18
- -. --- .-..-- - -- I I I ", J

A Rede de Vogel- Armadilhas Como Obras de Arte

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A Rede de Vogel- Armadilhas Como Obras de Arte

-

---shy --shy - - -

I

I I

J

A rede de Vogel armad ilhas como obras de art e e obras de arte como armadilhas

Alfred Gell

o artigo discute as distinccedilotildees mais comuns entre obras de arte e meros artefatos que satildeo uacuteteis mas natildeo satildeo belos ou esteticamente interessantes

Se como o filoacutesofo Arthur Danto afirma um objeto artiacutestico eacute identificado como tol em funccedilatildeo do modo como eacute interpretado entatildeo muitos artefatos poderiam ser

exibidos como objetos artiacutesticos Seu objetivo eacute demonstrar como as armadilhas para capturar animais poderiam perfeitamente ser exibidas como objetos

artiacutesticos porque contecircm ideacuteias e intenccedilotildees complexas a respeito da relaccedilatildeo entre homens e animais aleacutem de fornecer um modelo do caccedilador e de como ele

concebe sua presa Conclui portanto que a definiccedilatildeo esteacutetica de um objeto artiacutestico eacute insatisfatoacuteria

Ateacute agora grande parte dos debates no campo da filosofia da arte especialmente no que diz respeito agraves artes visuais dedica-se ao problema da definiccedilatildeo de obra de arte Como determinar quando um objeto fabricado eacute uma obra de arte ou algo menos nobre um artefato Existem (pelo menos) trecircs teorias que tentam responder a essa questatildeo De acordo com a primeira uma obra de arte pode ser definida como qualquer objeto esteticamente superior desde que possua determinadas qualidades como apelo visual e beleza Essas qualidades devem ter sido intencionalmente atribuiacutedas ao objeto pelo artista pois os artistas seriam dotados da capacidade de resposta esteacutetica Natildeo pretendo discutir especificamente essa teoria embora ela ainda seja aceita pelo puacuteblico em geral que continua a pensar que qualidades como apelo visual e beleza podem ser reconhecidas automaticamente nos objetos

A segunda teoria sustenta que as obras de arte natildeo satildeo identificadas por suas qualidades externas como a definiccedilatildeo esteacutetica propotildee Um objeto pode natildeo ser belo ou mesmo interessante de se ver mas seraacute considerado obra de arte se for interpretado a partir de um sistema de ideacuteias fundamentadas em uma tradiccedilatildeo

Arte primitivo arte contemporoacuteneo ort erotos

artiacutestica historicamente estabelecida Eacute a chamada teoria interpretativa cujo grande meacuterito criacutetico em relaccedilatildeo agrave teoria esteacutetica eacute estar muito mais afinada com o mundo artiacutestico contemporacircneo Nesse contexto a elaboraccedilatildeo de pinturas e esculturas belas deu lugar agrave chamada arte conceitual como eacute o caso por exemplo de montagens como a realizada por Damien Hirst na qual um tubaratildeo morto eacute exibido em um tanque de formol (figura a ser comentada posteriormente) Mesmo natildeo sendo um objeto atraente ou especialmente elaborado o tubaratildeo de Hirst eacute um gesto altamente inteligiacutevel nos termos do fazer artiacutestico contemporacircneo e natildeo pode ser tomado como um truque publicitaacuterio ou um sintoma de insanidade Inserida na tradiccedilatildeo artiacutestica conceitual poacutes-Duchamp a qualidade dessa obra deve ser avaliada em termos artiacutesticos pois seja ela considerada boa ruim ou regular trata-se inegavelmente de um tipo de arte Os defensores da teoria esteacutetica tecircm no miacutenimo dificuldade para aceitar esse tipo de obra e estatildeo inclinados a recusaacute-Ia categoricamente como arte mas ao fazer isso correm o risco de ser acusados de reacionaacuterios por criacuteticos e artistas que como eu disco rdam dessa visatildeo

TR ADUCcedilAO ALFRED GELL 175

ae R E Vi H A DO PROGRAMA DE POS-G R ADUACcedilAo EM ARTES VISUAIS EBA bull UFRJ 200 1

Finalmente existe uma versatildeo mais radical da teoria interpretativa que fornece uma terceira possiacutevel resposta para a pergunta o que eacute uma obra de arte) Conhecida como teo ria in stitucional afirma como a interpretativa que natildeo haacute no objeto artiacutesti co enquanto veiacuteculo materi al um a caracteriacutestica capaz de qualifi caacute-lo definitivamente como sendo ou natildeo uma obra de arte Isso eacute vaacutelido a despeito do fato de o objeto estar ou natildeo subordi nado ao mundo artiacutest ico ou seja a uma coletividade interessada em fazer part il har e debater Julgamentos criacuteticos desse tipo

A diferenccedila entre as teorias interpretativa e in st ituci o nal eacute que a institucio nal natildeo press upotildee a coerecircncia histoacuteri ca das inte l pretaccedilotildees Uma obra pode estar a pl-inciacutepio fora do circuito oficial da hi st oacuteria da arte mas se o mundo artiacutestico coopt a essa obra e a faz circular como arte entatildeo ela eacute arte porque satildeo os representantes do mundo artiacutestico ou seja artistas criacuteticos comerciantes e colecionadores que tecircm o poder de decidir essas questotildees natildeo a histoacuteria ponto de vista proposto pelo filoacutesofo americano George Dickie 1 Essa teoria aparentemente natildeo tem o apoio da maior parte dos fil oacutesofos contemporacircneos a Dickie talvez por ser mais soc io loacutegica do que efetivamente fil osoacutefi ca - uma teoria sobre o que (de fato) eacute co nsiderado arte e natildeo sobre o que (racio nalmente ) deve ria ser considerado como tal Todavia o que to rna a teo ria de Dickie questio naacutevel do ponto de vista da esteacutetica t rad iciona l eacute precisamente o que a torna at raente para os antropoacutelogos jaacute que ele ultrapassa a esteacutetica em nome de uma anaacutelise socioloacutegica que caracteriza em sentido amplo essa disciplina2 Contudo a re levacircncia da teo ria institucio nal para o estudo socio loacutegico do mundo artiacutestico deve ser avaliada independentemente de sua contribuiccedilatildeo para a esteacutetica fil osoacutefica

As questotildees levantadas po r essas teorias foram colocadas em evidecircncia pela exposiccedilatildeo intitulada Artel Artefato mo ntada no Center for African Art (Nova York 1988) sob a curado ria da antropoacuteloga Susan

176

Vogel Natildeo vi essa exposiccedilatildeo que foi poreacutem detalhadamente descrita por Farisl em Current Anthropology acrescentando tambeacutem alguns comentaacuterios criacutet icos que pretendo retomar ad iante O primeiro espaccedilo da exposiccedilatildeo (com paredes brancas e I-efletores) foi intitulado Galeria de Arte Contemporacircnea e seu foco principal era um objeto impressionante uma rede de caccedila Zande (Aacutefrica) firmeme nte enrolada e pronta para o t ranspo rte Provavelmente Susan Voge l exibiu-a dessa manei ra porque pensou que o puacuteblico fre quumlentador de galerias de arte em Nova York seria capaz de associar de maneira espontacircnea aquele artefato com um certo conjunto de objetos exibidos em outras ga lerias ou apresentados em publi caccedilotildees especializadas Nesse caso especiacutefico a anal ogia mais imediata seria com as escu lturas de barbante amarrado de Jackie Windso r Faris4

menciona as obras de Nancy Graves e Eve Hesse como outros parale los possiacuteveis A escolha desse objeto especiacutefico foi um golpe de mestre em termos de curadoria pelo qual Voge l merece muitos e logios Aleacutem do mais a exposiccedilatildeo gerou um e nsaio igualmente magistral do criacutetico e fil oacutesofo Arthur Dant O5 publicado no cataacutelogo

A intenccedilatildeo de Voge l era quebrar o elo entre a arte africana e o primitivismo da arte moderna (Les Demoiselles dAvignon de Picasso as pseudo maacutescaras africanas de Modigliani e Brancusi etc) e sugerir diferentemente que os objetos africanos podem ser analisados em uma perspectiva mais ampla evocando o esti lo artiacutestico dominante na deacutecada de 1980 em Nova York do qual Jackie W indsor eacute um dos representantes Danto teve razotildees para resistir a essa mudanccedila visto que natildeo estava persuadido de que a rede de caccedila fo sse o u pudesse vi r a ser arte Em termos institucionais a armad ilha apresentada jaacute havia de fato se tornado arte dado ter sido como tal exibida po r Vogel e conseq uumlentemente assim apreciada por parte significativa do puacuteblico Caso Dickie e natildeo Danto t ivesse escrito o ensaio do cataacutelogo eu me arriscaria a dizer que a rede teria sido celebrada co mo um bom

exemplo do modo pelo qual o mundo artiacutestico cria suas obras de arte ao classificaacute-Ias como ta l Danto poreacutem seguiu outra direccedilatildeo e dedicou seu ensaio a provar que as afinidades da rede com o conceito contemporacircneo de arte seriam meramente superficiais

Meu objetivo neste artigo eacute duplo Em primeiro lugar discutir a distinccedilatildeo proposta por Danto entre arte e artefato Em segundo lugal~ pretendo montar uma pequena exposiccedilatildeo (infelizmente composta apenas por textos e ilustraccedilotildees) de objetos que Danto consideraria artefatos mas que em minha opiniatildeo satildeo fortes candidatos a circular como obras de arte mesmo que essa natildeo tenha sido a intenccedilatildeo original de seus criadores que provavelmente desconheciam esse conceito Se eu conseguir persuadir meu puacuteblico e se a teoria institucional for verdadeira ou seja se arte for tudo aquilo que natildeo apenas eu mas outras pessoas que pensam do mesmo modo classificamos como tal entatildeo uma nova categoria de arte estaacute prestes a surgir Ou natildeo se considerarmos como paracircmetro os argumentos de Danto que retomarei agora

Danto eacute responsaacutevel por ambas as teorias da arte a interpretativa e a institucional e foi ele quem primeiro introduziu a expressatildeo mundo artiacutestico na esteacutetica filosoacutefica 6 Mas uma vez que Dickie7

desenvolveu as ideacuteias de Danto na direccedilatildeo socioloacutegica jaacute apontada a definiccedilatildeo de obra de arte tornou-se um problema de consenso social em meio ao puacuteblico de arte Danto poreacutem tende para uma visatildeo mais idealista a respeito da arte fazendo mesmo muitas referecircncias a Hegel em seus trabalhos Ele afirma que objetos de arte satildeo assim considerados em funccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo historicamente fundamentada Danto escreveu dois importantes estudos que foram muito bem aceitos no campo da

bull

filosofia da arte modernaB Concordo com a maior parte de sua produccedilatildeo mas devo dizer que os pontos mais fracos de sua versatildeo da teoria interpretativa ficam especia lmente evidentes quando colocados em um contexto antropol oacutegico e intercultural em seu ensaio para a exposiccedilatildeo ArteArtefato

De acordo com Danto natildeo existem caracteriacutesticas intriacutensecas a qualquer objeto que possam por si soacute caracterizaacute-lo como artiacutestico A diferenccedila objetiva entre uma embalagem real de sabatildeo Brillo e a falsa embalagem Briflo de Warhol natildeo eacute o que determina que apenas a uacutelti ma seja uma obra de arte Mesmo objetos semelhantes podem ser diferenciados de modo que um seja considerado obra de arte e o outro natildeo Isso foi exaustivamente discutido por Danto9 que entretanto estabelece uma grande diferenccedila entre o tipo de interpretaccedilatildeo contexto significaccedilatildeo simboacutelica etc que um objeto deve ter para que seja uma obra de arte em comparaccedilatildeo com as caracteriacutesticas associadas a uma obra que natildeo eacute artiacutestica ou seja um mero artefato A interpretaccedilatildeo deve estar relacionada com uma tradiccedilatildeo de fazer artiacutestico que internaliza reflete e se desenvolve a partir de sua proacutepria histoacuteria como a arte ocidental tem feito desde Vasari pelo menos Segundo ele (e estou totalmente convencido disso) a moderna arte conceitual corresponde agrave subordinaccedilatildeo da fabricaccedilatildeo da imagem agrave reflexatildeo histoacuterica em outras palavras eacute a

T R A D U ccedil Acirc o bull A L F R E D G E L L J77

ae REVISTA DO PROGRAMA DE POS-GRADUACcedilA O EM ARTES VISUAIS EBA bull UFRJmiddot 2001

resultante final do fazer artiacutest ico da fdosofia da histoacute ria e da criacutetica de arte tomados conjuntamente Todavia o conceito-chave aqui eacute o de tradiccedilatildeo progressiva cumulativa (Geist esp iacuterito etc)

O que Danto faz quando o puacuteblico de Nova York se entusiasma com uma rede de caccedila como se ela fosse a mais recente produccedilatildeo do Geist na pessoa de Jackie Windsor ou de seu grupo A arte contemporacircnea eacute capaz de digerir desse modo objetos externos A ausecircncia de um autor identificaacutevel o u de uma intenccedilatildeo artiacutestica reconheciacutevel eacute um obstaacutecu lo Danto natildeo pode deixar de assumir uma posiccedilatildeo criacutetica em relaccedilatildeo a isso Jaacute que intenccedilatildeo signi fi cado e fundamentaccedilatildeo em uma tradiccedilatildeo diferenciada e auto-refexiva satildeo fundamentais para sua compreensatildeo da arte contemporacircnea e mesmo de toda arte ocidental posterior ao Renascimento O caccedilador Zande que fez ou encomendou a rede natildeo participa do mesmo quadro histoacuterico de referecircncia para o qual o trabalho semelhante de Windsor estaacute apontando de modo que a analogia entre eles eacute enganosa Nem mesmo eacute possiacutevel co nsiderar alternativamente que o artista nesse caso eacute Vogel (Danto sequer considera essa possibilidade) que estaacute apresentando a rede como um reody-mode de acordo com a mesma tradiccedilatildeo dos protoacutetipos de Duchamp como a paacute o cabide e o urinol Mesmo porque Vogel natildeo estaacute se apresentando como um segundo Duchamp mas como uma curadora de museu que oferece para admiraccedilatildeo do puacuteblico um objeto feito na Aacutefrica por um artista anocircnimo que natildeo eacute certamente ela proacutepria

O dilema de Danto diz respeito essencialmente ao fato de que sua teoria interpretativa da arte eacute construiacuteda a partir do referencial hist oacuterico impliacutecito na arte ocidental segundo um modelo hege liano Caso ele diga que nenhuma produccedilatildeo externa ao fluxo histoacuterico da arte ocidental (que eacute sem duacutevida muito amplo) pode ser considerada co mo arte estaacute sujeito a acusaccedilotildees de eurocentrismo Caso ele admita poreacutem que objetos exoacuteticos que natildeo participaram do Geist da arte oc idental

178

podem se r mesmo assim obras de arte por que excluir a rede E caso a rede seja inc lu iacuteda o que sobra do valor explicativo da interpretaccedilatildeo historicamente fundamentada e da distinccedilatildeo entre arte e artefato) O filoacutesofo foi efetivamente enlaccedilado pela rede de Vogel que assim termino u por cumprir sua funccedilatildeo embora natildeo do modo convencional

Soacute existe uma saiacuteda para o idealista nessas circ unstacircncias e le deve assumir que existem afinidades interpretativas o u simboacutelicas subjacentes agraves verdadeiras obras de arte produzidas em diferentes tradiccedilotildees culturais A rede Zande seraacute excluiacuteda nos termos Zande porque nessa cultura como possivelmente em todas as outras os objetos artiacutesticos devem ter um tipo de significaccedilatildeo simboacutelica que uma mera rede de caccedila natildeo pode ter Sendo (supostamente) excluiacuteda pelos proacuteprios Zande a rede natildeo poderia ser incluiacuteda pelos nova-iorquinos porque isso significaria contradizer os princiacutep ios de Danto de que sem interpretaccedilatildeo natildeo haacute arte Depois de concordar com a ideacuteia de que nem toda embalagem de sabatildeo Brillo mas apenas a que foi criada por Warhol eacute arte Danto natildeo pode deixar de dizer que essa rede nos termos Zande natildeo equivale a uma obra de Warho l pois eacute apenas uma velha rede como outra qualquer

Mas como estabelecer paracircmetros para a afinidade entre obras de arte africanas (devidamente qua lifi cadas) e obras de arte ocidentais e para a natildeo-afinidade entre a rede Zande e ambas as artes Danto argumenta que a grande escultura africana foi reconhecida como tal e colocada no mesmo niacutevel de ponatello Thorwa ldsen etc por meio de um processo de descoberta empreendido por Pi casso Brancusi Roger Fry e seus contemporacircneos comparaacutevel agraves descobertas cientiacuteficas Essa grandeza jaacute estaria laacute mas teria sido ofuscada por juiacutezos preconceituosos associados ao colonialismo Esse tipo de arte africana foi produzido individualmente por escultores altamente talentosos com intenccedilotildees artiacutesticas (esteacuteticas) especiacuteficas que eles imprimiram em seus trabalhos Soacute posteriormente essas

obras se tornaram acessiacuteveis ao puacuteblico natildeo africano graccedilas aos esforccedilos de alguns simpatizantes ocidentais Entretanto essa abordagem a respeito da incorporaccedilatildeo da arte africana nos moldes de Danto traz consigo um certo risco de esteticismo shymas natildeo eacute justamente Danto quem nos diz que o que faz da arte arte natildeo satildeo apenas as caracteriacutesticas exteriores (esteacuteticas) que ela possa ter Sendo assim Danto eacute obrigado a mudar sua taacutetica e considerar a possibilidade de existecircncia de uma arte africana que natildeo seria obviamente diferente sob qualquer aspecto externo ou visiacutevel da natildeo-arte africana uma afirmaccedilatildeo que natildeo seria aplicaacutevel aos exemplos famosos da arte escultoacuterica cuja qualificaccedilatildeo enquanto arte nunca foi colocada em duacutevida pelo menos por Danto

Danto eacute um filoacutesofo e sendo assim natildeo escolheu o caminho mais oacutebvio que consistiria em retomar tudo que jaacute foi escrito sobre cultura material africana Ao contraacuterio tentou obedecer a seu imperativo disciplinar entregando-se a um Gedonkexperiment no qual ele parece ser particularmente habilidoso Danto imagina a existecircncia de duas tribos africanas proacuteximas mas historicamente diferenciadas que ele denomina Pot People (povo ceramista) e Bosket Folk (povo cesteiro) Aparentemente a produccedilatildeo material dessas duas tribos que inclui potes e cestos eacute quase idecircntica mas o povo ceramista venera seus oleiros que satildeo tidos como sacerdotes e saacutebios e considera a olaria uma atividade sagrada que evoca a cosmogecircnese jaacute que Deus foi um oleiro que moldou o mundo a partir do barro Esse povo tambeacutem faz cestos para fins utilitaacuterios mas essa natildeo eacute uma atividade considerada nobre Do o utro lado da montanha em meio ao povo cesteiro as coisas satildeo diferentes jaacute que Deus era um cesteiro e fez o mundo a partir de fibras vegetais e os potes de ceracircmica produzidos satildeo considerados meramente utilitaacuterios Nessa tribo os sacerdotes satildeo os cesteiros e os oleiros satildeo apenas especialistas

teacutecnicos artesatildeos

Danto sustenta que mesmo que soacute um exame minucioso permita aos museoacutelogos

distinguir os potes e os cestos produzidos em ambas as tribos a diferenccedila espiritual envolvida na elaboraccedilatildeo dos potes sagrados entre o povo ceramista eacute suficiente para garantir-lhes o status de obra de arte em oposiccedilatildeo aos potes utilitaacuterios do povo cesteiro (e vice-versa em relaccedilatildeo aos cestos) Os potes do povo ceramista e os cestos do povo cesteiro estatildeo ambos na prestigiada coleccedilatildeo que estaacute no Kunsthistorisches Museum Jaacute os cestos do povo ceramista e os potes do povo cesteiro pertencem a uma coleccedilatildeo um pouco diferente que estaacute no Naturhistorisches Museum As obras que pertencem ao Museu de Histoacuteria da Arte emanam do Espiacuterito Absoluto satildeo veiacuteculos de ideacuteias completas que se o riginam da condiccedilatildeo humana em toda sua densidade e fatalidade histoacuterica e consequumlentemente a iluminam Jaacute os objetos que estatildeo no Museu de Histoacuteria Natural satildeo meios para fins utilitaacuterios instrumentos que ajudam os seres humanos em sua vida material - eles fazem parte da prosa do mundo segundo uma expressatildeo hegeliana

Danto em consequumlecircncia exclui a rede de caccedila mera manifestaccedilatildeo prosaica no sentido hegeliano e esboccedila de modo experimental uma distinccedilatildeo particularmente marcada entre objetos de arte e artefatos Entretanto como em todas as experiecircncias desse tipo eacute possiacutevel questionar se essa di stinccedilatildeo corresponde agrave realidade Creio que a antropologia deveria pronunciar-se a esse respeito jaacute que os experimentos de Danto evocam explicitamente a etnografia como protoacutetipo de suas ficccedilotildees expositivas Em seu comentaacuterio sob re a exposiccedilatildeo Faris afirma que o problema estaacute no fato de que a antropologia tende de modo geral a ser condescendente com experimentaccedilotildees teoacutericas como a de Danto Ele acusa enfaticamente o ensaio escrito por Danto de promover uma perspectiva orto doxa viciada tanto em relaccedilatildeo agrave histoacuteria da arte quanto em relaccedilatildeo agrave antropologia Modernistas como Danto estariam

paralisados pela aceitaccedilatildeo de todas as tiranias culturais e pela consequumlente cegueira em relaccedilatildeo agraves tiranias especiacuteficas [de modo que] eles incorrem com

T R A o U ccedil Aacute o bull A l f R E o G E l l I 79

ae REVISTA DO PROGRAMA DE P6S-GRADUACcedilAO EM ARTES VISUAIS EBA bull UFRJ 2001

frequumlecircncia no sentimento humanista mais banal e no entusiasmo inuacutetil em relaccedilatildeo ao poder emotivo e expressivo_o Eles o fazem em grande medida reconhecendo o empreendimento antropoloacutegico como por exemplo a ideacuteia de que os objetos africanos natildeo podem ser inteiramente compreendidos sem a referecircncia aos nativos africanos no contexto cultural especiacutefico que os produziu Danto tem que concordar que natildeo se deve atribuir ao contexto um valor axiomaacutetico - embora seja inegaacutevel sua relaccedilatildeo com o significado - particularmente quando tanto contexto quanto significado

foram indicados pela Antropologia 10

Faris argumenta ainda que de modo geral esse tipo de liberalismo recebe as produccedilotildees do Outro etnograacuteflco nos termos do Outro mas soacute na medida em que essa produccedilatildeo seja aceitaacutevel ou coerente com um dado conceito de Espiacuterito Absoluto

A etnografia imaginaacuteria de Danto a respeito da cosmogenia dos potes e dos cestos revela com precisatildeo o tipo de narrativa antropoloacutegica que ele considera conveniente e de fato tanto os antropoacutelogos quanto seus informantes nunca hesitaram em produzir relatos desse tipo O ponto foucaultiano de Farris diz respeito ao fato de que o empreendimento antropoloacutegico como um todo tende a buscar esse tipo de saacutebio ou especialista nativo ao qual Danto atribui o poder de distinguir entre arte e natildeo-arte Isso ocorre porque em uacuteltima instacircncia noacutes antropoacutelogos queremos tachar esses objetos e atribuir-lhes significados fixos e controlaacuteveis Concordo com Faris quanto ao fato de que os saacutebios (fictiacutecios) de Danto satildeo projeccedilotildees palpaacuteveis de autoridade e como tal merecem ser desmascarados Mas infelizmente ele acaba natildeo discutindo a distinccedilatildeo objeto de arte versus artefato exceto para indicar que essa oposiccedilatildeo estaacute sujeita a uma redeflniccedilatildeo contiacutenua II e que dificilmente pode ser separada de questotildees relativas agrave ideologia e ao poder

O proacuteprio Danto natildeo esgota o assunto quando diz que os saacutebios fornecem interpretaccedilotildees capazes de transformar as verdadeiras obras de arte em fragmentos do Espiacuterito Absoluto Na segunda parte de

180

seu ensaio ele divaga sobre a ideacuteia de que os artefatos satildeo incompletos enquanto as obras de arte encarnam ideacuteias autoshysuficientes e completas Citando Heldegger ele observa que um artefato eacute sempre parte de um Zeuggonzes - um sistema de ferramentas um sistema teacutecnico que forma uma totalidade Um martelo natildeo existe por si soacute implica os pregos a serem martelados as madeiras nas quais essa accedilatildeo seraacute executada as serras que daratildeo forma agrave madeira e assim por diante A rede (implicitamente) eacute apenas um componente do Zeuggonzes de caccedila Zande e natildeo tem significado em si mesma Mesmo quando satildeo bem elaborados objetos como uma rede um martelo um trinco de porta decorativo ou outro exemplo qualquer de arte aplicada satildeo incapazes de veicular o tipo de ideacuteia que distingue o objeto artiacutestico pois este sempre se reporta ao universal

seria equivocado afirmar tais coisas [que dizem respeito a verdades universais] a respeito de facas redes ou grampos de cabelo objetos cujo significado se esgota em

sua utilidade Afinal de contas a universalidade diz respeito antes de mais nada a pensamentos e proposiccedilotildees e ningueacutem suporia que objetos como os que acabei de citar expressem um conteuacutedo universal A realidade desses objetos esgotashyse em seu uso jaacute as obras de arte possuem um papel mais elevado colocando-nos em contato com realidades superiores elas satildeo definidas por meio da apreensatildeo de significado Elas devem ser explicadas pelo que expressam Diante de uma obra de arte estamos diante de algo que soacute por si mesmo eacute possiacutevel apreender do mesmo modo que soacute por intermeacutedio de accedilotildees corporais podemos

ter acesso agrave mente de outra pessoa 12

Mas ateacute mesmo Danto eacute forccedilado a fazer uma ressalva dado ser oacutebvio que a maior parte da produccedilatildeo pertencente agrave tradiccedilatildeo artiacutestica ocidental natildeo foi produzida para ser apreciada pelo puacuteblico mas para atender a propoacutesitos instrumentais As pinturas religiosas servem a funccedilotildees lituacutergicas (como peccedilas de altar objetos de devoccedilatildeo) retratos expressam semelhanccedila estaacutetuas dignificam espaccedilos puacuteblicos e soberanos e assim sucessivamente O mesmo eacute vaacutelido de modo ainda mais contundente para os

produtos africanos aos quais Danto atribui o estatuto de obras de arte Nenhum deles foi feito para ser admirado apenas como uma obra de arte independente Esses objetos em vez di sso fazem parte de cerimocircnias puacuteblicas que todavia natildeo podem ser expo rtadas como os objetos o satildeo Em suma natildeo apenas as redes mas tambeacutem objetos como as maacutescaras fazem parte do Zeuggonzes Danto lida com esse problema admitindo que

ateacute haacute pouco tempo [e mesmo agora provavelmente na Aacutefrica] as obras de arte usufruiacuteam de dupla identidade tanto como objetos de uso e praacutexis quanto como receptaacuteculos de espiacuterito e significado A arte africana uma vez exportada perde a primeira funccedilatildeo mas reteacutem a uacuteltima O objetivo natildeo eacute fazer do destacamento espacial um atributo para a definiccedilatildeo de arte porque isso desqualificaria como arte as obras das culturas primitivas Em suas proacuteprias sociedades essas obras tecircm um lugar mas que natildeo eacute o tipo de lugar que elas tecircm no Zeugganzes como ferramentas em um sistema teacutecnico O fundamental eacute que toda a vida praacutetica dessas sociedades poderia seguir adiante mesmo se natildeo houvesse nelas nenhuma obra de arte mesmo admitindo que as obras de arte fazem parte de rituais supostamente dotados de eficaacutecia praacutetica 13

Essa sem duacutevida eacute uma declaraccedilatildeo enigmaacutetica ateacute mesmo para um fil oacutesofo

_---- ----- - ---- - --- ---__-------shy

r---

Danto quer dizer que as obras de arte tecircm significados independentemente de seu uso praacutetico e agrave medida que satildeo artiacutesticos natildeo satildeo uacuteteis mas significativos Todavia esses mesmos objetos satildeo usados em rituais supostamente eficazes Poderiacuteamos subtrair hipoteticamente as obras de arte e a vida praacutet ica seria capaz de co ntinuar porq ue os mesmos o bjetos di sfarccedilados de ferramentas ou artefatos estariam laacute para preencher suas funccedilotildee s extra-artiacutesticas anteriores Esse raciociacutecio eacute ce r tamente casuiacutestico De que maneira as maacutescaras africanas podem participar de um contexto ritual como instrumentos eficazes sem que possuam qualquer significaccedilatildeo interpretativo-cultural o que segundo o proacute prio Danto jaacute seria condiccedilatildeo para qualificaacute-Ias como arte A separaccedilatildeo entre instrumentalidade e espiritualidade eacute portanto impraticaacutevel E se as obras de arte satildeo um tipo de instrumento (o que creio eu natildeo seria questionado pelos escultores africanos) por que natildeo considerar tambeacutem que os instrumentos podem ser um tipo de obra de arte

A partir daiacute podemos inferir que Danto exclui a rede como arte porque ele natildeo pode imaginar que um saacutebio nativo seja capaz de contar-lhe uma estoacuteria suficientemente convincente capaz de persuadi-lo do contraacuterio Ele faz essa suposiccedilatildeo porque uma rede eacute usada para caccedilar e para ele a caccedilada eacute apenas um meio para a obtenccedilatildeo de alimentos logo a rede natildeo passa de uma ferramenta como um ralador de queijo Esse raciociacutenio revela uma total falta de familiaridade com a etnografia africana na qual a maioria das caccediladas eacute descrita como parte de rituais especiacuteficos (iniciaccedilotildees fe stiva is anuais etc) ou pelo menos como um costume altamente ritualizado mas natildeo com certeza como um dispositivo corriqueiro para garantir a sobrevivecircncia Assim caso a rede tivesse sido documentada de fo rma correta na eacutepoca em que foi coletada (c 19 10) eacute mais provaacutevel que ela figurasse ritualisticamente como um atributo do papel do caccedilador no drama co letivo da caccedila ritual pelo menos natildeo se pode excluir essa possibilidade Nesse caso o funcio namento da rede natildeo

TRADUccedilAO bull A LFRED GELL 181

seria muito diferente do funcionamento de qualquer outro item da parafernaacutelia ritual como as maacutescaras por exemplo

Entretanto eacute preciso esclarecer que os saacutebios africanos estatildeo preparados para contar aos antropoacutelogos estoacuterias que revelam natildeo apenas que a caccedila eacute ritual mente importante (como ordaacutelio provaccedilatildeo para os jovens e assim por diante) mas tambeacutem que seus meios as redes ou armadilhas satildeo metaflsicamente significativos Recorrerei agora agrave narrativa de

Soyer l4 a respeito de cantores Fang (Aacutefrica Ocidental) de eacutepicos maacutegicos (mvet) Soyer

estaacute tentando entender a natureza do saber tradicional e no decorrer de suas investigaccedilotildees acaba conhecendo um especialista em canto chamado Ze com o qual trava um longo debate sobre a natureza da sabedoria

182

~ bull UFRJ 2001

Assim como os animais selvagens e como evur (sabedoriapoder maacutegico) mvet (eacutepico) pertence agrave floresta em sua evanescecircncia vocecirc pensa que pode pegaacute-lo mas ele escapa e eacute vocecirc quem eacute capturado Com Ze percebi que de certo modo as complexidades de mvet eram sempre comparadas a armadilhas Em resposta ele me contou a seguinte estoacuteria

Quando eu era jovem conheci bem os Pigmeu Eles vivem na floresta natildeo satildeo pessoas de aldeia como noacutes Fui com frequumlecircncia caccedilar com eles Os Pigmeu tecircm armadilhas para cada tipo de animal e por isso satildeo tatildeo bem sucedidos Eles tecircm uma

armadilha especial para chimpanzeacutes porque os chimpanzeacutes satildeo como os seres humanos quando tecircm algum problema param e pensam sobre isso ao inveacutes de fugirem e gritarem simplesmente Vocecirc natildeo pode pegar um chimpanzeacute com uma armadilha comum porque ele natildeo foge [e assim o noacute natildeo eacute puxado] Entatildeo os Pigmeu inventaram uma armadilha especial com uma linha que prende o braccedilo do chimpanzeacute A linha eacute bem fina e o chimpanzeacute pensa que pode se soltar Ao inveacutes de arrebentaacute-Ia ele puxa suavemente para ver o que aconteceraacute Neste momento um fardo de setas envenenadas cai sobre ele e isso soacute ocorre porque ele natildeo corre como um animal estuacutepido um antiacutelope por exemPlo faria15

A conversa entre Ze e Soyer natildeo eacute uma anedota boba sobre caccedila mas diz respeito fundamentalmente ao problema faustiano relativo ao conhecimento (entre outras coisas) um problema que natildeo eacute menos importante para o povo Fang da floresta tropical de Camarotildees do que para os

professores do MIT

Com base no depoimento desse saacutebio Fang parece inquestionaacutevel que uma armadilha seja uma metaacutefora de profunda significaccedilatildeo uma refraccedilatildeo do Espiacuterito Absoluto se eacute que esse algum dia existiu Todavia tenhamos em mente as criacuteticas feitas por Faris de que os

saacutebios natildeo estariam falando sobre armadilhas utilitaacuterias prosaicas mas sobre armadilhas imaginaacuterias espirituais armadilhas no sentido figurado natildeo no sentido literal O saacutebio Fang natildeo produziu nenhuma armadilha para a investigaccedilatildeo de Boyer Seria possiacutevel irmos aleacutem do texto de Boyer e montarmos uma exposiccedilatildeo de armadilhas de caccedila apresentando-a ao puacuteblico como uma exposiccedilatildeo de obras de arte

Deixemos o saacutebio fora disso por enquanto e nos perguntemos o que as armadilhas de caccedila animal revelam sobre o Espiacuterito Absoluto mesmo sem sua exegese nativa Por sua simples presenccedila as armadilhas de caccedila descontextualizadas podem revelar mais do que o gosto dos homens pelo consumo de carne animal)

De modo a levar o leitor a um julgamento adequado a respeito dessa questatildeo ofereccedilo algumas ilustraccedilotildees tiradas da literatura etnograacuteflca sobre armadilhas Observe a armadilha de setas Lembre-se da afirmaccedilatildeo de Danto de que olhar para uma obra de arte eacute como encontrar uma pessoa encontra-se uma pessoa um ser pensante co-presente reagindo a sua aparecircncia externa e a seu comportamento Do mesmo modo responde-se a uma obra de arte como a um ser co-presente um pensamento encarnado Agora imagine-se encontrando uma armadilha de setas natildeo (ass im espero) como a viacutetima que seraacute capturada mas como o visita nte de uma galeria que encontra uma instalaccedilatildeo feita pelo mais recente artista contemporacircneo Em tais circunstacircncias e sem qualquer contexto adicional o que o visitante poderaacute intuir como sendo o pensamento ou a intenccedilatildeo revelados por essa obra de arte

Creio que natildeo haveria nada errado caso o visitante imaginaacuterio de nossa exibiccedilatildeo visse nessa armadilha de setas uma representaccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo humana no mundo Essa eacute uma representaccedilatildeo que as pessoas de pensamento limitado poderiam censurar e negar se ao menos estivessem conscientes de que a armadilha poderio ser uma representaccedilatildeo Isso porque ela aponta para a existecircncia humana como uma violecircncia

impensada e iminente o que talvez natildeo seja um belo pensamento mas nem por isso pode ser considerado falso ou natildeo artiacutestico Inicialmente uma armadilha como essa comunica uma ausecircncia fatal - a ausecircncia do homem que a idealizou e armou e a ausecircncia do animal que se tornaraacute a viacutetima (o artista indicou essa viacutetima num segundo plano da ilustraccedilatildeo) Devido a essas ausecircncias marcadas a armadilha em questatildeo como todas as outras funciona como um poderoso signo Mesmo natildeo sendo projetada explicitamente para comunicar ou func ionar como signo (na verdade eacute projetada para ficar oculta e passar despercebida) a armadilha entretanto eacute muito mais significat iva do que a maioria dos signos su postos como tais A violecircncia estaacutetica do arco retesado a malevolecircncia congelada dos paus e das cordas satildeo reveladoras por si mesmas a despeito do recurso a representaccedilotildees convencionais Uma vez que esse eacute um signo natildeo oficial ele escapa de toda censura Nele eacute possiacutevel ler a intenccedilatildeo de seu autor e o destino de sua viacutetima Essa armadilha eacute um modelo bem como um instrumento De fato todos os instrumentos satildeo modelos porque eles precisam ser adaptados agraves caracteriacutesticas de seus usuaacuterios e assim tecircm sua marca Uma perna artificial eacute um modelo de uma perna verdadeira que estaacute ausente uma representaccedilatildeo que funciona como uma proacutetese A armadilha de setas eacute especialmente evidente como um modelo de seu criador porque ela tem que substituiacute-lo como uma espeacutecie de caccedilador substituto ela caccedila para seu dono Eacute de fato um autocircmato ou robocirc cujo design condensa o design de seu mentor Ela estaacute equipada com um transdutor sensorial rudimentar (a corda suscetiacutevel ao toque do animal) Esse siste ma nervoso aferente leva informaccedilotildees para o comando central (o mecanismo de disparo uma chave base de todos os dispositivos de processamento de informaccedilotildees) que ativa o sistema eferente liberando a energia armazenada no arco que impulsiona as setas produzindo accedilatildeo a di stacircncia (a morte da viacutetima) Isso natildeo eacute apenas o modelo de uma pessoa como um boneco qualquer mas um modelo eficaz de

T R A o U ccedil Agrave o bull A L F R E o G E L L I 83

ae R E V I 5 T A DO P R o G R A M A DE POacute 5 - G R A D U A ccedil Aacute o E M A R T E 5 V I 5 U A I 5 E B A bull U F R J 2 o o

pessoas que funciona Seria razoaacutevel perguntarmos que escultura seria capaz de mostrar mais sobre a condiccedilatildeo humana revelando apenas nosso delineamento exterior do que esse dispositivo mecacircnico Muito mais sobre a existecircncia humana estaacute presente aqu i do que em qualquer escultura mas como esse natildeo eacute um exemplo oacutebvio de um objeto de arte jamais seraacute olhado sob esse prisma

Aleacutem disso se olharmos para outras armadilhas poderemos ver que cada uma eacute natildeo apenas o modelo de se u criador um eu subsidiaacuterio na forma de um autocircmato mas cada uma eacute tambeacutem um modelo de sua viacutetima Esse modelo pode refletir efetivamente a forma externa da viacutetima como na cocircmica armadilha de girafa que delineia em negativo os contornos da parte inferior do corpo desse animal Ou a armadilha pode de modo mais suti l e abstrato representar paracircmetros do comportamento natural do animal que satildeo subvertidos a fim de aprisionaacute-lo As armadilhas satildeo paroacutedias letais do Umwelt do animal Assim o rato que gosta de se enfiar em espaccedilos estreitos tem uma cavidade atraente preparada para sua uacuteltima e fatal correria na escuridatildeo Eacute claro que a armadilha natildeo eacute em si mesma inteligente ou enganosa O caccedilador eacute que conhece as respostas habituais da viacutetima e eacute capaz de subvertecirc-Ias Mas uma vez montada a armadilha a habilidade e o conhecimento do caccedilador estatildeo efetivamente inscritos nela de forma objetiflcada caso contraacuterio a armadilha natildeo funcionaria Esse conhecimento objetivo sobreviveria ateacute mesmo agrave morte do proacuteprio caccedilador e tambeacutem seria (parcialmente) legiacutevel por outros que soacute tivessem acesso agrave armadilha e natildeo ao conhecimento sobre o animal que estaacute refletido em seu projeto A partir da forma da armadilha poderiam ser deduzidas as disposiccedilotildees da viacutetima Nesse sentido as armadilhas podem ser consideradas como textos so bre o comportamento animal

A armadilha eacute portanto um modelo tanto de seu criador o caccedilador quanto de sua viacutetima a presa animal Poreacutem mais do que isso a armadilha encarna um cenaacuterio que eacute

184

o nexo draacutematico que liga os dois protagonistas e que os alinha no tempo e no espaccedilo Nossas ilustraccedilotildees natildeo podem mostrar isso porque elas apresentam as armadilhas esperando suas viacutetimas ou viacutetimas que jaacute foram capturadas Elas natildeo podem mostrar po reacutem a estrutura temporal da armadilha Essa estrutura tempo ral o potildee o tempo suspenso o tempo vazio da espera agrave cataacutestrofe suacutebita que resulta do fechamento da armadilha Essa estrutura temporal varia com o tipo de armadilha empregado mas natildeo eacute difiacutecil ver no drama da captura um anaacutelogo mecacircnico da sucessatildeo traacutegica de hubris-nemesisshycotostrophe Considere o hipopoacutetamo condenado tranquumlilo com a se nsaccedilatildeo de fal sa seguranccedila decorrente apenas de seu tamanho e majestade Quantos heroacuteis traacutegicos sofreram das mesmas ilusotildees de presunccedilatildeo e atraiacuteram o mesmo destino) Se o chimpanzeacute que cai na armadilha de Boyer for Fausto talvez este hipopoacutetam o seja Otelo O fato de que todos os animais que caem viacutetimas das armadilhas sempre provoquem suas quedas por meio da proacutepria autoconfianccedila complacente demonstra que a caccedila com armadilhas eacute uma forma muito mais poeacutetica e traacutegica do que a simples perseguiccedilatildeo Este uacuteltimo tipo de caccedilada iguala caccediladores e viacutetimas unidos em accedilatildeo e reaccedilatildeo espontacircneas ao passo que a caccedila com armadilhas hierarquiza decisivamente o caccedilador e a viacutetima O capturador eacute Deus ou o destin o o animal capturado eacute o homem em sua encarnaccedilatildeo traacutegica

Parece -me portanto que mesmo sem o contexto etnograacutefico mesmo sem a exegese de qualquer nativo armadilhas animais como essas poderiam ser apresentadas ao puacuteblico como obras de arte Esses dispositivos incorporam ideacuteias veicu lam significados porque uma armadilha por sua proacutepria natureza eacute uma representaccedilatildeo transformada de seu fabricante o caccedilador e da presa animal sua viacutetima e de sua relaccedilatildeo muacutetua que nos povos caccediladores eacute fundamentalmente socia l e complexa Isso significa que essas armadilhas comunicam a noccedilatildeo de um nexo de intencional idades entre os caccediladores e as presas animais mediante formas e mecanismos materiais

--- -- ---

Creio que essa evocaccedilatildeo de intencionalidades complexas eacute na realidade o que serve para defin ir as obras de arte e que adequadamente emolduradas as armadilhas para animais poderiam evocar intuiccedilotildees complexas a respeito do ser da alteridade do relacionamento O impacto dessas armadilhas agora apresentas como obras de arte pode no entanto ser maior caso elas sejam exibidas ao lado de obras de artes ocidentais (das quais eacute faacutecil achar numerosos exemplos) que ocupem pelo menos aparentemente o mesmo territoacuterio sem ioloacutegico

O trabalho de Damien Hirst um dos jovens artistas britacircnicos mais citados pela miacutedia parece ser um desses casos De fato foi a notoacuteria exposiccedilatildeo de Hirst exibida na Tate Gallery em 1992 que me induziu pela primeira vez a pensar sobre as armadilhas como objetos artiacutesticos Considere o tubaratildeo de Hirst no tanque de formol Essa obra cativa devido ao contraste profundo entre o pei xe gigantesco ultrabioloacutegico e sua gaiola ou armadilha de vidro asseacuteptica (recordando Eichmann em seu julgamento preso numa caixa de vidro) cujas paredes refletoras projetam imagens virtuais da igualmente asseacuteptica galeria dentro do domiacutenio bioloacutegico do tubaratildeo Um eco distante das metades superior (bioloacutegica) e inferior (mecacircnica) do Large Glass de Duchamp - sem duacutevida - mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre nosso poder de imobilizar forccedilas elementares que no entanto parecem sempre potencialmente prontas a escapar Ateacute mesmo o tubaratildeo de Hirst tatildeo morto quanto possiacutevel continua residualmente vivo observando e pensando ou pelo menos parece estar porque manteacutem seus olhos abertos e fi xos em noacutes Um dia ele escaparaacute

Seria apropriado colocar o tubaratildeo de Hirst ao lado da pintura em casca de aacutervore extraiacuteda do livro Ancestral Connections de Morphy l6 que mostra um tubaratildeo capturado quase idecircntico visualmente agrave instalaccedilatildeo exibida na Tate Gallery Os Yolnngu produzem esse t ipo de pintura durante rituais funeraacuterios e ela se refere agrave jornada rio acima de um tubaratildeo ancestral miacutetico que foi capturado

temporariamente em seu trajeto mas escapou Essa pintura refere-se agraves afiliaccedilotildees do clatilde dos mortos e metaforiza a viagem do espiacuterito agrave terra ancestral e a necessidade de transferir- lhe forccedilas (por meio de cerimocircn ias funeraacute rias) de modo que ele como o tubaratildeo ancestral possa escapar das armadilhas que ameaccedilam sua trajetoacuteria O episoacutedio do tubaratildeo sendo capturado e escapando eacute encenado pelos participantes Essas ideacuteias escatoloacutegicas satildeo eacute claro especiacuteficas da cultura Yolnngu mas eu me arriscaria a sugerir que a semelhanccedila entre o trabalho de Hirst e a obra Yolnngu natildeo eacute apenas superficiaJ mas insinua uma metaacutefora vaacutelida em termos interculturais embora sujeita a leituras diferenciadas

Enquanto isso para reforccedilar a ideacuteia de que a obra de Hirst diz respeito de modo profundo agraves armadilhas e agrave rede de intencio nalidades complexas que a captura em armadilhas estabelece descreverei outro trabalho de Hirst presente na mesma exibiccedilatildeo na qual uma armadilha em funcionamento foi efetivamente incorporada Refiro-me agrave instalaccedilatildeo que consiste em uma cabeccedila de ovelha dentro de uma caixa de vidro a cabeccedila deteriora-se e cria larvas que se transformam em moscas que depois se tornam viacuteti mas de uma armadilha para

TRAD UCcedilAacuteO middot A LFRED G ELL 185

ae R E V I TA DO P R o G R A M A D E POacute bull G R A o U A ccedil A o

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz vio leta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais e las morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antro poacutelogos deve riacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacuted igo mito loacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se ide ntificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal mo rto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus pe rverso que colocou este mundo incoerente em movim ento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hi rst natildeo seria o uacutenico artista ocidenta l contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceitual Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posi cionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalh o natildeo eacute tanto o tema da vio lecirc ncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetrado res justamente o tema que ide ntifiquei anteriorme nte em relaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relacio na-se diretamente ao tipo de armadilha serial para ho mens (esp ingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de pro priedades em tempos passados

Exemplos adicionai s de obras de arte poacutesshyDuchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 19 I7) po deriam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hi st satildeo exemplos do mesmo tip o de co isa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

E M A R T E v I U A I E 8 A bull U F R J 2 o0 1

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo supo nho que para que uma armadi lha afri cana o u uma armadilha de qualquer o utra parte exoacutetica do mundo possa funci o nar como uma o bra de arte seja realmente necessaacuterio o u desejaacuteve l que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o signifi cado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armad ilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento IB Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

186

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a arm ad ilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmenteshyartiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinh a Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecircshyse imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bongl Antes de saber o que aconteceu tran sforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido como qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as tran substanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hil-st discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)Iarvamoscamosca (morta) - poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tam pouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode fun cionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier2o Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal

reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tam beacutem em outros lugares

~ ---------- --------------------

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torn a-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente lo ngo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuter ios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas vo ltada natildeo bastaria para retiraacute-Ias do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seri a evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - eacute que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente agraves enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e co nteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

T R A D U ccedil Acirc o bull A L F R E D G E L L 187

--------------------------- -------------

ae REVIST A DO P ROGRAMA DE PO S -GRADUACcedilAtildeO

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porq ue ela proacutepria eacute alongada (eefshyongaced) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricad a eacute certame nte na forma de armad il has como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo imagens dos antepassado s no sentido de que elas contecircm e ncarnam e comu nicam o poder ancestral Aleacutem disso elas to rnam possiacuteve l a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacute m sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fanta siado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor O s Anga ao contraacuterio tecircm imagens de poder ancestral que de fato trabalham de fato alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo real iacutestica de form as (superficiais)

Con cl usatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armad il has exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio shya disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte) Espero que eu

EM A RTES VISUAIS EB A bull UFRJ 2001

ten ha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teo ria institucional da arte liberaria imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservandoshylhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente dife rentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses objetos tornar-se-iam artiacutesticos Sei-ia essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacute logo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa tran sformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute co nstituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como arte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm po uco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arte para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como ta l numa cidade provinciana muito sono lenta que se vanglorie (como a maioria de las) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad~ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas po r que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arte caso produzisse coisas genericamente semel hantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21 ) - res ide na intluecircn cia pro longada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de o bra de arte pela antropologia da arte23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte co ntemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode se r visto em galerias de artesanat o provincianas Deve-se acei tar a premissa em essecirc ncia libe rtadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentai s jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabri cado pelo homem pode ser ve iculado como o bra de arte Eacute isso que a teo ria instituciona l da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de t eoria da arte contemporacircnea desde 19 I7 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urin o l (ou Fontaine) Fo i no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Dami en Hi rst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Ducham p pouco poderiacuteamos esperar de la nesta fase ta rdia Na verdade as co isas natildeo satildeo middotbem assim Os ready-made de Duchamp foram cuidadosamente selecio nados e firmeme nte integrados tematicamente a do is de seus principais projetos (o Large Gass de 19 I 5shy23 e a Waterfal de 1944-66) O aspecto mais inte ressante a respeito dos ready-made de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Ducham p para selecio naacuteshylos (reve ladas ao lo ngo de toda uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceitual aparenteme nte arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos e les funci onam se eacute que fun cionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e hi stoacute ricas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maio r ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquant o veiacutecu los de ideacute ias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de reali za r et c Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer o bjeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencional idades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de recon struir plename nte 2~

Assim eacute preci so mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simp les exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvid o e disseminado Desse ponto de vista a t eoria puramente institucional da arte eacute menos do que sati sfatoacuteria porque nada tem a dizel- sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuai s ao s quais o puacuteblico ed ucado de ga leria eacute sensiacuteve l Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da inte rpretabil idad e para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teor ia pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre o bra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos funcionais e obras de arte significat ivas Esse eacute um legado dos fil oacutesofos poacutes-iluministas co mo Hege l que obscurece a compreensatildeo de qual quer mundo artiacutestico distinto daqu e le que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar sign ificado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas re ligiosas e o utras Essas funccedil otildees satildeo praacuteticas nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e da man ei ra como os seres humanos podem interferir em seu funci onamento de modo a t irar o melhor proveito poss iacuteve l dele O bras

TR ADUCcedilAo A L F RED GE LL 189

ae R E V 1ST A D D P R D G R A M A DE POacuteS - G R A o U A ccedil A o E M A R T E S V I SUA I S E B A bull U F R J bull 2 o o I

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames2s A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucional e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bemshysucedida candidatura a obra de arte da rede de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencional idades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teorias interpretativa e institucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

190

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26

demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-Ia como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funcioacutena eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

Quando morreu em 1997Alfred Gell era Professor de Antropologia na London SchooJ of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a resp eito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Jmag es Totooing in Poynesia (1993) e Art ond Agency An Anhropologicol Theory ( 1998)

Traduccedilatildeo Marcia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

Notas

I Ver Dickie George Are and Aesthetics Ithaca Nova York Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circfe a Theory ofArt New York Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique of Judgements ofTaste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris james ArtlArtifact on the Museum and Anthropology Currene AnUacutelropology 29(5) 1988775-9

4 Faris op cit776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifacc African Art in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestei Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of Philosophy Journal of Philosophy 61 1964 57 1-84

7 Dickie 1974 op cir

8 Ver Danto Arthur The Tran sfJguration o the Commonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cir

9 Danto 1981 op cir

10 Faris op cir 778

I I Clifford james The Predicament of Culcure Cambridge MA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit31

13 Danto 1988 op cir 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agrave Penseacutee introduction agrave Ianalyse des eacutepopeacutees Fang Paris Societeacute dEthnologie 1988

15 Boyer op cie 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art ando an Aboriginal Syseem o Knowledge Chicago Chicago University Pness 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MD Rowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the Renais sance Oxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report ofthe American Bureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-Anga Material and Symbolic Aspects ofTrapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

--_ _--shy

21 Weiner J (ed) Aesthetics is a Cross-cultural Category Graup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic ExperienceAn Anthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and the Enchantment ofTechnology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderes cognitivos

25 Gell op cie 60

26 Thomas Nicholas Enwngled Objects Cambridge MA Harvard University Press 1991

TRADUccedilAO AlFRED GEll 191

Page 2: A Rede de Vogel- Armadilhas Como Obras de Arte

A rede de Vogel armad ilhas como obras de art e e obras de arte como armadilhas

Alfred Gell

o artigo discute as distinccedilotildees mais comuns entre obras de arte e meros artefatos que satildeo uacuteteis mas natildeo satildeo belos ou esteticamente interessantes

Se como o filoacutesofo Arthur Danto afirma um objeto artiacutestico eacute identificado como tol em funccedilatildeo do modo como eacute interpretado entatildeo muitos artefatos poderiam ser

exibidos como objetos artiacutesticos Seu objetivo eacute demonstrar como as armadilhas para capturar animais poderiam perfeitamente ser exibidas como objetos

artiacutesticos porque contecircm ideacuteias e intenccedilotildees complexas a respeito da relaccedilatildeo entre homens e animais aleacutem de fornecer um modelo do caccedilador e de como ele

concebe sua presa Conclui portanto que a definiccedilatildeo esteacutetica de um objeto artiacutestico eacute insatisfatoacuteria

Ateacute agora grande parte dos debates no campo da filosofia da arte especialmente no que diz respeito agraves artes visuais dedica-se ao problema da definiccedilatildeo de obra de arte Como determinar quando um objeto fabricado eacute uma obra de arte ou algo menos nobre um artefato Existem (pelo menos) trecircs teorias que tentam responder a essa questatildeo De acordo com a primeira uma obra de arte pode ser definida como qualquer objeto esteticamente superior desde que possua determinadas qualidades como apelo visual e beleza Essas qualidades devem ter sido intencionalmente atribuiacutedas ao objeto pelo artista pois os artistas seriam dotados da capacidade de resposta esteacutetica Natildeo pretendo discutir especificamente essa teoria embora ela ainda seja aceita pelo puacuteblico em geral que continua a pensar que qualidades como apelo visual e beleza podem ser reconhecidas automaticamente nos objetos

A segunda teoria sustenta que as obras de arte natildeo satildeo identificadas por suas qualidades externas como a definiccedilatildeo esteacutetica propotildee Um objeto pode natildeo ser belo ou mesmo interessante de se ver mas seraacute considerado obra de arte se for interpretado a partir de um sistema de ideacuteias fundamentadas em uma tradiccedilatildeo

Arte primitivo arte contemporoacuteneo ort erotos

artiacutestica historicamente estabelecida Eacute a chamada teoria interpretativa cujo grande meacuterito criacutetico em relaccedilatildeo agrave teoria esteacutetica eacute estar muito mais afinada com o mundo artiacutestico contemporacircneo Nesse contexto a elaboraccedilatildeo de pinturas e esculturas belas deu lugar agrave chamada arte conceitual como eacute o caso por exemplo de montagens como a realizada por Damien Hirst na qual um tubaratildeo morto eacute exibido em um tanque de formol (figura a ser comentada posteriormente) Mesmo natildeo sendo um objeto atraente ou especialmente elaborado o tubaratildeo de Hirst eacute um gesto altamente inteligiacutevel nos termos do fazer artiacutestico contemporacircneo e natildeo pode ser tomado como um truque publicitaacuterio ou um sintoma de insanidade Inserida na tradiccedilatildeo artiacutestica conceitual poacutes-Duchamp a qualidade dessa obra deve ser avaliada em termos artiacutesticos pois seja ela considerada boa ruim ou regular trata-se inegavelmente de um tipo de arte Os defensores da teoria esteacutetica tecircm no miacutenimo dificuldade para aceitar esse tipo de obra e estatildeo inclinados a recusaacute-Ia categoricamente como arte mas ao fazer isso correm o risco de ser acusados de reacionaacuterios por criacuteticos e artistas que como eu disco rdam dessa visatildeo

TR ADUCcedilAO ALFRED GELL 175

ae R E Vi H A DO PROGRAMA DE POS-G R ADUACcedilAo EM ARTES VISUAIS EBA bull UFRJ 200 1

Finalmente existe uma versatildeo mais radical da teoria interpretativa que fornece uma terceira possiacutevel resposta para a pergunta o que eacute uma obra de arte) Conhecida como teo ria in stitucional afirma como a interpretativa que natildeo haacute no objeto artiacutesti co enquanto veiacuteculo materi al um a caracteriacutestica capaz de qualifi caacute-lo definitivamente como sendo ou natildeo uma obra de arte Isso eacute vaacutelido a despeito do fato de o objeto estar ou natildeo subordi nado ao mundo artiacutest ico ou seja a uma coletividade interessada em fazer part il har e debater Julgamentos criacuteticos desse tipo

A diferenccedila entre as teorias interpretativa e in st ituci o nal eacute que a institucio nal natildeo press upotildee a coerecircncia histoacuteri ca das inte l pretaccedilotildees Uma obra pode estar a pl-inciacutepio fora do circuito oficial da hi st oacuteria da arte mas se o mundo artiacutestico coopt a essa obra e a faz circular como arte entatildeo ela eacute arte porque satildeo os representantes do mundo artiacutestico ou seja artistas criacuteticos comerciantes e colecionadores que tecircm o poder de decidir essas questotildees natildeo a histoacuteria ponto de vista proposto pelo filoacutesofo americano George Dickie 1 Essa teoria aparentemente natildeo tem o apoio da maior parte dos fil oacutesofos contemporacircneos a Dickie talvez por ser mais soc io loacutegica do que efetivamente fil osoacutefi ca - uma teoria sobre o que (de fato) eacute co nsiderado arte e natildeo sobre o que (racio nalmente ) deve ria ser considerado como tal Todavia o que to rna a teo ria de Dickie questio naacutevel do ponto de vista da esteacutetica t rad iciona l eacute precisamente o que a torna at raente para os antropoacutelogos jaacute que ele ultrapassa a esteacutetica em nome de uma anaacutelise socioloacutegica que caracteriza em sentido amplo essa disciplina2 Contudo a re levacircncia da teo ria institucio nal para o estudo socio loacutegico do mundo artiacutestico deve ser avaliada independentemente de sua contribuiccedilatildeo para a esteacutetica fil osoacutefica

As questotildees levantadas po r essas teorias foram colocadas em evidecircncia pela exposiccedilatildeo intitulada Artel Artefato mo ntada no Center for African Art (Nova York 1988) sob a curado ria da antropoacuteloga Susan

176

Vogel Natildeo vi essa exposiccedilatildeo que foi poreacutem detalhadamente descrita por Farisl em Current Anthropology acrescentando tambeacutem alguns comentaacuterios criacutet icos que pretendo retomar ad iante O primeiro espaccedilo da exposiccedilatildeo (com paredes brancas e I-efletores) foi intitulado Galeria de Arte Contemporacircnea e seu foco principal era um objeto impressionante uma rede de caccedila Zande (Aacutefrica) firmeme nte enrolada e pronta para o t ranspo rte Provavelmente Susan Voge l exibiu-a dessa manei ra porque pensou que o puacuteblico fre quumlentador de galerias de arte em Nova York seria capaz de associar de maneira espontacircnea aquele artefato com um certo conjunto de objetos exibidos em outras ga lerias ou apresentados em publi caccedilotildees especializadas Nesse caso especiacutefico a anal ogia mais imediata seria com as escu lturas de barbante amarrado de Jackie Windso r Faris4

menciona as obras de Nancy Graves e Eve Hesse como outros parale los possiacuteveis A escolha desse objeto especiacutefico foi um golpe de mestre em termos de curadoria pelo qual Voge l merece muitos e logios Aleacutem do mais a exposiccedilatildeo gerou um e nsaio igualmente magistral do criacutetico e fil oacutesofo Arthur Dant O5 publicado no cataacutelogo

A intenccedilatildeo de Voge l era quebrar o elo entre a arte africana e o primitivismo da arte moderna (Les Demoiselles dAvignon de Picasso as pseudo maacutescaras africanas de Modigliani e Brancusi etc) e sugerir diferentemente que os objetos africanos podem ser analisados em uma perspectiva mais ampla evocando o esti lo artiacutestico dominante na deacutecada de 1980 em Nova York do qual Jackie W indsor eacute um dos representantes Danto teve razotildees para resistir a essa mudanccedila visto que natildeo estava persuadido de que a rede de caccedila fo sse o u pudesse vi r a ser arte Em termos institucionais a armad ilha apresentada jaacute havia de fato se tornado arte dado ter sido como tal exibida po r Vogel e conseq uumlentemente assim apreciada por parte significativa do puacuteblico Caso Dickie e natildeo Danto t ivesse escrito o ensaio do cataacutelogo eu me arriscaria a dizer que a rede teria sido celebrada co mo um bom

exemplo do modo pelo qual o mundo artiacutestico cria suas obras de arte ao classificaacute-Ias como ta l Danto poreacutem seguiu outra direccedilatildeo e dedicou seu ensaio a provar que as afinidades da rede com o conceito contemporacircneo de arte seriam meramente superficiais

Meu objetivo neste artigo eacute duplo Em primeiro lugar discutir a distinccedilatildeo proposta por Danto entre arte e artefato Em segundo lugal~ pretendo montar uma pequena exposiccedilatildeo (infelizmente composta apenas por textos e ilustraccedilotildees) de objetos que Danto consideraria artefatos mas que em minha opiniatildeo satildeo fortes candidatos a circular como obras de arte mesmo que essa natildeo tenha sido a intenccedilatildeo original de seus criadores que provavelmente desconheciam esse conceito Se eu conseguir persuadir meu puacuteblico e se a teoria institucional for verdadeira ou seja se arte for tudo aquilo que natildeo apenas eu mas outras pessoas que pensam do mesmo modo classificamos como tal entatildeo uma nova categoria de arte estaacute prestes a surgir Ou natildeo se considerarmos como paracircmetro os argumentos de Danto que retomarei agora

Danto eacute responsaacutevel por ambas as teorias da arte a interpretativa e a institucional e foi ele quem primeiro introduziu a expressatildeo mundo artiacutestico na esteacutetica filosoacutefica 6 Mas uma vez que Dickie7

desenvolveu as ideacuteias de Danto na direccedilatildeo socioloacutegica jaacute apontada a definiccedilatildeo de obra de arte tornou-se um problema de consenso social em meio ao puacuteblico de arte Danto poreacutem tende para uma visatildeo mais idealista a respeito da arte fazendo mesmo muitas referecircncias a Hegel em seus trabalhos Ele afirma que objetos de arte satildeo assim considerados em funccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo historicamente fundamentada Danto escreveu dois importantes estudos que foram muito bem aceitos no campo da

bull

filosofia da arte modernaB Concordo com a maior parte de sua produccedilatildeo mas devo dizer que os pontos mais fracos de sua versatildeo da teoria interpretativa ficam especia lmente evidentes quando colocados em um contexto antropol oacutegico e intercultural em seu ensaio para a exposiccedilatildeo ArteArtefato

De acordo com Danto natildeo existem caracteriacutesticas intriacutensecas a qualquer objeto que possam por si soacute caracterizaacute-lo como artiacutestico A diferenccedila objetiva entre uma embalagem real de sabatildeo Brillo e a falsa embalagem Briflo de Warhol natildeo eacute o que determina que apenas a uacutelti ma seja uma obra de arte Mesmo objetos semelhantes podem ser diferenciados de modo que um seja considerado obra de arte e o outro natildeo Isso foi exaustivamente discutido por Danto9 que entretanto estabelece uma grande diferenccedila entre o tipo de interpretaccedilatildeo contexto significaccedilatildeo simboacutelica etc que um objeto deve ter para que seja uma obra de arte em comparaccedilatildeo com as caracteriacutesticas associadas a uma obra que natildeo eacute artiacutestica ou seja um mero artefato A interpretaccedilatildeo deve estar relacionada com uma tradiccedilatildeo de fazer artiacutestico que internaliza reflete e se desenvolve a partir de sua proacutepria histoacuteria como a arte ocidental tem feito desde Vasari pelo menos Segundo ele (e estou totalmente convencido disso) a moderna arte conceitual corresponde agrave subordinaccedilatildeo da fabricaccedilatildeo da imagem agrave reflexatildeo histoacuterica em outras palavras eacute a

T R A D U ccedil Acirc o bull A L F R E D G E L L J77

ae REVISTA DO PROGRAMA DE POS-GRADUACcedilA O EM ARTES VISUAIS EBA bull UFRJmiddot 2001

resultante final do fazer artiacutest ico da fdosofia da histoacute ria e da criacutetica de arte tomados conjuntamente Todavia o conceito-chave aqui eacute o de tradiccedilatildeo progressiva cumulativa (Geist esp iacuterito etc)

O que Danto faz quando o puacuteblico de Nova York se entusiasma com uma rede de caccedila como se ela fosse a mais recente produccedilatildeo do Geist na pessoa de Jackie Windsor ou de seu grupo A arte contemporacircnea eacute capaz de digerir desse modo objetos externos A ausecircncia de um autor identificaacutevel o u de uma intenccedilatildeo artiacutestica reconheciacutevel eacute um obstaacutecu lo Danto natildeo pode deixar de assumir uma posiccedilatildeo criacutetica em relaccedilatildeo a isso Jaacute que intenccedilatildeo signi fi cado e fundamentaccedilatildeo em uma tradiccedilatildeo diferenciada e auto-refexiva satildeo fundamentais para sua compreensatildeo da arte contemporacircnea e mesmo de toda arte ocidental posterior ao Renascimento O caccedilador Zande que fez ou encomendou a rede natildeo participa do mesmo quadro histoacuterico de referecircncia para o qual o trabalho semelhante de Windsor estaacute apontando de modo que a analogia entre eles eacute enganosa Nem mesmo eacute possiacutevel co nsiderar alternativamente que o artista nesse caso eacute Vogel (Danto sequer considera essa possibilidade) que estaacute apresentando a rede como um reody-mode de acordo com a mesma tradiccedilatildeo dos protoacutetipos de Duchamp como a paacute o cabide e o urinol Mesmo porque Vogel natildeo estaacute se apresentando como um segundo Duchamp mas como uma curadora de museu que oferece para admiraccedilatildeo do puacuteblico um objeto feito na Aacutefrica por um artista anocircnimo que natildeo eacute certamente ela proacutepria

O dilema de Danto diz respeito essencialmente ao fato de que sua teoria interpretativa da arte eacute construiacuteda a partir do referencial hist oacuterico impliacutecito na arte ocidental segundo um modelo hege liano Caso ele diga que nenhuma produccedilatildeo externa ao fluxo histoacuterico da arte ocidental (que eacute sem duacutevida muito amplo) pode ser considerada co mo arte estaacute sujeito a acusaccedilotildees de eurocentrismo Caso ele admita poreacutem que objetos exoacuteticos que natildeo participaram do Geist da arte oc idental

178

podem se r mesmo assim obras de arte por que excluir a rede E caso a rede seja inc lu iacuteda o que sobra do valor explicativo da interpretaccedilatildeo historicamente fundamentada e da distinccedilatildeo entre arte e artefato) O filoacutesofo foi efetivamente enlaccedilado pela rede de Vogel que assim termino u por cumprir sua funccedilatildeo embora natildeo do modo convencional

Soacute existe uma saiacuteda para o idealista nessas circ unstacircncias e le deve assumir que existem afinidades interpretativas o u simboacutelicas subjacentes agraves verdadeiras obras de arte produzidas em diferentes tradiccedilotildees culturais A rede Zande seraacute excluiacuteda nos termos Zande porque nessa cultura como possivelmente em todas as outras os objetos artiacutesticos devem ter um tipo de significaccedilatildeo simboacutelica que uma mera rede de caccedila natildeo pode ter Sendo (supostamente) excluiacuteda pelos proacuteprios Zande a rede natildeo poderia ser incluiacuteda pelos nova-iorquinos porque isso significaria contradizer os princiacutep ios de Danto de que sem interpretaccedilatildeo natildeo haacute arte Depois de concordar com a ideacuteia de que nem toda embalagem de sabatildeo Brillo mas apenas a que foi criada por Warhol eacute arte Danto natildeo pode deixar de dizer que essa rede nos termos Zande natildeo equivale a uma obra de Warho l pois eacute apenas uma velha rede como outra qualquer

Mas como estabelecer paracircmetros para a afinidade entre obras de arte africanas (devidamente qua lifi cadas) e obras de arte ocidentais e para a natildeo-afinidade entre a rede Zande e ambas as artes Danto argumenta que a grande escultura africana foi reconhecida como tal e colocada no mesmo niacutevel de ponatello Thorwa ldsen etc por meio de um processo de descoberta empreendido por Pi casso Brancusi Roger Fry e seus contemporacircneos comparaacutevel agraves descobertas cientiacuteficas Essa grandeza jaacute estaria laacute mas teria sido ofuscada por juiacutezos preconceituosos associados ao colonialismo Esse tipo de arte africana foi produzido individualmente por escultores altamente talentosos com intenccedilotildees artiacutesticas (esteacuteticas) especiacuteficas que eles imprimiram em seus trabalhos Soacute posteriormente essas

obras se tornaram acessiacuteveis ao puacuteblico natildeo africano graccedilas aos esforccedilos de alguns simpatizantes ocidentais Entretanto essa abordagem a respeito da incorporaccedilatildeo da arte africana nos moldes de Danto traz consigo um certo risco de esteticismo shymas natildeo eacute justamente Danto quem nos diz que o que faz da arte arte natildeo satildeo apenas as caracteriacutesticas exteriores (esteacuteticas) que ela possa ter Sendo assim Danto eacute obrigado a mudar sua taacutetica e considerar a possibilidade de existecircncia de uma arte africana que natildeo seria obviamente diferente sob qualquer aspecto externo ou visiacutevel da natildeo-arte africana uma afirmaccedilatildeo que natildeo seria aplicaacutevel aos exemplos famosos da arte escultoacuterica cuja qualificaccedilatildeo enquanto arte nunca foi colocada em duacutevida pelo menos por Danto

Danto eacute um filoacutesofo e sendo assim natildeo escolheu o caminho mais oacutebvio que consistiria em retomar tudo que jaacute foi escrito sobre cultura material africana Ao contraacuterio tentou obedecer a seu imperativo disciplinar entregando-se a um Gedonkexperiment no qual ele parece ser particularmente habilidoso Danto imagina a existecircncia de duas tribos africanas proacuteximas mas historicamente diferenciadas que ele denomina Pot People (povo ceramista) e Bosket Folk (povo cesteiro) Aparentemente a produccedilatildeo material dessas duas tribos que inclui potes e cestos eacute quase idecircntica mas o povo ceramista venera seus oleiros que satildeo tidos como sacerdotes e saacutebios e considera a olaria uma atividade sagrada que evoca a cosmogecircnese jaacute que Deus foi um oleiro que moldou o mundo a partir do barro Esse povo tambeacutem faz cestos para fins utilitaacuterios mas essa natildeo eacute uma atividade considerada nobre Do o utro lado da montanha em meio ao povo cesteiro as coisas satildeo diferentes jaacute que Deus era um cesteiro e fez o mundo a partir de fibras vegetais e os potes de ceracircmica produzidos satildeo considerados meramente utilitaacuterios Nessa tribo os sacerdotes satildeo os cesteiros e os oleiros satildeo apenas especialistas

teacutecnicos artesatildeos

Danto sustenta que mesmo que soacute um exame minucioso permita aos museoacutelogos

distinguir os potes e os cestos produzidos em ambas as tribos a diferenccedila espiritual envolvida na elaboraccedilatildeo dos potes sagrados entre o povo ceramista eacute suficiente para garantir-lhes o status de obra de arte em oposiccedilatildeo aos potes utilitaacuterios do povo cesteiro (e vice-versa em relaccedilatildeo aos cestos) Os potes do povo ceramista e os cestos do povo cesteiro estatildeo ambos na prestigiada coleccedilatildeo que estaacute no Kunsthistorisches Museum Jaacute os cestos do povo ceramista e os potes do povo cesteiro pertencem a uma coleccedilatildeo um pouco diferente que estaacute no Naturhistorisches Museum As obras que pertencem ao Museu de Histoacuteria da Arte emanam do Espiacuterito Absoluto satildeo veiacuteculos de ideacuteias completas que se o riginam da condiccedilatildeo humana em toda sua densidade e fatalidade histoacuterica e consequumlentemente a iluminam Jaacute os objetos que estatildeo no Museu de Histoacuteria Natural satildeo meios para fins utilitaacuterios instrumentos que ajudam os seres humanos em sua vida material - eles fazem parte da prosa do mundo segundo uma expressatildeo hegeliana

Danto em consequumlecircncia exclui a rede de caccedila mera manifestaccedilatildeo prosaica no sentido hegeliano e esboccedila de modo experimental uma distinccedilatildeo particularmente marcada entre objetos de arte e artefatos Entretanto como em todas as experiecircncias desse tipo eacute possiacutevel questionar se essa di stinccedilatildeo corresponde agrave realidade Creio que a antropologia deveria pronunciar-se a esse respeito jaacute que os experimentos de Danto evocam explicitamente a etnografia como protoacutetipo de suas ficccedilotildees expositivas Em seu comentaacuterio sob re a exposiccedilatildeo Faris afirma que o problema estaacute no fato de que a antropologia tende de modo geral a ser condescendente com experimentaccedilotildees teoacutericas como a de Danto Ele acusa enfaticamente o ensaio escrito por Danto de promover uma perspectiva orto doxa viciada tanto em relaccedilatildeo agrave histoacuteria da arte quanto em relaccedilatildeo agrave antropologia Modernistas como Danto estariam

paralisados pela aceitaccedilatildeo de todas as tiranias culturais e pela consequumlente cegueira em relaccedilatildeo agraves tiranias especiacuteficas [de modo que] eles incorrem com

T R A o U ccedil Aacute o bull A l f R E o G E l l I 79

ae REVISTA DO PROGRAMA DE P6S-GRADUACcedilAO EM ARTES VISUAIS EBA bull UFRJ 2001

frequumlecircncia no sentimento humanista mais banal e no entusiasmo inuacutetil em relaccedilatildeo ao poder emotivo e expressivo_o Eles o fazem em grande medida reconhecendo o empreendimento antropoloacutegico como por exemplo a ideacuteia de que os objetos africanos natildeo podem ser inteiramente compreendidos sem a referecircncia aos nativos africanos no contexto cultural especiacutefico que os produziu Danto tem que concordar que natildeo se deve atribuir ao contexto um valor axiomaacutetico - embora seja inegaacutevel sua relaccedilatildeo com o significado - particularmente quando tanto contexto quanto significado

foram indicados pela Antropologia 10

Faris argumenta ainda que de modo geral esse tipo de liberalismo recebe as produccedilotildees do Outro etnograacuteflco nos termos do Outro mas soacute na medida em que essa produccedilatildeo seja aceitaacutevel ou coerente com um dado conceito de Espiacuterito Absoluto

A etnografia imaginaacuteria de Danto a respeito da cosmogenia dos potes e dos cestos revela com precisatildeo o tipo de narrativa antropoloacutegica que ele considera conveniente e de fato tanto os antropoacutelogos quanto seus informantes nunca hesitaram em produzir relatos desse tipo O ponto foucaultiano de Farris diz respeito ao fato de que o empreendimento antropoloacutegico como um todo tende a buscar esse tipo de saacutebio ou especialista nativo ao qual Danto atribui o poder de distinguir entre arte e natildeo-arte Isso ocorre porque em uacuteltima instacircncia noacutes antropoacutelogos queremos tachar esses objetos e atribuir-lhes significados fixos e controlaacuteveis Concordo com Faris quanto ao fato de que os saacutebios (fictiacutecios) de Danto satildeo projeccedilotildees palpaacuteveis de autoridade e como tal merecem ser desmascarados Mas infelizmente ele acaba natildeo discutindo a distinccedilatildeo objeto de arte versus artefato exceto para indicar que essa oposiccedilatildeo estaacute sujeita a uma redeflniccedilatildeo contiacutenua II e que dificilmente pode ser separada de questotildees relativas agrave ideologia e ao poder

O proacuteprio Danto natildeo esgota o assunto quando diz que os saacutebios fornecem interpretaccedilotildees capazes de transformar as verdadeiras obras de arte em fragmentos do Espiacuterito Absoluto Na segunda parte de

180

seu ensaio ele divaga sobre a ideacuteia de que os artefatos satildeo incompletos enquanto as obras de arte encarnam ideacuteias autoshysuficientes e completas Citando Heldegger ele observa que um artefato eacute sempre parte de um Zeuggonzes - um sistema de ferramentas um sistema teacutecnico que forma uma totalidade Um martelo natildeo existe por si soacute implica os pregos a serem martelados as madeiras nas quais essa accedilatildeo seraacute executada as serras que daratildeo forma agrave madeira e assim por diante A rede (implicitamente) eacute apenas um componente do Zeuggonzes de caccedila Zande e natildeo tem significado em si mesma Mesmo quando satildeo bem elaborados objetos como uma rede um martelo um trinco de porta decorativo ou outro exemplo qualquer de arte aplicada satildeo incapazes de veicular o tipo de ideacuteia que distingue o objeto artiacutestico pois este sempre se reporta ao universal

seria equivocado afirmar tais coisas [que dizem respeito a verdades universais] a respeito de facas redes ou grampos de cabelo objetos cujo significado se esgota em

sua utilidade Afinal de contas a universalidade diz respeito antes de mais nada a pensamentos e proposiccedilotildees e ningueacutem suporia que objetos como os que acabei de citar expressem um conteuacutedo universal A realidade desses objetos esgotashyse em seu uso jaacute as obras de arte possuem um papel mais elevado colocando-nos em contato com realidades superiores elas satildeo definidas por meio da apreensatildeo de significado Elas devem ser explicadas pelo que expressam Diante de uma obra de arte estamos diante de algo que soacute por si mesmo eacute possiacutevel apreender do mesmo modo que soacute por intermeacutedio de accedilotildees corporais podemos

ter acesso agrave mente de outra pessoa 12

Mas ateacute mesmo Danto eacute forccedilado a fazer uma ressalva dado ser oacutebvio que a maior parte da produccedilatildeo pertencente agrave tradiccedilatildeo artiacutestica ocidental natildeo foi produzida para ser apreciada pelo puacuteblico mas para atender a propoacutesitos instrumentais As pinturas religiosas servem a funccedilotildees lituacutergicas (como peccedilas de altar objetos de devoccedilatildeo) retratos expressam semelhanccedila estaacutetuas dignificam espaccedilos puacuteblicos e soberanos e assim sucessivamente O mesmo eacute vaacutelido de modo ainda mais contundente para os

produtos africanos aos quais Danto atribui o estatuto de obras de arte Nenhum deles foi feito para ser admirado apenas como uma obra de arte independente Esses objetos em vez di sso fazem parte de cerimocircnias puacuteblicas que todavia natildeo podem ser expo rtadas como os objetos o satildeo Em suma natildeo apenas as redes mas tambeacutem objetos como as maacutescaras fazem parte do Zeuggonzes Danto lida com esse problema admitindo que

ateacute haacute pouco tempo [e mesmo agora provavelmente na Aacutefrica] as obras de arte usufruiacuteam de dupla identidade tanto como objetos de uso e praacutexis quanto como receptaacuteculos de espiacuterito e significado A arte africana uma vez exportada perde a primeira funccedilatildeo mas reteacutem a uacuteltima O objetivo natildeo eacute fazer do destacamento espacial um atributo para a definiccedilatildeo de arte porque isso desqualificaria como arte as obras das culturas primitivas Em suas proacuteprias sociedades essas obras tecircm um lugar mas que natildeo eacute o tipo de lugar que elas tecircm no Zeugganzes como ferramentas em um sistema teacutecnico O fundamental eacute que toda a vida praacutetica dessas sociedades poderia seguir adiante mesmo se natildeo houvesse nelas nenhuma obra de arte mesmo admitindo que as obras de arte fazem parte de rituais supostamente dotados de eficaacutecia praacutetica 13

Essa sem duacutevida eacute uma declaraccedilatildeo enigmaacutetica ateacute mesmo para um fil oacutesofo

_---- ----- - ---- - --- ---__-------shy

r---

Danto quer dizer que as obras de arte tecircm significados independentemente de seu uso praacutetico e agrave medida que satildeo artiacutesticos natildeo satildeo uacuteteis mas significativos Todavia esses mesmos objetos satildeo usados em rituais supostamente eficazes Poderiacuteamos subtrair hipoteticamente as obras de arte e a vida praacutet ica seria capaz de co ntinuar porq ue os mesmos o bjetos di sfarccedilados de ferramentas ou artefatos estariam laacute para preencher suas funccedilotildee s extra-artiacutesticas anteriores Esse raciociacutecio eacute ce r tamente casuiacutestico De que maneira as maacutescaras africanas podem participar de um contexto ritual como instrumentos eficazes sem que possuam qualquer significaccedilatildeo interpretativo-cultural o que segundo o proacute prio Danto jaacute seria condiccedilatildeo para qualificaacute-Ias como arte A separaccedilatildeo entre instrumentalidade e espiritualidade eacute portanto impraticaacutevel E se as obras de arte satildeo um tipo de instrumento (o que creio eu natildeo seria questionado pelos escultores africanos) por que natildeo considerar tambeacutem que os instrumentos podem ser um tipo de obra de arte

A partir daiacute podemos inferir que Danto exclui a rede como arte porque ele natildeo pode imaginar que um saacutebio nativo seja capaz de contar-lhe uma estoacuteria suficientemente convincente capaz de persuadi-lo do contraacuterio Ele faz essa suposiccedilatildeo porque uma rede eacute usada para caccedilar e para ele a caccedilada eacute apenas um meio para a obtenccedilatildeo de alimentos logo a rede natildeo passa de uma ferramenta como um ralador de queijo Esse raciociacutenio revela uma total falta de familiaridade com a etnografia africana na qual a maioria das caccediladas eacute descrita como parte de rituais especiacuteficos (iniciaccedilotildees fe stiva is anuais etc) ou pelo menos como um costume altamente ritualizado mas natildeo com certeza como um dispositivo corriqueiro para garantir a sobrevivecircncia Assim caso a rede tivesse sido documentada de fo rma correta na eacutepoca em que foi coletada (c 19 10) eacute mais provaacutevel que ela figurasse ritualisticamente como um atributo do papel do caccedilador no drama co letivo da caccedila ritual pelo menos natildeo se pode excluir essa possibilidade Nesse caso o funcio namento da rede natildeo

TRADUccedilAO bull A LFRED GELL 181

seria muito diferente do funcionamento de qualquer outro item da parafernaacutelia ritual como as maacutescaras por exemplo

Entretanto eacute preciso esclarecer que os saacutebios africanos estatildeo preparados para contar aos antropoacutelogos estoacuterias que revelam natildeo apenas que a caccedila eacute ritual mente importante (como ordaacutelio provaccedilatildeo para os jovens e assim por diante) mas tambeacutem que seus meios as redes ou armadilhas satildeo metaflsicamente significativos Recorrerei agora agrave narrativa de

Soyer l4 a respeito de cantores Fang (Aacutefrica Ocidental) de eacutepicos maacutegicos (mvet) Soyer

estaacute tentando entender a natureza do saber tradicional e no decorrer de suas investigaccedilotildees acaba conhecendo um especialista em canto chamado Ze com o qual trava um longo debate sobre a natureza da sabedoria

182

~ bull UFRJ 2001

Assim como os animais selvagens e como evur (sabedoriapoder maacutegico) mvet (eacutepico) pertence agrave floresta em sua evanescecircncia vocecirc pensa que pode pegaacute-lo mas ele escapa e eacute vocecirc quem eacute capturado Com Ze percebi que de certo modo as complexidades de mvet eram sempre comparadas a armadilhas Em resposta ele me contou a seguinte estoacuteria

Quando eu era jovem conheci bem os Pigmeu Eles vivem na floresta natildeo satildeo pessoas de aldeia como noacutes Fui com frequumlecircncia caccedilar com eles Os Pigmeu tecircm armadilhas para cada tipo de animal e por isso satildeo tatildeo bem sucedidos Eles tecircm uma

armadilha especial para chimpanzeacutes porque os chimpanzeacutes satildeo como os seres humanos quando tecircm algum problema param e pensam sobre isso ao inveacutes de fugirem e gritarem simplesmente Vocecirc natildeo pode pegar um chimpanzeacute com uma armadilha comum porque ele natildeo foge [e assim o noacute natildeo eacute puxado] Entatildeo os Pigmeu inventaram uma armadilha especial com uma linha que prende o braccedilo do chimpanzeacute A linha eacute bem fina e o chimpanzeacute pensa que pode se soltar Ao inveacutes de arrebentaacute-Ia ele puxa suavemente para ver o que aconteceraacute Neste momento um fardo de setas envenenadas cai sobre ele e isso soacute ocorre porque ele natildeo corre como um animal estuacutepido um antiacutelope por exemPlo faria15

A conversa entre Ze e Soyer natildeo eacute uma anedota boba sobre caccedila mas diz respeito fundamentalmente ao problema faustiano relativo ao conhecimento (entre outras coisas) um problema que natildeo eacute menos importante para o povo Fang da floresta tropical de Camarotildees do que para os

professores do MIT

Com base no depoimento desse saacutebio Fang parece inquestionaacutevel que uma armadilha seja uma metaacutefora de profunda significaccedilatildeo uma refraccedilatildeo do Espiacuterito Absoluto se eacute que esse algum dia existiu Todavia tenhamos em mente as criacuteticas feitas por Faris de que os

saacutebios natildeo estariam falando sobre armadilhas utilitaacuterias prosaicas mas sobre armadilhas imaginaacuterias espirituais armadilhas no sentido figurado natildeo no sentido literal O saacutebio Fang natildeo produziu nenhuma armadilha para a investigaccedilatildeo de Boyer Seria possiacutevel irmos aleacutem do texto de Boyer e montarmos uma exposiccedilatildeo de armadilhas de caccedila apresentando-a ao puacuteblico como uma exposiccedilatildeo de obras de arte

Deixemos o saacutebio fora disso por enquanto e nos perguntemos o que as armadilhas de caccedila animal revelam sobre o Espiacuterito Absoluto mesmo sem sua exegese nativa Por sua simples presenccedila as armadilhas de caccedila descontextualizadas podem revelar mais do que o gosto dos homens pelo consumo de carne animal)

De modo a levar o leitor a um julgamento adequado a respeito dessa questatildeo ofereccedilo algumas ilustraccedilotildees tiradas da literatura etnograacuteflca sobre armadilhas Observe a armadilha de setas Lembre-se da afirmaccedilatildeo de Danto de que olhar para uma obra de arte eacute como encontrar uma pessoa encontra-se uma pessoa um ser pensante co-presente reagindo a sua aparecircncia externa e a seu comportamento Do mesmo modo responde-se a uma obra de arte como a um ser co-presente um pensamento encarnado Agora imagine-se encontrando uma armadilha de setas natildeo (ass im espero) como a viacutetima que seraacute capturada mas como o visita nte de uma galeria que encontra uma instalaccedilatildeo feita pelo mais recente artista contemporacircneo Em tais circunstacircncias e sem qualquer contexto adicional o que o visitante poderaacute intuir como sendo o pensamento ou a intenccedilatildeo revelados por essa obra de arte

Creio que natildeo haveria nada errado caso o visitante imaginaacuterio de nossa exibiccedilatildeo visse nessa armadilha de setas uma representaccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo humana no mundo Essa eacute uma representaccedilatildeo que as pessoas de pensamento limitado poderiam censurar e negar se ao menos estivessem conscientes de que a armadilha poderio ser uma representaccedilatildeo Isso porque ela aponta para a existecircncia humana como uma violecircncia

impensada e iminente o que talvez natildeo seja um belo pensamento mas nem por isso pode ser considerado falso ou natildeo artiacutestico Inicialmente uma armadilha como essa comunica uma ausecircncia fatal - a ausecircncia do homem que a idealizou e armou e a ausecircncia do animal que se tornaraacute a viacutetima (o artista indicou essa viacutetima num segundo plano da ilustraccedilatildeo) Devido a essas ausecircncias marcadas a armadilha em questatildeo como todas as outras funciona como um poderoso signo Mesmo natildeo sendo projetada explicitamente para comunicar ou func ionar como signo (na verdade eacute projetada para ficar oculta e passar despercebida) a armadilha entretanto eacute muito mais significat iva do que a maioria dos signos su postos como tais A violecircncia estaacutetica do arco retesado a malevolecircncia congelada dos paus e das cordas satildeo reveladoras por si mesmas a despeito do recurso a representaccedilotildees convencionais Uma vez que esse eacute um signo natildeo oficial ele escapa de toda censura Nele eacute possiacutevel ler a intenccedilatildeo de seu autor e o destino de sua viacutetima Essa armadilha eacute um modelo bem como um instrumento De fato todos os instrumentos satildeo modelos porque eles precisam ser adaptados agraves caracteriacutesticas de seus usuaacuterios e assim tecircm sua marca Uma perna artificial eacute um modelo de uma perna verdadeira que estaacute ausente uma representaccedilatildeo que funciona como uma proacutetese A armadilha de setas eacute especialmente evidente como um modelo de seu criador porque ela tem que substituiacute-lo como uma espeacutecie de caccedilador substituto ela caccedila para seu dono Eacute de fato um autocircmato ou robocirc cujo design condensa o design de seu mentor Ela estaacute equipada com um transdutor sensorial rudimentar (a corda suscetiacutevel ao toque do animal) Esse siste ma nervoso aferente leva informaccedilotildees para o comando central (o mecanismo de disparo uma chave base de todos os dispositivos de processamento de informaccedilotildees) que ativa o sistema eferente liberando a energia armazenada no arco que impulsiona as setas produzindo accedilatildeo a di stacircncia (a morte da viacutetima) Isso natildeo eacute apenas o modelo de uma pessoa como um boneco qualquer mas um modelo eficaz de

T R A o U ccedil Agrave o bull A L F R E o G E L L I 83

ae R E V I 5 T A DO P R o G R A M A DE POacute 5 - G R A D U A ccedil Aacute o E M A R T E 5 V I 5 U A I 5 E B A bull U F R J 2 o o

pessoas que funciona Seria razoaacutevel perguntarmos que escultura seria capaz de mostrar mais sobre a condiccedilatildeo humana revelando apenas nosso delineamento exterior do que esse dispositivo mecacircnico Muito mais sobre a existecircncia humana estaacute presente aqu i do que em qualquer escultura mas como esse natildeo eacute um exemplo oacutebvio de um objeto de arte jamais seraacute olhado sob esse prisma

Aleacutem disso se olharmos para outras armadilhas poderemos ver que cada uma eacute natildeo apenas o modelo de se u criador um eu subsidiaacuterio na forma de um autocircmato mas cada uma eacute tambeacutem um modelo de sua viacutetima Esse modelo pode refletir efetivamente a forma externa da viacutetima como na cocircmica armadilha de girafa que delineia em negativo os contornos da parte inferior do corpo desse animal Ou a armadilha pode de modo mais suti l e abstrato representar paracircmetros do comportamento natural do animal que satildeo subvertidos a fim de aprisionaacute-lo As armadilhas satildeo paroacutedias letais do Umwelt do animal Assim o rato que gosta de se enfiar em espaccedilos estreitos tem uma cavidade atraente preparada para sua uacuteltima e fatal correria na escuridatildeo Eacute claro que a armadilha natildeo eacute em si mesma inteligente ou enganosa O caccedilador eacute que conhece as respostas habituais da viacutetima e eacute capaz de subvertecirc-Ias Mas uma vez montada a armadilha a habilidade e o conhecimento do caccedilador estatildeo efetivamente inscritos nela de forma objetiflcada caso contraacuterio a armadilha natildeo funcionaria Esse conhecimento objetivo sobreviveria ateacute mesmo agrave morte do proacuteprio caccedilador e tambeacutem seria (parcialmente) legiacutevel por outros que soacute tivessem acesso agrave armadilha e natildeo ao conhecimento sobre o animal que estaacute refletido em seu projeto A partir da forma da armadilha poderiam ser deduzidas as disposiccedilotildees da viacutetima Nesse sentido as armadilhas podem ser consideradas como textos so bre o comportamento animal

A armadilha eacute portanto um modelo tanto de seu criador o caccedilador quanto de sua viacutetima a presa animal Poreacutem mais do que isso a armadilha encarna um cenaacuterio que eacute

184

o nexo draacutematico que liga os dois protagonistas e que os alinha no tempo e no espaccedilo Nossas ilustraccedilotildees natildeo podem mostrar isso porque elas apresentam as armadilhas esperando suas viacutetimas ou viacutetimas que jaacute foram capturadas Elas natildeo podem mostrar po reacutem a estrutura temporal da armadilha Essa estrutura tempo ral o potildee o tempo suspenso o tempo vazio da espera agrave cataacutestrofe suacutebita que resulta do fechamento da armadilha Essa estrutura temporal varia com o tipo de armadilha empregado mas natildeo eacute difiacutecil ver no drama da captura um anaacutelogo mecacircnico da sucessatildeo traacutegica de hubris-nemesisshycotostrophe Considere o hipopoacutetamo condenado tranquumlilo com a se nsaccedilatildeo de fal sa seguranccedila decorrente apenas de seu tamanho e majestade Quantos heroacuteis traacutegicos sofreram das mesmas ilusotildees de presunccedilatildeo e atraiacuteram o mesmo destino) Se o chimpanzeacute que cai na armadilha de Boyer for Fausto talvez este hipopoacutetam o seja Otelo O fato de que todos os animais que caem viacutetimas das armadilhas sempre provoquem suas quedas por meio da proacutepria autoconfianccedila complacente demonstra que a caccedila com armadilhas eacute uma forma muito mais poeacutetica e traacutegica do que a simples perseguiccedilatildeo Este uacuteltimo tipo de caccedilada iguala caccediladores e viacutetimas unidos em accedilatildeo e reaccedilatildeo espontacircneas ao passo que a caccedila com armadilhas hierarquiza decisivamente o caccedilador e a viacutetima O capturador eacute Deus ou o destin o o animal capturado eacute o homem em sua encarnaccedilatildeo traacutegica

Parece -me portanto que mesmo sem o contexto etnograacutefico mesmo sem a exegese de qualquer nativo armadilhas animais como essas poderiam ser apresentadas ao puacuteblico como obras de arte Esses dispositivos incorporam ideacuteias veicu lam significados porque uma armadilha por sua proacutepria natureza eacute uma representaccedilatildeo transformada de seu fabricante o caccedilador e da presa animal sua viacutetima e de sua relaccedilatildeo muacutetua que nos povos caccediladores eacute fundamentalmente socia l e complexa Isso significa que essas armadilhas comunicam a noccedilatildeo de um nexo de intencional idades entre os caccediladores e as presas animais mediante formas e mecanismos materiais

--- -- ---

Creio que essa evocaccedilatildeo de intencionalidades complexas eacute na realidade o que serve para defin ir as obras de arte e que adequadamente emolduradas as armadilhas para animais poderiam evocar intuiccedilotildees complexas a respeito do ser da alteridade do relacionamento O impacto dessas armadilhas agora apresentas como obras de arte pode no entanto ser maior caso elas sejam exibidas ao lado de obras de artes ocidentais (das quais eacute faacutecil achar numerosos exemplos) que ocupem pelo menos aparentemente o mesmo territoacuterio sem ioloacutegico

O trabalho de Damien Hirst um dos jovens artistas britacircnicos mais citados pela miacutedia parece ser um desses casos De fato foi a notoacuteria exposiccedilatildeo de Hirst exibida na Tate Gallery em 1992 que me induziu pela primeira vez a pensar sobre as armadilhas como objetos artiacutesticos Considere o tubaratildeo de Hirst no tanque de formol Essa obra cativa devido ao contraste profundo entre o pei xe gigantesco ultrabioloacutegico e sua gaiola ou armadilha de vidro asseacuteptica (recordando Eichmann em seu julgamento preso numa caixa de vidro) cujas paredes refletoras projetam imagens virtuais da igualmente asseacuteptica galeria dentro do domiacutenio bioloacutegico do tubaratildeo Um eco distante das metades superior (bioloacutegica) e inferior (mecacircnica) do Large Glass de Duchamp - sem duacutevida - mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre nosso poder de imobilizar forccedilas elementares que no entanto parecem sempre potencialmente prontas a escapar Ateacute mesmo o tubaratildeo de Hirst tatildeo morto quanto possiacutevel continua residualmente vivo observando e pensando ou pelo menos parece estar porque manteacutem seus olhos abertos e fi xos em noacutes Um dia ele escaparaacute

Seria apropriado colocar o tubaratildeo de Hirst ao lado da pintura em casca de aacutervore extraiacuteda do livro Ancestral Connections de Morphy l6 que mostra um tubaratildeo capturado quase idecircntico visualmente agrave instalaccedilatildeo exibida na Tate Gallery Os Yolnngu produzem esse t ipo de pintura durante rituais funeraacuterios e ela se refere agrave jornada rio acima de um tubaratildeo ancestral miacutetico que foi capturado

temporariamente em seu trajeto mas escapou Essa pintura refere-se agraves afiliaccedilotildees do clatilde dos mortos e metaforiza a viagem do espiacuterito agrave terra ancestral e a necessidade de transferir- lhe forccedilas (por meio de cerimocircn ias funeraacute rias) de modo que ele como o tubaratildeo ancestral possa escapar das armadilhas que ameaccedilam sua trajetoacuteria O episoacutedio do tubaratildeo sendo capturado e escapando eacute encenado pelos participantes Essas ideacuteias escatoloacutegicas satildeo eacute claro especiacuteficas da cultura Yolnngu mas eu me arriscaria a sugerir que a semelhanccedila entre o trabalho de Hirst e a obra Yolnngu natildeo eacute apenas superficiaJ mas insinua uma metaacutefora vaacutelida em termos interculturais embora sujeita a leituras diferenciadas

Enquanto isso para reforccedilar a ideacuteia de que a obra de Hirst diz respeito de modo profundo agraves armadilhas e agrave rede de intencio nalidades complexas que a captura em armadilhas estabelece descreverei outro trabalho de Hirst presente na mesma exibiccedilatildeo na qual uma armadilha em funcionamento foi efetivamente incorporada Refiro-me agrave instalaccedilatildeo que consiste em uma cabeccedila de ovelha dentro de uma caixa de vidro a cabeccedila deteriora-se e cria larvas que se transformam em moscas que depois se tornam viacuteti mas de uma armadilha para

TRAD UCcedilAacuteO middot A LFRED G ELL 185

ae R E V I TA DO P R o G R A M A D E POacute bull G R A o U A ccedil A o

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz vio leta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais e las morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antro poacutelogos deve riacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacuted igo mito loacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se ide ntificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal mo rto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus pe rverso que colocou este mundo incoerente em movim ento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hi rst natildeo seria o uacutenico artista ocidenta l contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceitual Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posi cionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalh o natildeo eacute tanto o tema da vio lecirc ncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetrado res justamente o tema que ide ntifiquei anteriorme nte em relaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relacio na-se diretamente ao tipo de armadilha serial para ho mens (esp ingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de pro priedades em tempos passados

Exemplos adicionai s de obras de arte poacutesshyDuchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 19 I7) po deriam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hi st satildeo exemplos do mesmo tip o de co isa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

E M A R T E v I U A I E 8 A bull U F R J 2 o0 1

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo supo nho que para que uma armadi lha afri cana o u uma armadilha de qualquer o utra parte exoacutetica do mundo possa funci o nar como uma o bra de arte seja realmente necessaacuterio o u desejaacuteve l que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o signifi cado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armad ilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento IB Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

186

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a arm ad ilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmenteshyartiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinh a Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecircshyse imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bongl Antes de saber o que aconteceu tran sforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido como qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as tran substanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hil-st discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)Iarvamoscamosca (morta) - poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tam pouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode fun cionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier2o Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal

reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tam beacutem em outros lugares

~ ---------- --------------------

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torn a-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente lo ngo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuter ios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas vo ltada natildeo bastaria para retiraacute-Ias do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seri a evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - eacute que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente agraves enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e co nteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

T R A D U ccedil Acirc o bull A L F R E D G E L L 187

--------------------------- -------------

ae REVIST A DO P ROGRAMA DE PO S -GRADUACcedilAtildeO

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porq ue ela proacutepria eacute alongada (eefshyongaced) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricad a eacute certame nte na forma de armad il has como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo imagens dos antepassado s no sentido de que elas contecircm e ncarnam e comu nicam o poder ancestral Aleacutem disso elas to rnam possiacuteve l a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacute m sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fanta siado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor O s Anga ao contraacuterio tecircm imagens de poder ancestral que de fato trabalham de fato alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo real iacutestica de form as (superficiais)

Con cl usatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armad il has exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio shya disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte) Espero que eu

EM A RTES VISUAIS EB A bull UFRJ 2001

ten ha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teo ria institucional da arte liberaria imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservandoshylhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente dife rentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses objetos tornar-se-iam artiacutesticos Sei-ia essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacute logo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa tran sformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute co nstituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como arte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm po uco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arte para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como ta l numa cidade provinciana muito sono lenta que se vanglorie (como a maioria de las) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad~ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas po r que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arte caso produzisse coisas genericamente semel hantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21 ) - res ide na intluecircn cia pro longada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de o bra de arte pela antropologia da arte23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte co ntemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode se r visto em galerias de artesanat o provincianas Deve-se acei tar a premissa em essecirc ncia libe rtadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentai s jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabri cado pelo homem pode ser ve iculado como o bra de arte Eacute isso que a teo ria instituciona l da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de t eoria da arte contemporacircnea desde 19 I7 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urin o l (ou Fontaine) Fo i no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Dami en Hi rst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Ducham p pouco poderiacuteamos esperar de la nesta fase ta rdia Na verdade as co isas natildeo satildeo middotbem assim Os ready-made de Duchamp foram cuidadosamente selecio nados e firmeme nte integrados tematicamente a do is de seus principais projetos (o Large Gass de 19 I 5shy23 e a Waterfal de 1944-66) O aspecto mais inte ressante a respeito dos ready-made de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Ducham p para selecio naacuteshylos (reve ladas ao lo ngo de toda uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceitual aparenteme nte arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos e les funci onam se eacute que fun cionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e hi stoacute ricas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maio r ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquant o veiacutecu los de ideacute ias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de reali za r et c Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer o bjeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencional idades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de recon struir plename nte 2~

Assim eacute preci so mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simp les exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvid o e disseminado Desse ponto de vista a t eoria puramente institucional da arte eacute menos do que sati sfatoacuteria porque nada tem a dizel- sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuai s ao s quais o puacuteblico ed ucado de ga leria eacute sensiacuteve l Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da inte rpretabil idad e para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teor ia pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre o bra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos funcionais e obras de arte significat ivas Esse eacute um legado dos fil oacutesofos poacutes-iluministas co mo Hege l que obscurece a compreensatildeo de qual quer mundo artiacutestico distinto daqu e le que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar sign ificado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas re ligiosas e o utras Essas funccedil otildees satildeo praacuteticas nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e da man ei ra como os seres humanos podem interferir em seu funci onamento de modo a t irar o melhor proveito poss iacuteve l dele O bras

TR ADUCcedilAo A L F RED GE LL 189

ae R E V 1ST A D D P R D G R A M A DE POacuteS - G R A o U A ccedil A o E M A R T E S V I SUA I S E B A bull U F R J bull 2 o o I

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames2s A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucional e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bemshysucedida candidatura a obra de arte da rede de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencional idades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teorias interpretativa e institucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

190

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26

demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-Ia como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funcioacutena eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

Quando morreu em 1997Alfred Gell era Professor de Antropologia na London SchooJ of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a resp eito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Jmag es Totooing in Poynesia (1993) e Art ond Agency An Anhropologicol Theory ( 1998)

Traduccedilatildeo Marcia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

Notas

I Ver Dickie George Are and Aesthetics Ithaca Nova York Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circfe a Theory ofArt New York Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique of Judgements ofTaste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris james ArtlArtifact on the Museum and Anthropology Currene AnUacutelropology 29(5) 1988775-9

4 Faris op cit776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifacc African Art in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestei Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of Philosophy Journal of Philosophy 61 1964 57 1-84

7 Dickie 1974 op cir

8 Ver Danto Arthur The Tran sfJguration o the Commonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cir

9 Danto 1981 op cir

10 Faris op cir 778

I I Clifford james The Predicament of Culcure Cambridge MA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit31

13 Danto 1988 op cir 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agrave Penseacutee introduction agrave Ianalyse des eacutepopeacutees Fang Paris Societeacute dEthnologie 1988

15 Boyer op cie 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art ando an Aboriginal Syseem o Knowledge Chicago Chicago University Pness 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MD Rowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the Renais sance Oxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report ofthe American Bureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-Anga Material and Symbolic Aspects ofTrapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

--_ _--shy

21 Weiner J (ed) Aesthetics is a Cross-cultural Category Graup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic ExperienceAn Anthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and the Enchantment ofTechnology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderes cognitivos

25 Gell op cie 60

26 Thomas Nicholas Enwngled Objects Cambridge MA Harvard University Press 1991

TRADUccedilAO AlFRED GEll 191

Page 3: A Rede de Vogel- Armadilhas Como Obras de Arte

ae R E Vi H A DO PROGRAMA DE POS-G R ADUACcedilAo EM ARTES VISUAIS EBA bull UFRJ 200 1

Finalmente existe uma versatildeo mais radical da teoria interpretativa que fornece uma terceira possiacutevel resposta para a pergunta o que eacute uma obra de arte) Conhecida como teo ria in stitucional afirma como a interpretativa que natildeo haacute no objeto artiacutesti co enquanto veiacuteculo materi al um a caracteriacutestica capaz de qualifi caacute-lo definitivamente como sendo ou natildeo uma obra de arte Isso eacute vaacutelido a despeito do fato de o objeto estar ou natildeo subordi nado ao mundo artiacutest ico ou seja a uma coletividade interessada em fazer part il har e debater Julgamentos criacuteticos desse tipo

A diferenccedila entre as teorias interpretativa e in st ituci o nal eacute que a institucio nal natildeo press upotildee a coerecircncia histoacuteri ca das inte l pretaccedilotildees Uma obra pode estar a pl-inciacutepio fora do circuito oficial da hi st oacuteria da arte mas se o mundo artiacutestico coopt a essa obra e a faz circular como arte entatildeo ela eacute arte porque satildeo os representantes do mundo artiacutestico ou seja artistas criacuteticos comerciantes e colecionadores que tecircm o poder de decidir essas questotildees natildeo a histoacuteria ponto de vista proposto pelo filoacutesofo americano George Dickie 1 Essa teoria aparentemente natildeo tem o apoio da maior parte dos fil oacutesofos contemporacircneos a Dickie talvez por ser mais soc io loacutegica do que efetivamente fil osoacutefi ca - uma teoria sobre o que (de fato) eacute co nsiderado arte e natildeo sobre o que (racio nalmente ) deve ria ser considerado como tal Todavia o que to rna a teo ria de Dickie questio naacutevel do ponto de vista da esteacutetica t rad iciona l eacute precisamente o que a torna at raente para os antropoacutelogos jaacute que ele ultrapassa a esteacutetica em nome de uma anaacutelise socioloacutegica que caracteriza em sentido amplo essa disciplina2 Contudo a re levacircncia da teo ria institucio nal para o estudo socio loacutegico do mundo artiacutestico deve ser avaliada independentemente de sua contribuiccedilatildeo para a esteacutetica fil osoacutefica

As questotildees levantadas po r essas teorias foram colocadas em evidecircncia pela exposiccedilatildeo intitulada Artel Artefato mo ntada no Center for African Art (Nova York 1988) sob a curado ria da antropoacuteloga Susan

176

Vogel Natildeo vi essa exposiccedilatildeo que foi poreacutem detalhadamente descrita por Farisl em Current Anthropology acrescentando tambeacutem alguns comentaacuterios criacutet icos que pretendo retomar ad iante O primeiro espaccedilo da exposiccedilatildeo (com paredes brancas e I-efletores) foi intitulado Galeria de Arte Contemporacircnea e seu foco principal era um objeto impressionante uma rede de caccedila Zande (Aacutefrica) firmeme nte enrolada e pronta para o t ranspo rte Provavelmente Susan Voge l exibiu-a dessa manei ra porque pensou que o puacuteblico fre quumlentador de galerias de arte em Nova York seria capaz de associar de maneira espontacircnea aquele artefato com um certo conjunto de objetos exibidos em outras ga lerias ou apresentados em publi caccedilotildees especializadas Nesse caso especiacutefico a anal ogia mais imediata seria com as escu lturas de barbante amarrado de Jackie Windso r Faris4

menciona as obras de Nancy Graves e Eve Hesse como outros parale los possiacuteveis A escolha desse objeto especiacutefico foi um golpe de mestre em termos de curadoria pelo qual Voge l merece muitos e logios Aleacutem do mais a exposiccedilatildeo gerou um e nsaio igualmente magistral do criacutetico e fil oacutesofo Arthur Dant O5 publicado no cataacutelogo

A intenccedilatildeo de Voge l era quebrar o elo entre a arte africana e o primitivismo da arte moderna (Les Demoiselles dAvignon de Picasso as pseudo maacutescaras africanas de Modigliani e Brancusi etc) e sugerir diferentemente que os objetos africanos podem ser analisados em uma perspectiva mais ampla evocando o esti lo artiacutestico dominante na deacutecada de 1980 em Nova York do qual Jackie W indsor eacute um dos representantes Danto teve razotildees para resistir a essa mudanccedila visto que natildeo estava persuadido de que a rede de caccedila fo sse o u pudesse vi r a ser arte Em termos institucionais a armad ilha apresentada jaacute havia de fato se tornado arte dado ter sido como tal exibida po r Vogel e conseq uumlentemente assim apreciada por parte significativa do puacuteblico Caso Dickie e natildeo Danto t ivesse escrito o ensaio do cataacutelogo eu me arriscaria a dizer que a rede teria sido celebrada co mo um bom

exemplo do modo pelo qual o mundo artiacutestico cria suas obras de arte ao classificaacute-Ias como ta l Danto poreacutem seguiu outra direccedilatildeo e dedicou seu ensaio a provar que as afinidades da rede com o conceito contemporacircneo de arte seriam meramente superficiais

Meu objetivo neste artigo eacute duplo Em primeiro lugar discutir a distinccedilatildeo proposta por Danto entre arte e artefato Em segundo lugal~ pretendo montar uma pequena exposiccedilatildeo (infelizmente composta apenas por textos e ilustraccedilotildees) de objetos que Danto consideraria artefatos mas que em minha opiniatildeo satildeo fortes candidatos a circular como obras de arte mesmo que essa natildeo tenha sido a intenccedilatildeo original de seus criadores que provavelmente desconheciam esse conceito Se eu conseguir persuadir meu puacuteblico e se a teoria institucional for verdadeira ou seja se arte for tudo aquilo que natildeo apenas eu mas outras pessoas que pensam do mesmo modo classificamos como tal entatildeo uma nova categoria de arte estaacute prestes a surgir Ou natildeo se considerarmos como paracircmetro os argumentos de Danto que retomarei agora

Danto eacute responsaacutevel por ambas as teorias da arte a interpretativa e a institucional e foi ele quem primeiro introduziu a expressatildeo mundo artiacutestico na esteacutetica filosoacutefica 6 Mas uma vez que Dickie7

desenvolveu as ideacuteias de Danto na direccedilatildeo socioloacutegica jaacute apontada a definiccedilatildeo de obra de arte tornou-se um problema de consenso social em meio ao puacuteblico de arte Danto poreacutem tende para uma visatildeo mais idealista a respeito da arte fazendo mesmo muitas referecircncias a Hegel em seus trabalhos Ele afirma que objetos de arte satildeo assim considerados em funccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo historicamente fundamentada Danto escreveu dois importantes estudos que foram muito bem aceitos no campo da

bull

filosofia da arte modernaB Concordo com a maior parte de sua produccedilatildeo mas devo dizer que os pontos mais fracos de sua versatildeo da teoria interpretativa ficam especia lmente evidentes quando colocados em um contexto antropol oacutegico e intercultural em seu ensaio para a exposiccedilatildeo ArteArtefato

De acordo com Danto natildeo existem caracteriacutesticas intriacutensecas a qualquer objeto que possam por si soacute caracterizaacute-lo como artiacutestico A diferenccedila objetiva entre uma embalagem real de sabatildeo Brillo e a falsa embalagem Briflo de Warhol natildeo eacute o que determina que apenas a uacutelti ma seja uma obra de arte Mesmo objetos semelhantes podem ser diferenciados de modo que um seja considerado obra de arte e o outro natildeo Isso foi exaustivamente discutido por Danto9 que entretanto estabelece uma grande diferenccedila entre o tipo de interpretaccedilatildeo contexto significaccedilatildeo simboacutelica etc que um objeto deve ter para que seja uma obra de arte em comparaccedilatildeo com as caracteriacutesticas associadas a uma obra que natildeo eacute artiacutestica ou seja um mero artefato A interpretaccedilatildeo deve estar relacionada com uma tradiccedilatildeo de fazer artiacutestico que internaliza reflete e se desenvolve a partir de sua proacutepria histoacuteria como a arte ocidental tem feito desde Vasari pelo menos Segundo ele (e estou totalmente convencido disso) a moderna arte conceitual corresponde agrave subordinaccedilatildeo da fabricaccedilatildeo da imagem agrave reflexatildeo histoacuterica em outras palavras eacute a

T R A D U ccedil Acirc o bull A L F R E D G E L L J77

ae REVISTA DO PROGRAMA DE POS-GRADUACcedilA O EM ARTES VISUAIS EBA bull UFRJmiddot 2001

resultante final do fazer artiacutest ico da fdosofia da histoacute ria e da criacutetica de arte tomados conjuntamente Todavia o conceito-chave aqui eacute o de tradiccedilatildeo progressiva cumulativa (Geist esp iacuterito etc)

O que Danto faz quando o puacuteblico de Nova York se entusiasma com uma rede de caccedila como se ela fosse a mais recente produccedilatildeo do Geist na pessoa de Jackie Windsor ou de seu grupo A arte contemporacircnea eacute capaz de digerir desse modo objetos externos A ausecircncia de um autor identificaacutevel o u de uma intenccedilatildeo artiacutestica reconheciacutevel eacute um obstaacutecu lo Danto natildeo pode deixar de assumir uma posiccedilatildeo criacutetica em relaccedilatildeo a isso Jaacute que intenccedilatildeo signi fi cado e fundamentaccedilatildeo em uma tradiccedilatildeo diferenciada e auto-refexiva satildeo fundamentais para sua compreensatildeo da arte contemporacircnea e mesmo de toda arte ocidental posterior ao Renascimento O caccedilador Zande que fez ou encomendou a rede natildeo participa do mesmo quadro histoacuterico de referecircncia para o qual o trabalho semelhante de Windsor estaacute apontando de modo que a analogia entre eles eacute enganosa Nem mesmo eacute possiacutevel co nsiderar alternativamente que o artista nesse caso eacute Vogel (Danto sequer considera essa possibilidade) que estaacute apresentando a rede como um reody-mode de acordo com a mesma tradiccedilatildeo dos protoacutetipos de Duchamp como a paacute o cabide e o urinol Mesmo porque Vogel natildeo estaacute se apresentando como um segundo Duchamp mas como uma curadora de museu que oferece para admiraccedilatildeo do puacuteblico um objeto feito na Aacutefrica por um artista anocircnimo que natildeo eacute certamente ela proacutepria

O dilema de Danto diz respeito essencialmente ao fato de que sua teoria interpretativa da arte eacute construiacuteda a partir do referencial hist oacuterico impliacutecito na arte ocidental segundo um modelo hege liano Caso ele diga que nenhuma produccedilatildeo externa ao fluxo histoacuterico da arte ocidental (que eacute sem duacutevida muito amplo) pode ser considerada co mo arte estaacute sujeito a acusaccedilotildees de eurocentrismo Caso ele admita poreacutem que objetos exoacuteticos que natildeo participaram do Geist da arte oc idental

178

podem se r mesmo assim obras de arte por que excluir a rede E caso a rede seja inc lu iacuteda o que sobra do valor explicativo da interpretaccedilatildeo historicamente fundamentada e da distinccedilatildeo entre arte e artefato) O filoacutesofo foi efetivamente enlaccedilado pela rede de Vogel que assim termino u por cumprir sua funccedilatildeo embora natildeo do modo convencional

Soacute existe uma saiacuteda para o idealista nessas circ unstacircncias e le deve assumir que existem afinidades interpretativas o u simboacutelicas subjacentes agraves verdadeiras obras de arte produzidas em diferentes tradiccedilotildees culturais A rede Zande seraacute excluiacuteda nos termos Zande porque nessa cultura como possivelmente em todas as outras os objetos artiacutesticos devem ter um tipo de significaccedilatildeo simboacutelica que uma mera rede de caccedila natildeo pode ter Sendo (supostamente) excluiacuteda pelos proacuteprios Zande a rede natildeo poderia ser incluiacuteda pelos nova-iorquinos porque isso significaria contradizer os princiacutep ios de Danto de que sem interpretaccedilatildeo natildeo haacute arte Depois de concordar com a ideacuteia de que nem toda embalagem de sabatildeo Brillo mas apenas a que foi criada por Warhol eacute arte Danto natildeo pode deixar de dizer que essa rede nos termos Zande natildeo equivale a uma obra de Warho l pois eacute apenas uma velha rede como outra qualquer

Mas como estabelecer paracircmetros para a afinidade entre obras de arte africanas (devidamente qua lifi cadas) e obras de arte ocidentais e para a natildeo-afinidade entre a rede Zande e ambas as artes Danto argumenta que a grande escultura africana foi reconhecida como tal e colocada no mesmo niacutevel de ponatello Thorwa ldsen etc por meio de um processo de descoberta empreendido por Pi casso Brancusi Roger Fry e seus contemporacircneos comparaacutevel agraves descobertas cientiacuteficas Essa grandeza jaacute estaria laacute mas teria sido ofuscada por juiacutezos preconceituosos associados ao colonialismo Esse tipo de arte africana foi produzido individualmente por escultores altamente talentosos com intenccedilotildees artiacutesticas (esteacuteticas) especiacuteficas que eles imprimiram em seus trabalhos Soacute posteriormente essas

obras se tornaram acessiacuteveis ao puacuteblico natildeo africano graccedilas aos esforccedilos de alguns simpatizantes ocidentais Entretanto essa abordagem a respeito da incorporaccedilatildeo da arte africana nos moldes de Danto traz consigo um certo risco de esteticismo shymas natildeo eacute justamente Danto quem nos diz que o que faz da arte arte natildeo satildeo apenas as caracteriacutesticas exteriores (esteacuteticas) que ela possa ter Sendo assim Danto eacute obrigado a mudar sua taacutetica e considerar a possibilidade de existecircncia de uma arte africana que natildeo seria obviamente diferente sob qualquer aspecto externo ou visiacutevel da natildeo-arte africana uma afirmaccedilatildeo que natildeo seria aplicaacutevel aos exemplos famosos da arte escultoacuterica cuja qualificaccedilatildeo enquanto arte nunca foi colocada em duacutevida pelo menos por Danto

Danto eacute um filoacutesofo e sendo assim natildeo escolheu o caminho mais oacutebvio que consistiria em retomar tudo que jaacute foi escrito sobre cultura material africana Ao contraacuterio tentou obedecer a seu imperativo disciplinar entregando-se a um Gedonkexperiment no qual ele parece ser particularmente habilidoso Danto imagina a existecircncia de duas tribos africanas proacuteximas mas historicamente diferenciadas que ele denomina Pot People (povo ceramista) e Bosket Folk (povo cesteiro) Aparentemente a produccedilatildeo material dessas duas tribos que inclui potes e cestos eacute quase idecircntica mas o povo ceramista venera seus oleiros que satildeo tidos como sacerdotes e saacutebios e considera a olaria uma atividade sagrada que evoca a cosmogecircnese jaacute que Deus foi um oleiro que moldou o mundo a partir do barro Esse povo tambeacutem faz cestos para fins utilitaacuterios mas essa natildeo eacute uma atividade considerada nobre Do o utro lado da montanha em meio ao povo cesteiro as coisas satildeo diferentes jaacute que Deus era um cesteiro e fez o mundo a partir de fibras vegetais e os potes de ceracircmica produzidos satildeo considerados meramente utilitaacuterios Nessa tribo os sacerdotes satildeo os cesteiros e os oleiros satildeo apenas especialistas

teacutecnicos artesatildeos

Danto sustenta que mesmo que soacute um exame minucioso permita aos museoacutelogos

distinguir os potes e os cestos produzidos em ambas as tribos a diferenccedila espiritual envolvida na elaboraccedilatildeo dos potes sagrados entre o povo ceramista eacute suficiente para garantir-lhes o status de obra de arte em oposiccedilatildeo aos potes utilitaacuterios do povo cesteiro (e vice-versa em relaccedilatildeo aos cestos) Os potes do povo ceramista e os cestos do povo cesteiro estatildeo ambos na prestigiada coleccedilatildeo que estaacute no Kunsthistorisches Museum Jaacute os cestos do povo ceramista e os potes do povo cesteiro pertencem a uma coleccedilatildeo um pouco diferente que estaacute no Naturhistorisches Museum As obras que pertencem ao Museu de Histoacuteria da Arte emanam do Espiacuterito Absoluto satildeo veiacuteculos de ideacuteias completas que se o riginam da condiccedilatildeo humana em toda sua densidade e fatalidade histoacuterica e consequumlentemente a iluminam Jaacute os objetos que estatildeo no Museu de Histoacuteria Natural satildeo meios para fins utilitaacuterios instrumentos que ajudam os seres humanos em sua vida material - eles fazem parte da prosa do mundo segundo uma expressatildeo hegeliana

Danto em consequumlecircncia exclui a rede de caccedila mera manifestaccedilatildeo prosaica no sentido hegeliano e esboccedila de modo experimental uma distinccedilatildeo particularmente marcada entre objetos de arte e artefatos Entretanto como em todas as experiecircncias desse tipo eacute possiacutevel questionar se essa di stinccedilatildeo corresponde agrave realidade Creio que a antropologia deveria pronunciar-se a esse respeito jaacute que os experimentos de Danto evocam explicitamente a etnografia como protoacutetipo de suas ficccedilotildees expositivas Em seu comentaacuterio sob re a exposiccedilatildeo Faris afirma que o problema estaacute no fato de que a antropologia tende de modo geral a ser condescendente com experimentaccedilotildees teoacutericas como a de Danto Ele acusa enfaticamente o ensaio escrito por Danto de promover uma perspectiva orto doxa viciada tanto em relaccedilatildeo agrave histoacuteria da arte quanto em relaccedilatildeo agrave antropologia Modernistas como Danto estariam

paralisados pela aceitaccedilatildeo de todas as tiranias culturais e pela consequumlente cegueira em relaccedilatildeo agraves tiranias especiacuteficas [de modo que] eles incorrem com

T R A o U ccedil Aacute o bull A l f R E o G E l l I 79

ae REVISTA DO PROGRAMA DE P6S-GRADUACcedilAO EM ARTES VISUAIS EBA bull UFRJ 2001

frequumlecircncia no sentimento humanista mais banal e no entusiasmo inuacutetil em relaccedilatildeo ao poder emotivo e expressivo_o Eles o fazem em grande medida reconhecendo o empreendimento antropoloacutegico como por exemplo a ideacuteia de que os objetos africanos natildeo podem ser inteiramente compreendidos sem a referecircncia aos nativos africanos no contexto cultural especiacutefico que os produziu Danto tem que concordar que natildeo se deve atribuir ao contexto um valor axiomaacutetico - embora seja inegaacutevel sua relaccedilatildeo com o significado - particularmente quando tanto contexto quanto significado

foram indicados pela Antropologia 10

Faris argumenta ainda que de modo geral esse tipo de liberalismo recebe as produccedilotildees do Outro etnograacuteflco nos termos do Outro mas soacute na medida em que essa produccedilatildeo seja aceitaacutevel ou coerente com um dado conceito de Espiacuterito Absoluto

A etnografia imaginaacuteria de Danto a respeito da cosmogenia dos potes e dos cestos revela com precisatildeo o tipo de narrativa antropoloacutegica que ele considera conveniente e de fato tanto os antropoacutelogos quanto seus informantes nunca hesitaram em produzir relatos desse tipo O ponto foucaultiano de Farris diz respeito ao fato de que o empreendimento antropoloacutegico como um todo tende a buscar esse tipo de saacutebio ou especialista nativo ao qual Danto atribui o poder de distinguir entre arte e natildeo-arte Isso ocorre porque em uacuteltima instacircncia noacutes antropoacutelogos queremos tachar esses objetos e atribuir-lhes significados fixos e controlaacuteveis Concordo com Faris quanto ao fato de que os saacutebios (fictiacutecios) de Danto satildeo projeccedilotildees palpaacuteveis de autoridade e como tal merecem ser desmascarados Mas infelizmente ele acaba natildeo discutindo a distinccedilatildeo objeto de arte versus artefato exceto para indicar que essa oposiccedilatildeo estaacute sujeita a uma redeflniccedilatildeo contiacutenua II e que dificilmente pode ser separada de questotildees relativas agrave ideologia e ao poder

O proacuteprio Danto natildeo esgota o assunto quando diz que os saacutebios fornecem interpretaccedilotildees capazes de transformar as verdadeiras obras de arte em fragmentos do Espiacuterito Absoluto Na segunda parte de

180

seu ensaio ele divaga sobre a ideacuteia de que os artefatos satildeo incompletos enquanto as obras de arte encarnam ideacuteias autoshysuficientes e completas Citando Heldegger ele observa que um artefato eacute sempre parte de um Zeuggonzes - um sistema de ferramentas um sistema teacutecnico que forma uma totalidade Um martelo natildeo existe por si soacute implica os pregos a serem martelados as madeiras nas quais essa accedilatildeo seraacute executada as serras que daratildeo forma agrave madeira e assim por diante A rede (implicitamente) eacute apenas um componente do Zeuggonzes de caccedila Zande e natildeo tem significado em si mesma Mesmo quando satildeo bem elaborados objetos como uma rede um martelo um trinco de porta decorativo ou outro exemplo qualquer de arte aplicada satildeo incapazes de veicular o tipo de ideacuteia que distingue o objeto artiacutestico pois este sempre se reporta ao universal

seria equivocado afirmar tais coisas [que dizem respeito a verdades universais] a respeito de facas redes ou grampos de cabelo objetos cujo significado se esgota em

sua utilidade Afinal de contas a universalidade diz respeito antes de mais nada a pensamentos e proposiccedilotildees e ningueacutem suporia que objetos como os que acabei de citar expressem um conteuacutedo universal A realidade desses objetos esgotashyse em seu uso jaacute as obras de arte possuem um papel mais elevado colocando-nos em contato com realidades superiores elas satildeo definidas por meio da apreensatildeo de significado Elas devem ser explicadas pelo que expressam Diante de uma obra de arte estamos diante de algo que soacute por si mesmo eacute possiacutevel apreender do mesmo modo que soacute por intermeacutedio de accedilotildees corporais podemos

ter acesso agrave mente de outra pessoa 12

Mas ateacute mesmo Danto eacute forccedilado a fazer uma ressalva dado ser oacutebvio que a maior parte da produccedilatildeo pertencente agrave tradiccedilatildeo artiacutestica ocidental natildeo foi produzida para ser apreciada pelo puacuteblico mas para atender a propoacutesitos instrumentais As pinturas religiosas servem a funccedilotildees lituacutergicas (como peccedilas de altar objetos de devoccedilatildeo) retratos expressam semelhanccedila estaacutetuas dignificam espaccedilos puacuteblicos e soberanos e assim sucessivamente O mesmo eacute vaacutelido de modo ainda mais contundente para os

produtos africanos aos quais Danto atribui o estatuto de obras de arte Nenhum deles foi feito para ser admirado apenas como uma obra de arte independente Esses objetos em vez di sso fazem parte de cerimocircnias puacuteblicas que todavia natildeo podem ser expo rtadas como os objetos o satildeo Em suma natildeo apenas as redes mas tambeacutem objetos como as maacutescaras fazem parte do Zeuggonzes Danto lida com esse problema admitindo que

ateacute haacute pouco tempo [e mesmo agora provavelmente na Aacutefrica] as obras de arte usufruiacuteam de dupla identidade tanto como objetos de uso e praacutexis quanto como receptaacuteculos de espiacuterito e significado A arte africana uma vez exportada perde a primeira funccedilatildeo mas reteacutem a uacuteltima O objetivo natildeo eacute fazer do destacamento espacial um atributo para a definiccedilatildeo de arte porque isso desqualificaria como arte as obras das culturas primitivas Em suas proacuteprias sociedades essas obras tecircm um lugar mas que natildeo eacute o tipo de lugar que elas tecircm no Zeugganzes como ferramentas em um sistema teacutecnico O fundamental eacute que toda a vida praacutetica dessas sociedades poderia seguir adiante mesmo se natildeo houvesse nelas nenhuma obra de arte mesmo admitindo que as obras de arte fazem parte de rituais supostamente dotados de eficaacutecia praacutetica 13

Essa sem duacutevida eacute uma declaraccedilatildeo enigmaacutetica ateacute mesmo para um fil oacutesofo

_---- ----- - ---- - --- ---__-------shy

r---

Danto quer dizer que as obras de arte tecircm significados independentemente de seu uso praacutetico e agrave medida que satildeo artiacutesticos natildeo satildeo uacuteteis mas significativos Todavia esses mesmos objetos satildeo usados em rituais supostamente eficazes Poderiacuteamos subtrair hipoteticamente as obras de arte e a vida praacutet ica seria capaz de co ntinuar porq ue os mesmos o bjetos di sfarccedilados de ferramentas ou artefatos estariam laacute para preencher suas funccedilotildee s extra-artiacutesticas anteriores Esse raciociacutecio eacute ce r tamente casuiacutestico De que maneira as maacutescaras africanas podem participar de um contexto ritual como instrumentos eficazes sem que possuam qualquer significaccedilatildeo interpretativo-cultural o que segundo o proacute prio Danto jaacute seria condiccedilatildeo para qualificaacute-Ias como arte A separaccedilatildeo entre instrumentalidade e espiritualidade eacute portanto impraticaacutevel E se as obras de arte satildeo um tipo de instrumento (o que creio eu natildeo seria questionado pelos escultores africanos) por que natildeo considerar tambeacutem que os instrumentos podem ser um tipo de obra de arte

A partir daiacute podemos inferir que Danto exclui a rede como arte porque ele natildeo pode imaginar que um saacutebio nativo seja capaz de contar-lhe uma estoacuteria suficientemente convincente capaz de persuadi-lo do contraacuterio Ele faz essa suposiccedilatildeo porque uma rede eacute usada para caccedilar e para ele a caccedilada eacute apenas um meio para a obtenccedilatildeo de alimentos logo a rede natildeo passa de uma ferramenta como um ralador de queijo Esse raciociacutenio revela uma total falta de familiaridade com a etnografia africana na qual a maioria das caccediladas eacute descrita como parte de rituais especiacuteficos (iniciaccedilotildees fe stiva is anuais etc) ou pelo menos como um costume altamente ritualizado mas natildeo com certeza como um dispositivo corriqueiro para garantir a sobrevivecircncia Assim caso a rede tivesse sido documentada de fo rma correta na eacutepoca em que foi coletada (c 19 10) eacute mais provaacutevel que ela figurasse ritualisticamente como um atributo do papel do caccedilador no drama co letivo da caccedila ritual pelo menos natildeo se pode excluir essa possibilidade Nesse caso o funcio namento da rede natildeo

TRADUccedilAO bull A LFRED GELL 181

seria muito diferente do funcionamento de qualquer outro item da parafernaacutelia ritual como as maacutescaras por exemplo

Entretanto eacute preciso esclarecer que os saacutebios africanos estatildeo preparados para contar aos antropoacutelogos estoacuterias que revelam natildeo apenas que a caccedila eacute ritual mente importante (como ordaacutelio provaccedilatildeo para os jovens e assim por diante) mas tambeacutem que seus meios as redes ou armadilhas satildeo metaflsicamente significativos Recorrerei agora agrave narrativa de

Soyer l4 a respeito de cantores Fang (Aacutefrica Ocidental) de eacutepicos maacutegicos (mvet) Soyer

estaacute tentando entender a natureza do saber tradicional e no decorrer de suas investigaccedilotildees acaba conhecendo um especialista em canto chamado Ze com o qual trava um longo debate sobre a natureza da sabedoria

182

~ bull UFRJ 2001

Assim como os animais selvagens e como evur (sabedoriapoder maacutegico) mvet (eacutepico) pertence agrave floresta em sua evanescecircncia vocecirc pensa que pode pegaacute-lo mas ele escapa e eacute vocecirc quem eacute capturado Com Ze percebi que de certo modo as complexidades de mvet eram sempre comparadas a armadilhas Em resposta ele me contou a seguinte estoacuteria

Quando eu era jovem conheci bem os Pigmeu Eles vivem na floresta natildeo satildeo pessoas de aldeia como noacutes Fui com frequumlecircncia caccedilar com eles Os Pigmeu tecircm armadilhas para cada tipo de animal e por isso satildeo tatildeo bem sucedidos Eles tecircm uma

armadilha especial para chimpanzeacutes porque os chimpanzeacutes satildeo como os seres humanos quando tecircm algum problema param e pensam sobre isso ao inveacutes de fugirem e gritarem simplesmente Vocecirc natildeo pode pegar um chimpanzeacute com uma armadilha comum porque ele natildeo foge [e assim o noacute natildeo eacute puxado] Entatildeo os Pigmeu inventaram uma armadilha especial com uma linha que prende o braccedilo do chimpanzeacute A linha eacute bem fina e o chimpanzeacute pensa que pode se soltar Ao inveacutes de arrebentaacute-Ia ele puxa suavemente para ver o que aconteceraacute Neste momento um fardo de setas envenenadas cai sobre ele e isso soacute ocorre porque ele natildeo corre como um animal estuacutepido um antiacutelope por exemPlo faria15

A conversa entre Ze e Soyer natildeo eacute uma anedota boba sobre caccedila mas diz respeito fundamentalmente ao problema faustiano relativo ao conhecimento (entre outras coisas) um problema que natildeo eacute menos importante para o povo Fang da floresta tropical de Camarotildees do que para os

professores do MIT

Com base no depoimento desse saacutebio Fang parece inquestionaacutevel que uma armadilha seja uma metaacutefora de profunda significaccedilatildeo uma refraccedilatildeo do Espiacuterito Absoluto se eacute que esse algum dia existiu Todavia tenhamos em mente as criacuteticas feitas por Faris de que os

saacutebios natildeo estariam falando sobre armadilhas utilitaacuterias prosaicas mas sobre armadilhas imaginaacuterias espirituais armadilhas no sentido figurado natildeo no sentido literal O saacutebio Fang natildeo produziu nenhuma armadilha para a investigaccedilatildeo de Boyer Seria possiacutevel irmos aleacutem do texto de Boyer e montarmos uma exposiccedilatildeo de armadilhas de caccedila apresentando-a ao puacuteblico como uma exposiccedilatildeo de obras de arte

Deixemos o saacutebio fora disso por enquanto e nos perguntemos o que as armadilhas de caccedila animal revelam sobre o Espiacuterito Absoluto mesmo sem sua exegese nativa Por sua simples presenccedila as armadilhas de caccedila descontextualizadas podem revelar mais do que o gosto dos homens pelo consumo de carne animal)

De modo a levar o leitor a um julgamento adequado a respeito dessa questatildeo ofereccedilo algumas ilustraccedilotildees tiradas da literatura etnograacuteflca sobre armadilhas Observe a armadilha de setas Lembre-se da afirmaccedilatildeo de Danto de que olhar para uma obra de arte eacute como encontrar uma pessoa encontra-se uma pessoa um ser pensante co-presente reagindo a sua aparecircncia externa e a seu comportamento Do mesmo modo responde-se a uma obra de arte como a um ser co-presente um pensamento encarnado Agora imagine-se encontrando uma armadilha de setas natildeo (ass im espero) como a viacutetima que seraacute capturada mas como o visita nte de uma galeria que encontra uma instalaccedilatildeo feita pelo mais recente artista contemporacircneo Em tais circunstacircncias e sem qualquer contexto adicional o que o visitante poderaacute intuir como sendo o pensamento ou a intenccedilatildeo revelados por essa obra de arte

Creio que natildeo haveria nada errado caso o visitante imaginaacuterio de nossa exibiccedilatildeo visse nessa armadilha de setas uma representaccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo humana no mundo Essa eacute uma representaccedilatildeo que as pessoas de pensamento limitado poderiam censurar e negar se ao menos estivessem conscientes de que a armadilha poderio ser uma representaccedilatildeo Isso porque ela aponta para a existecircncia humana como uma violecircncia

impensada e iminente o que talvez natildeo seja um belo pensamento mas nem por isso pode ser considerado falso ou natildeo artiacutestico Inicialmente uma armadilha como essa comunica uma ausecircncia fatal - a ausecircncia do homem que a idealizou e armou e a ausecircncia do animal que se tornaraacute a viacutetima (o artista indicou essa viacutetima num segundo plano da ilustraccedilatildeo) Devido a essas ausecircncias marcadas a armadilha em questatildeo como todas as outras funciona como um poderoso signo Mesmo natildeo sendo projetada explicitamente para comunicar ou func ionar como signo (na verdade eacute projetada para ficar oculta e passar despercebida) a armadilha entretanto eacute muito mais significat iva do que a maioria dos signos su postos como tais A violecircncia estaacutetica do arco retesado a malevolecircncia congelada dos paus e das cordas satildeo reveladoras por si mesmas a despeito do recurso a representaccedilotildees convencionais Uma vez que esse eacute um signo natildeo oficial ele escapa de toda censura Nele eacute possiacutevel ler a intenccedilatildeo de seu autor e o destino de sua viacutetima Essa armadilha eacute um modelo bem como um instrumento De fato todos os instrumentos satildeo modelos porque eles precisam ser adaptados agraves caracteriacutesticas de seus usuaacuterios e assim tecircm sua marca Uma perna artificial eacute um modelo de uma perna verdadeira que estaacute ausente uma representaccedilatildeo que funciona como uma proacutetese A armadilha de setas eacute especialmente evidente como um modelo de seu criador porque ela tem que substituiacute-lo como uma espeacutecie de caccedilador substituto ela caccedila para seu dono Eacute de fato um autocircmato ou robocirc cujo design condensa o design de seu mentor Ela estaacute equipada com um transdutor sensorial rudimentar (a corda suscetiacutevel ao toque do animal) Esse siste ma nervoso aferente leva informaccedilotildees para o comando central (o mecanismo de disparo uma chave base de todos os dispositivos de processamento de informaccedilotildees) que ativa o sistema eferente liberando a energia armazenada no arco que impulsiona as setas produzindo accedilatildeo a di stacircncia (a morte da viacutetima) Isso natildeo eacute apenas o modelo de uma pessoa como um boneco qualquer mas um modelo eficaz de

T R A o U ccedil Agrave o bull A L F R E o G E L L I 83

ae R E V I 5 T A DO P R o G R A M A DE POacute 5 - G R A D U A ccedil Aacute o E M A R T E 5 V I 5 U A I 5 E B A bull U F R J 2 o o

pessoas que funciona Seria razoaacutevel perguntarmos que escultura seria capaz de mostrar mais sobre a condiccedilatildeo humana revelando apenas nosso delineamento exterior do que esse dispositivo mecacircnico Muito mais sobre a existecircncia humana estaacute presente aqu i do que em qualquer escultura mas como esse natildeo eacute um exemplo oacutebvio de um objeto de arte jamais seraacute olhado sob esse prisma

Aleacutem disso se olharmos para outras armadilhas poderemos ver que cada uma eacute natildeo apenas o modelo de se u criador um eu subsidiaacuterio na forma de um autocircmato mas cada uma eacute tambeacutem um modelo de sua viacutetima Esse modelo pode refletir efetivamente a forma externa da viacutetima como na cocircmica armadilha de girafa que delineia em negativo os contornos da parte inferior do corpo desse animal Ou a armadilha pode de modo mais suti l e abstrato representar paracircmetros do comportamento natural do animal que satildeo subvertidos a fim de aprisionaacute-lo As armadilhas satildeo paroacutedias letais do Umwelt do animal Assim o rato que gosta de se enfiar em espaccedilos estreitos tem uma cavidade atraente preparada para sua uacuteltima e fatal correria na escuridatildeo Eacute claro que a armadilha natildeo eacute em si mesma inteligente ou enganosa O caccedilador eacute que conhece as respostas habituais da viacutetima e eacute capaz de subvertecirc-Ias Mas uma vez montada a armadilha a habilidade e o conhecimento do caccedilador estatildeo efetivamente inscritos nela de forma objetiflcada caso contraacuterio a armadilha natildeo funcionaria Esse conhecimento objetivo sobreviveria ateacute mesmo agrave morte do proacuteprio caccedilador e tambeacutem seria (parcialmente) legiacutevel por outros que soacute tivessem acesso agrave armadilha e natildeo ao conhecimento sobre o animal que estaacute refletido em seu projeto A partir da forma da armadilha poderiam ser deduzidas as disposiccedilotildees da viacutetima Nesse sentido as armadilhas podem ser consideradas como textos so bre o comportamento animal

A armadilha eacute portanto um modelo tanto de seu criador o caccedilador quanto de sua viacutetima a presa animal Poreacutem mais do que isso a armadilha encarna um cenaacuterio que eacute

184

o nexo draacutematico que liga os dois protagonistas e que os alinha no tempo e no espaccedilo Nossas ilustraccedilotildees natildeo podem mostrar isso porque elas apresentam as armadilhas esperando suas viacutetimas ou viacutetimas que jaacute foram capturadas Elas natildeo podem mostrar po reacutem a estrutura temporal da armadilha Essa estrutura tempo ral o potildee o tempo suspenso o tempo vazio da espera agrave cataacutestrofe suacutebita que resulta do fechamento da armadilha Essa estrutura temporal varia com o tipo de armadilha empregado mas natildeo eacute difiacutecil ver no drama da captura um anaacutelogo mecacircnico da sucessatildeo traacutegica de hubris-nemesisshycotostrophe Considere o hipopoacutetamo condenado tranquumlilo com a se nsaccedilatildeo de fal sa seguranccedila decorrente apenas de seu tamanho e majestade Quantos heroacuteis traacutegicos sofreram das mesmas ilusotildees de presunccedilatildeo e atraiacuteram o mesmo destino) Se o chimpanzeacute que cai na armadilha de Boyer for Fausto talvez este hipopoacutetam o seja Otelo O fato de que todos os animais que caem viacutetimas das armadilhas sempre provoquem suas quedas por meio da proacutepria autoconfianccedila complacente demonstra que a caccedila com armadilhas eacute uma forma muito mais poeacutetica e traacutegica do que a simples perseguiccedilatildeo Este uacuteltimo tipo de caccedilada iguala caccediladores e viacutetimas unidos em accedilatildeo e reaccedilatildeo espontacircneas ao passo que a caccedila com armadilhas hierarquiza decisivamente o caccedilador e a viacutetima O capturador eacute Deus ou o destin o o animal capturado eacute o homem em sua encarnaccedilatildeo traacutegica

Parece -me portanto que mesmo sem o contexto etnograacutefico mesmo sem a exegese de qualquer nativo armadilhas animais como essas poderiam ser apresentadas ao puacuteblico como obras de arte Esses dispositivos incorporam ideacuteias veicu lam significados porque uma armadilha por sua proacutepria natureza eacute uma representaccedilatildeo transformada de seu fabricante o caccedilador e da presa animal sua viacutetima e de sua relaccedilatildeo muacutetua que nos povos caccediladores eacute fundamentalmente socia l e complexa Isso significa que essas armadilhas comunicam a noccedilatildeo de um nexo de intencional idades entre os caccediladores e as presas animais mediante formas e mecanismos materiais

--- -- ---

Creio que essa evocaccedilatildeo de intencionalidades complexas eacute na realidade o que serve para defin ir as obras de arte e que adequadamente emolduradas as armadilhas para animais poderiam evocar intuiccedilotildees complexas a respeito do ser da alteridade do relacionamento O impacto dessas armadilhas agora apresentas como obras de arte pode no entanto ser maior caso elas sejam exibidas ao lado de obras de artes ocidentais (das quais eacute faacutecil achar numerosos exemplos) que ocupem pelo menos aparentemente o mesmo territoacuterio sem ioloacutegico

O trabalho de Damien Hirst um dos jovens artistas britacircnicos mais citados pela miacutedia parece ser um desses casos De fato foi a notoacuteria exposiccedilatildeo de Hirst exibida na Tate Gallery em 1992 que me induziu pela primeira vez a pensar sobre as armadilhas como objetos artiacutesticos Considere o tubaratildeo de Hirst no tanque de formol Essa obra cativa devido ao contraste profundo entre o pei xe gigantesco ultrabioloacutegico e sua gaiola ou armadilha de vidro asseacuteptica (recordando Eichmann em seu julgamento preso numa caixa de vidro) cujas paredes refletoras projetam imagens virtuais da igualmente asseacuteptica galeria dentro do domiacutenio bioloacutegico do tubaratildeo Um eco distante das metades superior (bioloacutegica) e inferior (mecacircnica) do Large Glass de Duchamp - sem duacutevida - mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre nosso poder de imobilizar forccedilas elementares que no entanto parecem sempre potencialmente prontas a escapar Ateacute mesmo o tubaratildeo de Hirst tatildeo morto quanto possiacutevel continua residualmente vivo observando e pensando ou pelo menos parece estar porque manteacutem seus olhos abertos e fi xos em noacutes Um dia ele escaparaacute

Seria apropriado colocar o tubaratildeo de Hirst ao lado da pintura em casca de aacutervore extraiacuteda do livro Ancestral Connections de Morphy l6 que mostra um tubaratildeo capturado quase idecircntico visualmente agrave instalaccedilatildeo exibida na Tate Gallery Os Yolnngu produzem esse t ipo de pintura durante rituais funeraacuterios e ela se refere agrave jornada rio acima de um tubaratildeo ancestral miacutetico que foi capturado

temporariamente em seu trajeto mas escapou Essa pintura refere-se agraves afiliaccedilotildees do clatilde dos mortos e metaforiza a viagem do espiacuterito agrave terra ancestral e a necessidade de transferir- lhe forccedilas (por meio de cerimocircn ias funeraacute rias) de modo que ele como o tubaratildeo ancestral possa escapar das armadilhas que ameaccedilam sua trajetoacuteria O episoacutedio do tubaratildeo sendo capturado e escapando eacute encenado pelos participantes Essas ideacuteias escatoloacutegicas satildeo eacute claro especiacuteficas da cultura Yolnngu mas eu me arriscaria a sugerir que a semelhanccedila entre o trabalho de Hirst e a obra Yolnngu natildeo eacute apenas superficiaJ mas insinua uma metaacutefora vaacutelida em termos interculturais embora sujeita a leituras diferenciadas

Enquanto isso para reforccedilar a ideacuteia de que a obra de Hirst diz respeito de modo profundo agraves armadilhas e agrave rede de intencio nalidades complexas que a captura em armadilhas estabelece descreverei outro trabalho de Hirst presente na mesma exibiccedilatildeo na qual uma armadilha em funcionamento foi efetivamente incorporada Refiro-me agrave instalaccedilatildeo que consiste em uma cabeccedila de ovelha dentro de uma caixa de vidro a cabeccedila deteriora-se e cria larvas que se transformam em moscas que depois se tornam viacuteti mas de uma armadilha para

TRAD UCcedilAacuteO middot A LFRED G ELL 185

ae R E V I TA DO P R o G R A M A D E POacute bull G R A o U A ccedil A o

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz vio leta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais e las morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antro poacutelogos deve riacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacuted igo mito loacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se ide ntificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal mo rto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus pe rverso que colocou este mundo incoerente em movim ento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hi rst natildeo seria o uacutenico artista ocidenta l contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceitual Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posi cionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalh o natildeo eacute tanto o tema da vio lecirc ncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetrado res justamente o tema que ide ntifiquei anteriorme nte em relaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relacio na-se diretamente ao tipo de armadilha serial para ho mens (esp ingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de pro priedades em tempos passados

Exemplos adicionai s de obras de arte poacutesshyDuchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 19 I7) po deriam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hi st satildeo exemplos do mesmo tip o de co isa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

E M A R T E v I U A I E 8 A bull U F R J 2 o0 1

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo supo nho que para que uma armadi lha afri cana o u uma armadilha de qualquer o utra parte exoacutetica do mundo possa funci o nar como uma o bra de arte seja realmente necessaacuterio o u desejaacuteve l que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o signifi cado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armad ilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento IB Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

186

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a arm ad ilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmenteshyartiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinh a Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecircshyse imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bongl Antes de saber o que aconteceu tran sforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido como qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as tran substanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hil-st discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)Iarvamoscamosca (morta) - poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tam pouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode fun cionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier2o Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal

reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tam beacutem em outros lugares

~ ---------- --------------------

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torn a-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente lo ngo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuter ios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas vo ltada natildeo bastaria para retiraacute-Ias do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seri a evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - eacute que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente agraves enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e co nteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

T R A D U ccedil Acirc o bull A L F R E D G E L L 187

--------------------------- -------------

ae REVIST A DO P ROGRAMA DE PO S -GRADUACcedilAtildeO

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porq ue ela proacutepria eacute alongada (eefshyongaced) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricad a eacute certame nte na forma de armad il has como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo imagens dos antepassado s no sentido de que elas contecircm e ncarnam e comu nicam o poder ancestral Aleacutem disso elas to rnam possiacuteve l a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacute m sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fanta siado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor O s Anga ao contraacuterio tecircm imagens de poder ancestral que de fato trabalham de fato alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo real iacutestica de form as (superficiais)

Con cl usatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armad il has exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio shya disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte) Espero que eu

EM A RTES VISUAIS EB A bull UFRJ 2001

ten ha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teo ria institucional da arte liberaria imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservandoshylhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente dife rentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses objetos tornar-se-iam artiacutesticos Sei-ia essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacute logo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa tran sformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute co nstituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como arte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm po uco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arte para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como ta l numa cidade provinciana muito sono lenta que se vanglorie (como a maioria de las) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad~ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas po r que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arte caso produzisse coisas genericamente semel hantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21 ) - res ide na intluecircn cia pro longada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de o bra de arte pela antropologia da arte23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte co ntemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode se r visto em galerias de artesanat o provincianas Deve-se acei tar a premissa em essecirc ncia libe rtadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentai s jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabri cado pelo homem pode ser ve iculado como o bra de arte Eacute isso que a teo ria instituciona l da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de t eoria da arte contemporacircnea desde 19 I7 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urin o l (ou Fontaine) Fo i no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Dami en Hi rst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Ducham p pouco poderiacuteamos esperar de la nesta fase ta rdia Na verdade as co isas natildeo satildeo middotbem assim Os ready-made de Duchamp foram cuidadosamente selecio nados e firmeme nte integrados tematicamente a do is de seus principais projetos (o Large Gass de 19 I 5shy23 e a Waterfal de 1944-66) O aspecto mais inte ressante a respeito dos ready-made de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Ducham p para selecio naacuteshylos (reve ladas ao lo ngo de toda uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceitual aparenteme nte arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos e les funci onam se eacute que fun cionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e hi stoacute ricas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maio r ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquant o veiacutecu los de ideacute ias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de reali za r et c Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer o bjeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencional idades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de recon struir plename nte 2~

Assim eacute preci so mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simp les exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvid o e disseminado Desse ponto de vista a t eoria puramente institucional da arte eacute menos do que sati sfatoacuteria porque nada tem a dizel- sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuai s ao s quais o puacuteblico ed ucado de ga leria eacute sensiacuteve l Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da inte rpretabil idad e para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teor ia pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre o bra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos funcionais e obras de arte significat ivas Esse eacute um legado dos fil oacutesofos poacutes-iluministas co mo Hege l que obscurece a compreensatildeo de qual quer mundo artiacutestico distinto daqu e le que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar sign ificado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas re ligiosas e o utras Essas funccedil otildees satildeo praacuteticas nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e da man ei ra como os seres humanos podem interferir em seu funci onamento de modo a t irar o melhor proveito poss iacuteve l dele O bras

TR ADUCcedilAo A L F RED GE LL 189

ae R E V 1ST A D D P R D G R A M A DE POacuteS - G R A o U A ccedil A o E M A R T E S V I SUA I S E B A bull U F R J bull 2 o o I

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames2s A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucional e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bemshysucedida candidatura a obra de arte da rede de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencional idades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teorias interpretativa e institucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

190

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26

demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-Ia como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funcioacutena eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

Quando morreu em 1997Alfred Gell era Professor de Antropologia na London SchooJ of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a resp eito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Jmag es Totooing in Poynesia (1993) e Art ond Agency An Anhropologicol Theory ( 1998)

Traduccedilatildeo Marcia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

Notas

I Ver Dickie George Are and Aesthetics Ithaca Nova York Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circfe a Theory ofArt New York Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique of Judgements ofTaste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris james ArtlArtifact on the Museum and Anthropology Currene AnUacutelropology 29(5) 1988775-9

4 Faris op cit776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifacc African Art in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestei Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of Philosophy Journal of Philosophy 61 1964 57 1-84

7 Dickie 1974 op cir

8 Ver Danto Arthur The Tran sfJguration o the Commonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cir

9 Danto 1981 op cir

10 Faris op cir 778

I I Clifford james The Predicament of Culcure Cambridge MA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit31

13 Danto 1988 op cir 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agrave Penseacutee introduction agrave Ianalyse des eacutepopeacutees Fang Paris Societeacute dEthnologie 1988

15 Boyer op cie 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art ando an Aboriginal Syseem o Knowledge Chicago Chicago University Pness 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MD Rowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the Renais sance Oxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report ofthe American Bureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-Anga Material and Symbolic Aspects ofTrapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

--_ _--shy

21 Weiner J (ed) Aesthetics is a Cross-cultural Category Graup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic ExperienceAn Anthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and the Enchantment ofTechnology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderes cognitivos

25 Gell op cie 60

26 Thomas Nicholas Enwngled Objects Cambridge MA Harvard University Press 1991

TRADUccedilAO AlFRED GEll 191

Page 4: A Rede de Vogel- Armadilhas Como Obras de Arte

exemplo do modo pelo qual o mundo artiacutestico cria suas obras de arte ao classificaacute-Ias como ta l Danto poreacutem seguiu outra direccedilatildeo e dedicou seu ensaio a provar que as afinidades da rede com o conceito contemporacircneo de arte seriam meramente superficiais

Meu objetivo neste artigo eacute duplo Em primeiro lugar discutir a distinccedilatildeo proposta por Danto entre arte e artefato Em segundo lugal~ pretendo montar uma pequena exposiccedilatildeo (infelizmente composta apenas por textos e ilustraccedilotildees) de objetos que Danto consideraria artefatos mas que em minha opiniatildeo satildeo fortes candidatos a circular como obras de arte mesmo que essa natildeo tenha sido a intenccedilatildeo original de seus criadores que provavelmente desconheciam esse conceito Se eu conseguir persuadir meu puacuteblico e se a teoria institucional for verdadeira ou seja se arte for tudo aquilo que natildeo apenas eu mas outras pessoas que pensam do mesmo modo classificamos como tal entatildeo uma nova categoria de arte estaacute prestes a surgir Ou natildeo se considerarmos como paracircmetro os argumentos de Danto que retomarei agora

Danto eacute responsaacutevel por ambas as teorias da arte a interpretativa e a institucional e foi ele quem primeiro introduziu a expressatildeo mundo artiacutestico na esteacutetica filosoacutefica 6 Mas uma vez que Dickie7

desenvolveu as ideacuteias de Danto na direccedilatildeo socioloacutegica jaacute apontada a definiccedilatildeo de obra de arte tornou-se um problema de consenso social em meio ao puacuteblico de arte Danto poreacutem tende para uma visatildeo mais idealista a respeito da arte fazendo mesmo muitas referecircncias a Hegel em seus trabalhos Ele afirma que objetos de arte satildeo assim considerados em funccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo historicamente fundamentada Danto escreveu dois importantes estudos que foram muito bem aceitos no campo da

bull

filosofia da arte modernaB Concordo com a maior parte de sua produccedilatildeo mas devo dizer que os pontos mais fracos de sua versatildeo da teoria interpretativa ficam especia lmente evidentes quando colocados em um contexto antropol oacutegico e intercultural em seu ensaio para a exposiccedilatildeo ArteArtefato

De acordo com Danto natildeo existem caracteriacutesticas intriacutensecas a qualquer objeto que possam por si soacute caracterizaacute-lo como artiacutestico A diferenccedila objetiva entre uma embalagem real de sabatildeo Brillo e a falsa embalagem Briflo de Warhol natildeo eacute o que determina que apenas a uacutelti ma seja uma obra de arte Mesmo objetos semelhantes podem ser diferenciados de modo que um seja considerado obra de arte e o outro natildeo Isso foi exaustivamente discutido por Danto9 que entretanto estabelece uma grande diferenccedila entre o tipo de interpretaccedilatildeo contexto significaccedilatildeo simboacutelica etc que um objeto deve ter para que seja uma obra de arte em comparaccedilatildeo com as caracteriacutesticas associadas a uma obra que natildeo eacute artiacutestica ou seja um mero artefato A interpretaccedilatildeo deve estar relacionada com uma tradiccedilatildeo de fazer artiacutestico que internaliza reflete e se desenvolve a partir de sua proacutepria histoacuteria como a arte ocidental tem feito desde Vasari pelo menos Segundo ele (e estou totalmente convencido disso) a moderna arte conceitual corresponde agrave subordinaccedilatildeo da fabricaccedilatildeo da imagem agrave reflexatildeo histoacuterica em outras palavras eacute a

T R A D U ccedil Acirc o bull A L F R E D G E L L J77

ae REVISTA DO PROGRAMA DE POS-GRADUACcedilA O EM ARTES VISUAIS EBA bull UFRJmiddot 2001

resultante final do fazer artiacutest ico da fdosofia da histoacute ria e da criacutetica de arte tomados conjuntamente Todavia o conceito-chave aqui eacute o de tradiccedilatildeo progressiva cumulativa (Geist esp iacuterito etc)

O que Danto faz quando o puacuteblico de Nova York se entusiasma com uma rede de caccedila como se ela fosse a mais recente produccedilatildeo do Geist na pessoa de Jackie Windsor ou de seu grupo A arte contemporacircnea eacute capaz de digerir desse modo objetos externos A ausecircncia de um autor identificaacutevel o u de uma intenccedilatildeo artiacutestica reconheciacutevel eacute um obstaacutecu lo Danto natildeo pode deixar de assumir uma posiccedilatildeo criacutetica em relaccedilatildeo a isso Jaacute que intenccedilatildeo signi fi cado e fundamentaccedilatildeo em uma tradiccedilatildeo diferenciada e auto-refexiva satildeo fundamentais para sua compreensatildeo da arte contemporacircnea e mesmo de toda arte ocidental posterior ao Renascimento O caccedilador Zande que fez ou encomendou a rede natildeo participa do mesmo quadro histoacuterico de referecircncia para o qual o trabalho semelhante de Windsor estaacute apontando de modo que a analogia entre eles eacute enganosa Nem mesmo eacute possiacutevel co nsiderar alternativamente que o artista nesse caso eacute Vogel (Danto sequer considera essa possibilidade) que estaacute apresentando a rede como um reody-mode de acordo com a mesma tradiccedilatildeo dos protoacutetipos de Duchamp como a paacute o cabide e o urinol Mesmo porque Vogel natildeo estaacute se apresentando como um segundo Duchamp mas como uma curadora de museu que oferece para admiraccedilatildeo do puacuteblico um objeto feito na Aacutefrica por um artista anocircnimo que natildeo eacute certamente ela proacutepria

O dilema de Danto diz respeito essencialmente ao fato de que sua teoria interpretativa da arte eacute construiacuteda a partir do referencial hist oacuterico impliacutecito na arte ocidental segundo um modelo hege liano Caso ele diga que nenhuma produccedilatildeo externa ao fluxo histoacuterico da arte ocidental (que eacute sem duacutevida muito amplo) pode ser considerada co mo arte estaacute sujeito a acusaccedilotildees de eurocentrismo Caso ele admita poreacutem que objetos exoacuteticos que natildeo participaram do Geist da arte oc idental

178

podem se r mesmo assim obras de arte por que excluir a rede E caso a rede seja inc lu iacuteda o que sobra do valor explicativo da interpretaccedilatildeo historicamente fundamentada e da distinccedilatildeo entre arte e artefato) O filoacutesofo foi efetivamente enlaccedilado pela rede de Vogel que assim termino u por cumprir sua funccedilatildeo embora natildeo do modo convencional

Soacute existe uma saiacuteda para o idealista nessas circ unstacircncias e le deve assumir que existem afinidades interpretativas o u simboacutelicas subjacentes agraves verdadeiras obras de arte produzidas em diferentes tradiccedilotildees culturais A rede Zande seraacute excluiacuteda nos termos Zande porque nessa cultura como possivelmente em todas as outras os objetos artiacutesticos devem ter um tipo de significaccedilatildeo simboacutelica que uma mera rede de caccedila natildeo pode ter Sendo (supostamente) excluiacuteda pelos proacuteprios Zande a rede natildeo poderia ser incluiacuteda pelos nova-iorquinos porque isso significaria contradizer os princiacutep ios de Danto de que sem interpretaccedilatildeo natildeo haacute arte Depois de concordar com a ideacuteia de que nem toda embalagem de sabatildeo Brillo mas apenas a que foi criada por Warhol eacute arte Danto natildeo pode deixar de dizer que essa rede nos termos Zande natildeo equivale a uma obra de Warho l pois eacute apenas uma velha rede como outra qualquer

Mas como estabelecer paracircmetros para a afinidade entre obras de arte africanas (devidamente qua lifi cadas) e obras de arte ocidentais e para a natildeo-afinidade entre a rede Zande e ambas as artes Danto argumenta que a grande escultura africana foi reconhecida como tal e colocada no mesmo niacutevel de ponatello Thorwa ldsen etc por meio de um processo de descoberta empreendido por Pi casso Brancusi Roger Fry e seus contemporacircneos comparaacutevel agraves descobertas cientiacuteficas Essa grandeza jaacute estaria laacute mas teria sido ofuscada por juiacutezos preconceituosos associados ao colonialismo Esse tipo de arte africana foi produzido individualmente por escultores altamente talentosos com intenccedilotildees artiacutesticas (esteacuteticas) especiacuteficas que eles imprimiram em seus trabalhos Soacute posteriormente essas

obras se tornaram acessiacuteveis ao puacuteblico natildeo africano graccedilas aos esforccedilos de alguns simpatizantes ocidentais Entretanto essa abordagem a respeito da incorporaccedilatildeo da arte africana nos moldes de Danto traz consigo um certo risco de esteticismo shymas natildeo eacute justamente Danto quem nos diz que o que faz da arte arte natildeo satildeo apenas as caracteriacutesticas exteriores (esteacuteticas) que ela possa ter Sendo assim Danto eacute obrigado a mudar sua taacutetica e considerar a possibilidade de existecircncia de uma arte africana que natildeo seria obviamente diferente sob qualquer aspecto externo ou visiacutevel da natildeo-arte africana uma afirmaccedilatildeo que natildeo seria aplicaacutevel aos exemplos famosos da arte escultoacuterica cuja qualificaccedilatildeo enquanto arte nunca foi colocada em duacutevida pelo menos por Danto

Danto eacute um filoacutesofo e sendo assim natildeo escolheu o caminho mais oacutebvio que consistiria em retomar tudo que jaacute foi escrito sobre cultura material africana Ao contraacuterio tentou obedecer a seu imperativo disciplinar entregando-se a um Gedonkexperiment no qual ele parece ser particularmente habilidoso Danto imagina a existecircncia de duas tribos africanas proacuteximas mas historicamente diferenciadas que ele denomina Pot People (povo ceramista) e Bosket Folk (povo cesteiro) Aparentemente a produccedilatildeo material dessas duas tribos que inclui potes e cestos eacute quase idecircntica mas o povo ceramista venera seus oleiros que satildeo tidos como sacerdotes e saacutebios e considera a olaria uma atividade sagrada que evoca a cosmogecircnese jaacute que Deus foi um oleiro que moldou o mundo a partir do barro Esse povo tambeacutem faz cestos para fins utilitaacuterios mas essa natildeo eacute uma atividade considerada nobre Do o utro lado da montanha em meio ao povo cesteiro as coisas satildeo diferentes jaacute que Deus era um cesteiro e fez o mundo a partir de fibras vegetais e os potes de ceracircmica produzidos satildeo considerados meramente utilitaacuterios Nessa tribo os sacerdotes satildeo os cesteiros e os oleiros satildeo apenas especialistas

teacutecnicos artesatildeos

Danto sustenta que mesmo que soacute um exame minucioso permita aos museoacutelogos

distinguir os potes e os cestos produzidos em ambas as tribos a diferenccedila espiritual envolvida na elaboraccedilatildeo dos potes sagrados entre o povo ceramista eacute suficiente para garantir-lhes o status de obra de arte em oposiccedilatildeo aos potes utilitaacuterios do povo cesteiro (e vice-versa em relaccedilatildeo aos cestos) Os potes do povo ceramista e os cestos do povo cesteiro estatildeo ambos na prestigiada coleccedilatildeo que estaacute no Kunsthistorisches Museum Jaacute os cestos do povo ceramista e os potes do povo cesteiro pertencem a uma coleccedilatildeo um pouco diferente que estaacute no Naturhistorisches Museum As obras que pertencem ao Museu de Histoacuteria da Arte emanam do Espiacuterito Absoluto satildeo veiacuteculos de ideacuteias completas que se o riginam da condiccedilatildeo humana em toda sua densidade e fatalidade histoacuterica e consequumlentemente a iluminam Jaacute os objetos que estatildeo no Museu de Histoacuteria Natural satildeo meios para fins utilitaacuterios instrumentos que ajudam os seres humanos em sua vida material - eles fazem parte da prosa do mundo segundo uma expressatildeo hegeliana

Danto em consequumlecircncia exclui a rede de caccedila mera manifestaccedilatildeo prosaica no sentido hegeliano e esboccedila de modo experimental uma distinccedilatildeo particularmente marcada entre objetos de arte e artefatos Entretanto como em todas as experiecircncias desse tipo eacute possiacutevel questionar se essa di stinccedilatildeo corresponde agrave realidade Creio que a antropologia deveria pronunciar-se a esse respeito jaacute que os experimentos de Danto evocam explicitamente a etnografia como protoacutetipo de suas ficccedilotildees expositivas Em seu comentaacuterio sob re a exposiccedilatildeo Faris afirma que o problema estaacute no fato de que a antropologia tende de modo geral a ser condescendente com experimentaccedilotildees teoacutericas como a de Danto Ele acusa enfaticamente o ensaio escrito por Danto de promover uma perspectiva orto doxa viciada tanto em relaccedilatildeo agrave histoacuteria da arte quanto em relaccedilatildeo agrave antropologia Modernistas como Danto estariam

paralisados pela aceitaccedilatildeo de todas as tiranias culturais e pela consequumlente cegueira em relaccedilatildeo agraves tiranias especiacuteficas [de modo que] eles incorrem com

T R A o U ccedil Aacute o bull A l f R E o G E l l I 79

ae REVISTA DO PROGRAMA DE P6S-GRADUACcedilAO EM ARTES VISUAIS EBA bull UFRJ 2001

frequumlecircncia no sentimento humanista mais banal e no entusiasmo inuacutetil em relaccedilatildeo ao poder emotivo e expressivo_o Eles o fazem em grande medida reconhecendo o empreendimento antropoloacutegico como por exemplo a ideacuteia de que os objetos africanos natildeo podem ser inteiramente compreendidos sem a referecircncia aos nativos africanos no contexto cultural especiacutefico que os produziu Danto tem que concordar que natildeo se deve atribuir ao contexto um valor axiomaacutetico - embora seja inegaacutevel sua relaccedilatildeo com o significado - particularmente quando tanto contexto quanto significado

foram indicados pela Antropologia 10

Faris argumenta ainda que de modo geral esse tipo de liberalismo recebe as produccedilotildees do Outro etnograacuteflco nos termos do Outro mas soacute na medida em que essa produccedilatildeo seja aceitaacutevel ou coerente com um dado conceito de Espiacuterito Absoluto

A etnografia imaginaacuteria de Danto a respeito da cosmogenia dos potes e dos cestos revela com precisatildeo o tipo de narrativa antropoloacutegica que ele considera conveniente e de fato tanto os antropoacutelogos quanto seus informantes nunca hesitaram em produzir relatos desse tipo O ponto foucaultiano de Farris diz respeito ao fato de que o empreendimento antropoloacutegico como um todo tende a buscar esse tipo de saacutebio ou especialista nativo ao qual Danto atribui o poder de distinguir entre arte e natildeo-arte Isso ocorre porque em uacuteltima instacircncia noacutes antropoacutelogos queremos tachar esses objetos e atribuir-lhes significados fixos e controlaacuteveis Concordo com Faris quanto ao fato de que os saacutebios (fictiacutecios) de Danto satildeo projeccedilotildees palpaacuteveis de autoridade e como tal merecem ser desmascarados Mas infelizmente ele acaba natildeo discutindo a distinccedilatildeo objeto de arte versus artefato exceto para indicar que essa oposiccedilatildeo estaacute sujeita a uma redeflniccedilatildeo contiacutenua II e que dificilmente pode ser separada de questotildees relativas agrave ideologia e ao poder

O proacuteprio Danto natildeo esgota o assunto quando diz que os saacutebios fornecem interpretaccedilotildees capazes de transformar as verdadeiras obras de arte em fragmentos do Espiacuterito Absoluto Na segunda parte de

180

seu ensaio ele divaga sobre a ideacuteia de que os artefatos satildeo incompletos enquanto as obras de arte encarnam ideacuteias autoshysuficientes e completas Citando Heldegger ele observa que um artefato eacute sempre parte de um Zeuggonzes - um sistema de ferramentas um sistema teacutecnico que forma uma totalidade Um martelo natildeo existe por si soacute implica os pregos a serem martelados as madeiras nas quais essa accedilatildeo seraacute executada as serras que daratildeo forma agrave madeira e assim por diante A rede (implicitamente) eacute apenas um componente do Zeuggonzes de caccedila Zande e natildeo tem significado em si mesma Mesmo quando satildeo bem elaborados objetos como uma rede um martelo um trinco de porta decorativo ou outro exemplo qualquer de arte aplicada satildeo incapazes de veicular o tipo de ideacuteia que distingue o objeto artiacutestico pois este sempre se reporta ao universal

seria equivocado afirmar tais coisas [que dizem respeito a verdades universais] a respeito de facas redes ou grampos de cabelo objetos cujo significado se esgota em

sua utilidade Afinal de contas a universalidade diz respeito antes de mais nada a pensamentos e proposiccedilotildees e ningueacutem suporia que objetos como os que acabei de citar expressem um conteuacutedo universal A realidade desses objetos esgotashyse em seu uso jaacute as obras de arte possuem um papel mais elevado colocando-nos em contato com realidades superiores elas satildeo definidas por meio da apreensatildeo de significado Elas devem ser explicadas pelo que expressam Diante de uma obra de arte estamos diante de algo que soacute por si mesmo eacute possiacutevel apreender do mesmo modo que soacute por intermeacutedio de accedilotildees corporais podemos

ter acesso agrave mente de outra pessoa 12

Mas ateacute mesmo Danto eacute forccedilado a fazer uma ressalva dado ser oacutebvio que a maior parte da produccedilatildeo pertencente agrave tradiccedilatildeo artiacutestica ocidental natildeo foi produzida para ser apreciada pelo puacuteblico mas para atender a propoacutesitos instrumentais As pinturas religiosas servem a funccedilotildees lituacutergicas (como peccedilas de altar objetos de devoccedilatildeo) retratos expressam semelhanccedila estaacutetuas dignificam espaccedilos puacuteblicos e soberanos e assim sucessivamente O mesmo eacute vaacutelido de modo ainda mais contundente para os

produtos africanos aos quais Danto atribui o estatuto de obras de arte Nenhum deles foi feito para ser admirado apenas como uma obra de arte independente Esses objetos em vez di sso fazem parte de cerimocircnias puacuteblicas que todavia natildeo podem ser expo rtadas como os objetos o satildeo Em suma natildeo apenas as redes mas tambeacutem objetos como as maacutescaras fazem parte do Zeuggonzes Danto lida com esse problema admitindo que

ateacute haacute pouco tempo [e mesmo agora provavelmente na Aacutefrica] as obras de arte usufruiacuteam de dupla identidade tanto como objetos de uso e praacutexis quanto como receptaacuteculos de espiacuterito e significado A arte africana uma vez exportada perde a primeira funccedilatildeo mas reteacutem a uacuteltima O objetivo natildeo eacute fazer do destacamento espacial um atributo para a definiccedilatildeo de arte porque isso desqualificaria como arte as obras das culturas primitivas Em suas proacuteprias sociedades essas obras tecircm um lugar mas que natildeo eacute o tipo de lugar que elas tecircm no Zeugganzes como ferramentas em um sistema teacutecnico O fundamental eacute que toda a vida praacutetica dessas sociedades poderia seguir adiante mesmo se natildeo houvesse nelas nenhuma obra de arte mesmo admitindo que as obras de arte fazem parte de rituais supostamente dotados de eficaacutecia praacutetica 13

Essa sem duacutevida eacute uma declaraccedilatildeo enigmaacutetica ateacute mesmo para um fil oacutesofo

_---- ----- - ---- - --- ---__-------shy

r---

Danto quer dizer que as obras de arte tecircm significados independentemente de seu uso praacutetico e agrave medida que satildeo artiacutesticos natildeo satildeo uacuteteis mas significativos Todavia esses mesmos objetos satildeo usados em rituais supostamente eficazes Poderiacuteamos subtrair hipoteticamente as obras de arte e a vida praacutet ica seria capaz de co ntinuar porq ue os mesmos o bjetos di sfarccedilados de ferramentas ou artefatos estariam laacute para preencher suas funccedilotildee s extra-artiacutesticas anteriores Esse raciociacutecio eacute ce r tamente casuiacutestico De que maneira as maacutescaras africanas podem participar de um contexto ritual como instrumentos eficazes sem que possuam qualquer significaccedilatildeo interpretativo-cultural o que segundo o proacute prio Danto jaacute seria condiccedilatildeo para qualificaacute-Ias como arte A separaccedilatildeo entre instrumentalidade e espiritualidade eacute portanto impraticaacutevel E se as obras de arte satildeo um tipo de instrumento (o que creio eu natildeo seria questionado pelos escultores africanos) por que natildeo considerar tambeacutem que os instrumentos podem ser um tipo de obra de arte

A partir daiacute podemos inferir que Danto exclui a rede como arte porque ele natildeo pode imaginar que um saacutebio nativo seja capaz de contar-lhe uma estoacuteria suficientemente convincente capaz de persuadi-lo do contraacuterio Ele faz essa suposiccedilatildeo porque uma rede eacute usada para caccedilar e para ele a caccedilada eacute apenas um meio para a obtenccedilatildeo de alimentos logo a rede natildeo passa de uma ferramenta como um ralador de queijo Esse raciociacutenio revela uma total falta de familiaridade com a etnografia africana na qual a maioria das caccediladas eacute descrita como parte de rituais especiacuteficos (iniciaccedilotildees fe stiva is anuais etc) ou pelo menos como um costume altamente ritualizado mas natildeo com certeza como um dispositivo corriqueiro para garantir a sobrevivecircncia Assim caso a rede tivesse sido documentada de fo rma correta na eacutepoca em que foi coletada (c 19 10) eacute mais provaacutevel que ela figurasse ritualisticamente como um atributo do papel do caccedilador no drama co letivo da caccedila ritual pelo menos natildeo se pode excluir essa possibilidade Nesse caso o funcio namento da rede natildeo

TRADUccedilAO bull A LFRED GELL 181

seria muito diferente do funcionamento de qualquer outro item da parafernaacutelia ritual como as maacutescaras por exemplo

Entretanto eacute preciso esclarecer que os saacutebios africanos estatildeo preparados para contar aos antropoacutelogos estoacuterias que revelam natildeo apenas que a caccedila eacute ritual mente importante (como ordaacutelio provaccedilatildeo para os jovens e assim por diante) mas tambeacutem que seus meios as redes ou armadilhas satildeo metaflsicamente significativos Recorrerei agora agrave narrativa de

Soyer l4 a respeito de cantores Fang (Aacutefrica Ocidental) de eacutepicos maacutegicos (mvet) Soyer

estaacute tentando entender a natureza do saber tradicional e no decorrer de suas investigaccedilotildees acaba conhecendo um especialista em canto chamado Ze com o qual trava um longo debate sobre a natureza da sabedoria

182

~ bull UFRJ 2001

Assim como os animais selvagens e como evur (sabedoriapoder maacutegico) mvet (eacutepico) pertence agrave floresta em sua evanescecircncia vocecirc pensa que pode pegaacute-lo mas ele escapa e eacute vocecirc quem eacute capturado Com Ze percebi que de certo modo as complexidades de mvet eram sempre comparadas a armadilhas Em resposta ele me contou a seguinte estoacuteria

Quando eu era jovem conheci bem os Pigmeu Eles vivem na floresta natildeo satildeo pessoas de aldeia como noacutes Fui com frequumlecircncia caccedilar com eles Os Pigmeu tecircm armadilhas para cada tipo de animal e por isso satildeo tatildeo bem sucedidos Eles tecircm uma

armadilha especial para chimpanzeacutes porque os chimpanzeacutes satildeo como os seres humanos quando tecircm algum problema param e pensam sobre isso ao inveacutes de fugirem e gritarem simplesmente Vocecirc natildeo pode pegar um chimpanzeacute com uma armadilha comum porque ele natildeo foge [e assim o noacute natildeo eacute puxado] Entatildeo os Pigmeu inventaram uma armadilha especial com uma linha que prende o braccedilo do chimpanzeacute A linha eacute bem fina e o chimpanzeacute pensa que pode se soltar Ao inveacutes de arrebentaacute-Ia ele puxa suavemente para ver o que aconteceraacute Neste momento um fardo de setas envenenadas cai sobre ele e isso soacute ocorre porque ele natildeo corre como um animal estuacutepido um antiacutelope por exemPlo faria15

A conversa entre Ze e Soyer natildeo eacute uma anedota boba sobre caccedila mas diz respeito fundamentalmente ao problema faustiano relativo ao conhecimento (entre outras coisas) um problema que natildeo eacute menos importante para o povo Fang da floresta tropical de Camarotildees do que para os

professores do MIT

Com base no depoimento desse saacutebio Fang parece inquestionaacutevel que uma armadilha seja uma metaacutefora de profunda significaccedilatildeo uma refraccedilatildeo do Espiacuterito Absoluto se eacute que esse algum dia existiu Todavia tenhamos em mente as criacuteticas feitas por Faris de que os

saacutebios natildeo estariam falando sobre armadilhas utilitaacuterias prosaicas mas sobre armadilhas imaginaacuterias espirituais armadilhas no sentido figurado natildeo no sentido literal O saacutebio Fang natildeo produziu nenhuma armadilha para a investigaccedilatildeo de Boyer Seria possiacutevel irmos aleacutem do texto de Boyer e montarmos uma exposiccedilatildeo de armadilhas de caccedila apresentando-a ao puacuteblico como uma exposiccedilatildeo de obras de arte

Deixemos o saacutebio fora disso por enquanto e nos perguntemos o que as armadilhas de caccedila animal revelam sobre o Espiacuterito Absoluto mesmo sem sua exegese nativa Por sua simples presenccedila as armadilhas de caccedila descontextualizadas podem revelar mais do que o gosto dos homens pelo consumo de carne animal)

De modo a levar o leitor a um julgamento adequado a respeito dessa questatildeo ofereccedilo algumas ilustraccedilotildees tiradas da literatura etnograacuteflca sobre armadilhas Observe a armadilha de setas Lembre-se da afirmaccedilatildeo de Danto de que olhar para uma obra de arte eacute como encontrar uma pessoa encontra-se uma pessoa um ser pensante co-presente reagindo a sua aparecircncia externa e a seu comportamento Do mesmo modo responde-se a uma obra de arte como a um ser co-presente um pensamento encarnado Agora imagine-se encontrando uma armadilha de setas natildeo (ass im espero) como a viacutetima que seraacute capturada mas como o visita nte de uma galeria que encontra uma instalaccedilatildeo feita pelo mais recente artista contemporacircneo Em tais circunstacircncias e sem qualquer contexto adicional o que o visitante poderaacute intuir como sendo o pensamento ou a intenccedilatildeo revelados por essa obra de arte

Creio que natildeo haveria nada errado caso o visitante imaginaacuterio de nossa exibiccedilatildeo visse nessa armadilha de setas uma representaccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo humana no mundo Essa eacute uma representaccedilatildeo que as pessoas de pensamento limitado poderiam censurar e negar se ao menos estivessem conscientes de que a armadilha poderio ser uma representaccedilatildeo Isso porque ela aponta para a existecircncia humana como uma violecircncia

impensada e iminente o que talvez natildeo seja um belo pensamento mas nem por isso pode ser considerado falso ou natildeo artiacutestico Inicialmente uma armadilha como essa comunica uma ausecircncia fatal - a ausecircncia do homem que a idealizou e armou e a ausecircncia do animal que se tornaraacute a viacutetima (o artista indicou essa viacutetima num segundo plano da ilustraccedilatildeo) Devido a essas ausecircncias marcadas a armadilha em questatildeo como todas as outras funciona como um poderoso signo Mesmo natildeo sendo projetada explicitamente para comunicar ou func ionar como signo (na verdade eacute projetada para ficar oculta e passar despercebida) a armadilha entretanto eacute muito mais significat iva do que a maioria dos signos su postos como tais A violecircncia estaacutetica do arco retesado a malevolecircncia congelada dos paus e das cordas satildeo reveladoras por si mesmas a despeito do recurso a representaccedilotildees convencionais Uma vez que esse eacute um signo natildeo oficial ele escapa de toda censura Nele eacute possiacutevel ler a intenccedilatildeo de seu autor e o destino de sua viacutetima Essa armadilha eacute um modelo bem como um instrumento De fato todos os instrumentos satildeo modelos porque eles precisam ser adaptados agraves caracteriacutesticas de seus usuaacuterios e assim tecircm sua marca Uma perna artificial eacute um modelo de uma perna verdadeira que estaacute ausente uma representaccedilatildeo que funciona como uma proacutetese A armadilha de setas eacute especialmente evidente como um modelo de seu criador porque ela tem que substituiacute-lo como uma espeacutecie de caccedilador substituto ela caccedila para seu dono Eacute de fato um autocircmato ou robocirc cujo design condensa o design de seu mentor Ela estaacute equipada com um transdutor sensorial rudimentar (a corda suscetiacutevel ao toque do animal) Esse siste ma nervoso aferente leva informaccedilotildees para o comando central (o mecanismo de disparo uma chave base de todos os dispositivos de processamento de informaccedilotildees) que ativa o sistema eferente liberando a energia armazenada no arco que impulsiona as setas produzindo accedilatildeo a di stacircncia (a morte da viacutetima) Isso natildeo eacute apenas o modelo de uma pessoa como um boneco qualquer mas um modelo eficaz de

T R A o U ccedil Agrave o bull A L F R E o G E L L I 83

ae R E V I 5 T A DO P R o G R A M A DE POacute 5 - G R A D U A ccedil Aacute o E M A R T E 5 V I 5 U A I 5 E B A bull U F R J 2 o o

pessoas que funciona Seria razoaacutevel perguntarmos que escultura seria capaz de mostrar mais sobre a condiccedilatildeo humana revelando apenas nosso delineamento exterior do que esse dispositivo mecacircnico Muito mais sobre a existecircncia humana estaacute presente aqu i do que em qualquer escultura mas como esse natildeo eacute um exemplo oacutebvio de um objeto de arte jamais seraacute olhado sob esse prisma

Aleacutem disso se olharmos para outras armadilhas poderemos ver que cada uma eacute natildeo apenas o modelo de se u criador um eu subsidiaacuterio na forma de um autocircmato mas cada uma eacute tambeacutem um modelo de sua viacutetima Esse modelo pode refletir efetivamente a forma externa da viacutetima como na cocircmica armadilha de girafa que delineia em negativo os contornos da parte inferior do corpo desse animal Ou a armadilha pode de modo mais suti l e abstrato representar paracircmetros do comportamento natural do animal que satildeo subvertidos a fim de aprisionaacute-lo As armadilhas satildeo paroacutedias letais do Umwelt do animal Assim o rato que gosta de se enfiar em espaccedilos estreitos tem uma cavidade atraente preparada para sua uacuteltima e fatal correria na escuridatildeo Eacute claro que a armadilha natildeo eacute em si mesma inteligente ou enganosa O caccedilador eacute que conhece as respostas habituais da viacutetima e eacute capaz de subvertecirc-Ias Mas uma vez montada a armadilha a habilidade e o conhecimento do caccedilador estatildeo efetivamente inscritos nela de forma objetiflcada caso contraacuterio a armadilha natildeo funcionaria Esse conhecimento objetivo sobreviveria ateacute mesmo agrave morte do proacuteprio caccedilador e tambeacutem seria (parcialmente) legiacutevel por outros que soacute tivessem acesso agrave armadilha e natildeo ao conhecimento sobre o animal que estaacute refletido em seu projeto A partir da forma da armadilha poderiam ser deduzidas as disposiccedilotildees da viacutetima Nesse sentido as armadilhas podem ser consideradas como textos so bre o comportamento animal

A armadilha eacute portanto um modelo tanto de seu criador o caccedilador quanto de sua viacutetima a presa animal Poreacutem mais do que isso a armadilha encarna um cenaacuterio que eacute

184

o nexo draacutematico que liga os dois protagonistas e que os alinha no tempo e no espaccedilo Nossas ilustraccedilotildees natildeo podem mostrar isso porque elas apresentam as armadilhas esperando suas viacutetimas ou viacutetimas que jaacute foram capturadas Elas natildeo podem mostrar po reacutem a estrutura temporal da armadilha Essa estrutura tempo ral o potildee o tempo suspenso o tempo vazio da espera agrave cataacutestrofe suacutebita que resulta do fechamento da armadilha Essa estrutura temporal varia com o tipo de armadilha empregado mas natildeo eacute difiacutecil ver no drama da captura um anaacutelogo mecacircnico da sucessatildeo traacutegica de hubris-nemesisshycotostrophe Considere o hipopoacutetamo condenado tranquumlilo com a se nsaccedilatildeo de fal sa seguranccedila decorrente apenas de seu tamanho e majestade Quantos heroacuteis traacutegicos sofreram das mesmas ilusotildees de presunccedilatildeo e atraiacuteram o mesmo destino) Se o chimpanzeacute que cai na armadilha de Boyer for Fausto talvez este hipopoacutetam o seja Otelo O fato de que todos os animais que caem viacutetimas das armadilhas sempre provoquem suas quedas por meio da proacutepria autoconfianccedila complacente demonstra que a caccedila com armadilhas eacute uma forma muito mais poeacutetica e traacutegica do que a simples perseguiccedilatildeo Este uacuteltimo tipo de caccedilada iguala caccediladores e viacutetimas unidos em accedilatildeo e reaccedilatildeo espontacircneas ao passo que a caccedila com armadilhas hierarquiza decisivamente o caccedilador e a viacutetima O capturador eacute Deus ou o destin o o animal capturado eacute o homem em sua encarnaccedilatildeo traacutegica

Parece -me portanto que mesmo sem o contexto etnograacutefico mesmo sem a exegese de qualquer nativo armadilhas animais como essas poderiam ser apresentadas ao puacuteblico como obras de arte Esses dispositivos incorporam ideacuteias veicu lam significados porque uma armadilha por sua proacutepria natureza eacute uma representaccedilatildeo transformada de seu fabricante o caccedilador e da presa animal sua viacutetima e de sua relaccedilatildeo muacutetua que nos povos caccediladores eacute fundamentalmente socia l e complexa Isso significa que essas armadilhas comunicam a noccedilatildeo de um nexo de intencional idades entre os caccediladores e as presas animais mediante formas e mecanismos materiais

--- -- ---

Creio que essa evocaccedilatildeo de intencionalidades complexas eacute na realidade o que serve para defin ir as obras de arte e que adequadamente emolduradas as armadilhas para animais poderiam evocar intuiccedilotildees complexas a respeito do ser da alteridade do relacionamento O impacto dessas armadilhas agora apresentas como obras de arte pode no entanto ser maior caso elas sejam exibidas ao lado de obras de artes ocidentais (das quais eacute faacutecil achar numerosos exemplos) que ocupem pelo menos aparentemente o mesmo territoacuterio sem ioloacutegico

O trabalho de Damien Hirst um dos jovens artistas britacircnicos mais citados pela miacutedia parece ser um desses casos De fato foi a notoacuteria exposiccedilatildeo de Hirst exibida na Tate Gallery em 1992 que me induziu pela primeira vez a pensar sobre as armadilhas como objetos artiacutesticos Considere o tubaratildeo de Hirst no tanque de formol Essa obra cativa devido ao contraste profundo entre o pei xe gigantesco ultrabioloacutegico e sua gaiola ou armadilha de vidro asseacuteptica (recordando Eichmann em seu julgamento preso numa caixa de vidro) cujas paredes refletoras projetam imagens virtuais da igualmente asseacuteptica galeria dentro do domiacutenio bioloacutegico do tubaratildeo Um eco distante das metades superior (bioloacutegica) e inferior (mecacircnica) do Large Glass de Duchamp - sem duacutevida - mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre nosso poder de imobilizar forccedilas elementares que no entanto parecem sempre potencialmente prontas a escapar Ateacute mesmo o tubaratildeo de Hirst tatildeo morto quanto possiacutevel continua residualmente vivo observando e pensando ou pelo menos parece estar porque manteacutem seus olhos abertos e fi xos em noacutes Um dia ele escaparaacute

Seria apropriado colocar o tubaratildeo de Hirst ao lado da pintura em casca de aacutervore extraiacuteda do livro Ancestral Connections de Morphy l6 que mostra um tubaratildeo capturado quase idecircntico visualmente agrave instalaccedilatildeo exibida na Tate Gallery Os Yolnngu produzem esse t ipo de pintura durante rituais funeraacuterios e ela se refere agrave jornada rio acima de um tubaratildeo ancestral miacutetico que foi capturado

temporariamente em seu trajeto mas escapou Essa pintura refere-se agraves afiliaccedilotildees do clatilde dos mortos e metaforiza a viagem do espiacuterito agrave terra ancestral e a necessidade de transferir- lhe forccedilas (por meio de cerimocircn ias funeraacute rias) de modo que ele como o tubaratildeo ancestral possa escapar das armadilhas que ameaccedilam sua trajetoacuteria O episoacutedio do tubaratildeo sendo capturado e escapando eacute encenado pelos participantes Essas ideacuteias escatoloacutegicas satildeo eacute claro especiacuteficas da cultura Yolnngu mas eu me arriscaria a sugerir que a semelhanccedila entre o trabalho de Hirst e a obra Yolnngu natildeo eacute apenas superficiaJ mas insinua uma metaacutefora vaacutelida em termos interculturais embora sujeita a leituras diferenciadas

Enquanto isso para reforccedilar a ideacuteia de que a obra de Hirst diz respeito de modo profundo agraves armadilhas e agrave rede de intencio nalidades complexas que a captura em armadilhas estabelece descreverei outro trabalho de Hirst presente na mesma exibiccedilatildeo na qual uma armadilha em funcionamento foi efetivamente incorporada Refiro-me agrave instalaccedilatildeo que consiste em uma cabeccedila de ovelha dentro de uma caixa de vidro a cabeccedila deteriora-se e cria larvas que se transformam em moscas que depois se tornam viacuteti mas de uma armadilha para

TRAD UCcedilAacuteO middot A LFRED G ELL 185

ae R E V I TA DO P R o G R A M A D E POacute bull G R A o U A ccedil A o

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz vio leta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais e las morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antro poacutelogos deve riacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacuted igo mito loacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se ide ntificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal mo rto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus pe rverso que colocou este mundo incoerente em movim ento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hi rst natildeo seria o uacutenico artista ocidenta l contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceitual Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posi cionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalh o natildeo eacute tanto o tema da vio lecirc ncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetrado res justamente o tema que ide ntifiquei anteriorme nte em relaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relacio na-se diretamente ao tipo de armadilha serial para ho mens (esp ingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de pro priedades em tempos passados

Exemplos adicionai s de obras de arte poacutesshyDuchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 19 I7) po deriam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hi st satildeo exemplos do mesmo tip o de co isa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

E M A R T E v I U A I E 8 A bull U F R J 2 o0 1

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo supo nho que para que uma armadi lha afri cana o u uma armadilha de qualquer o utra parte exoacutetica do mundo possa funci o nar como uma o bra de arte seja realmente necessaacuterio o u desejaacuteve l que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o signifi cado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armad ilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento IB Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

186

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a arm ad ilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmenteshyartiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinh a Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecircshyse imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bongl Antes de saber o que aconteceu tran sforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido como qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as tran substanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hil-st discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)Iarvamoscamosca (morta) - poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tam pouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode fun cionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier2o Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal

reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tam beacutem em outros lugares

~ ---------- --------------------

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torn a-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente lo ngo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuter ios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas vo ltada natildeo bastaria para retiraacute-Ias do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seri a evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - eacute que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente agraves enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e co nteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

T R A D U ccedil Acirc o bull A L F R E D G E L L 187

--------------------------- -------------

ae REVIST A DO P ROGRAMA DE PO S -GRADUACcedilAtildeO

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porq ue ela proacutepria eacute alongada (eefshyongaced) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricad a eacute certame nte na forma de armad il has como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo imagens dos antepassado s no sentido de que elas contecircm e ncarnam e comu nicam o poder ancestral Aleacutem disso elas to rnam possiacuteve l a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacute m sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fanta siado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor O s Anga ao contraacuterio tecircm imagens de poder ancestral que de fato trabalham de fato alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo real iacutestica de form as (superficiais)

Con cl usatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armad il has exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio shya disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte) Espero que eu

EM A RTES VISUAIS EB A bull UFRJ 2001

ten ha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teo ria institucional da arte liberaria imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservandoshylhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente dife rentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses objetos tornar-se-iam artiacutesticos Sei-ia essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacute logo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa tran sformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute co nstituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como arte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm po uco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arte para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como ta l numa cidade provinciana muito sono lenta que se vanglorie (como a maioria de las) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad~ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas po r que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arte caso produzisse coisas genericamente semel hantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21 ) - res ide na intluecircn cia pro longada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de o bra de arte pela antropologia da arte23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte co ntemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode se r visto em galerias de artesanat o provincianas Deve-se acei tar a premissa em essecirc ncia libe rtadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentai s jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabri cado pelo homem pode ser ve iculado como o bra de arte Eacute isso que a teo ria instituciona l da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de t eoria da arte contemporacircnea desde 19 I7 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urin o l (ou Fontaine) Fo i no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Dami en Hi rst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Ducham p pouco poderiacuteamos esperar de la nesta fase ta rdia Na verdade as co isas natildeo satildeo middotbem assim Os ready-made de Duchamp foram cuidadosamente selecio nados e firmeme nte integrados tematicamente a do is de seus principais projetos (o Large Gass de 19 I 5shy23 e a Waterfal de 1944-66) O aspecto mais inte ressante a respeito dos ready-made de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Ducham p para selecio naacuteshylos (reve ladas ao lo ngo de toda uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceitual aparenteme nte arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos e les funci onam se eacute que fun cionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e hi stoacute ricas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maio r ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquant o veiacutecu los de ideacute ias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de reali za r et c Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer o bjeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencional idades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de recon struir plename nte 2~

Assim eacute preci so mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simp les exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvid o e disseminado Desse ponto de vista a t eoria puramente institucional da arte eacute menos do que sati sfatoacuteria porque nada tem a dizel- sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuai s ao s quais o puacuteblico ed ucado de ga leria eacute sensiacuteve l Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da inte rpretabil idad e para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teor ia pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre o bra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos funcionais e obras de arte significat ivas Esse eacute um legado dos fil oacutesofos poacutes-iluministas co mo Hege l que obscurece a compreensatildeo de qual quer mundo artiacutestico distinto daqu e le que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar sign ificado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas re ligiosas e o utras Essas funccedil otildees satildeo praacuteticas nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e da man ei ra como os seres humanos podem interferir em seu funci onamento de modo a t irar o melhor proveito poss iacuteve l dele O bras

TR ADUCcedilAo A L F RED GE LL 189

ae R E V 1ST A D D P R D G R A M A DE POacuteS - G R A o U A ccedil A o E M A R T E S V I SUA I S E B A bull U F R J bull 2 o o I

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames2s A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucional e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bemshysucedida candidatura a obra de arte da rede de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencional idades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teorias interpretativa e institucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

190

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26

demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-Ia como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funcioacutena eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

Quando morreu em 1997Alfred Gell era Professor de Antropologia na London SchooJ of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a resp eito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Jmag es Totooing in Poynesia (1993) e Art ond Agency An Anhropologicol Theory ( 1998)

Traduccedilatildeo Marcia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

Notas

I Ver Dickie George Are and Aesthetics Ithaca Nova York Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circfe a Theory ofArt New York Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique of Judgements ofTaste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris james ArtlArtifact on the Museum and Anthropology Currene AnUacutelropology 29(5) 1988775-9

4 Faris op cit776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifacc African Art in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestei Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of Philosophy Journal of Philosophy 61 1964 57 1-84

7 Dickie 1974 op cir

8 Ver Danto Arthur The Tran sfJguration o the Commonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cir

9 Danto 1981 op cir

10 Faris op cir 778

I I Clifford james The Predicament of Culcure Cambridge MA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit31

13 Danto 1988 op cir 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agrave Penseacutee introduction agrave Ianalyse des eacutepopeacutees Fang Paris Societeacute dEthnologie 1988

15 Boyer op cie 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art ando an Aboriginal Syseem o Knowledge Chicago Chicago University Pness 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MD Rowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the Renais sance Oxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report ofthe American Bureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-Anga Material and Symbolic Aspects ofTrapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

--_ _--shy

21 Weiner J (ed) Aesthetics is a Cross-cultural Category Graup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic ExperienceAn Anthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and the Enchantment ofTechnology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderes cognitivos

25 Gell op cie 60

26 Thomas Nicholas Enwngled Objects Cambridge MA Harvard University Press 1991

TRADUccedilAO AlFRED GEll 191

Page 5: A Rede de Vogel- Armadilhas Como Obras de Arte

ae REVISTA DO PROGRAMA DE POS-GRADUACcedilA O EM ARTES VISUAIS EBA bull UFRJmiddot 2001

resultante final do fazer artiacutest ico da fdosofia da histoacute ria e da criacutetica de arte tomados conjuntamente Todavia o conceito-chave aqui eacute o de tradiccedilatildeo progressiva cumulativa (Geist esp iacuterito etc)

O que Danto faz quando o puacuteblico de Nova York se entusiasma com uma rede de caccedila como se ela fosse a mais recente produccedilatildeo do Geist na pessoa de Jackie Windsor ou de seu grupo A arte contemporacircnea eacute capaz de digerir desse modo objetos externos A ausecircncia de um autor identificaacutevel o u de uma intenccedilatildeo artiacutestica reconheciacutevel eacute um obstaacutecu lo Danto natildeo pode deixar de assumir uma posiccedilatildeo criacutetica em relaccedilatildeo a isso Jaacute que intenccedilatildeo signi fi cado e fundamentaccedilatildeo em uma tradiccedilatildeo diferenciada e auto-refexiva satildeo fundamentais para sua compreensatildeo da arte contemporacircnea e mesmo de toda arte ocidental posterior ao Renascimento O caccedilador Zande que fez ou encomendou a rede natildeo participa do mesmo quadro histoacuterico de referecircncia para o qual o trabalho semelhante de Windsor estaacute apontando de modo que a analogia entre eles eacute enganosa Nem mesmo eacute possiacutevel co nsiderar alternativamente que o artista nesse caso eacute Vogel (Danto sequer considera essa possibilidade) que estaacute apresentando a rede como um reody-mode de acordo com a mesma tradiccedilatildeo dos protoacutetipos de Duchamp como a paacute o cabide e o urinol Mesmo porque Vogel natildeo estaacute se apresentando como um segundo Duchamp mas como uma curadora de museu que oferece para admiraccedilatildeo do puacuteblico um objeto feito na Aacutefrica por um artista anocircnimo que natildeo eacute certamente ela proacutepria

O dilema de Danto diz respeito essencialmente ao fato de que sua teoria interpretativa da arte eacute construiacuteda a partir do referencial hist oacuterico impliacutecito na arte ocidental segundo um modelo hege liano Caso ele diga que nenhuma produccedilatildeo externa ao fluxo histoacuterico da arte ocidental (que eacute sem duacutevida muito amplo) pode ser considerada co mo arte estaacute sujeito a acusaccedilotildees de eurocentrismo Caso ele admita poreacutem que objetos exoacuteticos que natildeo participaram do Geist da arte oc idental

178

podem se r mesmo assim obras de arte por que excluir a rede E caso a rede seja inc lu iacuteda o que sobra do valor explicativo da interpretaccedilatildeo historicamente fundamentada e da distinccedilatildeo entre arte e artefato) O filoacutesofo foi efetivamente enlaccedilado pela rede de Vogel que assim termino u por cumprir sua funccedilatildeo embora natildeo do modo convencional

Soacute existe uma saiacuteda para o idealista nessas circ unstacircncias e le deve assumir que existem afinidades interpretativas o u simboacutelicas subjacentes agraves verdadeiras obras de arte produzidas em diferentes tradiccedilotildees culturais A rede Zande seraacute excluiacuteda nos termos Zande porque nessa cultura como possivelmente em todas as outras os objetos artiacutesticos devem ter um tipo de significaccedilatildeo simboacutelica que uma mera rede de caccedila natildeo pode ter Sendo (supostamente) excluiacuteda pelos proacuteprios Zande a rede natildeo poderia ser incluiacuteda pelos nova-iorquinos porque isso significaria contradizer os princiacutep ios de Danto de que sem interpretaccedilatildeo natildeo haacute arte Depois de concordar com a ideacuteia de que nem toda embalagem de sabatildeo Brillo mas apenas a que foi criada por Warhol eacute arte Danto natildeo pode deixar de dizer que essa rede nos termos Zande natildeo equivale a uma obra de Warho l pois eacute apenas uma velha rede como outra qualquer

Mas como estabelecer paracircmetros para a afinidade entre obras de arte africanas (devidamente qua lifi cadas) e obras de arte ocidentais e para a natildeo-afinidade entre a rede Zande e ambas as artes Danto argumenta que a grande escultura africana foi reconhecida como tal e colocada no mesmo niacutevel de ponatello Thorwa ldsen etc por meio de um processo de descoberta empreendido por Pi casso Brancusi Roger Fry e seus contemporacircneos comparaacutevel agraves descobertas cientiacuteficas Essa grandeza jaacute estaria laacute mas teria sido ofuscada por juiacutezos preconceituosos associados ao colonialismo Esse tipo de arte africana foi produzido individualmente por escultores altamente talentosos com intenccedilotildees artiacutesticas (esteacuteticas) especiacuteficas que eles imprimiram em seus trabalhos Soacute posteriormente essas

obras se tornaram acessiacuteveis ao puacuteblico natildeo africano graccedilas aos esforccedilos de alguns simpatizantes ocidentais Entretanto essa abordagem a respeito da incorporaccedilatildeo da arte africana nos moldes de Danto traz consigo um certo risco de esteticismo shymas natildeo eacute justamente Danto quem nos diz que o que faz da arte arte natildeo satildeo apenas as caracteriacutesticas exteriores (esteacuteticas) que ela possa ter Sendo assim Danto eacute obrigado a mudar sua taacutetica e considerar a possibilidade de existecircncia de uma arte africana que natildeo seria obviamente diferente sob qualquer aspecto externo ou visiacutevel da natildeo-arte africana uma afirmaccedilatildeo que natildeo seria aplicaacutevel aos exemplos famosos da arte escultoacuterica cuja qualificaccedilatildeo enquanto arte nunca foi colocada em duacutevida pelo menos por Danto

Danto eacute um filoacutesofo e sendo assim natildeo escolheu o caminho mais oacutebvio que consistiria em retomar tudo que jaacute foi escrito sobre cultura material africana Ao contraacuterio tentou obedecer a seu imperativo disciplinar entregando-se a um Gedonkexperiment no qual ele parece ser particularmente habilidoso Danto imagina a existecircncia de duas tribos africanas proacuteximas mas historicamente diferenciadas que ele denomina Pot People (povo ceramista) e Bosket Folk (povo cesteiro) Aparentemente a produccedilatildeo material dessas duas tribos que inclui potes e cestos eacute quase idecircntica mas o povo ceramista venera seus oleiros que satildeo tidos como sacerdotes e saacutebios e considera a olaria uma atividade sagrada que evoca a cosmogecircnese jaacute que Deus foi um oleiro que moldou o mundo a partir do barro Esse povo tambeacutem faz cestos para fins utilitaacuterios mas essa natildeo eacute uma atividade considerada nobre Do o utro lado da montanha em meio ao povo cesteiro as coisas satildeo diferentes jaacute que Deus era um cesteiro e fez o mundo a partir de fibras vegetais e os potes de ceracircmica produzidos satildeo considerados meramente utilitaacuterios Nessa tribo os sacerdotes satildeo os cesteiros e os oleiros satildeo apenas especialistas

teacutecnicos artesatildeos

Danto sustenta que mesmo que soacute um exame minucioso permita aos museoacutelogos

distinguir os potes e os cestos produzidos em ambas as tribos a diferenccedila espiritual envolvida na elaboraccedilatildeo dos potes sagrados entre o povo ceramista eacute suficiente para garantir-lhes o status de obra de arte em oposiccedilatildeo aos potes utilitaacuterios do povo cesteiro (e vice-versa em relaccedilatildeo aos cestos) Os potes do povo ceramista e os cestos do povo cesteiro estatildeo ambos na prestigiada coleccedilatildeo que estaacute no Kunsthistorisches Museum Jaacute os cestos do povo ceramista e os potes do povo cesteiro pertencem a uma coleccedilatildeo um pouco diferente que estaacute no Naturhistorisches Museum As obras que pertencem ao Museu de Histoacuteria da Arte emanam do Espiacuterito Absoluto satildeo veiacuteculos de ideacuteias completas que se o riginam da condiccedilatildeo humana em toda sua densidade e fatalidade histoacuterica e consequumlentemente a iluminam Jaacute os objetos que estatildeo no Museu de Histoacuteria Natural satildeo meios para fins utilitaacuterios instrumentos que ajudam os seres humanos em sua vida material - eles fazem parte da prosa do mundo segundo uma expressatildeo hegeliana

Danto em consequumlecircncia exclui a rede de caccedila mera manifestaccedilatildeo prosaica no sentido hegeliano e esboccedila de modo experimental uma distinccedilatildeo particularmente marcada entre objetos de arte e artefatos Entretanto como em todas as experiecircncias desse tipo eacute possiacutevel questionar se essa di stinccedilatildeo corresponde agrave realidade Creio que a antropologia deveria pronunciar-se a esse respeito jaacute que os experimentos de Danto evocam explicitamente a etnografia como protoacutetipo de suas ficccedilotildees expositivas Em seu comentaacuterio sob re a exposiccedilatildeo Faris afirma que o problema estaacute no fato de que a antropologia tende de modo geral a ser condescendente com experimentaccedilotildees teoacutericas como a de Danto Ele acusa enfaticamente o ensaio escrito por Danto de promover uma perspectiva orto doxa viciada tanto em relaccedilatildeo agrave histoacuteria da arte quanto em relaccedilatildeo agrave antropologia Modernistas como Danto estariam

paralisados pela aceitaccedilatildeo de todas as tiranias culturais e pela consequumlente cegueira em relaccedilatildeo agraves tiranias especiacuteficas [de modo que] eles incorrem com

T R A o U ccedil Aacute o bull A l f R E o G E l l I 79

ae REVISTA DO PROGRAMA DE P6S-GRADUACcedilAO EM ARTES VISUAIS EBA bull UFRJ 2001

frequumlecircncia no sentimento humanista mais banal e no entusiasmo inuacutetil em relaccedilatildeo ao poder emotivo e expressivo_o Eles o fazem em grande medida reconhecendo o empreendimento antropoloacutegico como por exemplo a ideacuteia de que os objetos africanos natildeo podem ser inteiramente compreendidos sem a referecircncia aos nativos africanos no contexto cultural especiacutefico que os produziu Danto tem que concordar que natildeo se deve atribuir ao contexto um valor axiomaacutetico - embora seja inegaacutevel sua relaccedilatildeo com o significado - particularmente quando tanto contexto quanto significado

foram indicados pela Antropologia 10

Faris argumenta ainda que de modo geral esse tipo de liberalismo recebe as produccedilotildees do Outro etnograacuteflco nos termos do Outro mas soacute na medida em que essa produccedilatildeo seja aceitaacutevel ou coerente com um dado conceito de Espiacuterito Absoluto

A etnografia imaginaacuteria de Danto a respeito da cosmogenia dos potes e dos cestos revela com precisatildeo o tipo de narrativa antropoloacutegica que ele considera conveniente e de fato tanto os antropoacutelogos quanto seus informantes nunca hesitaram em produzir relatos desse tipo O ponto foucaultiano de Farris diz respeito ao fato de que o empreendimento antropoloacutegico como um todo tende a buscar esse tipo de saacutebio ou especialista nativo ao qual Danto atribui o poder de distinguir entre arte e natildeo-arte Isso ocorre porque em uacuteltima instacircncia noacutes antropoacutelogos queremos tachar esses objetos e atribuir-lhes significados fixos e controlaacuteveis Concordo com Faris quanto ao fato de que os saacutebios (fictiacutecios) de Danto satildeo projeccedilotildees palpaacuteveis de autoridade e como tal merecem ser desmascarados Mas infelizmente ele acaba natildeo discutindo a distinccedilatildeo objeto de arte versus artefato exceto para indicar que essa oposiccedilatildeo estaacute sujeita a uma redeflniccedilatildeo contiacutenua II e que dificilmente pode ser separada de questotildees relativas agrave ideologia e ao poder

O proacuteprio Danto natildeo esgota o assunto quando diz que os saacutebios fornecem interpretaccedilotildees capazes de transformar as verdadeiras obras de arte em fragmentos do Espiacuterito Absoluto Na segunda parte de

180

seu ensaio ele divaga sobre a ideacuteia de que os artefatos satildeo incompletos enquanto as obras de arte encarnam ideacuteias autoshysuficientes e completas Citando Heldegger ele observa que um artefato eacute sempre parte de um Zeuggonzes - um sistema de ferramentas um sistema teacutecnico que forma uma totalidade Um martelo natildeo existe por si soacute implica os pregos a serem martelados as madeiras nas quais essa accedilatildeo seraacute executada as serras que daratildeo forma agrave madeira e assim por diante A rede (implicitamente) eacute apenas um componente do Zeuggonzes de caccedila Zande e natildeo tem significado em si mesma Mesmo quando satildeo bem elaborados objetos como uma rede um martelo um trinco de porta decorativo ou outro exemplo qualquer de arte aplicada satildeo incapazes de veicular o tipo de ideacuteia que distingue o objeto artiacutestico pois este sempre se reporta ao universal

seria equivocado afirmar tais coisas [que dizem respeito a verdades universais] a respeito de facas redes ou grampos de cabelo objetos cujo significado se esgota em

sua utilidade Afinal de contas a universalidade diz respeito antes de mais nada a pensamentos e proposiccedilotildees e ningueacutem suporia que objetos como os que acabei de citar expressem um conteuacutedo universal A realidade desses objetos esgotashyse em seu uso jaacute as obras de arte possuem um papel mais elevado colocando-nos em contato com realidades superiores elas satildeo definidas por meio da apreensatildeo de significado Elas devem ser explicadas pelo que expressam Diante de uma obra de arte estamos diante de algo que soacute por si mesmo eacute possiacutevel apreender do mesmo modo que soacute por intermeacutedio de accedilotildees corporais podemos

ter acesso agrave mente de outra pessoa 12

Mas ateacute mesmo Danto eacute forccedilado a fazer uma ressalva dado ser oacutebvio que a maior parte da produccedilatildeo pertencente agrave tradiccedilatildeo artiacutestica ocidental natildeo foi produzida para ser apreciada pelo puacuteblico mas para atender a propoacutesitos instrumentais As pinturas religiosas servem a funccedilotildees lituacutergicas (como peccedilas de altar objetos de devoccedilatildeo) retratos expressam semelhanccedila estaacutetuas dignificam espaccedilos puacuteblicos e soberanos e assim sucessivamente O mesmo eacute vaacutelido de modo ainda mais contundente para os

produtos africanos aos quais Danto atribui o estatuto de obras de arte Nenhum deles foi feito para ser admirado apenas como uma obra de arte independente Esses objetos em vez di sso fazem parte de cerimocircnias puacuteblicas que todavia natildeo podem ser expo rtadas como os objetos o satildeo Em suma natildeo apenas as redes mas tambeacutem objetos como as maacutescaras fazem parte do Zeuggonzes Danto lida com esse problema admitindo que

ateacute haacute pouco tempo [e mesmo agora provavelmente na Aacutefrica] as obras de arte usufruiacuteam de dupla identidade tanto como objetos de uso e praacutexis quanto como receptaacuteculos de espiacuterito e significado A arte africana uma vez exportada perde a primeira funccedilatildeo mas reteacutem a uacuteltima O objetivo natildeo eacute fazer do destacamento espacial um atributo para a definiccedilatildeo de arte porque isso desqualificaria como arte as obras das culturas primitivas Em suas proacuteprias sociedades essas obras tecircm um lugar mas que natildeo eacute o tipo de lugar que elas tecircm no Zeugganzes como ferramentas em um sistema teacutecnico O fundamental eacute que toda a vida praacutetica dessas sociedades poderia seguir adiante mesmo se natildeo houvesse nelas nenhuma obra de arte mesmo admitindo que as obras de arte fazem parte de rituais supostamente dotados de eficaacutecia praacutetica 13

Essa sem duacutevida eacute uma declaraccedilatildeo enigmaacutetica ateacute mesmo para um fil oacutesofo

_---- ----- - ---- - --- ---__-------shy

r---

Danto quer dizer que as obras de arte tecircm significados independentemente de seu uso praacutetico e agrave medida que satildeo artiacutesticos natildeo satildeo uacuteteis mas significativos Todavia esses mesmos objetos satildeo usados em rituais supostamente eficazes Poderiacuteamos subtrair hipoteticamente as obras de arte e a vida praacutet ica seria capaz de co ntinuar porq ue os mesmos o bjetos di sfarccedilados de ferramentas ou artefatos estariam laacute para preencher suas funccedilotildee s extra-artiacutesticas anteriores Esse raciociacutecio eacute ce r tamente casuiacutestico De que maneira as maacutescaras africanas podem participar de um contexto ritual como instrumentos eficazes sem que possuam qualquer significaccedilatildeo interpretativo-cultural o que segundo o proacute prio Danto jaacute seria condiccedilatildeo para qualificaacute-Ias como arte A separaccedilatildeo entre instrumentalidade e espiritualidade eacute portanto impraticaacutevel E se as obras de arte satildeo um tipo de instrumento (o que creio eu natildeo seria questionado pelos escultores africanos) por que natildeo considerar tambeacutem que os instrumentos podem ser um tipo de obra de arte

A partir daiacute podemos inferir que Danto exclui a rede como arte porque ele natildeo pode imaginar que um saacutebio nativo seja capaz de contar-lhe uma estoacuteria suficientemente convincente capaz de persuadi-lo do contraacuterio Ele faz essa suposiccedilatildeo porque uma rede eacute usada para caccedilar e para ele a caccedilada eacute apenas um meio para a obtenccedilatildeo de alimentos logo a rede natildeo passa de uma ferramenta como um ralador de queijo Esse raciociacutenio revela uma total falta de familiaridade com a etnografia africana na qual a maioria das caccediladas eacute descrita como parte de rituais especiacuteficos (iniciaccedilotildees fe stiva is anuais etc) ou pelo menos como um costume altamente ritualizado mas natildeo com certeza como um dispositivo corriqueiro para garantir a sobrevivecircncia Assim caso a rede tivesse sido documentada de fo rma correta na eacutepoca em que foi coletada (c 19 10) eacute mais provaacutevel que ela figurasse ritualisticamente como um atributo do papel do caccedilador no drama co letivo da caccedila ritual pelo menos natildeo se pode excluir essa possibilidade Nesse caso o funcio namento da rede natildeo

TRADUccedilAO bull A LFRED GELL 181

seria muito diferente do funcionamento de qualquer outro item da parafernaacutelia ritual como as maacutescaras por exemplo

Entretanto eacute preciso esclarecer que os saacutebios africanos estatildeo preparados para contar aos antropoacutelogos estoacuterias que revelam natildeo apenas que a caccedila eacute ritual mente importante (como ordaacutelio provaccedilatildeo para os jovens e assim por diante) mas tambeacutem que seus meios as redes ou armadilhas satildeo metaflsicamente significativos Recorrerei agora agrave narrativa de

Soyer l4 a respeito de cantores Fang (Aacutefrica Ocidental) de eacutepicos maacutegicos (mvet) Soyer

estaacute tentando entender a natureza do saber tradicional e no decorrer de suas investigaccedilotildees acaba conhecendo um especialista em canto chamado Ze com o qual trava um longo debate sobre a natureza da sabedoria

182

~ bull UFRJ 2001

Assim como os animais selvagens e como evur (sabedoriapoder maacutegico) mvet (eacutepico) pertence agrave floresta em sua evanescecircncia vocecirc pensa que pode pegaacute-lo mas ele escapa e eacute vocecirc quem eacute capturado Com Ze percebi que de certo modo as complexidades de mvet eram sempre comparadas a armadilhas Em resposta ele me contou a seguinte estoacuteria

Quando eu era jovem conheci bem os Pigmeu Eles vivem na floresta natildeo satildeo pessoas de aldeia como noacutes Fui com frequumlecircncia caccedilar com eles Os Pigmeu tecircm armadilhas para cada tipo de animal e por isso satildeo tatildeo bem sucedidos Eles tecircm uma

armadilha especial para chimpanzeacutes porque os chimpanzeacutes satildeo como os seres humanos quando tecircm algum problema param e pensam sobre isso ao inveacutes de fugirem e gritarem simplesmente Vocecirc natildeo pode pegar um chimpanzeacute com uma armadilha comum porque ele natildeo foge [e assim o noacute natildeo eacute puxado] Entatildeo os Pigmeu inventaram uma armadilha especial com uma linha que prende o braccedilo do chimpanzeacute A linha eacute bem fina e o chimpanzeacute pensa que pode se soltar Ao inveacutes de arrebentaacute-Ia ele puxa suavemente para ver o que aconteceraacute Neste momento um fardo de setas envenenadas cai sobre ele e isso soacute ocorre porque ele natildeo corre como um animal estuacutepido um antiacutelope por exemPlo faria15

A conversa entre Ze e Soyer natildeo eacute uma anedota boba sobre caccedila mas diz respeito fundamentalmente ao problema faustiano relativo ao conhecimento (entre outras coisas) um problema que natildeo eacute menos importante para o povo Fang da floresta tropical de Camarotildees do que para os

professores do MIT

Com base no depoimento desse saacutebio Fang parece inquestionaacutevel que uma armadilha seja uma metaacutefora de profunda significaccedilatildeo uma refraccedilatildeo do Espiacuterito Absoluto se eacute que esse algum dia existiu Todavia tenhamos em mente as criacuteticas feitas por Faris de que os

saacutebios natildeo estariam falando sobre armadilhas utilitaacuterias prosaicas mas sobre armadilhas imaginaacuterias espirituais armadilhas no sentido figurado natildeo no sentido literal O saacutebio Fang natildeo produziu nenhuma armadilha para a investigaccedilatildeo de Boyer Seria possiacutevel irmos aleacutem do texto de Boyer e montarmos uma exposiccedilatildeo de armadilhas de caccedila apresentando-a ao puacuteblico como uma exposiccedilatildeo de obras de arte

Deixemos o saacutebio fora disso por enquanto e nos perguntemos o que as armadilhas de caccedila animal revelam sobre o Espiacuterito Absoluto mesmo sem sua exegese nativa Por sua simples presenccedila as armadilhas de caccedila descontextualizadas podem revelar mais do que o gosto dos homens pelo consumo de carne animal)

De modo a levar o leitor a um julgamento adequado a respeito dessa questatildeo ofereccedilo algumas ilustraccedilotildees tiradas da literatura etnograacuteflca sobre armadilhas Observe a armadilha de setas Lembre-se da afirmaccedilatildeo de Danto de que olhar para uma obra de arte eacute como encontrar uma pessoa encontra-se uma pessoa um ser pensante co-presente reagindo a sua aparecircncia externa e a seu comportamento Do mesmo modo responde-se a uma obra de arte como a um ser co-presente um pensamento encarnado Agora imagine-se encontrando uma armadilha de setas natildeo (ass im espero) como a viacutetima que seraacute capturada mas como o visita nte de uma galeria que encontra uma instalaccedilatildeo feita pelo mais recente artista contemporacircneo Em tais circunstacircncias e sem qualquer contexto adicional o que o visitante poderaacute intuir como sendo o pensamento ou a intenccedilatildeo revelados por essa obra de arte

Creio que natildeo haveria nada errado caso o visitante imaginaacuterio de nossa exibiccedilatildeo visse nessa armadilha de setas uma representaccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo humana no mundo Essa eacute uma representaccedilatildeo que as pessoas de pensamento limitado poderiam censurar e negar se ao menos estivessem conscientes de que a armadilha poderio ser uma representaccedilatildeo Isso porque ela aponta para a existecircncia humana como uma violecircncia

impensada e iminente o que talvez natildeo seja um belo pensamento mas nem por isso pode ser considerado falso ou natildeo artiacutestico Inicialmente uma armadilha como essa comunica uma ausecircncia fatal - a ausecircncia do homem que a idealizou e armou e a ausecircncia do animal que se tornaraacute a viacutetima (o artista indicou essa viacutetima num segundo plano da ilustraccedilatildeo) Devido a essas ausecircncias marcadas a armadilha em questatildeo como todas as outras funciona como um poderoso signo Mesmo natildeo sendo projetada explicitamente para comunicar ou func ionar como signo (na verdade eacute projetada para ficar oculta e passar despercebida) a armadilha entretanto eacute muito mais significat iva do que a maioria dos signos su postos como tais A violecircncia estaacutetica do arco retesado a malevolecircncia congelada dos paus e das cordas satildeo reveladoras por si mesmas a despeito do recurso a representaccedilotildees convencionais Uma vez que esse eacute um signo natildeo oficial ele escapa de toda censura Nele eacute possiacutevel ler a intenccedilatildeo de seu autor e o destino de sua viacutetima Essa armadilha eacute um modelo bem como um instrumento De fato todos os instrumentos satildeo modelos porque eles precisam ser adaptados agraves caracteriacutesticas de seus usuaacuterios e assim tecircm sua marca Uma perna artificial eacute um modelo de uma perna verdadeira que estaacute ausente uma representaccedilatildeo que funciona como uma proacutetese A armadilha de setas eacute especialmente evidente como um modelo de seu criador porque ela tem que substituiacute-lo como uma espeacutecie de caccedilador substituto ela caccedila para seu dono Eacute de fato um autocircmato ou robocirc cujo design condensa o design de seu mentor Ela estaacute equipada com um transdutor sensorial rudimentar (a corda suscetiacutevel ao toque do animal) Esse siste ma nervoso aferente leva informaccedilotildees para o comando central (o mecanismo de disparo uma chave base de todos os dispositivos de processamento de informaccedilotildees) que ativa o sistema eferente liberando a energia armazenada no arco que impulsiona as setas produzindo accedilatildeo a di stacircncia (a morte da viacutetima) Isso natildeo eacute apenas o modelo de uma pessoa como um boneco qualquer mas um modelo eficaz de

T R A o U ccedil Agrave o bull A L F R E o G E L L I 83

ae R E V I 5 T A DO P R o G R A M A DE POacute 5 - G R A D U A ccedil Aacute o E M A R T E 5 V I 5 U A I 5 E B A bull U F R J 2 o o

pessoas que funciona Seria razoaacutevel perguntarmos que escultura seria capaz de mostrar mais sobre a condiccedilatildeo humana revelando apenas nosso delineamento exterior do que esse dispositivo mecacircnico Muito mais sobre a existecircncia humana estaacute presente aqu i do que em qualquer escultura mas como esse natildeo eacute um exemplo oacutebvio de um objeto de arte jamais seraacute olhado sob esse prisma

Aleacutem disso se olharmos para outras armadilhas poderemos ver que cada uma eacute natildeo apenas o modelo de se u criador um eu subsidiaacuterio na forma de um autocircmato mas cada uma eacute tambeacutem um modelo de sua viacutetima Esse modelo pode refletir efetivamente a forma externa da viacutetima como na cocircmica armadilha de girafa que delineia em negativo os contornos da parte inferior do corpo desse animal Ou a armadilha pode de modo mais suti l e abstrato representar paracircmetros do comportamento natural do animal que satildeo subvertidos a fim de aprisionaacute-lo As armadilhas satildeo paroacutedias letais do Umwelt do animal Assim o rato que gosta de se enfiar em espaccedilos estreitos tem uma cavidade atraente preparada para sua uacuteltima e fatal correria na escuridatildeo Eacute claro que a armadilha natildeo eacute em si mesma inteligente ou enganosa O caccedilador eacute que conhece as respostas habituais da viacutetima e eacute capaz de subvertecirc-Ias Mas uma vez montada a armadilha a habilidade e o conhecimento do caccedilador estatildeo efetivamente inscritos nela de forma objetiflcada caso contraacuterio a armadilha natildeo funcionaria Esse conhecimento objetivo sobreviveria ateacute mesmo agrave morte do proacuteprio caccedilador e tambeacutem seria (parcialmente) legiacutevel por outros que soacute tivessem acesso agrave armadilha e natildeo ao conhecimento sobre o animal que estaacute refletido em seu projeto A partir da forma da armadilha poderiam ser deduzidas as disposiccedilotildees da viacutetima Nesse sentido as armadilhas podem ser consideradas como textos so bre o comportamento animal

A armadilha eacute portanto um modelo tanto de seu criador o caccedilador quanto de sua viacutetima a presa animal Poreacutem mais do que isso a armadilha encarna um cenaacuterio que eacute

184

o nexo draacutematico que liga os dois protagonistas e que os alinha no tempo e no espaccedilo Nossas ilustraccedilotildees natildeo podem mostrar isso porque elas apresentam as armadilhas esperando suas viacutetimas ou viacutetimas que jaacute foram capturadas Elas natildeo podem mostrar po reacutem a estrutura temporal da armadilha Essa estrutura tempo ral o potildee o tempo suspenso o tempo vazio da espera agrave cataacutestrofe suacutebita que resulta do fechamento da armadilha Essa estrutura temporal varia com o tipo de armadilha empregado mas natildeo eacute difiacutecil ver no drama da captura um anaacutelogo mecacircnico da sucessatildeo traacutegica de hubris-nemesisshycotostrophe Considere o hipopoacutetamo condenado tranquumlilo com a se nsaccedilatildeo de fal sa seguranccedila decorrente apenas de seu tamanho e majestade Quantos heroacuteis traacutegicos sofreram das mesmas ilusotildees de presunccedilatildeo e atraiacuteram o mesmo destino) Se o chimpanzeacute que cai na armadilha de Boyer for Fausto talvez este hipopoacutetam o seja Otelo O fato de que todos os animais que caem viacutetimas das armadilhas sempre provoquem suas quedas por meio da proacutepria autoconfianccedila complacente demonstra que a caccedila com armadilhas eacute uma forma muito mais poeacutetica e traacutegica do que a simples perseguiccedilatildeo Este uacuteltimo tipo de caccedilada iguala caccediladores e viacutetimas unidos em accedilatildeo e reaccedilatildeo espontacircneas ao passo que a caccedila com armadilhas hierarquiza decisivamente o caccedilador e a viacutetima O capturador eacute Deus ou o destin o o animal capturado eacute o homem em sua encarnaccedilatildeo traacutegica

Parece -me portanto que mesmo sem o contexto etnograacutefico mesmo sem a exegese de qualquer nativo armadilhas animais como essas poderiam ser apresentadas ao puacuteblico como obras de arte Esses dispositivos incorporam ideacuteias veicu lam significados porque uma armadilha por sua proacutepria natureza eacute uma representaccedilatildeo transformada de seu fabricante o caccedilador e da presa animal sua viacutetima e de sua relaccedilatildeo muacutetua que nos povos caccediladores eacute fundamentalmente socia l e complexa Isso significa que essas armadilhas comunicam a noccedilatildeo de um nexo de intencional idades entre os caccediladores e as presas animais mediante formas e mecanismos materiais

--- -- ---

Creio que essa evocaccedilatildeo de intencionalidades complexas eacute na realidade o que serve para defin ir as obras de arte e que adequadamente emolduradas as armadilhas para animais poderiam evocar intuiccedilotildees complexas a respeito do ser da alteridade do relacionamento O impacto dessas armadilhas agora apresentas como obras de arte pode no entanto ser maior caso elas sejam exibidas ao lado de obras de artes ocidentais (das quais eacute faacutecil achar numerosos exemplos) que ocupem pelo menos aparentemente o mesmo territoacuterio sem ioloacutegico

O trabalho de Damien Hirst um dos jovens artistas britacircnicos mais citados pela miacutedia parece ser um desses casos De fato foi a notoacuteria exposiccedilatildeo de Hirst exibida na Tate Gallery em 1992 que me induziu pela primeira vez a pensar sobre as armadilhas como objetos artiacutesticos Considere o tubaratildeo de Hirst no tanque de formol Essa obra cativa devido ao contraste profundo entre o pei xe gigantesco ultrabioloacutegico e sua gaiola ou armadilha de vidro asseacuteptica (recordando Eichmann em seu julgamento preso numa caixa de vidro) cujas paredes refletoras projetam imagens virtuais da igualmente asseacuteptica galeria dentro do domiacutenio bioloacutegico do tubaratildeo Um eco distante das metades superior (bioloacutegica) e inferior (mecacircnica) do Large Glass de Duchamp - sem duacutevida - mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre nosso poder de imobilizar forccedilas elementares que no entanto parecem sempre potencialmente prontas a escapar Ateacute mesmo o tubaratildeo de Hirst tatildeo morto quanto possiacutevel continua residualmente vivo observando e pensando ou pelo menos parece estar porque manteacutem seus olhos abertos e fi xos em noacutes Um dia ele escaparaacute

Seria apropriado colocar o tubaratildeo de Hirst ao lado da pintura em casca de aacutervore extraiacuteda do livro Ancestral Connections de Morphy l6 que mostra um tubaratildeo capturado quase idecircntico visualmente agrave instalaccedilatildeo exibida na Tate Gallery Os Yolnngu produzem esse t ipo de pintura durante rituais funeraacuterios e ela se refere agrave jornada rio acima de um tubaratildeo ancestral miacutetico que foi capturado

temporariamente em seu trajeto mas escapou Essa pintura refere-se agraves afiliaccedilotildees do clatilde dos mortos e metaforiza a viagem do espiacuterito agrave terra ancestral e a necessidade de transferir- lhe forccedilas (por meio de cerimocircn ias funeraacute rias) de modo que ele como o tubaratildeo ancestral possa escapar das armadilhas que ameaccedilam sua trajetoacuteria O episoacutedio do tubaratildeo sendo capturado e escapando eacute encenado pelos participantes Essas ideacuteias escatoloacutegicas satildeo eacute claro especiacuteficas da cultura Yolnngu mas eu me arriscaria a sugerir que a semelhanccedila entre o trabalho de Hirst e a obra Yolnngu natildeo eacute apenas superficiaJ mas insinua uma metaacutefora vaacutelida em termos interculturais embora sujeita a leituras diferenciadas

Enquanto isso para reforccedilar a ideacuteia de que a obra de Hirst diz respeito de modo profundo agraves armadilhas e agrave rede de intencio nalidades complexas que a captura em armadilhas estabelece descreverei outro trabalho de Hirst presente na mesma exibiccedilatildeo na qual uma armadilha em funcionamento foi efetivamente incorporada Refiro-me agrave instalaccedilatildeo que consiste em uma cabeccedila de ovelha dentro de uma caixa de vidro a cabeccedila deteriora-se e cria larvas que se transformam em moscas que depois se tornam viacuteti mas de uma armadilha para

TRAD UCcedilAacuteO middot A LFRED G ELL 185

ae R E V I TA DO P R o G R A M A D E POacute bull G R A o U A ccedil A o

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz vio leta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais e las morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antro poacutelogos deve riacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacuted igo mito loacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se ide ntificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal mo rto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus pe rverso que colocou este mundo incoerente em movim ento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hi rst natildeo seria o uacutenico artista ocidenta l contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceitual Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posi cionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalh o natildeo eacute tanto o tema da vio lecirc ncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetrado res justamente o tema que ide ntifiquei anteriorme nte em relaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relacio na-se diretamente ao tipo de armadilha serial para ho mens (esp ingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de pro priedades em tempos passados

Exemplos adicionai s de obras de arte poacutesshyDuchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 19 I7) po deriam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hi st satildeo exemplos do mesmo tip o de co isa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

E M A R T E v I U A I E 8 A bull U F R J 2 o0 1

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo supo nho que para que uma armadi lha afri cana o u uma armadilha de qualquer o utra parte exoacutetica do mundo possa funci o nar como uma o bra de arte seja realmente necessaacuterio o u desejaacuteve l que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o signifi cado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armad ilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento IB Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

186

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a arm ad ilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmenteshyartiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinh a Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecircshyse imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bongl Antes de saber o que aconteceu tran sforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido como qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as tran substanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hil-st discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)Iarvamoscamosca (morta) - poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tam pouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode fun cionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier2o Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal

reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tam beacutem em outros lugares

~ ---------- --------------------

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torn a-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente lo ngo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuter ios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas vo ltada natildeo bastaria para retiraacute-Ias do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seri a evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - eacute que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente agraves enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e co nteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

T R A D U ccedil Acirc o bull A L F R E D G E L L 187

--------------------------- -------------

ae REVIST A DO P ROGRAMA DE PO S -GRADUACcedilAtildeO

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porq ue ela proacutepria eacute alongada (eefshyongaced) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricad a eacute certame nte na forma de armad il has como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo imagens dos antepassado s no sentido de que elas contecircm e ncarnam e comu nicam o poder ancestral Aleacutem disso elas to rnam possiacuteve l a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacute m sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fanta siado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor O s Anga ao contraacuterio tecircm imagens de poder ancestral que de fato trabalham de fato alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo real iacutestica de form as (superficiais)

Con cl usatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armad il has exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio shya disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte) Espero que eu

EM A RTES VISUAIS EB A bull UFRJ 2001

ten ha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teo ria institucional da arte liberaria imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservandoshylhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente dife rentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses objetos tornar-se-iam artiacutesticos Sei-ia essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacute logo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa tran sformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute co nstituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como arte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm po uco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arte para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como ta l numa cidade provinciana muito sono lenta que se vanglorie (como a maioria de las) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad~ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas po r que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arte caso produzisse coisas genericamente semel hantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21 ) - res ide na intluecircn cia pro longada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de o bra de arte pela antropologia da arte23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte co ntemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode se r visto em galerias de artesanat o provincianas Deve-se acei tar a premissa em essecirc ncia libe rtadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentai s jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabri cado pelo homem pode ser ve iculado como o bra de arte Eacute isso que a teo ria instituciona l da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de t eoria da arte contemporacircnea desde 19 I7 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urin o l (ou Fontaine) Fo i no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Dami en Hi rst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Ducham p pouco poderiacuteamos esperar de la nesta fase ta rdia Na verdade as co isas natildeo satildeo middotbem assim Os ready-made de Duchamp foram cuidadosamente selecio nados e firmeme nte integrados tematicamente a do is de seus principais projetos (o Large Gass de 19 I 5shy23 e a Waterfal de 1944-66) O aspecto mais inte ressante a respeito dos ready-made de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Ducham p para selecio naacuteshylos (reve ladas ao lo ngo de toda uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceitual aparenteme nte arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos e les funci onam se eacute que fun cionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e hi stoacute ricas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maio r ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquant o veiacutecu los de ideacute ias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de reali za r et c Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer o bjeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencional idades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de recon struir plename nte 2~

Assim eacute preci so mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simp les exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvid o e disseminado Desse ponto de vista a t eoria puramente institucional da arte eacute menos do que sati sfatoacuteria porque nada tem a dizel- sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuai s ao s quais o puacuteblico ed ucado de ga leria eacute sensiacuteve l Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da inte rpretabil idad e para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teor ia pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre o bra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos funcionais e obras de arte significat ivas Esse eacute um legado dos fil oacutesofos poacutes-iluministas co mo Hege l que obscurece a compreensatildeo de qual quer mundo artiacutestico distinto daqu e le que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar sign ificado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas re ligiosas e o utras Essas funccedil otildees satildeo praacuteticas nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e da man ei ra como os seres humanos podem interferir em seu funci onamento de modo a t irar o melhor proveito poss iacuteve l dele O bras

TR ADUCcedilAo A L F RED GE LL 189

ae R E V 1ST A D D P R D G R A M A DE POacuteS - G R A o U A ccedil A o E M A R T E S V I SUA I S E B A bull U F R J bull 2 o o I

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames2s A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucional e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bemshysucedida candidatura a obra de arte da rede de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencional idades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teorias interpretativa e institucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

190

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26

demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-Ia como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funcioacutena eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

Quando morreu em 1997Alfred Gell era Professor de Antropologia na London SchooJ of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a resp eito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Jmag es Totooing in Poynesia (1993) e Art ond Agency An Anhropologicol Theory ( 1998)

Traduccedilatildeo Marcia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

Notas

I Ver Dickie George Are and Aesthetics Ithaca Nova York Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circfe a Theory ofArt New York Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique of Judgements ofTaste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris james ArtlArtifact on the Museum and Anthropology Currene AnUacutelropology 29(5) 1988775-9

4 Faris op cit776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifacc African Art in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestei Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of Philosophy Journal of Philosophy 61 1964 57 1-84

7 Dickie 1974 op cir

8 Ver Danto Arthur The Tran sfJguration o the Commonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cir

9 Danto 1981 op cir

10 Faris op cir 778

I I Clifford james The Predicament of Culcure Cambridge MA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit31

13 Danto 1988 op cir 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agrave Penseacutee introduction agrave Ianalyse des eacutepopeacutees Fang Paris Societeacute dEthnologie 1988

15 Boyer op cie 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art ando an Aboriginal Syseem o Knowledge Chicago Chicago University Pness 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MD Rowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the Renais sance Oxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report ofthe American Bureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-Anga Material and Symbolic Aspects ofTrapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

--_ _--shy

21 Weiner J (ed) Aesthetics is a Cross-cultural Category Graup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic ExperienceAn Anthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and the Enchantment ofTechnology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderes cognitivos

25 Gell op cie 60

26 Thomas Nicholas Enwngled Objects Cambridge MA Harvard University Press 1991

TRADUccedilAO AlFRED GEll 191

Page 6: A Rede de Vogel- Armadilhas Como Obras de Arte

obras se tornaram acessiacuteveis ao puacuteblico natildeo africano graccedilas aos esforccedilos de alguns simpatizantes ocidentais Entretanto essa abordagem a respeito da incorporaccedilatildeo da arte africana nos moldes de Danto traz consigo um certo risco de esteticismo shymas natildeo eacute justamente Danto quem nos diz que o que faz da arte arte natildeo satildeo apenas as caracteriacutesticas exteriores (esteacuteticas) que ela possa ter Sendo assim Danto eacute obrigado a mudar sua taacutetica e considerar a possibilidade de existecircncia de uma arte africana que natildeo seria obviamente diferente sob qualquer aspecto externo ou visiacutevel da natildeo-arte africana uma afirmaccedilatildeo que natildeo seria aplicaacutevel aos exemplos famosos da arte escultoacuterica cuja qualificaccedilatildeo enquanto arte nunca foi colocada em duacutevida pelo menos por Danto

Danto eacute um filoacutesofo e sendo assim natildeo escolheu o caminho mais oacutebvio que consistiria em retomar tudo que jaacute foi escrito sobre cultura material africana Ao contraacuterio tentou obedecer a seu imperativo disciplinar entregando-se a um Gedonkexperiment no qual ele parece ser particularmente habilidoso Danto imagina a existecircncia de duas tribos africanas proacuteximas mas historicamente diferenciadas que ele denomina Pot People (povo ceramista) e Bosket Folk (povo cesteiro) Aparentemente a produccedilatildeo material dessas duas tribos que inclui potes e cestos eacute quase idecircntica mas o povo ceramista venera seus oleiros que satildeo tidos como sacerdotes e saacutebios e considera a olaria uma atividade sagrada que evoca a cosmogecircnese jaacute que Deus foi um oleiro que moldou o mundo a partir do barro Esse povo tambeacutem faz cestos para fins utilitaacuterios mas essa natildeo eacute uma atividade considerada nobre Do o utro lado da montanha em meio ao povo cesteiro as coisas satildeo diferentes jaacute que Deus era um cesteiro e fez o mundo a partir de fibras vegetais e os potes de ceracircmica produzidos satildeo considerados meramente utilitaacuterios Nessa tribo os sacerdotes satildeo os cesteiros e os oleiros satildeo apenas especialistas

teacutecnicos artesatildeos

Danto sustenta que mesmo que soacute um exame minucioso permita aos museoacutelogos

distinguir os potes e os cestos produzidos em ambas as tribos a diferenccedila espiritual envolvida na elaboraccedilatildeo dos potes sagrados entre o povo ceramista eacute suficiente para garantir-lhes o status de obra de arte em oposiccedilatildeo aos potes utilitaacuterios do povo cesteiro (e vice-versa em relaccedilatildeo aos cestos) Os potes do povo ceramista e os cestos do povo cesteiro estatildeo ambos na prestigiada coleccedilatildeo que estaacute no Kunsthistorisches Museum Jaacute os cestos do povo ceramista e os potes do povo cesteiro pertencem a uma coleccedilatildeo um pouco diferente que estaacute no Naturhistorisches Museum As obras que pertencem ao Museu de Histoacuteria da Arte emanam do Espiacuterito Absoluto satildeo veiacuteculos de ideacuteias completas que se o riginam da condiccedilatildeo humana em toda sua densidade e fatalidade histoacuterica e consequumlentemente a iluminam Jaacute os objetos que estatildeo no Museu de Histoacuteria Natural satildeo meios para fins utilitaacuterios instrumentos que ajudam os seres humanos em sua vida material - eles fazem parte da prosa do mundo segundo uma expressatildeo hegeliana

Danto em consequumlecircncia exclui a rede de caccedila mera manifestaccedilatildeo prosaica no sentido hegeliano e esboccedila de modo experimental uma distinccedilatildeo particularmente marcada entre objetos de arte e artefatos Entretanto como em todas as experiecircncias desse tipo eacute possiacutevel questionar se essa di stinccedilatildeo corresponde agrave realidade Creio que a antropologia deveria pronunciar-se a esse respeito jaacute que os experimentos de Danto evocam explicitamente a etnografia como protoacutetipo de suas ficccedilotildees expositivas Em seu comentaacuterio sob re a exposiccedilatildeo Faris afirma que o problema estaacute no fato de que a antropologia tende de modo geral a ser condescendente com experimentaccedilotildees teoacutericas como a de Danto Ele acusa enfaticamente o ensaio escrito por Danto de promover uma perspectiva orto doxa viciada tanto em relaccedilatildeo agrave histoacuteria da arte quanto em relaccedilatildeo agrave antropologia Modernistas como Danto estariam

paralisados pela aceitaccedilatildeo de todas as tiranias culturais e pela consequumlente cegueira em relaccedilatildeo agraves tiranias especiacuteficas [de modo que] eles incorrem com

T R A o U ccedil Aacute o bull A l f R E o G E l l I 79

ae REVISTA DO PROGRAMA DE P6S-GRADUACcedilAO EM ARTES VISUAIS EBA bull UFRJ 2001

frequumlecircncia no sentimento humanista mais banal e no entusiasmo inuacutetil em relaccedilatildeo ao poder emotivo e expressivo_o Eles o fazem em grande medida reconhecendo o empreendimento antropoloacutegico como por exemplo a ideacuteia de que os objetos africanos natildeo podem ser inteiramente compreendidos sem a referecircncia aos nativos africanos no contexto cultural especiacutefico que os produziu Danto tem que concordar que natildeo se deve atribuir ao contexto um valor axiomaacutetico - embora seja inegaacutevel sua relaccedilatildeo com o significado - particularmente quando tanto contexto quanto significado

foram indicados pela Antropologia 10

Faris argumenta ainda que de modo geral esse tipo de liberalismo recebe as produccedilotildees do Outro etnograacuteflco nos termos do Outro mas soacute na medida em que essa produccedilatildeo seja aceitaacutevel ou coerente com um dado conceito de Espiacuterito Absoluto

A etnografia imaginaacuteria de Danto a respeito da cosmogenia dos potes e dos cestos revela com precisatildeo o tipo de narrativa antropoloacutegica que ele considera conveniente e de fato tanto os antropoacutelogos quanto seus informantes nunca hesitaram em produzir relatos desse tipo O ponto foucaultiano de Farris diz respeito ao fato de que o empreendimento antropoloacutegico como um todo tende a buscar esse tipo de saacutebio ou especialista nativo ao qual Danto atribui o poder de distinguir entre arte e natildeo-arte Isso ocorre porque em uacuteltima instacircncia noacutes antropoacutelogos queremos tachar esses objetos e atribuir-lhes significados fixos e controlaacuteveis Concordo com Faris quanto ao fato de que os saacutebios (fictiacutecios) de Danto satildeo projeccedilotildees palpaacuteveis de autoridade e como tal merecem ser desmascarados Mas infelizmente ele acaba natildeo discutindo a distinccedilatildeo objeto de arte versus artefato exceto para indicar que essa oposiccedilatildeo estaacute sujeita a uma redeflniccedilatildeo contiacutenua II e que dificilmente pode ser separada de questotildees relativas agrave ideologia e ao poder

O proacuteprio Danto natildeo esgota o assunto quando diz que os saacutebios fornecem interpretaccedilotildees capazes de transformar as verdadeiras obras de arte em fragmentos do Espiacuterito Absoluto Na segunda parte de

180

seu ensaio ele divaga sobre a ideacuteia de que os artefatos satildeo incompletos enquanto as obras de arte encarnam ideacuteias autoshysuficientes e completas Citando Heldegger ele observa que um artefato eacute sempre parte de um Zeuggonzes - um sistema de ferramentas um sistema teacutecnico que forma uma totalidade Um martelo natildeo existe por si soacute implica os pregos a serem martelados as madeiras nas quais essa accedilatildeo seraacute executada as serras que daratildeo forma agrave madeira e assim por diante A rede (implicitamente) eacute apenas um componente do Zeuggonzes de caccedila Zande e natildeo tem significado em si mesma Mesmo quando satildeo bem elaborados objetos como uma rede um martelo um trinco de porta decorativo ou outro exemplo qualquer de arte aplicada satildeo incapazes de veicular o tipo de ideacuteia que distingue o objeto artiacutestico pois este sempre se reporta ao universal

seria equivocado afirmar tais coisas [que dizem respeito a verdades universais] a respeito de facas redes ou grampos de cabelo objetos cujo significado se esgota em

sua utilidade Afinal de contas a universalidade diz respeito antes de mais nada a pensamentos e proposiccedilotildees e ningueacutem suporia que objetos como os que acabei de citar expressem um conteuacutedo universal A realidade desses objetos esgotashyse em seu uso jaacute as obras de arte possuem um papel mais elevado colocando-nos em contato com realidades superiores elas satildeo definidas por meio da apreensatildeo de significado Elas devem ser explicadas pelo que expressam Diante de uma obra de arte estamos diante de algo que soacute por si mesmo eacute possiacutevel apreender do mesmo modo que soacute por intermeacutedio de accedilotildees corporais podemos

ter acesso agrave mente de outra pessoa 12

Mas ateacute mesmo Danto eacute forccedilado a fazer uma ressalva dado ser oacutebvio que a maior parte da produccedilatildeo pertencente agrave tradiccedilatildeo artiacutestica ocidental natildeo foi produzida para ser apreciada pelo puacuteblico mas para atender a propoacutesitos instrumentais As pinturas religiosas servem a funccedilotildees lituacutergicas (como peccedilas de altar objetos de devoccedilatildeo) retratos expressam semelhanccedila estaacutetuas dignificam espaccedilos puacuteblicos e soberanos e assim sucessivamente O mesmo eacute vaacutelido de modo ainda mais contundente para os

produtos africanos aos quais Danto atribui o estatuto de obras de arte Nenhum deles foi feito para ser admirado apenas como uma obra de arte independente Esses objetos em vez di sso fazem parte de cerimocircnias puacuteblicas que todavia natildeo podem ser expo rtadas como os objetos o satildeo Em suma natildeo apenas as redes mas tambeacutem objetos como as maacutescaras fazem parte do Zeuggonzes Danto lida com esse problema admitindo que

ateacute haacute pouco tempo [e mesmo agora provavelmente na Aacutefrica] as obras de arte usufruiacuteam de dupla identidade tanto como objetos de uso e praacutexis quanto como receptaacuteculos de espiacuterito e significado A arte africana uma vez exportada perde a primeira funccedilatildeo mas reteacutem a uacuteltima O objetivo natildeo eacute fazer do destacamento espacial um atributo para a definiccedilatildeo de arte porque isso desqualificaria como arte as obras das culturas primitivas Em suas proacuteprias sociedades essas obras tecircm um lugar mas que natildeo eacute o tipo de lugar que elas tecircm no Zeugganzes como ferramentas em um sistema teacutecnico O fundamental eacute que toda a vida praacutetica dessas sociedades poderia seguir adiante mesmo se natildeo houvesse nelas nenhuma obra de arte mesmo admitindo que as obras de arte fazem parte de rituais supostamente dotados de eficaacutecia praacutetica 13

Essa sem duacutevida eacute uma declaraccedilatildeo enigmaacutetica ateacute mesmo para um fil oacutesofo

_---- ----- - ---- - --- ---__-------shy

r---

Danto quer dizer que as obras de arte tecircm significados independentemente de seu uso praacutetico e agrave medida que satildeo artiacutesticos natildeo satildeo uacuteteis mas significativos Todavia esses mesmos objetos satildeo usados em rituais supostamente eficazes Poderiacuteamos subtrair hipoteticamente as obras de arte e a vida praacutet ica seria capaz de co ntinuar porq ue os mesmos o bjetos di sfarccedilados de ferramentas ou artefatos estariam laacute para preencher suas funccedilotildee s extra-artiacutesticas anteriores Esse raciociacutecio eacute ce r tamente casuiacutestico De que maneira as maacutescaras africanas podem participar de um contexto ritual como instrumentos eficazes sem que possuam qualquer significaccedilatildeo interpretativo-cultural o que segundo o proacute prio Danto jaacute seria condiccedilatildeo para qualificaacute-Ias como arte A separaccedilatildeo entre instrumentalidade e espiritualidade eacute portanto impraticaacutevel E se as obras de arte satildeo um tipo de instrumento (o que creio eu natildeo seria questionado pelos escultores africanos) por que natildeo considerar tambeacutem que os instrumentos podem ser um tipo de obra de arte

A partir daiacute podemos inferir que Danto exclui a rede como arte porque ele natildeo pode imaginar que um saacutebio nativo seja capaz de contar-lhe uma estoacuteria suficientemente convincente capaz de persuadi-lo do contraacuterio Ele faz essa suposiccedilatildeo porque uma rede eacute usada para caccedilar e para ele a caccedilada eacute apenas um meio para a obtenccedilatildeo de alimentos logo a rede natildeo passa de uma ferramenta como um ralador de queijo Esse raciociacutenio revela uma total falta de familiaridade com a etnografia africana na qual a maioria das caccediladas eacute descrita como parte de rituais especiacuteficos (iniciaccedilotildees fe stiva is anuais etc) ou pelo menos como um costume altamente ritualizado mas natildeo com certeza como um dispositivo corriqueiro para garantir a sobrevivecircncia Assim caso a rede tivesse sido documentada de fo rma correta na eacutepoca em que foi coletada (c 19 10) eacute mais provaacutevel que ela figurasse ritualisticamente como um atributo do papel do caccedilador no drama co letivo da caccedila ritual pelo menos natildeo se pode excluir essa possibilidade Nesse caso o funcio namento da rede natildeo

TRADUccedilAO bull A LFRED GELL 181

seria muito diferente do funcionamento de qualquer outro item da parafernaacutelia ritual como as maacutescaras por exemplo

Entretanto eacute preciso esclarecer que os saacutebios africanos estatildeo preparados para contar aos antropoacutelogos estoacuterias que revelam natildeo apenas que a caccedila eacute ritual mente importante (como ordaacutelio provaccedilatildeo para os jovens e assim por diante) mas tambeacutem que seus meios as redes ou armadilhas satildeo metaflsicamente significativos Recorrerei agora agrave narrativa de

Soyer l4 a respeito de cantores Fang (Aacutefrica Ocidental) de eacutepicos maacutegicos (mvet) Soyer

estaacute tentando entender a natureza do saber tradicional e no decorrer de suas investigaccedilotildees acaba conhecendo um especialista em canto chamado Ze com o qual trava um longo debate sobre a natureza da sabedoria

182

~ bull UFRJ 2001

Assim como os animais selvagens e como evur (sabedoriapoder maacutegico) mvet (eacutepico) pertence agrave floresta em sua evanescecircncia vocecirc pensa que pode pegaacute-lo mas ele escapa e eacute vocecirc quem eacute capturado Com Ze percebi que de certo modo as complexidades de mvet eram sempre comparadas a armadilhas Em resposta ele me contou a seguinte estoacuteria

Quando eu era jovem conheci bem os Pigmeu Eles vivem na floresta natildeo satildeo pessoas de aldeia como noacutes Fui com frequumlecircncia caccedilar com eles Os Pigmeu tecircm armadilhas para cada tipo de animal e por isso satildeo tatildeo bem sucedidos Eles tecircm uma

armadilha especial para chimpanzeacutes porque os chimpanzeacutes satildeo como os seres humanos quando tecircm algum problema param e pensam sobre isso ao inveacutes de fugirem e gritarem simplesmente Vocecirc natildeo pode pegar um chimpanzeacute com uma armadilha comum porque ele natildeo foge [e assim o noacute natildeo eacute puxado] Entatildeo os Pigmeu inventaram uma armadilha especial com uma linha que prende o braccedilo do chimpanzeacute A linha eacute bem fina e o chimpanzeacute pensa que pode se soltar Ao inveacutes de arrebentaacute-Ia ele puxa suavemente para ver o que aconteceraacute Neste momento um fardo de setas envenenadas cai sobre ele e isso soacute ocorre porque ele natildeo corre como um animal estuacutepido um antiacutelope por exemPlo faria15

A conversa entre Ze e Soyer natildeo eacute uma anedota boba sobre caccedila mas diz respeito fundamentalmente ao problema faustiano relativo ao conhecimento (entre outras coisas) um problema que natildeo eacute menos importante para o povo Fang da floresta tropical de Camarotildees do que para os

professores do MIT

Com base no depoimento desse saacutebio Fang parece inquestionaacutevel que uma armadilha seja uma metaacutefora de profunda significaccedilatildeo uma refraccedilatildeo do Espiacuterito Absoluto se eacute que esse algum dia existiu Todavia tenhamos em mente as criacuteticas feitas por Faris de que os

saacutebios natildeo estariam falando sobre armadilhas utilitaacuterias prosaicas mas sobre armadilhas imaginaacuterias espirituais armadilhas no sentido figurado natildeo no sentido literal O saacutebio Fang natildeo produziu nenhuma armadilha para a investigaccedilatildeo de Boyer Seria possiacutevel irmos aleacutem do texto de Boyer e montarmos uma exposiccedilatildeo de armadilhas de caccedila apresentando-a ao puacuteblico como uma exposiccedilatildeo de obras de arte

Deixemos o saacutebio fora disso por enquanto e nos perguntemos o que as armadilhas de caccedila animal revelam sobre o Espiacuterito Absoluto mesmo sem sua exegese nativa Por sua simples presenccedila as armadilhas de caccedila descontextualizadas podem revelar mais do que o gosto dos homens pelo consumo de carne animal)

De modo a levar o leitor a um julgamento adequado a respeito dessa questatildeo ofereccedilo algumas ilustraccedilotildees tiradas da literatura etnograacuteflca sobre armadilhas Observe a armadilha de setas Lembre-se da afirmaccedilatildeo de Danto de que olhar para uma obra de arte eacute como encontrar uma pessoa encontra-se uma pessoa um ser pensante co-presente reagindo a sua aparecircncia externa e a seu comportamento Do mesmo modo responde-se a uma obra de arte como a um ser co-presente um pensamento encarnado Agora imagine-se encontrando uma armadilha de setas natildeo (ass im espero) como a viacutetima que seraacute capturada mas como o visita nte de uma galeria que encontra uma instalaccedilatildeo feita pelo mais recente artista contemporacircneo Em tais circunstacircncias e sem qualquer contexto adicional o que o visitante poderaacute intuir como sendo o pensamento ou a intenccedilatildeo revelados por essa obra de arte

Creio que natildeo haveria nada errado caso o visitante imaginaacuterio de nossa exibiccedilatildeo visse nessa armadilha de setas uma representaccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo humana no mundo Essa eacute uma representaccedilatildeo que as pessoas de pensamento limitado poderiam censurar e negar se ao menos estivessem conscientes de que a armadilha poderio ser uma representaccedilatildeo Isso porque ela aponta para a existecircncia humana como uma violecircncia

impensada e iminente o que talvez natildeo seja um belo pensamento mas nem por isso pode ser considerado falso ou natildeo artiacutestico Inicialmente uma armadilha como essa comunica uma ausecircncia fatal - a ausecircncia do homem que a idealizou e armou e a ausecircncia do animal que se tornaraacute a viacutetima (o artista indicou essa viacutetima num segundo plano da ilustraccedilatildeo) Devido a essas ausecircncias marcadas a armadilha em questatildeo como todas as outras funciona como um poderoso signo Mesmo natildeo sendo projetada explicitamente para comunicar ou func ionar como signo (na verdade eacute projetada para ficar oculta e passar despercebida) a armadilha entretanto eacute muito mais significat iva do que a maioria dos signos su postos como tais A violecircncia estaacutetica do arco retesado a malevolecircncia congelada dos paus e das cordas satildeo reveladoras por si mesmas a despeito do recurso a representaccedilotildees convencionais Uma vez que esse eacute um signo natildeo oficial ele escapa de toda censura Nele eacute possiacutevel ler a intenccedilatildeo de seu autor e o destino de sua viacutetima Essa armadilha eacute um modelo bem como um instrumento De fato todos os instrumentos satildeo modelos porque eles precisam ser adaptados agraves caracteriacutesticas de seus usuaacuterios e assim tecircm sua marca Uma perna artificial eacute um modelo de uma perna verdadeira que estaacute ausente uma representaccedilatildeo que funciona como uma proacutetese A armadilha de setas eacute especialmente evidente como um modelo de seu criador porque ela tem que substituiacute-lo como uma espeacutecie de caccedilador substituto ela caccedila para seu dono Eacute de fato um autocircmato ou robocirc cujo design condensa o design de seu mentor Ela estaacute equipada com um transdutor sensorial rudimentar (a corda suscetiacutevel ao toque do animal) Esse siste ma nervoso aferente leva informaccedilotildees para o comando central (o mecanismo de disparo uma chave base de todos os dispositivos de processamento de informaccedilotildees) que ativa o sistema eferente liberando a energia armazenada no arco que impulsiona as setas produzindo accedilatildeo a di stacircncia (a morte da viacutetima) Isso natildeo eacute apenas o modelo de uma pessoa como um boneco qualquer mas um modelo eficaz de

T R A o U ccedil Agrave o bull A L F R E o G E L L I 83

ae R E V I 5 T A DO P R o G R A M A DE POacute 5 - G R A D U A ccedil Aacute o E M A R T E 5 V I 5 U A I 5 E B A bull U F R J 2 o o

pessoas que funciona Seria razoaacutevel perguntarmos que escultura seria capaz de mostrar mais sobre a condiccedilatildeo humana revelando apenas nosso delineamento exterior do que esse dispositivo mecacircnico Muito mais sobre a existecircncia humana estaacute presente aqu i do que em qualquer escultura mas como esse natildeo eacute um exemplo oacutebvio de um objeto de arte jamais seraacute olhado sob esse prisma

Aleacutem disso se olharmos para outras armadilhas poderemos ver que cada uma eacute natildeo apenas o modelo de se u criador um eu subsidiaacuterio na forma de um autocircmato mas cada uma eacute tambeacutem um modelo de sua viacutetima Esse modelo pode refletir efetivamente a forma externa da viacutetima como na cocircmica armadilha de girafa que delineia em negativo os contornos da parte inferior do corpo desse animal Ou a armadilha pode de modo mais suti l e abstrato representar paracircmetros do comportamento natural do animal que satildeo subvertidos a fim de aprisionaacute-lo As armadilhas satildeo paroacutedias letais do Umwelt do animal Assim o rato que gosta de se enfiar em espaccedilos estreitos tem uma cavidade atraente preparada para sua uacuteltima e fatal correria na escuridatildeo Eacute claro que a armadilha natildeo eacute em si mesma inteligente ou enganosa O caccedilador eacute que conhece as respostas habituais da viacutetima e eacute capaz de subvertecirc-Ias Mas uma vez montada a armadilha a habilidade e o conhecimento do caccedilador estatildeo efetivamente inscritos nela de forma objetiflcada caso contraacuterio a armadilha natildeo funcionaria Esse conhecimento objetivo sobreviveria ateacute mesmo agrave morte do proacuteprio caccedilador e tambeacutem seria (parcialmente) legiacutevel por outros que soacute tivessem acesso agrave armadilha e natildeo ao conhecimento sobre o animal que estaacute refletido em seu projeto A partir da forma da armadilha poderiam ser deduzidas as disposiccedilotildees da viacutetima Nesse sentido as armadilhas podem ser consideradas como textos so bre o comportamento animal

A armadilha eacute portanto um modelo tanto de seu criador o caccedilador quanto de sua viacutetima a presa animal Poreacutem mais do que isso a armadilha encarna um cenaacuterio que eacute

184

o nexo draacutematico que liga os dois protagonistas e que os alinha no tempo e no espaccedilo Nossas ilustraccedilotildees natildeo podem mostrar isso porque elas apresentam as armadilhas esperando suas viacutetimas ou viacutetimas que jaacute foram capturadas Elas natildeo podem mostrar po reacutem a estrutura temporal da armadilha Essa estrutura tempo ral o potildee o tempo suspenso o tempo vazio da espera agrave cataacutestrofe suacutebita que resulta do fechamento da armadilha Essa estrutura temporal varia com o tipo de armadilha empregado mas natildeo eacute difiacutecil ver no drama da captura um anaacutelogo mecacircnico da sucessatildeo traacutegica de hubris-nemesisshycotostrophe Considere o hipopoacutetamo condenado tranquumlilo com a se nsaccedilatildeo de fal sa seguranccedila decorrente apenas de seu tamanho e majestade Quantos heroacuteis traacutegicos sofreram das mesmas ilusotildees de presunccedilatildeo e atraiacuteram o mesmo destino) Se o chimpanzeacute que cai na armadilha de Boyer for Fausto talvez este hipopoacutetam o seja Otelo O fato de que todos os animais que caem viacutetimas das armadilhas sempre provoquem suas quedas por meio da proacutepria autoconfianccedila complacente demonstra que a caccedila com armadilhas eacute uma forma muito mais poeacutetica e traacutegica do que a simples perseguiccedilatildeo Este uacuteltimo tipo de caccedilada iguala caccediladores e viacutetimas unidos em accedilatildeo e reaccedilatildeo espontacircneas ao passo que a caccedila com armadilhas hierarquiza decisivamente o caccedilador e a viacutetima O capturador eacute Deus ou o destin o o animal capturado eacute o homem em sua encarnaccedilatildeo traacutegica

Parece -me portanto que mesmo sem o contexto etnograacutefico mesmo sem a exegese de qualquer nativo armadilhas animais como essas poderiam ser apresentadas ao puacuteblico como obras de arte Esses dispositivos incorporam ideacuteias veicu lam significados porque uma armadilha por sua proacutepria natureza eacute uma representaccedilatildeo transformada de seu fabricante o caccedilador e da presa animal sua viacutetima e de sua relaccedilatildeo muacutetua que nos povos caccediladores eacute fundamentalmente socia l e complexa Isso significa que essas armadilhas comunicam a noccedilatildeo de um nexo de intencional idades entre os caccediladores e as presas animais mediante formas e mecanismos materiais

--- -- ---

Creio que essa evocaccedilatildeo de intencionalidades complexas eacute na realidade o que serve para defin ir as obras de arte e que adequadamente emolduradas as armadilhas para animais poderiam evocar intuiccedilotildees complexas a respeito do ser da alteridade do relacionamento O impacto dessas armadilhas agora apresentas como obras de arte pode no entanto ser maior caso elas sejam exibidas ao lado de obras de artes ocidentais (das quais eacute faacutecil achar numerosos exemplos) que ocupem pelo menos aparentemente o mesmo territoacuterio sem ioloacutegico

O trabalho de Damien Hirst um dos jovens artistas britacircnicos mais citados pela miacutedia parece ser um desses casos De fato foi a notoacuteria exposiccedilatildeo de Hirst exibida na Tate Gallery em 1992 que me induziu pela primeira vez a pensar sobre as armadilhas como objetos artiacutesticos Considere o tubaratildeo de Hirst no tanque de formol Essa obra cativa devido ao contraste profundo entre o pei xe gigantesco ultrabioloacutegico e sua gaiola ou armadilha de vidro asseacuteptica (recordando Eichmann em seu julgamento preso numa caixa de vidro) cujas paredes refletoras projetam imagens virtuais da igualmente asseacuteptica galeria dentro do domiacutenio bioloacutegico do tubaratildeo Um eco distante das metades superior (bioloacutegica) e inferior (mecacircnica) do Large Glass de Duchamp - sem duacutevida - mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre nosso poder de imobilizar forccedilas elementares que no entanto parecem sempre potencialmente prontas a escapar Ateacute mesmo o tubaratildeo de Hirst tatildeo morto quanto possiacutevel continua residualmente vivo observando e pensando ou pelo menos parece estar porque manteacutem seus olhos abertos e fi xos em noacutes Um dia ele escaparaacute

Seria apropriado colocar o tubaratildeo de Hirst ao lado da pintura em casca de aacutervore extraiacuteda do livro Ancestral Connections de Morphy l6 que mostra um tubaratildeo capturado quase idecircntico visualmente agrave instalaccedilatildeo exibida na Tate Gallery Os Yolnngu produzem esse t ipo de pintura durante rituais funeraacuterios e ela se refere agrave jornada rio acima de um tubaratildeo ancestral miacutetico que foi capturado

temporariamente em seu trajeto mas escapou Essa pintura refere-se agraves afiliaccedilotildees do clatilde dos mortos e metaforiza a viagem do espiacuterito agrave terra ancestral e a necessidade de transferir- lhe forccedilas (por meio de cerimocircn ias funeraacute rias) de modo que ele como o tubaratildeo ancestral possa escapar das armadilhas que ameaccedilam sua trajetoacuteria O episoacutedio do tubaratildeo sendo capturado e escapando eacute encenado pelos participantes Essas ideacuteias escatoloacutegicas satildeo eacute claro especiacuteficas da cultura Yolnngu mas eu me arriscaria a sugerir que a semelhanccedila entre o trabalho de Hirst e a obra Yolnngu natildeo eacute apenas superficiaJ mas insinua uma metaacutefora vaacutelida em termos interculturais embora sujeita a leituras diferenciadas

Enquanto isso para reforccedilar a ideacuteia de que a obra de Hirst diz respeito de modo profundo agraves armadilhas e agrave rede de intencio nalidades complexas que a captura em armadilhas estabelece descreverei outro trabalho de Hirst presente na mesma exibiccedilatildeo na qual uma armadilha em funcionamento foi efetivamente incorporada Refiro-me agrave instalaccedilatildeo que consiste em uma cabeccedila de ovelha dentro de uma caixa de vidro a cabeccedila deteriora-se e cria larvas que se transformam em moscas que depois se tornam viacuteti mas de uma armadilha para

TRAD UCcedilAacuteO middot A LFRED G ELL 185

ae R E V I TA DO P R o G R A M A D E POacute bull G R A o U A ccedil A o

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz vio leta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais e las morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antro poacutelogos deve riacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacuted igo mito loacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se ide ntificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal mo rto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus pe rverso que colocou este mundo incoerente em movim ento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hi rst natildeo seria o uacutenico artista ocidenta l contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceitual Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posi cionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalh o natildeo eacute tanto o tema da vio lecirc ncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetrado res justamente o tema que ide ntifiquei anteriorme nte em relaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relacio na-se diretamente ao tipo de armadilha serial para ho mens (esp ingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de pro priedades em tempos passados

Exemplos adicionai s de obras de arte poacutesshyDuchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 19 I7) po deriam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hi st satildeo exemplos do mesmo tip o de co isa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

E M A R T E v I U A I E 8 A bull U F R J 2 o0 1

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo supo nho que para que uma armadi lha afri cana o u uma armadilha de qualquer o utra parte exoacutetica do mundo possa funci o nar como uma o bra de arte seja realmente necessaacuterio o u desejaacuteve l que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o signifi cado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armad ilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento IB Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

186

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a arm ad ilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmenteshyartiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinh a Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecircshyse imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bongl Antes de saber o que aconteceu tran sforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido como qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as tran substanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hil-st discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)Iarvamoscamosca (morta) - poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tam pouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode fun cionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier2o Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal

reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tam beacutem em outros lugares

~ ---------- --------------------

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torn a-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente lo ngo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuter ios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas vo ltada natildeo bastaria para retiraacute-Ias do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seri a evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - eacute que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente agraves enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e co nteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

T R A D U ccedil Acirc o bull A L F R E D G E L L 187

--------------------------- -------------

ae REVIST A DO P ROGRAMA DE PO S -GRADUACcedilAtildeO

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porq ue ela proacutepria eacute alongada (eefshyongaced) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricad a eacute certame nte na forma de armad il has como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo imagens dos antepassado s no sentido de que elas contecircm e ncarnam e comu nicam o poder ancestral Aleacutem disso elas to rnam possiacuteve l a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacute m sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fanta siado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor O s Anga ao contraacuterio tecircm imagens de poder ancestral que de fato trabalham de fato alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo real iacutestica de form as (superficiais)

Con cl usatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armad il has exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio shya disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte) Espero que eu

EM A RTES VISUAIS EB A bull UFRJ 2001

ten ha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teo ria institucional da arte liberaria imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservandoshylhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente dife rentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses objetos tornar-se-iam artiacutesticos Sei-ia essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacute logo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa tran sformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute co nstituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como arte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm po uco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arte para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como ta l numa cidade provinciana muito sono lenta que se vanglorie (como a maioria de las) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad~ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas po r que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arte caso produzisse coisas genericamente semel hantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21 ) - res ide na intluecircn cia pro longada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de o bra de arte pela antropologia da arte23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte co ntemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode se r visto em galerias de artesanat o provincianas Deve-se acei tar a premissa em essecirc ncia libe rtadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentai s jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabri cado pelo homem pode ser ve iculado como o bra de arte Eacute isso que a teo ria instituciona l da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de t eoria da arte contemporacircnea desde 19 I7 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urin o l (ou Fontaine) Fo i no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Dami en Hi rst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Ducham p pouco poderiacuteamos esperar de la nesta fase ta rdia Na verdade as co isas natildeo satildeo middotbem assim Os ready-made de Duchamp foram cuidadosamente selecio nados e firmeme nte integrados tematicamente a do is de seus principais projetos (o Large Gass de 19 I 5shy23 e a Waterfal de 1944-66) O aspecto mais inte ressante a respeito dos ready-made de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Ducham p para selecio naacuteshylos (reve ladas ao lo ngo de toda uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceitual aparenteme nte arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos e les funci onam se eacute que fun cionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e hi stoacute ricas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maio r ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquant o veiacutecu los de ideacute ias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de reali za r et c Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer o bjeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencional idades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de recon struir plename nte 2~

Assim eacute preci so mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simp les exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvid o e disseminado Desse ponto de vista a t eoria puramente institucional da arte eacute menos do que sati sfatoacuteria porque nada tem a dizel- sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuai s ao s quais o puacuteblico ed ucado de ga leria eacute sensiacuteve l Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da inte rpretabil idad e para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teor ia pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre o bra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos funcionais e obras de arte significat ivas Esse eacute um legado dos fil oacutesofos poacutes-iluministas co mo Hege l que obscurece a compreensatildeo de qual quer mundo artiacutestico distinto daqu e le que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar sign ificado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas re ligiosas e o utras Essas funccedil otildees satildeo praacuteticas nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e da man ei ra como os seres humanos podem interferir em seu funci onamento de modo a t irar o melhor proveito poss iacuteve l dele O bras

TR ADUCcedilAo A L F RED GE LL 189

ae R E V 1ST A D D P R D G R A M A DE POacuteS - G R A o U A ccedil A o E M A R T E S V I SUA I S E B A bull U F R J bull 2 o o I

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames2s A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucional e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bemshysucedida candidatura a obra de arte da rede de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencional idades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teorias interpretativa e institucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

190

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26

demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-Ia como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funcioacutena eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

Quando morreu em 1997Alfred Gell era Professor de Antropologia na London SchooJ of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a resp eito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Jmag es Totooing in Poynesia (1993) e Art ond Agency An Anhropologicol Theory ( 1998)

Traduccedilatildeo Marcia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

Notas

I Ver Dickie George Are and Aesthetics Ithaca Nova York Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circfe a Theory ofArt New York Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique of Judgements ofTaste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris james ArtlArtifact on the Museum and Anthropology Currene AnUacutelropology 29(5) 1988775-9

4 Faris op cit776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifacc African Art in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestei Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of Philosophy Journal of Philosophy 61 1964 57 1-84

7 Dickie 1974 op cir

8 Ver Danto Arthur The Tran sfJguration o the Commonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cir

9 Danto 1981 op cir

10 Faris op cir 778

I I Clifford james The Predicament of Culcure Cambridge MA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit31

13 Danto 1988 op cir 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agrave Penseacutee introduction agrave Ianalyse des eacutepopeacutees Fang Paris Societeacute dEthnologie 1988

15 Boyer op cie 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art ando an Aboriginal Syseem o Knowledge Chicago Chicago University Pness 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MD Rowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the Renais sance Oxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report ofthe American Bureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-Anga Material and Symbolic Aspects ofTrapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

--_ _--shy

21 Weiner J (ed) Aesthetics is a Cross-cultural Category Graup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic ExperienceAn Anthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and the Enchantment ofTechnology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderes cognitivos

25 Gell op cie 60

26 Thomas Nicholas Enwngled Objects Cambridge MA Harvard University Press 1991

TRADUccedilAO AlFRED GEll 191

Page 7: A Rede de Vogel- Armadilhas Como Obras de Arte

ae REVISTA DO PROGRAMA DE P6S-GRADUACcedilAO EM ARTES VISUAIS EBA bull UFRJ 2001

frequumlecircncia no sentimento humanista mais banal e no entusiasmo inuacutetil em relaccedilatildeo ao poder emotivo e expressivo_o Eles o fazem em grande medida reconhecendo o empreendimento antropoloacutegico como por exemplo a ideacuteia de que os objetos africanos natildeo podem ser inteiramente compreendidos sem a referecircncia aos nativos africanos no contexto cultural especiacutefico que os produziu Danto tem que concordar que natildeo se deve atribuir ao contexto um valor axiomaacutetico - embora seja inegaacutevel sua relaccedilatildeo com o significado - particularmente quando tanto contexto quanto significado

foram indicados pela Antropologia 10

Faris argumenta ainda que de modo geral esse tipo de liberalismo recebe as produccedilotildees do Outro etnograacuteflco nos termos do Outro mas soacute na medida em que essa produccedilatildeo seja aceitaacutevel ou coerente com um dado conceito de Espiacuterito Absoluto

A etnografia imaginaacuteria de Danto a respeito da cosmogenia dos potes e dos cestos revela com precisatildeo o tipo de narrativa antropoloacutegica que ele considera conveniente e de fato tanto os antropoacutelogos quanto seus informantes nunca hesitaram em produzir relatos desse tipo O ponto foucaultiano de Farris diz respeito ao fato de que o empreendimento antropoloacutegico como um todo tende a buscar esse tipo de saacutebio ou especialista nativo ao qual Danto atribui o poder de distinguir entre arte e natildeo-arte Isso ocorre porque em uacuteltima instacircncia noacutes antropoacutelogos queremos tachar esses objetos e atribuir-lhes significados fixos e controlaacuteveis Concordo com Faris quanto ao fato de que os saacutebios (fictiacutecios) de Danto satildeo projeccedilotildees palpaacuteveis de autoridade e como tal merecem ser desmascarados Mas infelizmente ele acaba natildeo discutindo a distinccedilatildeo objeto de arte versus artefato exceto para indicar que essa oposiccedilatildeo estaacute sujeita a uma redeflniccedilatildeo contiacutenua II e que dificilmente pode ser separada de questotildees relativas agrave ideologia e ao poder

O proacuteprio Danto natildeo esgota o assunto quando diz que os saacutebios fornecem interpretaccedilotildees capazes de transformar as verdadeiras obras de arte em fragmentos do Espiacuterito Absoluto Na segunda parte de

180

seu ensaio ele divaga sobre a ideacuteia de que os artefatos satildeo incompletos enquanto as obras de arte encarnam ideacuteias autoshysuficientes e completas Citando Heldegger ele observa que um artefato eacute sempre parte de um Zeuggonzes - um sistema de ferramentas um sistema teacutecnico que forma uma totalidade Um martelo natildeo existe por si soacute implica os pregos a serem martelados as madeiras nas quais essa accedilatildeo seraacute executada as serras que daratildeo forma agrave madeira e assim por diante A rede (implicitamente) eacute apenas um componente do Zeuggonzes de caccedila Zande e natildeo tem significado em si mesma Mesmo quando satildeo bem elaborados objetos como uma rede um martelo um trinco de porta decorativo ou outro exemplo qualquer de arte aplicada satildeo incapazes de veicular o tipo de ideacuteia que distingue o objeto artiacutestico pois este sempre se reporta ao universal

seria equivocado afirmar tais coisas [que dizem respeito a verdades universais] a respeito de facas redes ou grampos de cabelo objetos cujo significado se esgota em

sua utilidade Afinal de contas a universalidade diz respeito antes de mais nada a pensamentos e proposiccedilotildees e ningueacutem suporia que objetos como os que acabei de citar expressem um conteuacutedo universal A realidade desses objetos esgotashyse em seu uso jaacute as obras de arte possuem um papel mais elevado colocando-nos em contato com realidades superiores elas satildeo definidas por meio da apreensatildeo de significado Elas devem ser explicadas pelo que expressam Diante de uma obra de arte estamos diante de algo que soacute por si mesmo eacute possiacutevel apreender do mesmo modo que soacute por intermeacutedio de accedilotildees corporais podemos

ter acesso agrave mente de outra pessoa 12

Mas ateacute mesmo Danto eacute forccedilado a fazer uma ressalva dado ser oacutebvio que a maior parte da produccedilatildeo pertencente agrave tradiccedilatildeo artiacutestica ocidental natildeo foi produzida para ser apreciada pelo puacuteblico mas para atender a propoacutesitos instrumentais As pinturas religiosas servem a funccedilotildees lituacutergicas (como peccedilas de altar objetos de devoccedilatildeo) retratos expressam semelhanccedila estaacutetuas dignificam espaccedilos puacuteblicos e soberanos e assim sucessivamente O mesmo eacute vaacutelido de modo ainda mais contundente para os

produtos africanos aos quais Danto atribui o estatuto de obras de arte Nenhum deles foi feito para ser admirado apenas como uma obra de arte independente Esses objetos em vez di sso fazem parte de cerimocircnias puacuteblicas que todavia natildeo podem ser expo rtadas como os objetos o satildeo Em suma natildeo apenas as redes mas tambeacutem objetos como as maacutescaras fazem parte do Zeuggonzes Danto lida com esse problema admitindo que

ateacute haacute pouco tempo [e mesmo agora provavelmente na Aacutefrica] as obras de arte usufruiacuteam de dupla identidade tanto como objetos de uso e praacutexis quanto como receptaacuteculos de espiacuterito e significado A arte africana uma vez exportada perde a primeira funccedilatildeo mas reteacutem a uacuteltima O objetivo natildeo eacute fazer do destacamento espacial um atributo para a definiccedilatildeo de arte porque isso desqualificaria como arte as obras das culturas primitivas Em suas proacuteprias sociedades essas obras tecircm um lugar mas que natildeo eacute o tipo de lugar que elas tecircm no Zeugganzes como ferramentas em um sistema teacutecnico O fundamental eacute que toda a vida praacutetica dessas sociedades poderia seguir adiante mesmo se natildeo houvesse nelas nenhuma obra de arte mesmo admitindo que as obras de arte fazem parte de rituais supostamente dotados de eficaacutecia praacutetica 13

Essa sem duacutevida eacute uma declaraccedilatildeo enigmaacutetica ateacute mesmo para um fil oacutesofo

_---- ----- - ---- - --- ---__-------shy

r---

Danto quer dizer que as obras de arte tecircm significados independentemente de seu uso praacutetico e agrave medida que satildeo artiacutesticos natildeo satildeo uacuteteis mas significativos Todavia esses mesmos objetos satildeo usados em rituais supostamente eficazes Poderiacuteamos subtrair hipoteticamente as obras de arte e a vida praacutet ica seria capaz de co ntinuar porq ue os mesmos o bjetos di sfarccedilados de ferramentas ou artefatos estariam laacute para preencher suas funccedilotildee s extra-artiacutesticas anteriores Esse raciociacutecio eacute ce r tamente casuiacutestico De que maneira as maacutescaras africanas podem participar de um contexto ritual como instrumentos eficazes sem que possuam qualquer significaccedilatildeo interpretativo-cultural o que segundo o proacute prio Danto jaacute seria condiccedilatildeo para qualificaacute-Ias como arte A separaccedilatildeo entre instrumentalidade e espiritualidade eacute portanto impraticaacutevel E se as obras de arte satildeo um tipo de instrumento (o que creio eu natildeo seria questionado pelos escultores africanos) por que natildeo considerar tambeacutem que os instrumentos podem ser um tipo de obra de arte

A partir daiacute podemos inferir que Danto exclui a rede como arte porque ele natildeo pode imaginar que um saacutebio nativo seja capaz de contar-lhe uma estoacuteria suficientemente convincente capaz de persuadi-lo do contraacuterio Ele faz essa suposiccedilatildeo porque uma rede eacute usada para caccedilar e para ele a caccedilada eacute apenas um meio para a obtenccedilatildeo de alimentos logo a rede natildeo passa de uma ferramenta como um ralador de queijo Esse raciociacutenio revela uma total falta de familiaridade com a etnografia africana na qual a maioria das caccediladas eacute descrita como parte de rituais especiacuteficos (iniciaccedilotildees fe stiva is anuais etc) ou pelo menos como um costume altamente ritualizado mas natildeo com certeza como um dispositivo corriqueiro para garantir a sobrevivecircncia Assim caso a rede tivesse sido documentada de fo rma correta na eacutepoca em que foi coletada (c 19 10) eacute mais provaacutevel que ela figurasse ritualisticamente como um atributo do papel do caccedilador no drama co letivo da caccedila ritual pelo menos natildeo se pode excluir essa possibilidade Nesse caso o funcio namento da rede natildeo

TRADUccedilAO bull A LFRED GELL 181

seria muito diferente do funcionamento de qualquer outro item da parafernaacutelia ritual como as maacutescaras por exemplo

Entretanto eacute preciso esclarecer que os saacutebios africanos estatildeo preparados para contar aos antropoacutelogos estoacuterias que revelam natildeo apenas que a caccedila eacute ritual mente importante (como ordaacutelio provaccedilatildeo para os jovens e assim por diante) mas tambeacutem que seus meios as redes ou armadilhas satildeo metaflsicamente significativos Recorrerei agora agrave narrativa de

Soyer l4 a respeito de cantores Fang (Aacutefrica Ocidental) de eacutepicos maacutegicos (mvet) Soyer

estaacute tentando entender a natureza do saber tradicional e no decorrer de suas investigaccedilotildees acaba conhecendo um especialista em canto chamado Ze com o qual trava um longo debate sobre a natureza da sabedoria

182

~ bull UFRJ 2001

Assim como os animais selvagens e como evur (sabedoriapoder maacutegico) mvet (eacutepico) pertence agrave floresta em sua evanescecircncia vocecirc pensa que pode pegaacute-lo mas ele escapa e eacute vocecirc quem eacute capturado Com Ze percebi que de certo modo as complexidades de mvet eram sempre comparadas a armadilhas Em resposta ele me contou a seguinte estoacuteria

Quando eu era jovem conheci bem os Pigmeu Eles vivem na floresta natildeo satildeo pessoas de aldeia como noacutes Fui com frequumlecircncia caccedilar com eles Os Pigmeu tecircm armadilhas para cada tipo de animal e por isso satildeo tatildeo bem sucedidos Eles tecircm uma

armadilha especial para chimpanzeacutes porque os chimpanzeacutes satildeo como os seres humanos quando tecircm algum problema param e pensam sobre isso ao inveacutes de fugirem e gritarem simplesmente Vocecirc natildeo pode pegar um chimpanzeacute com uma armadilha comum porque ele natildeo foge [e assim o noacute natildeo eacute puxado] Entatildeo os Pigmeu inventaram uma armadilha especial com uma linha que prende o braccedilo do chimpanzeacute A linha eacute bem fina e o chimpanzeacute pensa que pode se soltar Ao inveacutes de arrebentaacute-Ia ele puxa suavemente para ver o que aconteceraacute Neste momento um fardo de setas envenenadas cai sobre ele e isso soacute ocorre porque ele natildeo corre como um animal estuacutepido um antiacutelope por exemPlo faria15

A conversa entre Ze e Soyer natildeo eacute uma anedota boba sobre caccedila mas diz respeito fundamentalmente ao problema faustiano relativo ao conhecimento (entre outras coisas) um problema que natildeo eacute menos importante para o povo Fang da floresta tropical de Camarotildees do que para os

professores do MIT

Com base no depoimento desse saacutebio Fang parece inquestionaacutevel que uma armadilha seja uma metaacutefora de profunda significaccedilatildeo uma refraccedilatildeo do Espiacuterito Absoluto se eacute que esse algum dia existiu Todavia tenhamos em mente as criacuteticas feitas por Faris de que os

saacutebios natildeo estariam falando sobre armadilhas utilitaacuterias prosaicas mas sobre armadilhas imaginaacuterias espirituais armadilhas no sentido figurado natildeo no sentido literal O saacutebio Fang natildeo produziu nenhuma armadilha para a investigaccedilatildeo de Boyer Seria possiacutevel irmos aleacutem do texto de Boyer e montarmos uma exposiccedilatildeo de armadilhas de caccedila apresentando-a ao puacuteblico como uma exposiccedilatildeo de obras de arte

Deixemos o saacutebio fora disso por enquanto e nos perguntemos o que as armadilhas de caccedila animal revelam sobre o Espiacuterito Absoluto mesmo sem sua exegese nativa Por sua simples presenccedila as armadilhas de caccedila descontextualizadas podem revelar mais do que o gosto dos homens pelo consumo de carne animal)

De modo a levar o leitor a um julgamento adequado a respeito dessa questatildeo ofereccedilo algumas ilustraccedilotildees tiradas da literatura etnograacuteflca sobre armadilhas Observe a armadilha de setas Lembre-se da afirmaccedilatildeo de Danto de que olhar para uma obra de arte eacute como encontrar uma pessoa encontra-se uma pessoa um ser pensante co-presente reagindo a sua aparecircncia externa e a seu comportamento Do mesmo modo responde-se a uma obra de arte como a um ser co-presente um pensamento encarnado Agora imagine-se encontrando uma armadilha de setas natildeo (ass im espero) como a viacutetima que seraacute capturada mas como o visita nte de uma galeria que encontra uma instalaccedilatildeo feita pelo mais recente artista contemporacircneo Em tais circunstacircncias e sem qualquer contexto adicional o que o visitante poderaacute intuir como sendo o pensamento ou a intenccedilatildeo revelados por essa obra de arte

Creio que natildeo haveria nada errado caso o visitante imaginaacuterio de nossa exibiccedilatildeo visse nessa armadilha de setas uma representaccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo humana no mundo Essa eacute uma representaccedilatildeo que as pessoas de pensamento limitado poderiam censurar e negar se ao menos estivessem conscientes de que a armadilha poderio ser uma representaccedilatildeo Isso porque ela aponta para a existecircncia humana como uma violecircncia

impensada e iminente o que talvez natildeo seja um belo pensamento mas nem por isso pode ser considerado falso ou natildeo artiacutestico Inicialmente uma armadilha como essa comunica uma ausecircncia fatal - a ausecircncia do homem que a idealizou e armou e a ausecircncia do animal que se tornaraacute a viacutetima (o artista indicou essa viacutetima num segundo plano da ilustraccedilatildeo) Devido a essas ausecircncias marcadas a armadilha em questatildeo como todas as outras funciona como um poderoso signo Mesmo natildeo sendo projetada explicitamente para comunicar ou func ionar como signo (na verdade eacute projetada para ficar oculta e passar despercebida) a armadilha entretanto eacute muito mais significat iva do que a maioria dos signos su postos como tais A violecircncia estaacutetica do arco retesado a malevolecircncia congelada dos paus e das cordas satildeo reveladoras por si mesmas a despeito do recurso a representaccedilotildees convencionais Uma vez que esse eacute um signo natildeo oficial ele escapa de toda censura Nele eacute possiacutevel ler a intenccedilatildeo de seu autor e o destino de sua viacutetima Essa armadilha eacute um modelo bem como um instrumento De fato todos os instrumentos satildeo modelos porque eles precisam ser adaptados agraves caracteriacutesticas de seus usuaacuterios e assim tecircm sua marca Uma perna artificial eacute um modelo de uma perna verdadeira que estaacute ausente uma representaccedilatildeo que funciona como uma proacutetese A armadilha de setas eacute especialmente evidente como um modelo de seu criador porque ela tem que substituiacute-lo como uma espeacutecie de caccedilador substituto ela caccedila para seu dono Eacute de fato um autocircmato ou robocirc cujo design condensa o design de seu mentor Ela estaacute equipada com um transdutor sensorial rudimentar (a corda suscetiacutevel ao toque do animal) Esse siste ma nervoso aferente leva informaccedilotildees para o comando central (o mecanismo de disparo uma chave base de todos os dispositivos de processamento de informaccedilotildees) que ativa o sistema eferente liberando a energia armazenada no arco que impulsiona as setas produzindo accedilatildeo a di stacircncia (a morte da viacutetima) Isso natildeo eacute apenas o modelo de uma pessoa como um boneco qualquer mas um modelo eficaz de

T R A o U ccedil Agrave o bull A L F R E o G E L L I 83

ae R E V I 5 T A DO P R o G R A M A DE POacute 5 - G R A D U A ccedil Aacute o E M A R T E 5 V I 5 U A I 5 E B A bull U F R J 2 o o

pessoas que funciona Seria razoaacutevel perguntarmos que escultura seria capaz de mostrar mais sobre a condiccedilatildeo humana revelando apenas nosso delineamento exterior do que esse dispositivo mecacircnico Muito mais sobre a existecircncia humana estaacute presente aqu i do que em qualquer escultura mas como esse natildeo eacute um exemplo oacutebvio de um objeto de arte jamais seraacute olhado sob esse prisma

Aleacutem disso se olharmos para outras armadilhas poderemos ver que cada uma eacute natildeo apenas o modelo de se u criador um eu subsidiaacuterio na forma de um autocircmato mas cada uma eacute tambeacutem um modelo de sua viacutetima Esse modelo pode refletir efetivamente a forma externa da viacutetima como na cocircmica armadilha de girafa que delineia em negativo os contornos da parte inferior do corpo desse animal Ou a armadilha pode de modo mais suti l e abstrato representar paracircmetros do comportamento natural do animal que satildeo subvertidos a fim de aprisionaacute-lo As armadilhas satildeo paroacutedias letais do Umwelt do animal Assim o rato que gosta de se enfiar em espaccedilos estreitos tem uma cavidade atraente preparada para sua uacuteltima e fatal correria na escuridatildeo Eacute claro que a armadilha natildeo eacute em si mesma inteligente ou enganosa O caccedilador eacute que conhece as respostas habituais da viacutetima e eacute capaz de subvertecirc-Ias Mas uma vez montada a armadilha a habilidade e o conhecimento do caccedilador estatildeo efetivamente inscritos nela de forma objetiflcada caso contraacuterio a armadilha natildeo funcionaria Esse conhecimento objetivo sobreviveria ateacute mesmo agrave morte do proacuteprio caccedilador e tambeacutem seria (parcialmente) legiacutevel por outros que soacute tivessem acesso agrave armadilha e natildeo ao conhecimento sobre o animal que estaacute refletido em seu projeto A partir da forma da armadilha poderiam ser deduzidas as disposiccedilotildees da viacutetima Nesse sentido as armadilhas podem ser consideradas como textos so bre o comportamento animal

A armadilha eacute portanto um modelo tanto de seu criador o caccedilador quanto de sua viacutetima a presa animal Poreacutem mais do que isso a armadilha encarna um cenaacuterio que eacute

184

o nexo draacutematico que liga os dois protagonistas e que os alinha no tempo e no espaccedilo Nossas ilustraccedilotildees natildeo podem mostrar isso porque elas apresentam as armadilhas esperando suas viacutetimas ou viacutetimas que jaacute foram capturadas Elas natildeo podem mostrar po reacutem a estrutura temporal da armadilha Essa estrutura tempo ral o potildee o tempo suspenso o tempo vazio da espera agrave cataacutestrofe suacutebita que resulta do fechamento da armadilha Essa estrutura temporal varia com o tipo de armadilha empregado mas natildeo eacute difiacutecil ver no drama da captura um anaacutelogo mecacircnico da sucessatildeo traacutegica de hubris-nemesisshycotostrophe Considere o hipopoacutetamo condenado tranquumlilo com a se nsaccedilatildeo de fal sa seguranccedila decorrente apenas de seu tamanho e majestade Quantos heroacuteis traacutegicos sofreram das mesmas ilusotildees de presunccedilatildeo e atraiacuteram o mesmo destino) Se o chimpanzeacute que cai na armadilha de Boyer for Fausto talvez este hipopoacutetam o seja Otelo O fato de que todos os animais que caem viacutetimas das armadilhas sempre provoquem suas quedas por meio da proacutepria autoconfianccedila complacente demonstra que a caccedila com armadilhas eacute uma forma muito mais poeacutetica e traacutegica do que a simples perseguiccedilatildeo Este uacuteltimo tipo de caccedilada iguala caccediladores e viacutetimas unidos em accedilatildeo e reaccedilatildeo espontacircneas ao passo que a caccedila com armadilhas hierarquiza decisivamente o caccedilador e a viacutetima O capturador eacute Deus ou o destin o o animal capturado eacute o homem em sua encarnaccedilatildeo traacutegica

Parece -me portanto que mesmo sem o contexto etnograacutefico mesmo sem a exegese de qualquer nativo armadilhas animais como essas poderiam ser apresentadas ao puacuteblico como obras de arte Esses dispositivos incorporam ideacuteias veicu lam significados porque uma armadilha por sua proacutepria natureza eacute uma representaccedilatildeo transformada de seu fabricante o caccedilador e da presa animal sua viacutetima e de sua relaccedilatildeo muacutetua que nos povos caccediladores eacute fundamentalmente socia l e complexa Isso significa que essas armadilhas comunicam a noccedilatildeo de um nexo de intencional idades entre os caccediladores e as presas animais mediante formas e mecanismos materiais

--- -- ---

Creio que essa evocaccedilatildeo de intencionalidades complexas eacute na realidade o que serve para defin ir as obras de arte e que adequadamente emolduradas as armadilhas para animais poderiam evocar intuiccedilotildees complexas a respeito do ser da alteridade do relacionamento O impacto dessas armadilhas agora apresentas como obras de arte pode no entanto ser maior caso elas sejam exibidas ao lado de obras de artes ocidentais (das quais eacute faacutecil achar numerosos exemplos) que ocupem pelo menos aparentemente o mesmo territoacuterio sem ioloacutegico

O trabalho de Damien Hirst um dos jovens artistas britacircnicos mais citados pela miacutedia parece ser um desses casos De fato foi a notoacuteria exposiccedilatildeo de Hirst exibida na Tate Gallery em 1992 que me induziu pela primeira vez a pensar sobre as armadilhas como objetos artiacutesticos Considere o tubaratildeo de Hirst no tanque de formol Essa obra cativa devido ao contraste profundo entre o pei xe gigantesco ultrabioloacutegico e sua gaiola ou armadilha de vidro asseacuteptica (recordando Eichmann em seu julgamento preso numa caixa de vidro) cujas paredes refletoras projetam imagens virtuais da igualmente asseacuteptica galeria dentro do domiacutenio bioloacutegico do tubaratildeo Um eco distante das metades superior (bioloacutegica) e inferior (mecacircnica) do Large Glass de Duchamp - sem duacutevida - mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre nosso poder de imobilizar forccedilas elementares que no entanto parecem sempre potencialmente prontas a escapar Ateacute mesmo o tubaratildeo de Hirst tatildeo morto quanto possiacutevel continua residualmente vivo observando e pensando ou pelo menos parece estar porque manteacutem seus olhos abertos e fi xos em noacutes Um dia ele escaparaacute

Seria apropriado colocar o tubaratildeo de Hirst ao lado da pintura em casca de aacutervore extraiacuteda do livro Ancestral Connections de Morphy l6 que mostra um tubaratildeo capturado quase idecircntico visualmente agrave instalaccedilatildeo exibida na Tate Gallery Os Yolnngu produzem esse t ipo de pintura durante rituais funeraacuterios e ela se refere agrave jornada rio acima de um tubaratildeo ancestral miacutetico que foi capturado

temporariamente em seu trajeto mas escapou Essa pintura refere-se agraves afiliaccedilotildees do clatilde dos mortos e metaforiza a viagem do espiacuterito agrave terra ancestral e a necessidade de transferir- lhe forccedilas (por meio de cerimocircn ias funeraacute rias) de modo que ele como o tubaratildeo ancestral possa escapar das armadilhas que ameaccedilam sua trajetoacuteria O episoacutedio do tubaratildeo sendo capturado e escapando eacute encenado pelos participantes Essas ideacuteias escatoloacutegicas satildeo eacute claro especiacuteficas da cultura Yolnngu mas eu me arriscaria a sugerir que a semelhanccedila entre o trabalho de Hirst e a obra Yolnngu natildeo eacute apenas superficiaJ mas insinua uma metaacutefora vaacutelida em termos interculturais embora sujeita a leituras diferenciadas

Enquanto isso para reforccedilar a ideacuteia de que a obra de Hirst diz respeito de modo profundo agraves armadilhas e agrave rede de intencio nalidades complexas que a captura em armadilhas estabelece descreverei outro trabalho de Hirst presente na mesma exibiccedilatildeo na qual uma armadilha em funcionamento foi efetivamente incorporada Refiro-me agrave instalaccedilatildeo que consiste em uma cabeccedila de ovelha dentro de uma caixa de vidro a cabeccedila deteriora-se e cria larvas que se transformam em moscas que depois se tornam viacuteti mas de uma armadilha para

TRAD UCcedilAacuteO middot A LFRED G ELL 185

ae R E V I TA DO P R o G R A M A D E POacute bull G R A o U A ccedil A o

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz vio leta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais e las morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antro poacutelogos deve riacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacuted igo mito loacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se ide ntificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal mo rto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus pe rverso que colocou este mundo incoerente em movim ento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hi rst natildeo seria o uacutenico artista ocidenta l contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceitual Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posi cionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalh o natildeo eacute tanto o tema da vio lecirc ncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetrado res justamente o tema que ide ntifiquei anteriorme nte em relaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relacio na-se diretamente ao tipo de armadilha serial para ho mens (esp ingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de pro priedades em tempos passados

Exemplos adicionai s de obras de arte poacutesshyDuchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 19 I7) po deriam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hi st satildeo exemplos do mesmo tip o de co isa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

E M A R T E v I U A I E 8 A bull U F R J 2 o0 1

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo supo nho que para que uma armadi lha afri cana o u uma armadilha de qualquer o utra parte exoacutetica do mundo possa funci o nar como uma o bra de arte seja realmente necessaacuterio o u desejaacuteve l que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o signifi cado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armad ilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento IB Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

186

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a arm ad ilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmenteshyartiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinh a Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecircshyse imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bongl Antes de saber o que aconteceu tran sforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido como qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as tran substanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hil-st discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)Iarvamoscamosca (morta) - poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tam pouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode fun cionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier2o Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal

reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tam beacutem em outros lugares

~ ---------- --------------------

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torn a-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente lo ngo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuter ios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas vo ltada natildeo bastaria para retiraacute-Ias do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seri a evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - eacute que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente agraves enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e co nteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

T R A D U ccedil Acirc o bull A L F R E D G E L L 187

--------------------------- -------------

ae REVIST A DO P ROGRAMA DE PO S -GRADUACcedilAtildeO

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porq ue ela proacutepria eacute alongada (eefshyongaced) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricad a eacute certame nte na forma de armad il has como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo imagens dos antepassado s no sentido de que elas contecircm e ncarnam e comu nicam o poder ancestral Aleacutem disso elas to rnam possiacuteve l a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacute m sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fanta siado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor O s Anga ao contraacuterio tecircm imagens de poder ancestral que de fato trabalham de fato alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo real iacutestica de form as (superficiais)

Con cl usatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armad il has exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio shya disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte) Espero que eu

EM A RTES VISUAIS EB A bull UFRJ 2001

ten ha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teo ria institucional da arte liberaria imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservandoshylhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente dife rentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses objetos tornar-se-iam artiacutesticos Sei-ia essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacute logo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa tran sformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute co nstituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como arte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm po uco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arte para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como ta l numa cidade provinciana muito sono lenta que se vanglorie (como a maioria de las) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad~ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas po r que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arte caso produzisse coisas genericamente semel hantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21 ) - res ide na intluecircn cia pro longada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de o bra de arte pela antropologia da arte23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte co ntemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode se r visto em galerias de artesanat o provincianas Deve-se acei tar a premissa em essecirc ncia libe rtadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentai s jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabri cado pelo homem pode ser ve iculado como o bra de arte Eacute isso que a teo ria instituciona l da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de t eoria da arte contemporacircnea desde 19 I7 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urin o l (ou Fontaine) Fo i no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Dami en Hi rst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Ducham p pouco poderiacuteamos esperar de la nesta fase ta rdia Na verdade as co isas natildeo satildeo middotbem assim Os ready-made de Duchamp foram cuidadosamente selecio nados e firmeme nte integrados tematicamente a do is de seus principais projetos (o Large Gass de 19 I 5shy23 e a Waterfal de 1944-66) O aspecto mais inte ressante a respeito dos ready-made de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Ducham p para selecio naacuteshylos (reve ladas ao lo ngo de toda uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceitual aparenteme nte arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos e les funci onam se eacute que fun cionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e hi stoacute ricas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maio r ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquant o veiacutecu los de ideacute ias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de reali za r et c Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer o bjeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencional idades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de recon struir plename nte 2~

Assim eacute preci so mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simp les exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvid o e disseminado Desse ponto de vista a t eoria puramente institucional da arte eacute menos do que sati sfatoacuteria porque nada tem a dizel- sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuai s ao s quais o puacuteblico ed ucado de ga leria eacute sensiacuteve l Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da inte rpretabil idad e para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teor ia pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre o bra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos funcionais e obras de arte significat ivas Esse eacute um legado dos fil oacutesofos poacutes-iluministas co mo Hege l que obscurece a compreensatildeo de qual quer mundo artiacutestico distinto daqu e le que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar sign ificado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas re ligiosas e o utras Essas funccedil otildees satildeo praacuteticas nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e da man ei ra como os seres humanos podem interferir em seu funci onamento de modo a t irar o melhor proveito poss iacuteve l dele O bras

TR ADUCcedilAo A L F RED GE LL 189

ae R E V 1ST A D D P R D G R A M A DE POacuteS - G R A o U A ccedil A o E M A R T E S V I SUA I S E B A bull U F R J bull 2 o o I

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames2s A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucional e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bemshysucedida candidatura a obra de arte da rede de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencional idades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teorias interpretativa e institucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

190

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26

demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-Ia como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funcioacutena eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

Quando morreu em 1997Alfred Gell era Professor de Antropologia na London SchooJ of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a resp eito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Jmag es Totooing in Poynesia (1993) e Art ond Agency An Anhropologicol Theory ( 1998)

Traduccedilatildeo Marcia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

Notas

I Ver Dickie George Are and Aesthetics Ithaca Nova York Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circfe a Theory ofArt New York Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique of Judgements ofTaste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris james ArtlArtifact on the Museum and Anthropology Currene AnUacutelropology 29(5) 1988775-9

4 Faris op cit776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifacc African Art in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestei Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of Philosophy Journal of Philosophy 61 1964 57 1-84

7 Dickie 1974 op cir

8 Ver Danto Arthur The Tran sfJguration o the Commonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cir

9 Danto 1981 op cir

10 Faris op cir 778

I I Clifford james The Predicament of Culcure Cambridge MA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit31

13 Danto 1988 op cir 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agrave Penseacutee introduction agrave Ianalyse des eacutepopeacutees Fang Paris Societeacute dEthnologie 1988

15 Boyer op cie 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art ando an Aboriginal Syseem o Knowledge Chicago Chicago University Pness 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MD Rowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the Renais sance Oxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report ofthe American Bureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-Anga Material and Symbolic Aspects ofTrapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

--_ _--shy

21 Weiner J (ed) Aesthetics is a Cross-cultural Category Graup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic ExperienceAn Anthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and the Enchantment ofTechnology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderes cognitivos

25 Gell op cie 60

26 Thomas Nicholas Enwngled Objects Cambridge MA Harvard University Press 1991

TRADUccedilAO AlFRED GEll 191

Page 8: A Rede de Vogel- Armadilhas Como Obras de Arte

produtos africanos aos quais Danto atribui o estatuto de obras de arte Nenhum deles foi feito para ser admirado apenas como uma obra de arte independente Esses objetos em vez di sso fazem parte de cerimocircnias puacuteblicas que todavia natildeo podem ser expo rtadas como os objetos o satildeo Em suma natildeo apenas as redes mas tambeacutem objetos como as maacutescaras fazem parte do Zeuggonzes Danto lida com esse problema admitindo que

ateacute haacute pouco tempo [e mesmo agora provavelmente na Aacutefrica] as obras de arte usufruiacuteam de dupla identidade tanto como objetos de uso e praacutexis quanto como receptaacuteculos de espiacuterito e significado A arte africana uma vez exportada perde a primeira funccedilatildeo mas reteacutem a uacuteltima O objetivo natildeo eacute fazer do destacamento espacial um atributo para a definiccedilatildeo de arte porque isso desqualificaria como arte as obras das culturas primitivas Em suas proacuteprias sociedades essas obras tecircm um lugar mas que natildeo eacute o tipo de lugar que elas tecircm no Zeugganzes como ferramentas em um sistema teacutecnico O fundamental eacute que toda a vida praacutetica dessas sociedades poderia seguir adiante mesmo se natildeo houvesse nelas nenhuma obra de arte mesmo admitindo que as obras de arte fazem parte de rituais supostamente dotados de eficaacutecia praacutetica 13

Essa sem duacutevida eacute uma declaraccedilatildeo enigmaacutetica ateacute mesmo para um fil oacutesofo

_---- ----- - ---- - --- ---__-------shy

r---

Danto quer dizer que as obras de arte tecircm significados independentemente de seu uso praacutetico e agrave medida que satildeo artiacutesticos natildeo satildeo uacuteteis mas significativos Todavia esses mesmos objetos satildeo usados em rituais supostamente eficazes Poderiacuteamos subtrair hipoteticamente as obras de arte e a vida praacutet ica seria capaz de co ntinuar porq ue os mesmos o bjetos di sfarccedilados de ferramentas ou artefatos estariam laacute para preencher suas funccedilotildee s extra-artiacutesticas anteriores Esse raciociacutecio eacute ce r tamente casuiacutestico De que maneira as maacutescaras africanas podem participar de um contexto ritual como instrumentos eficazes sem que possuam qualquer significaccedilatildeo interpretativo-cultural o que segundo o proacute prio Danto jaacute seria condiccedilatildeo para qualificaacute-Ias como arte A separaccedilatildeo entre instrumentalidade e espiritualidade eacute portanto impraticaacutevel E se as obras de arte satildeo um tipo de instrumento (o que creio eu natildeo seria questionado pelos escultores africanos) por que natildeo considerar tambeacutem que os instrumentos podem ser um tipo de obra de arte

A partir daiacute podemos inferir que Danto exclui a rede como arte porque ele natildeo pode imaginar que um saacutebio nativo seja capaz de contar-lhe uma estoacuteria suficientemente convincente capaz de persuadi-lo do contraacuterio Ele faz essa suposiccedilatildeo porque uma rede eacute usada para caccedilar e para ele a caccedilada eacute apenas um meio para a obtenccedilatildeo de alimentos logo a rede natildeo passa de uma ferramenta como um ralador de queijo Esse raciociacutenio revela uma total falta de familiaridade com a etnografia africana na qual a maioria das caccediladas eacute descrita como parte de rituais especiacuteficos (iniciaccedilotildees fe stiva is anuais etc) ou pelo menos como um costume altamente ritualizado mas natildeo com certeza como um dispositivo corriqueiro para garantir a sobrevivecircncia Assim caso a rede tivesse sido documentada de fo rma correta na eacutepoca em que foi coletada (c 19 10) eacute mais provaacutevel que ela figurasse ritualisticamente como um atributo do papel do caccedilador no drama co letivo da caccedila ritual pelo menos natildeo se pode excluir essa possibilidade Nesse caso o funcio namento da rede natildeo

TRADUccedilAO bull A LFRED GELL 181

seria muito diferente do funcionamento de qualquer outro item da parafernaacutelia ritual como as maacutescaras por exemplo

Entretanto eacute preciso esclarecer que os saacutebios africanos estatildeo preparados para contar aos antropoacutelogos estoacuterias que revelam natildeo apenas que a caccedila eacute ritual mente importante (como ordaacutelio provaccedilatildeo para os jovens e assim por diante) mas tambeacutem que seus meios as redes ou armadilhas satildeo metaflsicamente significativos Recorrerei agora agrave narrativa de

Soyer l4 a respeito de cantores Fang (Aacutefrica Ocidental) de eacutepicos maacutegicos (mvet) Soyer

estaacute tentando entender a natureza do saber tradicional e no decorrer de suas investigaccedilotildees acaba conhecendo um especialista em canto chamado Ze com o qual trava um longo debate sobre a natureza da sabedoria

182

~ bull UFRJ 2001

Assim como os animais selvagens e como evur (sabedoriapoder maacutegico) mvet (eacutepico) pertence agrave floresta em sua evanescecircncia vocecirc pensa que pode pegaacute-lo mas ele escapa e eacute vocecirc quem eacute capturado Com Ze percebi que de certo modo as complexidades de mvet eram sempre comparadas a armadilhas Em resposta ele me contou a seguinte estoacuteria

Quando eu era jovem conheci bem os Pigmeu Eles vivem na floresta natildeo satildeo pessoas de aldeia como noacutes Fui com frequumlecircncia caccedilar com eles Os Pigmeu tecircm armadilhas para cada tipo de animal e por isso satildeo tatildeo bem sucedidos Eles tecircm uma

armadilha especial para chimpanzeacutes porque os chimpanzeacutes satildeo como os seres humanos quando tecircm algum problema param e pensam sobre isso ao inveacutes de fugirem e gritarem simplesmente Vocecirc natildeo pode pegar um chimpanzeacute com uma armadilha comum porque ele natildeo foge [e assim o noacute natildeo eacute puxado] Entatildeo os Pigmeu inventaram uma armadilha especial com uma linha que prende o braccedilo do chimpanzeacute A linha eacute bem fina e o chimpanzeacute pensa que pode se soltar Ao inveacutes de arrebentaacute-Ia ele puxa suavemente para ver o que aconteceraacute Neste momento um fardo de setas envenenadas cai sobre ele e isso soacute ocorre porque ele natildeo corre como um animal estuacutepido um antiacutelope por exemPlo faria15

A conversa entre Ze e Soyer natildeo eacute uma anedota boba sobre caccedila mas diz respeito fundamentalmente ao problema faustiano relativo ao conhecimento (entre outras coisas) um problema que natildeo eacute menos importante para o povo Fang da floresta tropical de Camarotildees do que para os

professores do MIT

Com base no depoimento desse saacutebio Fang parece inquestionaacutevel que uma armadilha seja uma metaacutefora de profunda significaccedilatildeo uma refraccedilatildeo do Espiacuterito Absoluto se eacute que esse algum dia existiu Todavia tenhamos em mente as criacuteticas feitas por Faris de que os

saacutebios natildeo estariam falando sobre armadilhas utilitaacuterias prosaicas mas sobre armadilhas imaginaacuterias espirituais armadilhas no sentido figurado natildeo no sentido literal O saacutebio Fang natildeo produziu nenhuma armadilha para a investigaccedilatildeo de Boyer Seria possiacutevel irmos aleacutem do texto de Boyer e montarmos uma exposiccedilatildeo de armadilhas de caccedila apresentando-a ao puacuteblico como uma exposiccedilatildeo de obras de arte

Deixemos o saacutebio fora disso por enquanto e nos perguntemos o que as armadilhas de caccedila animal revelam sobre o Espiacuterito Absoluto mesmo sem sua exegese nativa Por sua simples presenccedila as armadilhas de caccedila descontextualizadas podem revelar mais do que o gosto dos homens pelo consumo de carne animal)

De modo a levar o leitor a um julgamento adequado a respeito dessa questatildeo ofereccedilo algumas ilustraccedilotildees tiradas da literatura etnograacuteflca sobre armadilhas Observe a armadilha de setas Lembre-se da afirmaccedilatildeo de Danto de que olhar para uma obra de arte eacute como encontrar uma pessoa encontra-se uma pessoa um ser pensante co-presente reagindo a sua aparecircncia externa e a seu comportamento Do mesmo modo responde-se a uma obra de arte como a um ser co-presente um pensamento encarnado Agora imagine-se encontrando uma armadilha de setas natildeo (ass im espero) como a viacutetima que seraacute capturada mas como o visita nte de uma galeria que encontra uma instalaccedilatildeo feita pelo mais recente artista contemporacircneo Em tais circunstacircncias e sem qualquer contexto adicional o que o visitante poderaacute intuir como sendo o pensamento ou a intenccedilatildeo revelados por essa obra de arte

Creio que natildeo haveria nada errado caso o visitante imaginaacuterio de nossa exibiccedilatildeo visse nessa armadilha de setas uma representaccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo humana no mundo Essa eacute uma representaccedilatildeo que as pessoas de pensamento limitado poderiam censurar e negar se ao menos estivessem conscientes de que a armadilha poderio ser uma representaccedilatildeo Isso porque ela aponta para a existecircncia humana como uma violecircncia

impensada e iminente o que talvez natildeo seja um belo pensamento mas nem por isso pode ser considerado falso ou natildeo artiacutestico Inicialmente uma armadilha como essa comunica uma ausecircncia fatal - a ausecircncia do homem que a idealizou e armou e a ausecircncia do animal que se tornaraacute a viacutetima (o artista indicou essa viacutetima num segundo plano da ilustraccedilatildeo) Devido a essas ausecircncias marcadas a armadilha em questatildeo como todas as outras funciona como um poderoso signo Mesmo natildeo sendo projetada explicitamente para comunicar ou func ionar como signo (na verdade eacute projetada para ficar oculta e passar despercebida) a armadilha entretanto eacute muito mais significat iva do que a maioria dos signos su postos como tais A violecircncia estaacutetica do arco retesado a malevolecircncia congelada dos paus e das cordas satildeo reveladoras por si mesmas a despeito do recurso a representaccedilotildees convencionais Uma vez que esse eacute um signo natildeo oficial ele escapa de toda censura Nele eacute possiacutevel ler a intenccedilatildeo de seu autor e o destino de sua viacutetima Essa armadilha eacute um modelo bem como um instrumento De fato todos os instrumentos satildeo modelos porque eles precisam ser adaptados agraves caracteriacutesticas de seus usuaacuterios e assim tecircm sua marca Uma perna artificial eacute um modelo de uma perna verdadeira que estaacute ausente uma representaccedilatildeo que funciona como uma proacutetese A armadilha de setas eacute especialmente evidente como um modelo de seu criador porque ela tem que substituiacute-lo como uma espeacutecie de caccedilador substituto ela caccedila para seu dono Eacute de fato um autocircmato ou robocirc cujo design condensa o design de seu mentor Ela estaacute equipada com um transdutor sensorial rudimentar (a corda suscetiacutevel ao toque do animal) Esse siste ma nervoso aferente leva informaccedilotildees para o comando central (o mecanismo de disparo uma chave base de todos os dispositivos de processamento de informaccedilotildees) que ativa o sistema eferente liberando a energia armazenada no arco que impulsiona as setas produzindo accedilatildeo a di stacircncia (a morte da viacutetima) Isso natildeo eacute apenas o modelo de uma pessoa como um boneco qualquer mas um modelo eficaz de

T R A o U ccedil Agrave o bull A L F R E o G E L L I 83

ae R E V I 5 T A DO P R o G R A M A DE POacute 5 - G R A D U A ccedil Aacute o E M A R T E 5 V I 5 U A I 5 E B A bull U F R J 2 o o

pessoas que funciona Seria razoaacutevel perguntarmos que escultura seria capaz de mostrar mais sobre a condiccedilatildeo humana revelando apenas nosso delineamento exterior do que esse dispositivo mecacircnico Muito mais sobre a existecircncia humana estaacute presente aqu i do que em qualquer escultura mas como esse natildeo eacute um exemplo oacutebvio de um objeto de arte jamais seraacute olhado sob esse prisma

Aleacutem disso se olharmos para outras armadilhas poderemos ver que cada uma eacute natildeo apenas o modelo de se u criador um eu subsidiaacuterio na forma de um autocircmato mas cada uma eacute tambeacutem um modelo de sua viacutetima Esse modelo pode refletir efetivamente a forma externa da viacutetima como na cocircmica armadilha de girafa que delineia em negativo os contornos da parte inferior do corpo desse animal Ou a armadilha pode de modo mais suti l e abstrato representar paracircmetros do comportamento natural do animal que satildeo subvertidos a fim de aprisionaacute-lo As armadilhas satildeo paroacutedias letais do Umwelt do animal Assim o rato que gosta de se enfiar em espaccedilos estreitos tem uma cavidade atraente preparada para sua uacuteltima e fatal correria na escuridatildeo Eacute claro que a armadilha natildeo eacute em si mesma inteligente ou enganosa O caccedilador eacute que conhece as respostas habituais da viacutetima e eacute capaz de subvertecirc-Ias Mas uma vez montada a armadilha a habilidade e o conhecimento do caccedilador estatildeo efetivamente inscritos nela de forma objetiflcada caso contraacuterio a armadilha natildeo funcionaria Esse conhecimento objetivo sobreviveria ateacute mesmo agrave morte do proacuteprio caccedilador e tambeacutem seria (parcialmente) legiacutevel por outros que soacute tivessem acesso agrave armadilha e natildeo ao conhecimento sobre o animal que estaacute refletido em seu projeto A partir da forma da armadilha poderiam ser deduzidas as disposiccedilotildees da viacutetima Nesse sentido as armadilhas podem ser consideradas como textos so bre o comportamento animal

A armadilha eacute portanto um modelo tanto de seu criador o caccedilador quanto de sua viacutetima a presa animal Poreacutem mais do que isso a armadilha encarna um cenaacuterio que eacute

184

o nexo draacutematico que liga os dois protagonistas e que os alinha no tempo e no espaccedilo Nossas ilustraccedilotildees natildeo podem mostrar isso porque elas apresentam as armadilhas esperando suas viacutetimas ou viacutetimas que jaacute foram capturadas Elas natildeo podem mostrar po reacutem a estrutura temporal da armadilha Essa estrutura tempo ral o potildee o tempo suspenso o tempo vazio da espera agrave cataacutestrofe suacutebita que resulta do fechamento da armadilha Essa estrutura temporal varia com o tipo de armadilha empregado mas natildeo eacute difiacutecil ver no drama da captura um anaacutelogo mecacircnico da sucessatildeo traacutegica de hubris-nemesisshycotostrophe Considere o hipopoacutetamo condenado tranquumlilo com a se nsaccedilatildeo de fal sa seguranccedila decorrente apenas de seu tamanho e majestade Quantos heroacuteis traacutegicos sofreram das mesmas ilusotildees de presunccedilatildeo e atraiacuteram o mesmo destino) Se o chimpanzeacute que cai na armadilha de Boyer for Fausto talvez este hipopoacutetam o seja Otelo O fato de que todos os animais que caem viacutetimas das armadilhas sempre provoquem suas quedas por meio da proacutepria autoconfianccedila complacente demonstra que a caccedila com armadilhas eacute uma forma muito mais poeacutetica e traacutegica do que a simples perseguiccedilatildeo Este uacuteltimo tipo de caccedilada iguala caccediladores e viacutetimas unidos em accedilatildeo e reaccedilatildeo espontacircneas ao passo que a caccedila com armadilhas hierarquiza decisivamente o caccedilador e a viacutetima O capturador eacute Deus ou o destin o o animal capturado eacute o homem em sua encarnaccedilatildeo traacutegica

Parece -me portanto que mesmo sem o contexto etnograacutefico mesmo sem a exegese de qualquer nativo armadilhas animais como essas poderiam ser apresentadas ao puacuteblico como obras de arte Esses dispositivos incorporam ideacuteias veicu lam significados porque uma armadilha por sua proacutepria natureza eacute uma representaccedilatildeo transformada de seu fabricante o caccedilador e da presa animal sua viacutetima e de sua relaccedilatildeo muacutetua que nos povos caccediladores eacute fundamentalmente socia l e complexa Isso significa que essas armadilhas comunicam a noccedilatildeo de um nexo de intencional idades entre os caccediladores e as presas animais mediante formas e mecanismos materiais

--- -- ---

Creio que essa evocaccedilatildeo de intencionalidades complexas eacute na realidade o que serve para defin ir as obras de arte e que adequadamente emolduradas as armadilhas para animais poderiam evocar intuiccedilotildees complexas a respeito do ser da alteridade do relacionamento O impacto dessas armadilhas agora apresentas como obras de arte pode no entanto ser maior caso elas sejam exibidas ao lado de obras de artes ocidentais (das quais eacute faacutecil achar numerosos exemplos) que ocupem pelo menos aparentemente o mesmo territoacuterio sem ioloacutegico

O trabalho de Damien Hirst um dos jovens artistas britacircnicos mais citados pela miacutedia parece ser um desses casos De fato foi a notoacuteria exposiccedilatildeo de Hirst exibida na Tate Gallery em 1992 que me induziu pela primeira vez a pensar sobre as armadilhas como objetos artiacutesticos Considere o tubaratildeo de Hirst no tanque de formol Essa obra cativa devido ao contraste profundo entre o pei xe gigantesco ultrabioloacutegico e sua gaiola ou armadilha de vidro asseacuteptica (recordando Eichmann em seu julgamento preso numa caixa de vidro) cujas paredes refletoras projetam imagens virtuais da igualmente asseacuteptica galeria dentro do domiacutenio bioloacutegico do tubaratildeo Um eco distante das metades superior (bioloacutegica) e inferior (mecacircnica) do Large Glass de Duchamp - sem duacutevida - mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre nosso poder de imobilizar forccedilas elementares que no entanto parecem sempre potencialmente prontas a escapar Ateacute mesmo o tubaratildeo de Hirst tatildeo morto quanto possiacutevel continua residualmente vivo observando e pensando ou pelo menos parece estar porque manteacutem seus olhos abertos e fi xos em noacutes Um dia ele escaparaacute

Seria apropriado colocar o tubaratildeo de Hirst ao lado da pintura em casca de aacutervore extraiacuteda do livro Ancestral Connections de Morphy l6 que mostra um tubaratildeo capturado quase idecircntico visualmente agrave instalaccedilatildeo exibida na Tate Gallery Os Yolnngu produzem esse t ipo de pintura durante rituais funeraacuterios e ela se refere agrave jornada rio acima de um tubaratildeo ancestral miacutetico que foi capturado

temporariamente em seu trajeto mas escapou Essa pintura refere-se agraves afiliaccedilotildees do clatilde dos mortos e metaforiza a viagem do espiacuterito agrave terra ancestral e a necessidade de transferir- lhe forccedilas (por meio de cerimocircn ias funeraacute rias) de modo que ele como o tubaratildeo ancestral possa escapar das armadilhas que ameaccedilam sua trajetoacuteria O episoacutedio do tubaratildeo sendo capturado e escapando eacute encenado pelos participantes Essas ideacuteias escatoloacutegicas satildeo eacute claro especiacuteficas da cultura Yolnngu mas eu me arriscaria a sugerir que a semelhanccedila entre o trabalho de Hirst e a obra Yolnngu natildeo eacute apenas superficiaJ mas insinua uma metaacutefora vaacutelida em termos interculturais embora sujeita a leituras diferenciadas

Enquanto isso para reforccedilar a ideacuteia de que a obra de Hirst diz respeito de modo profundo agraves armadilhas e agrave rede de intencio nalidades complexas que a captura em armadilhas estabelece descreverei outro trabalho de Hirst presente na mesma exibiccedilatildeo na qual uma armadilha em funcionamento foi efetivamente incorporada Refiro-me agrave instalaccedilatildeo que consiste em uma cabeccedila de ovelha dentro de uma caixa de vidro a cabeccedila deteriora-se e cria larvas que se transformam em moscas que depois se tornam viacuteti mas de uma armadilha para

TRAD UCcedilAacuteO middot A LFRED G ELL 185

ae R E V I TA DO P R o G R A M A D E POacute bull G R A o U A ccedil A o

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz vio leta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais e las morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antro poacutelogos deve riacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacuted igo mito loacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se ide ntificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal mo rto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus pe rverso que colocou este mundo incoerente em movim ento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hi rst natildeo seria o uacutenico artista ocidenta l contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceitual Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posi cionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalh o natildeo eacute tanto o tema da vio lecirc ncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetrado res justamente o tema que ide ntifiquei anteriorme nte em relaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relacio na-se diretamente ao tipo de armadilha serial para ho mens (esp ingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de pro priedades em tempos passados

Exemplos adicionai s de obras de arte poacutesshyDuchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 19 I7) po deriam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hi st satildeo exemplos do mesmo tip o de co isa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

E M A R T E v I U A I E 8 A bull U F R J 2 o0 1

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo supo nho que para que uma armadi lha afri cana o u uma armadilha de qualquer o utra parte exoacutetica do mundo possa funci o nar como uma o bra de arte seja realmente necessaacuterio o u desejaacuteve l que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o signifi cado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armad ilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento IB Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

186

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a arm ad ilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmenteshyartiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinh a Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecircshyse imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bongl Antes de saber o que aconteceu tran sforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido como qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as tran substanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hil-st discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)Iarvamoscamosca (morta) - poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tam pouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode fun cionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier2o Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal

reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tam beacutem em outros lugares

~ ---------- --------------------

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torn a-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente lo ngo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuter ios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas vo ltada natildeo bastaria para retiraacute-Ias do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seri a evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - eacute que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente agraves enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e co nteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

T R A D U ccedil Acirc o bull A L F R E D G E L L 187

--------------------------- -------------

ae REVIST A DO P ROGRAMA DE PO S -GRADUACcedilAtildeO

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porq ue ela proacutepria eacute alongada (eefshyongaced) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricad a eacute certame nte na forma de armad il has como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo imagens dos antepassado s no sentido de que elas contecircm e ncarnam e comu nicam o poder ancestral Aleacutem disso elas to rnam possiacuteve l a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacute m sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fanta siado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor O s Anga ao contraacuterio tecircm imagens de poder ancestral que de fato trabalham de fato alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo real iacutestica de form as (superficiais)

Con cl usatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armad il has exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio shya disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte) Espero que eu

EM A RTES VISUAIS EB A bull UFRJ 2001

ten ha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teo ria institucional da arte liberaria imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservandoshylhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente dife rentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses objetos tornar-se-iam artiacutesticos Sei-ia essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacute logo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa tran sformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute co nstituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como arte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm po uco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arte para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como ta l numa cidade provinciana muito sono lenta que se vanglorie (como a maioria de las) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad~ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas po r que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arte caso produzisse coisas genericamente semel hantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21 ) - res ide na intluecircn cia pro longada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de o bra de arte pela antropologia da arte23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte co ntemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode se r visto em galerias de artesanat o provincianas Deve-se acei tar a premissa em essecirc ncia libe rtadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentai s jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabri cado pelo homem pode ser ve iculado como o bra de arte Eacute isso que a teo ria instituciona l da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de t eoria da arte contemporacircnea desde 19 I7 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urin o l (ou Fontaine) Fo i no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Dami en Hi rst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Ducham p pouco poderiacuteamos esperar de la nesta fase ta rdia Na verdade as co isas natildeo satildeo middotbem assim Os ready-made de Duchamp foram cuidadosamente selecio nados e firmeme nte integrados tematicamente a do is de seus principais projetos (o Large Gass de 19 I 5shy23 e a Waterfal de 1944-66) O aspecto mais inte ressante a respeito dos ready-made de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Ducham p para selecio naacuteshylos (reve ladas ao lo ngo de toda uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceitual aparenteme nte arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos e les funci onam se eacute que fun cionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e hi stoacute ricas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maio r ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquant o veiacutecu los de ideacute ias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de reali za r et c Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer o bjeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencional idades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de recon struir plename nte 2~

Assim eacute preci so mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simp les exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvid o e disseminado Desse ponto de vista a t eoria puramente institucional da arte eacute menos do que sati sfatoacuteria porque nada tem a dizel- sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuai s ao s quais o puacuteblico ed ucado de ga leria eacute sensiacuteve l Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da inte rpretabil idad e para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teor ia pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre o bra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos funcionais e obras de arte significat ivas Esse eacute um legado dos fil oacutesofos poacutes-iluministas co mo Hege l que obscurece a compreensatildeo de qual quer mundo artiacutestico distinto daqu e le que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar sign ificado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas re ligiosas e o utras Essas funccedil otildees satildeo praacuteticas nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e da man ei ra como os seres humanos podem interferir em seu funci onamento de modo a t irar o melhor proveito poss iacuteve l dele O bras

TR ADUCcedilAo A L F RED GE LL 189

ae R E V 1ST A D D P R D G R A M A DE POacuteS - G R A o U A ccedil A o E M A R T E S V I SUA I S E B A bull U F R J bull 2 o o I

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames2s A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucional e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bemshysucedida candidatura a obra de arte da rede de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencional idades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teorias interpretativa e institucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

190

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26

demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-Ia como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funcioacutena eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

Quando morreu em 1997Alfred Gell era Professor de Antropologia na London SchooJ of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a resp eito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Jmag es Totooing in Poynesia (1993) e Art ond Agency An Anhropologicol Theory ( 1998)

Traduccedilatildeo Marcia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

Notas

I Ver Dickie George Are and Aesthetics Ithaca Nova York Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circfe a Theory ofArt New York Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique of Judgements ofTaste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris james ArtlArtifact on the Museum and Anthropology Currene AnUacutelropology 29(5) 1988775-9

4 Faris op cit776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifacc African Art in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestei Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of Philosophy Journal of Philosophy 61 1964 57 1-84

7 Dickie 1974 op cir

8 Ver Danto Arthur The Tran sfJguration o the Commonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cir

9 Danto 1981 op cir

10 Faris op cir 778

I I Clifford james The Predicament of Culcure Cambridge MA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit31

13 Danto 1988 op cir 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agrave Penseacutee introduction agrave Ianalyse des eacutepopeacutees Fang Paris Societeacute dEthnologie 1988

15 Boyer op cie 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art ando an Aboriginal Syseem o Knowledge Chicago Chicago University Pness 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MD Rowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the Renais sance Oxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report ofthe American Bureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-Anga Material and Symbolic Aspects ofTrapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

--_ _--shy

21 Weiner J (ed) Aesthetics is a Cross-cultural Category Graup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic ExperienceAn Anthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and the Enchantment ofTechnology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderes cognitivos

25 Gell op cie 60

26 Thomas Nicholas Enwngled Objects Cambridge MA Harvard University Press 1991

TRADUccedilAO AlFRED GEll 191

Page 9: A Rede de Vogel- Armadilhas Como Obras de Arte

seria muito diferente do funcionamento de qualquer outro item da parafernaacutelia ritual como as maacutescaras por exemplo

Entretanto eacute preciso esclarecer que os saacutebios africanos estatildeo preparados para contar aos antropoacutelogos estoacuterias que revelam natildeo apenas que a caccedila eacute ritual mente importante (como ordaacutelio provaccedilatildeo para os jovens e assim por diante) mas tambeacutem que seus meios as redes ou armadilhas satildeo metaflsicamente significativos Recorrerei agora agrave narrativa de

Soyer l4 a respeito de cantores Fang (Aacutefrica Ocidental) de eacutepicos maacutegicos (mvet) Soyer

estaacute tentando entender a natureza do saber tradicional e no decorrer de suas investigaccedilotildees acaba conhecendo um especialista em canto chamado Ze com o qual trava um longo debate sobre a natureza da sabedoria

182

~ bull UFRJ 2001

Assim como os animais selvagens e como evur (sabedoriapoder maacutegico) mvet (eacutepico) pertence agrave floresta em sua evanescecircncia vocecirc pensa que pode pegaacute-lo mas ele escapa e eacute vocecirc quem eacute capturado Com Ze percebi que de certo modo as complexidades de mvet eram sempre comparadas a armadilhas Em resposta ele me contou a seguinte estoacuteria

Quando eu era jovem conheci bem os Pigmeu Eles vivem na floresta natildeo satildeo pessoas de aldeia como noacutes Fui com frequumlecircncia caccedilar com eles Os Pigmeu tecircm armadilhas para cada tipo de animal e por isso satildeo tatildeo bem sucedidos Eles tecircm uma

armadilha especial para chimpanzeacutes porque os chimpanzeacutes satildeo como os seres humanos quando tecircm algum problema param e pensam sobre isso ao inveacutes de fugirem e gritarem simplesmente Vocecirc natildeo pode pegar um chimpanzeacute com uma armadilha comum porque ele natildeo foge [e assim o noacute natildeo eacute puxado] Entatildeo os Pigmeu inventaram uma armadilha especial com uma linha que prende o braccedilo do chimpanzeacute A linha eacute bem fina e o chimpanzeacute pensa que pode se soltar Ao inveacutes de arrebentaacute-Ia ele puxa suavemente para ver o que aconteceraacute Neste momento um fardo de setas envenenadas cai sobre ele e isso soacute ocorre porque ele natildeo corre como um animal estuacutepido um antiacutelope por exemPlo faria15

A conversa entre Ze e Soyer natildeo eacute uma anedota boba sobre caccedila mas diz respeito fundamentalmente ao problema faustiano relativo ao conhecimento (entre outras coisas) um problema que natildeo eacute menos importante para o povo Fang da floresta tropical de Camarotildees do que para os

professores do MIT

Com base no depoimento desse saacutebio Fang parece inquestionaacutevel que uma armadilha seja uma metaacutefora de profunda significaccedilatildeo uma refraccedilatildeo do Espiacuterito Absoluto se eacute que esse algum dia existiu Todavia tenhamos em mente as criacuteticas feitas por Faris de que os

saacutebios natildeo estariam falando sobre armadilhas utilitaacuterias prosaicas mas sobre armadilhas imaginaacuterias espirituais armadilhas no sentido figurado natildeo no sentido literal O saacutebio Fang natildeo produziu nenhuma armadilha para a investigaccedilatildeo de Boyer Seria possiacutevel irmos aleacutem do texto de Boyer e montarmos uma exposiccedilatildeo de armadilhas de caccedila apresentando-a ao puacuteblico como uma exposiccedilatildeo de obras de arte

Deixemos o saacutebio fora disso por enquanto e nos perguntemos o que as armadilhas de caccedila animal revelam sobre o Espiacuterito Absoluto mesmo sem sua exegese nativa Por sua simples presenccedila as armadilhas de caccedila descontextualizadas podem revelar mais do que o gosto dos homens pelo consumo de carne animal)

De modo a levar o leitor a um julgamento adequado a respeito dessa questatildeo ofereccedilo algumas ilustraccedilotildees tiradas da literatura etnograacuteflca sobre armadilhas Observe a armadilha de setas Lembre-se da afirmaccedilatildeo de Danto de que olhar para uma obra de arte eacute como encontrar uma pessoa encontra-se uma pessoa um ser pensante co-presente reagindo a sua aparecircncia externa e a seu comportamento Do mesmo modo responde-se a uma obra de arte como a um ser co-presente um pensamento encarnado Agora imagine-se encontrando uma armadilha de setas natildeo (ass im espero) como a viacutetima que seraacute capturada mas como o visita nte de uma galeria que encontra uma instalaccedilatildeo feita pelo mais recente artista contemporacircneo Em tais circunstacircncias e sem qualquer contexto adicional o que o visitante poderaacute intuir como sendo o pensamento ou a intenccedilatildeo revelados por essa obra de arte

Creio que natildeo haveria nada errado caso o visitante imaginaacuterio de nossa exibiccedilatildeo visse nessa armadilha de setas uma representaccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo humana no mundo Essa eacute uma representaccedilatildeo que as pessoas de pensamento limitado poderiam censurar e negar se ao menos estivessem conscientes de que a armadilha poderio ser uma representaccedilatildeo Isso porque ela aponta para a existecircncia humana como uma violecircncia

impensada e iminente o que talvez natildeo seja um belo pensamento mas nem por isso pode ser considerado falso ou natildeo artiacutestico Inicialmente uma armadilha como essa comunica uma ausecircncia fatal - a ausecircncia do homem que a idealizou e armou e a ausecircncia do animal que se tornaraacute a viacutetima (o artista indicou essa viacutetima num segundo plano da ilustraccedilatildeo) Devido a essas ausecircncias marcadas a armadilha em questatildeo como todas as outras funciona como um poderoso signo Mesmo natildeo sendo projetada explicitamente para comunicar ou func ionar como signo (na verdade eacute projetada para ficar oculta e passar despercebida) a armadilha entretanto eacute muito mais significat iva do que a maioria dos signos su postos como tais A violecircncia estaacutetica do arco retesado a malevolecircncia congelada dos paus e das cordas satildeo reveladoras por si mesmas a despeito do recurso a representaccedilotildees convencionais Uma vez que esse eacute um signo natildeo oficial ele escapa de toda censura Nele eacute possiacutevel ler a intenccedilatildeo de seu autor e o destino de sua viacutetima Essa armadilha eacute um modelo bem como um instrumento De fato todos os instrumentos satildeo modelos porque eles precisam ser adaptados agraves caracteriacutesticas de seus usuaacuterios e assim tecircm sua marca Uma perna artificial eacute um modelo de uma perna verdadeira que estaacute ausente uma representaccedilatildeo que funciona como uma proacutetese A armadilha de setas eacute especialmente evidente como um modelo de seu criador porque ela tem que substituiacute-lo como uma espeacutecie de caccedilador substituto ela caccedila para seu dono Eacute de fato um autocircmato ou robocirc cujo design condensa o design de seu mentor Ela estaacute equipada com um transdutor sensorial rudimentar (a corda suscetiacutevel ao toque do animal) Esse siste ma nervoso aferente leva informaccedilotildees para o comando central (o mecanismo de disparo uma chave base de todos os dispositivos de processamento de informaccedilotildees) que ativa o sistema eferente liberando a energia armazenada no arco que impulsiona as setas produzindo accedilatildeo a di stacircncia (a morte da viacutetima) Isso natildeo eacute apenas o modelo de uma pessoa como um boneco qualquer mas um modelo eficaz de

T R A o U ccedil Agrave o bull A L F R E o G E L L I 83

ae R E V I 5 T A DO P R o G R A M A DE POacute 5 - G R A D U A ccedil Aacute o E M A R T E 5 V I 5 U A I 5 E B A bull U F R J 2 o o

pessoas que funciona Seria razoaacutevel perguntarmos que escultura seria capaz de mostrar mais sobre a condiccedilatildeo humana revelando apenas nosso delineamento exterior do que esse dispositivo mecacircnico Muito mais sobre a existecircncia humana estaacute presente aqu i do que em qualquer escultura mas como esse natildeo eacute um exemplo oacutebvio de um objeto de arte jamais seraacute olhado sob esse prisma

Aleacutem disso se olharmos para outras armadilhas poderemos ver que cada uma eacute natildeo apenas o modelo de se u criador um eu subsidiaacuterio na forma de um autocircmato mas cada uma eacute tambeacutem um modelo de sua viacutetima Esse modelo pode refletir efetivamente a forma externa da viacutetima como na cocircmica armadilha de girafa que delineia em negativo os contornos da parte inferior do corpo desse animal Ou a armadilha pode de modo mais suti l e abstrato representar paracircmetros do comportamento natural do animal que satildeo subvertidos a fim de aprisionaacute-lo As armadilhas satildeo paroacutedias letais do Umwelt do animal Assim o rato que gosta de se enfiar em espaccedilos estreitos tem uma cavidade atraente preparada para sua uacuteltima e fatal correria na escuridatildeo Eacute claro que a armadilha natildeo eacute em si mesma inteligente ou enganosa O caccedilador eacute que conhece as respostas habituais da viacutetima e eacute capaz de subvertecirc-Ias Mas uma vez montada a armadilha a habilidade e o conhecimento do caccedilador estatildeo efetivamente inscritos nela de forma objetiflcada caso contraacuterio a armadilha natildeo funcionaria Esse conhecimento objetivo sobreviveria ateacute mesmo agrave morte do proacuteprio caccedilador e tambeacutem seria (parcialmente) legiacutevel por outros que soacute tivessem acesso agrave armadilha e natildeo ao conhecimento sobre o animal que estaacute refletido em seu projeto A partir da forma da armadilha poderiam ser deduzidas as disposiccedilotildees da viacutetima Nesse sentido as armadilhas podem ser consideradas como textos so bre o comportamento animal

A armadilha eacute portanto um modelo tanto de seu criador o caccedilador quanto de sua viacutetima a presa animal Poreacutem mais do que isso a armadilha encarna um cenaacuterio que eacute

184

o nexo draacutematico que liga os dois protagonistas e que os alinha no tempo e no espaccedilo Nossas ilustraccedilotildees natildeo podem mostrar isso porque elas apresentam as armadilhas esperando suas viacutetimas ou viacutetimas que jaacute foram capturadas Elas natildeo podem mostrar po reacutem a estrutura temporal da armadilha Essa estrutura tempo ral o potildee o tempo suspenso o tempo vazio da espera agrave cataacutestrofe suacutebita que resulta do fechamento da armadilha Essa estrutura temporal varia com o tipo de armadilha empregado mas natildeo eacute difiacutecil ver no drama da captura um anaacutelogo mecacircnico da sucessatildeo traacutegica de hubris-nemesisshycotostrophe Considere o hipopoacutetamo condenado tranquumlilo com a se nsaccedilatildeo de fal sa seguranccedila decorrente apenas de seu tamanho e majestade Quantos heroacuteis traacutegicos sofreram das mesmas ilusotildees de presunccedilatildeo e atraiacuteram o mesmo destino) Se o chimpanzeacute que cai na armadilha de Boyer for Fausto talvez este hipopoacutetam o seja Otelo O fato de que todos os animais que caem viacutetimas das armadilhas sempre provoquem suas quedas por meio da proacutepria autoconfianccedila complacente demonstra que a caccedila com armadilhas eacute uma forma muito mais poeacutetica e traacutegica do que a simples perseguiccedilatildeo Este uacuteltimo tipo de caccedilada iguala caccediladores e viacutetimas unidos em accedilatildeo e reaccedilatildeo espontacircneas ao passo que a caccedila com armadilhas hierarquiza decisivamente o caccedilador e a viacutetima O capturador eacute Deus ou o destin o o animal capturado eacute o homem em sua encarnaccedilatildeo traacutegica

Parece -me portanto que mesmo sem o contexto etnograacutefico mesmo sem a exegese de qualquer nativo armadilhas animais como essas poderiam ser apresentadas ao puacuteblico como obras de arte Esses dispositivos incorporam ideacuteias veicu lam significados porque uma armadilha por sua proacutepria natureza eacute uma representaccedilatildeo transformada de seu fabricante o caccedilador e da presa animal sua viacutetima e de sua relaccedilatildeo muacutetua que nos povos caccediladores eacute fundamentalmente socia l e complexa Isso significa que essas armadilhas comunicam a noccedilatildeo de um nexo de intencional idades entre os caccediladores e as presas animais mediante formas e mecanismos materiais

--- -- ---

Creio que essa evocaccedilatildeo de intencionalidades complexas eacute na realidade o que serve para defin ir as obras de arte e que adequadamente emolduradas as armadilhas para animais poderiam evocar intuiccedilotildees complexas a respeito do ser da alteridade do relacionamento O impacto dessas armadilhas agora apresentas como obras de arte pode no entanto ser maior caso elas sejam exibidas ao lado de obras de artes ocidentais (das quais eacute faacutecil achar numerosos exemplos) que ocupem pelo menos aparentemente o mesmo territoacuterio sem ioloacutegico

O trabalho de Damien Hirst um dos jovens artistas britacircnicos mais citados pela miacutedia parece ser um desses casos De fato foi a notoacuteria exposiccedilatildeo de Hirst exibida na Tate Gallery em 1992 que me induziu pela primeira vez a pensar sobre as armadilhas como objetos artiacutesticos Considere o tubaratildeo de Hirst no tanque de formol Essa obra cativa devido ao contraste profundo entre o pei xe gigantesco ultrabioloacutegico e sua gaiola ou armadilha de vidro asseacuteptica (recordando Eichmann em seu julgamento preso numa caixa de vidro) cujas paredes refletoras projetam imagens virtuais da igualmente asseacuteptica galeria dentro do domiacutenio bioloacutegico do tubaratildeo Um eco distante das metades superior (bioloacutegica) e inferior (mecacircnica) do Large Glass de Duchamp - sem duacutevida - mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre nosso poder de imobilizar forccedilas elementares que no entanto parecem sempre potencialmente prontas a escapar Ateacute mesmo o tubaratildeo de Hirst tatildeo morto quanto possiacutevel continua residualmente vivo observando e pensando ou pelo menos parece estar porque manteacutem seus olhos abertos e fi xos em noacutes Um dia ele escaparaacute

Seria apropriado colocar o tubaratildeo de Hirst ao lado da pintura em casca de aacutervore extraiacuteda do livro Ancestral Connections de Morphy l6 que mostra um tubaratildeo capturado quase idecircntico visualmente agrave instalaccedilatildeo exibida na Tate Gallery Os Yolnngu produzem esse t ipo de pintura durante rituais funeraacuterios e ela se refere agrave jornada rio acima de um tubaratildeo ancestral miacutetico que foi capturado

temporariamente em seu trajeto mas escapou Essa pintura refere-se agraves afiliaccedilotildees do clatilde dos mortos e metaforiza a viagem do espiacuterito agrave terra ancestral e a necessidade de transferir- lhe forccedilas (por meio de cerimocircn ias funeraacute rias) de modo que ele como o tubaratildeo ancestral possa escapar das armadilhas que ameaccedilam sua trajetoacuteria O episoacutedio do tubaratildeo sendo capturado e escapando eacute encenado pelos participantes Essas ideacuteias escatoloacutegicas satildeo eacute claro especiacuteficas da cultura Yolnngu mas eu me arriscaria a sugerir que a semelhanccedila entre o trabalho de Hirst e a obra Yolnngu natildeo eacute apenas superficiaJ mas insinua uma metaacutefora vaacutelida em termos interculturais embora sujeita a leituras diferenciadas

Enquanto isso para reforccedilar a ideacuteia de que a obra de Hirst diz respeito de modo profundo agraves armadilhas e agrave rede de intencio nalidades complexas que a captura em armadilhas estabelece descreverei outro trabalho de Hirst presente na mesma exibiccedilatildeo na qual uma armadilha em funcionamento foi efetivamente incorporada Refiro-me agrave instalaccedilatildeo que consiste em uma cabeccedila de ovelha dentro de uma caixa de vidro a cabeccedila deteriora-se e cria larvas que se transformam em moscas que depois se tornam viacuteti mas de uma armadilha para

TRAD UCcedilAacuteO middot A LFRED G ELL 185

ae R E V I TA DO P R o G R A M A D E POacute bull G R A o U A ccedil A o

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz vio leta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais e las morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antro poacutelogos deve riacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacuted igo mito loacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se ide ntificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal mo rto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus pe rverso que colocou este mundo incoerente em movim ento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hi rst natildeo seria o uacutenico artista ocidenta l contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceitual Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posi cionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalh o natildeo eacute tanto o tema da vio lecirc ncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetrado res justamente o tema que ide ntifiquei anteriorme nte em relaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relacio na-se diretamente ao tipo de armadilha serial para ho mens (esp ingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de pro priedades em tempos passados

Exemplos adicionai s de obras de arte poacutesshyDuchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 19 I7) po deriam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hi st satildeo exemplos do mesmo tip o de co isa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

E M A R T E v I U A I E 8 A bull U F R J 2 o0 1

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo supo nho que para que uma armadi lha afri cana o u uma armadilha de qualquer o utra parte exoacutetica do mundo possa funci o nar como uma o bra de arte seja realmente necessaacuterio o u desejaacuteve l que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o signifi cado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armad ilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento IB Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

186

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a arm ad ilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmenteshyartiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinh a Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecircshyse imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bongl Antes de saber o que aconteceu tran sforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido como qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as tran substanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hil-st discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)Iarvamoscamosca (morta) - poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tam pouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode fun cionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier2o Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal

reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tam beacutem em outros lugares

~ ---------- --------------------

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torn a-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente lo ngo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuter ios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas vo ltada natildeo bastaria para retiraacute-Ias do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seri a evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - eacute que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente agraves enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e co nteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

T R A D U ccedil Acirc o bull A L F R E D G E L L 187

--------------------------- -------------

ae REVIST A DO P ROGRAMA DE PO S -GRADUACcedilAtildeO

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porq ue ela proacutepria eacute alongada (eefshyongaced) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricad a eacute certame nte na forma de armad il has como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo imagens dos antepassado s no sentido de que elas contecircm e ncarnam e comu nicam o poder ancestral Aleacutem disso elas to rnam possiacuteve l a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacute m sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fanta siado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor O s Anga ao contraacuterio tecircm imagens de poder ancestral que de fato trabalham de fato alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo real iacutestica de form as (superficiais)

Con cl usatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armad il has exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio shya disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte) Espero que eu

EM A RTES VISUAIS EB A bull UFRJ 2001

ten ha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teo ria institucional da arte liberaria imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservandoshylhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente dife rentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses objetos tornar-se-iam artiacutesticos Sei-ia essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacute logo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa tran sformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute co nstituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como arte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm po uco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arte para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como ta l numa cidade provinciana muito sono lenta que se vanglorie (como a maioria de las) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad~ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas po r que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arte caso produzisse coisas genericamente semel hantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21 ) - res ide na intluecircn cia pro longada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de o bra de arte pela antropologia da arte23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte co ntemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode se r visto em galerias de artesanat o provincianas Deve-se acei tar a premissa em essecirc ncia libe rtadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentai s jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabri cado pelo homem pode ser ve iculado como o bra de arte Eacute isso que a teo ria instituciona l da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de t eoria da arte contemporacircnea desde 19 I7 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urin o l (ou Fontaine) Fo i no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Dami en Hi rst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Ducham p pouco poderiacuteamos esperar de la nesta fase ta rdia Na verdade as co isas natildeo satildeo middotbem assim Os ready-made de Duchamp foram cuidadosamente selecio nados e firmeme nte integrados tematicamente a do is de seus principais projetos (o Large Gass de 19 I 5shy23 e a Waterfal de 1944-66) O aspecto mais inte ressante a respeito dos ready-made de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Ducham p para selecio naacuteshylos (reve ladas ao lo ngo de toda uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceitual aparenteme nte arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos e les funci onam se eacute que fun cionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e hi stoacute ricas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maio r ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquant o veiacutecu los de ideacute ias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de reali za r et c Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer o bjeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencional idades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de recon struir plename nte 2~

Assim eacute preci so mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simp les exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvid o e disseminado Desse ponto de vista a t eoria puramente institucional da arte eacute menos do que sati sfatoacuteria porque nada tem a dizel- sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuai s ao s quais o puacuteblico ed ucado de ga leria eacute sensiacuteve l Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da inte rpretabil idad e para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teor ia pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre o bra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos funcionais e obras de arte significat ivas Esse eacute um legado dos fil oacutesofos poacutes-iluministas co mo Hege l que obscurece a compreensatildeo de qual quer mundo artiacutestico distinto daqu e le que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar sign ificado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas re ligiosas e o utras Essas funccedil otildees satildeo praacuteticas nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e da man ei ra como os seres humanos podem interferir em seu funci onamento de modo a t irar o melhor proveito poss iacuteve l dele O bras

TR ADUCcedilAo A L F RED GE LL 189

ae R E V 1ST A D D P R D G R A M A DE POacuteS - G R A o U A ccedil A o E M A R T E S V I SUA I S E B A bull U F R J bull 2 o o I

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames2s A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucional e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bemshysucedida candidatura a obra de arte da rede de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencional idades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teorias interpretativa e institucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

190

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26

demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-Ia como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funcioacutena eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

Quando morreu em 1997Alfred Gell era Professor de Antropologia na London SchooJ of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a resp eito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Jmag es Totooing in Poynesia (1993) e Art ond Agency An Anhropologicol Theory ( 1998)

Traduccedilatildeo Marcia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

Notas

I Ver Dickie George Are and Aesthetics Ithaca Nova York Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circfe a Theory ofArt New York Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique of Judgements ofTaste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris james ArtlArtifact on the Museum and Anthropology Currene AnUacutelropology 29(5) 1988775-9

4 Faris op cit776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifacc African Art in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestei Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of Philosophy Journal of Philosophy 61 1964 57 1-84

7 Dickie 1974 op cir

8 Ver Danto Arthur The Tran sfJguration o the Commonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cir

9 Danto 1981 op cir

10 Faris op cir 778

I I Clifford james The Predicament of Culcure Cambridge MA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit31

13 Danto 1988 op cir 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agrave Penseacutee introduction agrave Ianalyse des eacutepopeacutees Fang Paris Societeacute dEthnologie 1988

15 Boyer op cie 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art ando an Aboriginal Syseem o Knowledge Chicago Chicago University Pness 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MD Rowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the Renais sance Oxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report ofthe American Bureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-Anga Material and Symbolic Aspects ofTrapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

--_ _--shy

21 Weiner J (ed) Aesthetics is a Cross-cultural Category Graup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic ExperienceAn Anthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and the Enchantment ofTechnology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderes cognitivos

25 Gell op cie 60

26 Thomas Nicholas Enwngled Objects Cambridge MA Harvard University Press 1991

TRADUccedilAO AlFRED GEll 191

Page 10: A Rede de Vogel- Armadilhas Como Obras de Arte

saacutebios natildeo estariam falando sobre armadilhas utilitaacuterias prosaicas mas sobre armadilhas imaginaacuterias espirituais armadilhas no sentido figurado natildeo no sentido literal O saacutebio Fang natildeo produziu nenhuma armadilha para a investigaccedilatildeo de Boyer Seria possiacutevel irmos aleacutem do texto de Boyer e montarmos uma exposiccedilatildeo de armadilhas de caccedila apresentando-a ao puacuteblico como uma exposiccedilatildeo de obras de arte

Deixemos o saacutebio fora disso por enquanto e nos perguntemos o que as armadilhas de caccedila animal revelam sobre o Espiacuterito Absoluto mesmo sem sua exegese nativa Por sua simples presenccedila as armadilhas de caccedila descontextualizadas podem revelar mais do que o gosto dos homens pelo consumo de carne animal)

De modo a levar o leitor a um julgamento adequado a respeito dessa questatildeo ofereccedilo algumas ilustraccedilotildees tiradas da literatura etnograacuteflca sobre armadilhas Observe a armadilha de setas Lembre-se da afirmaccedilatildeo de Danto de que olhar para uma obra de arte eacute como encontrar uma pessoa encontra-se uma pessoa um ser pensante co-presente reagindo a sua aparecircncia externa e a seu comportamento Do mesmo modo responde-se a uma obra de arte como a um ser co-presente um pensamento encarnado Agora imagine-se encontrando uma armadilha de setas natildeo (ass im espero) como a viacutetima que seraacute capturada mas como o visita nte de uma galeria que encontra uma instalaccedilatildeo feita pelo mais recente artista contemporacircneo Em tais circunstacircncias e sem qualquer contexto adicional o que o visitante poderaacute intuir como sendo o pensamento ou a intenccedilatildeo revelados por essa obra de arte

Creio que natildeo haveria nada errado caso o visitante imaginaacuterio de nossa exibiccedilatildeo visse nessa armadilha de setas uma representaccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo humana no mundo Essa eacute uma representaccedilatildeo que as pessoas de pensamento limitado poderiam censurar e negar se ao menos estivessem conscientes de que a armadilha poderio ser uma representaccedilatildeo Isso porque ela aponta para a existecircncia humana como uma violecircncia

impensada e iminente o que talvez natildeo seja um belo pensamento mas nem por isso pode ser considerado falso ou natildeo artiacutestico Inicialmente uma armadilha como essa comunica uma ausecircncia fatal - a ausecircncia do homem que a idealizou e armou e a ausecircncia do animal que se tornaraacute a viacutetima (o artista indicou essa viacutetima num segundo plano da ilustraccedilatildeo) Devido a essas ausecircncias marcadas a armadilha em questatildeo como todas as outras funciona como um poderoso signo Mesmo natildeo sendo projetada explicitamente para comunicar ou func ionar como signo (na verdade eacute projetada para ficar oculta e passar despercebida) a armadilha entretanto eacute muito mais significat iva do que a maioria dos signos su postos como tais A violecircncia estaacutetica do arco retesado a malevolecircncia congelada dos paus e das cordas satildeo reveladoras por si mesmas a despeito do recurso a representaccedilotildees convencionais Uma vez que esse eacute um signo natildeo oficial ele escapa de toda censura Nele eacute possiacutevel ler a intenccedilatildeo de seu autor e o destino de sua viacutetima Essa armadilha eacute um modelo bem como um instrumento De fato todos os instrumentos satildeo modelos porque eles precisam ser adaptados agraves caracteriacutesticas de seus usuaacuterios e assim tecircm sua marca Uma perna artificial eacute um modelo de uma perna verdadeira que estaacute ausente uma representaccedilatildeo que funciona como uma proacutetese A armadilha de setas eacute especialmente evidente como um modelo de seu criador porque ela tem que substituiacute-lo como uma espeacutecie de caccedilador substituto ela caccedila para seu dono Eacute de fato um autocircmato ou robocirc cujo design condensa o design de seu mentor Ela estaacute equipada com um transdutor sensorial rudimentar (a corda suscetiacutevel ao toque do animal) Esse siste ma nervoso aferente leva informaccedilotildees para o comando central (o mecanismo de disparo uma chave base de todos os dispositivos de processamento de informaccedilotildees) que ativa o sistema eferente liberando a energia armazenada no arco que impulsiona as setas produzindo accedilatildeo a di stacircncia (a morte da viacutetima) Isso natildeo eacute apenas o modelo de uma pessoa como um boneco qualquer mas um modelo eficaz de

T R A o U ccedil Agrave o bull A L F R E o G E L L I 83

ae R E V I 5 T A DO P R o G R A M A DE POacute 5 - G R A D U A ccedil Aacute o E M A R T E 5 V I 5 U A I 5 E B A bull U F R J 2 o o

pessoas que funciona Seria razoaacutevel perguntarmos que escultura seria capaz de mostrar mais sobre a condiccedilatildeo humana revelando apenas nosso delineamento exterior do que esse dispositivo mecacircnico Muito mais sobre a existecircncia humana estaacute presente aqu i do que em qualquer escultura mas como esse natildeo eacute um exemplo oacutebvio de um objeto de arte jamais seraacute olhado sob esse prisma

Aleacutem disso se olharmos para outras armadilhas poderemos ver que cada uma eacute natildeo apenas o modelo de se u criador um eu subsidiaacuterio na forma de um autocircmato mas cada uma eacute tambeacutem um modelo de sua viacutetima Esse modelo pode refletir efetivamente a forma externa da viacutetima como na cocircmica armadilha de girafa que delineia em negativo os contornos da parte inferior do corpo desse animal Ou a armadilha pode de modo mais suti l e abstrato representar paracircmetros do comportamento natural do animal que satildeo subvertidos a fim de aprisionaacute-lo As armadilhas satildeo paroacutedias letais do Umwelt do animal Assim o rato que gosta de se enfiar em espaccedilos estreitos tem uma cavidade atraente preparada para sua uacuteltima e fatal correria na escuridatildeo Eacute claro que a armadilha natildeo eacute em si mesma inteligente ou enganosa O caccedilador eacute que conhece as respostas habituais da viacutetima e eacute capaz de subvertecirc-Ias Mas uma vez montada a armadilha a habilidade e o conhecimento do caccedilador estatildeo efetivamente inscritos nela de forma objetiflcada caso contraacuterio a armadilha natildeo funcionaria Esse conhecimento objetivo sobreviveria ateacute mesmo agrave morte do proacuteprio caccedilador e tambeacutem seria (parcialmente) legiacutevel por outros que soacute tivessem acesso agrave armadilha e natildeo ao conhecimento sobre o animal que estaacute refletido em seu projeto A partir da forma da armadilha poderiam ser deduzidas as disposiccedilotildees da viacutetima Nesse sentido as armadilhas podem ser consideradas como textos so bre o comportamento animal

A armadilha eacute portanto um modelo tanto de seu criador o caccedilador quanto de sua viacutetima a presa animal Poreacutem mais do que isso a armadilha encarna um cenaacuterio que eacute

184

o nexo draacutematico que liga os dois protagonistas e que os alinha no tempo e no espaccedilo Nossas ilustraccedilotildees natildeo podem mostrar isso porque elas apresentam as armadilhas esperando suas viacutetimas ou viacutetimas que jaacute foram capturadas Elas natildeo podem mostrar po reacutem a estrutura temporal da armadilha Essa estrutura tempo ral o potildee o tempo suspenso o tempo vazio da espera agrave cataacutestrofe suacutebita que resulta do fechamento da armadilha Essa estrutura temporal varia com o tipo de armadilha empregado mas natildeo eacute difiacutecil ver no drama da captura um anaacutelogo mecacircnico da sucessatildeo traacutegica de hubris-nemesisshycotostrophe Considere o hipopoacutetamo condenado tranquumlilo com a se nsaccedilatildeo de fal sa seguranccedila decorrente apenas de seu tamanho e majestade Quantos heroacuteis traacutegicos sofreram das mesmas ilusotildees de presunccedilatildeo e atraiacuteram o mesmo destino) Se o chimpanzeacute que cai na armadilha de Boyer for Fausto talvez este hipopoacutetam o seja Otelo O fato de que todos os animais que caem viacutetimas das armadilhas sempre provoquem suas quedas por meio da proacutepria autoconfianccedila complacente demonstra que a caccedila com armadilhas eacute uma forma muito mais poeacutetica e traacutegica do que a simples perseguiccedilatildeo Este uacuteltimo tipo de caccedilada iguala caccediladores e viacutetimas unidos em accedilatildeo e reaccedilatildeo espontacircneas ao passo que a caccedila com armadilhas hierarquiza decisivamente o caccedilador e a viacutetima O capturador eacute Deus ou o destin o o animal capturado eacute o homem em sua encarnaccedilatildeo traacutegica

Parece -me portanto que mesmo sem o contexto etnograacutefico mesmo sem a exegese de qualquer nativo armadilhas animais como essas poderiam ser apresentadas ao puacuteblico como obras de arte Esses dispositivos incorporam ideacuteias veicu lam significados porque uma armadilha por sua proacutepria natureza eacute uma representaccedilatildeo transformada de seu fabricante o caccedilador e da presa animal sua viacutetima e de sua relaccedilatildeo muacutetua que nos povos caccediladores eacute fundamentalmente socia l e complexa Isso significa que essas armadilhas comunicam a noccedilatildeo de um nexo de intencional idades entre os caccediladores e as presas animais mediante formas e mecanismos materiais

--- -- ---

Creio que essa evocaccedilatildeo de intencionalidades complexas eacute na realidade o que serve para defin ir as obras de arte e que adequadamente emolduradas as armadilhas para animais poderiam evocar intuiccedilotildees complexas a respeito do ser da alteridade do relacionamento O impacto dessas armadilhas agora apresentas como obras de arte pode no entanto ser maior caso elas sejam exibidas ao lado de obras de artes ocidentais (das quais eacute faacutecil achar numerosos exemplos) que ocupem pelo menos aparentemente o mesmo territoacuterio sem ioloacutegico

O trabalho de Damien Hirst um dos jovens artistas britacircnicos mais citados pela miacutedia parece ser um desses casos De fato foi a notoacuteria exposiccedilatildeo de Hirst exibida na Tate Gallery em 1992 que me induziu pela primeira vez a pensar sobre as armadilhas como objetos artiacutesticos Considere o tubaratildeo de Hirst no tanque de formol Essa obra cativa devido ao contraste profundo entre o pei xe gigantesco ultrabioloacutegico e sua gaiola ou armadilha de vidro asseacuteptica (recordando Eichmann em seu julgamento preso numa caixa de vidro) cujas paredes refletoras projetam imagens virtuais da igualmente asseacuteptica galeria dentro do domiacutenio bioloacutegico do tubaratildeo Um eco distante das metades superior (bioloacutegica) e inferior (mecacircnica) do Large Glass de Duchamp - sem duacutevida - mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre nosso poder de imobilizar forccedilas elementares que no entanto parecem sempre potencialmente prontas a escapar Ateacute mesmo o tubaratildeo de Hirst tatildeo morto quanto possiacutevel continua residualmente vivo observando e pensando ou pelo menos parece estar porque manteacutem seus olhos abertos e fi xos em noacutes Um dia ele escaparaacute

Seria apropriado colocar o tubaratildeo de Hirst ao lado da pintura em casca de aacutervore extraiacuteda do livro Ancestral Connections de Morphy l6 que mostra um tubaratildeo capturado quase idecircntico visualmente agrave instalaccedilatildeo exibida na Tate Gallery Os Yolnngu produzem esse t ipo de pintura durante rituais funeraacuterios e ela se refere agrave jornada rio acima de um tubaratildeo ancestral miacutetico que foi capturado

temporariamente em seu trajeto mas escapou Essa pintura refere-se agraves afiliaccedilotildees do clatilde dos mortos e metaforiza a viagem do espiacuterito agrave terra ancestral e a necessidade de transferir- lhe forccedilas (por meio de cerimocircn ias funeraacute rias) de modo que ele como o tubaratildeo ancestral possa escapar das armadilhas que ameaccedilam sua trajetoacuteria O episoacutedio do tubaratildeo sendo capturado e escapando eacute encenado pelos participantes Essas ideacuteias escatoloacutegicas satildeo eacute claro especiacuteficas da cultura Yolnngu mas eu me arriscaria a sugerir que a semelhanccedila entre o trabalho de Hirst e a obra Yolnngu natildeo eacute apenas superficiaJ mas insinua uma metaacutefora vaacutelida em termos interculturais embora sujeita a leituras diferenciadas

Enquanto isso para reforccedilar a ideacuteia de que a obra de Hirst diz respeito de modo profundo agraves armadilhas e agrave rede de intencio nalidades complexas que a captura em armadilhas estabelece descreverei outro trabalho de Hirst presente na mesma exibiccedilatildeo na qual uma armadilha em funcionamento foi efetivamente incorporada Refiro-me agrave instalaccedilatildeo que consiste em uma cabeccedila de ovelha dentro de uma caixa de vidro a cabeccedila deteriora-se e cria larvas que se transformam em moscas que depois se tornam viacuteti mas de uma armadilha para

TRAD UCcedilAacuteO middot A LFRED G ELL 185

ae R E V I TA DO P R o G R A M A D E POacute bull G R A o U A ccedil A o

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz vio leta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais e las morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antro poacutelogos deve riacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacuted igo mito loacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se ide ntificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal mo rto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus pe rverso que colocou este mundo incoerente em movim ento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hi rst natildeo seria o uacutenico artista ocidenta l contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceitual Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posi cionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalh o natildeo eacute tanto o tema da vio lecirc ncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetrado res justamente o tema que ide ntifiquei anteriorme nte em relaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relacio na-se diretamente ao tipo de armadilha serial para ho mens (esp ingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de pro priedades em tempos passados

Exemplos adicionai s de obras de arte poacutesshyDuchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 19 I7) po deriam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hi st satildeo exemplos do mesmo tip o de co isa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

E M A R T E v I U A I E 8 A bull U F R J 2 o0 1

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo supo nho que para que uma armadi lha afri cana o u uma armadilha de qualquer o utra parte exoacutetica do mundo possa funci o nar como uma o bra de arte seja realmente necessaacuterio o u desejaacuteve l que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o signifi cado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armad ilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento IB Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

186

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a arm ad ilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmenteshyartiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinh a Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecircshyse imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bongl Antes de saber o que aconteceu tran sforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido como qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as tran substanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hil-st discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)Iarvamoscamosca (morta) - poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tam pouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode fun cionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier2o Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal

reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tam beacutem em outros lugares

~ ---------- --------------------

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torn a-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente lo ngo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuter ios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas vo ltada natildeo bastaria para retiraacute-Ias do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seri a evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - eacute que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente agraves enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e co nteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

T R A D U ccedil Acirc o bull A L F R E D G E L L 187

--------------------------- -------------

ae REVIST A DO P ROGRAMA DE PO S -GRADUACcedilAtildeO

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porq ue ela proacutepria eacute alongada (eefshyongaced) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricad a eacute certame nte na forma de armad il has como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo imagens dos antepassado s no sentido de que elas contecircm e ncarnam e comu nicam o poder ancestral Aleacutem disso elas to rnam possiacuteve l a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacute m sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fanta siado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor O s Anga ao contraacuterio tecircm imagens de poder ancestral que de fato trabalham de fato alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo real iacutestica de form as (superficiais)

Con cl usatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armad il has exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio shya disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte) Espero que eu

EM A RTES VISUAIS EB A bull UFRJ 2001

ten ha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teo ria institucional da arte liberaria imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservandoshylhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente dife rentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses objetos tornar-se-iam artiacutesticos Sei-ia essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacute logo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa tran sformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute co nstituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como arte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm po uco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arte para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como ta l numa cidade provinciana muito sono lenta que se vanglorie (como a maioria de las) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad~ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas po r que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arte caso produzisse coisas genericamente semel hantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21 ) - res ide na intluecircn cia pro longada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de o bra de arte pela antropologia da arte23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte co ntemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode se r visto em galerias de artesanat o provincianas Deve-se acei tar a premissa em essecirc ncia libe rtadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentai s jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabri cado pelo homem pode ser ve iculado como o bra de arte Eacute isso que a teo ria instituciona l da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de t eoria da arte contemporacircnea desde 19 I7 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urin o l (ou Fontaine) Fo i no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Dami en Hi rst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Ducham p pouco poderiacuteamos esperar de la nesta fase ta rdia Na verdade as co isas natildeo satildeo middotbem assim Os ready-made de Duchamp foram cuidadosamente selecio nados e firmeme nte integrados tematicamente a do is de seus principais projetos (o Large Gass de 19 I 5shy23 e a Waterfal de 1944-66) O aspecto mais inte ressante a respeito dos ready-made de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Ducham p para selecio naacuteshylos (reve ladas ao lo ngo de toda uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceitual aparenteme nte arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos e les funci onam se eacute que fun cionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e hi stoacute ricas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maio r ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquant o veiacutecu los de ideacute ias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de reali za r et c Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer o bjeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencional idades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de recon struir plename nte 2~

Assim eacute preci so mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simp les exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvid o e disseminado Desse ponto de vista a t eoria puramente institucional da arte eacute menos do que sati sfatoacuteria porque nada tem a dizel- sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuai s ao s quais o puacuteblico ed ucado de ga leria eacute sensiacuteve l Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da inte rpretabil idad e para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teor ia pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre o bra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos funcionais e obras de arte significat ivas Esse eacute um legado dos fil oacutesofos poacutes-iluministas co mo Hege l que obscurece a compreensatildeo de qual quer mundo artiacutestico distinto daqu e le que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar sign ificado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas re ligiosas e o utras Essas funccedil otildees satildeo praacuteticas nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e da man ei ra como os seres humanos podem interferir em seu funci onamento de modo a t irar o melhor proveito poss iacuteve l dele O bras

TR ADUCcedilAo A L F RED GE LL 189

ae R E V 1ST A D D P R D G R A M A DE POacuteS - G R A o U A ccedil A o E M A R T E S V I SUA I S E B A bull U F R J bull 2 o o I

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames2s A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucional e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bemshysucedida candidatura a obra de arte da rede de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencional idades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teorias interpretativa e institucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

190

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26

demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-Ia como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funcioacutena eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

Quando morreu em 1997Alfred Gell era Professor de Antropologia na London SchooJ of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a resp eito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Jmag es Totooing in Poynesia (1993) e Art ond Agency An Anhropologicol Theory ( 1998)

Traduccedilatildeo Marcia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

Notas

I Ver Dickie George Are and Aesthetics Ithaca Nova York Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circfe a Theory ofArt New York Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique of Judgements ofTaste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris james ArtlArtifact on the Museum and Anthropology Currene AnUacutelropology 29(5) 1988775-9

4 Faris op cit776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifacc African Art in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestei Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of Philosophy Journal of Philosophy 61 1964 57 1-84

7 Dickie 1974 op cir

8 Ver Danto Arthur The Tran sfJguration o the Commonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cir

9 Danto 1981 op cir

10 Faris op cir 778

I I Clifford james The Predicament of Culcure Cambridge MA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit31

13 Danto 1988 op cir 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agrave Penseacutee introduction agrave Ianalyse des eacutepopeacutees Fang Paris Societeacute dEthnologie 1988

15 Boyer op cie 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art ando an Aboriginal Syseem o Knowledge Chicago Chicago University Pness 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MD Rowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the Renais sance Oxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report ofthe American Bureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-Anga Material and Symbolic Aspects ofTrapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

--_ _--shy

21 Weiner J (ed) Aesthetics is a Cross-cultural Category Graup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic ExperienceAn Anthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and the Enchantment ofTechnology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderes cognitivos

25 Gell op cie 60

26 Thomas Nicholas Enwngled Objects Cambridge MA Harvard University Press 1991

TRADUccedilAO AlFRED GEll 191

Page 11: A Rede de Vogel- Armadilhas Como Obras de Arte

ae R E V I 5 T A DO P R o G R A M A DE POacute 5 - G R A D U A ccedil Aacute o E M A R T E 5 V I 5 U A I 5 E B A bull U F R J 2 o o

pessoas que funciona Seria razoaacutevel perguntarmos que escultura seria capaz de mostrar mais sobre a condiccedilatildeo humana revelando apenas nosso delineamento exterior do que esse dispositivo mecacircnico Muito mais sobre a existecircncia humana estaacute presente aqu i do que em qualquer escultura mas como esse natildeo eacute um exemplo oacutebvio de um objeto de arte jamais seraacute olhado sob esse prisma

Aleacutem disso se olharmos para outras armadilhas poderemos ver que cada uma eacute natildeo apenas o modelo de se u criador um eu subsidiaacuterio na forma de um autocircmato mas cada uma eacute tambeacutem um modelo de sua viacutetima Esse modelo pode refletir efetivamente a forma externa da viacutetima como na cocircmica armadilha de girafa que delineia em negativo os contornos da parte inferior do corpo desse animal Ou a armadilha pode de modo mais suti l e abstrato representar paracircmetros do comportamento natural do animal que satildeo subvertidos a fim de aprisionaacute-lo As armadilhas satildeo paroacutedias letais do Umwelt do animal Assim o rato que gosta de se enfiar em espaccedilos estreitos tem uma cavidade atraente preparada para sua uacuteltima e fatal correria na escuridatildeo Eacute claro que a armadilha natildeo eacute em si mesma inteligente ou enganosa O caccedilador eacute que conhece as respostas habituais da viacutetima e eacute capaz de subvertecirc-Ias Mas uma vez montada a armadilha a habilidade e o conhecimento do caccedilador estatildeo efetivamente inscritos nela de forma objetiflcada caso contraacuterio a armadilha natildeo funcionaria Esse conhecimento objetivo sobreviveria ateacute mesmo agrave morte do proacuteprio caccedilador e tambeacutem seria (parcialmente) legiacutevel por outros que soacute tivessem acesso agrave armadilha e natildeo ao conhecimento sobre o animal que estaacute refletido em seu projeto A partir da forma da armadilha poderiam ser deduzidas as disposiccedilotildees da viacutetima Nesse sentido as armadilhas podem ser consideradas como textos so bre o comportamento animal

A armadilha eacute portanto um modelo tanto de seu criador o caccedilador quanto de sua viacutetima a presa animal Poreacutem mais do que isso a armadilha encarna um cenaacuterio que eacute

184

o nexo draacutematico que liga os dois protagonistas e que os alinha no tempo e no espaccedilo Nossas ilustraccedilotildees natildeo podem mostrar isso porque elas apresentam as armadilhas esperando suas viacutetimas ou viacutetimas que jaacute foram capturadas Elas natildeo podem mostrar po reacutem a estrutura temporal da armadilha Essa estrutura tempo ral o potildee o tempo suspenso o tempo vazio da espera agrave cataacutestrofe suacutebita que resulta do fechamento da armadilha Essa estrutura temporal varia com o tipo de armadilha empregado mas natildeo eacute difiacutecil ver no drama da captura um anaacutelogo mecacircnico da sucessatildeo traacutegica de hubris-nemesisshycotostrophe Considere o hipopoacutetamo condenado tranquumlilo com a se nsaccedilatildeo de fal sa seguranccedila decorrente apenas de seu tamanho e majestade Quantos heroacuteis traacutegicos sofreram das mesmas ilusotildees de presunccedilatildeo e atraiacuteram o mesmo destino) Se o chimpanzeacute que cai na armadilha de Boyer for Fausto talvez este hipopoacutetam o seja Otelo O fato de que todos os animais que caem viacutetimas das armadilhas sempre provoquem suas quedas por meio da proacutepria autoconfianccedila complacente demonstra que a caccedila com armadilhas eacute uma forma muito mais poeacutetica e traacutegica do que a simples perseguiccedilatildeo Este uacuteltimo tipo de caccedilada iguala caccediladores e viacutetimas unidos em accedilatildeo e reaccedilatildeo espontacircneas ao passo que a caccedila com armadilhas hierarquiza decisivamente o caccedilador e a viacutetima O capturador eacute Deus ou o destin o o animal capturado eacute o homem em sua encarnaccedilatildeo traacutegica

Parece -me portanto que mesmo sem o contexto etnograacutefico mesmo sem a exegese de qualquer nativo armadilhas animais como essas poderiam ser apresentadas ao puacuteblico como obras de arte Esses dispositivos incorporam ideacuteias veicu lam significados porque uma armadilha por sua proacutepria natureza eacute uma representaccedilatildeo transformada de seu fabricante o caccedilador e da presa animal sua viacutetima e de sua relaccedilatildeo muacutetua que nos povos caccediladores eacute fundamentalmente socia l e complexa Isso significa que essas armadilhas comunicam a noccedilatildeo de um nexo de intencional idades entre os caccediladores e as presas animais mediante formas e mecanismos materiais

--- -- ---

Creio que essa evocaccedilatildeo de intencionalidades complexas eacute na realidade o que serve para defin ir as obras de arte e que adequadamente emolduradas as armadilhas para animais poderiam evocar intuiccedilotildees complexas a respeito do ser da alteridade do relacionamento O impacto dessas armadilhas agora apresentas como obras de arte pode no entanto ser maior caso elas sejam exibidas ao lado de obras de artes ocidentais (das quais eacute faacutecil achar numerosos exemplos) que ocupem pelo menos aparentemente o mesmo territoacuterio sem ioloacutegico

O trabalho de Damien Hirst um dos jovens artistas britacircnicos mais citados pela miacutedia parece ser um desses casos De fato foi a notoacuteria exposiccedilatildeo de Hirst exibida na Tate Gallery em 1992 que me induziu pela primeira vez a pensar sobre as armadilhas como objetos artiacutesticos Considere o tubaratildeo de Hirst no tanque de formol Essa obra cativa devido ao contraste profundo entre o pei xe gigantesco ultrabioloacutegico e sua gaiola ou armadilha de vidro asseacuteptica (recordando Eichmann em seu julgamento preso numa caixa de vidro) cujas paredes refletoras projetam imagens virtuais da igualmente asseacuteptica galeria dentro do domiacutenio bioloacutegico do tubaratildeo Um eco distante das metades superior (bioloacutegica) e inferior (mecacircnica) do Large Glass de Duchamp - sem duacutevida - mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre nosso poder de imobilizar forccedilas elementares que no entanto parecem sempre potencialmente prontas a escapar Ateacute mesmo o tubaratildeo de Hirst tatildeo morto quanto possiacutevel continua residualmente vivo observando e pensando ou pelo menos parece estar porque manteacutem seus olhos abertos e fi xos em noacutes Um dia ele escaparaacute

Seria apropriado colocar o tubaratildeo de Hirst ao lado da pintura em casca de aacutervore extraiacuteda do livro Ancestral Connections de Morphy l6 que mostra um tubaratildeo capturado quase idecircntico visualmente agrave instalaccedilatildeo exibida na Tate Gallery Os Yolnngu produzem esse t ipo de pintura durante rituais funeraacuterios e ela se refere agrave jornada rio acima de um tubaratildeo ancestral miacutetico que foi capturado

temporariamente em seu trajeto mas escapou Essa pintura refere-se agraves afiliaccedilotildees do clatilde dos mortos e metaforiza a viagem do espiacuterito agrave terra ancestral e a necessidade de transferir- lhe forccedilas (por meio de cerimocircn ias funeraacute rias) de modo que ele como o tubaratildeo ancestral possa escapar das armadilhas que ameaccedilam sua trajetoacuteria O episoacutedio do tubaratildeo sendo capturado e escapando eacute encenado pelos participantes Essas ideacuteias escatoloacutegicas satildeo eacute claro especiacuteficas da cultura Yolnngu mas eu me arriscaria a sugerir que a semelhanccedila entre o trabalho de Hirst e a obra Yolnngu natildeo eacute apenas superficiaJ mas insinua uma metaacutefora vaacutelida em termos interculturais embora sujeita a leituras diferenciadas

Enquanto isso para reforccedilar a ideacuteia de que a obra de Hirst diz respeito de modo profundo agraves armadilhas e agrave rede de intencio nalidades complexas que a captura em armadilhas estabelece descreverei outro trabalho de Hirst presente na mesma exibiccedilatildeo na qual uma armadilha em funcionamento foi efetivamente incorporada Refiro-me agrave instalaccedilatildeo que consiste em uma cabeccedila de ovelha dentro de uma caixa de vidro a cabeccedila deteriora-se e cria larvas que se transformam em moscas que depois se tornam viacuteti mas de uma armadilha para

TRAD UCcedilAacuteO middot A LFRED G ELL 185

ae R E V I TA DO P R o G R A M A D E POacute bull G R A o U A ccedil A o

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz vio leta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais e las morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antro poacutelogos deve riacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacuted igo mito loacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se ide ntificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal mo rto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus pe rverso que colocou este mundo incoerente em movim ento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hi rst natildeo seria o uacutenico artista ocidenta l contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceitual Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posi cionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalh o natildeo eacute tanto o tema da vio lecirc ncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetrado res justamente o tema que ide ntifiquei anteriorme nte em relaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relacio na-se diretamente ao tipo de armadilha serial para ho mens (esp ingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de pro priedades em tempos passados

Exemplos adicionai s de obras de arte poacutesshyDuchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 19 I7) po deriam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hi st satildeo exemplos do mesmo tip o de co isa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

E M A R T E v I U A I E 8 A bull U F R J 2 o0 1

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo supo nho que para que uma armadi lha afri cana o u uma armadilha de qualquer o utra parte exoacutetica do mundo possa funci o nar como uma o bra de arte seja realmente necessaacuterio o u desejaacuteve l que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o signifi cado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armad ilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento IB Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

186

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a arm ad ilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmenteshyartiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinh a Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecircshyse imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bongl Antes de saber o que aconteceu tran sforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido como qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as tran substanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hil-st discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)Iarvamoscamosca (morta) - poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tam pouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode fun cionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier2o Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal

reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tam beacutem em outros lugares

~ ---------- --------------------

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torn a-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente lo ngo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuter ios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas vo ltada natildeo bastaria para retiraacute-Ias do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seri a evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - eacute que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente agraves enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e co nteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

T R A D U ccedil Acirc o bull A L F R E D G E L L 187

--------------------------- -------------

ae REVIST A DO P ROGRAMA DE PO S -GRADUACcedilAtildeO

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porq ue ela proacutepria eacute alongada (eefshyongaced) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricad a eacute certame nte na forma de armad il has como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo imagens dos antepassado s no sentido de que elas contecircm e ncarnam e comu nicam o poder ancestral Aleacutem disso elas to rnam possiacuteve l a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacute m sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fanta siado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor O s Anga ao contraacuterio tecircm imagens de poder ancestral que de fato trabalham de fato alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo real iacutestica de form as (superficiais)

Con cl usatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armad il has exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio shya disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte) Espero que eu

EM A RTES VISUAIS EB A bull UFRJ 2001

ten ha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teo ria institucional da arte liberaria imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservandoshylhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente dife rentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses objetos tornar-se-iam artiacutesticos Sei-ia essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacute logo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa tran sformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute co nstituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como arte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm po uco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arte para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como ta l numa cidade provinciana muito sono lenta que se vanglorie (como a maioria de las) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad~ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas po r que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arte caso produzisse coisas genericamente semel hantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21 ) - res ide na intluecircn cia pro longada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de o bra de arte pela antropologia da arte23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte co ntemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode se r visto em galerias de artesanat o provincianas Deve-se acei tar a premissa em essecirc ncia libe rtadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentai s jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabri cado pelo homem pode ser ve iculado como o bra de arte Eacute isso que a teo ria instituciona l da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de t eoria da arte contemporacircnea desde 19 I7 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urin o l (ou Fontaine) Fo i no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Dami en Hi rst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Ducham p pouco poderiacuteamos esperar de la nesta fase ta rdia Na verdade as co isas natildeo satildeo middotbem assim Os ready-made de Duchamp foram cuidadosamente selecio nados e firmeme nte integrados tematicamente a do is de seus principais projetos (o Large Gass de 19 I 5shy23 e a Waterfal de 1944-66) O aspecto mais inte ressante a respeito dos ready-made de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Ducham p para selecio naacuteshylos (reve ladas ao lo ngo de toda uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceitual aparenteme nte arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos e les funci onam se eacute que fun cionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e hi stoacute ricas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maio r ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquant o veiacutecu los de ideacute ias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de reali za r et c Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer o bjeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencional idades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de recon struir plename nte 2~

Assim eacute preci so mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simp les exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvid o e disseminado Desse ponto de vista a t eoria puramente institucional da arte eacute menos do que sati sfatoacuteria porque nada tem a dizel- sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuai s ao s quais o puacuteblico ed ucado de ga leria eacute sensiacuteve l Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da inte rpretabil idad e para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teor ia pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre o bra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos funcionais e obras de arte significat ivas Esse eacute um legado dos fil oacutesofos poacutes-iluministas co mo Hege l que obscurece a compreensatildeo de qual quer mundo artiacutestico distinto daqu e le que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar sign ificado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas re ligiosas e o utras Essas funccedil otildees satildeo praacuteticas nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e da man ei ra como os seres humanos podem interferir em seu funci onamento de modo a t irar o melhor proveito poss iacuteve l dele O bras

TR ADUCcedilAo A L F RED GE LL 189

ae R E V 1ST A D D P R D G R A M A DE POacuteS - G R A o U A ccedil A o E M A R T E S V I SUA I S E B A bull U F R J bull 2 o o I

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames2s A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucional e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bemshysucedida candidatura a obra de arte da rede de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencional idades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teorias interpretativa e institucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

190

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26

demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-Ia como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funcioacutena eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

Quando morreu em 1997Alfred Gell era Professor de Antropologia na London SchooJ of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a resp eito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Jmag es Totooing in Poynesia (1993) e Art ond Agency An Anhropologicol Theory ( 1998)

Traduccedilatildeo Marcia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

Notas

I Ver Dickie George Are and Aesthetics Ithaca Nova York Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circfe a Theory ofArt New York Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique of Judgements ofTaste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris james ArtlArtifact on the Museum and Anthropology Currene AnUacutelropology 29(5) 1988775-9

4 Faris op cit776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifacc African Art in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestei Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of Philosophy Journal of Philosophy 61 1964 57 1-84

7 Dickie 1974 op cir

8 Ver Danto Arthur The Tran sfJguration o the Commonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cir

9 Danto 1981 op cir

10 Faris op cir 778

I I Clifford james The Predicament of Culcure Cambridge MA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit31

13 Danto 1988 op cir 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agrave Penseacutee introduction agrave Ianalyse des eacutepopeacutees Fang Paris Societeacute dEthnologie 1988

15 Boyer op cie 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art ando an Aboriginal Syseem o Knowledge Chicago Chicago University Pness 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MD Rowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the Renais sance Oxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report ofthe American Bureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-Anga Material and Symbolic Aspects ofTrapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

--_ _--shy

21 Weiner J (ed) Aesthetics is a Cross-cultural Category Graup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic ExperienceAn Anthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and the Enchantment ofTechnology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderes cognitivos

25 Gell op cie 60

26 Thomas Nicholas Enwngled Objects Cambridge MA Harvard University Press 1991

TRADUccedilAO AlFRED GEll 191

Page 12: A Rede de Vogel- Armadilhas Como Obras de Arte

--- -- ---

Creio que essa evocaccedilatildeo de intencionalidades complexas eacute na realidade o que serve para defin ir as obras de arte e que adequadamente emolduradas as armadilhas para animais poderiam evocar intuiccedilotildees complexas a respeito do ser da alteridade do relacionamento O impacto dessas armadilhas agora apresentas como obras de arte pode no entanto ser maior caso elas sejam exibidas ao lado de obras de artes ocidentais (das quais eacute faacutecil achar numerosos exemplos) que ocupem pelo menos aparentemente o mesmo territoacuterio sem ioloacutegico

O trabalho de Damien Hirst um dos jovens artistas britacircnicos mais citados pela miacutedia parece ser um desses casos De fato foi a notoacuteria exposiccedilatildeo de Hirst exibida na Tate Gallery em 1992 que me induziu pela primeira vez a pensar sobre as armadilhas como objetos artiacutesticos Considere o tubaratildeo de Hirst no tanque de formol Essa obra cativa devido ao contraste profundo entre o pei xe gigantesco ultrabioloacutegico e sua gaiola ou armadilha de vidro asseacuteptica (recordando Eichmann em seu julgamento preso numa caixa de vidro) cujas paredes refletoras projetam imagens virtuais da igualmente asseacuteptica galeria dentro do domiacutenio bioloacutegico do tubaratildeo Um eco distante das metades superior (bioloacutegica) e inferior (mecacircnica) do Large Glass de Duchamp - sem duacutevida - mas tambeacutem uma reflexatildeo sobre nosso poder de imobilizar forccedilas elementares que no entanto parecem sempre potencialmente prontas a escapar Ateacute mesmo o tubaratildeo de Hirst tatildeo morto quanto possiacutevel continua residualmente vivo observando e pensando ou pelo menos parece estar porque manteacutem seus olhos abertos e fi xos em noacutes Um dia ele escaparaacute

Seria apropriado colocar o tubaratildeo de Hirst ao lado da pintura em casca de aacutervore extraiacuteda do livro Ancestral Connections de Morphy l6 que mostra um tubaratildeo capturado quase idecircntico visualmente agrave instalaccedilatildeo exibida na Tate Gallery Os Yolnngu produzem esse t ipo de pintura durante rituais funeraacuterios e ela se refere agrave jornada rio acima de um tubaratildeo ancestral miacutetico que foi capturado

temporariamente em seu trajeto mas escapou Essa pintura refere-se agraves afiliaccedilotildees do clatilde dos mortos e metaforiza a viagem do espiacuterito agrave terra ancestral e a necessidade de transferir- lhe forccedilas (por meio de cerimocircn ias funeraacute rias) de modo que ele como o tubaratildeo ancestral possa escapar das armadilhas que ameaccedilam sua trajetoacuteria O episoacutedio do tubaratildeo sendo capturado e escapando eacute encenado pelos participantes Essas ideacuteias escatoloacutegicas satildeo eacute claro especiacuteficas da cultura Yolnngu mas eu me arriscaria a sugerir que a semelhanccedila entre o trabalho de Hirst e a obra Yolnngu natildeo eacute apenas superficiaJ mas insinua uma metaacutefora vaacutelida em termos interculturais embora sujeita a leituras diferenciadas

Enquanto isso para reforccedilar a ideacuteia de que a obra de Hirst diz respeito de modo profundo agraves armadilhas e agrave rede de intencio nalidades complexas que a captura em armadilhas estabelece descreverei outro trabalho de Hirst presente na mesma exibiccedilatildeo na qual uma armadilha em funcionamento foi efetivamente incorporada Refiro-me agrave instalaccedilatildeo que consiste em uma cabeccedila de ovelha dentro de uma caixa de vidro a cabeccedila deteriora-se e cria larvas que se transformam em moscas que depois se tornam viacuteti mas de uma armadilha para

TRAD UCcedilAacuteO middot A LFRED G ELL 185

ae R E V I TA DO P R o G R A M A D E POacute bull G R A o U A ccedil A o

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz vio leta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais e las morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antro poacutelogos deve riacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacuted igo mito loacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se ide ntificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal mo rto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus pe rverso que colocou este mundo incoerente em movim ento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hi rst natildeo seria o uacutenico artista ocidenta l contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceitual Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posi cionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalh o natildeo eacute tanto o tema da vio lecirc ncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetrado res justamente o tema que ide ntifiquei anteriorme nte em relaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relacio na-se diretamente ao tipo de armadilha serial para ho mens (esp ingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de pro priedades em tempos passados

Exemplos adicionai s de obras de arte poacutesshyDuchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 19 I7) po deriam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hi st satildeo exemplos do mesmo tip o de co isa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

E M A R T E v I U A I E 8 A bull U F R J 2 o0 1

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo supo nho que para que uma armadi lha afri cana o u uma armadilha de qualquer o utra parte exoacutetica do mundo possa funci o nar como uma o bra de arte seja realmente necessaacuterio o u desejaacuteve l que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o signifi cado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armad ilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento IB Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

186

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a arm ad ilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmenteshyartiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinh a Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecircshyse imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bongl Antes de saber o que aconteceu tran sforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido como qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as tran substanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hil-st discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)Iarvamoscamosca (morta) - poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tam pouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode fun cionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier2o Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal

reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tam beacutem em outros lugares

~ ---------- --------------------

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torn a-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente lo ngo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuter ios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas vo ltada natildeo bastaria para retiraacute-Ias do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seri a evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - eacute que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente agraves enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e co nteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

T R A D U ccedil Acirc o bull A L F R E D G E L L 187

--------------------------- -------------

ae REVIST A DO P ROGRAMA DE PO S -GRADUACcedilAtildeO

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porq ue ela proacutepria eacute alongada (eefshyongaced) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricad a eacute certame nte na forma de armad il has como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo imagens dos antepassado s no sentido de que elas contecircm e ncarnam e comu nicam o poder ancestral Aleacutem disso elas to rnam possiacuteve l a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacute m sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fanta siado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor O s Anga ao contraacuterio tecircm imagens de poder ancestral que de fato trabalham de fato alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo real iacutestica de form as (superficiais)

Con cl usatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armad il has exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio shya disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte) Espero que eu

EM A RTES VISUAIS EB A bull UFRJ 2001

ten ha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teo ria institucional da arte liberaria imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservandoshylhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente dife rentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses objetos tornar-se-iam artiacutesticos Sei-ia essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacute logo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa tran sformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute co nstituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como arte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm po uco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arte para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como ta l numa cidade provinciana muito sono lenta que se vanglorie (como a maioria de las) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad~ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas po r que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arte caso produzisse coisas genericamente semel hantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21 ) - res ide na intluecircn cia pro longada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de o bra de arte pela antropologia da arte23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte co ntemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode se r visto em galerias de artesanat o provincianas Deve-se acei tar a premissa em essecirc ncia libe rtadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentai s jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabri cado pelo homem pode ser ve iculado como o bra de arte Eacute isso que a teo ria instituciona l da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de t eoria da arte contemporacircnea desde 19 I7 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urin o l (ou Fontaine) Fo i no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Dami en Hi rst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Ducham p pouco poderiacuteamos esperar de la nesta fase ta rdia Na verdade as co isas natildeo satildeo middotbem assim Os ready-made de Duchamp foram cuidadosamente selecio nados e firmeme nte integrados tematicamente a do is de seus principais projetos (o Large Gass de 19 I 5shy23 e a Waterfal de 1944-66) O aspecto mais inte ressante a respeito dos ready-made de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Ducham p para selecio naacuteshylos (reve ladas ao lo ngo de toda uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceitual aparenteme nte arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos e les funci onam se eacute que fun cionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e hi stoacute ricas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maio r ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquant o veiacutecu los de ideacute ias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de reali za r et c Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer o bjeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencional idades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de recon struir plename nte 2~

Assim eacute preci so mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simp les exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvid o e disseminado Desse ponto de vista a t eoria puramente institucional da arte eacute menos do que sati sfatoacuteria porque nada tem a dizel- sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuai s ao s quais o puacuteblico ed ucado de ga leria eacute sensiacuteve l Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da inte rpretabil idad e para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teor ia pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre o bra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos funcionais e obras de arte significat ivas Esse eacute um legado dos fil oacutesofos poacutes-iluministas co mo Hege l que obscurece a compreensatildeo de qual quer mundo artiacutestico distinto daqu e le que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar sign ificado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas re ligiosas e o utras Essas funccedil otildees satildeo praacuteticas nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e da man ei ra como os seres humanos podem interferir em seu funci onamento de modo a t irar o melhor proveito poss iacuteve l dele O bras

TR ADUCcedilAo A L F RED GE LL 189

ae R E V 1ST A D D P R D G R A M A DE POacuteS - G R A o U A ccedil A o E M A R T E S V I SUA I S E B A bull U F R J bull 2 o o I

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames2s A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucional e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bemshysucedida candidatura a obra de arte da rede de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencional idades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teorias interpretativa e institucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

190

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26

demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-Ia como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funcioacutena eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

Quando morreu em 1997Alfred Gell era Professor de Antropologia na London SchooJ of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a resp eito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Jmag es Totooing in Poynesia (1993) e Art ond Agency An Anhropologicol Theory ( 1998)

Traduccedilatildeo Marcia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

Notas

I Ver Dickie George Are and Aesthetics Ithaca Nova York Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circfe a Theory ofArt New York Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique of Judgements ofTaste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris james ArtlArtifact on the Museum and Anthropology Currene AnUacutelropology 29(5) 1988775-9

4 Faris op cit776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifacc African Art in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestei Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of Philosophy Journal of Philosophy 61 1964 57 1-84

7 Dickie 1974 op cir

8 Ver Danto Arthur The Tran sfJguration o the Commonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cir

9 Danto 1981 op cir

10 Faris op cir 778

I I Clifford james The Predicament of Culcure Cambridge MA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit31

13 Danto 1988 op cir 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agrave Penseacutee introduction agrave Ianalyse des eacutepopeacutees Fang Paris Societeacute dEthnologie 1988

15 Boyer op cie 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art ando an Aboriginal Syseem o Knowledge Chicago Chicago University Pness 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MD Rowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the Renais sance Oxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report ofthe American Bureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-Anga Material and Symbolic Aspects ofTrapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

--_ _--shy

21 Weiner J (ed) Aesthetics is a Cross-cultural Category Graup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic ExperienceAn Anthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and the Enchantment ofTechnology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderes cognitivos

25 Gell op cie 60

26 Thomas Nicholas Enwngled Objects Cambridge MA Harvard University Press 1991

TRADUccedilAO AlFRED GEll 191

Page 13: A Rede de Vogel- Armadilhas Como Obras de Arte

ae R E V I TA DO P R o G R A M A D E POacute bull G R A o U A ccedil A o

moscas como as usadas em accedilougues (em que as moscas satildeo atraiacutedas por uma luz vio leta ateacute os fios de alta voltagem) nas quais e las morrem Uma armadilha dentro de uma armadilha viacutetimas dentro de uma viacutetima Como antro poacutelogos deve riacuteamos ser os primeiros a reconhecer a redundacircncia no coacuted igo mito loacutegico como meio de sublinhar a mensagem dialeacutetica que nesse caso consiste em induzir o espectador a se ide ntificar com as viacutetimas presentes nessa montagem (o animal mo rto as larvas as moscas) e ao mesmo tempo com o Deus pe rverso que colocou este mundo incoerente em movim ento com o fabricante de armadilhas Hirst vocecirc eu

Hi rst natildeo seria o uacutenico artista ocidenta l contemporacircneo cujo trabalho estaria agrave mostra na exibiccedilatildeo de armadilhas Proacuteximo agrave armadilha de setas por exemplo eu poderia instalar o trabalho da artista conceitual Judith Horn Essa obra de Horn consiste em duas espingardas penduradas no teto da galeria que periodicamente descarregam uma sobre a outra um liacutequido vermelho parecido com sangue que fica armazenado em dois tanques posi cionados acima delas Evidentemente num dado niacutevel esse eacute um comentaacuterio sobre a insensibilidade da guerra mas a chave para a compreensatildeo desse trabalh o natildeo eacute tanto o tema da vio lecirc ncia muacutetua mas da ausecircncia marcada de seus perpetrado res justamente o tema que ide ntifiquei anteriorme nte em relaccedilatildeo agrave armadilha de setas De fato a instalaccedilatildeo de Horn relacio na-se diretamente ao tipo de armadilha serial para ho mens (esp ingardas ativadas por cordas) que eram armadas para dissuadir invasores de pro priedades em tempos passados

Exemplos adicionai s de obras de arte poacutesshyDuchamp (ateacute mesmo trabalhos do proacuteprio Duchamp como o Treacutebuchet de 19 I7) po deriam facilmente ser selecionados para figurar nessa exibiccedilatildeo mas Hirst e Horn serviratildeo por enquanto Natildeo quero dizer em absoluto que uma armadilha africana e a obra mais recente de Damien Hi st satildeo exemplos do mesmo tip o de co isa Sugiro apenas que cada uma eacute capaz no contexto de uma exibiccedilatildeo de sinergizar e extrair

E M A R T E v I U A I E 8 A bull U F R J 2 o0 1

significado da outra Essas obras natildeo satildeo iguais mas tambeacutem natildeo satildeo inteiramente diferentes ou incomensuraacuteveis Elas estatildeo para utilizar uma expressatildeo de Marilyn Strathern 17 parcialmente conectadas

Tambeacutem natildeo supo nho que para que uma armadi lha afri cana o u uma armadilha de qualquer o utra parte exoacutetica do mundo possa funci o nar como uma o bra de arte seja realmente necessaacuterio o u desejaacuteve l que seu contexto etnograacutefico seja abstraiacutedo Frequumlentemente o signifi cado artiacutestico de certas armadilhas soacute pode ser estabelecido de modo etnograacutefico e isso faz com que o componente textual seja essencial para qualquer exposiccedilatildeo satisfatoacuteria de armad ilhas como obras de arte Todavia natildeo precisamos nos desculpar por isso pois desde Duchamp sabemos implicitamente que recursos como notas escritas e comentaacuterios na forma de entrevistas satildeo necessaacuterios para a compreensatildeo das obras de arte contemporacircnea assim como o conhecimento da filosofia neoplatocircnica eacute necessaacuterio para uma verdadeira apreciaccedilatildeo da arte do Renascimento IB Natildeo tenho nenhuma exegese para a armadilha de setas

186

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a arm ad ilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmenteshyartiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinh a Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecircshyse imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bongl Antes de saber o que aconteceu tran sforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido como qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as tran substanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hil-st discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)Iarvamoscamosca (morta) - poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tam pouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode fun cionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier2o Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal

reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tam beacutem em outros lugares

~ ---------- --------------------

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torn a-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente lo ngo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuter ios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas vo ltada natildeo bastaria para retiraacute-Ias do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seri a evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - eacute que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente agraves enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e co nteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

T R A D U ccedil Acirc o bull A L F R E D G E L L 187

--------------------------- -------------

ae REVIST A DO P ROGRAMA DE PO S -GRADUACcedilAtildeO

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porq ue ela proacutepria eacute alongada (eefshyongaced) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricad a eacute certame nte na forma de armad il has como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo imagens dos antepassado s no sentido de que elas contecircm e ncarnam e comu nicam o poder ancestral Aleacutem disso elas to rnam possiacuteve l a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacute m sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fanta siado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor O s Anga ao contraacuterio tecircm imagens de poder ancestral que de fato trabalham de fato alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo real iacutestica de form as (superficiais)

Con cl usatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armad il has exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio shya disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte) Espero que eu

EM A RTES VISUAIS EB A bull UFRJ 2001

ten ha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teo ria institucional da arte liberaria imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservandoshylhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente dife rentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses objetos tornar-se-iam artiacutesticos Sei-ia essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacute logo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa tran sformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute co nstituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como arte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm po uco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arte para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como ta l numa cidade provinciana muito sono lenta que se vanglorie (como a maioria de las) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad~ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas po r que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arte caso produzisse coisas genericamente semel hantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21 ) - res ide na intluecircn cia pro longada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de o bra de arte pela antropologia da arte23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte co ntemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode se r visto em galerias de artesanat o provincianas Deve-se acei tar a premissa em essecirc ncia libe rtadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentai s jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabri cado pelo homem pode ser ve iculado como o bra de arte Eacute isso que a teo ria instituciona l da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de t eoria da arte contemporacircnea desde 19 I7 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urin o l (ou Fontaine) Fo i no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Dami en Hi rst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Ducham p pouco poderiacuteamos esperar de la nesta fase ta rdia Na verdade as co isas natildeo satildeo middotbem assim Os ready-made de Duchamp foram cuidadosamente selecio nados e firmeme nte integrados tematicamente a do is de seus principais projetos (o Large Gass de 19 I 5shy23 e a Waterfal de 1944-66) O aspecto mais inte ressante a respeito dos ready-made de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Ducham p para selecio naacuteshylos (reve ladas ao lo ngo de toda uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceitual aparenteme nte arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos e les funci onam se eacute que fun cionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e hi stoacute ricas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maio r ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquant o veiacutecu los de ideacute ias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de reali za r et c Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer o bjeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencional idades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de recon struir plename nte 2~

Assim eacute preci so mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simp les exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvid o e disseminado Desse ponto de vista a t eoria puramente institucional da arte eacute menos do que sati sfatoacuteria porque nada tem a dizel- sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuai s ao s quais o puacuteblico ed ucado de ga leria eacute sensiacuteve l Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da inte rpretabil idad e para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teor ia pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre o bra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos funcionais e obras de arte significat ivas Esse eacute um legado dos fil oacutesofos poacutes-iluministas co mo Hege l que obscurece a compreensatildeo de qual quer mundo artiacutestico distinto daqu e le que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar sign ificado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas re ligiosas e o utras Essas funccedil otildees satildeo praacuteticas nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e da man ei ra como os seres humanos podem interferir em seu funci onamento de modo a t irar o melhor proveito poss iacuteve l dele O bras

TR ADUCcedilAo A L F RED GE LL 189

ae R E V 1ST A D D P R D G R A M A DE POacuteS - G R A o U A ccedil A o E M A R T E S V I SUA I S E B A bull U F R J bull 2 o o I

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames2s A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucional e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bemshysucedida candidatura a obra de arte da rede de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencional idades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teorias interpretativa e institucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

190

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26

demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-Ia como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funcioacutena eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

Quando morreu em 1997Alfred Gell era Professor de Antropologia na London SchooJ of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a resp eito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Jmag es Totooing in Poynesia (1993) e Art ond Agency An Anhropologicol Theory ( 1998)

Traduccedilatildeo Marcia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

Notas

I Ver Dickie George Are and Aesthetics Ithaca Nova York Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circfe a Theory ofArt New York Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique of Judgements ofTaste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris james ArtlArtifact on the Museum and Anthropology Currene AnUacutelropology 29(5) 1988775-9

4 Faris op cit776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifacc African Art in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestei Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of Philosophy Journal of Philosophy 61 1964 57 1-84

7 Dickie 1974 op cir

8 Ver Danto Arthur The Tran sfJguration o the Commonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cir

9 Danto 1981 op cir

10 Faris op cir 778

I I Clifford james The Predicament of Culcure Cambridge MA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit31

13 Danto 1988 op cir 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agrave Penseacutee introduction agrave Ianalyse des eacutepopeacutees Fang Paris Societeacute dEthnologie 1988

15 Boyer op cie 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art ando an Aboriginal Syseem o Knowledge Chicago Chicago University Pness 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MD Rowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the Renais sance Oxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report ofthe American Bureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-Anga Material and Symbolic Aspects ofTrapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

--_ _--shy

21 Weiner J (ed) Aesthetics is a Cross-cultural Category Graup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic ExperienceAn Anthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and the Enchantment ofTechnology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderes cognitivos

25 Gell op cie 60

26 Thomas Nicholas Enwngled Objects Cambridge MA Harvard University Press 1991

TRADUccedilAO AlFRED GEll 191

Page 14: A Rede de Vogel- Armadilhas Como Obras de Arte

por exemplo mas ela eacute tatildeo graacutefica que mal necessita de uma Jaacute para outros tipos de armadilha a exegese eacute essencial

Veja por exemplo a arm ad ilha de pesca da Guiana ilustrada em Roth 19 Eu dificilmente a consideraria uma armadilha particularmenteshyartiacutestica caso Stephen Hugh-Jones natildeo me tivesse informado (comunicaccedilatildeo pessoal) que entre os Barasana (na vizinh a Colocircmbia) a armadilha de pesca equivalente eacute conhecida como aquela que transforma peixes em frutas Dada essa informaccedilatildeo vecircshyse imediatamente o quanto essa armadilha eacute espiritualmente metafiacutesica e maacutegica Em um momento o peixe estaacute placidamente nadando e fazendo parte (assim pensa ele) do reino animal ao qual pertence e entatildeo bongl Antes de saber o que aconteceu tran sforma-se em um vegetal balanccedilando nos galhos de uma aacutervore e disponiacutevel para ser colhido como qualquer outra fruta por algum nativo Que castigo mais merecido em mais de um sentido Essa transubstanciaccedilatildeo evoca as tran substanciaccedilotildees presentes na instalaccedilatildeo de Hil-st discutida acima - cabeccedila de ovelha (morta)Iarvamoscamosca (morta) - poreacutem de modo mais radical no sentido de que o peixe se move entre reinos enquanto que a cabeccedila da ovelha literalmente soacute se move entre ordens Com certeza esse ponto natildeo ocorreria a um puacuteblico de arte natildeo pertencente agrave comunidade barasana desprovido de informaccedilotildees textuais Poreacutem uma vez que a pista seja fornecida a pessoa natildeo precisa de um PhD em antropologia para apreciar a anedota nem tam pouco penso eu para ser levado a refletir sobre suas implicaccedilotildees mais profundas

Outro exemplo (que deve ser o uacuteltimo) de armadilha que soacute pode fun cionar como obra de arte com a ajuda de um certo grau de material exegeacutetico eacute a armadilha Anga para enguias descrita num artigo recente de Pierre Lemonnier2o Consiste em um longo cilindro de casca de aacutervore enrolado amarrado com cordotildees de fibra vegetal

reforccedilado com madeira e provido de um engenhoso alccedilapatildeo encurvado Na verdade enguias satildeo apanhadas em armadilhas alongadas como essa em muitas partes da Nova Guineacute e tam beacutem em outros lugares

~ ---------- --------------------

O que eacute significativo em relaccedilatildeo agrave armadilha Anga eacute o contexto e o cuidado com que eacute feita que pode natildeo ser evidente para algueacutem desinformado Os Anga de Lemonnier capturam enguias em armadilhas como essa no contexto dos ritos mortuaacuterios especificamente ao teacutermino do periacuteodo de luto quando os enlutados devem ser reanimados como condiccedilatildeo para seu retorno agrave vida normal Nesse momento banquetear-se com enguias torn a-se eficaz natildeo soacute porque as enguias satildeo um excelente e valioso alimento mas tambeacutem porque estatildeo associadas ao pecircnis do ancestral fundador destacado por ser excessivamente lo ngo Assim elas natildeo satildeo apenas uma fonte de vitalidade espiritual como tambeacutem um alimento superior de alto poder nutritivo (natildeo que essas categorias possam ser completamente dissociadas em termos locais) Se isso fosse tudo as armadilhas ainda poderiam ser consideradas meros implementos porque o fato de as enguias serem sagradas para os Angas natildeo significa necessariamente que os meios para obter enguias sejam sagrados ou extraordinaacuter ios Ateacute mesmo o fato de as armadilhas serem construiacutedas no decorrer de um ritual com muita atenccedilatildeo maacutegica a elas vo ltada natildeo bastaria para retiraacute-Ias do conjunto dos objetos comuns Mas o que Lemonnier consegue mostrar - e isso muito provavelmente soacute seri a evidente para um antropoacutelogo situado entre o mundo dos Anga e o mundo ocidental natildeo para um nativo - eacute que de fato eacute na fabricaccedilatildeo das armadilhas que os Anga constroem a noccedilatildeo de poder inerente agraves enguias As armadilhas satildeo feitas de tiras de casca de aacutervore amarradas com argolas de cana e guarnecidas de um alccedilapatildeo na extremidade mais larga O que Lemonnier observa eacute que as argolas de cana satildeo muito mais resistentes numerosas e cuidadosamente elaboradas e analogamente o alccedilapatildeo eacute muito mais resistente do que seria necessaacuterio apenas para capturar algumas enguias Assim eacute a armadilha que carrega a mensagem do poder da enguia natildeo o animal concreto Como um artefato simboacutelico que captura e co nteacutem o poder da enguia ela funciona metonimicamente para

T R A D U ccedil Acirc o bull A L F R E D G E L L 187

--------------------------- -------------

ae REVIST A DO P ROGRAMA DE PO S -GRADUACcedilAtildeO

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porq ue ela proacutepria eacute alongada (eefshyongaced) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricad a eacute certame nte na forma de armad il has como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo imagens dos antepassado s no sentido de que elas contecircm e ncarnam e comu nicam o poder ancestral Aleacutem disso elas to rnam possiacuteve l a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacute m sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fanta siado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor O s Anga ao contraacuterio tecircm imagens de poder ancestral que de fato trabalham de fato alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo real iacutestica de form as (superficiais)

Con cl usatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armad il has exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio shya disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte) Espero que eu

EM A RTES VISUAIS EB A bull UFRJ 2001

ten ha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teo ria institucional da arte liberaria imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservandoshylhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente dife rentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses objetos tornar-se-iam artiacutesticos Sei-ia essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacute logo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa tran sformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute co nstituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como arte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm po uco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arte para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como ta l numa cidade provinciana muito sono lenta que se vanglorie (como a maioria de las) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad~ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas po r que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arte caso produzisse coisas genericamente semel hantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21 ) - res ide na intluecircn cia pro longada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de o bra de arte pela antropologia da arte23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte co ntemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode se r visto em galerias de artesanat o provincianas Deve-se acei tar a premissa em essecirc ncia libe rtadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentai s jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabri cado pelo homem pode ser ve iculado como o bra de arte Eacute isso que a teo ria instituciona l da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de t eoria da arte contemporacircnea desde 19 I7 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urin o l (ou Fontaine) Fo i no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Dami en Hi rst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Ducham p pouco poderiacuteamos esperar de la nesta fase ta rdia Na verdade as co isas natildeo satildeo middotbem assim Os ready-made de Duchamp foram cuidadosamente selecio nados e firmeme nte integrados tematicamente a do is de seus principais projetos (o Large Gass de 19 I 5shy23 e a Waterfal de 1944-66) O aspecto mais inte ressante a respeito dos ready-made de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Ducham p para selecio naacuteshylos (reve ladas ao lo ngo de toda uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceitual aparenteme nte arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos e les funci onam se eacute que fun cionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e hi stoacute ricas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maio r ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquant o veiacutecu los de ideacute ias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de reali za r et c Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer o bjeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencional idades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de recon struir plename nte 2~

Assim eacute preci so mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simp les exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvid o e disseminado Desse ponto de vista a t eoria puramente institucional da arte eacute menos do que sati sfatoacuteria porque nada tem a dizel- sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuai s ao s quais o puacuteblico ed ucado de ga leria eacute sensiacuteve l Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da inte rpretabil idad e para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teor ia pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre o bra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos funcionais e obras de arte significat ivas Esse eacute um legado dos fil oacutesofos poacutes-iluministas co mo Hege l que obscurece a compreensatildeo de qual quer mundo artiacutestico distinto daqu e le que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar sign ificado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas re ligiosas e o utras Essas funccedil otildees satildeo praacuteticas nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e da man ei ra como os seres humanos podem interferir em seu funci onamento de modo a t irar o melhor proveito poss iacuteve l dele O bras

TR ADUCcedilAo A L F RED GE LL 189

ae R E V 1ST A D D P R D G R A M A DE POacuteS - G R A o U A ccedil A o E M A R T E S V I SUA I S E B A bull U F R J bull 2 o o I

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames2s A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucional e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bemshysucedida candidatura a obra de arte da rede de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencional idades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teorias interpretativa e institucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

190

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26

demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-Ia como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funcioacutena eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

Quando morreu em 1997Alfred Gell era Professor de Antropologia na London SchooJ of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a resp eito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Jmag es Totooing in Poynesia (1993) e Art ond Agency An Anhropologicol Theory ( 1998)

Traduccedilatildeo Marcia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

Notas

I Ver Dickie George Are and Aesthetics Ithaca Nova York Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circfe a Theory ofArt New York Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique of Judgements ofTaste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris james ArtlArtifact on the Museum and Anthropology Currene AnUacutelropology 29(5) 1988775-9

4 Faris op cit776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifacc African Art in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestei Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of Philosophy Journal of Philosophy 61 1964 57 1-84

7 Dickie 1974 op cir

8 Ver Danto Arthur The Tran sfJguration o the Commonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cir

9 Danto 1981 op cir

10 Faris op cir 778

I I Clifford james The Predicament of Culcure Cambridge MA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit31

13 Danto 1988 op cir 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agrave Penseacutee introduction agrave Ianalyse des eacutepopeacutees Fang Paris Societeacute dEthnologie 1988

15 Boyer op cie 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art ando an Aboriginal Syseem o Knowledge Chicago Chicago University Pness 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MD Rowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the Renais sance Oxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report ofthe American Bureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-Anga Material and Symbolic Aspects ofTrapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

--_ _--shy

21 Weiner J (ed) Aesthetics is a Cross-cultural Category Graup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic ExperienceAn Anthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and the Enchantment ofTechnology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderes cognitivos

25 Gell op cie 60

26 Thomas Nicholas Enwngled Objects Cambridge MA Harvard University Press 1991

TRADUccedilAO AlFRED GEll 191

Page 15: A Rede de Vogel- Armadilhas Como Obras de Arte

--------------------------- -------------

ae REVIST A DO P ROGRAMA DE PO S -GRADUACcedilAtildeO

potencializar a enguia em virtude de sua proacutepria resistecircncia e forccedila De fato a armadilha que recebeu uma forma para acomodar e atrair enguias eacute uma representaccedilatildeo da enguia natildeo apenas no sentido jaacute mencionado de ser uma objetificaccedilatildeo do conhecimento sobre o comportamento da enguia como tambeacutem de modo mais direto porq ue ela proacutepria eacute alongada (eefshyongaced) faacutelica ingestiacutevel e reprodutora

Natildeo poderia haver uma refutaccedilatildeo mais evidente da tese que relegaria objetos como as armadilhas para animais agrave categoria de meros artefatos em comparaccedilatildeo com esculturas de antepassados e coisas semelhantes (que os Anga incidentalmente natildeo fazem) Se os Anga encarnam seus antepassados numa forma fabricad a eacute certame nte na forma de armad il has como essas (e tambeacutem em outros artefatos como templos de iniciaccedilatildeo) Essas armadilhas satildeo imagens dos antepassado s no sentido de que elas contecircm e ncarnam e comu nicam o poder ancestral Aleacutem disso elas to rnam possiacuteve l a realizaccedilatildeo da presenccedila ancestral no aqui e agora como poucas imagens convencionais conseguiriam natildeo a despeito do fato de que elas tambeacute m sejam instrumentos uacuteteis para capturar enguias mas por causa desse fato Durante seacuteculos noacutes no Ocidente temos esperado em vatildeo por (e fanta siado a respeito de) estaacutetuas ou imagens que se movam ou abenccediloem ou faccedilam amor O s Anga ao contraacuterio tecircm imagens de poder ancestral que de fato trabalham de fato alimentam os que as fabricam e assim alcanccedilam um objetivo que sempre escapou a nossos artistas prisioneiros da necessidade de representaccedilatildeo real iacutestica de form as (superficiais)

Con cl usatildeo

Suponha entatildeo que tal exibiccedilatildeo hiacutebrida de armad il has exoacuteticas para animais entremeada com obras de artes ocidentais relevantes seja apresentada ao puacuteblico de galeria Que implicaccedilotildees isso teria para o problema com o qual comecei este ensaio shya disputa relativa aos criteacuterios definidores da categoria de obra de arte) Espero que eu

EM A RTES VISUAIS EB A bull UFRJ 2001

ten ha dito o suficiente para convencer pelo menos algumas pessoas de que tal conjunccedilatildeo natildeo seria completamente inoportuna Nesse ponto a teo ria institucional da arte liberaria imediatamente um grande nuacutemero de artefatos - ateacute entatildeo consignados ao Naturhistorisches Museum - reservandoshylhes um lugar no Kunsthistorisches Museum e assegurando-lhes recepccedilatildeo e audiecircncia completamente dife rentes uma vez que ao circularem com sucesso como obras de arte esses objetos tornar-se-iam artiacutesticos Sei-ia essa mudanccedila um retrocesso

Falando como um antropoacute logo interessado em arte e natildeo como um criacutetico de arte ou um porta-voz do Espiacuterito Absoluto creio que essa tran sformaccedilatildeo seria bem-vinda A pior coisa a respeito da antropologia da arte tal como estaacute co nstituiacuteda eacute precisamente a maneira como ela herdou uma definiccedilatildeo reacionaacuteria de arte de tal modo que ela tem que se preocupar com objetos que teriam sido classificados como arte ou mais provaacutevel como artesanato no comeccedilo deste seacuteculo mas que tecircm po uco ou nada a ver com os tipos de objetos (instalaccedilotildees performances) que caracteristicamente satildeo veiculados como arte no final do seacuteculo 20

Efetivamente a arte para a antropologia da arte consiste em determinados tipos de artefato que soacute poderiam ser expostos como ta l numa cidade provinciana muito sono lenta que se vanglorie (como a maioria de las) de ter uma galeria onde podem ser encontradas ceracircmicas folcloacutericas esculturas e tapeccedilarias sem falar nas inuacutemeras naturezas mortas e cenas rurais com palmeiras A trad~ccedilatildeo burguesa de arte que produz e consome essas coisas eacute obviamente indestrutiacutevel Mas po r que o Outro etnograacutefico soacute deveria ser considerado um produtor de arte caso produzisse coisas genericamente semel hantes a tal refugo reacionaacuterio mesmo se algumas obras de arte primitiva assim especificadas fossem de fato da mais alta qualidade A razatildeo para a persistecircncia desse estado de coisas - que pode entretanto estar sendo esclarecido enquanto escrevo

188

(vide Weiner21 ) - res ide na intluecircn cia pro longada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de o bra de arte pela antropologia da arte23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte co ntemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode se r visto em galerias de artesanat o provincianas Deve-se acei tar a premissa em essecirc ncia libe rtadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentai s jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabri cado pelo homem pode ser ve iculado como o bra de arte Eacute isso que a teo ria instituciona l da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de t eoria da arte contemporacircnea desde 19 I7 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urin o l (ou Fontaine) Fo i no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Dami en Hi rst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Ducham p pouco poderiacuteamos esperar de la nesta fase ta rdia Na verdade as co isas natildeo satildeo middotbem assim Os ready-made de Duchamp foram cuidadosamente selecio nados e firmeme nte integrados tematicamente a do is de seus principais projetos (o Large Gass de 19 I 5shy23 e a Waterfal de 1944-66) O aspecto mais inte ressante a respeito dos ready-made de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Ducham p para selecio naacuteshylos (reve ladas ao lo ngo de toda uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceitual aparenteme nte arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos e les funci onam se eacute que fun cionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e hi stoacute ricas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maio r ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquant o veiacutecu los de ideacute ias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de reali za r et c Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer o bjeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencional idades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de recon struir plename nte 2~

Assim eacute preci so mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simp les exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvid o e disseminado Desse ponto de vista a t eoria puramente institucional da arte eacute menos do que sati sfatoacuteria porque nada tem a dizel- sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuai s ao s quais o puacuteblico ed ucado de ga leria eacute sensiacuteve l Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da inte rpretabil idad e para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teor ia pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre o bra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos funcionais e obras de arte significat ivas Esse eacute um legado dos fil oacutesofos poacutes-iluministas co mo Hege l que obscurece a compreensatildeo de qual quer mundo artiacutestico distinto daqu e le que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar sign ificado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas re ligiosas e o utras Essas funccedil otildees satildeo praacuteticas nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e da man ei ra como os seres humanos podem interferir em seu funci onamento de modo a t irar o melhor proveito poss iacuteve l dele O bras

TR ADUCcedilAo A L F RED GE LL 189

ae R E V 1ST A D D P R D G R A M A DE POacuteS - G R A o U A ccedil A o E M A R T E S V I SUA I S E B A bull U F R J bull 2 o o I

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames2s A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucional e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bemshysucedida candidatura a obra de arte da rede de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencional idades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teorias interpretativa e institucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

190

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26

demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-Ia como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funcioacutena eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

Quando morreu em 1997Alfred Gell era Professor de Antropologia na London SchooJ of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a resp eito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Jmag es Totooing in Poynesia (1993) e Art ond Agency An Anhropologicol Theory ( 1998)

Traduccedilatildeo Marcia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

Notas

I Ver Dickie George Are and Aesthetics Ithaca Nova York Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circfe a Theory ofArt New York Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique of Judgements ofTaste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris james ArtlArtifact on the Museum and Anthropology Currene AnUacutelropology 29(5) 1988775-9

4 Faris op cit776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifacc African Art in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestei Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of Philosophy Journal of Philosophy 61 1964 57 1-84

7 Dickie 1974 op cir

8 Ver Danto Arthur The Tran sfJguration o the Commonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cir

9 Danto 1981 op cir

10 Faris op cir 778

I I Clifford james The Predicament of Culcure Cambridge MA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit31

13 Danto 1988 op cir 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agrave Penseacutee introduction agrave Ianalyse des eacutepopeacutees Fang Paris Societeacute dEthnologie 1988

15 Boyer op cie 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art ando an Aboriginal Syseem o Knowledge Chicago Chicago University Pness 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MD Rowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the Renais sance Oxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report ofthe American Bureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-Anga Material and Symbolic Aspects ofTrapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

--_ _--shy

21 Weiner J (ed) Aesthetics is a Cross-cultural Category Graup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic ExperienceAn Anthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and the Enchantment ofTechnology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderes cognitivos

25 Gell op cie 60

26 Thomas Nicholas Enwngled Objects Cambridge MA Harvard University Press 1991

TRADUccedilAO AlFRED GEll 191

Page 16: A Rede de Vogel- Armadilhas Como Obras de Arte

(vide Weiner21 ) - res ide na intluecircn cia pro longada da noccedilatildeo esteacutetica de obra de arte sobre a mentalidade antropoloacutegica22 visto que essa eacute a definiccedilatildeo que assegura que soacute esculturas pinturas potes panos etc esteticamente agradaacuteveis devem ser considerados arte

A mudanccedila que defendo diz respeito ao abandono da noccedilatildeo esteacutetica de o bra de arte pela antropologia da arte23 uacutenico procedimento capaz de permitir o tipo de confrontaccedilatildeo direta descrito acima entre os artefatos dos povos natildeo ocidentais e a produccedilatildeo artiacutestica poacutes-Duchamp ou seja o confronto com a tradiccedilatildeo central da arte co ntemporacircnea propriamente dita e natildeo com o ersatz que pode se r visto em galerias de artesanat o provincianas Deve-se acei tar a premissa em essecirc ncia libe rtadora da teoria institucional da arte que surgiu precisamente para acomodar o fato histoacuterico de que as obras de arte ocidentai s jaacute natildeo tecircm mais uma assinatura esteacutetica e podem consistir em objetos inteiramente arbitraacuterios como tubarotildees mortos em tanques de formol por exemplo

Isso significa que qualquer objeto fabri cado pelo homem pode ser ve iculado como o bra de arte Eacute isso que a teo ria instituciona l da arte implica Potencialmente talvez sim mas essa eacute uma ideacuteia banal em termos de t eoria da arte contemporacircnea desde 19 I7 quando Duchamp exibiu seu notoacuterio urin o l (ou Fontaine) Fo i no tempo de meu avocirc e dos bisavoacutes dos artistas de hoje como Dami en Hi rst Caso selecionar e expor objetos arbitraacuterios como arte fosse suficiente para definir a tradiccedilatildeo de arte poacutes-Ducham p pouco poderiacuteamos esperar de la nesta fase ta rdia Na verdade as co isas natildeo satildeo middotbem assim Os ready-made de Duchamp foram cuidadosamente selecio nados e firmeme nte integrados tematicamente a do is de seus principais projetos (o Large Gass de 19 I 5shy23 e a Waterfal de 1944-66) O aspecto mais inte ressante a respeito dos ready-made de Duchamp nunca foi os objetos em si mas as razotildees de Ducham p para selecio naacuteshylos (reve ladas ao lo ngo de toda uma vida performaacutetica de strip-tease) e o mesmo eacute vaacutelido para a arte produzida por muitos de

seus seguidores Os objetos de arte conceitual aparenteme nte arbitraacuterios soacute o satildeo aparentemente e todos e les funci onam se eacute que fun cionam porque tecircm ressonacircncias iconograacuteficas e hi stoacute ricas complexas (dantoescas) das quais o puacuteblico de galeria estaacute em maio r ou menor extensatildeo ciente Trata-se de objetos que demandam um exame minucioso enquant o veiacutecu los de ideacute ias complexas e que evocam ou significam algo interessante difiacutecil alusivo complicado de reali za r et c Eu definiria como candidato a obra de arte qualquer o bjeto ou performance que recompense potencialmente tal exame pois encarna intencional idades que satildeo complexas exigem atenccedilatildeo e satildeo difiacuteceis de recon struir plename nte 2~

Assim eacute preci so mais para fazer uma obra de arte poacutes-duchampiana do que a simp les exposiccedilatildeo em uma galeria um contexto interpretativo tambeacutem precisa ser desenvolvid o e disseminado Desse ponto de vista a t eoria puramente institucional da arte eacute menos do que sati sfatoacuteria porque nada tem a dizel- sobre os criteacuterios que governam a criaccedilatildeo dos tipos de ressonacircncias contextuai s ao s quais o puacuteblico ed ucado de ga leria eacute sensiacuteve l Nessa medida Danto estaacute certo ao afirmar a importacircncia da inte rpretabil idad e para o processo de constituiccedilatildeo da obra de arte O que estaacute errado em sua teor ia pelo menos no que diz respeito agrave distinccedilatildeo entre o bra de arte e artefato eacute sua dependecircncia em relaccedilatildeo a uma distinccedilatildeo superidealizada entre artefatos funcionais e obras de arte significat ivas Esse eacute um legado dos fil oacutesofos poacutes-iluministas co mo Hege l que obscurece a compreensatildeo de qual quer mundo artiacutestico distinto daqu e le que Hegel tinha especificamente em mente Talvez as obras de arte das galerias contemporacircneas natildeo faccedilam nada aleacutem de evocar sign ificado mas a maioria das obras de arte tem funccedilotildees poliacuteticas re ligiosas e o utras Essas funccedil otildees satildeo praacuteticas nos termos das concepccedilotildees locais acerca do mundo e da man ei ra como os seres humanos podem interferir em seu funci onamento de modo a t irar o melhor proveito poss iacuteve l dele O bras

TR ADUCcedilAo A L F RED GE LL 189

ae R E V 1ST A D D P R D G R A M A DE POacuteS - G R A o U A ccedil A o E M A R T E S V I SUA I S E B A bull U F R J bull 2 o o I

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames2s A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucional e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bemshysucedida candidatura a obra de arte da rede de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencional idades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teorias interpretativa e institucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

190

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26

demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-Ia como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funcioacutena eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

Quando morreu em 1997Alfred Gell era Professor de Antropologia na London SchooJ of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a resp eito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Jmag es Totooing in Poynesia (1993) e Art ond Agency An Anhropologicol Theory ( 1998)

Traduccedilatildeo Marcia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

Notas

I Ver Dickie George Are and Aesthetics Ithaca Nova York Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circfe a Theory ofArt New York Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique of Judgements ofTaste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris james ArtlArtifact on the Museum and Anthropology Currene AnUacutelropology 29(5) 1988775-9

4 Faris op cit776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifacc African Art in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestei Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of Philosophy Journal of Philosophy 61 1964 57 1-84

7 Dickie 1974 op cir

8 Ver Danto Arthur The Tran sfJguration o the Commonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cir

9 Danto 1981 op cir

10 Faris op cir 778

I I Clifford james The Predicament of Culcure Cambridge MA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit31

13 Danto 1988 op cir 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agrave Penseacutee introduction agrave Ianalyse des eacutepopeacutees Fang Paris Societeacute dEthnologie 1988

15 Boyer op cie 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art ando an Aboriginal Syseem o Knowledge Chicago Chicago University Pness 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MD Rowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the Renais sance Oxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report ofthe American Bureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-Anga Material and Symbolic Aspects ofTrapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

--_ _--shy

21 Weiner J (ed) Aesthetics is a Cross-cultural Category Graup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic ExperienceAn Anthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and the Enchantment ofTechnology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderes cognitivos

25 Gell op cie 60

26 Thomas Nicholas Enwngled Objects Cambridge MA Harvard University Press 1991

TRADUccedilAO AlFRED GEll 191

Page 17: A Rede de Vogel- Armadilhas Como Obras de Arte

ae R E V 1ST A D D P R D G R A M A DE POacuteS - G R A o U A ccedil A o E M A R T E S V I SUA I S E B A bull U F R J bull 2 o o I

de arte tambeacutem podem capturar enguias como vimos ou cultivar inhames2s A interpretaccedilatildeo de tais obras de arte inseridas na realidade praacutetica estaacute intrinsicamente ligada a suas caracteriacutesticas como instrumentos que cumprem outros propoacutesitos aleacutem da incorporaccedilatildeo de significado autocircnomo

Uma espeacutecie de meio do caminho entre as teorias institucional e interpretativa parece-me a melhor opccedilatildeo A teoria institucional da arte eacute sensiacutevel agrave ideacuteia de que obras de arte podem ser artefatos que atendam a diferentes propoacutesitos humanos desde que ao mesmo tempo eles sejam considerados interessantes como arte por um puacuteblico de arte Mas a teoria institucional eacute problemaacutetica porque natildeo eacute clara a respeito dos criteacuterios que determinam que objetos seratildeo ou natildeo selecionados como artisticamente interessantes A concepccedilatildeo danto-hegeliana de um Geist da arte autocircnomo natildeo enquadra nessa categoria senatildeo um conjunto estreito e natildeo representativo de produccedilotildees humanas Como consequumlecircncia deixa de explicar a relativamente bemshysucedida candidatura a obra de arte da rede de Vogel exceto como o resultado de um erro categoacuterico por parte do puacuteblico Uma noccedilatildeo mais ampla de interpretabilidade abarcando a objetificaccedilatildeo de intencional idades complexas em modos pragmaacuteticos e teacutecnicos bem como o projeto de comunicar significado simboacutelico autocircnomo parece-me superar os problemas contidos em ambas as teorias interpretativa e institucional da arte

A antropologia da arte deveria tratar em minha opiniatildeo de fornecer um contexto criacutetico que liberasse os artefatos e permitisse sua veiculaccedilatildeo como obras de arte exibindo-os como encarnaccedilotildees ou resiacuteduos de intencionalidades complexas A antropologia deveria ser parte da proacutepria criaccedilatildeo artiacutestica na medida em que a criaccedilatildeo artiacutestica a histoacuteria e a criacutetica de arte satildeo hoje em dia um uacutenico empreendimento Isso seria garantido em parte pela realizaccedilatildeo de etnografias

190

relevantes (como as que foram elaboradas por Boyer Hugh-Jones Lemonnier aqui mencionadas) e em parte pela descoberta de conexotildees entre as intencionalidades complexas presentes em obras de artes ocidentais e os tipos de intentionalidades encarnadas em obras de arte e artefatos (agora recontextualizados como obras de arte) provenientes de outros lugares Do ponto de vista do fazer artiacutestico essa seria uma transaccedilatildeo unilateral no sentido de que conceitos de arte essencialmente metropolitanos e natildeo indiacutegenas estariam em jogo Contudo como Thomas26

demostrou os objetos satildeo promiacutescuos e podem mover-se livremente entre domiacutenios culturaistransacionais sem ser essencialmente comprometidos Eles soacute podem fazer isso porque de fato natildeo tecircm nenhuma essecircncia soacute uma gama ilimitada de potencialidades

Nesse sentido seria a rede de Vogel uma obra de arte Acredito que os frequumlentadores de galerias de Nova York que a tomaram como tal natildeo estavam enganados Nem estavam completamente influenciados pelo mero fato de ter sido institucionalmente convidados a vecirc-Ia como tal pela organizaccedilatildeo da galeria e pelas semelhanccedilas casuais entre a rede Zande e o trabalho de artistas conceituais ocidentais conhecidos como Jackie Windsor Natildeo tenho duacutevidas de que eles estavam respondendo agrave proacutepria noccedilatildeo de rede e ao modo paradoxal pelo qual essa proacutepria rede tinha sido capturada e firmemente presa dentro de uma segunda rede Essa metaacutefora recursiva de captura e contenccedilatildeo jaacute seria por si soacute suficiente para fazecirc-los pararem detecirc-los na passagem e induzi-los a olhar fixamente como o condenado chimpanzeacute de Boyer Toda obra de arte que funcioacutena eacute assim uma armadilha ou um ardil que impede a passagem E o que seria uma galeria de arte senatildeo um lugar de captura armado com o que Boyer chamou de armadilhas do pensamento que mantecircm as viacutetimas por algum tempo em suspensatildeo A rede de Vogel foi armada com cuidado e nela a antropoacuteloga capturou aleacutem de vaacuterios filoacutesofos e antropoacutelogos - incluindo este - grande parte da questatildeo sobre o que eacute arte

Quando morreu em 1997Alfred Gell era Professor de Antropologia na London SchooJ of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a resp eito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Jmag es Totooing in Poynesia (1993) e Art ond Agency An Anhropologicol Theory ( 1998)

Traduccedilatildeo Marcia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

Notas

I Ver Dickie George Are and Aesthetics Ithaca Nova York Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circfe a Theory ofArt New York Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique of Judgements ofTaste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris james ArtlArtifact on the Museum and Anthropology Currene AnUacutelropology 29(5) 1988775-9

4 Faris op cit776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifacc African Art in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestei Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of Philosophy Journal of Philosophy 61 1964 57 1-84

7 Dickie 1974 op cir

8 Ver Danto Arthur The Tran sfJguration o the Commonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cir

9 Danto 1981 op cir

10 Faris op cir 778

I I Clifford james The Predicament of Culcure Cambridge MA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit31

13 Danto 1988 op cir 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agrave Penseacutee introduction agrave Ianalyse des eacutepopeacutees Fang Paris Societeacute dEthnologie 1988

15 Boyer op cie 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art ando an Aboriginal Syseem o Knowledge Chicago Chicago University Pness 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MD Rowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the Renais sance Oxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report ofthe American Bureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-Anga Material and Symbolic Aspects ofTrapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

--_ _--shy

21 Weiner J (ed) Aesthetics is a Cross-cultural Category Graup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic ExperienceAn Anthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and the Enchantment ofTechnology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderes cognitivos

25 Gell op cie 60

26 Thomas Nicholas Enwngled Objects Cambridge MA Harvard University Press 1991

TRADUccedilAO AlFRED GEll 191

Page 18: A Rede de Vogel- Armadilhas Como Obras de Arte

Quando morreu em 1997Alfred Gell era Professor de Antropologia na London SchooJ of Economics e Political Science e membro da British Academy Entre os diversos artigos e livros que publicou a resp eito da antropologia da arte destacam-se Wrapping in Jmag es Totooing in Poynesia (1993) e Art ond Agency An Anhropologicol Theory ( 1998)

Traduccedilatildeo Marcia Martins Campos e Laura Bedran Revisatildeo Teacutecnica Kaacutetia Maria Pereira de Almeida

Notas

I Ver Dickie George Are and Aesthetics Ithaca Nova York Cornell University Press 1974 e Dickie George The Art Circfe a Theory ofArt New York Havens 1984

2 Bourdieu Pierre Distinction A Social Critique of Judgements ofTaste trad Richard Nice London Routledge amp Kegan Paul 1984

3 Faris james ArtlArtifact on the Museum and Anthropology Currene AnUacutelropology 29(5) 1988775-9

4 Faris op cit776

5 Danto Arthur Artifact and Art in ArtArtifacc African Art in Anthropology Collections Cataacutelogo da exposiccedilatildeo Nova York Center for African Art and Prestei Verlag 1988

6 Danto Arthur The Artworld journal of Philosophy Journal of Philosophy 61 1964 57 1-84

7 Dickie 1974 op cir

8 Ver Danto Arthur The Tran sfJguration o the Commonplace Cambridge MA Harvard University Press 1981 e Danto 1988 op cir

9 Danto 1981 op cir

10 Faris op cir 778

I I Clifford james The Predicament of Culcure Cambridge MA Harvard University Press 1988

12 Danto 1988 op cit31

13 Danto 1988 op cir 29

14 Boyer Pascal Barricades mysteacuterieuses et Pieges agrave Penseacutee introduction agrave Ianalyse des eacutepopeacutees Fang Paris Societeacute dEthnologie 1988

15 Boyer op cie 55-6

16 Morphy Howard Ancestral Connections Art ando an Aboriginal Syseem o Knowledge Chicago Chicago University Pness 1991

17 Strathern Marilyn Partial Connections Savage MD Rowman Littlefield 1991

18 Wind Edgard Pagan Mysteries in the Renais sance Oxford Oxford University Press 1957

19 Roth Walter 38th Annual Report ofthe American Bureau of Ethnology 1924

20 Lemonnier Pierre The Eel and the Ankave-Anga Material and Symbolic Aspects ofTrapping 1992 esboccedilo de artigo ainda ineacutedito

--_ _--shy

21 Weiner J (ed) Aesthetics is a Cross-cultural Category Graup for Debates in Anthropological Theory Manchester University Department of Anthropology 1994

22 Maquet Jacques The Aesthetic ExperienceAn Anthropologist Looks at the Visual Arts New Haven CT Yale University Press 1986

23 Gell Alfred The Technology of Enchantment and the Enchantment ofTechnology in Jeremy Coote and Anthony Shelton (eds) Anthropology Art and Aesthetics Oxford Oxford University Press 1992

24 Cf a noccedilatildeo de Kant de livre jogo dos poderes cognitivos

25 Gell op cie 60

26 Thomas Nicholas Enwngled Objects Cambridge MA Harvard University Press 1991

TRADUccedilAO AlFRED GEll 191