude”, “coveiro doOcidente”[11].Assim,odecretodoSantoOfício,noreinadodopapaPioXII–omesmohomemqueabençoouasarmasdeHitleremsua“SantaCruzada”–,torna-sepermissão para que se abram as comportas do rancor ímpio, em nome docristianismoecomosustentáculodos“valoresdoOcidente”.

    É,pois,comoseSartrefosseresponsávelpor in igirumaofensamortalnãosóaosgrandespoderesdonossomundo,mas tambémaos representantes terrenosdomundodoalém.Nãoéprovávelquealgummortalconsigafazertudoisso.

    2Todavia,hásempreosdois ladosdamoeda,eocasodeSartrenãoéexceçãoà

    regra. E a regra é que as instituições também procuram neutralizar – absorver,recuperar,assimilar(palavrasdeSartre)–seusrebeldes.

    Relataremdetalhesas“tentações”queseofereceramaSartreocupariapáginasemaispáginas.Temosdenoscontentaremmencionarapenasalgumasdelas.

    Caracteristicamente, ofertas de integração chegam de ambos os lados. Poucotempodepois de ter sido eleito vice-presidente daAssociaçãoFrança-URSS (cargoquemanteve até renunciar, em consequência dos acontecimentos naHungria, em1956), Sartre é recebido com as maiores honras quando de sua viagem à Rússia.Outrora acusado pelo porta-voz literário de Stalin, Fadeev, de a “hiena com umacaneta”, seus livros – frutos damesma caneta – são agora publicados naRússia, e

  • algumas de suas peças lá encenadas. Até mesmoLes mains sales – anteriormenteobjeto de negociação diplomática entre os governos soviético e nlandês – éencenadanoLeste,emboranãonaRússia,masemPraga.Ironicamente,nãoantes,masdepoisdaintervençãosoviéticade1968.Domesmomodo,suasrelaçõescomoPartidoComunista francês–nãoobstantealgunscontratemposmaiores, comonocasodaHungria,em1956–são,emgeral,bastanteboasentre1949e1968.Istoé,atéqueaavaliaçãodeSartrearespeitodeMaiode1968leveaumarupturatotaleaparentementeirreparável.

    Quantoaooutrolado,onúmerodeofertasconstituiuliteralmenteumalegião:desdeadaLégiond’HonneuratéaconcessãodoPrêmioNobel.

    Em 1945, em reconhecimento a seus méritos durante a resistência, foi-lheoferecidaaordemdaLégiond’Honneur,maselearecusou.Em1959,noentanto–comoquenumainábiltentativaderetirarumaofertaquenãoforaaceita–,MalrauxacusaSartredecolaboração,comopretextoabsurdodequepermitiuaencenaçãodesua peça antifascista,Asmoscas, durante a ocupação alemã, quando, de fato, tudoaconteceuemperfeitoacordocomogrupodeescritoresdaResistência[12].

    Emmaiode1949,apósainvestidadeMauriaccontrasuaposiçãopolítica[13],Sartre rejeita a oferta do próprioMauriac para conseguir-lhe uma cadeira entre osseletos “imortais” vivos – os quarentamembros daAcadémie Française – fazendoquestãodedizer,emtomirônico,quenãovai“aprender igualdade”nacompanhiadaquelesqueostentamseupróprio“sentimentodesuperioridade”[14].Nessemesmoespírito,recusaaideiadeingressaremoutropináculodaculturafrancesa,oCollègedeFrance,muitoemboraalegrementeo zesseseuvelhoamigo,MauriceMerleau-Ponty.

    ÉprecisoreconhecerqueoprestígiodeSartreétãoelevadoquantoovérticedapirâmide institucional:váriospresidentesdaRepúblicaFrancesadirigem-sea eledeforma respeitosa. Em 1952, Vincent Auriol con dencia a Sartre que consideraexcessivaasentençacontraHenriMartin,masquenãopodereduzi-laenquantonãolhe for possível superar a crise causada pelo protesto político em que Sartredesempenhapapelproeminente.(Comolheécaracterístico,Sartrenãocede.)Giscardd’Estaing,23anosmaistarde,fazquestãodea rmarque,nosescritosdeSartresobrea liberdade, encontrou muita inspiração e alimento espiritual. E até mesmo oorgulhosogeneralDeGaulle,queseconsideravaoprópriodestinodaFrança,chamaSartrede“MonCherMaître”[meuqueridomestre],aoqueesteretruca:“Isto,creioeu, é para deixar bem claro que pretende dirigir-se ao homemde letras, e não aopresidentedeumtribunal[otribunalBertrandRussellsobreoVietnã–I.M.]queestádecididoanãoreconhecer.Nãosounenhum‘Maître’,excetoparaogarçomdocaféquesabequeescrevo”[15].Restapoucoadizerdepoisdisso.

  • Contudo, amais “escandalosa” das recusas de Sartre talvez seja sua rejeição doPrêmioNobel[16],em1964.MuitoemboradigacomtodaaclarezaemumacartaaoComitêdoPrêmioNobelque,comigualfirmeza,declinariadoPrêmioLenin,nahipótese improvável de que este lhe fosse concedido, André Breton acusa-o derealizar uma “operação de propaganda favorável ao bloco oriental”[17]. Sartre éacusado de um suposto golpe publicitário premeditado, calculado (como senecessitassedesesperadamentedepublicidade,comoosurrealismo,queperderaseusencantos), embora tenha escrito, em particular, à Academia Sueca assim quecomeçaram a circular boatos de que o Prêmio podia ser-lhe concedido, tentandoevitar uma decisão a seu favor, o que tornaria desnecessária toda publicidade. Issocon rmaa sabedoriadeFichte,ou seja,dequequandoos fatosnão se ajustamàsideiaspreconcebidas,“umsoschlimmerfürdieTatsachen”,“tantopiorparaosfatos”.

    AúnicainstituiçãoquepermanececuriosamentedistantedessadisputapelaalmadeSartreéaIgreja.Mas,poroutrolado,aIgrejatema rmetradiçãodeprimeiroqueimarossupostosheréticos–comonosrecordaodestinodeJoanaD’Arc–paraelevá-losàcondiçãodesantidademuitotempodepoisdemortos.

    3Não se pode, assim, negar que Sartre provoque paixões intensas. E, quando

    rejeitaasgenerosasofertasdeintegração,éatacadocomindignaçãoaindamaior:poishaveriaalgomaisperversodoquemorderamãoquequeralimentá-lo?

    Existeaindaoutroestratagema:apretensaindiferença.Esta,porém,nãofuncionamuitocomSartre,comoilustrabemseuantigoadversárioMauriac.QuandoSartreassume a responsabilidade pelo jornal perseguido do grupo maoista,La Cause duPeuple,Mauriacescreve,emtomdesuperioridade:“AânsiapormartírioqueSartrepossuinãoé razãoparaque seencarcereessecaráter incuravelmente inofensivo”[18].Algumas semanas depois, Sartre responde a todos que adotam essa forma deabordagem de Mauriac: “Eles dizem, com frequência, pois essa é a artimanha daburguesia, que quero ser um mártir e fazer com que me prendam. Mas não meagradaabsolutamenteserpreso–muitopelocontrário!Oquemeinteressaéquenãomeprendam,poisdessemodopossodemonstrar,ecomigomeuscamaradas,LouisMalleoualguémmais,quehádoispesoseduasmedidas”[19].

    Pode-se ver aqui claramente de que modo Sartre, cercado pelo coro de risossatisfeitosdoestablishment,consegueêxitonãosóemdesenredar-sedeumasituaçãodifícil–adespeitodasdisputasdesiguaisquecaracterizamquasetodososconfrontosemqueestáenvolvido–comotambémemacabarporcima(umresultadopoucoprovável).Pois, seoprendem,haveráumagritariamundiala respeitodaprisãodeSartre porcrimedeopinião (isto é, umdelitopolítico, e nãocriminal ); e, senãooprendem, temerosos das consequências na opinião mundial, é preciso admitir de

  • maneirahumilhantequeocrimedosquesãoperseguidospelogovernoédefatoum“crime”político. Umcrime de opinião que só pode levar à prisão sob a forma deacusaçõesinventadas,protegidaspelaconspiraçãodosilêncio(tantasvezescondenadaporSartre)daopiniãopúblicaliberal.

    Assim é que Sartre arranca uma vitória do que se supõe ser uma posiçãoirremediáveldederrota.Oresultadopositivonãoaconteceporsisó:Sartretemplenaconsciênciadoselementosparadoxaisquecompõemsuaprecáriaposição.Nãoéemnada casual que ele volte, vez por outra, ao problema de “o vencedor perde”. Eleestudaacomplexadialéticadaderrotaedavitóriaa mdeapreenderedesnudarosmodospelosquaissepodemreverterasvantagenspré-fabricadas:demodoamostrarcomo é que o “perdedor ganha”; na verdade, que, por vezes, o perdedor tudoconsegue.

    4Comoépossívelqueum indivíduo sozinho, tendoacanetacomoúnicaarma,

    sejatãoeficientecomoSartre–enistoeleéúnico–numaépocaquetendeatornaroindivíduocompletamente impotente?Qualo segredodesse intelectualquedesa a,com orgulho e dignidade imensos, toda e qualquer instituição que se interponhaentreeleearealizaçãodosvaloresquepreza?

    Osegredoéumfalsosegredo:Sartreoproclamaemaltoebomsomaode niraessência da literatura viva comoengajamento. Toda a controvérsia, verdadeiroescândalo, resultadessade nição.É esse engajamento apaixonado comos assuntosdo mundo conhecido, o “Finito” (ao contrário da perseguição ilusória da“imortalidade” literária), que atua comopoderoso catalisador no presente, e comoumamedidadofeitoquevinculaopresenteaofuturo.Nãoofuturoremoto,sobreoqualoindivíduovivonãotemqualquerespéciedecontrole,masofuturo“àmão”,aquele que está a nosso alcance e que, por isso, modela e estrutura nossa vidapresente.Foradetalengajamentocomaprópria,aindaquesofrida,temporalidade,oqueexisteéapenasomundodaevasãoedailusão.“Estaéamedidaquepropomosao escritor: enquanto seus livros despertarem irritação, mal-estar, vergonha, ódio,amor, mesmo que nada mais seja que uma sombra, ele viverá. Depois disso, odilúvio.Defendemosumaéticaeumaartedo nito”[20],dizSartre.E,emtodosossentidos,elevivedeacordocomessasuamedida.

    Sartreéumestranho“coveirodoOcidente”,poisdi cilmentesepoderáimaginarescritormaisintensamentepreocupadocomosvaloresmoraisdoqueesse“blasfemosistemático”e“corruptordajuventude”.Eiscomoeleencaraatarefadoescritor:

    Omaisbelolivrodomundonãosalvarádadorumacriança:nãoseredimeomal,luta-secontraele.O

    maisbelolivrodomundoredime-seasimesmo;redimetambémoartista.Nãoredime,porém,ohomem.

  • Tantoquantoohomemnãoredimeoartista.Queremosqueohomemeoartistaconstruamjuntossuasalvação,queremosqueaobrasejaaomesmotempoumato;queremosquesejaexpressamenteconcebidacomoumaarmanalutaqueoshomenstravamcontraomal.[21]

    Se falarnesses termossigni cacavarasepulturadoOcidente,quempodedizer

    queoOcidentenãomereceasinadesersepultadoparasempre?Como se pode perceber, a obra é de nida em seu contexto global, e

    absolutamente não em seu contexto particular. Sua dimensão comoato na lutacontra omaléquecompeleoleitorade nirsuaprópriaposiçãoquantoaostemasemfoco,e,jáqueoatoestásempreevidentementeclaronasobrasdeSartre,nãoháquempossapassarporelecomindiferença.Pode-se rejeitara intensidademoraldesua medida, mas não ignorá-la. No decorrer de todo o seu desenvolvimento eleadotou, demaneiramuito consistente, seus critérios de engajamento da literatura,muito embora elemude “no interiordeumapermanência”[22].Quase vinte anosdepoisdeescreverapassagemanteriormentecitada,indagaele:“Creemvocêsqueeupoderia ler Robbe-Grillet num país subdesenvolvido?”. E responde com umaa rmação autocrítica: “Diantedeumacriançamoribunda,Anáusea não temvaloralgum”[23].

    Não é preciso dizer que o mundo literário recebe de maneira hostil suaautoacusaçãoe“defende”Sartrecontraelepróprio(paranãofalaremRobbe-Grillet).Pois não se tentou, já em 1945, louvar a primeira obra de Sartre,A náusea[24],comoseu“testamentoliterário”[25],comoqueparatrancá-loentreasparedesdessa“mercadorianacional”,produzidapeloautoraostrintaanosdeidade?

    5NãoéfáciltrancarSartredentrodealgumacoisa,muitomenosdentrodacelada

    excelência literária atemporal. Sua visão do engajamento do escritor é uma visãototal:

    Sealiteraturanãoétudo,elanãovalenada.Issoéoquequerodizercom“engajamento”.Estede nha

    seéreduzidoàinocência,ouacanções.Seumafraseescritanãoecoaemtodososníveisdohomemedasociedade,entãoelanãotemnenhumsentido.Oqueéaliteraturadeumaépocasenãoaépocaapropriadaporsualiteratura?[...]Deve-seaspiraratudoparateresperançadefazeralgumacoisa.[26]

    Essa concepção da literatura como um “espelho crítico”[27] do homem e da

    época compartilhada pelo escritor com seus semelhantes soa extravagante – umescândalo–a todosaquelescuja sensibilidade foimodeladaeml’artpour l’art e nairrelevância autocontemplativadosvariados “ismos”.Goethe aindapodia ter comoverdadeiroquetodopoemaeraumZeitgedicht,umpoemadeseutempo,masisso

  • foiantesdeovendavaldaalienaçãoterconseguidoinduziroescritorarecorrerasuasprópriasfontesinteriores.E,emboraoisolamentodoescritoremrelaçãoasuaépocae a seus semelhantes seja o verdadeiro escândalo, resultado da aceitação geral daalienaçãopelaopinião literáriapredominante,a rejeiçãoapaixonadadeSartreaesseisolamentoaparececomoumescândalo imperdoável,umatraição,naverdadeumablasfêmia.

    Desa ar a opinião estabelecida, com todas as suas instituições e valoresinstitucionalizados,exigenãoapenasumconjuntodecrenças rmementemantidas,mastambémumegomuitoforte.ESartre,semdúvida,possuiambos.Aarticulaçãodaobrade toda sua vida caracteriza-seporumorgulho eumadignidade imensos.Pois o que ele poderia ter realizado com humildade em um ambiente hostil? “Épreciso um orgulho insano para escrever – só é possível permitir-se ser modestodepoisdeterenterradooorgulhoemsuaobra”[28],escreveSartre.E,nisso,elenãoestásó.Suavisãodocompromissototallembra-nosaspalavrasdeumgrandepoetahúngaro:

    AfastandoasGraçasintrusas,Nãovimparaserum“artista”,Masparasertudo,FuioSenhor;Opoema:escravofantasioso.[29]

    NaopiniãodeSartre,“Aarteestátotalmenteengajadanaatividadedeumúnico

    homem,àmedidaqueelepõeàprovaos limitesdelaeos fazrecuar.Masaescritanãopodesercríticasemlevantarquestõesarespeitodetudo:esseéseuconteúdo.Aaventuradeescrever,empreendidaporcadaescritor,desa aahumanidadecomoumtodo”[30]. Não é uma decisão nada fácil assumir a carga desse desa o e fazê-loconscientemente, como é o caso de Sartre. Porém, uma vez que o projetofundamental do escritor se de ne nesses termos, ele não pode esquivar-se àmagnitude de sua tarefa sem perder a própria integridade (ou autenticidade).Aconteçaoqueacontecer,temdearticularaspreocupaçõesdesuaépocacomoumtodoenãoseafastardelas.

    Sua visão dotodo traz consigo a lembrança permanente de sua própriaresponsabilidade por issotudo. Mesmo que se queira absolvê-lo dessaresponsabilidade,eledeve,questionandotodasascoisas,afirmarereafirmarseudireitoinalienável de assumir a carga daresponsabilidade total. Por “sua época como umtodo”epela“humanidadecomoumtodo”.Eisporqueelenãopodedeixardeserintransigentenumaeradominadapelaevasãoepelosubterfúgio,pelaacomodaçãoe

  • pelafuga;emsuma,pelaautossegurançainstitucionalrei cada,emvezdeenfrentareatracar-se com as contradições que, em sua irresolução crônica, fazem antevernalmente a perspectiva de um suicídio coletivo. E uma vez que essa verdade

    desagradável não consegue penetrar ouvidos ensurdecidos pelo ruídoautocomplacentedaacomodaçãoconfortável, anão sermedianteogritomais altopossíveldavozdaintransigência,aintransigênciamoraleintelectualnãoacomodada(que não se deve confundir com a busca facciosa de um estreito interesse pessoal)torna-se a virtude fundamental da época, umsine qua non de realizaçãosignificativa[31].

    6Sim,cadahomem“trazdentrodesitodaumaépoca,domesmomodoquecada

    ondatrazdentrodesitodoomar”.Masháondaseondas,assimcomohámaresemares.Omardaépocaemquevivemosestálongedeserummartranquilo,mesmoemseusmomentosmaiscalmos;éomarturbulentodeumadecisivaeradetransiçãodeumaordemsocialparaoutra,eSartreéumaenormeondadessemarpujante.Elepode exprimir muitos aspectos desse dinâmico turbilhão, acompanhando suasmudançasdemuitasmaneirasdiferentes,masrecusa-secategoricamenteaassumiraformadeondulaçõesenganosasnasuperfíciedomardemodoa,sobledadistração,ocultaroviolentotemporal.

    Nãoéagradávelserlembradodavindadatempestade,masSartrenãopodeevitarlembrar-se dela constantemente: em vão se buscaria a serenidade divertida em suavastaoeuvre.Ninguém,noséculoXX,valeu-secommaiorintensidadedosrecursosconjugados da loso a e da literatura para demonstrar as possibilidades e aslimitaçõesdoindivíduosituadonessaconjunturacrucialdahistóriadahumanidade.Se a formulação torturada de sua visão é perturbadora, a culpa não é dele.Comotambémnãosurpreendequeexatamenteoselementosmaisválidoseantecipadoresdessavisão–comoveremosmaisadiante–encontrariamamaiorincompreensãoehostilidade,levandoaoisolamento:adesagradáveleirônicasituaçãode“notoriedadesolitária”.TambémnissoelepartilhadasinadopoetaJózsef,quediz:

    Semconfortofácilparaoshomens:Minhaspalavrassãomofocrescente.Souevidenteedurodesuportarcomoofrio.[32]

    LimpidezfriaedesconfortávelpermeiamuitasdasobrasdeSartreenãoháleitor

    queassuma,emrelaçãoaelas,umaatitudedefriaisenção.Hádoisfatoresprincipaisque tornam impossível esse tipo de isenção: a conexãoorgânica dos métodos da

  • literatura e da loso a e a cuidadosa colocação de cadadetalhe em relação àtotalidadecomplexaaquetodoselespertencem.

    Desdeo início, aobradeSartre caracterizou-seporumesforçoconscienteparacombinar loso a e literatura a m de intensi car os poderes de persuasão edemonstração.Veremos,maisadiante,asformasespecí casdesseesforçonodecorrerdeseudesenvolvimento.Aqui,pretendemosapenasenfatizaropropósitoqueestáportrás dessemétodo. Ele resulta da convicção do autor de que, contra o poder dosmitos predominantes e dos interesses estabelecidos, a força da razão analítica éimpotente:nãosesubstituiumarealidadeexistentepositiva(nosentidohegeliano),rmemente enraizada, pelamera negatividade de dissecção conceptual. Para que a

    armadacríticapossaterêxito,precisaestaràalturadopoderevocativodosobjetosaqueseopõe.Eisporque“overdadeirotrabalhodoescritorengajadoé[...]revelar,desmisti car e dissolver mitos e fetiches num banho ácido crítico”[33]. Essa imagemdemonstra claramente a natureza do empreendimento. É para evitar a opção pela“friaisenção”.Oqueestáemjogoénadamenosdoqueumaofensivageralcontraasposições bem fundadas do bem-estar confortável, tanto se estas se apresentaremcomo a “cumplicidade do silêncio” quanto sob qualquer outra forma. Sartre quernossacudir e encontra os modos de atingir essa meta, ainda que, no m, sejacondenadocomoalguémconstantementeembuscadeescândalos.

    Ooutroponto,apreocupaçãocomatotalidade,éigualmenteimportante.Sartreinsisteque“abelezadaliteraturaestáemseudesejodesertudo–enãonumabuscaestérildabeleza.Apenasumtodopodeserbelo:osquenãoconseguemcompreenderisso–oquequerque tenhamdito–nãomeatacaramemnomedaarte,masemnome de seucompromisso particular”[34]. Realmente, o verdadeiro caráter de umcompromisso particular não pode ser reconhecido se seus vínculos comumadadatotalidadenãoforemrevelados.Oparticularismopodeedevereivindicarostatusdeuniversalidade,àfaltadeumquadrodereferênciaabrangente,umavezquenãoestarem perspectiva necessariamente transforma o particularismo emsua própriaperspectiva e, dessemodo, namedida de tudomais. Assim, qualquer tentativa derevelar as conexões verdadeiras com a totalidade deve confrontar os interesses dosparticularismos predominantes. Ao mesmo tempo, o desvelamento dosparticularismos não desnuda apenas seus paladinos, mas expõe, subitamente, avulnerabilidade de todos aqueles que, antes, tinham condições de encontrarautocon ança e conforto (aindaque ilusório)nos recantosprotegidosdosdiversosparticularismos.

    Não há outro modo, porém. O “espelho crítico” não pode preencher suasfunçõesseestiverfragmentadoemmilharesdepedaços.Umespelhoassimquebradosó consegue mostrar detalhes distorcidos, ainda que pareçam éis em sua

  • imediaticidade: distorcidos porque separados do todo que, sozinho, pode lhesconferir plena (isto é, verdadeira) signi cação. A escolha é, pois, inevitável: ouabandonarametadedartestemunhodaépocaemquesevive,edeixar,assim,deserumespelhocrítico;ouapropriar-sedaépocadoúnicomodopeloqualsepodefazê-loescrevendo–medianteadesconfortávelefrialimpidezdeumaobraque“revele,mostre,demonstre”asconexõesdapartecomotodo,desmisti candoedissolvendoos fetiches da imediaticidade aparentemente muito sólida e bem alicerçada naestruturadinâmicadatotalidadeemconstantemudança.NãohádúvidadequaléaescolhadeSartre.

    7Oponto central do corpo a corpo de Sartre com a totalidade é sua busca da

    liberdade.Tudosemostrarelacionadocomessapreocupação.Eledáaseucicloderomances o nome deOs caminhos da liberdade: um título que pode muito bemresumirocaráterdesuaobracomoumtodo.(Issoseaplicatantoasuaobraliteráriaquanto a sua obra teórico- losó ca.) E exatamente por ser esse o enfoque de suaobra,Sartre jamais seperdena totalidade sócio-histórica,daqual éumexploradorincansável.

    Porcerto,suapreocupaçãocomaliberdadesofremuitasmetamorfoses.Háumadiferençaimensa,aindaqueefetivada“àl’intérieurd’unepermanence”(nointeriordeumapermanência),entredizerque“ohomemélivreparacomprometer-se,masnãoé livreamenosque secomprometapara ser livre”[35] e reconhecer que “ninguémpode ser livre se todomundonão o for [...]A liberdade, não ametafísica,mas aprática, está condicionada às proteínas”[36]. A primeira citação apresenta umasolução apenas sob a formadeumparadoxo verbal; a segunda, em contraposição,assumeumaposturamaismodesta,masindicaalgumasmetaspalpáveisparaaaçãohumana. Ainda assim – e eis por que ele está correto em falar de mudança “nointeriordeumapermanência”–,ocentroorganizadoreocerneestruturadordaobradeSartrecontinuamsendosuapreocupaçãouniversalcomaliberdade.Aeliminaçãoda fome e da exploração não surge como m em si mesma, mas como degraunecessário na direção da libertação do homem, na direção da realização de sualiberdade.

    AobradeSartrecobreumaáreaimensaeapresentaumavariedadeenorme:desdeartigos ocasionais até um ciclo de romances, desde contos até sínteses losó casvastas,desderoteiroscinematográ cosatépan etospolíticos,desdepeçasdeteatroatére exõessobrearteemúsica,edesdecríticaliteráriaatépsicanálise,assimcomobiogra as monumentais, tentando captar as motivações interiores de indivíduossingulares em relação às condições sócio-históricas especí cas da época que osmoldoueàqual,porsuavez,ajudaramatransformar.Nãosepodedizer,contudo,

  • queasárvoresocultamobosque,muitopelocontrário.OquepredominaéaobraglobaldeSartre,enãodeterminadoselementosdela.Embora,semdúvida,sepossapensaremobras-primasespecí casdentreseusinúmerosescritos,elasnãorespondemporsisóspelaverdadeiraimportânciaqueeletem.Pode-seatémesmodizerqueseu“projeto fundamental” global, com todas as transformações e permutaçõesmultiformesque sofreu, équede nea singularidadedesse autor inquieto, enãoarealizaçãosequerdesuaobramaisdisciplinada.Poiséparteintegrantedeseuprojetoqueeleconstantementemudeerevisesuasposiçõesanteriores;aobramultifacetadase articula mediante as transformações dela mesma, e a “totalização” é atingidamedianteincessante“destotalização”e“retotalização”.

    Desse modo, sucesso e fracasso tornam-se termos muito relativos para Sartre:transformam-seumnooutro.“Sucesso”éamanifestaçãodofracasso,e“fracasso”éarealidade do sucesso. Segundo ele, “na esfera da expressão, o sucesso énecessariamente fracasso”[37], e ele cita seu amigo, Giacometti, segundo o qual,quandoo fracassoatinge seupontomáximoe“tudoestáperdido,nessemomento[...]vocêpode lançar suaesculturana latade lixoouexibi-lanumagaleria”[38].Arazãodisso(emboranãosejabemassimqueSartreacoloque,tendendonessepontoa uma explicação atemporal) é que o escritor e o artista de nossa época têm demontar sua obra a partir de pedaços fragmentados. Pois a fragmentação e acompartimentalização (ou, emoutro nível, o isolamento e a privatização) não sãomeras cções da imaginação dos intelectuais, mas sim características objetivas darealidadesócio-históricacontemporânea.Eissotornaaobra,mesmoquandovisademodoconscienteàtotalização–inerentementeproblemática.

    Hámuitasmaneirasdiferentesdeenfrentaresseproblema;osnomesdeProustedeomasMannindicamduastentativasnitidamentecontrastantes.Porém,nemasubjetividade ordenada de Proust, nem a objetividade disciplinada e restrita deomasMannpodemcomparar-seaoprojetodeSartre.AcomparaçãopertinenteéPicasso, quaisquerque sejamasdiferenças entre eles: ambosdevoram, comapetiteinsaciável, tudo quanto encontram em seu caminho e produzemnão tanto “obrasrepresentativas”,masumaobraglobalrepresentativa.

    Assim,não importaquedeterminadasobrasnão sejam súmulasparadigmáticasdo artista, no sentido em queEm busca do tempo perdido[39] eA montanhamágica[40] certamente o são. Não importa que determinadas obras (até mesmoGuernica)sejammaisproblemáticasdoqueaquelasque,aocontrário,seconstituemcombasenumaescolhaenumaelaboraçãomaiscuidadosasdedadosmomentosdarealidade. Se Picasso e Sartre têm de deslocar-se de determinada espécie de sínteseparaalgumacoisaàprimeiravistabemdiferente,éporqueoqueestáimplicadoemsuabuscaéumtipodetotalizaçãoquesereferesempreàobraglobaldoartistacomo

  • baseimediata.AformadesubjetividadedelesépeculiaremcomparaçãocomProusteomasMann.Oprimeiroproduzsuasíntesedissolvendoomundodosobjetosem sua interioridade e subjetividade; o segundo faz com que a subjetividade doescritor recue de forma silenciosa para trás de uma objetividade cuidadosamentereconstruída. Em Sartre e Picasso, a subjetividade está sempre em evidência, masutilizacomoveículoomundodosobjetos,nãoparasubjetivá-lo,maspara“niili cá-lo”(parausaraexpressãodeSartre)nodecorrerdadescrição.Emconsequênciadesseprocesso dialético de “objetivação-niili cação” – parente próximo doVerfremdungseffektdeBrecht–aobraglobal seenriquece,paradoxalmente,àcustadecadaumadasobrasqueelautiliza“parapôr-sesobreseusprópriosombros”,porassim dizer. Fascinamo-nos peloprocesso de objetivação niili cadora que produz aobraglobal,enãonecessariamentepordeterminadosresultados.Exatamentequantasobras individuais sobrevivem a longo prazo é irrelevante. O que importa é aconstruçãodeumaobraglobalrepresentativa:umafusãosingulardesubjetividadeeobjetividade.

    AgrandevariedadeequantidadedeprojetosparticularesdeSartrecombinam-sefacilmente em um todo coerente. A extraordinária coerência da obra global não épreconcebida.Nãoresultadeumprojetooriginalqueseimpõeemtodososdetalhesàmedidaqueotempopassa:essaseriaumaunidadeexterna,arti cial.Aocontrário,aquiissotemavercomumaunidadeinternaqueprevaleceatravésdasmaisvariadasmanifestações de divergência formal. Essa é uma unidadeem evolução queemergemedianteexploraçõesmaisoumenosespontâneasdos“caminhosdaliberdade”–ou,nessecaso,dosmúltiplosobstáculosàliberdade–,sejamelesquaisforem.Aunidadeé, pois,estrutural e nãotemática:estaúltimaseriapordemaisrestritivaparaaobraglobal. (Algumas das obras de Sartre, contudo, caracterizam-se pela tentativa dealcançarumaunidadetemática–nemsemprecomumresultadofeliz–notadamenteseucicloderomances;masessaéoutraquestão.)Dessemodo,Sartreestácorretoemrejeitarasteoriasdequesuaconcepçãodeengajamentonaliteraturalevaàrestriçãotemática e ao exemplo político, bem como a uma paralisia da espontaneidadeartística.

    Todavia, enfatizar de que modo a exploração dos “caminhos da liberdade”produzaunidadeestruturaldaobradeSartrenãoéobastanteparaapropriar-sedesua especi cidade. Igualmente importante épôr em relevoopapel estruturadordaconcepçãodeindivíduodeSartreemsuaobracomoumtodo.Poisaliberdadenãosurge em suageneralidade – o que seria um exemplo político tematicamenterestritivo,ouum simbolismoabstrato, ambos rejeitadosporSartre–,mas sempremanifestada mediantecondições existenciais particulares, seja o tema originário daantiguidadegrega,sejadaFrançamoderna.Nessesentidoéqueeleéecontinuaaser

  • umexistencialista.Kantsustentouaprimaziadarazãoprática(istoé,asupremaciadojuízomoral)

    na arquitetônica de seu sistema e levou a cabo esse princípio com consistênciaexemplar.Sartre–nãosócomojovem,mastambémcomoautordeumaobraéticaescritaaossessentaanos[41]–citaaa rmaçãodeKant“vocêdeve,logovocêpode”,e insiste na primazia e na centralidade da práxisindividual face a face com asestruturas coletivas e institucionais.Uma a rmação comoessa atribui, com toda aclareza, um lugar proeminente aomundo damoralidade.Não podia ser de outramaneirasemsolaparaunidadeeaconsistênciainternasdaobradeSartre.Pois,comoobservaeleem1944,“Amoralidadeé[...]minhapreocupaçãodominante; semprefoi”[42].Eassimcontinuoua serdesde então,diretaou indiretamente, sob formateórica e sob forma literária. Essa primazia e centralidade atribuídas àpráxisindividual,intimamenterelacionadacomaproblemáticadaliberdade,équede neaespeci cidade do projeto fundamental de Sartre em toda a variedade de suasmanifestações.

    8O propósito da leitura de um contemporâneo é nos reconhecermos e nos

    examinarmos em seu espelho crítico.Essanão éumaviademãoúnica, pois ler éinterpretare,assim,implicanecessariamentenãoapenasumexamedenósmesmos,masaomesmotempoumexamecríticodoespelhoedesuarelaçãocomaépocaquerevela. Como diz Sartre, reconhecivelmente nos termos de suas preocupaçõescentrais, “o leitorpermite-se livremente ser in uenciado.Esse fato,por si só,bastaparainvalidarafábuladesuapassividade.Oleitornosinventa:utilizanossaspalavrasparaarmarparasimesmoasprópriasarmadilhas.Eleéativo,elenostranscende”[43].

    Issoéespecialmenteverdadeironotocanteàleituradeumautorcontemporâneo,pois há muitas conjunturas cruciais de experiência que partilhamos com ele. Issoconfere uma posição privilegiada ao leitor em seu diálogo crítico com seuscontemporâneos vivos.Mas dizer isso leva em conta apenas o lado do crédito daequação.Oladododébitoconsistenasdi culdadesespeciaisdeavaliaraobraglobaldeumcontemporâneovivo.“Todasasminhasobras”,dizSartre,“sãofacetasdeumtodo cujo signi cado não poderá ser realmente apreciado enquanto eu não o tiverlevado a termo”[44]. Isso é muito verdadeiro. Mas não totalmente. Se fossecategoricamente verdadeiro, a avaliação de um autor contemporâneo seriaa prioriimpossível. O trabalho do crítico oscilaria entre asubjetividade arbitrária(“inventando”oautorinteiramenteapartirdesuaspreocupaçõespessoais,utilizandoaspalavrasdele apenas comopretextoparaumexibicionismopseudo-objetivo) e aobjetividademortadameradescriçãodasobrasresenhadas–tarefasupérfluaeinútil.

    Certamente, sósepodeveri caraavaliaçãoapartirdotodoque,porde nição,

  • estáincompletoenquantoaobradetodaumavidanãohouversidolevadaatermo.Domesmomodo, quando alguém trata de um autor importante, cujas obras são“facetasdeumtodo”,novosepossíveisacréscimosnãosãotentativasextravagantesderupturaradical,mas simacréscimosquesãopossíveisemrelaçãoaodeterminadotodo em expansão. Em outras palavras, todas as modi cações representam umamudança “àl’intérieur d’une permanence”, de conformidade com a dialética dacontinuidade e descontinuidade. Os elementosestruturadores de uma obra globaloriginalpodemserpercebidoscomtodaaclarezaemidaderelativamenteprecoce;eastendênciasdabuscadeumescritorsemostrampelotipodevariaçõesqueasobrasindividuaisrepresentamemrelaçãoumascomasoutras.

    E há um ponto de referência crucial, poder-se-ia dizer estratégico: a obstinadarecorrência de algumas preocupações básicas que assumem a forma de obrasincompletas ouinacabadas (dentro do projeto de um dado escritor,inacabáveis).Quandoaobraglobaldeumescritorchegasubitamenteaseutermo,oquesucedeéque a incompletude anterior ascende ao nível de completude. Paradoxalmente, noformatode obras inacabáveisporrazões internas, encontramos antecipações da obraglobal completada; e issodemaneira especialmente abundantenaoeuvre de Sartre.Um examemais acurado delas – não isoladamente,mas em relação ao restante –podeajudaraproporcionaraposiçãovantajosaapartirdaqualsetornapossívelumaavaliaçãocríticadeumcontemporâneovivo.

  • PrimeiraParte

    PRIMEIRAPARTEAUNIDADEDEVIDAEOBRA:

    ESBOÇODODESENVOLVIMENTODESARTRE“Oimportantenãoéoqueseé,massimoquesefaz.”

    (“RéponseàM.Mauriac”,L’Observateur,19demarçode1953)

  • Jean-PaulSartreporCássioLoredano.

  • 1.Oescritoresuasituação

    1OESCRITORESUASITUAÇÃO

    1.1Um escritor cria sua obra a partir da matéria-prima de experiência que lhe é

    oferecidapelacontingênciadesuasituação,aindaque,comoemKafka,oresultadopareça termuito pouco em comum com a base imediata de que provém.Algunsescritores,comoVillon,lançam-sediretamentenocentrodoturbilhãodesuaépocaepassamatravésdoseventoscomgrandeintensidadenoníveldeaventurasecon itoshumanosespecí cos.Outros,comoSchillerouHegel,aosistematizaremsuasobrasa visão que têmdo signi cado de sua época, deixampara trás, demaneiramuitomais radical, a base de sua experiência imediata. E há, por certo, um númeropraticamenteinfinitodevariaçõesentreessesdoisextremos.

    Ointercâmbioentrevidaeobra,dequeSartreéintensamenteconsciente–bastamencionarSaintGenet[45] eOidiotadafamília[46], sobreFlaubert–,constituiavidadoescritornointeressedesuaobraevice-versa;eleconstróisuaobraeaobraconstróiseupróprioautor.Porém,ocertoéquetudoissoocorredentrodeumdadoquadro de referência social, que constitui tanto ohorizonte quanto abase darealizaçãohumana.Oescritornãolevaumavidade“contabilidadedupla”.Procuraobterexperiênciadentrodoespíritodasuaobranodecorrerdesuasistematizaçãoetransforma a experiência adquirida em obra. Desse modo, ele transformacontingênciaemnecessidade–dentrodoamploquadrodereferênciadesuarealidadesocial: a base e o horizonte de uma obra “livre” e “condicionada” – e, aomesmotempo,transformaanecessidadedessabaseehorizontenanovacontingênciadeumponto de partida algo modi cado para seus contemporâneos que, agora, sãodesafiadosasedefinirtambémemrelaçãoasuaobra.

    Trêsimportantesquestõesseapresentamnessecontexto:(1) De que modo epor que um escritor escolhe a escrita como a forma

    específicaemqueainteraçãoentrevidaeobraseverifica?(2)Feitaessaopçãoinicial,dequemodoeleconstrói,apartirdospedaçosde

    contingênciadequedispõe,anecessidadeestruturadadesuaobra?Poishomemalgumentraemcontatodiretocomo“EspíritodoMundo”,nemmesmoHegel,quepensoutertidoumavisãodelesobaformadeNapoleãoacavalonocampodebatalhadeJena.

    (3)Qualoespectrodesuapossívelobra,ouseja,oquepodeserrealizadocomêxito dentro do quadro de referência de seu projeto fundamental, dado o

  • intercâmbio dialético entre a totalidade da experiência vivida do escritor e cadaum dos projetos em que se envolve? Em outras palavras, que espécie de obraspodeelefazerenquanto“éfeito”porelas?A primeira questão diz respeito à natureza e à constituição do “projeto

    fundamental” do escritor. De forma geral (isto é, propondo o mesmo tipo dequestão a respeitodos indivíduos emgeral, qualquerque seja a ocupação aque sedediquem),issopodeserexpressodaseguintemaneira:“Pormeiodequeatividadepode um ‘indivíduo acidental’ perceber como realidade a pessoa humana que hádentro dele e para todos mais?”[47]. Isso torna claro que a forma em queencontramosoproblemaemtantasdasobrasdeSartre(Aspalavras[48],SaintGenet,“Deratosehomens”,Oidiotadafamília,porexemplo)éumrigorosoconfrontodeum problema tipicamente moderno que vem se tornando cada vez mais agudodevidoacertotipodedesenvolvimentosocial:umprocessodeindividualizaçãoedeprivatizaçãoinseparáveldoavançodaalienação.ComodizMarx,“Oestamentoatualdasociedademostrajáasuadiferençadoantigoestamentodasociedadecivilnofatodequeelenãoé,comooutrora,algodecomum,umacomunidadequecontémoindivíduo,masqueéemparteoacaso,emparteotrabalhoetc.doindivíduo,oquedeterminaseelesemantémounãoemseuestamento”[49].O“indivíduoacidental”isolado de seu “ser universal” deve, pois, envolver-se num projeto de grandecomplexidade:umaexcursãoparadescobrircomorealizarapessoahumana“quehádentro dele e para todos mais”. Excursão que só termina com a morte: quer o“suicídio” de uma interrupção autocomplacente (por exemplo, o escritorinstitucionalizado e “recuperado”), quer amorte natural que é o término da vida.Assim, o projeto fundamental e sua sistematização mediante projetos particularestornam-seamesmacoisa,eadescobertaoriginalmentealmejadaassumeaformadeumaredescobertaconstantederenovaçãoautênticaemconformidadecomasituaçãomutável do indivíduo, no interesse da realização da pessoa humana dentro de simesmoepara todosmais.Consequentemente,oexame,muitasvezes repetidoemSartre,daconstituiçãodoprojetodeumescritor–querdelepróprio,querdealgumoutro–que,aoobservadorsuper cial,poderiaparecerumaobsessãonarcisista,dizrespeito, na verdade, ao signi cado do empreendimento de cada indivíduo. Umabusca de um signi cado numa sociedade em que ele não pode deixar de ser um“indivíduoacidental”,masquedevetranscenderdealgummodo,sequiserarrancarsuaprópriahumanidade–parasimesmoeparatodos–dasforçasdaalienação.

    1.2Responder à segunda questão de maneira detalhada constitui um

    empreendimentoverdadeiramenteassustador,poisenvolveacoletaeavaliaçãodeumnúmerodedadospraticamentein nito.Equandooin nitoentranumaequação–

  • quernateoriaquântica,quernoprojetosartrianosobreGeneteFlaubert(paranãofalar nos que foram abandonados, depois de algumas centenas de páginas, sobreMallarmé e Tintoretto) – a equação inteira se torna metodologicamenteproblemáticaemgrauextremo.

    Emabsoluto,nãofoiporacasoqueSaintGenet,projetadooriginalmentecomoumpequenoprefáciodeumvolumedetextosdeGenet,veioatornar-seumavastaobrade573páginas,quesóseapequenariamaistardediantedasváriasmilpáginas–eaindaassimincompletas–doestudosobreFlaubert,estetambémprevistocomoum projeto muito mais limitado, de início. Se a elas for acrescentado o númeroconsideráveldeobrasdesse tipoabandonadasporSartre,há evidentemente algumacoisaa serexplicada. Isso será feitoemseucontextoapropriado,naTerceiraParte,poisestáligadodeformaindissolúvelàconcepçãoqueSartretemdahistóriacomosingular e “não universalizável”; concepção essa que procura demonstrar “ainteligibilidadedialéticadoquenãopode ser encarado comouniversal”[50].Aqui,pretendemossimplesmenteacentuararelevânciadaquestãoparaumacompreensãodopróprioSartrequantoadoisaspectos.Emprimeirolugar,Sartresempreassocioua investigação sobreo“projeto fundamental”deumescritoràpesquisa,in extenso,sobre os modos concretos como ele consegue extrair necessidade a partir dascontingências de sua situação, produzindo assim a validade exemplar de uma obracujoselementosconstitutivosestão,emprincípio,aodispordecadaumedetodosnós. Em segundo lugar, transformar em necessidade os pedaços de contingênciaencontrados nas circunstâncias do dia a dia está muito em evidência no própriodesenvolvimentodeSartre.Nessesentidoéqueemergeaunidadedesuaobra,nãodealgumprojetooriginalmítico,massimcombasenumadeterminaçãototalizadoraquevisaintegraremumtodocoerenteoselementosda“facticidade”transformada.Podemos apresentar apenas uns poucos eventos e circunstâncias especí cos comotipos dessas transformações, violando assim a regra do próprio Sartre a respeito da“nãouniversalizabilidadedosingular”.

    Em 1940-1941, quando prisioneiro de guerra, Sartre obteve as obras deHeidegger –personagratissimaaosnazistas–edeuumcursosobrea loso adesseautor a alguns capelães militares, seus companheiros de prisão. Naturalmente,Kierkegaardfoitambémparteintegrantedasdiscussõesdogrupo,asquais,comtodasuaintensidade,lançaramosalicercesdeOsereonada,esboçadoumanomaistarde.PróximoaoNatal,aindacomomesmogrupodecompanheiros,Sartreescreveusuaprimeira peça de teatro,Bariona, ouO lho do trovão. Ambos os eventos tiveramgrande importância para seu futuro.A experiência de escreverBariona e a recepçãoque ela recebeude seus companheiros determinaram a opinião de Sartre de que oteatro “é, provavelmente, uma grande experiência religiosa coletiva”[51] – opinião

  • rea rmadaemmuitasocasiõesequeenfatizaaconexãoorgânicaentreteatroemito.(Essa ideia vai muito além do teatro, simplesmente, como veremos no próximocapítulo.) Analogamente, a integração de Kierkegaard e Heidegger no mundo deideias e imagens de Sartre trouxe consequências de longo alcance. Seu livroSaintGenet adota como estrutura (na interpretação das “metamorfoses” de Genet) asetapas kierkegaardianas: a “ética”, a “estética” e a “religiosa”, embora a “terceirametamorfose”sejaagoraidenti cadacomoadifícilcondição“doEscritor”.Porém,comoficamossabendoemmuitoslugares,“emminhaimaginação,avidaliteráriafoimodeladasobreavidareligiosa.[...]Fizatransposiçãodenecessidadesreligiosasparaaspiraçõesliterárias”[52].

    Além disso, a profundidade de seu contato comKierkegaard pode sermedidapelasinúmerasreferênciasdeSartreao“singular”,oumelhor,ao“universalsingular”.Omesmo se aplica aHeidegger.Não sedeve superestimaropapel desse autornaformação da estrutura de pensamento de Sartre. Seria inútil especular sobre o queteriaacontecidoseSartretivessetidoaexperiênciadeumcampodeprisioneirosdeguerrarusso,emvezdeumnazista,comprateleirasostentandoasobrasdeMarxeLenin. Inútil não apenas devido à esterilidade inerente de hipóteses contrafactuais,mastambémporquesuaprimeirarelaçãocomosescritosdeHeidegger,emborasemmuita profundidade, antecede em cerca de dez anos sua experiência de guerra.Detodomodo,SartrepôsHeideggera seu serviço.Seria tão incorreto lerSartrepelosolhosdeHeideggerquantofazeroinverso.Nãoobstante,nãoseconstróiumcastelode cristal com pedras. Assim, embora Sartre esteja correto em defender-se contraataques sectários por causa do passado nazista de Heidegger, seus argumentos arespeitodaverdadeiraquestãonãosãonadaconvincentes.Dizele:“EntãoHeidegger,edaí?Sedescobrimosnossoprópriopensamentoporcausadeoutro lósofo,sedeleextraímostécnicasemétodossuscetíveisdenosfazerchegaranovosproblemas,issoquer dizer que esposamos todas as suas teorias? Marx emprestou de Hegel suadialética. Dir-se-ia, por isso, queO capital[53] é uma obra prussiana?”[54]. AquestãoénãoapenasqueSartretomadeHeideggermuitomaisdoque“técnicasemétodos”,mas também– o que é bemmais importante – quejamais submete aobradeHeideggeràquele“acertodecontasradical”quecaracterizaarelaçãodeMarxcomHegel.

    Oquesepercebeemtodosessescasoséque,emcertosentido,acontingênciaé“superada” [superseded]. Não que o escritor possa fazer tudo quanto lhe agrade.(Aliás, Sartre tem de pagar um alto preço por adotar grande parte da ontologiatruncadadeHeidegger,que sópodedescobrir a simesmae,por isso, retornar emcírculos para dentro de si própria.Voltaremos a isso adiante.)A contingência nãoabre caminho a algum tipo de liberdade mística que emana da subjetividade do

  • intelectual, mas sim a uma necessidade estruturada. O que se dá bem diante denossos olhos é que o caráteracidental da contingência é transcendido e“metamorfoseado”nanecessidadededeterminaçõesinteriores.

    1.3Aterceiraquestãoanteriormenteproposta–oespectrodapossívelobradeum

    escritor–vincula-sediretamenteaoâmbitodesuasexperiênciaspessoais.Em1959,depoisdeelogiarFrançoiseSaganporproduzir“algonovo”combasena“experiênciapessoal”[55],Sartreassinalaqueumdosprincipaisfatoresdesuadecisãodenãomaisescrever romances era estar consciente das de ciências (manque) de suas própriasexperiênciaspessoais.Emsentidomaisgeral,suadecisãosevinculaaumade niçãode romance como “prosa que visa àtotalização de uma temporalização singular efictícia”[56],e,umavezquesuasprópriasexperiênciaspessoaisnãoproporcionavamabasedaespéciedetotalizaçãorepresentativaexigidapelaformaromance,Sartreteriade adotar, a nal, a “temporalização singular” de outra pessoa, produzindo, emOidiotadafamília,oquechamade“umautênticoromance”[57].

    Issonãoétãosimplesquantoparece.Certamente,avidadeSartrenãoémuitocheia de aventuras. De fato, a maior parte dela se consome numa demoníacadedicaçãoao trabalho.Ovolumede suaproduçãoédesconcertante.Cincoou seismilhõesdepalavrasjápublicados,etalvezoutrosdoisoutrêsmilhõessumidosemmanuscritosperdidos,abandonadosouaindaapublicar:maisdoqueobastanteparamanter meia dúzia de escribas ocupados por toda a vida durante a Idade Média,apenas para copiar tudo isso. Indagado a respeito da extraordinária riqueza de suaprodução, ele explica, numa semiapologia: “Pode-se ser produtivo sem muitotrabalho. Três horas pela manhã, três horas à noite: essa é minha única norma.Mesmo em viagens. Vou executando pouco a pouco um plano de trabalhometiculoso”[58].

    Éespantosoouvirqueseishorasdetrabalhointenso,todososdias,“mesmoemviagens”, seja considerado “pouco a pouco”. A verdade completa, porém, é aindamaisespantosa,pois sabemosporoutras fontes (principalmentepelasmemóriasdeSimone de Beauvoir) que ele frequentemente escreve “dia e noite” e dispõe-se aconsumir28horas,semparar,narevisãodeumúnicoartigo[59].Etal intensidadenãoestáapenasreservadaparaocasiõesraras.Aocontrário,parecequeessaéaregra,não a exceção.Muitasdas obras literáriasdeSartre são escritas empoucosdias ousemanas.Aindamaissurpreendente,suasduasobrasteóricasmonumentais,Osereonada eCrítica da razão dialética[60], foram escritas, cada uma delas, em poucosmeses[61]. Além disso, relata-me François Erval, muitas vezes capítulos inteirosforamreescritosdocomeçoao m,apenasporqueSartrenãoestavasatisfeitocomalguns pormenores. Se a tudo isso se acrescentar o in ndável número de horas

  • dedicadas a discussões, correspondência, entrevistas, ensaios de peças de teatro,conferências, reuniões políticas e editoriais e assim por diante, é evidente que nãopodetersobradomuitotempopara“experiênciaspessoais”.Autoresdeumlivrosó,comoSagan,podempermitir-segrandenúmerodelas;nãoSartre,quesimplesmente“não pode parar para levar a vida como ela vier: tem de estar em ação o tempotodo”[62].

    De todomodo,o signi cadoda experiênciapessoaldeumescritor édialético;não pode ser transformado num fetiche cristalizado. Sartre não insistiu sempre,acertadamente,que“aobraconstróiseupróprioautoraomesmotempoqueelecriaa obra”? Esse intercâmbio dialético entre obra e experiência não poderia encontrarmanifestaçãomaisclaradoqueemSartre.Issojápodeserpercebidoemseuprimeirotexto teórico original, uma carta em colaboração a um inquérito entre estudantes,publicada emLes Nouvelles Littéraires, no início de 1929. Há apenas uma obrateórica anterior de Sartre, um ensaio intitulado “eory of the State in ModernFrenchThought”[AteoriadoEstadonopensamentofrancêsmoderno][63],maserauma proposta muito diferente. Não mostra nada do caminho que Sartre viria apercorrer.Somentesalpicacomalgunscondimentosdeoriginalidadeamassainsípidada convencionalidade acadêmica. Em contraste, na carta aLes Nouvelles LittérairesvemosoprimeirolampejodoverdadeiroSartre:uma guramagní ca.Nãoéoqueele diz, mas o modo como aborda o problema que faz dessa carta um começoverdadeiramenteoriginal,quebemmereceumacitaçãomaislonga:

    Constitui umparadoxodamente humana o fato de que oHomem, cuja tarefa é criar as condições

    necessárias,nãopossaerguer-seacimadecertoníveldeexistência,comoascartomantes,quepodemfalardo futurodeoutraspessoas,masnãode seupróprio.Époressa razãoque,naessênciadahumanidade,bemcomonaessênciadanatureza,sóconsigovertristezaetédio.NãoéqueoHomemnãopenseemsimesmo como umser. Ao contrário, empenha todas as suas energias para tornar-se um ser.Daí provêmnossas ideias do Bem e do Mal, ideias de homens trabalhando para aperfeiçoar o Homem. Mas essesconceitossãoinúteis.Inútil,também,éodeterminismoque,demaneiramuitoestranha,procuracriarumasíntesede existência e ser. Somos tão livresquanto sequeira,mas impotentes. [...]Quanto aomais, asvontadesdepoder,deaçãoedevidanãopassamdeideologiasinúteis.Nãoexisteessacoisadevontadedepoder.Tudoéfracodemais:todasascoisastrazememsimesmasassementesdaprópriamorte.Acimadetudo, a aventura – com isso quero dizer a fé cega na concatenação fortuita e, contudo, inevitável decircunstâncias e de eventos – é uma ilusão. Nesse sentido, o “aventureiro” é um deterministainconsequentequeimaginadesfrutardecompletaliberdadedeação.[64]

    Semdúvida,issojáéumasíntese–aindaquepreliminar–,resultadodemuito

    questionamentoeanáliseminuciosa;éoresumodetodasasexperiênciaspessoaisquepossibilitaram esse tipo de re exão e de generalização dentro do contextorelativamentetrivialdeuminquéritoentreestudantes.Ficabastanteevidenteamarcadeumapersonalidadedominanteeimpositivapelofatodequeeleescolheexpressar

  • exatamentetaisfundamentosmetafísicos“pesados”numaocasiãocomoessa,emqueoutros poderiam se contentar com queixas sobre moradia e alimentação. Não ésimplesmente um texto de circunstância, embora também seja isso. O que maisimporta é que é umprojeto de vida, quaisquer que sejam as implicações que estepossa trazerparaodesenvolvimentopessoal,bemcomoliterário-intelectual,deseuautor. Ele capta um paradoxo damaior importância que, por sua vez, se apoderadele, e assim ele se envolve no projeto de toda a vida de alcançar as raízes doser(grifadoporSartre),medianteoquestionamentosobreHomemenatureza,menteeexistência, humanidade e ideologia, bem e mal, liberdade e aventura, morte edeterminismo.Quediscursodeestreiaparaumestudantequeaprendiaanavegarnomundodasideias!

    Essa busca das raízes do ser é necessariamente um projeto de totalizaçãoparexcellence.Oquepredominaéotodo,namedidaemqueoselementosedetalhesdarealidadedevemsempreserpostosemrelaçãoaofundamentodoser.Dessemodo,acaracterísticapreferencialdaobradeveserasínteseenãoaanálise:estaúltimaassumeapenasumaposiçãosubordinada,comoetapapreliminarbemmarcadadasíntesequevirá. Essa é a razão por que Sartre se considera diametralmente oposto a Proust,apesar de sua grande admiração por esse escritor clássico francês, acentuando queProustsedeliciacomaanálise,enquantoatendênciainerenteàsuaprópriaobraéasíntese[65].AdescriçãodeSartredeseu“modeloreligiosodeliteratura”–concebidacomoum empreendimentoque tudo abrange e tudo realiza –nãopassa de outronomeparaesseatodesíntese,queafetaprofundamentecadaumadasfacetasdavidaedaobra,desdeocaráteratéométododetrabalho,desdeasrelaçõespessoaisatéapercepçãopeloescritordomundodosobjetosedesuaatitudeparacomele,desdeo“estilo de vida” até a estrutura e o estilo da obra em si. E, uma vez que o pontoúltimodereferênciaéo“ser”,comsuaposturaexistencialarespeitodetudo,nãosepode abordar com objetividade desapaixonada as facetas examinadas do todo(estamos sempre dentro dos perímetros da busca: partes integrantes dela, não seusobservadores soberanos), mas sim com uma vigorosafusão de subjetividade eobjetividade, de forma muito mais frequente sob a predominância da primeira.Kierkegaard falava de “in nita subjetividade compulsiva”[66]; também em Sartrenos vemos diante da “subjetividade compulsiva” (às vezes identi cada como“voluntarismo”),aindaquedeformamaisrestritadoqueemseugrandepredecessor.Pormais abstratoqueumproblemapossa ser em simesmo, é sempre convertidonuma“ideiaviva”nocursodesuasituaçãoemrelaçãoaoser.

    1.4Bastam alguns exemplos para ilustrar essa interpenetração de subjetividade e

    objetividade.Vejamosoconceitodeespaçoedistância.DizSartrequeadistânciafoi

  • “inventadapelohomemenãotemsentidoforadocontextodoespaçohumano; elaafastouHerodeLeandroeMaratonadeAtenas,masnãoafastaumseixodeoutro”.Essaquestãoéretomadacomadescriçãodeumaexperiênciapessoalde“proximidadeabsoluta” num campo de prisioneiros onde “minha pele era a fronteira de meuespaçovital.Diaenoiteeusentiaocalordeumombrooudeumacoxacontrameucorpo.Masissojamaisincomodava,comoseosoutrosfossempartedemim”.Issoécontrapostoàsuavoltaparacasa:“Ingressaradenovonasociedadeburguesa,naqualteriadevoltaraaprenderaviver‘aumarespeitosadistância’”[67].EtudoissoéparaprepararoterrenoparaumexamedotratamentodadoporGiacomettiaoespaçoeàdistância,emrelaçãoà“plenitudedoser”eao“vácuodonada”.

    A respeito de Sartre, escreve Simone de Beauvoir que, “se fosse necessário, eleteria se disposto a manter-se anônimo: o importante era que suas ideiasprevalecessem”[68].Tudomuitobem,salvoque anonimatoeprevalênciadas ideiasdeSartre– ideiasvivas–constituiumacontradiçãoemtermos. IdeiascomoasdeSartreprecisamser a rmadasdemaneiradramática, senecessáriomedianteasmaisextremadasmanifestaçõesde“subjetividadecompulsiva”.Assim,a“notoriedade”eo“escândalo” são acompanhantes necessários de seu projeto universal voltado para oser,eo“anonimato”nomáximosemantémcomoumaânsiamomentâneadepazsobatensãodoescândaloedanotoriedade.

    AsrelaçõesdeSartrecomaspessoas,obrasdearte,objetosdodiaadiaeassimpor diante são descritas em suas obras, tanto quanto na vida real, com coresdramáticas.Elenãogostaoudesgosta,simplesmente,doquevênoMuseudoPrado,masabominaedetestaTicianoeadmiraHieronymusBosch.Umsimplespassardeolhos por uma assembleia numa faculdade de Oxford é o bastante para fazê-lodetestaro esnobismoda sociedadeoxfordiana e jamais voltar apôrospésnaquelacidade.Fazpartedaeconomiadevidaqueeletenhaderesolver-searespeitodetudocomgranderapidezeintensidade,semprebuscandoumaavaliaçãogeralquepossaserintegradaemsuabuscatotalizadora.Omesmosedácomasrelaçõespessoais,eatémesmoalgumasdesuasamizadesmaisíntimasacabamterminandodramaticamente(por exemplo, as de Camus e Merleau-Ponty), assim que ele percebe que oprosseguimentodarelaçãoiráinterferirnaconcretizaçãodesuasmetas.Elecomandatodas as suas relações pessoais, inclusive as mais íntimas, de modo a nunca sedispersardesuadecididadedicaçãoàspreocupaçõescentraisdesuavida.Exatamenteporessarazão,recusa-seaaceitararesponsabilidadeeosencargosdavidadefamília.Nega-sea carpresoàscondiçõesdoconfortoburguêseprocuraeliminardesuavidapessoalodinheiroeasposses.

    Do mesmo modo, explora com grande paixão e imaginação modalidades deexperiênciaque,aumasubjetividademenoscompulsiva,pareceriam,emprincípio,

  • umlivroparasemprefechado.AssimseenvolvenumaapaixonadadiscussãosobreaNégritude,totalmenteindiferenteàpossibilidadedequea“análiseeidética”quedelafaz(jáqueelanãopodeserdiferentedoqueé)possaser,comofoi,repudiadacomo“desastrosa”[69]pelosqueavivenciavamdedentro.Pormaisproblemáticoquefosseum empreendimento desse tipo, como poderia ele passar sem isso em sua buscatotalizadora do ser, quando o racismo adquire presença tão ampla presença, comimplicações as mais devastadoras, no conjunto total de nossa condição? Assim,paradoxalmente,a“subjetividadecompulsiva”éacondiçãonecessáriadecertograudeobjetividade(aobjetividadedeencararoproblemacompreocupaçãoverdadeira),enquanto a “objetividade” do retraimento despretensioso – o reconhecimento daprecariedade de um homem branco para tal tarefa – signi caria a pior espécie desubjetividade,adacumplicidadevoluntariamenteambígua.

    Umamanifestação semelhante da subjetividade compulsiva de Sartre é quandoele diz a Daniel Guérin que “ele não entendeu coisa alguma de seu própriolivro”[70].Pormaisdespropositadaquepossaparecer essa a rmação,dopontodevistadoautorcriticado,arelativajusti caçãoparaelaéqueocontextoemqueSartreinsereoestudodeGuérinsobreaRevoluçãoFrancesa(aavaliaçãodialéticasartrianada “estrutura ontológica da história”) impõe um ângulo signi cativamente diversoaoseventosespecí cosdiscutidose,dessemodo,realçadimensõesquesemantinhamocultasouemsegundoplanoaohistoriadornocontextooriginal.Pode-sediscordarinteiramentedaconcepçãodeSartredaestruturaontológicadahistória,oriundadesuas preocupações pessoais especí cas e que exibe, claramente, as marcas de suapersonalidadecompulsiva,maséimpossívelnegarqueelalança,demaneiraradical,uma nova luz sobre nossa compreensão das estruturas e instituições que podemosidentificarnocursododesenvolvimentohistórico.

    O“eu”estáemprimeiroplanodepraticamentetudoquantoSartreescreve,esuasubjetividade, se necessário, é levada ao nível da beligerância. Ele se recusaenergicamente a retirar-se para o plano de fundo e a assumir o papel de um guiaobjetivo,cujafunçãosejameramenteindicarosobjetos,obraseeventos,ouapontaralgumasconexõesbemestabelecidasentreeles.Emsuaopinião,assimcomoocorrecomanoçãode“distância”,deve-sedarvidaaosobjetosmediantesuaapresentaçãoatravés da subjetividade do escritor, para que possam ser inseridos num discursohumanosigni cativo,poisdeoutraformacontinuamasercoisasmortasefetiches.Muitas vezes, os críticos se perguntaram por que Sartre não escreveu poesia lírica,semsedarcontadequeeleofezdurantetodootempo,aindaquenãocomoumgênerodistinto,masdemododifusopor toda suaobra.QuepodehaverdemaislíricodoqueadescriçãodotratamentodadoporGiacomettiadistância,vinculando-oaoseupróprioretornodocampodeprisioneirosparaviveravidaaumarespeitosa

  • distância?O estilo de Sartre é determinado pelas grandes complexidades de seu projeto

    globaldetotalização.FalandoarespeitodesuaCríticadarazãodialética,eleadmitequesuaextensão(cercade400milpalavras)podiaserreduzidaemcertamedida,casolhepudessededicarmaistempoeesforço,masacrescenta:“Detodomodo,elaseriamuitoparecidacomaobracomoestáagora.Pois,basicamente,seusperíodossãotãolongos,tãocheiosdeparênteses,deaspas,de‘namedidaemque’etc.,apenasporquecada período representa aunidade de um movimento dialético”[71]. É impossíveltransmitiraunidadedeummovimentodinâmicoemtodasas suascomplexidadesutilizando recursos estáticos, como períodos curtos e sentido simpli cado, oucentrando-se em apenas um aspecto por motivo de clareza e desprezando muitosoutros.Atranslucidezenganosadadissecçãoanalítica,menosprezandoanecessidadedasíntesesigni cativa,sóproduzirrelevânciaoudeturpação.Estiloemétododevemcondizercomaplenacomplexidadedatarefa:deoutromodo,sãodispositivospré-fabricados, sobrepostos arti cialmente a qualquer assunto, sem levar em conta suanaturezaespecí caesuasexigênciasinternas.Sartrecontrapõedeformaconscienteaessapráticadesobreposiçãoprocustiana(aquefrequentementeseassistenaarteenopensamentomodernos,da loso aà sociologiaedaeconomiaàantropologia) seumétodopessoaldecaptaromovimentoeacomplexidade.Seconcentraraatençãodemaneirapenetrantenumsóaspectoàcustadeoutrosrepresentadistorção,umavezque apenas a conjunção adequada do singular com o múltiplo constitui o todorelevante,elevisaaclari carearevelaraindeterminação,pormaisparadoxalqueissopossa parecer. É isso que louva em Giacometti, acentuando que ela não deve serconfundidacomimprecisão–resultadodofracasso.Pois“aqualidadeindeterminadaque provém da falta de habilidade nada tem em comum com a indeterminaçãocalculada de Giacometti, que, mais apropriadamente, poderia ser chamada desobredeterminação (surdetermination)”[72]. A adoção desse princípio desobredeterminação,quecorrespondeàestruturadatotalidade,juntamentecomoqueSartrechamade“princípiodaindividuação”[73],équede neaespeci cidadedeseuestilo e a vitalidade de seu método como brotando do terreno de sua buscatotalizadoradoser.Capta-seotodomedianteasimultaneidadeda“indeterminaçãocalculada”(sobredeterminação)eapresençamutávelda individuaçãobemmarcada,pelaqualatémesmoaausênciatorna-setangívelcomodimensãovitaldatotalidade(ver,por exemplo, adiscussão sobre a ausênciadePedroda cafeteria emO ser e onada).Dessemodo,omovimentoeo repouso,o todoe suaspartes,ocentroeaperiferia, o primeiro plano e o plano de fundo, as determinações do passado e asantevisõesdofuturoconvergindosobreopresente,tudoissoganhavidanaunidadesintética de uma totalização dialética em que a subjetividade e a objetividade sefundemdemaneiraindissociável.

  • 1.5Comopodemosver,aobratrazasmarcasdapersonalidadedoescritorsobtodos

    os aspectos, desde a escolha de um assunto surpreendente (como a Négritude),passandopelosmodosdeanáliseededescrição,atéoestiloeométododeescrever.Vendo por outro lado, as determinações internas de certo projeto globaldeterminam,por sua vez, um “caráter beligerante”, uma subjetividade compulsiva,ummodopessoaldoescritordede nir-seemrelaçãoàs instituições,àspessoaseàpropriedade;emsuma, seuestilodevidaeasexperiênciasemqueseenvolveráemconformidadecomsuavisãodemundoedeseuprópriolugarnele.Assimpodemosver “a singularização da obra pelo homem e a universalização do homem pelaobra”[74].

    No caso de Sartre, o espectro de sua obra possível está circunscrito por aquelabusca oniabrangente do ser que já percebemos nas palavras tateantes do estudanteconfrontandohomemenatureza,menteeexistência,humanidadeeideologia,bememal, morte e determinismo. Uma vez que o alvo é o ser em si, as formasconvencionaisnãoproporcionarãooscaminhosparaseudesdobramento;eumavezque as obras de Sartre sempre visam a revelar o ser, ou a apontar os caminhos nadireção dele, devema priori excluir o que quer que seja que tenha a ver comnaturalismo.O simbolismo está também excluído, já que simplesmente fará comque pedaços isolados da imediaticidade dada se ampliem sob forma de algumageneralidade abstrata e estática, emvezde reproduzir amultiplicidadedinâmicaderelações que caracterizam o todo.O que se precisa, então, é de alguma forma demediaçãocapazdetransmitira“plenitudedoser”eo“vaziodonada”,semcairnumsimbolismoabstrato.Sartreencontraamediaçãodequenecessitanoquedenomina“mito”: umacondensação[75] de traços de caráter (em consonância com a“densidade”ou“plenitude”doser)quefazcomquearealidadepercebidaedescritaseeleve ao nível do ser sem abandonar os dados da sensibilidade. Desse modo, a“condensação”proporcionaoterrenosobreoquala“indeterminaçãocalculada”ea“individuação” bem marcada podem orescer como princípios verdadeiramentecriativos.

    Veremos,nopróximocapítulo,olugarqueocupaomitonaobradeSartreemgeral. Neste momento, estamos interessados em suas implicações para nossocontextoatual:a sériedeobrasqueoautorpoderealizardemaneirabem-sucedidacom tais elementos dentro do quadro de referência de sua busca totalizadora. Aprimeiraéseucicloderomances,Oscaminhosdaliberdade[76].Consideradosnãodeforma isolada, mas na totalidade do desenvolvimento de Sartre,Os caminhos daliberdadeconstituemumfracasso,nosentidodequesãoumbecosemsaída,apartirdo qual não pode haver escapatória, nem explorações ulteriores, nemdivergências,

  • nemcaminhos–nemsequertrilhas–paraaliberdade.Adespeitodoqueconsegueparcialmente,aindaquemuitasvezesedemodoimpressionante,essaobracontinuacompletamenteperiféricanaobraglobaldeSartre.Eletemdedeixá-ladelado,jáem1949,livrando-sedasconsequênciasdeumaescolhaerrada,a mdeprosseguirsuabuscaemoutrasdireções.Dezanosdepoisdeabandonaraobranoquartovolume,justifica-secomosegue:

    O quarto volume deveria falar da Resistência. Essa escolha era simples naquela época – ainda que

    fossemnecessáriosmuitovigor emuita coragemparadefendê-la.Ou se era a favor,ou se era contraosalemães.Aescolhaeraentrepretoebranco.Hojeemdia–desde1945–asituaçãosecomplicou.Talvezsejaprecisomenoscoragemparaescolher,masasescolhassãomuitomaisdifíceis.Eunãopoderiaexprimirasambiguidadesdenossaépocanumromancesituadoem1943.[77]

    Isso é o que Sartre denomina, alhures, suas “di culdades internas”[78] para

    abandonarOscaminhosdaliberdade.Naverdade,aquestãoémuitomaiscomplicada,poisnãoésóoquartovolume

    queéproblemático,massimoprojetocomoumtodo.Aoatingir1943,ascoisassetornammaisvisíveis,nummomentodeclímax,maselasestãoalidesdeoprincípio.O caráter problemático da obra manifesta-se estruturalmente numa tensãoperturbadoraentreumacotidianidadesemrodeios,descritaemsuaimediaticidade,eumaretóricaqueprocuraprojetaressacotidianidadenoplanodauniversalidade[79].Emoutraspalavras,a faltada intermediaçãodo“mito”ouda“condensação”équetorna a obra estruturalmente abstrata e problemática no quadro de referência dabuscatotalizadoradeSartre.Apercepçãodetodaumaépocadentrodosparâmetrosde um con ito extremamente simpli cado de “preto ou branco” é, de fato,consequência dessa estrutura abstrata, e não suacausa vigorosamente objetiva comosugereSartredemaneiracuriosa–muitoemdesacordocomsuaconcepçãodialéticade sujeito e objeto, autor e obra, causa e efeito em literatura. Examinando ascondições em queOs caminhos da liberdade foram escritos, descobre-se que Sartredeixou-selevaraadotarsuaestruturaabstrata,emprimeirolugar,peloescândalo[80]em consequência do negativismo que permeava seus primeiros contos eA náusea,quefezcomqueele,demodoimprudente,seobrigasseaumacontinuaçãopositiva;e,emsegundolugar(oqueémaiscompreensível,masartisticamenteproblemáticodamesmamaneira),pelo“heroísmoabstrato”[81]desuapercepçãodomovimentodaResistência,noqualnãoconseguiuassumirmaisdoqueumpapelmuitoperiférico,pormaisqueseesforçasse.Emborasejacorretodizerquesuaobradramática,vistacomoumtodo,estejalivredessecaráterabstratoestrutural,seriamuitoerradoquesevissecomorazãoparaissosimplesmenteofatodequeaquisetratadeumromance–comuma“prosaquevisaàtotalizaçãodeumatemporalizaçãosingulare ctícia”.Éo

  • tipodeprosaqueestáemdiscussão:aquelequeseopõeàcondensaçãonecessáriadospersonagensedassituaçõese,dessemodo,incitaoautoraintervirseguidamente,soba forma de uma retórica abstrata, a m de compensar produzindo algum tipo de“condensação losó ca”.Umaprosaquemostrassea nidadecomKafka,oucomasobrasdeE.T.A.Hoffmann,paradarumexemplomaisantigo,seriaumapropostamuito diferente. Contudo, como as coisas são, a estrutura deOs caminhos daliberdade contraria aquela “indeterminação calculada” tão essencial para a realizaçãodoprojetosartriano.

    Encontramos exatamente o contrário emEntre quatro paredes[82]. Escrita emduassemanasnooutonode1943eencenadapelaprimeiravezemParisemmaiode1944(eproibidapelacensurainglesaemsetembrode1946),Entrequatroparedeséuma“piècedecirconstance”muitomaisexempli cativa.Oqueocasionasuacriaçãoéopedidodeumaamigaporumapeçafácildeencenar,compoucosatores,paraumacompanhiadeteatroitinerante.E,comoSartredesejacriarpapéisdeigualpesoparasuas amigas,que são as atrizesprincipais,planejauma situação emque elasdevampermanecer juntas em cena durante todo o tempo. Primeiro pensa num abrigoantiaéreo,cujassaídasteriamruído,nãopermitindoescapar.Aépocaemqueéescritasegue de perto o momento em que completouO ser e o nada[83], e Sartre querexplorar,emteatro,ocon itoinerenteàsrelaçõesinterpessoais,aameaçaàliberdaderepresentadapelo“outro”.Dessemodo,ocenáriodeumabrigoantiaéreoresultaria,evidentemente,emfracasso.Essasituaçãoapresentariapelomenostantoespaçoparaamanifestaçãodesolidariedadehumanaede“fusão”comvistasaum mcomumquantoparaapretendidamanifestaçãodeumainimizadereciprocamenteparalisante.AadmirávelinspiraçãodeSartredesituaropalconoinferno,doqualnãopodehaversaída, fez da peça uma obra-prima. Ao elevar a situação humana de con itoaniquiladoraoníveldeummito–mitoemqueonegativismodevastadoreocaráterexaustivodoconflitoseintensificaaumgrauinconcebívelsobqualqueroutraforma,dandoumadimensãodeeternidadeàdestruiçãoeàexaustão,quesãonormalmenteparadigmas de limitação e determinação temporais, levando as coisas a um mprevisível – Sartre cria um intermediário tangível para o qual convergem aspreocupações da vida cotidiana e algumas das dimensões mais fundamentais daestrutura do ser.Nummeio como esse, de extrema condensação, frases como “oinfernoéooutro”brotamespontaneamentedasituação,enquantosópoderiamsersobrepostas na forma de uma retórica abstrata em, digamos,Os caminhos daliberdade. Indeterminaçãocalculada, individuaçãobemmarcada,múltiplascamadasde signi cado ambíguo, condensação e sobredeterminação, fechamentoclaustrofóbico e sua negação mediante a totalidade do ser constituem a unidadehipnóticademovimentoeparalisiaquecaracterizaEntrequatroparedes.CertamenteessasituaçãoésemsaídaparaInês,tantoquantoparaEstelleeGarcin;mas,apartir

  • dela,muitoscaminhoslevamnadireçãodarealizaçãodoprojetodeSartre.Elailustramuito bem o quanto a própria natureza de sua busca universal daquilo que, àprimeiravista,podeparecermeraabstração–aplenitudedosereovaziodonada–trazconsigoformasdemediaçãopelasquaisatémesmoasdeterminaçõesontológicasmais abstratas podem ser transmitidas como tangíveis manifestações de destinoshumanos.

  • 2.Filosofia,literaturaemito

    2FILOSOFIA,LITERATURAEMITO

    2.1Aimportânciado“mito”nãoselimitaabsolutamenteàconcepçãodeSartrede

    Entre quatro paredes. Nos mesmos termos ele encaraBariona, As moscas[84], Astroianas[85] eKean[86], bem comoOdiabo e o bomdeus[87],Os sequestrados deAltona[88] eoutras.Comrespeito aOs sequestradosdeAltona,quedescrevecomouma espécie deGötterdämmerung (“crépuscule des dieux”)[89], ele enfatiza suaintençãocomoadadesmisti caçãomedianteaampliaçãodeseutemaàsproporçõesdeummito[90].E,emconversacomKennethTynan,revelaquegostariadeescreveruma peça sobre o mito grego de Alceste, de modo a conseguir condensar nela odramadalibertaçãofeminina[91].

    Igualmente,Sartrelouvaasobrasdomesmoestilodecontemporâneosseus.Emartigo intitulado “Forjadores de mitos: os jovens dramaturgos da França”[92],destacaAntígona[93], de Anouilh,Calígula eO equívoco[94], de Camus, eLesbouchesinutiles,deSimonedeBeauvoir,comoexemplosdamesmaabordagemdepersonagens e de situação que anima suas próprias peças. Vinte anos depois, emdezembrode1966,fazumaconferênciaemBonn, intitulada“Mitoerealidadedoteatro”,emquecontrapõeaformadedramaquedefendeao“teatrorealistaburguêsque visava à representação direta da realidade”[95]. No mesmo espírito, poucotempo depois dessa conferência, classi ca Georges Michel como um dramaturgoverdadeiramente original, que conseguiu transcender o realismo mediante uma“deformaçãoemdireçãoaomito”[96], contrast