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Ano 10 | outubro de 2010 | ISSN 16790995 A palavra enquanto preenchimento ideológico: arte e cotidiano na mística do MST João Rodrigues Pinto 1 Resumo O estudo propõe a compreensão da mística no contexto do Movimento dos Sem Terra como um componente importante para a celebração da memória e a cultura da memória, estabelecendo possíveis relações entre a dinâmica da linguagem visual com os elementos formativos da educação popular que forjam o sentido de pertença, cotidiano e arte. Investiga a representação da linguagem da mística no contexto da educação popular vivenciada pelo MST, além de estabelecer possíveis relações entre os elementos que a tecem e a dinâmica do teatro popular, tendo como ponto de referência a arte da performance. O estudo é um processo em construção, cuja meta é estender- se além do olhar passivo, tornando-se uma elaborada tese em torno das relações dialéticas que se estabelecem na celebração da mística com as práticas educativas e formativas do movimento. Palavras-chave: mística; performance; memória; teatro; comunidade Introdução Existem momentos na história em que a cultura tem realçada a sua dimensão de projeto, de perspectiva de futuro; e estes momentos são exatamente aqueles em que acontecem movimentos sociais, políticos ou intelectuais de maior vigor, em que se constituem sujeitos sociais classes ou extratos de 1 Graduado em Letras (UFES); Especialista em História do Brasil (UFES); Mestre em Teatro (UNIRIO); autor de 7 obras literárias; Criador do grupo teatral Artevida; Professor da Faculdade Pitágoras.

A palavra enquanto preenchimento ideológico: arte e ... · situações sociais assemelha-se ao teatro popular comunitário com ênfase na dinâmica do ... estética que coloca em

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Ano 10 | outubro de 2010 | ISSN 16790995

A palavra enquanto preenchimento ideológico: arte e cotidiano na mística do MST

João Rodrigues Pinto 1

Resumo O estudo propõe a compreensão da mística no contexto do Movimento dos Sem Terra como um componente importante para a celebração da memória e a cultura da memória, estabelecendo possíveis relações entre a dinâmica da linguagem visual com os elementos formativos da educação popular que forjam o sentido de pertença, cotidiano e arte. Investiga a representação da linguagem da mística no contexto da educação popular vivenciada pelo MST, além de estabelecer possíveis relações entre os elementos que a tecem e a dinâmica do teatro popular, tendo como ponto de referência a arte da performance. O estudo é um processo em construção, cuja meta é estender-se além do olhar passivo, tornando-se uma elaborada tese em torno das relações dialéticas que se estabelecem na celebração da mística com as práticas educativas e formativas do movimento.

Palavras-chave: mística; performance; memória; teatro; comunidade

Introdução

Existem momentos na história em que a cultura tem

realçada a sua dimensão de projeto, de perspectiva de futuro;

e estes momentos são exatamente aqueles em que acontecem

movimentos sociais, políticos ou intelectuais de maior vigor,

em que se constituem sujeitos sociais – classes ou extratos de

1 Graduado em Letras (UFES); Especialista em História do Brasil (UFES); Mestre em Teatro (UNIRIO); autor de 7 obras literárias; Criador do grupo teatral Artevida; Professor da Faculdade Pitágoras.

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classe, reacendendo esperanças e trazendo propostas de

mudanças. Para Caldart (2000), esta dimensão de projeto não

acontece desvinculada de um modo mais cotidiano de vida. E é

exatamente esta relação que forma o sujeito humano, social.

Olhar para as matrizes culturais do campo nessa perspectiva é

compreender a dimensão sociocultural dos principais

processos que constituem a dinâmica das manifestações

artísticas do meio rural, cuja marca é a defesa e a preservação

da identidade do homem e da mulher. São reflexões sobre a

vida campesina, produzidas pela comunidade, presentes na

sua história, no seu aprendizado, nas suas performances e nas

nuances da arte popular. Nesse contexto, a mística vivenciada

pelos movimentos sociais é o elemento catalizador da

motivação para o cultivo da memória.

Na linguagem do teatro, a mística é conhecida como

performance. Segundo Belém (2006), o extenso campo de

Estudos da Performance abarca discussões sobre práticas

performáticas em várias culturas, no que concerne aos

aspectos universais e específicos de tais manifestações. Alguns

teóricos defendem o princípio da universalidade como

essência comum a diversas práticas. Outros enfatizam a

especificidade cultural como o principal aspecto de diferentes

práticas.

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Nesta perspectiva dialética (que discute a mística no

campo da performance), situa-se a proposta deste estudo,

vislumbrando a possibilidade de investigar a ação, a

representação e a identificação da arte no contexto das

matrizes culturais do campo, enfatizando, especificamente, as

práticas performativas do Movimento dos Trabalhadores Sem

Terra – MST, reunidas na construção da mística.

Cotidiano e arte

Se as matrizes culturais proporcionam qualquer

reflexão sobre o cotidiano (representado pela mística), este

deve ser entendido como algo que vai além daquilo que se

repete todos os dias, dos costumes mais estáveis, rotineiros.

Quando a comunidade reflete o cotidiano, está exercitando a

prática do rompimento, ressignificando a certos padrões ou a

certas tradições presentes naquele chamado modo cotidiano

de vida. Os artistas da comunidade (através do teatro, do canto,

da dança, do artesanato, da religiosidade, etc), ampliam essa

reflexão, pois estão lidando diretamente com esse cotidiano.

Por isso, as matrizes produzem significados, valores,

comportamentos, idéias, com uma dimensão diferente

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daquelas usualmente incluídas no conceito antropológico de

cultura.

Quando os agricultores, militantes e simpatizantes do

MST estão reunidos em assembléia, encontros de formação e

outros eventos dessa natureza, a jornada só começa após a

celebração da mística. Um grupo é designado,

antecipadamente, para a preparação do momento, utilizando

elementos ilustradores, conforme a temática do dia, tais como:

1) textuais: textos selecionados, poemas, músicas, palavras de

ordem, etc.; 2) elaboração do texto não-verbal como

componente de determinada expressão plástica - simbologia

da realidade: sementes, instrumentos de trabalho, raízes,

galhos...; 3) elementos teatrais: indumentárias, interpretação,

coreografia, entre outros.

A performance 2 dos militantes ao representar as

situações sociais assemelha-se ao teatro popular comunitário

com ênfase na dinâmica do improviso, embora não se

configure como tal. Afinal, os Sem Terra não são artistas, mas

atores de um processo em construção. A celebração da mística

lembra aspectos da proposta dramatúrgica de Boal (teatro do

oprimido); Brecht (teatro pedagógico, dialético, político);

2 A arte da performance propõe uma experiência estética que coloca em jogo a linguagem corporal na construção de uma obra efêmera, cuja existência se inscreve no tempo e no espaço da atuação (MENDES, A performance como dispositivo relacional. Memorial ABRACE X. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006, p. 51.

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Grotowiski (teatro pobre), quando disseca a realidade e forja a

sua reflexão. Curiosamente, ao mesmo tempo, nada disso é

teatro. Mas se permite - contra a vontade dos atores principais:

os Sem Terra. É sabido que eles não estão ali para um

espetáculo, embora aquela espontaneidade, repleta de

simbologia, ternura e fervor revolucionário, pode ser

considerada um verdadeiro espetáculo: que instiga, faz pensar,

(re)anima, refaz, (re)significa.

A mística aparece, toma corpo e os espectadores ficam

atentos à consagração da memória coletiva, centrada na

história de lutas; à possibilidade (e viabilidade) de construção

de uma nova sociedade, vivenciada, ali, com profundo respeito,

disciplina, harmonia e emoção à flor da consciência de uma

classe estereotipada pelos meios de comunicação de massa e

pouco conhecida em sua essência. A mística ajuda a

essencializar a existência e a cultura da existência.

Os não-atores do não-teatro

No entanto, para realizar qualquer investigação

oriunda do campo discursivo ideológico dos movimentos

sociais, é imprescindível tocar no tecido textual produzido

pela mística; na dinâmica performática que nasce e toma

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corpo; na interpretação teatral – ali vivificada e naturalmente

personificada; na visível emoção que invade o público – que

não aplaude, mas internaliza; na teimosa atitude de não se

reconhecer como teatro – e não é teatro, mas a celebração da

memória realizada pelos não-atores. Porém, na cristalização

do momento são, além de militantes, atores, intérpretes, e ali,

naquele palco da vida, há uma cena teatral realizada,

materializada e condensada.

A mística é a mão que consegue tocar no tecido social;

é o olho que enxerga o passado, critica o presente e motiva a

construção do futuro; só a mística abre as asas sobre a

comunidade, amplia o sentido de cotidiano, forja um novo

modo de viver e sentir o campo. Ao mesmo tempo, é altiva,

soberana, forte, presença viva da organização, do coletivo. É a

performance do punho esquerdo erguido que insiste, através

da palavra e do gesto. É a inserção do rompimento, da

insatisfação social, da luta e da resistência. É uma poesia que

vai até o povo como um sopro suave e profundo aberto ao

coração duro do mundo. E não é teatro, mas sugere, uma vez

que a mística tem a função de transformar e educar: é um

convite à reflexão. Neste caso, podemos considerar arte e

cotidiano como um exercício dialético nem sempre possível,

afinal estamos diante de dois elementos inseparáveis, um não

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sobrevive sem o outro. Para Lukács (1974) “[...] a arte é uma

atividade que parte da vida cotidiana para, em seguida, a ela

retornar, produzindo nesse movimento reiterativo uma

elevação na consciência sensível dos homens” (p. 11).

A palavra tem força. A arquitetura da palavra é o

elemento motivador/catalisador e quando interpretada

artisticamente, é mais do que palavra, é atitude. Através da

estética da representação, a palavra sai de seu lugar comum,

volta-se ao contexto histórico da realidade (neste caso a

gênese do MST), propõe a ruptura da rotina, da ingenuidade,

da acomodação.

A dimensão da palavra, segundo Bakhtin (2004, p. 37),

implica a ideologia e por isso “pode preencher qualquer

espécie de função ideológica: estética, científica, moral,

religiosa”. Contudo a compreensão da palavra exige que se vá

além do seu conteúdo ideológico, ou seja, que se alcancem as

refrações do “discurso de outrem” que a palavra realiza no

universo simbólico em sua condição de expressão da

consciência individual. Portanto, ideologia, discurso de outrem

e consciência individual devem ser vistos como elementos

implicados da palavra, elementos que preenchem qualquer

palavra e que, em si e no conjunto, são capazes de tornar

compreensíveis as palavras em seu significado e em sua

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significação enquanto sentido proposto, considerando-se

ainda a importante questão do lugar de fala e dos discursos

exteriores, dos signos sociais que vão determinar e modelar a

consciência individual.

Nesse sentido, a mística aparece como um processo

artístico/provocador através da palavra. Acredita Brecht que

tudo o que é considerado habitual deve provocar inquietação.

É preciso, segundo Brecht, que “na regra, descubram o abuso. E

sempre que o abuso for encontrado, encontrem o remédio” (s/d).

Portanto, a mística tem a função de celebrar a memória

coletiva, reavivando-se através da performance, o sentido de

pertença, de cotidiano e arte, elementos que se alimentam na

inquietude.

Na compreensão de Lukesi apud Frederico (2000), as

objetivações do ser social que elevam o homem acima da

cotidianidade nascem para responder às necessidades vitais

postas pela vida e, por isso mesmo, retornam ao cotidiano

para enriquecê-lo. A vida cotidiana é a fonte e a

desembocadura de todas as atividades espirituais do homem.

Outrossim, a cultura popular apresenta, na sua perspectiva:

[...] um caráter libertador, porque pressupõe a libertação do ser humano, como sujeito, da adaptação, da alienação em relação ao conhecimento e a história, sedo capaz de problematizar e teorizar

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sobre a realidade social vivida e de posicionar-se criticamente perante as contradições de classe social, integrando-se á sociedade (OLIVEIRA, 2003, p. 28).

De acordo com Caldart (2000), não se deve buscar uma

reflexão estritamente antropológica, que considera a cultura

de modo mais amplo, incluindo quase todas as práticas,

objetos, comportamentos, significados, valores, que ao mesmo

tempo expressam e condicionam um modo cotidiano de vida.

Acredita a autora ser possível manter a cultura como uma

dimensão do processo histórico, acrescida de um sentido

político específico, que é o de uma cultura social, produzida na

dinâmica de um movimento ou de uma luta social. Assim, essa

cultura diz respeito bem mais ao extraordinário do que ao

cotidiano.

Para Carlos Brandão (2002), o homem - sujeito que

produz a cultura - define-se mais por significá-la como um ato

consciente de afirmação de si mesmo, senhor do seu trabalho e

do mundo que transforma, do que por simplesmente fazê-la de

modo material. Antes de ser machado o objeto é seu símbolo,

logo, a relação simbólica entre ele e o homem, entre o homem

e seus símbolos. “É isto o que toma o homem um "ser

histórico", um ser que não está na história, mas que a constrói

como produto de um trabalho e dos - significados que atribui

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ao fazê-lo: ao mundo, à sua ação e a si mesmo, visto no espelho

de sua prática” (p. 39).

A mística contribui com o sentido de identidade

política e cultural defendida pelo MST ao longo de sua história.

Contribui ainda para a quebra de paradigmas em torno dos

movimentos que pensam e vivem a arte como a celebração da

vida - expressa nas tessituras da palavra.

É importante lançar um novo olhar sobre as matrizes

culturais do campo e, mais especificamente, sobre a cultura da

mística desenvolvida pelo MST, algo que está muito além da

apresentação ou de mais uma experiência apreciada pelos

intelectuais de plantão. Um estudo que é importante, não

apenas para os movimentos populares, mas para os

agricultores e as famílias do campo. Mas não só. Por outro lado,

este trabalho interessa na medida em que realize um intento

cultural na educação popular: dialogue com a arte e reafirme

sua condição de poder se transformar em ferramenta

educativa capaz de ampliar uma relação direta com as

populações e cativá-las.

O campo está vivo, em movimento. Portanto, estamos,

como educadores, atentos ao movimento da realidade, à práxis,

à experiência vivida, às ações e aos gestos; pois acreditamos

que não podemos separar tempo de cultura e tempo de

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conhecimento, nem separar a arte da vida, pois, assim como

Artaud, também protestamos contra a idéia separada que se

faz da cultura, “como se de um lado estivesse a cultura e, de

outro, a vida; e como se a verdadeira cultura não fosse um

meio apurado de compreender e de exercer a vida” (ARTAUD,

1981, p. 18).

Origem da mística

O despertar e reavivamento da consciência social e

política dos agricultores, motivado pelo teatro comunitário,

educação popular, e especificamente na mística, têm origem

no milenarismo camponês. De acordo com Sampaio (2002),

em todo o mundo o camponês é a pessoa que aspira e acredita

na possibilidade de um mundo justo e em harmonia com a

natureza. Em nome dessa utopia, as massas rurais têm se

levantado, através dos tempos, em oposição ao status quo,

sempre injusto, cruel e desequilibrado. Sobre o milenarismo

camponês, Eric Hobsbawm traçou as características desses

movimentos, desde os taboritas e anabatistas do século XV, os

levantes dos camponeses ingleses, andaluzes e sicilianos do

século XIX, até as revoluções socialistas modernas do México,

Rússia, China, Cuba, Vietnã. Em todas elas nota-se o

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inconformismo do homem do campo com o advento de um

mundo que ele não compreende e que destrói seu modo de

vida. Em todas essas manifestações resplandece a fé nas

grandes transformações, no homem novo, no mundo regido

pela consciência social.

Na compreensão de Bogo (2002, p. 137), trata-se de

uma mistura de realidade com a intuição, de um futuro que

almeja vir a ser. “Artistas são aqueles que sempre estão à

frente na interpretação e aceitação dos desafios que,

enfrentados, movem a história”.

A arte, segundo esse autor, cumpre o papel de ajudar a

interpretar a realidade e ao mesmo tempo em que “destampa”

o que está escondido em suas dobras, admite as

impossibilidades de realização imediata, mas alimenta a

utopia desta realização futura.

Para Arroyo (1999, p. 38), é possível identificar as

matrizes culturais, enfatizando a relação da criança, do homem

e da mulher com a terra, com os estreitos vínculos existenciais

e culturais. Outra forte matriz cultural no campo é a

celebração e a transmissão da memória coletiva por meio das

festas, nas quais são construídas a história da comunidade, as

origens são atualizadas e os traços identitários solidificados.

Assim, toda a comunidade participa ativamente dessa

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celebração-rememoração-comemoração da qual depende sua

filiação à identidade coletiva do grupo.

De acordo com Gramsci (1968), ao lado da cultura

erudita, transmitida e sancionada pelas instituições, existe a

cultura criada pelo povo, que articula uma concepção do

mundo e da vida, em contraposição aos esquemas oficiais. A

esse respeito, Brandão (2003) esclarece que o relativismo

deve ser empregado para lembrar que cada fração cultural de

qualquer expressão da vida cotidiana popular só faz sentido

pleno quando lida e compreendida de dentro para fora.

A improvisação empregada pelos artistas populares

nasce do cotidiano expresso nas matrizes culturais do campo,

tendo como foco central a cultura da oralidade, que se

relaciona de certo modo, com os antigos trovadores. Desse

modo, a criatividade sempre caminhou ao lado da

espontaneidade.

Mística e religiosidade

A relação da mística com a religiosidade (tempo-

cosmológico do sujeito rural) e o sentimento conjuntural de

aglomeração (tempo-cronológico do sujeito urbano)

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fundamentava as conversas noturnas, principalmente entre os

homens, inspiradores e criadores das primeiras serenatas.

Para Sampaio (2002) essa cultura expressa a luta de uma

população desde sempre oprimida por um cotidiano vivido no

limite da sobrevivência física; humilhado pela prepotência da

classe social que a explora; aviltando por um trabalho que se

transformou em jugo. O fantástico, segundo ele, é que, apesar

dessa condição de vida, o camponês brasileiro tenha sido

capaz de produzir beleza, solidariedade, ternura, alegria.

Diante de tais aspectos, é fundamental termos em

mente a dinâmica social e educativa do campo, reativando as

matrizes culturais que muitas vezes “estão adormecidas

dentro de cada indivíduo por terem sido consideradas

primárias ou inferiores, pois pertencem às chamadas culturas

populares” (LIGIÉRO, 1976, p. 33).

A presença religiosa na comunidade amplia o diálogo

com a cultura local. Mesmo focalizando o elemento doutrinário,

como parte da formação, a Igreja torna-se um dos palcos dessa

cultura. Assim, tal como os prosadores populares, marcados

pelo improviso, os elementos sentimentais (amor, dor,

separação, saudade...), aparecem, aliados ao pensamento

místico/religioso, no trabalho comunitário dos diversos

grupos: o reisado, a roda de samba, a capoeira, as festas

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juninas e natalinas, entre outros. Atrás dessas manifestações,

aparece uma explicação para o sentido da existência, ou seja,

Deus é o Pai-Criador, atento a toda e qualquer forma de

exploração e injustiça. Essa característica religiosa,

representada pela arte e largamente desenvolvida pelos

movimentos populares, nasceu da tradição oral do

trovadorismo. No entanto, o elemento político-social torna-se

um aliado e foi incorporado e motivado pela Teologia da

Libertação, sobretudo na década de 60. Nesse contexto, as

Comunidades Eclesiais de Base encontram eco nos

movimentos sociais, inclusive o MST.

Nas celebrações religiosas, a comunidade se expressa

através da mística, numa liturgia, ou seja, numa linguagem de

símbolos que une a palavra ao gesto. Cada liturgia é uma

estética que traduz a visão transfigurada do mundo, ou como

prefere Sampaio (2002), “resgate de um drama que conhecerá

um fim bom”. Nessa perspectiva, a Igreja comprometida é

aquela que está preocupada com os problemas sociais e com

soluções coletivas, aos olhos de um Jesus Cristo presente,

sobretudo, no plano terrestre, atento às explorações e

convidando o povo à reação: a luta em defesa de uma

sociedade mais justa, fraterna e humana. Nas manifestações

culturais de cunho religioso, sobretudo através do teatro

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comunitário, todos esses valores são coroados pela utopia: um

viver como se estivéssemos sempre nos preparando para um

grande encontro.

Para Bakhtin (2004, p. 33), “cada campo de

criatividade ideológica tem seu próprio modo de orientação

para a realidade e retrata a realidade à sua própria maneira.

Cada campo dispõe de sua própria função no conjunto da vida

social”.

Conclusão

O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra sempre foi

criticado por diversos setores da sociedade por conta de

possíveis fatores: porque forjam sua presença na política de

Reforma Agrária; porque buscam a qualidade de vida no

campo; porque desenvolvem um programa de ocupação de

terras improdutivas através da luta e da persistência; porque

não adotam uma postura convencional de aceitação da

realidade; porque defendem o socialismo; porque lembram os

ideais revolucionários de líderes carismáticos; porque não são

“bem vestidos”; porque estudam Marx; porque ganham a

simpatia de intelectuais...

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Ao mesmo tempo, são trabalhadores que realizam algo mais

profundo do que a posse da terra. A luta maior se dá pela

permanência na terra, pela busca de qualidade de vida no

assentamento, pelo projeto de educação popular, pela

formação política, pelo fortalecimento da agricultura familiar e

pela capacitação técnico-científica. Na dinâmica do seu

cotidiano os Sem Terra celebram a memória. A mística é um

elemento indispensável nessa celebração.

O estudo da mística é pertinente para o campo das

artes cênicas (terreno que o MST ainda não ocupou), porque

amplia as possibilidades do teatro e suas nuances,

possibilitando um diálogo com elementos aparentemente

distantes, mas intimamente relacionados, fortemente

enraizados nas matrizes culturais do campo, nos movimentos

sociais e na leitura de performance – celebrada pela mística.

Além disso, estará contribuindo com o sentido mesmo de

identidade cultural defendida pelo MST ao longo de sua

história. Contribui ainda para a quebra de paradigmas em

torno dos movimentos sociais, que pensam e vivem a arte – e

por que não dizer o teatro – como a celebração da vida.

BIBLIOGRAFIA

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Ano 10 | outubro de 2010 | ISSN 16790995

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