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UESB, Vitória da Conquista, BA Anais, ISSN ANAIS A TIRNANIA DA AUTORIDADE ANTROPOCÊNTRICA DO HOMEM MODERNO SOBRE O MUNDO NATURAL ..........................................................................1 Adelson Ferreira da Silva UFBA A IMPORTÂNCIA DA RELAÇÃO ESTÉTICA PARA UMA PRÁTICA ALFABETIZADORA BEM SUCEDIDA: UMA ANÁLISE BAKHTINIANA .....................19 Adenaide Amorin Lima; Denise Aparecida Brito Barreto; Nilma Margarida de Castro Crusoé UESB O CINEMA NO ENSINO DE FILOSOFIA: UMA EDUCAÇÃO ATRAVÉS DO OLHAR .....................................................................................................................................36 Alexandre Alves da Silva PPGED/UESB O PENSAMENTO PEDAGÓGICO DE DOMINGO SARMIENTO E A PERNICIOSA PRESENÇA DO IDEÁRIO FRENOLÓGICO ................................................48 André Gustavo Ferreira da Silva UFPE/CNPq EDUCAÇÃO MORAL: UMA NECESSIDADE NAS SOCIEDADES COLETIVAS E DEMOCRÁTICAS ...................................................................................................................62 Bruno da Costa Rodrigues UESC GRUPO DE ESTUDO ACERCA DE MARTIN BUBER: REPERCUSSÕES À PRÁTICA PEDAGÓGICA DE PROFESSORES QUE VISE À HUMANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO ......................................................................................................................78 Claudio Fernando da Silva UFPE O MÉTODO DIALÉTICO NA PESQUISA SOBRE POLITICA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES .................................................................................................................93 Cláudio Wilson dos Santos Pereira; Leila Pio Mororó

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ANAIS

A TIRNANIA DA AUTORIDADE ANTROPOCÊNTRICA DO HOMEM MODERNO SOBRE O MUNDO NATURAL .......................................................................... 1 Adelson Ferreira da Silva UFBA A IMPORTÂNCIA DA RELAÇÃO ESTÉTICA PARA UMA PRÁTICA ALFABETIZADORA BEM SUCEDIDA: UMA ANÁLISE BAKHTINIANA ..................... 19 Adenaide Amorin Lima; Denise Aparecida Brito Barreto; Nilma Margarida de Castro Crusoé UESB O CINEMA NO ENSINO DE FILOSOFIA: UMA EDUCAÇÃO ATRAVÉS DO OLHAR ..................................................................................................................................... 36 Alexandre Alves da Silva PPGED/UESB O PENSAMENTO PEDAGÓGICO DE DOMINGO SARMIENTO E A PERNICIOSA PRESENÇA DO IDEÁRIO FRENOLÓGICO ................................................ 48 André Gustavo Ferreira da Silva UFPE/CNPq EDUCAÇÃO MORAL: UMA NECESSIDADE NAS SOCIEDADES COLETIVAS E DEMOCRÁTICAS ................................................................................................................... 62 Bruno da Costa Rodrigues UESC GRUPO DE ESTUDO ACERCA DE MARTIN BUBER: REPERCUSSÕES À PRÁTICA PEDAGÓGICA DE PROFESSORES QUE VISE À HUMANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO ...................................................................................................................... 78 Claudio Fernando da Silva UFPE O MÉTODO DIALÉTICO NA PESQUISA SOBRE POLITICA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES ................................................................................................................. 93 Cláudio Wilson dos Santos Pereira; Leila Pio Mororó

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PPGED/UESB ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO ............ 104 Edna Furukawa Pimentel UESB CURRÍCULO, DIFERENÇA, ENCONTROS E ALEGRIAS: O QUE PODE O MODELARTE – PROJETO DE FILOSOFIA E ARTE DO ENSINO MÉDIO EM IPIAÚ- BA .............................................................................................................................. 120 Elenida Alves Brandão; Elenise Cristina Pires de Andrade UEFS CONCEPÇÃO FILOSÓFICA NA CRIAÇÃO DOS INSTITUTOS FEDERAIS DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA: UMA PROPOSTA PARA ALÉM DO TECNICISMO ........................................................................................................................ 133 Eliane Cristina Gualberto Melo Mineiro; João Leandro Cássio de Oliveira; Sheila Cristina Furtado Sales PPGED/UESB A FILOSOFIA NO ENSINO BÁSICO: ALGUMAS PISTAS PARA A REFLEXÃO DA DISCIPLINA NA ESCOLA PÚBLICA EM VITÓRIA DA CONQUISTA, BAHIA .................................................................................................................................... 144 Euvaldo Cotinguiba Gomes PPGED/UESB MODERNIDADE TECNOCIENTÍFICA E (IN)EXPERIÊNCIA DO PENSAMENTO: UM ESPECTRO QUE RONDA E DESAFIA O PROCESSO FORMATIVO NO IFPE – CAMPUS VITÓRIA .................................................................... 155 Evandro da Fonseca Costa UESB SISTEMA EDUCACIONAL BRASILEIRO: CRISE E NOVAS PERSPECTIVAS ............ 173 Felipe dos Anjos Figueiredo Vieira da Silva; Rafael Santos Reis UESB FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO FILOSÓFICA DO EDUCADOR ............. 186 Ferdinand Röhr UFPE DIÁLOGO FILOSÓFICO: AÇÃO PEDAGÓGICA E EMANCIPAÇÃO ............................ 201 Francisco Flávio Alves Felipe; Márcio Camargo da Silva; Marcos Henrique Repa UNEB; PPGED/UESB

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A TEORIA CRÍTICA DE ADORNO E OS DESAFIOS DO PENSAR: DIRETRIZES PARA UMA EDUCAÇÃO EMANCIPATÓRIA .................................................................. 213 Givanildo Ivanildo da Silva; Maria Betânia do Nascimento Santiago UFPE UM ESBOÇO DA NOÇÃO DE AUTOCONHECIMENTO NAS PERSPECTIVAS FILOSÓFICA E EDUCACIONAL PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES............... 227 Jonathas Gomes Moraes PPGED/UESB EXPERIÊNCIA FORMATIVA E AÇÃO: SENTIDOS DA EDUCAÇÃO INTEGRAL A PARTIR DE HANNAH ARENDT ..................................................................................... 242 Julianne Luiza da Silva; Maria Betânia do Nascimento Santiago UFPE PLANO DE IMANÊNCIA E/OU CONTEXTO DE EMERGÊNCIA DA IDEIA DOS CICLOS DE FORMAÇÃO HUMANA ................................................................................. 261 Larissa Monique de Souza Almeida; Luiz Artur dos Santos Cestari PPGED/UESB DA NOÇÃO DE EPISTEME AO PLANO DE IMANÊNCIA: ESTENOGRAFIA CONCEITUAL DO CONTEXTO DE EMERGÊNCIA DE UMA IDEIA ............................ 275 Luiz Artur dos Santos Cestari PPGED/CIPED/UESB A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA NA SENSIBILIDADE DOS MOVIMENTOS DE PROFESSORALIZAÇÃO ...................................................................................................... 292 Maria Emérita Jaqueira Fernandes; Jussara Midlej UESB NOTAS SOBRE APRENDER E ESQUECER ...................................................................... 316 María José Guzmán UESB/CAPES POLÍTICAS PÚBLICAS DE ALFABETIZAÇÃO DE PESSOAS JOVENS E ADULTAS NO BRASIL: REFLEXÕES ............................................................................... 327 Oney Cardoso Badaró Alves da Silva; Sheila Cristina Furtado Sales PPGED/UESB

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FORMAÇÃO INTEGRAL DO PROFESSOR: O CASO DOS PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS................................................................................................................ 338 Tatiana Cristina dos Santos de Araújo; Ana Gregória de Lira; Rodrigo Nicéas Carneiro Leão UFPE CONTRIBUIÇÕES DA INTUIÇÃO BERGSONIANA PARA O CAMPO EDUCACIONAL: O CASO DAS CONVICÇÕES PEDAGÓGICAS .................................. 352 Tatiana Cristina dos Santos de Araújo; Ana Gregória de Lira; Rodrigo Nicéas Carneiro Leão UFPE OS CICLOS EM VITÓRIA DA CONQUISTA: PEDAGOGIA DAS COMPETÊNCIAS E TRABALHO DOCENTE .................................................................... 368 Vanessa Cristina Fernandes; Cláudio Pinto Nunes PPGED/UESB

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A TIRNANIA DA AUTORIDADE ANTROPOCÊNTRICA DO HOMEM MODERNO SOBRE O MUNDO NATURAL1

Adelson Ferreira da Silva2 UFBA

Resumo: O presente artigo analisa alguns dos fundamentos filosóficos da crise ecológica, a partir do conceito de hybris, procurando mostrar o seu alcance como uma categoria analítica importante para pensar a desmesura como a virtude assumida na era moderna. Discute algumas das implicações do antropocentrismo moderno fundado na máxima de que “o homem é a medida de todas as coisas” e as consequências desta visão de mundo na relação do homem com a natureza, com o ideal de humanidade e com o próprio homem. A coisificação da natureza pelo homem, lançando mão dos equipamentos técnico-científicos para sua manipulação, exploração e controle. A necessária reforma do pensamento ético-utilitarista que subjuga a natureza à condição de objeto. Palavras-chave: Autoridade antropocêntrica. Hybris. Crise ecológica.

1. A máxima do pensamento moderno

A nossa reflexão se propõe a analisar uma questão paradoxal que envolve a relação ser

humano/natureza e alguns dos fundamentos da crise ecológica do nosso tempo. A questão é:

Como é possível um ser dependente da natureza controlar e subjugá-la de tal forma, a ponto

de colocar em perigo de extinção a própria espécie humana? O que, ou quem lhe confere tal

autoridade? A máxima de que “o homem é a medida de todas as coisas3”, seriamente adotada

pela moderna concepção de homem e que, fundamentalmente, culmina no antropocentrismo4,

1 Artigo resultante de estudos realizados no âmbito do Programa de pós-graduação em filosofia da Universidade

Federal da Bahia – UFBA – no Mestrado em filosofia (2015.1). Submetido ao VII Encontro de Filosofia da Educação Norte e Nordeste, sediado pelo Programa de Pós-graduação em educação da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB em agosto de 2015.

2 Professor auxiliar da Universidade do Estado da Bahia, Campus XII – Guanambi, licenciado em pedagogia pela UNEB e em filosofia pela UESC, especialista em Epistemologia e fenomenologia (UESC), Mestrando em filosofia pela Universidade Federal da Bahia – UFBA.

3 Esta máxima foi pronunciada por Protágoras, filósofo grego nascido em Abdera no (século V. a. C.). É um dos filósofos sofistas preocupado não com as cosmogonias e o sistemas, mas com a introdução de certo “humanismo” na filosofia. De sua obra ficou apenas uma frase: “o homem é medida de todas as coisas, do ser daquilo que é, do não-ser daquilo que não é”. Quer dizer: todo conhecimento depende do indivíduo que conhece (JAPIASSÚ; MARCONDES, Dicionário básico de filosofia, 2008, p. 228).

4 Do grego anthoropos: homem, e do lat. Centrum: centro). Concepção que situa e explica o homem como o centro do universo e, ao mesmo tempo, como o fim segundo o qual tudo o mais deve estar ordenado e a ele subordinado: “O homem é a medida de todas as coisas” (JAPIASSÚ; MARCONDES, Dicionário de filosofia, 2008, p. 13).

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vigente, parece ser, a primeira manifestação da hybris5moderna;isto é, a desmesura fundante

da modernidade. Desta visão de mundo decorrem outros excessos praticados na relação do

homem com o próprio homem e com a natureza, que culmina na crise ecológica sem

precedentes na história da humanidade. Trata-se de uma crise cujos fundamentos encontram-

se edificados nesta visão de mundo simplificadora do real, que procura explicar o mundo a

partir das premissas de um modelo civilizatório que confere ao homem uma posição de

centralidade no cosmos. O século das luzes é o locus principal desta aventura onde, por

consequência, as relações foram reduzidas aos contornos do poder em todas as suas

dimensões: éticas, política, estética, cultural e econômica.Como se sabe, toda forma de

reducionismo é sempre um excesso, um ponto de vista que procura explicar um fenômeno

apenas no seu aspecto observável e factual, desconsiderando a complexidade inerente à

totalidade e aos modos de apresentação dos fenômenos.

A natureza foi reduzida à realidade do mundo material. Suas leis foram submetidas às

leis do mercado, isto é, às regras que, de acordo com os modelos econômicos vigentes

regulam custos, investimento, oferta e procura, etc., cuja relação com a natureza é

determinada em função do capital financeiro. Assim, como é próprio do homem moderno, se

estabelece outra dicotomia: leis da natureza/leis de mercado. Seguido uma lógica dicotômica,

o homem constrói uma relação de oposição que separa como elementos contrários: a natureza

e a cultura. Tal contradição tem resultado em desarmonia na convivência homem/natureza,

visto que, na medida em que o homem impõe a si mesmo a posição de centralidade, por

extensão, impõe também à natureza uma passividade que não corresponde à essência da

mesma.

5 De acordo com Unger (1992, p. 22) “os gregos denominavam hybris, tendência a desobedecer às grandes leis

da natureza, a transgredir, a querer ocupar todos os lugares, a querer pela ganância, pelo desejo desmesurado, provocar uma disrupção na ordem natural do universo. Tradicionalmente, essa tendência à exacerbação foi limitada pela convicção de que o transcendente operava no cosmos, ou seja, o homem de alguma forma, controlava sua hybris porque ele estava perante algo maior que ele. Quando esse ‘algo’ maior, esse horizonte de transcendência, é vivido simultaneamente como natureza e mistério, como natureza e sagrado, como natureza e Deus, a natureza é reconhecida como epifania, lugar de revelação de um mistério irredutível. Assim, esse senso do mistério, esse sentimento de reverência diante de um horizonte de transcendência, de alguma forma limitou a tendência à hybris” (UNGER, 1992, p. 22).

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A essência da natureza é movimento, autotransformação. A desarmonia é fruto do

excesso, do controle, da visão unicamente mecanicista do mundo, por parte, sobretudo, dos

que detém o controle do poder político, econômico e tecnológico. Ter uma visão mecanicista

do mundo significa pensar, sentir e agir conforme o ditames da chamada era mecânica. Tal

fenômeno corresponde, “a esta força de instauração e promoção do instrumentalismo que são

os caracteres marcantes da instância de triunfo e dominação da máquina, que decidem pelo

modo de ser em concreto da estrutura de infinito remetimento para fora e para além” (FOGEL,

1998, p. 96). Trata-se de um incessante projetar-se para o mundo exterior, para uma

perspectiva de homem além dele mesmo, uma espécie de tentativa de superar a finitude6.

Assim, a crise ecológico tem sua motivação nesta imagem de mundo, neste ideal de

homem e de sociedade, assumido pela modernidade e toda a sua ciência7. Embora, devemos

reconhecer, a modernidade não se resume à autoproclamação do homem como centro do

universo e senhor da natureza, mas devemos, por outro lado, ressaltar que esta que lhe parece

ser a maior conquista é também o seu maior excesso. Como sabemos, o equilíbrio dos

ecossistemas naturais, em si mesmo, não depende de demandas e regras econômicas como:

preço, lucro, oferta, procura e produção. Depende, fundamentalmente, do equilíbrio da

atividade humana e do seu modo de valorar o mundo natural, ou seja, considerar que,

cada cultura organiza o seu modo de valorar, de interpretar e de intervir na natureza, no habitat, na história. [...]. Por isso cabe, a princípio, renunciar a qualquer pretensão monopolística acerca da autocompreensão que elaboramos e do uso da razão que fizemos e estamos fazendo (BOFF, 2009, p. 135).

6 “Quando o homem recusa sua própria finitude, aliena-se daquilo que constituiu a sua humanidade e tenta

dissimular o ‘sendo’ que ele realmente é; em seu lugar, deve reinar o sujeito. A este mesmo empenho corresponde a negação do real em seu caráter fundamental de realização, em seu mistério irredutível” (UNGER, 2001, p. 39).

7 “Nossa ciência moderna começo por negar a legitimidade de outras formas de diálogo com a natureza e o senso comum, o saber ancestral dos povos originários, a magia e alquimia. Chegou até a negar a própria natureza ao desconhecer-lhe a complexidade por supor que ela seria uma mera máquina, regida por um pequeno número de leis simples e imutáveis (Newton e também Einstein)” (BOFF, 2009, p. 135).

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Nossa relação com a natureza é resultado de nossa cultura. Se optamos por absolutizar

a razão instrumental, associando-a ao poder econômico e político, cabe a nós suportar os

resultados de tal decisão e reconhecer os limites de seu progresso para a humanidade;

reconhecer a necessidade de se buscar outras alternativas civilizatórias, dentro da própria crise

que se apresenta, e fazer emergir do seu íntimo uma decisão pela vida. Isso implica a

estruturação de uma nova ética8, de uma nova moralidade na relação do homem com a

natureza e com o outro homem. Superar a posição do “homem lobo do homem” que se

concretizou na modernidade, como um dos lados obscuros do individualismo reinante, que fez

produzir e reproduzir tiranias, autoritarismos: político, econômicos, sociais e epistemológicos,

dominando toda a ambiência da vida humana no mundo. Assim, se o homem produziu essa

cultura hegemônica, ele pode superá-la e escolher herdar os louros de suas conquistas, mas

apenas aqueles que nos liberta de toda forma de opressão e promova a autonomia consciente

da humanidade, o cuidado com a terra, o uso das modernas tecnologias e o vultoso capital

financeiro que a humanidade produziu para recompor a harmonia dos cosmos.

1.1 A coisificação da natureza

O que significa a coisificação da natureza? Analisaremos esta questão a partir do

ensaio de Heidegger sobre a coisa. A natureza tornou-se, ao mesmo tempo, matéria-prima e

receptáculo dos resíduos da produção material do homem. A natureza foi coisificada porque

subsiste apenas como algo próximo do homem para atender às suas demandas puramente

materiais e utilitaristas. Neste sentido, a situação da natureza não difere da jarra da qual

Heidegger se refere em seu ensaio sobre a coisa, a saber,

8 Essa nova ética deve propor como prática humana o cuidado e a responsabilidade com planeta. Leonardo Boff

chama de “Ética ecológica”. Ela se faz urgente, pois “a ética da sociedade dominante hoje é utilitarista e antropocêntrica. Considera que o conjunto dos seres está a serviço do ser humano, que pode dispor deles como quiser, atendendo a seus desejos e preferências. Acredita que o ser humano é a coroa do processo evolutivo e o centro do universo, o que notoriamente representa uma arrogância, além de uma ilusão. Somos um elo da cadeia dos seres, embora com a singularidade de sermos seres éticos” (BOFF, 2009, p. 124-125).

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coisa é uma jarra. Uma jarra é um receptáculo que recebe algo dentro de si, um recipiente. [...] como receptáculo, a jarra subsiste em si por si mesma. O ser e estar em si mesma caracteriza a jarra, como algo subsistente. Subsistência de uma subsistente, a jarra se distingue de um objeto, isto é, de algo que subsiste por opor-se e contrapor-se a um sujeito. [...] a jarra, na verdade, só continua como receptáculo à medida que foi conduzida a ser e estar em si mesma. [...] O oleiro molda a jarra com argila escolhida especificamente da terra e preparada para a moldagem. A jarra é feita de argila. Com a argila de que é feita, a jarra pode pousar no chão da terra, seja diretamente, seja indiretamente, sobre uma mesa ou um banco. A pro-dução faz a jarra subsistir em si. Tomando, assim, a jarra, como um receptáculo pro-duzido, nós a tomamos, na verdade, como uma coisa, e não, como simples objeto, ao menos é o que parece (HEIDEGGER, 2001, p. 144-145).

Diferente da jarra, a natureza não foi produzida para ser coisa. Ela subsiste antes do

homem como um ser vivo, como um ser que acolhe a vida, oferecendo as condições materiais

para a sua produção. A natureza subsiste como um ser que guarda e acolhe a vida biológico e

ontologicamente. Isso a difere de um receptáculo. No recipiente da jarra pode-se colocar

líquidos variados, no “recipiente” da natureza pode-se receber e gerar a vida. A natureza

também oferece a matéria-prima da jarra. Assim, a jarra é um objeto de produção de uma

causa eficiente – o oleiro. Mas o oleiro que produz a jarra jamais produzirá a matéria-prima da

jarra. Como objeto, a jarra é, ao mesmo tempo, receptáculo e recipiente, pois guarda em si

mesma, a sua essência de receptáculo e sua finalidade utilitária de recipiente para um uso

específico. Assim, “o ser coisa da jarra está em ela ser uma receptáculo” (HEIDEGGER,

2001, p. 146). Ou seja, um receptáculo é um objeto matemático feito para conter ou guardar

algo, um objeto vazio que pode ser preenchido com algum conteúdo.

Mas em que consiste o ser coisa da natureza? Desse ponto de vista, o ser coisa da

natureza está em ela ser condição necessária para todo e qualquer objeto fabricado. Sem a

natureza não existiria a jarra como objeto; nem, por outro lado, se poderia pensar a

possibilidade concreta da essência receptáculo. Por esse raciocínio pretende-se mostrar que,

conceber a natureza como coisa, ou como objeto na mesma categoria da jarra, é um

contrassenso. Como objeto, a natureza somente pode ser pensada em contraposição ao sujeito,

isto é, na relação sujeito/objeto – que constitui a essência do conhecimento. Ela pode ser

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conhecida em sua causalidade de modo redutível numa relação do todo e suas partes,

mecanicamente. Neste sentido a natureza se apresenta como objeto cognoscível. Mas isso é

apenas um aspecto de sua disponibilidade9, o que não representa totalidade de um sistema

complexo como o mundo natural. A coisificação e a objetivação são formas de reducionismos

que culminaram na exploração da natureza apenas como matéria-prima.

O modo de ser próprio da natureza é ser produtora da vida. A sua coisificação se dá

quando o homem se apropria dela, baseando-se nos parâmetros e nos desejos humanos de

poder e dominação, afetando a vitalidade e a subsistência da terra. A natureza não é objeto de

produção de um produtor tal, especializado em fabricar o mundo natural e seus objetos para

fins utilitaristas. A jarra da qual Heidegger se refere é introduzida no mundo dos objetos com

o seu perfil de jarra objetivamente delineado. Sua vigência espacial e temporal depende do

homem, do uso que ele faz deste receptáculo jarra e do cuidado dispensado à mesma jarra. Só

que a extinção da jarra ou a sua substituição por outro receptáculo é possível sem que a

essência “receptáculo” deixe de existir como um conceito, uma figura abstrata.

Com a natureza as implicações são dramáticas. Ela não pode ser substituída por outra

coisa. Não há algo que, no seu lugar, possa acolher e produzir a vida. A coisificação da

natureza implica a coisificação do humano. Assim, a coisificação do mundo é uma das formas

de tiranização do real10 empreendida como um modo de suportar a provisoriedade da vida

humana. O homem moderno não suporta a finitude. Essa condição humana provoca as mais

devastadoras angústias, uma vida fundada em valores axiológicos artificializados e contrários

à natureza humana. Mas de onde vem isso? Porque o homem moderno foi impelido a 9 Disponibilidade aqui é tomada no sentido atribuído por Heidegger (2001, p. 20-21), a saber: “a palavra dis-

ponibilidade se faz agora o nome de uma categoria. Designa nada mais nada menos do que o modo em que vige e vigora tudo que o desencobrimento explorador atingiu. No sentido da dis-ponibilidade, o que é já não está para nós em frente e defronte, como um objeto”.

10 “A tiranização do real se funda em uma compreensão distorcida daquilo que significa ser um humano: nossos hábitos civilizacionais nos acostumaram a nos pensar como ego-sujeitos que são a medida de todas as coisas, roubando-nos a memória daquilo que constitui nossa verdadeira humanidade. A palavra “humano” guarda relação com húmus, terra. O que esquecemos, em nosso empenho de tiranizar o real, é que não somos “sujeitos” e sim “sendos”, parte integrante de um real em constante mutação. Assumir nossa humanidade é afirmar nossa amizade co-operária com o próprio ritmo da vida: seus riscos, suas perdas, sua provisoriedade” (UNGER, 1991, p. 47).

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comportar-se desta forma suicida? Como algo tão lógico como o raciocino instrumentalista

pode cair na tentação de coisificar a natureza? Qual é a motivação desta postura desmedida?

A natureza não é uma coisa porque não se enquadra no perfil da categoria de objetos

que possuem propriedade de coisa. Neste sentido, a coisificação é um arbítrio motivado não

por interesses de fundo epistemológico, por exemplo, mas por um arbítrio, fundado

unilateralmente em perspectivas ideológicas e interesses dominantes de controle e exploração

racional, motivadas por decisões e escolhas irracionais. Irracionais no sentido de que

produzem resultados nocivos à existência humana.

A relação homem/natureza os faz próximos quando, resguarda, na distância ontológica

entre ambos, os limites que os permitem ser o que estão sendo. O homem moderno insiste

numa individualidade separada da natureza. À medida que a natureza deixa de ser o que está

sendo, o homem, do mesmo modo, deixa de ser o que é. Deixa de ser porque é ele que propõe

esta aventura audaciosa; é o homem que supervaloriza superar todos os limites. Ao fazer isso

ele viola o fundamento da liberdade: o respeito ao ser do outro. O ser do homem não é algo

acidental e indeterminado. Pelo contrário, “o ser do homem se determina pela vida, seu viver

e suas vivências. É da e pela vida que os mortais devem, então, vir a ser mortais”

(HEIDEGGER, 2001, p. 156). Em outros termos, a finitude, que inclui vida e morte, é a

determinação do ser do homem, a qual todos temos consciência desta verdade inexorável.

O antropocentrismo não fez do homem um super-homem; nem por outro lado o

separou da natureza. Pelo contrário, o fez um ser ainda mais dependente, na medida em que o

seu poder voraz sempre empenhado em mais e mais conquistas, implica em maior consumo

dos recursos naturais. Toda forma de exploração tem como contrapartida alguma

dependência, e as ressonâncias sobre o explorador são inevitáveis. As crise ecológica que

vivemos é uma prova deste excesso. É o reflexo de um cosmos pretensamente submetido à

centralidade humana, por decisão do próprio homem. A crise ecológica é resultado desta visão

unilateral do mundo, onde uma parte da unidade – o ser humano – se arroga no direito de ser

o centro em torno de que se deve gravitar todas as outras partes do todo. Ou seja, exceto o

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homem, por essa visão, tudo o mais é periférico e possui uma função menor na humanidade,

uma função de coisa e objeto, ao mesmo tempo, respectivamente, disponível e útil.

O antropocentrismo cria uma imagem geométrica do mundo, onde o homem é ponto

central e equidistante de todos os pontos do Cosmos. Separa o homem da ordem do cosmos e

dá a este o poder de governar, de ordenar, de controlar aquilo que já tem a sua própria ordem

sob a qual também o homem dever submeter-se para a harmonia dos sistema. Separar-se da

natureza significa se destacar, como parte, do sustentáculo da vida. A natureza é suporte vital

não somente para o ser humano, mas para todos os outros seres vivos. A visão

antropocêntrica, por princípio, desconsidera a natureza como parâmetro para a continuidade

da espécie humana. A exploração excessiva do mundo físico para fins comerciais, como

sustentáculo do poder econômico-financeiro ameaça as potencialidades da Terra11 como

sustentáculo da vida; ameaça o vigor da humanidade já fragilizada pela tirania do homem

sobre o homem. Superar essa visão de mundo12 implica conhecer o sentido deste paradigma e

assumir uma posição revolucionária, radical, forjar uma nova consciência para a humanidade

capaz de superar a vigência desta tiranização do real, fundada, em grande medida nos

mecanismos de um explicação particularizada do mundo que desconsidera a unidade do todo

e suas partes. Trata-se das explicações meramente dedutivas que ignora o sentido das

correlações entre sujeito, conhecimento, mundo, mercado, Deus, natureza, humanidade etc.

Tudo isso compõe a complexidade ontológica do mundo e não pode ser explicado

mecanicamente, numa simples decomposição e composição do todos e suas partes como no

método cartesiano.

11 Segundo Boff (2009, p. 183) “a situação da Terra é cheia de paradoxos: por um lado, verifica-se em todas as

partes mobilizações para poupar a Terra e introduzir relações mais benevolentes para com ela, por outro, continua a agressão feroz daqueles que ainda imaginam que seus recursos são inesgotáveis e ela esteja completamente sã”.

12 “Entendemos ‘visão de mundo’ como a trama de representações, conceitos e valores por cuja mediação os homens tecem sua inserção na vida. E é exatamente esta tessitura, [...] que nos dias de hoje, em todos os países e em cada lugar, está como que esgarçada” (UNGER,1991, p. 53).

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A crise ecológica vigente no mundo atual com raízes profundas na “era moderna”

pode significar, inexoravelmente, o fim de uma era13 e a instauração de outra, isto é, o

ingresso em outro ciclo de desenvolvimento humano e cosmológico, diferente deste modelo

que culminou na ameaça de destruição total da natureza. Ciclo este que, ainda desconhecido

em seus princípios e fundamentos, ainda encoberto, não desvelado em sua originalidade, mas

que parece se apresentar, misteriosamente, nas entranhas da própria crise ecológica como o

seu contrário. Os sentidos deste novo ciclo já pode ser sentido na intimidade do coração

humano, temeroso da sofreguidão imposta pela angústia, pela violência e pela ambição

amparada no poder bélico-militar, econômico e político que tem dado a ordem para esta

lógica da dominação exercida com os artefatos da técnica, a serviço da tirania global da

autoridade antropocêntrica.

Para dominar a natureza o homem lançou mão da técnica. Sem a técnica não seria

possível superar os limites impostos pela natureza. A técnica, com todos os seus artefatos e

instrumentos, rompe as barreiras naturais e extrai da terra todos os recursos necessários à

produção dos instrumentos da própria técnica. É da natureza que sai a energia, o ferro, o aço,

a pedra, isto é, a matéria para a construção dos equipamentos da própria técnica.Nos referimos

à técnica moderna14. A técnica auxilia o homem na exploração e controle, partindo do

princípio de sua disponibilidade para o homem. O uso da técnica com fins exploratórios na

natureza depende de que a mesma esteja sempre disponível, aberta à manipulação, à sangria,

ao uso. Estando disponível se está também desobstruída a qualquer intervenção. Mas esse 13 Uma nova era se anuncia com o fim da era moderna, trata-se de uma era que já tem nome: era no ética, de acordo

com o pensador contemporâneo Marc Halévy. Segundo ele, “meio milênio de modernidade está se encerrando. Ele se desenvolveu com base em valores fundamentais: humanismo, materialismo, estatismo, racionalismo, cientificismo, progressismo, hedonismo, individualismo etc. Desembocou primeiro em Verdun em Ypres, depois em Auschwitz, em Hiroshima, no gulag e na Praça da Paz Celestial. Pulsa ainda em Bagdá, enquanto não se desloca para outros lugares. Na era no ética, em vez de permanecer confortavelmente fechada em sua sociosfera, pilhando o mundo para satisfazer seus caprichos e contemplar o próprio umbigo, a humanidade inteira faz explodir essa clausura antropocêntrica e torna-se a ponte entre a biosfera (a vida em sentido amplo) e a noosfera (o pensamento e o espírito, também em sentido amplo)” (HALÉVY, 2010, p. 9, 21).

14 “A técnica não é, portanto, um simples meio. A técnica é uma forma de desencobrimento. O desencobrimento que rege a técnica moderna é uma exploração que impõe à natureza a pretensão de fornecer energia capaz de, como tal, ser beneficiada e armazenada”. Isso difere do antigo moinho de vento pois, “suas alas giram ao vento e são diretamente confiadas a seu sopro, o moinho não extrai energia das correntes de ar para armazená-la” (HEIDEGGER, 2001, p. 17, 18, 19).

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estado de disponibilidade pode - se explorado fora dos limites do disponível - findar-se, secar

a fonte. A crise ecológica do nosso tempo se deve, em grande medida, a uma disponibilidade

imposta pelo próprio homem ao mundo natural; uma disponibilidade que exclui o potencial da

natureza enquanto o disponível e necessário à vida. Ou seja, para explorar os recursos naturais

o homem tiranizou o real, isto é, usurpou, apoderando-se violentamente, inclusive daquilo

que não lhe pertence por direito, saber: decidir, a partir de si mesmo, o que, como, porque,

quando e com que finalidade fazer com a natureza sem tomá-la como parâmetro.

Mas o que significa a natureza como parâmetro? Significa relacionar-se com o mundo

natural segundo as suas leis, seus ciclos vitais, seus mistérios, a vigência do seu tempo

próprio, de seu espaço próprio, de sua fecundidade, de sua fertilidade própria; ou seja, não

submeter as leis naturais às leis de mercado com suas demandas de oferta e procura. Significa

se relacionar tendo como limite o equilíbrio e o ritmo de produção da vida inerente à natureza;

significa se relacionar com a natureza, respeitando a sua essência de ser o que é e, ao mesmo

tempo, de estar sendo; de produzir o desconhecido, de desvelar o real, de desencobrir o que

está disponível para o homem. Tudo isso é contrário à cadência do coração-máquina15

pulsante no homem moderno, fúnebre e sombrio. A natureza é submetida à racionalização

técnico-científica “que aparece hoje como cibernética, informática e computação” (FOGEL,

1998, p. 113). É o triunfo da maquinaria.

A natureza é algo disponível na medida em que, sua disponibilidade assegura a

possibilidade da vida da humanidade. Neste sentido ela não é um objeto. Ela não foi

construída pelo homem com o artificio de alguma técnica misteriosa. A natureza pertence e,

ao mesmo tempo é o próprio mundo da vida – anterior a qualquer objetivação científica ou

reflexão filosófica. A natureza é esteio de si mesma, é o seu próprio abrigo; produz para si

mesma. Daí a sua disponibilidade de abrigar o homem, daí o dever do homem de cuidar do

15 “Ter um coração-máquina significa ter a máquina como pulso, como ritmo, como cadência da vida. Entrando a

máquina como cadência da vida, começa esta a ser marcada pela dominação da atitude que revela máquina e aa determina: o apoderamento e o controle da natureza. Assim, sob a cadência da máquina, vida realiza-se exclusivamente sob ou desde a ótica do apoderamento e do controle. Um coração-máquina é um coração dominado – dominado pela dominação do apoderamento e do controle. É então, um coração dominado pelo triunfo da máquina” (FOGEL, 1998, p. 94-95).

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abrigo. Mas que homem é este que, ao desvelar, des-encobrir o ambiente que lhe acolhe,

também, o destrói? Esse é o homem do coração-máquina do qual Fogel se refere.

Ser disponível não significa ser objeto. Heidegger (2001, p. 21) explica que “no

sentido da dis-ponibilidade, o que é já não está para nós em frente e defronte, como um

objeto”. Desse ponto de vista, a natureza não é objeto porque ela é o que é independente de

nossa presença. O seu ser não carece de uma representação metafísica para existir. Agora

sabemos que, se não existisse o homem concreto, ainda assim, a natureza permaneceria em

seu ciclo vital, independente de nossa interferência. Sabemos isso porque temos consciência

do tempo e do espaço e da nossa finitude. A natureza foi posta em disponibilidade em seu ser

para fazer fluir o fluxo da vida em seu movimento incessante. Ela não foi posta pelo homem

assim como o avião foi disposto para assegurar a possibilidade do transporte e garantia da

viagem. A natureza foi/estar disposta para assegurar a possibilidade da vida e a garantia de

sua permanência. Uma das condições para ser objeto é ser algo fabricado como (equipamento

ou artefato) para atender a uma demanda específica do homem, como se vê no exemplo do

avião comercial exposto por Heidegger (2001, p. 21) no ensaio sobre a técnica. Ele adverte,

mas o avião comercial, dis-posto na pista de decolagem, é fora de qualquer dúvida um objeto. Com certeza. É possível representar assim essa máquina voadora. Mas, com isso, encobre-se, justamente, o que ela é a maneira em que ela é o que é. Pois, na pista de decolagem, o avião se des-encobre como disponibilidade à medida que está dis-posto a assegurar a possibilidade de transporte. Para isto tem de estar dis-ponível, isto é, pronto para decolar, em toda a sua constituição e em cada uma de suas partes constituintes.

O estar disponível do avião depende de certas condições climáticas que permitirá a

segurança do voo. De pessoas que estejam dispostas a voar e de outras que possam pagar pelo

serviço. Das condições da pista, de manutenção, de profissionais habilitados que possam,

minimamente, garantir uma sensação de segurança do voo. E, principalmente, que a natureza

esteja dis-ponível, colaborando para que os seus fenômenos e suas intempéries não inviabilize

a realização do voo. Como se vê, a dis-ponibilidade da natureza difere da dis-ponibilidade do

avião. Neste caso, o avião somente estará disponível se houver, da parte da natureza, dis-

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ponibilidade; porém, o oposto não e verdadeiro. Da disponibilidade da natureza depende,

necessariamente, a disponibilidade dos objetos humanos. Ser naturalmente dis-ponível em

nada corresponde a estar artificialmente disponível. Em sua dis-ponibiliade a natureza desafia

o homem a fazer objetos, gerar harmonia, controlar os excessos, equilibrar a vida, consumir o

necessário, preservar a vida do planeta.

A natureza não se enquadra na categoria de objeto aqui mencionado. O homem não

conhece os mistérios da natureza, não pode desmontá-la como, mecanicamente, se faz com

um relógio e montá-la novamente. Isso mostra que o mundo não pode ser reduzido a uma

visão mecânica. O mecanicismo é apenas um aspecto do pensamento da realidade material,

não representa sua totalidade; aliás, é a ínfima parte do real, pois o sentido das correlações dos

fenômenos não é um sistema simples apropriado para a operacionalidade do mecanicismo. As

operações lógico-dedutivas que funcionam muito bem a partir das conexões lógicas dos

sistemas simples – sistemas mecânicos – engessam, se aplicados à totalidade dos sistemas

complexos como os ecossistemas naturais. A força motriz de um objeto mecânico, como um

avião, por exemplo, é que há de mais evidente. Tudo pode ser planejado a partir desta força.

Com a natureza, esta evidência, em si mesma, não existe. A força motriz da natureza não está

no controle do homem, os seus fenômenos ocorrerão inexoravelmente.

Assim, não há prova lógica nem ontológica que justifique a tirania do homem sobre a

natureza. Também, não há prova que nos possa permitir, ao menos supor, com alguma razão,

uma possível precedência temporal do homem sobre a terra. Então, o que legitimaria a auto-

proclamação antropocêntrica de que o “o homem é a medida de todas as coisas”? Não teria a

natureza, enquanto dis-ponibilidade para a vida, como sustentáculo da existência do homem e

dos outros seres vivos, a primazia de ser “a medida de todas as coisas”? A crise ecológica do

nosso tempo sinaliza a crise do modelo civilizatório16 vigente – o antropocentrismo – que

16 A crise do modelo civilizatório vigente pode ser compreendida a partir dos argumentos de que o projeto

moderno assumiu a hybris como virtude. “A grande diferença civilizacional é que enquanto outras sociedades fizeram do eixo de sua cultura a elaboração de técnicas para controlar essa tendência à desmesura, a nossa fez da hybris a sua virtude máxima. O projeto de dominação e controle de tudo o que existe, a ruptura da dimensão cosmopolita do homem, a busca de mais e mais poder sobre a natureza, sobe tudo e todos, o antropocentrismo, formam o eixo em torno do qual, enquanto civilização, gravitamos” (UNGER, 2000, p. 40).

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mostra a sua estagnação e falência, cujo fundamento é o homem e seus excessos. Precisamos

suportar com prudência esse estado do mundo e buscar o novo no próprio mundo.

2. A contribuição da ciência moderna no projeto de dominação da natureza

Qual o papel da ciência moderna17 no projeto de dominação da natureza? A

exploração, domínio e controle da natureza não poderia concretizar-se sem a participação

efetiva da ciência moderna com o seu arsenal teórico-metodológico, fundado em bases

matemáticas (método dedutivo) e no empirismo objetivista (método indutivo). Neste sentido,

Bicca (1997, p. 215) argumenta que,

esse projeto de dominar a natureza vincula-se intimamente a aspectos como a matematização do saber, o conceito de construção do objeto pelo sujeito observador, o cálculo exato que interpela a natureza segundo instruções precisas de expectativas acerca de um determinado rendimento, de imperativos de produtividade.

Como sabemos, a ciência não tem fim em si mesma, ela é uma criação do homem e,

portanto, está a serviço do homem. Nesta condição de meio ela é usada como instrumental

necessário para a investigação do mundo natural, a fim de conhecê-lo, desvendar os mistérios,

desmitificar visões, projetar ações de intervenção e, principalmente, planejar processos

produtivos a partir de expectativas econômicas. Tudo isso em vistas dos interesses unilaterais

da autoridade antropocêntrica. Porém, para concretizar os seus desejos de poder não é

suficiente ao homem apenas o domínio da natureza, há de se dominar também o próprio

homem, visto que, nenhum poder é possível de ser exercido por um, sem o consentimento de

outrem, seja por vontade própria ou por determinação superior mediante autoridade, violência

17 A ciência moderna nasce sob a égide do lema de Bacon: “saber é poder” – lema diretamente voltado para um

projeto de dominação da natureza, seja da natureza “fora de nós” ou ao nosso redor, seja, como veremos, da natureza “em nós” (como contenção das paixões, dos sentimentos, dos desejos e como afastamento das “ilusões dos sentidos”). O próprio uso exato da razão não é, portanto, um fim em si mesmo, e sim igualmente um meio de acesso ao que rege os fenômenos naturais, condição fundamental de possibilidade para sua exploração (BICCA, 1997, p. 214).

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simbólica ou física. Não é curioso o fato de que sempre fomos e ainda somos impelidos a nos

proteger da natureza e dos seus fenômenos às vezes devastadores (vulcões, terremotos,

maremotos, tufões, chuvas, sol, calor etc.) e de repente, nos colocamos como senhores e

dominadores, de modo que a natureza é que precisa proteger-se de nós, seus algozes e

devastadores? Não é estranho que a natureza com toda a sua força e exuberância passa a ser,

ante aos humanos, um ente desprotegido que carece de nossos cuidados?

Da mesma forma que, em algum momento de sua existência, o homem decidiu para o

seu proveito explorar a natureza a ponto de comprometer os ecossistemas que tornam a vida

na Terra possível, ele pode decidir, também para proveito de sua própria conservação da vida

e sobrevivência no planeta Terra, equilibrar a sua relação com a natureza, controlando os

excessos no uso dos seus recursos. Isso significa que, de uma ou de outra forma, o homem age

sempre em vistas de seus próprios interesses ou, numa atitude superior, em vistas da

preservação da humanidade. A natureza é o seu alvo indireto de proteção, pois protege-se a

natureza para conservar a vida do homem, e não por gratuidade à própria natureza. O que nos

permite dizer que, por esta lógica, o homem permanece no centro do cosmos, reafirmando

cada vez mais a sua posição antropocêntrica.

3. A reforma do pensamento ético-utilitarista

Como sabemos, o pensamento utilitarista18 cultivado pelo homem nos tempos atuais

necessita de uma urgente reforma. Este modo de pensar voltado sempre para a produção das

coisas em benefício exclusivo dos indivíduos, essencialmente fundando no princípio de que

para ser bom tudo tem que ser útil ao homem, produz, por outro lado, não somente as coisas,

mas também uma visão de mundo que supervaloriza o uso, a utilidade, o prazer ainda que tal

18 Segundo Pergoraro (2006, p. 13) “a ética utilitarista é a mais antiga ética objetiva. Surgiu no século XVIII

justamente como reação à ética do bem abstrato, da felicidade metafísica ou religiosa. O utilitarismo quer ser uma ciência humana que dirige a produção das coisas úteis em benefício do maior número de indivíduos. Visa, portanto, a construção de uma ética puramente objetiva, científica; seu princípio básico é produzir o maior bem-estar possível para o maior número de pessoas; tudo o que beneficia as pessoas é ético e tudo que as prejudica é a-ético”.

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atitude possa gerar prejuízos à natureza. Tudo isso se configura na “vigência da máquina”

onde predomina a instrumentalidade sempre produzindo efeitos de dentro para fora do ser,

materializando os desejos, os excessos, as conquistas e o poder do homem na forma de

produtos destinado ao consumo humano.

Mas essas demandas não se restringem apenas ao potencial consumidor da pessoa

humana, elas tornam, por mais absurdo que se possa parecer, a natureza em potencial

consumidora. Como isso é possível? Notadamente, pelo desequilíbrio decorrente da

contaminação por substâncias tóxicas lançadas nos ecossistemas. Para controlar as doenças

resultantes de tal ação, são elaborados os tipos de agrotóxicos mais variados (defensivos

agrícolas, pesticidas, praguicidas, desinfectantes, biocidas, agroquímico etc.) com a finalidade

de controlar doenças e aumentar a produtividade. Isso significar que o domínio da natureza, a

degradação ambiental, oportunamente, se torna também nicho de mercado, pois se ganha

dinheiro destruindo e também reconstruindo. O fundamento da crise ecológica possui um

componente ético inegável, na medida em que, o homem assume como norma a superação de

todo e qualquer limite e o enfrentamento do mais insuperável, a finitude. Ao analisar alguns

modelos ético-ocidentais, Pergoraro (2006, p. 14) argumenta que:

a ética ocidental, ao longo de milênios criou paradigmas éticos entre os quais destacam-se o metafísico-teológico na idade antiga e medieval, o racionalista na idade moderna e o construtivista na época contemporânea. Os antigos colocavam a dignidade humana na racionalidade ou na santidade; os modernos na liberdade e autonomia e os contemporâneos nos direitos humanos e na qualidade moral das outras formas de vida e do meio ambiente.

A relação do homem moderno com a natureza se baseia no esquema posse/domínio. O

desejo de propriedade da natureza como um bem privado se expressa na vontade de posse.

Com isso, o homem estabelece com a natureza uma relação que prevalece sempre a vontade

do possuidor, trata-se de conceber a natureza a partir da relação pessoa e coisa. A natureza é

apenas uma coisa, uma fonte de produção, um objeto circunscrito nos contornos de uma visão

utilitarista do mundo. A vontade do possuidor é, cada vez mais, estender os seus domínios,

exteriorizando assim, o direito de propriedade sobre aquilo que foi produzido com a

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exploração dos recursos naturais. Assim, a hybris do homem moderno caracteriza-se,

fundamentalmente, pela afirmação desmedida da autoridade sobre o outro homem a fim de

subjugá-lo e, por outro lado, pela ampliação da propriedade das coisas materiais que lhe

garante capital financeiro e poder de barganha no mercado e nos negócios públicos e

privados. Na base de todo esse desejo de poder se assentam e se desenvolvem sem controle os

poderes: político, econômico e militar. Podemos dizer que a tirania moderna não funciona

fora desses domínios.

Sendo o homem uma das partes do Todo, a sua existência depende, naturalmente, da

sua coexistência harmoniosa com a natureza. Isso pressupõe uma relação orgânica, onde

natureza e cultura compõem a unidade do Logos, cujo princípio ordenador é o equilíbrio das

forças. Toda destruição da natureza culmina em autodestruição do homem. O elemento

motivador de toda dominação do homem sobre a natureza, e do homem sobre o homem, nos

parece ser o “desejo de poder”. Tal desejo se manifesta em todas as dimensões do mundo da

vida: seja pela tirania da autoridade política sobre o povo, seja pela tirania da autoridade

econômica sobre o consumo, seja pela tirania da autoridade bélico-militar sobre os mais

fracos, seja pela tirania da autoridade científica sobre o senso comum, seja pela tirania da

instrução sobre o estado de ignorância do homem sobre outro homem, seja pela tirania da

riqueza sobre a pobreza, enfim, da guerra sobre a paz e do homem sobre a natureza. Todas

essas formas de tirania se dá no interior das dicotomias que buscam sempre a afirmação

unilateral de um polo sobre o outro, sem buscar a superação de suas contradições.

4. Conclusão

O modelo civilizatório assumido nos tempos modernos levou a humanidade a colocar-

se como exploradora da natureza, reduzindo-a a simples fonte de nossas riquezas e sumidouro

de resíduos químicos, resultantes da produção do capitalismo industrial e tecnológico-

científico. O homem estabeleceu com a natureza uma relação superior, hierárquica,

subjugando as suas potencialidades ao fazer uso abusivo da técnica para explorar e armazenar

a matéria-prima disponível, colocando em risco não apenas os ecossistemas, mas também a

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vida humana. A crise ecológica revelou, por um lado, a fragilidade dos sistemas naturais mas,

por outro, a absoluta dependência do homem dos ecossistemas. A natureza é o grande

sustentáculo da vida na terra e, para a sua continuidade, faz necessária uma revolução na

nossa maneira de ver o mundo, isto é, assumir a nossa posição como uma parte da unidade do

cosmos, com o desafio de cuidar da vida em escala planetária.O homem deve separar o que a

modernidade legou de positivo para a humanidade no campo do conhecimento em geral, da

cultura, das liberdades individuais, do direito, das leis, da justiça, da arte, da produção etc., e

reconhecer a necessidade de romper com as contradições e dicotomias que este paradigma

gerou em função de suas ilusões de poder e conquista deliberadas. Deve tomar consciência de

que o padrão de consumo instaurado em todas as ambiências da vida social é insustentável se

perdurar esse modelo de desenvolvimento sustentado nos pilares da economia e da política. A

ciência e a técnica são produtos da cultura humana e, portanto, assim como outros saberes

constituem apenas um dos aspectos da realidade do mundo. A máquina, a maior prova

material da destreza humana como artífices, construtores, inventores e transformadores da

matéria, e também, do pensamento mecanicista tão fundamental para a ciência, não tem

sentido se o seu uso pode ameaçar a existência do homem e da própria natureza. Toda a

maquinaria produzida pelo homem precisa, urgentemente ser direcionada para fins pacíficos:

de proteção da terra, de promoção da saúde, de cuidados com o humano em geral e no

combate à toda forma de escassez que gera miséria e abre espaço para a tirania e a corrupção

em toda a terra. Uma nova era está emergindo no interior da crise ecológica e já podemos

sentir que a humanidade colhe os efeitos nocivos de uma visão de mundo dirigida pela

causalidade, por uma lógica instrumental esvaziada de sentido. O ser humano é chamado se

comprometer com a natureza, a sentir-se parte dela, a deixar a posição de centro do mundo e

assumir uma postura de responsabilidade como integrante do todo. Para isso é necessário

controlar os excessos, conter os desejo de poder e controle, buscando estabelecer a harmonia e

a justa medida, a sabedoria que permita a humanidade aprender e ensinar a não esquecer os

limites, a valorizar o simbólico e conter a desmesura. Em outros termos, suportar o desejo

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violento da hybris (desmesura) e eleger como virtude a sophrosyne (prudência, moderação,

autocontrole).

5. Referência bibliográfica

BOFF, Leonardo. A opção-Terra: a solução para a Terra não cai do céu. Rio de Janeiro: Record, 2009.

BICCA, Luiz. Racionalidade moderna e subjetividade. São Paulo: Loyola, 1997.

FOGEL, Gilvan. Da solidão perfeita: escritos de filosofia. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Maria Sá Cavalcante Shuback. Petrópolis: Vozes, 2001.

HILTON, Japiassú; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 5. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

HALÉVY, Marc. A era do conhecimento: princípios e reflexões sobre a revolução na ética no século XXI. Tradução Roberto Leal. São Paulo: Ed. Unesp, 2010.

PERGORARO, Olinto. Ética dos maiores mestres da história. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.

UNGER, Nancy Mangabeira. O encantamento do humano: ecologia e espiritualidade. 2. edição. Loyola: São Paulo, 2000.

______. Da foz à nascente: o recado do rio. São Paulo: Cortez, 2001.

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A IMPORTÂNCIA DA RELAÇÃO ESTÉTICA PARA UMA PRÁTICA ALFABETIZADORA BEM SUCEDIDA: UMA ANÁLISE BAKHTINIANA

Adenaide Amorin Lima∗

Denise Aparecida Brito Barreto** Nilma Margarida de Castro Crusoé**

UESB

Resumo: Este trabalho tem como objetivo principal refletir sobre a importância do princípio estético na relação entre alfabetizador e alfabetizando mediada pela prática alfabetizadora. Prática esta, entendida a partir do conceito de Mikhail Bakhtin como ato responsável/responsivo. Como parte de uma pesquisa de mestrado1 em andamento cujo objetivo principal é compreender sentidos de professoras sobre práticas alfabetizadoras, trazemos para este texto uma análise parcial das falas de duas professoras, participantes de nossa pesquisa que atuaram em uma escola pública de Vitória da Conquista/BA no contexto de um projeto de intervenção denominado Roda de Alfabetização.Uma vez que, uma das dimensões mais significativa de sentidos explicitados por estas professoras em seus discursos esta atrelada á sua relação com seus alunos, trouxemos para a reflexão a importância do princípio estético nesta relação para uma prática alfabetizadora bem sucedida. Palavras-chave: Relação estética. Ato responsável/responsivo. Prática alfabetizadora.

1. Introdução

Este trabalho é fruto de uma pesquisa ainda em andamento. Pesquisa que se insere na

discussão sobre práticas alfabetizadoras e que tem como “pano de fundo” a Roda de

Alfabetização, um projeto de intervenção municipal que vigorou entre os anos 2009-2013.

Esse projeto de caráter psicopedagógico era direcionado para alunos do Ensino Fundamental

entre nove a quatorze/quinze anos de idade e que ainda não haviam adquirido as habilidades

de leitura e escrita2. Esse projeto foi necessário devido ao grande número de alunos que

chegavam ao terceiro ano de escolaridade sem ter adquirido estas habilidades3.

∗ Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Mestranda em Educação

no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEd) da UESB. Grupo de Pesquisa “Linguagem em Educação”. Bolsista de Mestrado da UESB. E-mail: [email protected].

** Doutora, Professora do o Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEd) da UESB. 1 Título da pesquisa: “Práticas alfabetizadoras da Roda de Alfabetização como atos responsáveis/responsivos:

sentidos atribuídos pelas professoras”, sob orientação da Professora Dra. Denise Aparecida Brito Barreto e co-orientação da Professora Dra. Nilma Margarida de Castro Crusoé.

2 http://www.pmvc.ba.gov.br/v2/roda-de-alfabetizacao/ 3 MEDEIROS, Júlia. Aos pequenos com carinho. Revista Veja. Rio de Janeiro, nov. 2011, p. 150-151.

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Devido a sua importância política, social e pedagógica junto às escolas municipais de

Vitória da Conquista/BA que acolheram esse projeto de intervenção, bem como a sua

influência junto às práticas alfabetizadoras das professoras que tiveram envolvimento com

este projeto, esta pesquisa possui caráter avaliativo de um projeto já finalizado.

Como percurso teórico-metodológico de pesquisa adotamos a abordagem qualitativa

na perspectiva da análise/teoria dialógica do discurso inspirada em Mikhail Bakhtin, Brait

(2012) e a estrevista semiestruturada como nosso principal instrumento de construção de

dados. Por meio do discurso das professoras pretendemos ter ecesso as práticas

alfabetizadoras desenvolvidas no contexto deste projeto em uma escola pública (municipal) de

Vitória da Conquista/BA e, consequentemente responder a nossa questão de pesquisa, qual

seja: Quais sentidos são atribuídos às práticas alfabetizadoras da Roda de Alfabetização pelas

professoras? Entendendo estas práticas na perspectiva bakhtiniana como atos

responsáveis/responsivos.

Analisando a fala de duas das oito professoras que fazem parte de nossa pesquisa,

percebemos que os sentidos que elas atribuem as práticas alfabetizadoras do projeto de

intervenção estão atravessadas, principalmente, pelas relações que eram estabelecidas no

contexto do mesmo, principalmente com os alunos. Por esta razão, trazemos neste trabalho

uma breve análise destas entrevistas evidenciando a nossa compreensão de como estas

professoras percebiam e concebiam seus alunos da Roda de Alfabetização através da relação

emotivo-volitiva intermediada pelas práticas alfabetizadoras.

2. Prática alfabetizara como ato responsável/responsivo: uma análise bakhtiniana

Para Mikhail Bakhtin, cada um de nós é um Ser singular e inconcluso, que está sempre

se constituindo na relação com os “outros na sociedade e na história” (SOBRAL, 2013, p.

110) e que ocupa um lugar único na arquitetônica do mundo. Ninguém pode, nunca, ocupar o

lugar de existência do outro, ver o mundo e experienciá-lo de sua perspectiva, ou seja, cada

vida em particular constitui-se em uma existência única como um acontecimento, um existir-

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evento aberto em seu efetivo devir. A vida de cada um é “formada de uma sucessão de atos

concretos; trata-se de atos que são singulares, irrepetíveis (só acontecem uma vez) [...] mas

que têm elementos comuns com outros atos e por isso fazem parte do ato como categoria

englobante” (Idem, 2008, p. 225, grifo do autor). Logo, não existe álibi para a nossa existência

“cada sujeito deve responder por seus atos, sem que haja uma justificativa a propri” (Idem,

2013, p. 104, grifos do autor). Somos responsáveis e devemos responder responsavelmente e

responsivamente “(responsabilidade por e responsividade a)” (Idem, p. 110, grifos do autor) a

partir deste nosso lugar como um dever para com o outro por meio dos nossos atos (atos de

fala, de pensamento, sentimento, etc.).

Conforme Bakhtin (2010, p. 44):

Cada um de meus pensamentos, com o seu conteúdo, é um ato singular responsável meu; é um dos atos de que se compõe a minha vida singular inteira como agir ininterrupto, porque a vida inteira na sua totalidade pode ser considerada como uma espécie de ato complexo: eu ajo com toda a minha vida, e cada ato singular e cada experiência que vivo são um momento do meu agir.

Ao mesmo tempo em que cada sujeito responde responsavelmente/responsivamente

com seus atos para com o outro a partir de sua existência e lugar único no mundo, essa

existência está constantemente sendo atualizada por uma sucessão complexa de outros atos

advindos da relação com os outros, ou seja, ao mesmo tempo em que o sujeito afeta os outro

por responder a este outro com seus atos ele também é afetado pelos atos dos outros e se

atualiza. Isso acontece porque, conforme Bakhtin (2010) o ato responsável é sempre para o

outro e mediado pelo outro. De acordo Bubnova (2011, p. 272): “Cada ocupação, cada

expressão ou gesto e cada tarefa são destinadas para o outro; por isso, o ato será sempre um

encontro com o outro, encontro baseado em uma responsabilidade específica que a relação

com o outro produz”. O sujeito ajusta sua posição em relação aos outros, através de ideologias

conectadas às suas atitudes, às suas práticas, bem como aos seus discursos.

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Mesmo em campos de atividades sociais como a escola, por exemplo, que englobam

esferas com atividades relativamente estáveis como a alfabetização onde os atos/atividades

das professoras alfabetizadoras tendem a compartilhar um maior contingente de elementos

comuns, possuindo uma função mais objetivada, que é a alfabetização de crianças, ainda

assim, cada prática alfabetizadora enquanto ato responsável/responsivo é única e cada

professora é chamada a sua responsabilidade/responsividade, ao seu dever ético4 a partir do

lugar único que ocupa para com os seus alunos. “Cada representação [que assumo na

sociedade] não suprime, mas simplesmente especializa a minha responsabilidade pessoal”

(BAKHTIN, 2010, p. 112) para com o outro.

Conforme salienta Sobral (2008, p. 226):

Ainda que realize a mesma ação física [...] e o mesmo ato puro [...] ao agir no aqui agora [...] o sujeito terá realizado segundo Bakhtin dois atos [...] distintos, pois a ação física e o ato puro são partes do conteúdo do ato, mas não de sua experiência concreta, que não se repete, ainda que as circunstâncias de sua realização se assemelhem.

Logo, existe uma distinção dos atos proposta por Bakhtin “entre ato-tipo (ou ato-

atividade) e ato-ocorrência, aquele de ordem do geral e do repetível e este da ordem do

particular e irrepetível” (Idem, p. 104).

Até o momento podemos compreendemos que, o ato responsável/responsivo é

constituído a partir de duas dimensões: uma abstrata e objetivada referente a um mundo

conceitual e outra concreta que só acontece uma única vez, no mundo do cotidiano. Para

Bakhtin (2010, p. 43) “O ato deve encontrar um único plano unitário para refletir-se em

ambas as direções, no seu sentido e em seu existir”.

Na esfera social da alfabetização, por exemplo, esta atualização ocorre a partir de um

processo denominado por Bakhtin (2010) de reconhecimento. O fato de uma professora

alfabetizadora ter acesso a concepções diferenciadas de alfabetização não significa que,

4 [...] ética como um conjunto de obrigações e deveres concretos, naturalmente generalizáveis, porém não

erigidos em camisa de forma (SOBRAL, 2013, p. 108, grifo do autor).

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automaticamente, estas concepções estarão presentes em sua prática alfabetizadora; antes, esta

concepção deve fazer sentido para ela, em seu cotidiano e em suas relações dialógicas5. Como

esclarece Bakhtin (2010, p. 86-87) “para tornar-se realmente realizado e incorporado ao ser

histórico do conhecimento real, o conteúdo válido em si de uma possível experiência vivida

(de um pensamento) precisa entrar em uma ligação essencial com a valoração efetiva” do

sujeito singular.

É este reconhecimento dos conceitos abstratos, por parte das professoras

alfabetizadoras, que ao se efetivar em suas práticas se caracteriza como um ato

responsável/responsivo, uma espécie de assinatura de quem o pratica como um dever.

Todo conhecimento conteudístico assim obtido [...] deve ser encarnado por mim, traduzido na língua do pensamento participativo, de responder a pergunta: a que me obriga, ao meu eu como único, desde meu lugar único, o conhecimento dado. [...] ele deve ser colocado em correlação com a minha unicidade, fundado no meu não-álibi no existir, em um tom emotivo-volitivo, já que o conhecimento [...] do conteúdo do objeto em si torna-se em conhecimento dele para mim, torna-se reconhecimento [...] que me obriga responsavelmente (Idem, 2010, p. 107-108, grifos do autor).

Somente quando uma professora sente-se “obrigada” a partir do seu lugar único, do

dever ético advindo deste lugar e levando em consideração as suas vivencias e experiências

anteriores é que ela pode, ou não, “encarnar” as teorias que lhes são apresentadas, seja na sua

totalidade, seja parcialmente. É como se a alfabetizadora, na condição de um sujeito único

situado social e historicamente, unifica esses os dois mundos em sua prática. Essa prática será

sempre o resultado da dialética entre esses dois mundos: ela é uma mescla de elementos

abstratos e concretos, elementos do geral e do particular, em um constante processo dinâmico

e aberto.

5 De acordo Sobral (2013, p. 106) a dialogia em Bakhtin apresenta três dimensões: [...] “como princípio geral do agir – só se age em relação de contraste com relação a outros atos de outros

sujeitos: o vir a ser do indivíduo está fundado no vir a ser, do indivíduo e do sentido, está fundado na diferença; [...] como princípio da produção dos enunciados/discursos, que advém de “diálogos” retrospectivos e prospectivos com outros enunciados/discursos; [...] como forma específica de composição de enunciados/discursos, opondo-se nesse caso à forma de composição monológica, embora nenhum enunciado/discurso seja constitutivamente monológico nas duas outras acepções do conceito” (grifos nossos).

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A partir dos estudos de Maria do Rosário Mortatti (2000) é possível perceber que a

prática alfabetizadora sempre foi, ao longo da história, o resultado de um “eterno diálogo”

entre passado e futuro e entre o abstrato e o real. É através desse “diálogo” que essas práticas

são atualizadas no presente, na perspectiva do devir futuro, através das ações/relações

dialógicas entre o professor e seus outros. Enquanto ato responsável/responsivo, poderíamos

dizer que, a prática alfabetizadora é um fenômeno particular/singular e, ao mesmo tempo, um

fenômeno histórico e social que está constantemente se atualizando na dialética entre esses

dois mundos.

Porém, na arquitetônica do seu pensamento, Mikhail Bakhtin além conceber a

existência desses dois mundos distintos, incomunicáveis e impenetráveis: o mundo do

conhecimento abstrato (mundo conceitual) e o mundo da vida (mundo do cotidiano) ele

apresenta ainda um outro o mundo que integra a vida/existência e que não é menos importante

do que os outros dois e, que integra de forma fundamental o ato responsável/responsivo, o

mundo da arte, da “relação esteticamente significante e combinação entre o mundo e a alma”

(BAKHTIN, 1997, p. 147).

Na arte, o mundo das coisas onde vive e evolui a alma do herói é esteticamente significante a título de ambiente dessa alma [...]. Todas as determinações e as caracterizações do mundo que lhe asseguram o acabamento, nas artes e numa filosofia estética, são feitas através dos valores do outro – do outro que é seu herói. (Idem, p. 146/148).

Logo, o mundo conceitual não precisa de nós, enquanto sujeitos únicos historicamente

constituídos e situados e nem de nossas ações demarcadas no espaço/tempo para existir; o

mundo da vida, por outro lado, é o mundo em que realmente vivemos e agimos e o mundo da

arte, é o mundo “intuitivamente perceptível” da valoração estética.

Conforme Sobral (2013, p. 105):

O empreendimento bakhtiniano consiste em propor que há entre o particular e o geral, o prático e o teórico, a vida e a arte uma reação de interconstituição dialógica que não privilegia nenhum desses termos, mas os integra na produção de atos, de enunciados, de obras de arte etc.

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É justamente sobre a importância desta terceira dimensão do ato

responsável/responsivo, fundamental para uma prática alfabetizadora bem sucedida que ora

propomos esta reflexão a partir da análise do discurso de duas professoras sujeitos de nossa

pesquisa: Joana6, uma professora alfabetizadora que atuou na Roda de Alfabetização e Ana,

professora do Ensino Fundamental Regular que teve alunos frequentando o projeto de

intervenção aqui em estudo.

3. Dimensão estética do ato responsável/responsivo

A concepção estética bakhtiniana parte do mundo da vida, das relações entre sujeitos

sociais e históricos, cujo processo de empatia se dá por meio da interação entre eu e o outro

mediado pelo ato através de um processo denominado por Bakhtin de exotopia.

O conceito de exotopia está imerso na sua concepção de tempo e espaço. Lugar único do contemplador, que se situa do lado de fora do evento [...] lhe permite o movimento de empatia estética (colocar-se no lugar do outro) e depois o movimento exotópico (voltar ao seu próprio lugar de fora do evento), que lhe permite ver e compreender pelo seu excedente de visão, o que os outros não podem ver (FREITAS, 2013, p. 103).

Conforme esclarece Sobral (2013, p. 108): “A concepção bakhtiniana do estético não

se baseia no sublime de Kant, nem nas estéticas impressionistas ou expressionistas, mas

resulta representar o mundo do ponto de vista da ação exotópica do [...] [sujeito] [...] nas

relações sociais de que [ele] participa”.

No caso específico de nossa pesquisa, esse processo de empatia pode ocorrer da

seguinte forma: quando uma professora, a partir de sua singularidade, a partir da sua posição

única no mundo, ou seja, a partir do seu existir-evento se coloca no lugar do aluno para

enxerga-lo a partir dele mesmo, de sua perspectiva e, em seguida, retorna ao seu lugar. Essa

volta ao seu lugar é o momento da objetivação no qual a professora se afasta da

individualidade apreendida na empatia para compreendê-lo. Agora, após este retorno a si, o

6 A cada participante desta nossa pesquisa demos um nome fictício a fim de reguardar a identidade de cada uma.

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seu existir-evento foi acrescentado e atualizado7, conforme Bakhtin (2010). É uma

experiência sensitiva que o sujeito só experiência se estiver verdadeiramente aberto para

vivenciá-la de forma profunda.

A verdadeira experiência estética acontece quando:

[...] o vivo fora de mim, no outro, essa vivência comporta uma exterioridade interna voltada para mim, apresenta-me uma face interna que posso e devo contemplar com amor, guardar em minha memória, assim como guardo a lembrança de um rosto (e não do modo que guardo a lembrança de minha própria vivência passada) devo validar, modelar, amar, acariciar com um olhar interior e não com um olhar fisiológico, externo. Essa exterioridade da alma do Outro, semelhante a um tênue invólucro carnal, é precisamente o que consiste a individualidade artística, intuitivamente perceptível: o caráter, o tipo, etc., a refração do sentido da existência, a refração e a condensação do sentido [...]. Dá-se habitualmente o nome de compreensão simpática a essa atividade que emana de dentro de nós ante o mundo interior do outro (BAKHTIN, 1997, p. 117, grifos do autor).

É mediante esse processo que podemos compreendemos uma prática docente,

alfabetizadora bem sucedida como um agir teórico, ético e estético, um ato

responsável/responsivo em que o professor pensa teoricamente, contempla esteticamente e

age eticamente, conforme Bakhtin (2010).

4. Como era percebido o aluno da Roda de Alfabetização pelas professoras?

Entender como as professoras concebiam seus alunos da Roda de Alfabetização é

necessário não somente para apreendermos a “qualidade” dessas práticas alfabetizadoras, se

havia ou não uma valoração genuinamente estética desses alunos, mas também, porque nesse

processo fica explícito a concepção de si que era vivenciado pelo aluno através das suas

professoras. Uma vez que, o sujeito toma consciência de si e se define sempre a partir do

outro, esta vivência implica, certamente, aspectos tanto positivos quanto negativos.

7 Esse processo de empatia não acontece de forma fragmentada conforme apresentado, Bakhtin descreve essas

etapas didaticamente somente para uma melhor compreensão de sua ideia.

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Iniciamos com as fala das professoras, começando com Joana sobre como ela percebia

os alunos da Roda de Alfabetização. Ela diz o seguinte: Esses alunos “chegam no primeiro,

[no] segundo ano com aquela fraqueza [...] aquela insuficiência...”. Para Joana, os alunos da

Roda de Alfabetização, geralmente, alunos oriundos de turmas de terceiro ano acima, eram

alunos que traziam consigo uma trajetória de insucesso no seu processo de alfabetização

desde o início de sua entrada na escola e que foi se acumulando ao avançar de cada ano de sua

escolaridade.

De acordo Tacco e Branco (2008, p. 40):

As relações que as escolas estabelecem com seus alunos, desde sua chegada à escolarização básica, têm favorecido situações de ruptura. As avaliações que são impostas, as expectativas criadas, aliadas a preconceitos incontestes quanto a idealizações sobre as condições necessárias para a aprendizagem efetiva [...] fazem com que alunos e professores se olhem, frequentemente, com desconfiança.

Essa compreensão de que os alunos da Roda de Alfabetização eram alunos que já

entravam na escola com “fraqueza” e “insuficiência” pode levar as professoras, de um modo

geral, a não se sentirem responsabilizadas por estes fracassos. O que significa, do ponto de

vista desta professora, manter as suas práticas isentas de questionamentos, uma vez que,

supostamente o aluno já traz consigo o germe desse fracasso.

No entanto, conforme a perspectiva bakhtiniana, todas as professoras são inteiramente

responsáveis/responsivas e não podem se eximirem de suas responsabilidades. Em

conformidade com Bakhtin, Franco (2012, p. 329) diz que a consciência é, semiologicamente,

estruturada e é por meio da linguagem que

[...] a consciência pode ser compreendida enquanto apropriação dos atos vivenciados pelo indivíduo, nas relações com outros indivíduos e com o mundo [...] a atividade partilhada é responsável por produzir significações que, ao serem apropriadas, criam o plano do sujeito, ou seja, a sua consciência.

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Nesse sentido, fica evidenciado que o professor é responsável não somente pela

aprendizagem do seu aluno, mas, também pela imagem que o aluno constrói de si, através de

sua relação com o professor.

Magda Soares (2003) entende que o fracasso escolar, em nível de alfabetização, não se

explica somente pela complexidade do processo em si, mas tem bases também na ordem

social, cultural, linguísticas etc, pois segundo a autora, do contrário, “não se justificaria a

predominância incidência desse fracasso nas crianças das classes populares” (Idem, p. 21).

A partir de Soares (2003) entendemos que o aluno da Roda de Alfabetização que já

vinha, na sua maioria, de uma estrutura social que não favorecia a igualdade de acesso aos

bens materiais e simbólicos ao chegar à escola sofria um novo processo de seleção e exclusão,

onde era mostrada, a ele, a sua “incapacidade de aprender” com o mesmo empenho e

agilidade exigida e esperada pela escola e idealizada pelas professoras.

Na perspectiva de Soares (2003), recorrendo às ideias do filósofo francês Louis

Althusser sobre os aparelhos ideológicos do Estado e aos estudos em conjunto de autores

como Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron; Christian Baudelot e Roger Establet, concebe

a escola como uma instituição dualista, seletiva e reprodutora das desigualdades sociais. Ela

cita alguns mecanismos pelos quais esse processo ocorre na escola:

Basta afirmar que o processo de alfabetização, na escola, sofre talvez mais que qualquer outra aprendizagem escolar, a marca da discriminação em favor das classes socioeconomicamente privilegiadas. A escola valoriza a língua escrita e censura a língua espontânea que se afaste muito dela [...] as crianças das classes privilegiadas, por suas condições de existência, adapta-se mais facilmente às expectativas da escola [...] esse contexto escolar com seus preconceitos linguísticos e culturais, afeta o processo de alfabetização das crianças [...] das classes populares [...]. Acrescente-se que, nesse contexto de falsos pressupostos sociais, culturais e linguísticos, a escola atua, na área da alfabetização, como se ela fosse uma aprendizagem “neutra”, despida de qualquer caráter político (Idem, p. 22, grifos da autora).

Não podemos deixar de concordamos, em parte, com Soares (2003) sobre a função

reprodutora da escola quando a própria autora e demais estudiosos sobre o assunto apresentam

resultados dos fracassos em nível de alfabetização, porém são podemos aceitar que o

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professor aja passivamente reforçando essa perspectiva sobre a escola no seu cotidiano

escolar.

Barbosa (1994, p. 24), ao questionar e atribuir parte do fracasso na alfabetização às

metodologias utilizadas, afirma que “50% das crianças que frequentam escolas públicas

fracassam no seu intento de se alfabetizarem”. Em uma análise histórica Soares (2003)

apresenta dados sobre a alfabetização no Brasil nas décadas de 1940, 1960, 1970 e 1980 e

constata que menos de 50% “das crianças brasileiras conseguiam romper com a barreira da 1ª

série” (Idem, p. 13).

Atualmente, por conta do grande número de estados brasileiros que vem adotando o

ensino organizado em ciclos, modalidade cuja retenção só ocorre de um ciclo para outro, o

terceiro ano passou ser o ponto crítico no que diz respeito à alfabetização, pois, conforme

preconiza as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, Brasil (2013) o ciclo de

alfabetização deve prosseguir sem interrupção.

Para evitar que as crianças de 6 (seis) anos se tornem reféns prematuros da cultura da repetência e que não seja indevidamente interrompida a continuidade dos processos educativos levando à baixa autoestima do aluno e, sobretudo, para assegurar a todas as crianças uma educação de qualidade, recomenda-se enfaticamente que os sistemas de ensino adotem nas suas redes de escolas a organização em ciclo dos três primeiros anos do Ensino Fundamental, abrangendo crianças de 6 (seis), 7 (sete) e 8 (oito) anos de idade e instituindo um bloco destinado à alfabetização (BRASIL, 2013, p. 122).

O que não quer dizer que o problema da qualidade da alfabetização esteja sanado,

apenas está camuflado e isso aparece em um momento específico, quando a criança está no

terceiro ano e é retida, impedida de ingressar no próximo ciclo.

De acordo dados do site QEdu8, uma plataforma de informações educacionais do

Brasil, entre os anos de 2010 a 2013, o terceiro ano foi o seguimento que mais reprovou no

Ensino Fundamental. No entanto, os avanços são visíveis, apesar de tudo: 2010, 13,4%; 2011,

12,8%; 2012, 12,6% e 2013, 11,9% de reprovações. 8 http://www.qedu.org.br

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Em nível local, segundo afirma a coordenadora da escola em que fizemos a nossa

pesquisa, no ano de 2011 foi feito um levantamento na escola e o resultado foi o seguinte: de

uma média de cento e oitenta alunos de terceiro ano houve retenção de cinquenta e seis

alunos, ou seja, uma média de 31% de alunos reprovados (retidos) no terceiro ano. Um

resultado preocupante em relação à média nacional, mas ela comemora e diz que no

município “foi uma das melhores escolas em avanços”. Este percentual foi obtido com o

apoio da Roda de Alfabetização. Isso nos faz pensar que a escola ela não é passiva. Mesmo

diante de uma força que a obriga a reproduzir as desigualdades sociais ela resiste e reage. Do

mesmo modo entendemos que o histórico de fracasso do aluno não é algo dado, mas

construído histórica-socialmente e, por isso mesmo, passível de mudança e o professor é

inteiramente responsável por isso deve responder ao fracasso com práticas bem sucedidas.

Sobre sua percepção do aluno da Roda de Alfabetização Joana continua: “aquele que

‘tava’ com dificuldade, com a autoestima lá em baixo”. E Ana reforça: “preguiçoso. Que já é

o comportamento normal da sala de aula”.

Em termos de nível de aprendizagem, o aluno da Roda de Alfabetização para Ana,

muitas vezes era aquele “completamente cru em termos de alfabetização [...] não sabiam nem

ler e nem escrever”. E para Joana: eles “não conseguia ler [...] não sabiam o alfabeto completo

[...]. E havia casos que ‘tava’ [...] na parte [...] pré-silábica, era só trabalhar mais um pouco

[...]. [Tinha] aqueles que não conseguiam realmente fazer nada”.

Percebemos que as professoras veem o aluno da Roda de Alfabetização através de

duas perspectivas distintas: uma centrada nas “características pessoais”, características dadas

por elas mesmas; outra centrada em seus níveis de aprendizagens. Ambas às características

com entonação negativa.

Ao revelarem o que pensam sobre os alunos da Roda de Alfabetização, as professoras

evidenciaram a ausência de uma experiência e de um acabamento estético para com estes

alunos, pois não houve empatia, processo necessário para que este acabamento se realizasse.

Infelizmente não se dirigiram para esses alunos de forma aberta para que de fato a experiência

estética acontecesse. Ao conceber o aluno como fraco, com dificuldade, baixa autoestima,

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preguiçoso, cru, que não consegue fazer nada, o discurso das professoras está evidenciando

uma faceta preconceituosa em seu ato educativo.

De acordo Costa (2002), o modo como concebemos o nosso aluno está atrelado a

diferentes componentes internos e externos a nós que reflete na imagem que temos desse

aluno. São as “nossas representações internas das realidades externas [...] nossos modelos

mentais, conceitos, preconceitos, ideologias, fantasias valores, referências e perspectivas

fundamentais em experiências anteriores” (Idem, p. 79).

No entanto, só se chega à imagem mais próxima do real, ou seja, ao aluno

efetivamente, quando há a empatia por parte do professor: quando ele se coloca no lugar do

aluno e retorna a si e, por meio do processo de objetivação, concretiza o acabamento estético

desse aluno. Do contrário, as práticas desse professor serão guiadas por falsas ideologias e

preconceitos. Tornando suas práticas como meras reprodutoras do fracasso escolar, ao mesmo

tempo em que culpabiliza a baixa autoestima do aluno – como se esse fator fosse inerente à

ele –o professor não é capaz de reconhecer a realidade como um produto das diversas relações

sociais, incluindo aí, conforme Franco (2009), a ação da escola.

Quando Joana afirma que teve alunos que não sabiam nada, e Ana afirma que tinha

alunos que eram crus, fica claro que elas estão falando de uma perspectiva muito distante

daquela vivenciada pelo aluno. Weisz (2002) diz que o professor deve sempre procurar, no

processo de ensino e aprendizagem da alfabetização, retomar os conteúdos prévios dos alunos

e que estes conhecimentos prévios não devem ser confundidos com nenhum conteúdo já

ensinado pelo professor. Se o professor não sabe o que o aluno pensa sobre determinado

conteúdo que ele quer que o aluno aprenda “o ensino que ele oferece não tem ‘com o que

dialogar’” (Idem, 42).

Joana demonstra, em sua fala, conhecer o critério de base construtivista de

classificação dos alfabetizandos na fase de escrita, estudados e evidenciados por Emilia

Ferreiro e Ana Teberosky em seu livro Psicogênese da língua escrita. No entanto,

demonstrou não reconhecer9 esse pensamento em sua prática, uma vez que

9 Conforme conceito discutido no segundo tópico deste texto.

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[...] a psicogênese da língua escrita abriu esta possibilidade de o professor olhar para a criança e acreditar que para aprender ela pensa, que aquilo que ela faz tem lógica e que se eu não enxergo é porque não tenho instrumentos suficientes para perceber o sentido que está posto ali (WEISZ, 2002, p. 45).

Nesse sentido, não existe criança que não sabe de nada ou crua, não importa em qual

fase ela esteja: pré-silábico, silábico, silábico-alfabético e alfabético. Ou mesmo anterior a

estas fases.

Leitura e escrita, conforme Ferreiro e Teberosky (1985, p. 11):

[...] inicia-se muito antes do que a escola o imagina, transcorrendo por insuspeitados caminhos. Que além dos métodos, dos manuais, dos recursos didáticos, existe um sujeito que busca a aquisição do conhecimento, que se propõem problemas e trata de solucioná-los, seguindo sua própria metodologia.

As autoras entendem que existe um caminho que deve ser percorrido pela criança para que a escrita vá adquirindo sentido e se constitua em objeto do seu conhecimento, desde as garatujas aos dois ou três anos de idade até a escrita alfabética, “o final desta evolução”.

5. Breves considerações finais

Os sentidos de Joana e Ana em relação ao aluno da Roda de Alfabetização são

convergentes. Ambas concebem, negativamente, esse aluno de dois modos: quanto as suas

características pessoais e quanto ao seu nível de aprendizagem. Para as professoras, o aluno

da Roda de Alfabetização era um aluno que entrava na escola com insuficiência, com baixa

autoestima, era preguiçoso e, no que diz respeito a sua aprendizagem, apresentava ritmos

diversificados, existindo aqueles que eram considerados “crus” e que “não sabia fazer nada”.

Tanto Joana quanto Ana apresentou uma visão rasa do aluno da Roda de Alfabetização, não

tendo para com esse aluno uma empatia estética, não se colocando no lugar do aluno para

compreendê-lo tal qual ele é. Portanto, podemos apreender que as práticas direcionadas a

estes alunos eram intermediadas por discursos ideológicos que veem esse aluno através das

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suas fragilidades, evidenciadas através de parâmetro pré-estabelecidos e não por suas

potencialidades.

Segundo Bakhtin (2010) somente no amor, na empatia é que o ato é capaz de ser

esteticamente produtivo. Por consequência, o desamor, a indiferença, o preconceito não geram

forças suficientes para atermos demoradamente, profundamente, atentamente, sensitivamente

e abertamente sobre o outro, conhecer suas particularidades, seus sentimentos e suas

potencialidades.

Mediante a análise das falas das professoras e a constatação da ausência de uma

relação estética em suas práticas alfabetizadoras para com os alunos da Roda de

Alfabetização, uma vez que essas professoras já vão com um conceito pré-estabelecido desses

alunos, não se abrindo para uma experiência verdadeiramente estética para com eles, nos leva

a um questionamento: De que forma o professor, de uma forma geral, pode substituir em sua

prática alfabetizadora o pré-conceito pela intuição estética, essa é uma aprendizagem

adquirida em sua formação docente ou faz parte de seu existir-evento singular constituído ao

longo da vida?

Nossa hipótese é que essa capacidade tanto pode ser adquirida ao longo da vida como,

também, em sua formação docente. O fato é que em ambos os casos o processo se da de

forma educativa, portanto pode ser aprendido em qualquer momento da vida desse professor

devido ao seu inacabamento. Portanto, defendemos que, seja na formação inicial ou

continuada, a dimensão estética da prática docente, de um modo geral, deve fazer parte do ser

professor, em seu constante vir a ser.

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O CINEMA NO ENSINO DE FILOSOFIA: UMA EDUCAÇÃO ATRAVÉS DO OLHAR

Alexandre Alves da Silva* PPGED/UESB

Resumo: O seguinte ensaio aborda a relação entre o pensamento filosófico, a linguagem cinematográfica e a educação. A perspectiva de filosofar por meio da imagem em movimento, metáforas, paradoxos, sons, descontinuidades, enquadramentos, emoções, quebra com o rigor da lógica conceitual e introduz no cinema o que é próprio da filosofia: o pensamento. Sendo assim, o que significa dizer que o cinema faz pensar? Que tipo de pensamento produz o cinema que o eleva à categoria de pensamento filosófico? São estas provocações que circundam as reflexões a respeito do cinema como experiência filosófica, e provocaram o desenvolvimento de um trabalho com alunos do Ensino Médio da Rede Estadual de Vitória da Conquista, através do projeto de extensão “Filosofia, cinema e educação no Ensino Médio”, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Dentro desta perspectiva, este trabalho discute sobre o cinema e sua articulação com a disciplina de Filosofia como possibilidades ao aluno do Ensino Médio de debater e construir o conhecimento crítico e reflexivo dentro e fora da sala de aula, compreendendo o referido projeto de extensão como articulador do conhecimento filosófico com a linguagem cinematográfica, possibilitando ao educando a construção de saberes voltados à formação do pensar filosoficamente sobre si mesmo e sobre o mundo que o cerca. Palavras-chaves: Cinema. Filosofia. Educação.

Introdução

A concepção de uma perspectiva do cinema enquanto recurso educativo e inserido no

espaço escolar permite que este se desenvolva em parceria com disciplinas estudadas dentro

das salas de aulas como filosofia, história, sociologia, literatura e articuladas através das

práticas pedagógicas dos professores com o objetivo de desenvolver o aprendizado de seus

alunos.

No que diz respeito à linguagem cinematográfica ser um recurso pedagógico, é

comum encontrar dentro de algumas produções do cinema entre elas, O Cheiro no ralo

(2007), Verônica (2008), Mentes perigosas (1995), A Cidade de Deus (2002), conceitos-

imagens, categoria construída por Gilles Deleuze na obra Aimagem-tempo (2009) e

reapropriada por Julio Cabrera na obra O cinema pensa (2005), que se aproximam ao

pensamento de filósofos, como por exemplo, Kierkegaard, Nietzsche e Heidegger que

colocam o pensamento em movimento. A partir desta dinâmica, o cinema se oferece ao

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pensamento como uma possibilidade de linguagem mais próxima ao indivíduo, concedendo a

este a condição de se aproximar dos conceitos filosóficos por meio da imagem.

Para Cabrera (2005), a experiência filosófica oferecida pela imagem procura construir

o pensamento através da lógica articulada ao efeito emocional desenvolvido pelo indivíduo

em contato com o universo fictício dos filmes. Esta relação pode ser desenvolvida por meio

do cinema e que, segundo o autor, possui as mesmas exigências que a filosofia, a saber: o

caráter cognitivo, argumentativo, valorativo, reflexivo.

Esta ideia da articulação entre o cinema e a filosofia estudada em sala de aula permite

que o aluno possa ter contato com conceitos filosóficos dentro do campo da imagem em

movimento, possibilitando as condições de filosofar e transformar o seu olhar sobre o mundo.

O Projeto de extensão desenvolvido na UESB, na área de filosofia, intitulado “Filosofia,

cinema e educação no ensino médio”,que já teve três edições, procurou estabelecer as relações

e as articulações entre o cinema, filosofia e a educação dentro do espaço escolar.

A experiência do ensino de filosofia no espaço escolar

A escola não é o espaço onde se habita a neutralidade. É o ambiente no qual diversos

saberes se interagem através da relação do ser humano com o mundo. Dentro desta reflexão,

pode-se compreender a escola como o ambiente propício para a sistematização e reflexão de

conhecimentos e saberes já semeados na vivência dos educandos com os espaços

socioculturais onde estão inseridos, e a filosofia pode ser colaboradora na articulação destes

conhecimentos prévios com conceitos filosóficos a serem discutidos em sala de aula, em prol

da formação de um saber reflexivo e subjetivo por meio da experiência do educando em

interação com a sociedade.

Entretanto, qual a finalidade de se estudar filosofia? Como proporcionar o encontro

entre a filosofia e o indivíduo dentro e fora do espaço escolar, numa sociedade marcada pela

passividade humana? Ou, como levar a filosofia de forma que o educando compreenda e se

torne consciente do seu potencial de filosofar?

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Especificando o Ensino Médio, cujo ensino da disciplina de filosofia passa a se tornar

obrigatória na grade curricular, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)

define que a escola tem como finalidade “o aprimoramento do educando como pessoa

humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do

pensamento crítico” (2010, p. 29). Dentro desta afirmação, a filosofia vem a ser uma

disciplina discutida em sala de aula que possibilita ao indivíduo provocações a fim de que este

saia do seu estado cômodo de existência e venha a se tornar um ser ativo no mundo. A

proposta de filosofar em sala de aula, conforme afirma Cerletti, “supõe por em ação uma

atividade ou uma prática a partir de certas questões que não estão constituídas como um

campo fechado de saberes” (1999, p. 149).

Aprofundando as discussões, o desafio é encontrar meios de expandir o campo da

filosofia para além das metodologias que resumem o ensino dos conteúdos filosóficos a

apenas memorizações da história da filosofia, ou de pensamentos dos pré-socráticos, ou de

filósofos como Sócrates, Platão, Aristóteles, Descartes, Spinoza, entre outros. A escola, na

figura do professor, deve trazer aos alunos o ensino filosófico que provoca o indivíduo a

construir o seu pensamento filosófico numa perspectiva de interpretação crítica e ativa do

mundo real, e construir um ser humano que vai de encontro ao estado de passividade ao qual a

sociedade se encontra.

Sendo assim, o trabalho da escola consiste em ultrapassar desafios referentes à

metodologia aplicada durante as aulas de filosofia: como relacionar os conteúdos filosóficos

com as experiências que o aluno vivencia em seu cotidiano? O ensino dos conteúdos

filosóficos, em grande parte, é reduzido a estudos da história da filosofia, e a sistematização

do pensamento de autores já citados anteriormente. Esta metodologia conteudista do ensino da

disciplina no espaço escolar não desperta no educando a condição de se perceber enquanto ser

capaz de também filosofar. Em partes, sobra a estes jovens a função de memorizar

pensamentos de filósofos para avaliações, reproduzindo um conhecimento já adormecido e

descontextualizado no ponto de vista do dia a dia dos jovens. A construção do pensamento é

um desejo intrínseco ao ser humano; todo e qualquer indivíduo pauta sua existência na busca

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pelo saber, pelo descobrir-se, por desbravar o mundo. E, tal qual, defende Deleuze que “[...]

Todo mundo tem a possibilidade de pensar” (1992, p. 83).

Essa busca pelo saber, condição desenvolvida na filosofia, deve ser acessível no

espaço escolar, cujo ambiente é destinado a sistematização de conhecimentos construídos em

outros setores da sociedade, sobretudo a experiência filosófica que cada indivíduo vivencia

em seus espaços típicos. A escola deve ser o local do encontro do indivíduo com os conceitos

filosóficos, articulando-os com os conhecimentos de mundo que este possui, ou vem

construindo ao longo de sua existência. A partir desta perspectiva, compreende-se o ensino da

filosofia como a possibilidade de construir o educando-filósofo, ser autoral e ator na

sociedade. A disciplina de filosofia deve ser entendida como ocasião para o desenvolvimento

da aprendizagem sob uma perspectiva freiriana de educação libertadora.

A proposta é provocar na sala de aula um ensino que garanta ao educando a condição

de despertar neste o pensamento filosófico crítico e reflexivo já existente. Ir além dos

conceitos já estabelecidos nos livros e na metodologia imposta dentro do espaço escolar e,

nesta perspectiva, o ensino de filosofia consiste em trazer ao educando a possibilidade de se

tornar um ser filósofo, com uma possibilidade de suspender o véu que limita o seu modo de

enxergar o mundo. Educar o olhar filosófico dos jovens educandos acarreta na desmistificação

do filosofar como um ato destinado a seres dotados de uma inteligência infinita e inalcançável

por estes alunos.

No que se refere ao ato de se ensinar filosofia, um dos desafios da escola é desviar do

método enfadonho, e trazer os conceitos filosóficos para as múltiplas realidades que cada

indivíduo vivencia e que é capaz de tecer reflexões. Articular a arte, seja o teatro ou o cinema,

por exemplo, com pensamentos de determinados filósofos como Platão, Aristóteles,

Nietzsche, Heidegger, entre outros, é uma das propostas de uma nova maneira de se envolver

com a experiência de discutir filosofia em sala de aula. Cabe, enfim, ao educador o exercício

de relacionar os conteúdos destes filósofos com práticas pedagógicas voltadas a facilidade de

compreender determinados conceitos, relacionando-os com conhecimentos prévios

desenvolvidos fora dos muros da escola. A educação por meio da filosofia convida o

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indivíduo a desafiar-se ao exercício de interiorização e exteriorização, na medida em que se

relaciona com a sociedade. Esta é uma filosofia que rompe com o ensino engessado de

conteúdos filosóficos, rompendo com a metodologia fria desenvolvida por alguns docentes da

educação básica.

Neste aspecto, a proposta de uma filosofia da educação engajada é trazer à sala de aula

um ensino que garanta ao educando a condição de despertar o pensamento filosófico crítico

e reflexivo já existente. Ir além dos conceitos já estabelecidos nos livros e na metodologia

imposta dentro do espaço escolar e, nesta perspectiva, o ensino de filosofia consiste em

trazer ao educando a possibilidade de se tornar um ser filósofo, com uma possibilidade de

suspender o véu que limita o seu modo de enxergar o mundo. Educar o olhar filosófico dos

jovens educandos acarreta na desmistificação do filosofar como um ato destinado a seres

dotados de uma inteligência infinita e inalcançável por estes alunos. Como pensa

Kierkegaard,

Apenas se tem presente que filosofar não significa tecer discursos fantásticos a seres fantásticos, mas que se fala a existentes, isto significa afirmar que não é fantasticamente in abstracto que se decidirá se a aspiração contínua é qualquer coisa de inferioridade à conclusividade sistemática (KIERKEGAARD, 1993, p. 323, apud MIRANDA, 2009, p. 31).

Partindo destas afirmações, entendemos o ensino da filosofia como uma pedagogia

inserida numa dinamicidade na qual o indivíduo se encontra inserido em conjunto com toda a

realidade do mundo. Relacionar os conteúdos filosóficos com a própria experiência de vida

destes educandos permite que se possa articular os conceitos construídos ao longo da história

da filosofia com uma linguagem dinâmica no contexto artístico, como o teatro, a música, a

poesia e, especificamente, o cinema (NAPOLITANO, 2010)

Especificando as escolas da cidade de Vitória da Conquista, interior do Estado baiano,

projetos de extensão desenvolvidos pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia vêm

construindo uma relação com as escolas da rede pública de ensino. O projeto intitulado

“Filosofia, cinema e educação no ensino médio”, ao qual este texto se volta mais adiante,

desenvolveu seus trabalhos ao relacionar os conteúdos da disciplina de filosofia, estudados no

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ensino Médio, com os conceitos construídos a partir da imagem em movimento. Partindo do

pressuposto de que o aluno é capaz de filosofar na medida em que desenvolve o intercâmbio

entre os conceitos filosóficos com outros campos que não fazem parte da filosofia, como é o

caso específico do cinema, o projeto visa trazer aos alunos produções fílmicas tais como Ilha

das flores (1989), Cidade de Deus (2002), O cheiro do ralo (2007), Asas do desejo (1987),

Tão longe, tão perto (1993), O show de Truman (1998), Quanto vale ou é por quilo? (2005),

Os sonhadores (2003), Janela da alma (2001), Cinema paradiso (1988), que possibilitam a

construção de conceitos filosóficos que interagem com os conteúdos discutidos nas aulas.

A partir destas reflexões, é pertinente conhecer o projeto “Filosofia, cinema e

educação no ensino médio”, como ele surgiu, quais os seus objetivos, e de que forma ele se

propôs a colaborar em parceria com a comunidade escolar ao proporcionar uma experiência

da formação humana por meio da filosofia dentro da sala de aula a partir da sua relação com o

cinema.

Sobre o projeto de extensão “Filosofia, cinema e educação no ensino médio”

O projeto foi criado no ano de 2009 e encerrou suas atividades em meados de 2012, o

qual foi coordenado por professores do curso de Filosofia da Universidade Estadual do

Sudoeste da Bahia (Uesb). Tal projeto contou, também, com a participação de alunos do curso

de Filosofia, mais tarde tendo adesão de graduandos dos cursos de Pedagogia, sendo estes

bolsistas e voluntários da mesma instituição.

Tal projeto de extensão possuía o caráter pedagógico ao conceber a proposta de

articular o cinema com as práticas educativas voltadas à disciplina de filosofia, e reflexivo ao

propor em seus trabalhos a tarefa de promover aos professores e alunos uma possibilidade de

aproximar os conceitos filosóficos da realidade por meio da exibição e discussão dos filmes.

O projeto desenvolveu a relação entre filosofia e cinema como uma prática pedagógica que

parte da concepção de uma educação que transcende os espaços físicos da escola, uma

educação a partir do imaginário, da ruptura com um universo concreto a fim de mergulhar no

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mundo dos sonhos, do fantástico (BERGALA, 2008). Assume também o caráter crítico ao

relacionar os filmes com os conteúdos da disciplina de filosofia, estudados no Ensino Médio,

atribuindo uma consciência reflexiva e transformadora de si mesmo e da forma como enxerga

o mundo, além de conceder o pensamento autônomo ao indivíduo que é capaz de filosofar.

As realizações das atividades do projeto ocorreram em parceria entre a UESB e as

escolas da rede estadual de ensino. Os coordenadores e os monitores se reuniam previamente

para o planejamento das atividades, por meio de leitura e discussão de teóricos voltados à

filosofia e ao cinema, como Gilles Deleuze, Julio Cabrera, Alain Bergala, Daniel Lins, Ismail

Xavier, Kierkegaard, e filmes de diretores como Wim Wenders, Tarkovsky, Akira Kurosawa,

Woody Allen, Lars Von Trier, Ingmar Bergman, André Resnais, Bertolucci, Walter Carvalho,

entre outros.

A proposta girava em torno da relação entre os pensamentos contidos nas obras

literárias com o pensamento construído na imagem em movimento, possibilitando os

monitores do projeto a se tornarem leitores dos filmes que viriam a ser exibidos nas escolas.

Em seguida, os monitores realizavam as atividades do projeto dentro das escolas, cuja

metodologia consistia em exibir nas turmas do Ensino Médio o filme escolhido de acordo

com o conteúdo que estava sendo trabalhado na disciplina de filosofia, realizando,

posteriormente, discussões, rodas de conversa, debates entre outras atividades que

possibilitassem a relação entre o filme, o conteúdo filosófico e suas impressões pessoais a

respeito de si mesmo e da sociedade.

Dentro desta perspectiva, o projeto “Filosofia, Cinema e Educação no ensino médio”

buscou ao longo de sua existência oferecer ao público docente e discente das escolas da rede

pública as ferramentas que possibilitam despertar o interesse pela filosofia, assim como o

contato e a construção de um laço afetivo com o cinema e os filmes que oferecem um pensar

reflexivo, filosófico. A partir desta reflexão, o projeto buscou proporcionar à comunidade

escolar conquistense colaborações para uma educação mais dinâmica na esfera humana,

crítica e filosófica, ao entender que a construção de um saber filosófico se dá por meio da

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apreensão de conceitos através da imagem em movimento e pela sucessão de afetos que estas

proporcionam ao leitor do filme.

A metodologia desenvolvida pelo referido projeto se encontrava com o pensamento de

Deleuze a respeito do despertar do pensamento a partir da relação entre o indivíduo e o

contato com os filmes. De acordo com o pensador, “tudo se passa como se o cinema dissesse:

comigo, com as imagens-movimento, vocês não podem escapar do choque que desperta o

pensador em vocês” (2005, p. 190). Ao exibir os filmes aos alunos do Ensino Médio, e

relacionando-os com os conteúdos trabalhados em sala de aula, promovia também a

possibilidade de mudança ao educando, conduzindo-o aos desafios de romper com o

pensamento estruturado no modelo tradicional, no qual o pensar filosoficamente é muitas

vezes comprometido por uma metodologia hierárquica, conquistada por um grupo específico

de pensadores nos espaços acadêmicos, e que parece ser inalcançável a quem se encontra fora

dos muros destas instituições.

O cinema, articulado ao ensino de filosofia, promove um pensar filosófico por meio

das experiências afetivas entre o espectador e a imagem que são capazes de produzir saberes

filosóficos por meio da experiência transcendental intrínseca do universo cinematográfico e,

conforme Engelman (2007), “a alma do cinema exige mais e mais um pensamento, mesmo se

o pensamento começa por desfazer o sistema de ações, percepções e afecções que nutria o

cinema até então” (2007, p. 277). O objetivo da articulação entre os filmes e a filosofia é

proporcionar o pensar filosoficamente por meio da relação emocional entre espectadores e

obras fílmicas, rompendo com o estado passivo do ser existente a fim de que este venha a se

mobilizar e a construir um conhecimento crítico e subjetivo.

Neste contexto, cinema se configura como uma educação através do olhar e, ao

desenvolver esta pedagogia por meio da elaboração do pensar filosoficamente, rompe com os

conceitos imóveis pelo dogmatismo filosófico, trazendo ao indivíduo as condições de

transformar o ver em olhar, em observar o mundo e –sobretudo – o seu interior, podendo ser

capaz de modificar a sua existência. O exercício do olhar o mundo fictício equivale a uma

interpretação concreta do mundo real. Esta educação do olhar possibilita ao educando uma

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percepção crítica do mundo na medida em que tece leituras das mensagens filosóficas

presentes nos filmes. Podemos, enfim, compreender então que

[...] o olhar é a ruminação do ver, o olhar existente é uma experiência alongada no tempo e no espaço, personifica a eternidade no presente; o ver é algo imediato e sem consistência para com o que é profundo e decisivo; o olhar é a contemplação do sentido, é em seu interior que se constroem a aposta e o salto; o ver é transitório e incapaz de proporcionar conteúdo para o que é decisivo na existência (ALMEIDA, 2010, p. 35).

Este exercício de ruptura do indivíduo com os modelos pré-fabricados de um

pensamento dogmático reproduzidos em sala de aula, onde o ver predomina em torno do

indivíduo e de sua relação com o meio em que vive, foi a proposta do projeto Filosofia,

Cinema e Educação, o qual propôstrabalhar com a construção de um olhar contemplativo e

ativo do indivíduo sobre a sua própria condição existencial e sobre os espaços variados em

que vive, entendendo o cinema como “um instrumento privilegiado de análise da realidade

social e como representação do imaginário social e dos imaginários individuais” (SILVA,

2010, p. 76). Neste sentido, através da experiência com o cinema desenvolvido por cineastas

como Godard, Resnais, Woody Allen, Lars Von Trier, Jorge Furtado, Wim Wenders,

Tarkovsky, entre outros, o educando espectador é convidado a sair do estado cômodo de

receber os conteúdos já construídos anteriormente para, então, ser confrontado a construir seu

próprio pensamento na medida em que se torna “leitor” dos filmes assistidos, a ponto de se

angustiar, se confrontar, se desconstruir em prol da edificação de um ser em existência e

construtor de seu próprio conhecimento. Assim como diz Almeida (2010),

É o leitor quem constrói, molda a imagem conforme sua visão de mundo formulada nos estádios da existência. A proposta é recuperar os sentidos; de outra forma, é introduzir a razão no interior da existência, proporcionando ao homem inteiro a tarefa de pensar, e não reduzindo-o à hidrocefalia e à esterilização da razão instrumental (ALMEIDA, 2010, p. 35).

Animar o indivíduo em tornar-se leitor dos filmes passa pelo exercício de sair do ato

simples de ver os filmes para olhar, enxergar as imagens em movimento e os conceitos que

estas desenvolvem ao longo do filme. É dar ao espectador a condição de sair do campo de

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espectador passivo dentro da sala de aula, para se tornar um observador que age ao construir

conceitos a partir da relação com o olhar da câmera que captura os sentimentos, angústias,

medos, alegrias, e demais emoções expressas nas faces dos personagens, atribuindo à imagem

a condição de pensamento. Este encontro é um dos objetivos que o projeto de extensão

apresenta aos alunos do Ensino Médio, os quais são desenvolvidos suas atividades.

Deste modo, o projeto “Filosofia, cinema e educação no ensino médio” reafirmou

durante a sua execução, a partir dos teóricos que fundamentaram seu desenvolvimento, a ideia

do cinema educador e promotor da valorização de uma educação pautada nos conhecimentos

que o aluno traz para dentro da escola, capaz de sistematizá-los juntamente com os conteúdos

trabalhados com o auxílio do educador. Dentro destes conhecimentos que não se encontram

presentes nos conteúdos lógicos dos livros didáticos destaca-se aquele que é oferecido pelo

cinema que, através de uma educação para o olhar, dá ao espectador a condição de se revelar

como um ser capaz de se tornar um indivíduo ativo. Partindo deste pressuposto, pode-se

entender a proposta do projeto em auxiliar os alunos e professores das escolas da rede pública

de Vitória da Conquista a se desafiarem a filosofar e a transformar a própria existência.

Conclusão

Conclui-se este ensaio enfatizando a importância de se refletir a respeito da condição

do cinema enquanto colaborador no desenvolvimento do indivíduo crítico e reflexivo, capaz

de pensar filosoficamente sobre si mesmo e sobre o mundo. Este caráter educativo presente no

cinema vem sendo desenvolvido desde os seus primeiros anos a partir do momento em que

foram pensadas as imagens em movimento como emancipação do homem no exato momento

em que o ser humano passa do estado racional e material do mundo físico, para o

encantamento do mundo dos sonhos e fantasioso construído pela ficção cinematográfica.

Na medida em que considera as produções fílmicas como arte que direciona ao interior

existencial, o homem deixa de ser um espectador passivo para vir a ser um Indivíduo em ação

que se encontra em constante mudança. O cinema que retira o ser humano do estado de

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comodismo e conformidade para o confronto com o pensamento existencial e as necessidades

de transformar-se. Diante disso, os filmes que proporcionam o choque emocional e a condição

para se educar tornam-se recursos pedagógicos para o desenvolvimento de seres humanos

críticos diante das realidades que inspiram as projeções cinematográficas.

Outro ponto se refere à inserção do cinema no espaço escolar, mantendo a urgência de

pontuar alternativas que deem ao educando a oportunidade de conhecer e criar laços com o

cinema. Dar ao docente as condições através de uma formação continuada voltada às aulas

articuladas com filmes que colaborem com o desenvolvimento intelectual de seus alunos; que

a escola garanta aos educandos a possibilidade do encontro com os filmes que levam a refletir

e a construir novas visões sobre o mundo.

É dentro deste contexto que compreende a escola como palco para a projeção dos

filmes e das ideias que permeiam o campo da filosofia e do cinema; no espaço escolar são

sistematizadas as concepções de mundo que são desenvolvidas por pensadores, sejam nas

obras filosóficas ou através das projeções em tela. Dentro desta perspectiva, o cinema se torna

recurso filosófico quando o espectador consegue interpretar a imagem e desenvolver

conceitos a partir dela, sobre a própria existência e, enfim, sobre o mundo no qual habita.

Referências

ALMEIDA, J. M. Kierkegaard: Filosofia e Cinema. In: ALMEIDA, J. M.; AGUIAR, I. P. (Orgs.). Filosofia, Cinema & Educação. Vitória da Conquista: Ed. UESB, 2010. p. 29-51. BERGALA, A. A hipótese-cinema:pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: Booklink; CINEAD-LISE-FE/UFRJ, 2008. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. CABRERA, J. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.

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CERLETTI, A.; KOHAN, W. O. A Filosofia no Ensino Médio: caminhos para pensar seu sentido.Brasília: UNB, 1999. DELEUZE, G. Cinema 2: a imagem-tempo. Cidade: Brasiliense, 2005. DELEUZE, G.; GUATARRI, F. O que é a filosofia? São Paulo: Ed. 34, 1992.

ENGELMAN, S. Imagens de um cinema da imanência. In: LINS, D. (Org.). Nietzsche/ Deleuze: imagem, literatura, educação. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 276-287. NAPOLITANO, M. Como usar o cinema na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2010. SILVA, V.A.S. Roque Araujo: um caso de educação cinematográfica de um Doutor Honoris Causa. In: ALMEIDA, J. M.; AGUIAR, I. P. (Orgs.). Filosofia, Cinema & Educação. Vitória da Conquista: Ed. UESB, 2010. p. 5-94.

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O PENSAMENTO PEDAGÓGICO DE DOMINGO SARMIENTO E A PERNICIOSA PRESENÇA DO IDEÁRIO FRENOLÓGICO

André Gustavo Ferreira da Silva UFPE/CNPq

Resumo: O trabalho busca um maior aprofundamento no pensamento pedagógico de domingo Sarmiento (1811 – 1888), educador, político e escritor argentino. Sarmiento exerceu a presidência da Argentina (1868 - 1874), desenvolveu a educação pública e é autor de Facundo o Civilización y Barbarie (1845) e De la educación popular (1849), onde defende a instrução pública como instrumento de modernização social e de construção da soberania política da nação. A pesquisa objetiva identificar os traços do ideário frenológico presentes no pensamento sarmientiano. Justifica-se tanto por dar visibilidade no Brasil a um educador que influenciou a reflexão pedagógica latina americana, quanto por lançar luz sobre a presença de ideários racistas a nortear a reflexão educacional nas Américas. Conclui que a concepção de formação e educação sob o escudo da modernidade, que no campo da reflexão pedagógica se caracterizou, dentre outros aspectos, por acionar a suposta cientificidade da Frenologia, apresenta, contraditoriamente, a valorização e legitimação da expansão do acesso à instrução pública associada à marginalização dos segmentos populares da sociedade. Palavras-chaves: América Latina. Modernidade. Racismo.

O ano de 1943, mesmo sob a névoa que vinha da guerra em território europeu, foi o

tempo no qual se reúnem no Panamá educadores das três Américas na Conferencia

Interamericana de Educación. No contexto da realidade da educação nas sociedades latinas

americanas, a conferência já seria um marco histórico, pois, reunia educadores de países cujas

realidades políticas locais tinham uma herança de não prestígio à educação. Todavia, para

consolidar ainda mais sua pertinência, a reunião estabelecea data 11 de setembro como o Día

Panamericano del Maestro. A data é escolhida em memória a data do falecimento de

Domingo Sarmiento, que doravante receberia a alcunha de “maestro de las Américas”.

O presente trabalho resulta da busca por um maior aprofundamento no pensamento

pedagógico daquele que fora apontado com o “educador das Américas” (sic). Objetiva

identificar os traços do ideário frenológico presentes no pensamento sarmientiano. Justifica-se

tanto por dar visibilidade no Brasil a um educador que influenciou a reflexão pedagógica

latina americana, quanto por lançar luz sobre a presença de ideários racistas a nortear a

reflexão educacional nas Américas.

Domingo Faustino Sarmiento (1811 – 1888) nasceu em San Juan (Argentina,) foi

educador,político e escritor; exerceu o governo da Província de San Juan (1862 - 1864) e a

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presidência da República Argentina(1868 - 1874). Desenvolveu a implantação a educação

pública em seu país. É autor de Facundo o Civilización y Barbarie (1845) e De la educación

popular (1849), onde defende a instrução pública como instrumento de modernização social e

de construção da soberania política da nação. É alcunhado de “Educador das Américas”.

Adeus ao bom selvagem: virada nas representações do humano aos meados do Sec.

XIX.

Dentre os “abandonos” ocorridos ao longo do pensamento ocidental no séc. XIX, com

profundo impacto na Filosofia da Educação, podemos destacar o esgotamento da ideia do

“bom selvagem” e a emergência da Teoria da Evolução das Espécies (Darwin) e seu correlato

nas Ciências Humanas em geral com Goerge Combe.

A luz do ideário iluminista, a espécie humana era uma só. Por exemplo, quando

Rousseau se refere aos selvagens ou aborígenes, apesar de identificar distinções de raças, é

claro, ainda, o uso da noção de espécie humana como um conjunto composto por diversas

raças, mas todas fazendo parte de uma mesma natureza.

Para Rousseau, o selvagem é biologicamente valoroso, pois seu corpo está em estado

natural, diferente das mazelas do homem civilizado. O filósofo sugere que a expansão de

moléstias e vicissitudes da saúde estão ligadas à própria vida em sociedade: “quando se sabe

que [os selvagens] quase não conhecem outras moléstias além dos ferimentos e da velhice, é-

se obrigado a crer que facilmente se faria a história das moléstias humanas seguindo a história

das sociedades civis” ( ROUSSEAU, 2015, 50).

A vida em sociedade rebaixa a natural supremacia corpórea do selvagem:

O cavalo, o gato, o touro, o próprio burro, têm, em geral, um talhe mais alto, todos uma constituição mais robusta, mais vigor, força e coragem nas florestas do que nas nossas casas: perdem a metade dessas vantagens ao se tornarem domésticos, e dir-se-ia que todos os nossos cuidados em tratar bem e nutrir esses animais só conseguem abastardá-los. O mesmo acontece com o homem: tornando-se sociável e escravo, torna-se fraco, medroso, submisso; e sua maneira de viver mole e efeminada acaba de debilitar, ao mesmo tempo, a sua força e a sua coragem. Acrescentemos que, entre as condições selvagem e doméstica, a diferença de homem para homem deve ser maior ainda que de animal para animal: porque, tendo o animal e o homem sido

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tratados igualmente pela natureza, todas as comodidades que o homem se proporciona mais do que aos animais por ele amansados são outras tantas causas particulares que o fazem degenerar mais sensivelmente ( ROUSSEAU, 2015, 52).

À supremacia corpórea corresponde a excelência moral do homem em estado de

natureza:

A natureza manda em todo animal, e a besta obedece. O homem experimenta a mesma impressão, mas se reconhece livre de aquiescer ou de resistir; e é, sobretudo, na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma; porque a física explica de certa maneira o mecanismo dos sentidos e a formação das ideias; mas, no poder de querer, ou melhor, de escolher, e no sentimento desse poder, só se encontram atos puramente espirituais, dos quais nada se pode explicar pelas leis da mecânica. (ROUSSEAU, 2015, 55-56)

Assim, em estado de natureza, ou seja, selvagem, o homem goza da plenitude de suas

aptidões morais e corpóreas: “de sorte que se poderia dizer que os selvagens não são maus

justamente por não saberem o que é serem bons, pois não é nem o desenvolvimento das luzes,

nem o freio da lei, mas sim a calma das paixões e a ignorância dos vícios que os impedem de

proceder mal” ( ROUSSEAU, 2015, 75).

Todavia, a partir da incorporação das Teses da Teoria da Evolução em relação ao

homem, temos a sugestão de que este conjunto de raças não é de natureza essencialmente una:

acreditava-se na progressão das distintas raças de homens ao longo do trilho da evolução.

Nesta lógica, as mais recentes seriam também aquelas identificadas como as mais adiantas na

própria escala evolutiva. E, ainda em paralelo à Teoria das Espécies, o desenvolvimento do

modo de vida de uma determinada raça humana – que significaria a evolução de sua

adaptação à natureza física - em comparação com as demais comprova empiricamente sua

natural superioridade.

Charles Darwin, tendo comprovado empiricamente que a interferência de criadores e

pecuaristas é capaz de selecionar características úteis aos propósitos humanos, a exemplo do

que ocorreu com a raça canina “galga inglesa”, notória por sua velocidade, (DARWIN, 2009,

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85) lança a questão: “será então difícil acreditarmos que ocorram outras variações de algum

modo úteis a cada ser em cada grande ecomplexa batalha da vida?”. Para Darwin, “o homem

seleciona em seu proveito; a Natureza age em benefício dos próprios organismos, e faz com

que cada carácter seleccionado funcione em perfeição”. (DARWIN, 2009, 87-88). Neste

sentido, em relação às interferências da natural seleção das melhores características

adaptadoras das espécies ao seu meio, se pode inferir um certo progresso positivo no

própriomovimento desta adaptação, constituindo-se, assim, uma evolução. Destarte, o

naturalista (DARWIN, 2009, 116-117) afirma:

A selecção natural actua exclusivamente através da conservação e acumulação das variações que são úteis aos indivíduos sob as condições orgânicas e inorgânicas a que estão expostos em todos os períodos da sua vida. O resultado último desta acção é que cada criatura tende a tornar-se cada vez mais aperfeiçoada relativamente às condições do seu meio. Este aperfeiçoamento conduz inevitavelmente ao gradual progresso dos organismos, da maior parte dos seres vivos, em todo o mundo.

Desta forma, o criador da Teoria da Evolução das Espécies atesta:

se considerarmos que alguma vez surgiram num organismo variações que lhe são benéficas, então temos de aceitar que esse organismo tem mais hipóteses de vencer a luta pela sobrevivência e de ser preservado. E, devido ao forte princípio da hereditariedade, esse organismo tenderá a produzir descendentes semelhantes, transmitindo-lhes os caracteres que lhe deram vantagem. A este princípio de conservação dos caracteres, ou da sobrevivência do mais apto, dei o nome de selecção natural. A selecção natural conduz ao aperfeiçoamento de cada ser em relação às suas condições de vida, orgânicas e inorgânicas, e, por conseguinte, na maior parte dos casos, ao que deve ser considerado um progresso dos organismos (DARWIN, 2009, 121-122).

As consequências dessa seleção, além do relativo progresso de uma geração em

relação à outra em comparação à adaptação ao seu meio, é a natural supremacia das espécies

mais calhadas sobre as menos adaptadas. Por exemplo, “os lobos mais velozes e mais ligeiros

têm mais hipóteses de sobreviver, e assim ser preservados ou seleccionados” (DARWIN,

2009, 93). Desta forma, sob esta natural “racionalidade”, uma das mais funestas

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consequências desse processo é que “a selecção natural favorece o surgimento de novas

espécies, o que obriga a que outras passem a ter menos indivíduos, tornando-se cada vez mais

raras, até serem extintas” (DARWIN, 2009, 106).

A tradução dessas reflexões no ambiente positivista tem como um de seus principais

expoentes George Combe, um dos pais da Frenologia.

O campo da Frenologia se constituía através dos inúmeros dados e informações

sistematizados sob a exacerbação do método de verificação empírica acionado na tentativa de

estabelecer uma ciência positiva da moral, baseando-se na crença da existência de leis

naturais da moral. Todavia, deve-se salientar que aqui, distinto de Kant, a natureza da lei

moral não é reconhecida como estando no plano metafísico (as condições de possibilidade

para a autonomia da vontade), mas no campo da verificação por procedimentos incorporados

da tradição científica moderna. A perspectiva apontada por Combe (1851, vii) sinaliza que o

objetivo da Frenologia é investigar a composição do homem e sua relação com as leis naturais

que determinam a conduta moral dos indivíduos e das nações étnicas.

Segundo Combe (1851, 103), a instituição da Frenologia se dá na primeira metade do

sec. XIX; sua primeira manifestação na Gran Bretanha é de 1815, cuja recepção nos jornais de

Edinburgh foi controversa, tendo quem a acusasse de ser "uma coleção de absurdos, sem

verdade, coerência ou consistência”; todavia, poucos anos depois, já contando com a

produção de novas publicações, surgem as primeiras confrarias acerca desta chamada ciência;

assim, em 1820 é fundada em Edinburgh, pelo Rev. David Welsh, professor de História da

Igreja na Universidade da mesma cidade, a Phrenological Society, e em 1823, é lançado "The

Phrenological Journal and Miscellany"; As Sociedades de Londres e Philadelphia (USA) são

de 1824; Em 1826, temos em Glasgow, Belfast, Washington; Em 1831, Paris, e em 1832,

Boston (USA), cujo periódico "Annals of Phrenology" é de 1833.

Conforme mencionado acima, um dos objetivos da Frenologia é demonstrar a

moralidade enquanto uma ciência (COMBE, 1851, 59). Destarte, a Frenologia é a ciência que,

ao investigar o cérebro sob o ideário metodológico moderno, se constitui com a própria

ciência da mente. E o anseio comungado por seus entusiastas era de que ela se inserisse como

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uma parte da educação regular, removendo os preconceitos e superstições do campo moral e

que impedem seu desenvolvimento. O cérebro, então, era considerado como o órgão mais

importante do corpo e se deveria pesquisar o sistema neurológico referente aos sentidos, ao

movimento e aos sentimentos para que se supere gradualmente a ignorância sobre seu uso e

para que se possam estabelecer as exatas relações entre a proporção das dimensões do cérebro

com as distinções de poder mental e de vigor das faculdades mentais (COMBE, 1851, 97).

Portanto, acreditava-se que o tamanho e formato do cérebro determinam as aptidões

intelectuais e morais dos indivíduos e das raças. Combe aponta o que seria a verificação

empírica deste princípio explanando acerca da comparação das proporções cerebrais Philip

Melanchton (reformador protestante junto com Lutero) e o Papa Alexandre VI. Segundo os

frenologistas (COMBE, 1851, 41), o formato da cabeça de Melancthon fornece um exemplo

da predominância da região moral e intelectualsobre as propensões animais; Por outro lado,

em Alexandre VI, destaca-se a região animal, característica que ”não é a mais adequada às

manifestações das virtudes cristãs”; Por consequência, enquanto Melanchton foi um indivíduo

notório por seu fiel sacerdócio, o papa dos Borgias notabilizou-se, segundo o autor, pelos

escândalos cometidos. O que se leva à seguinte conclusão: “Lowness of feelings and lowness

of brain are seen together" (COMBE, 1851, 42).

Vale salientar que esta mesma lógica pode ser aplicada a povos e raças inteiras, pois,

pela herança dos pais, o que se deve levar às famílias o cuidado com quem seus filhos casam,

teremos conjuntos inteiros de etnias condenados a uma condição inferior no que se refere às

aptidões morais e intelectuais, capacidade explicitada empiricamente pelo formato e

características físicas do cérebro. A hereditariedade e consanguinidade característica de uma

raça determinam, pela transmissão da herança das proporções do cérebro aos herdeiros, as

aptidões morais, intelectuais e mentais de toda uma etnia ou nação, haja vista que: “mental

qualities are determined by the size, form, and constitution of the brain ; and these are

transmitted by hereditary descent” (COMBE, 1851, 45). O frenologista destaca,

categoricamente que, se “esta lei é ainda pouco consistente e obscura quando aplicada em

casos individuais, converte-se em absolutamente irrefutável em nações” (COMBE, 1851, 45).

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Em suma: “the differences of national character are as conspicuous as those of national

brains” (COMBE, 1851, 45).

A conclusão a que se chegava era que, devido às determinações naturais que afetam a

dimensão e o formato do cérebro de certas raças, há naturais distinções de aptidões

intelectuais e morais entre os povos. Por conseguinte, a mente de povos como os aborígenes

australianos, os índios kalina (caribe e norte da América do Sul) e outras tribos selvagens são

caracterizadas pela grande deficiência nas faculdades morais e intelectuais: “the brains of the

new hollanders, caribs and other savage tribes, are distinguished by great deficiencies in the

moral and intellectual organs” (COMBE, 1851, 49).

A Formação Humana e Educação Moral como problemas da Frenologia

Apesar das determinações da natureza sobre os traços da mente e das faculdades dos

indivíduos e raças, a Frenologia reconhece um lugar fundamental para a educação. Pois,

vislumbra como possível a melhoria das condições mentais do indivíduo, atenuando as

possíveis limitações naturalmente determinadas por sua raça, por intermédio dos exercícios

cerebrais. Neste sentido, é de suma importância formar os indivíduos desde a juventude

através de regulares exercícios do cérebro. A área do cérebro relacionada aos sentimentos, a

maior delas, deve ser exercitada via a vivência dos deveres e responsabilidades referentes à

vida secular e á religiosa; a área relacionada ao intelecto, a menor delas, é trabalhada via

problemáticas em negócios práticos, em artes ou ciência (COMBE, 1851, 35). A Educação é

definida, então, como a ação de iluminar o intelecto, exercitá-lo e vigorar os sentimentos

morais, reprimindo o espírito egoísta (COMBE, 1851, 97).Nesta perspectiva, o exercício do

cérebro contribui para a educação da mente tanto quanto os elementos físicos da natureza

contribuem para o desenvolvimento dos nervos e dos músculos (COMBE, 1851, 35).

Educação e modernidade na América Latina: projeto e controvérsias

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A primeira metade do sec. XIX acompanha o esforço de nações sul-americanas na

consolidação de seus respectivos processos de independência e constituição do regime

republicano. Notadamente a Argentina, a Venezuela e o Uruguai, buscam a sintonia com os

ventos de modernidade que sopravam nos EUA e na Europa, quando a instituição da educação

pública traduz uma dupla solução de significados: apresenta-se em sintonia com a emergência

das práticas econômicas industriais, pela formação da mão-de-obra, e com a construção da

soberania da Nação em oposição à herança colonial.

A Educação enquanto instrução pública é reconhecida como uma dimensão

fundamental no processo de formação da nação e abandono da herança cultural da

colonização. Neste período, os principais formuladores do ideário pedagógico republicano se

estabeleciam também como significativos atores no campo político. Assim, Simón Rodriguez

na Venezuela, Domingo Sarmiento na Argentina e Pedro Varela no Uruguay, constituem-se

como referência na defesa da Educação como o meio necessário para que se forme o homem

do novo regime: o cidadão. Comungavam da esperança e anunciavam a promessa da

expansão do acesso à educação às classes populares como sendo o instrumento de

consolidação da Nação, da República e do Estado de Direito.

Simón Rodriguez (1990) é um dos primeiros educadores sul-americanos a defender a

Educação como instrumento de construção da República. Acreditava que a socialização da

educação possibilitaria a integração homem/sociedade em patamares modernos. Pois, a

educação republicana contribui para a formação do homem republicano e este homem, que

agora é cidadão, contribui para a soberania da República.

Pedro Varela lidera o processo de modernização da escola uruguaia com a chamada

“reforma vareleana”, trazendo para o Uruguay o que havia de mais promissor no campo

pedagógico da época. E também reconhece a Educação como fator de modernidade nacional

ao possibilitar a oferta de instrução para toda a população. Pois, segundo Varela (1869, 05-

06), se “los gobiernos monárquicos pueden vivir con poblaciones completamente ignorantes,

porque en ellos solo tiene participación en la cosa pública, una parte pequeña de la sociedad”,

o mesmo não acontece com uma nação republicana, haja vista que “la forma de gobierno

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republicana, pide el concurso a todos los ciudadanos y concede a todos el derecho de influir

directa y poderosamente en la dirección de todos y cada uno de los intereses generales del

país”.

Domingo Sarmiento é dos mais influentes educadores Latino Americano no Séc. XIX,

recebendo a alcunha de “Educador de Las Américas”. Sua vida de educador se confunde com

sua trajetória política. Em seu livro “Educación Popular” (2011), Sarmiento (2011, 47)

defende claramente a natureza moderna da Educação, entendida então como instrução

pública:

El lento progreso de las sociedades humanas ha creado en estos últimos tiempos una institución desconocida a los siglos pasados: La instrucción pública, (…), es una institución puramente moderna”. Influenciado pelo ideario moderno, aponta ainda tal modernidade como fruto do próprio progresso humano: “Hasta hace dos siglos había educación para las clases gobernantes, para el sacerdocio, para la aristocracia; pero el pueblo, la plebe, no formaba, propiamente hablando, parte activa de las naciones (SARMIENTO, 2011, 47).

Também está presente em Sarmiento a vinculação da educação aos Direitos Políticos,

onde o direito de participar das decisões públicas corresponde ao dever de se preparar e se

educar para tal e onde a efetividade sócio-política do Direito republicano pressupõe a

formação intelectual do novo homem: “Los derechos políticos se han anticipado a la

preparación intelectual que el uso de tales derechos supone” (SARMIENTO, 2011, 47). Pois,

os novos direitos incorporados com a República correspondem e necessitam de um novo

homem, preparado para exercê-lo a partir do pleno uso de suas faculdades intelectuais e não

mais pela tradição e mitos, o que seria típico do homem colonial. E, ampliando o debate para

a esfera da economia, Sarmiento relaciona o desenvolvimento da educação pública com o

progresso econômico da sociedade, defendendo que:

El poder, la riqueza y la fuerza de una nación dependen de la capacidad industrial, moral e intelectual de los individuos que la componen; y la educación pública no debe tener otro fin que el aumentar estas fuerzas de producción, de acción y de dirección (SARMIENTO, 2011, 48).

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Diante do que se anunciava e se prometia com a educação no séc. XIX para a América

Latina cabe então questionar: o que se deixou de cumprir no projeto pedagógico da

modernidade na América Latina? Sinteticamente, podemos responder que, sob a ótica do

projeto moderno, a população em geral – que é mestiça, indígena e afrodescendente – era o

“outro” a ser “educado” para constituir-se enquanto imagem e semelhança do homem europeu

e anglo-saxão, assim como as tentativas de constituição da República aqui implantadas tinham

nos modelos de lá seu ideal. A máxima seria então: a reprodução em terras latino americanas

da modernidade eurocêntrica correspondia necessariamente a reproduzir o homem

eurocêntrico nos povos latinos.

A recepção da Frenologia no pensamento pedagógico Latino Americano: o caso de

Domingo Sarmiento

Leitor de George Combe, Sarmiento assinala que “las obras de Mr. Combe, que se ha

ocupado largamente de esta materia, me suministraron más ideas sobre las escuelas de

Inglaterra que las que podía darme mi inspección personal” (SARMIENTO, 2011, 40).

Plenamente sintonizado com aquele ideário que acreditava ser a expressão da modernidade,

Sarmiento aponta o fator que determina nossa sorte no curso da História Humana: “los

estados sudamericanos pertenecen a una raza que figura en última línea entre los pueblos

civilizados” (SARMIENTO, 2011, 48).

A condenação impetrada por nossa herança étnica é tanto mais categórica quanto

maior for a presença dessas raças inferiores na constituição de uma respectiva sociedade. Sob

esta perspectiva o pensador argentino indaga:

¿Qué porvenir aguarda a México, a Perú, Bolivia y otros estados sudamericanos que tienen aún vivas en sus entrañas, como no digerido alimento, las razas salvajes o bárbaras indígenas que absorbió la colonización y que conservan obstinadamente sus tradiciones de los bosques, su odio a la civilización, sus idiomas primitivos y sus hábitos de indolencia y de repugnancia desdeñosa contra el vestido, el aseo, las comodidades y los usos de la vida civilizada? ¿Cuántos años, si no siglos, para levantar aquellos

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espíritus degradados a la altura de hombres cultos y dotados del sentimiento de su propia dignidad? (SARMIENTO, 2011, 50).

A possível resistência e reação dos povos aborígenes ao projeto modernizador indicam

antes atraso cultural e ódio à civilização do que um traço de força de caráter e tenacidade.

Além do que, a mestiçagem também não é uma herança positiva, apesar de colocar as nações

caracterizadas por populações mais amalgamadas num patamar um pouco melhor que as

acima descritas. Destarte, segundo Sarmiento:

Cualquiera que estudia detenidamente los instintos, la capacidad industrial e intelectual de las masas en la República Argentina, Chile, Venezuela y otros puntos tiene ocasión de sentir los efectos de aquella inevitable pero dañosa amalgama de razas incapaces o inadecuadas para la civilización. ¡Qué hábitos de incuria, qué limitación de aspiraciones, qué incapacidad absoluta de industria, qué rebeldía contra todo lo que puede conducirlas a su bienestar; qué endurecimiento en fin en la ignorancia voluntaria, en la escasez y en las privaciones de que pudieran si quisieran librarse; qué falta tan completa de todos los estímulos que sirven de aguijón a las acciones humanas! (SARMIENTO, 2011, 50)

Diante deste fato e tendo em vista a ideia darwinista segundo a qual a raça melhor

adaptada avança sobre as demais até ao ponto de extinguir a inferior, o educador sinaliza

aquele que deve ser o processo de soerguimento da região latino americana:

Un crecido número de emigrantes de otras naciones que no sean la española, la única que nos es análoga en atraso intelectual e incapacidad industrial, traerá por consecuencia forzosa la sustitución de una sociedad por otra, haciendo lentamente descender a las últimas condiciones de la sociedad, a los que no se hallen preparados por la educación de su capacidad intelectual e industrial, la impulsión de progreso y la trasformación que experimentará la sociedad; de donde es fácil vaticinar a millares de padres de familia que hoy disfrutan de una posición social aventajada, la posibilidad de que con la acción de nuevos hombres y con su mayor capacidad de adquirir, sus hijos en no muy larga serie de años desciendan a las últimas clases de la sociedad (SARMIENTO, 2011, 49).

Assim, a imigração trazendo o imigrante, indivíduo intelectualmente mais capacitado e

preparado, vai propiciar a tomada do lugar do nativo, constituindo uma efetiva limpeza étnica.

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Por conta dos traços que inviabilizam o pleno desabrochar das sociedades sul-

americanas, vamos encontrar em Sarmiento a educação pública cumprindo um efetivo papel

de "controle" das massas: “las masas están menos dispuestas al respeto de las vidas y de las

propiedades a medida que su razón y sus sentimientos morales están menos cultivados”

(SARMIENTO, 2011, 48). Controle que compensa aquela que se acreditava ser uma natural

inabilidade moral. Também em Sarmiento se encontra mais explicitado a necessidade da

reprodução social do homem eurocêntrico, chegando até ao campo da uma possível eugenia.

Neste sentido, o autor afirma:

Los ingleses, franceses y holandeses en Norteamérica no establecieron mancomunidad ninguna con los aborígenes y, cuando con el lapso del tiempo sus descendientes fueron llamados a formar estados independientes, se encontraron compuestos de las razas europeas puras, con sus tradiciones de civilización cristiana y europea intactas, con su ahínco de progreso y su capacidad de desenvolvimiento, aún más pronunciado si cabe que entre sus padres, o la madre patria (SIC) (SARMIENTO, 2011, 49). [Grifo nosso].

Sendo ainda mais explícito, o pensador afirma: “El cambio de civilización, de instintos

y de ideas no se hagasino por cambio de razas(SIC)” (SARMIENTO, 2011, 49). [Grifo

nosso]. Pois, o imigrante europeu intelectualmente mais capacitado e preparado, vai tomar o

lugar do nativo.

Todavia, enquanto reconhecido como educador, Sarmiento não perde as esperanças no

poder da Educação, pois, ela é o meio pelo qual se pode atenuar os malefícios de nossa

herança maldita. Salientando, que no caso da massa popular latino americana, ou seja, por

conta da maldita herança aborígene e da mestiçagem, a educação no máximo pode diminuir os

efeitos da incapacidade natural das massas:”la instrucción derramada con tenacidad, con

profusión, con generalidad entre la clase trabajadora sólo puede obviar a la insuperable

dificultad que a los progresos de la industria oponen la incapacidad natural de nuestras

gentes” (SARMIENTO, 2011, 51-52).

Finalizando, temos que a concepção de formação e educação sob o escudo da

modernidade, que no campo da reflexão pedagógica se caracterizou, dentre outros aspectos,

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por acionar a suposta cientificidade da Frenologia, apresenta, contraditoriamente, a

valorização e legitimação da expansão do acesso à instrução pública associada à

marginalização dos segmentos populares da sociedade. No âmbito destas contradições, o

pensamento pedagógico de Domingo Sarmiento destaca-se como um significativo emblema:

abandona os pressupostos do humanismo iluminista buscando um fundamento não metafísico

para sua reflexão sobre a educação, mas incorre em uma funesta eugenia.

A falência de Sarmiento, aquele que fora considerado o “educador das Américas”, e

do projeto de modernidade como um todo, talvez nos sirva de alerta para os perigos das

incorporações de um ideário emigrante aqui em nossas terras, fazendo cada vez mais atual a

máxima de um outro latino americano: ou inventamos ou perecemos.

Referências

COMBE, George. The constitution of man: considered in relation to external objects. Edinburgh: Maclachlan And Stewart. Longman & Co., And Simpkin, Marshall & Co., London. Griffin & Co., Glasgow; And James M'glashan, Dublin. 6.ed.1851. Disponível em: <http://www.archive.org/details/6thconstitutiono00combuoft>. Acesso em: 15 fev. 2015.

DARWIN, Charles.Selecção natural, ou a sobrevivência do mais apto In:A origem das Espécies: através da selecção natural ou a preservação das raças favorecidas na luta pela sobrevivência. Tradução Ana Afonso. Leça da Palmeira (Portugal): Planeta Vivo UPTEC-PMAR,2009. Cap. IV. Disponível em: <file:///C:/Users/Andr%C3%A9%20Ferreira/Downloads/Charles%20Darwin_%20A%20origem-das-especies.pdf>. Acesso em: 15 fev. 2015.

RODRIGUEZ, Simón. Sociedades Americanas. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1990. ROUSSEAU, Jean-Jacques.Discursosobre a origem da desigualdade. Tradução Mª Lacerda de Moura. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/desigualdade.pdf>. Acesso em: 18 fev. 2015. SARMIENTO, Domingo. “Educación Popular” 1a ed. La Plata: UNIPE: Ed. Universitaria, 2011. VARELA, Pedro. Prospecto in la educación popular.Revista Quincenal, Montevideo: Comision Directiva de la Sociedad de Amigos de la Educación Popular, AnoI, n. 1, 1869.

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EDUCAÇÃO MORAL: UMA NECESSIDADE NAS SOCIEDADES COLETIVAS E DEMOCRÁTICAS

Bruno da Costa Rodrigues1 UESC

Resumo Tratamos de apresentar dois tipos de argumentações que consideramos essenciais para justificar a importância e a necessidade pedagógica da educação em valores e da educação moral. O primeiro tipo de argumentação é de caráter estritamente pedagógico, e se centra na necessidade e conveniência de qual tipo de ação pedagógica adotar. O segundo é de caráter sócio pedagógico e político. Colocamos nesse conjunto de considerações àquelas características socioculturais que permitem afirmar, a nossa interpretação, que na atualidade a ação pedagógica sistemática sobre este âmbito educativo é uma condição necessária para alcançar um nível de alfabetização funcional suficiente nas sociedades coletivas e democráticas. Na terceira parte oferecemos algumas reflexões teóricas e algumas pautas de caráter teórico-prática para favorecer o trabalho no âmbito da educação, central e fundamental na formação humana e especialmente no marco das sociedades democráticas. Nossa sociedade e nossa cultura se apresentam no contexto informativo e tecnológico, como um lugar e um tempo em que o respeito às minorias, não está garantido, e que o cultivo da autonomia de cada um de nós e de nossas capacidades de autodeterminação e libertação não está suficientemente atendido. Em síntese, a democracia, tanto em sua dimensão política e institucional como em suas manifestações comunitárias de caráter interpessoal, não tem alcançado as expectativas que nela depositamos. No entanto, sua legitimidade e necessidade fazem com que a democracia atual, seja um estado inicial de imensurável valor para a conquista dos objetivos planejados e é esses objetivos a chave do progresso da otimização democrática. Palavras-chaves: Educação Moral. Democracia. Sociedades Coletivas.

Introdução

As funções das instituições educativas têm sofrido ao longo da história mudanças

notáveis, mas mostraram também algumas constantes ou tendências que propriamente

poderiam considerar-se como “notas” ou elementos essenciais das mesmas.

Entre estas notas podemos destacar a aprendizagem da leitura e escrita, a aquisição de

hábitos e regras de comportamento e o domínio do cálculo.

Por fim e em última instancia, estas aprendizagens pretendem dotar a pessoa de

bagagem necessária para sua integração social e cultural e para sua inserção na vida ativa no

grupo a que pertence. Através da educação se procura assim que os personagens consigam

níveis progressivos de desenvolvimento e participação nos âmbitos do trabalho, do lazer, das

relações interpessoais e da cultura. 1Graduando Letras Vernáculas, Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), BA. [email protected]

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Assim, a escola, e por analogias as diferentes instituições educativas, tem exercido

uma função que possa interpretar-se de forma ambígua. Em certas ocasiões podem identificar-

se como de reprodução social ou de integração ao sistema sociocultural dominante no

ambiente a que pertencem. Em outras podem identificar-se como de crescimento pessoal e

coletivo sem os efeitos da educação, a nível individual ou coletivo, tem produzido mudanças

sociais, culturais e/ou políticas orientadas ao progresso pessoal em âmbitos como os da

liberdade, dos direitos, a crítica, a participação e o controle do poder por parte dos cidadãos.

Em sociedades como a nossa este duplo sentido ou possível identificação das funções

da educação pode entender-se como associada a setores diferenciados segundo seu nível de

acesso ao controle da sociedade. Esta possibilidade identificaria a função reprodutora e

orientada à inserção com o setor menos favorecido no exercício do controle da sociedade e a

função libertadora e criativa com o setor mais favorecido.

A tecnologia tem um papel fundamental chave na evolução humana e também na

sociocultural e biológica. Ao duplo sentido ou possível identificação das funções da educação

podemos entender como associada a diferentes setores segundo seu nível de acesso ao

controle da sociedade.

Certamente uma das chaves de tal realidade é a revolução tecnológica, e que não

somente por suas implicações obvias na criação de novas condições de transformação por

parte do homem, mas também pelas suas implicações na criação de uma nova sociedade

emergente caracterizada não unicamente pela informação e a tecnologia, mas, sobretudo,

especialmente para nós, pelo conhecimento e as comunicações.

Sem dúvidas estamos perante uma grande oportunidade, mas também ante uma grande

ameaça. É necessário apostar pedagogicamente para que a oportunidade seja bem aproveitada.

É possível que a sociedade, que somos todos nós, evolua conscientemente e de acordo com

fins determinados, mas também é possível que a evolução das estruturas sociais sufoque a

cada ser participante e nos submeta a condições não humanas e opressivas no marco de nosso

próprio sistema sociocultural.

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Não se trata de opor a singularidade e seu direito à autodeterminação e liberação do

sistema sociocultural. Trata-se de entender que não é possível um sistema sociocultural em

evolução sem a evolução das espécies que o formam e, entre elas, a do gênero humano. Trata-

se, em definitivo, de entender que a otimização humana, de cada um de nós (individualismo) e

de todos nós (coletivo), é uma condição necessária ainda que não suficiente para a otimização

do sistema sociocultural da sociedade e da humanidade em seu conjunto. O desafio não é fácil

e a tarefa é complexa porque assim o é a evolução humana e em especial o processo de

humanização, e, por consequência, a educação.

Diante essa “bifurcação catastrófica” devemos intervir de forma eficaz e positiva,

apesar dos desenvolvimentos tecnológicos acelerados e difíceis de prever, o preocupante

crescimento da população a nível mundial, a perca de valores tradicionais, a instabilidade dos

níveis necessários de coesão social, a difícil se não impossível solução as desarmonias entre

os ganhos das instituições, das ideologias e os sistemas políticos e religiosos e as expectativas

que habitualmente se tem depositado nelas.

A intervenção não pode ser exclusivamente pedagógica, mas, no âmbito das ações, a

pedagógica pode desempenhar um papel relevante ainda que seus efeitos sejam difíceis de

constatar em curto prazo e se mostram diluídos no conjunto de efeitos desejáveis a médio e

longo prazo.

A sociedade do conhecimento e das comunicações não é a sociedade na que vivemos

todos os seres humanos, apensar dos desenvolvimentos tecnológicos da informação que se

contorna nosso meio. Informação e conhecimento, tecnologia da comunicação e comunicação

não são sinônimos. O desejável é que essa sociedade e a futura sejam sociedades do

conhecimento e das comunicações e não somente da informação e da tecnologia. Mas para

isso é necessário que cada um de nós e todos nós estejamos em condições de conhecer, de

comunicar e de nos comunicar.

Nada assegura que a informação suponha sempre ser conhecimento, tampouco que o

conhecimento suponha aprendizagem, nem toda aprendizagem suponha otimização humana,

ou seja, educação.

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A área do conhecimento e das comunicações expõe um dos problemas mais antigos e

por vez mais constante no debate pedagógico, mas o expõe em um contexto no que o poder

sobre o controle da informação e dos meios de produção do conhecimento se encontra

concentrado em um setor minoritário, elitista de nossa sociedade.

Existem planejamentos e estratégias nos dois sentidos: no primeiro, sob o olhar da

eficácia social e coletiva para o progresso da humanidade e, em segundo, sob o olhar da

eficácia social e coletiva a partir de graus de participação, decisão e compromisso de maior

alcance social e de maior respeito à singularidade da pessoa e a democracia cultural e

educativa. Sem dúvida nos inclinamos pela segunda, mas isso não pode parecer uma

declaração de intenção e sim um plano de ação pedagógica que possibilite a realização

daquilo que até aqui somente é um principio inspirador da ação ou uma ideia diretora de nossa

possível estratégia.

Para isso é imprescindível que abandonemos posições centradas na ação pedagógica

como aquela que mostra conhecimentos, e temos que adotar posições que considerem a ação

pedagógica como aquela que desenvolve e potencializa os processos que tornam possível a

aquisição da informação, sua seleção, tratamento, ordem, estruturação significativa e sua

transformação em conhecimento. De igual forma temos que abandonar posições que centram

sua atenção no desenvolvimento da coesão social e da cultura cívica, e adotar posições que,

respeitando o anterior, pretendam alcançá-los a partir do desenvolvimento do juízo baseado

em critérios pessoais, em graus de autonomia, em consciência e autoconsciência progressivas

que tornem possível o exercício da liberdade não somente de atuar, mas de pensar, ou seja,

um exercício autêntico.

1.1 A educação como norteadora do crescimento humano

Nossa ideia sobre educação como um tipo de relação que potencializa a otimização da

pessoa se moldura em uma concepção de pessoa como sistema inteligente. Por isso nosso

trabalho centra em determinar quais processos são os responsáveis pela pessoa, como sistema

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inteligente, a manifestar níveis de otimização progressivos, e também em determinar a

tipologia de interações e meios que favoreçam tal otimização. A primeira questão está

centrada na seleção dos processos mais relevantes, enquanto que a segunda deve permitir

inferir as estratégias de ações pedagógicas mais adequadas.

Neste sentido, e entre outros, podemos afirmar que nosso enfoque se baseia, por

orientação, no conjunto daquelas perspectivas que se ocupam do “inteligente” desde o

enfoque do processamento da informação.

Sternberg, em seu trabalho sobre a inteligência humana, tendo em conta as diferentes

perspectivas sobre o processamento da informação, e em ordem a uma melhor compreensão

da inteligência, sustenta que esta deve ser abordada fundamentalmente em função de três

aspectos do processamento humano da informação: os mecanismos do funcionamento

inteligente, os níveis de execução nos que estes mecanismos implicam um rendimento

inteligente, e a relação entre inteligência e mundo externo. No entanto e apesar de

compartilhar a afirmação de Stenberg, cremos que é imprescindível acrescentar no estudo da

inteligência humana um quarto aspecto: o que faz referecia à consciência.

Este aspecto, e a partir dos trabalhos de Alexandre Sanvisens em torno da temática,

acreditamos ser fundamental no estudo da educação e no desenho da ação pedagógica.

Propriamente nos apresenta como a dimensão mais autêntica da inteligência humana e como o

nível de otimização dos sistemas inteligentes mais complexos e mais próximos ao sentido e ao

conceito da ação pedagógica e da educação.

Assim, sustentamos quatro dimensões no comportamento dos sistemas inteligentes: a

codificativa, a adaptativa, a projetiva e a introjetiva. As perspectivas de Stenberg e de Robert

Gagné atendem, se bem que desde posturas diversas, as três primeiras dimensões de forma

mais ou menos completa. Não obstante, dificilmente podemos afirmar- que atendam

propriamente à quarta delas. A dimensão introjetiva, que trata dos fenômenos de

autoconhecimento e de consciência, tem estado escassamente atendida nos estudos sobre a

inteligência, salvo honrosas exceções e, ao contrário, tem sido uma das mais consideradas nos

estudos sobre educação, de forma mais ou menos implícita.

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1.2 As dimensões da otimização humana

A dimensão codificativa permite a pessoa transformar em sistemas de sinais a

realidade percebida e expressar-se em suas diferentes formas mediante a utilização de

códigos. É uma das dimensões que resulta otimizada através dos processos de socialização. O

papel da educação e das instituições educativas é chave na potencialização desta dimensão

humana. Quando falamos desta dimensão estamos referindo àquela que pode manifestar-se

mediante sistemas de codificação tanto analógicos como arbitrário e, inclusive, mediante

sistemas de codificação relacionados com manifestações de caráter natural, espontâneo e “não

codificadas” em sentido estrito, que em ocasiões podem derivar em formas apropriadas para

captar a realidade através de procedimentos intuitivos. A aprendizagem de sistemas de sinais

e linguagem, incluídos os da imagem, a imagem em movimento, a musica e outras linguagens

de caráter artificial, atuam como processos que poderiam considerar-se adequados para a

otimização humana nesta dimensão.

A dimensão adaptativa permite à pessoa adaptar-se às variações do meio e modificar

suas manifestações de acordo com padrões ou valores estabelecidos exteriormente ao sujeito.

Os processos de heteronímia moral, de adaptação no sentido estrito às normas, valores e

atitudes estabelecidas como desejados a nível social e de regulação e auto regulação em

função de critérios externos, são exemplos deste tipo de otimização humana. A educação, na

medida em que supõe conformação a hábitos, aprendizagem de habilidades e adaptação de

estilos cognitivos a sistemas de resolução de problemas, exerce um poder otimizado deste tipo

de dimensão.

Evidentemente existem sistemas artificiais e animais que manifestam níveis elevados

de otimização codificativa e adaptativa, no entanto, em nossa exposição queremos insistir em

que tais níveis, ainda que não suficientes, são necessário para o êxito progressivo da perfeição

humana. Existem projetos pedagógicos, que tem insistido fortemente na potencialização

destas duas primeiras dimensões, e também existem outros que tem criticado tais concepções

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da educação e inclusive que tem afirmado que as mesmas formulam objetivos duvidosos ou

contrários aos que deveriam ser autênticos objetivos da educação.

Neste sentido, e apesar de seu caráter insuficiente, sustentamos que a potencialização e

o progresso nestas duas dimensões da otimização humana são ao final necessário, e que seu

menosprezo pode apresentar dificuldades notáveis quando não insuperáveis no

desenvolvimento das dimensões mais genuinamente humanas que caracterizamos como

projetiva e introjetiva. A adaptação, como a temos conceitualizado, o é em sentido estrito, já

que a caracterizamos pelo seu caráter heterônomo, e supõe um tipo de aprendizagem humana

ativa, mas em função de pautas não geradas pelo próprio sujeito nem baseadas

necessariamente em critérios pessoais.

A dimensão projetiva nos situa em uma perspectiva centrada na otimização humana

como motor de crescimento e de autonomia pessoal. Permite à pessoa progredir na capacidade

de gerar padrões próprios baseados em critérios pessoais, de criar ordem no meio em que se

ambienta, de dotar de significado a informação que o rodeia e, definitivamente, de ser

protagonista e fator fundamental de seu próprio desenvolvimento e otimização. Esta dimensão

está relacionada com a criação e manifestação de formas próprias de pensar, de organizar e de

resolver as situações problemáticas, e de manifestar-se de forma criativa em um meio

complexo.

A dimensão introjetiva permite a pessoa progredir em seu autoconhecimento, em

formar seu autoconceito e em adquirir assim graus progressivos de consciência. Na

otimização humana e caráter introjetiva podem diferenciar-se dois níveis: o relativo à

consciência e outro à autoconsciência. O primeiro permite que a pessoa seja capaz de

autoconhecer-se como autor e como fator de suas ações e pensamentos, de dar-se conta de que

e ela a que atua e pensa. O segundo permite que a pessoa seja capaz de pensar que é ela a que

pensa, que está pensando ou atuando. Este segundo nível, o da autoconsciência, é o que pode

permitir processos de liberação e autodeterminação pessoal e se relaciona com a

imputabilidade e a responsabilidade como dimensões caracteristicamente humanas.

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Quando nos referimos a pessoa como sistema inteligente não estamos reduzindo nossa

análise às dimensões clássicas identificadas como racionais ou intelectuais no sentido estrito,

mas que referimos à pessoa em sua complexa realidade, tanto racional como afetiva, sensitiva,

expressiva e evolutiva.

1.3 Educação e crescimento humano

A educação entendida como otimização nestas quatro dimensões devemos entender e

procurar como um tipo de otimização que afeta a pessoa em todas as suas dimensões, não

somente as do juízo como também as da ação, as dos sentimentos e afetos e a da vontade.

Estamos referindo a educação como catalizador positivo do crescimento humano, integral e

complexo.

No entanto e apesar de tudo que afirmamos, se tem constatado que na educação formal

e nas instituições educacionais, inclusive nos casos em que a preocupação pela qualidade

pedagógica é uma característica destacável delas, o tipo de processo e capacidade menos

implicado é o que afeta as dimensões introjetivas e projetivas da pessoa como sistema

inteligente, variando sua intensidade em ordem decrescente conforme se avança em idade e

exigências acadêmicas por áreas.

Um dos objetivos da educação deve ser sem dúvida a intensificação de ações

pedagógicas no âmbito formal e não formal da educação vinculados aos exercícios e

desenvolvimento de processos afins ou coincidentes com os quais potencializam as dimensões

projetivas e introjetivas da pessoa. Estamos referindo, em primeiro lugar, a situações

pedagógicas que potencializam processos como resolução de problemas de diferentes

tipologias, reais, simulados e/ou formais e que implicam a aquisição e o exercício de

estratégias cognitivas de diferentes graus de complexidade. Referimo-nos, em segundo lugar,

a situações pedagógicas que potencializam processos de construção do próprio eu, desde a

construção de um adequado esquema, preceito e/ou imagem corporal; ao exercício de

processos que desenvolvem as dimensões sensoriais da pessoa em suas diferentes formas e

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que potencializem suas competências expressivas e criativas, até aquelas que colaborem no

desenvolvimento de juízos a partir de critérios pessoais ou aceitados como bons para o

desenvolvimento social da pessoa e do coletivo, e também as que capacitem a pessoa para

dispor da “força moral” que torne possível sua atuação de acordo com os objetivos e valores

construídos por ela.

Somente o exercício daqueles processos que tornam possível que a pessoal reconheça

a si mesma, possibilitando o desenvolvimento de um juízo próprio no marco de jogo de

valores cívicos e sociais aceitados comumente em nossa sociedade, cultural e politicamente,

será possível que a pessoa seja capaz de auto reconhecer-se e de apresentar níveis

progressivos de autonomia e de autoconsciência que garantem sua liberação e

autodeterminação no contexto sociocultural que lhe seja próprio.

2 Em direção a um modelo real de sociedade e de democracia

Tem-se afirmado que o Estado ainda não é uma realidade em nenhum lugar, está

constantemente em processo de mudança, e também se tem afirmado que nenhuma das

realizações da democracia tem realizado o que pode caracterizá-la como democracia legitima,

como democracia real.

Tanto o Estado como a democracia surge com nobres intenções e representam

aproximações consideráveis a um modelo de democracia justa, mas nem um nem outro são

perfeitos nem predizem a solução aos problemas de nosso momento sócio histórico e cultural.

Isso se deve a defeitos em seu funcionamento ou a que não tem assumido com todas

suas consequências o fator ou conjunto de fatores que possam contribuir a sua otimização e

maior eficácia. Apesar dos possíveis defeitos de funcionamento nos inclinamos a pensar que o

problema radica em que não tem assumido todas as consequências necessárias para o êxito de

uma sociedade mais justa e progressiva.

Diante esta situação é necessário refletir uma pouco mais e insistir em nossa prática

pedagógica e, portanto, no marco do desenho da politica educacional, construindo opções que

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contribuíam a uma transformação profunda do Estado e da democracia de corte

excessivamente elitista e escassamente participativa, ou seja, mais preocupadas pelo

equilíbrio social que pelo êxito de formas de vida individuais e comunitárias.

Este tipo de opção deve concretizar-se, por exemplo, em ações orientadas ao êxito de

situações de democracia educativa e cultural e não somente ao da melhora da oferta

democrática de serviços educativos e culturais. Apesar de que faz mais de duas décadas que o

principio de “Democracia Cultural” foi proposto, nem por isso suas realizações são acordadas

com a realidade a que este termo se refere.

2.1 Estado de bem estar e direito a igualdade

A questão do Estado social de direito gira em torno a um pilar fundamental: a

igualdade. No entanto, este direito à igualdade é identificado pelo autor R. Cotarelo como um

direito problemático por excelência. O conceito de liberdade é talvez um dos mais complexos

tanto desde a análise filosófica como jurídica.

Por outro lado, não existe acordo entre os especialistas em torno do conceito de

igualdade em termos jurídicos e em torno ao grau em que os poderes públicos devem atuar

como fatores reais que tornem possível o êxito de níveis progressivos de igualdade.

A possível ambiguidade da igualdade como um valor que a constituição proponha ou

como um principio que garanta, é mais um exemplo do escasso termo e da falta de acordo

sobre o alcance do mesmo. De todos os direitos econômicos e sociais, o da igualdade é o

verdadeiro símbolo que legitima o Estado do Bem Estar. No entanto, é complexo sustentar o

principio de legitimidade de um modelo de Estado que considera básica a intervenção em

matéria social e econômica para o êxito de cotas maiores de igualdade, quando este objetivo

não é compartilhado pela totalidade de seus cidadãos.

O Estado de Bem Estar, desenvolvido especialmente a partir da Segunda Guerra

Mundial, na Europa Ocidental, supõe uma mudança notável em relação aos postulados

liberais do Estado e se caracteriza pelo seu caráter intervencionista, buscando e assumindo

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como responsabilidades próprias a plena ocupação, a extensão da responsabilidade social a

todos os cidadãos e a generalização de um alto nível de consumo, assim como a de um nível

de vida mínimo para todos os cidadãos, incluindo os mais pobres. O êxito do Estado diante

aos problemas de pobreza, insegurança e conflitos são evidentes e apreciados pela maioria

como indicadores de êxito de um dos maiores níveis de solidariedade e eficácia. No entanto,

temos de reconhecer que, seja por causa do estado ou por causas derivadas do processo

histórico mais atual, surgiram novas formas de pobreza e de exclusão social. A primeira

conclusão que identificamos diante a constatação seria que, apesar de que a perspectiva

econômica e as imposições econômicas estão sempre presentes no fenômeno social, não

somente as casualidades econômicas são as responsáveis pelas formas de exploração ou

marginalização, como a pobreza ou a exclusão social.

Existem, junto às causas econômicas, outras de caráter social, politico e cultural, que

assimilam realidades como as que acabamos de mencionar.

Por outro lado, as posições neoconservadoras, contrária às posições neoliberais, não

pretendem renunciar ao Estado de Bem Estar, mas pretendem conservar o capitalismo.

Reduzem ao máximo os êxitos sociais do modelo de Estado e por sua vez preocupados pelo

futuro do capitalismo buscam na religião uma fonte de valores que o sustente. A separação em

três âmbitos; o econômico, o político e o cultural conduzem aos neoconservadores a sustentar

que a mudança cultural e a influencia social que através da religião possa realizar-se são

suficientes para o êxito de sociedades mais justas. Esquecem, sem duvida, que sem

transformações politicas e econômicas profundas, a mudança cultural, ainda sendo necessária,

não é suficiente para o progresso.

2.2 Sobre os direitos humanos

A limitação do modelo de Estado do Bem Estar e os inconiventes das propostas

neoliberais e neoconservadores sobre como abordar a solução dos problemas de caráter

cívico, politico e econômico que caracterizam nossas sociedades no marco da área ocidental e

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democrática do mundo, põe em evidencia o cansaço daqueles discursos que permanecem

vinculados ao que se tem denominado a primeira e a segunda geração dos Direitos Humanos.

Certamente se identifica três níveis de Direitos Humanos: o primeiro, caracterizado

pelos direitos civis e políticos e guiado pelo patrono da liberdade; o segundo, caraterizado

pelos direitos fundamentalmente de caráter econômico e guiado pelo patrono da liberdade; e o

terceiro, caraterizado pelos direitos relativos à paz, a conservação do meio ambiente e a

justiça, caracterizado pelo patrono da solidariedade.

Dificilmente poderemos superar as limitações do modelo de Estado do Bem Estar e

dificilmente poderemos propor alternativas válidas a este modelo para o momento sócio

histórico atual se não nos situarmos em uma terceira dimensão dos Direitos Humanos e

considerarmos como patronos a solidariedade e a justiça.

É necessário modificar as estruturas internas do Estado do Bem Estar, porque não

estamos diante um problema de funcionamento, mas diante uma mudança de dimensão que,

somente assumindo-a em todas as suas consequências, pode permitir afrontar o desafio que

deu lugar ao nascimento de tal modelo de Estado, defendendo a realização dos valores de

liberdade, justiça, segurança e democracia.

3 Breves reflexões pedagógicas

Ao longo da discussão temos insistido em três questões que resumimos a seguir. Em

primeiro lugar, a necessidade de superar os próprios níveis de um modelo democrático elitista

e meramente participativo, em direção de um modelo de democracia real que facilite o

progresso para a construção de uma sociedade mais justa.

Em segundo lugar, a conveniência de uma mudança de valores que, guiadas pela

solidariedade e a justiça, integre e supere uma concepção dos Direitos Humanos baseada no

caráter civil, político e econômico. Tal mudança de valores deve superar o sistema de valores

rígidos e estruturados como respostas aos problemas do mundo, proporcionando um sistema

mais aberto e flexível, orientando e permitindo compreender as grandes perguntas que

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formulamos diante os problemas do mundo e torne possível a formulação de projetos

específicos e diferentes, que encaminhem a uma solução baseado na busca de consenso, na

comunicação e o diálogo.

Em terceiro lugar, a urgente necessidade de procurar o pleno desenvolvimento moral

da pessoa, não somente em sua dimensão racional à autonomia moral, mas também em seus

níveis de felicidade orientados ao êxito de uma felicidade solidária.

Desde estas perspectivas afirmamos que o Estado deve intervir na vida privada na

medida em que o faz em nome da tolerância e a diversidade, ou seja, para proteger a

liberdade. Em contraponto, o Estado não deve intervir em nome da integração e a

homogeneidade ou uniformização. Somente os critérios de admissão e não exclusão devem

ser os padrões a guiar as politicas educacionais de integração. Obviamente, o reconhecimento

e o respeito ao outro se converte assim em um fundamento da democracia mais válido que o

jogo de interesse, seu enfrentamento e equilíbrio que desencadeia no estabelecimento de

compromissos e garantias jurídicas. São as discussões e a argumentação, a busca de posições

para o dialogo e a comunicação, definitivamente, os caminhos que sem duvida temos de

considerar para unir o universal e o particular.

E é aqui que a educação adquiri um papel relevante e fundamental. Mas, como é

possível esta união entre o universal e o particular sem potencializar o particular de cada

individuo? Em função deste objetivo e de tantos outros propostos não é possível defender um

modelo de educação higienizado, extraído da própria cultura e baseado em sistemas de

valores fruto da interseção dos diferentes sistemas que podemos imaginar. É necessário elevar

a discussão e argumentação, o reconhecimento e o respeito ao diferente, mas a partir da defesa

de nossa identidade e da potenciação das outras identidades em particular.

Para isso é necessário entender de novo que o papel da educação não é, evidentemente,

somente transmissão de certos valores, nem tampouco somente potencialização de diferentes

sistemas de valores, mas que seu autentico sentido em uma sociedade coletiva deve adquirir

no aparentemente contraditório e certamente complexo jogo de potencialização dos valores

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que ajudem na construção de sujeitos e culturas aos que se lhes reconhece sua memoria e sua

historia, sua identidade, e também seus valores.

Uma das argumentações que acompanha nosso interesse pela educação moral e sua

implantação em âmbitos pedagógicos como a instituição escolar, é a necessidade de apreciar e

aprofundar a vida em democracia e a possibilidades que esta oferece tanto em suas versões

políticos-institucionais como em suas manifestações interpessoais. Apesar de suas limitações,

a democracia é uma ótima forma de vida em sociedade que permite a apresentação de

conflitos de valor tanto de caráter individual como coletivo. Nossa preocupação pela educação

moral está suficientemente justificada na medida em que a democracia torna possível o uso do

dialogo na exposição destes conflitos de valor, na criação e recriação de princípios e normas

e, por vez, precisa deste dialogo e construção de valores e normas para se mantiver e

aprofundar como tal democracia.

A educação moral assim entendida não é algo novo, é condição necessária para a

prática de uma educação integral, é pratica habitual em muitas instituições pedagógicas que,

preocupadas pela pessoa de seus alunos e alunas, enfatizam esta dimensão da formação

humana; mas também é uma prática subvalorizada, não compreendida e, inclusive,

confundida com a educação religiosa, a educação politica e a educação cívica e social.

A sociedade coletiva na que vivemos exige um modelo de educação moral que torne

possível a convivência justa, que seja respeitoso com a autonomia pessoal e que construa

critérios racionais. Este modelo se distancia de toda posição autoritária que se autoconsidere

capaz de decidir o que está bem e o que está mal, mas também distancia daquelas posições

que, diante a situações de conflito moral, afirmam que o máximo que podemos esperar é que

cada um de nós escolha segundo critérios subjetivos e estritamente pessoais.

Este modelo de educação moral, baseado na construção racional e autônoma de

valores, não defende determinados valores absolutos, mas tampouco é relativista. Este

modelo, que é o que compartilhamos, afirma que através da razão e do dialogo podemos

determinar alguns princípios de valores que possam guiar a conduta de todos nós diante as

situações concretas de conflito de valores.

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Através deste modelo deve ser possível crescer em autonomia e, assim, reconhecer no

outro e em seus direito a ser e crescer em autonomia, um limite à possível pressão ou

alienação que as diferenças individuais possam gerar.

A defesa de um modelo de educação moral na escola como o que pensamos é

especialmente válido para o modelo de escola pluralista, no que convivem alunos de

diferentes opções ideológicas de caráter político e religioso. Acreditamos que deveria

entender como um mínimo valido para construir, a partir dele e por cada um de nós, nossa

própria forma de pensar e de atuar com os outros agentes educativos escolares, quer sejam

formais ou informais, como por exemplo, a família, os amigos, as instituições politicas e

religiosas, ou sistemas de comunicação em massa.

Nosso modelo social e cultural exige cidadãos com capacidade de iniciativa, com

autonomia, e acostumados com o êxito dos objetivos propostos. Sem um exercício

pedagógico formalizado e motivador, dificilmente poderemos confiar no êxito destes

objetivos de forma espontânea e natural.

A educação moral e o trabalho pedagógico sobre procedimentos atitudes e valores se

apresentam como uma urgência pedagógica diante uma sociedade na que os grandes

problemas da humanidade e os princípios que regulam as relações entre os homens, às

mulheres e os povos, e as relações destes com seu entorno natural, requerem reorientações

éticas e morais e não somente soluções técnicas e cientificas.

Referências

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: apresentação dos temas transversais, ética. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997. COTARELO, R. Del Estado del Bienestar al Estado del Malestar. Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1986. DURKHEIM, Emile. Educação moral.Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

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FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981a. _______, Paulo. Educação como prática da liberdade. 12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981b. GAGNÉ, R. As condições da Aprendizagem. Rio de Janeiro. Educativa, 1979. GHIRALDELLI JR, Paulo, O que é Filosofia da Educação? Rio de Janeiro: DP&A, 2000. KOHAN, Walter Omar; Waksman, A. M. (Org.). Ensino de filosofia – perspectivas.Belo Horizonte: Autêntica, 2002. SANVISENS, A. Condicionamentos sociopoliticos da educação. Barcelona: Oikos Tau, 1984. STERNBERG, R.J. Inteligencia humana I y II. Barcelona: Paidós Ibérica, 1987.

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GRUPO DE ESTUDO ACERCA DE MARTIN BUBER: REPERCUSSÕES À PRÁTICA PEDAGÓGICA DE PROFESSORES QUE VISE À HUMANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO

Claudio Fernando da Silva1 UFPE

Resumo: Este artigo é um convite à reflexão e um desafio à prática pedagógica de professores que visa à humanização dos seus educandos, tendo como base o pensamento filosófico e pedagógico de Martin Buber. Assim, apresentamos nossa abordagem na perspectiva de um pequeno grupo de estudo de professores que, por iniciativa própria, desenvolveu uma prática de formação continuada, partindo do pressuposto que o Poder Público e a Universidade diretamente não dão conta da formação inicial. Desse modo, pôde-se constatar a formação deste grupo enquanto uma possibilidade formativa que dê suporte pedagógico aos professores, onde a reflexão e a ação estejam intimamente relacionadas, ou seja, onde a gênese e o desenvolvimento de uma reflexão se traduzam em suas práticas cotidianas. Especificamente, investigou-se a íntima relação entre o pensamento de Martin Buber e as experiências concretas dos professores à luz do referencial de formação humana. Palavras-chave: Formação Humana. Martin Buber. Formação de Professores.

A escola é um campo onde se manifestam tensões e conflitos de interesses da

sociedade. Sobre isso Young (2007, p. 1287) se posiciona com a questão-tema: “para que

servem as escolas?”. A humanização, nessa perspectiva, seria a resposta à pergunta: para que

serve a prática pedagógica do professor? No presente trabalho procuramos desenvolver uma

possível resposta a esta indagação, desenvolvendo uma reflexão sobre a prática pedagógica do

professor. Portanto, escolhemos como objeto de análise o pensamento filosófico e pedagógico

de Martin Buber. Assumimos o pensamento deste filósofo enquanto uma proposta que possa

promover subsídios para a formação de professores, na intenção de vê-lo reverberar em suas

práticas pedagógicas.

A expressão formação humana faz alusão à ideia de que a humanização é um

processo. Significa que nosso nascimento biológico e mesmo as diversas formas de

socialização não são uma garantia de sua realização. Ao contrário, faz-se necessário a

existência de uma orientação processual do ser humano para essa finalidade. Portanto, “ao

longo do seu desenvolvimento o ser humano singular precisa aprender a abraçar de forma

1 Mestrando PPGE/UFPE. [email protected]

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autônoma esse ideal formativo e dar-lhe continuidade de um modo próprio” (FREITAS et al,

2014).

Nessa perspectiva, partimos da visão da educação como o processo que tem o objetivo

de promover a formação humana, constituindo-se, assim, como dimensão essencial do

processo educativo e tarefa fundamental do educador. Tal visão se assenta no reconhecimento

de que a educação é um processo que abarca a integralidade da existência humana, não se

restringindo, apenas, a aspectos cognitivos, identificados na instrução (SANTIAGO, 2008, p.

277).

Nesse mesmo sentido, Policarpo (2011) enfatiza que a educação também se caracteriza

pelo cuidado e pelo reconhecimento e respeito pela liberdade do educando, esta entendida

como instância capaz de orientar sua vida e condição no mundo. É território sagrado que deve

ser respeitado pelo educador quanto à orientação dos seus educandos. O educador precisa

ajudar o educando a encontrá-la, a saber ouvi-la e a exercitá-la, sem jamais impor sua

vontade.

Seguindo essa direção, a questão da formação de professores é objeto de constante

preocupação por parte daqueles educadores que se interessam pelos destinos da educação

(SEVERINO, 2007, p.122). Barretto (2015, p.681), por sua vez, afirma que “os próprios

processos de formação de docentes vem exercendo um forte papel impulsionador do

crescimento do ensino superior no Brasil”. A autora também afirma que, a partir dos anos

2000, o MEC assumiu um papel proativo na formação de docentes da educação básica,

concebendo-a como processo contínuo, que se inicia na formação inicial e prossegue ao longo

da vida profissional.

Severino (2007, p.122) aprofunda o presente debate e fala sobre a tremenda

“precariedade em que se encontra a situação dos cursos que cuidam da formação”, sejam os

cursos de Magistério, de Pedagogia ou de Licenciatura. Apesar dos debates e da grande

mobilização, poucos foram os avanços reais. Barretto (2015, p.687) sinaliza as fragilidades

quanto às qualidades desses cursos, atribuindo como uma das causas, as condições recentes de

sua expansão.

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Além disso, Barretto (2015, p.688) destaca que a preparação da profissão docente

exige uma formação que vá além do racional-instrumental, com vista a enfrentar problemas

derivados de outra ordem de demandas, como aqueles que acontecem na escola. Nessa ótica,

Severino (2006, p.621), se coloca de forma contundente e, em síntese, expressa que quando se fala da formação do educador, impõe-se clarear bem a questão. Não se trata apenas da sua habilitação técnica, da aquisição e do domínio de informações e habilidades didáticas. Impõe-se ter me mente a formação no sentido de uma autêntica Bildung, ou seja, da formação humana em sua integralidade.

Ademais, o que é lícito esperar do professor? Faz-se necessário, primeiramente,

embasar a prática pedagógica do professor numa concepção muito clara da razão de ser da

Educação e do ser-educador, além de dar condições para que a formação docente seja

plenamente consciente de como humanizar o educando. Neste sentido, um grupo de

professores decidiu estudar e refletir o pensamento filosófico e pedagógico de Martin Buber,

na expectativa de ajudar na sua prática pedagógica.

Martin Buber, um pensador atípico

Para Röhr (2013, p.117), apesar de considerado um “homem atípico”, Buber tem

exercido, através de sua obra, uma influência notável em diversos campos do saber. Para

Zuben (2001, p. 8), a “fonte do pensamento de Buber é sua vida; sua existência é a

manifestação concreta de suas convicções”.

Cabe ressaltar algumas informações bibliográficas sobre Martin Buber. Esse pensador

nasceu no ano de 1878 em Viena. A separação dos pais, aos três anos de idade, o marcou

profundamente, pois resultou no afastamento repentino da mãe. Foi criado pelos avós

paternos num ambiente religioso e erudito. Tanto a ausência não explicada da mãe, quanto o

acolhimento amoroso dos avós resultaram em uma sensibilidade pelas relações inter-humanas

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(RÖHR, 2013, p.121). Para Zuben (2001, p.13), Buber emanava de sua pessoa uma presença

autêntica e a “profundidade de seu semblante residia na presença a si mesmo”.

Grupo de estudo dos professores

Partindo do pressuposto que nem o Poder Público, nem a Universidade dão conta da

formação inicial e da formação continuada, num sentido mais amplo que inclua a

humanização dos educandos, um pequeno grupo de professores decidiu, por iniciativa própria,

promover sua formação a partir de estudos e reflexões, compartilhando as repercussões desta

formação em suas práticas. Esses professores atuam na educação básica e convivem a mais de

oito anos no cotidiano escolar.

Para tanto, com a participação do autor desse trabalho e de seu Orientador, a proposta

do pensamento filosófico e pedagógico de Martin Buber foi aceita. Assim, a metodologia foi

elaborada com encontros quinzenais, de uma hora e meia cada, tendo como plano de estudo e

de reflexão as seguintes obras de Buber: O Caminho do Homem Segundo a Doutrina

Hassídica; Do diálogo e Do Dialógico; e Eu e Tu.

Atualmente com três meses de encontros, o grupo tem concentrado suas reflexões no

livro “O Caminho do Homem...” e utilizado as lendas contidas na obra – sobre o caminho

ético-existencial a ser tomado pelo homem – com a intenção de extrair os elementos

significativos para uma reflexão direcionada à prática pedagógica do educador. Dessa forma,

apresentaremos, em síntese, o que foi refletido e estudado até agora e que tem repercutido na

prática pedagógica desses professores.

O pequeno livro de Buber, intitulado “O Caminho do Homem Segundo a Doutrina

Hassídica”, trata de seis falas que Buber proferiu em abril de 1947, na cidade de Bentvelt,

Holanda, na maturidade de seus quase setenta anos, condensando seu pensamento filosófico e

religioso em linguagem poética (RÖHR, 2002, p. 3). Buber não aponta uma metodologia

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(SANTIAGO, 2008), para Röhr (2002, p. 3), sua intenção é mostrar que o Hassidismo2 aponta

para algo do homem em geral, sem que este, porém, possa ser isolado da sua origem.

Baseados nos ensinamentos e anedotas dos Tzadikim, os grandes líderes religiosos das

comunidades hassídicas, esse livro revela uma postura pedagógica favorável à formação

humana, que perpassa as seis temáticas abordada por Buber: A Autocontemplação; O

Caminho Especifico; Determinação; Começar Consigo; Não se Preocupar Consigo e,

finalmente, Aqui Onde se Está. Sem negar a estreita interligação desses aspectos, seguimos a

sequência indicada por Buber (RÖHR, 2001b, p. 3).

A Autocontemplação, para Buber, é propriamente o início do caminho do homem. Ele

se utiliza de uma anedota hassídica para explicitar essa problemática: uma conversa entre um

oficial de polícia e o Rabi Schnëur Salman, [...] o oficial perguntou: “Como é que Deus, o onisciente, perguntou a Adão: ‘Onde está você’?”. “Você acredita”, retrucou o rav3, “que a Escritura é eterna e todos os tempos, todos os seres viventes e todos os homens estão englobados por ela?”, “Eu acredito”, disse ele. “Então”, disse o zaddik4, “Deus diz a todos os homens em todos os tempos; ‘Onde você está em seu mundo?’ [...]” (BUBER, 2011, p.7-8).

Trata-se de uma pergunta dirigida a cada homem que, tal como Adão, o primeiro

homem, esconde-se para não assumir a responsabilidade na vida. Para Röhr (2002, p. 15), o

Rabi não está interessado em mostrar erudição. A pergunta visa uma controvérsia. Uma

“verdadeira pergunta” foi respondida com uma chamada de atenção pessoal. A questão refere-

se à fuga em relação à responsabilidade, o que ocorre quando criamos sistemas de

esconderijos.Para Santiago (2008, p. 296), a questão fundamental que caracteriza o problema

da Autocontemplação é o reconhecimento desse desvio do homem de si mesmo. Para Buber, o

2 O Hassidismo foi um movimento de tendência mística, popular existente no leste europeu, que se caracterizou

pelo esforço de renovação da mística judaica, através de uma busca de santidade, piedade e união com Deus, que, efetivamente, ocorre este retorno ao judaísmo. O Hassidismo representava uma reação ao rabinismo tradicional, legalista e intelectual. (SANTIAGO, 2008, p.30)

3 Professor. 4 Guardião, designação do líder das comunidades hassídicas.

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homem que se esconde de si mesmo é o ponto de partida da educação e, consequentemente,

uma postura pedagógica favorável à formação humana.

Voltando essa reflexão para a questão central deste trabalho, podemos observar que o

Rabi preenche uma função pedagógica, revelou-se um educador com a postura de abertura do

oficial (RÖRH, 2001b). O agir do Rabi vai revelando uma postura pedagógica progressiva, a

qual mantém um diálogo que se inicia pelo oficial, com uma pergunta racional e se transforma

numa pergunta existencial, atingindo o coração da pessoa. O que se espera do educador nessa

situação? Auxiliar o educando a encontrar seu caminho, não apontando caminhos.

Com a Autocontemplação, o educador procurar “destruir” os sistemas de esconderijos

do educando: mostrando em que se meteu e despertar nele a grande vontade de sair. A

inquietude faz parte, inicialmente, quando o educando começa a enfrentar o desafio; e o

caminho se inicia no momento em que o educando enfrenta a voz interior. Nessa tarefa, o

educador auxilia o educando a encontrar a si mesmo. Santiago (2008, p.296) pontua que a

Autocontemplação implica num educar para o Autorreconhecimento e a Responsabilidade,

que se converte em questão pedagógica fundamental que Buber atribui ao educador.

O Caminho Particular. O caminho do homem não é o mesmo nem para todos, nem

para alguns. O caminho é absolutamente individual (RÖHR, 2001b, p. 17). Buber inicia essa

reflexão com um ensinamento hassídico: Certa vez, o rabi Bar de Radoschitz pediu ao professor, o “vidente” de Lublin: “mostre-me um caminho geral para servir a Deus!” o zaddik respondeu: “Não se deve tratar de dizer ao homem qual é o caminho que ele deve percorrer. Pois existe um caminho para servir a Deus pelo estudo; outro, pela oração; outro, pelo jejum; e outro, pela comida. Cada um deve saber por qual caminho seu coração anseia e esse deve ser o escolhido, com toda a disposição” (BUBER, 2011, p.15-16).

O caráter essencialmente individual da aventura humana nos coloca ante os riscos do

apontar o caminho ao outro, assim como imitar o outro, vivendo de forma inautêntica

(SANTIAGO, 2008, p. 297). Para Buber, buscar o caminho do homem significa procurar o

próprio caminho. Conhecer o próprio caminho supõe, necessariamente, conhecer sua própria

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essência, conhecer as propriedades e tendências que nos caracterizam: “Em cada um há algo

precioso, algo que inexiste em qualquer outra pessoa” (BUBER, 2011, p.16). Mas aquilo que

torna um homem “precioso” só pode ser descoberto por ele mesmo, quando ele assumir

verdadeiramente seu sentimento mais forte, seu desejo central, que está dentro dele, que

movimenta seu interior.

Resumindo em termos de uma postura pedagógica, podemos concluir que o educador

não tem em mãos uma diretriz universal, nem um exemplo ideal para determinar seu agir. A

orientação que ele tem é a de que deve buscar o seu caminho em auxiliar seu educando a

encontrar o caminho próprio dele (RÖHR, 2001b, p.17).

Para Santiago (2008, p.297), Buber considera que o caminho específico é encontrado

por aquele que se dedica a essa busca, movido por uma sensibilidade de ir em direção ao mais

íntimo de si. Ai reside a postura pedagógica: ajudar o educando nessa direção, “tudo depende

deque ele direcione a força dessa sensação, dessa inclinação do ocasional para o necessário,

do relativo para o absoluto”

Determinação. Para elucidar a importância da determinação, aprendemos sobre seu

sentido por meio de uma narrativa hassídica. Certa vez, um hassídico do “vidente de Lublin” jejuou de Sabá a Sabá. Na tarde de sexta-feira, ele sentiu uma sede tão terrível que achou que iria morrer. Daí ele avistou um poço, foi até lá e quis beber. Ao mesmo tempo, porém, ele se lembrou de que estaria estragando todo o trabalho da semana por uma horinha que ainda teria de suportar. Ele não bebeu e se afastou do poço. Estava orgulhoso por ter superado a difícil prova. Ao perceber isso, falou para si mesmo: “É melhor eu ir lá e beber do que meu coração ser tomado por orgulho”. Ele voltou e se aproximou do poço. Quando se preparava para se curvar sobre ele para apanhar a água, percebeu que a sede tinha sumido. Depois do início do Sabá, ele foi à casa do professor. “Trabalho malfeito”, disse aquele que estava junto à soleira (BUBER, 2011, p.23).

Buber viu essa peculiar anedota, no inicio, com constrangimento, e somente a

compreendeu anos depois. De fato, à primeira vista, não é fácil aceitar a reprovação dessa luta

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interior que o hassid5 enfrentou. A crítica do Tzadik, diante da tarefa audaciosa, não é a

intenção que é condenável, mas existe algo no proceder do hassid que o impede,

necessariamente, de atingir sua meta: o que está sendo censurado é o que se avança e recua; o

caráter ziguezague do agir é que é grave: “Trabalho de retalhos!”. O contrário disso seria “um

trabalho de uma só forma” (RÖHR, 200b, p.18). Para Buber, o homem é capaz de unificar sua

alma. Tal unificação deve acontecer antes de o homem iniciar uma obra excepcional.

Nenhuma unificação da alma é definitiva.

De novo perguntamos, como Röhr (2001b, p.19), a contribuição dessa reflexão para

uma postura pedagógica do educador. O Tzadik se mostra numa atitude atenta à postura

interior do hassid. Ele se coloca na tarefa de zelar pela coerência do estado da alma com as

obras e metas que o hassid escolhe. Santiago e Röhr (2008, p.300; 2001b, p.19), ampliam

mais a reflexão da ação do Tzadik, acrescentando que o educador deve ter uma atitude de

vigilância, que se impõe como tarefa educativa em estar atento àquelas situações que

expressam a falta de coerência e o distanciamento do caminho. Ele deve ser capaz de perceber

e ajudar o outro, também, quando as obras que ele propõe realizar ultrapassam as suas

possibilidades; reconhecendo que um fracasso, uma falsa vitória não contribui para o

fortalecimento da alma. Só obras condizentes com o estado da alma permitem o progresso. O

educador nesse sentido tem que assumir o papel de guarda da unificação da alma – corpo e

espírito – dos seus discípulos.

Começar Consigo Mesmo. A questão mostra a origem de todos os conflitos. Para

Santiago (2008, p.301), o tema envolve o problema da coerência que deve orientar a

existência autêntica, cuja ausência se manifesta nos conflitos que se instalam na relação entre

os homens, e aposta para a verdadeira origem deles, a qual se encontra dentro do próprio

homem. Certa vez, os grandes de Israel foram fazer uma visita ao rabi Jizchak de Worki. A conversa girava em torno de um empregado íntegro para comandar a casa (...), como Jose, em cuja mão tudo germinava. O Rabi Jizchak objetou (...), tudo depende do dono da casa. (...). Por isso fui até meu professor, o

5 Discípulo, seguidor de um Tzadik.

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Rabi David de Lelow (...). Ele me respondeu: ‘por que você está falando comigo? Fale com você mesmo!’. Tive de dar um tempo à sua resposta antes de compreendê-la, mas o fiz quando me quando me recordei das palavras do Baal Schem: ‘Existe o pensamento, a palavra, a ação (...)’ (BUBER, 2011, p.27).

Buber, apoiado na interpretação dessa visão hassídica, diz que o conflito se origina da

incoerência que caracteriza a vida do homem. O verdadeiro conflito está dentro dos homens,

está entre seus aspectos fundamentais: o pensamento, a palavra e a ação (SANTIAGO, 2008,

p. 302). A incoerência que povoa a alma desse homem gera confusão e envenena a relação

dele com os outros. Nessa mesma reflexão, acentua Röhr (2001b, p. 20), o caminho indicado

é esse: “perceber que o conflito entre ele e o outro tem origem nele mesmo, procurar superar o

conflito interior e começar ovas relações com os próximos, agora como homem transformado,

pacificado”.

O começar consigo mesmo é a saída na busca de uma maior coerência, colocando a si

mesmo em ordem e encontrando a si mesmo em meio à confusão existente entre o que pensa,

fala e age. Como essa problemática nos ajuda na postura pedagógica?Para Santiago (2008, p.

302), quando o educador reconhece a inclusão do espiritual na formação, ele deverá ajudar

seu educando a afastar-se de uma postura meramente defensiva, a qual atribui ao outro a

responsabilidade pelos descaminhos de sua existência e do mundo. Röhr (2001b, p.20-21) vai

além: questiona o que significa, para o educador, determinar a sua prática a partir de uma

ordem interior que sincroniza o seu pensar, a palavra e ação. Cada educador tem que começar

consigo mesmo. Para Buber, a primeira tentativa é procurar a culpa do conflito nas

circunstâncias e nos outros. Essa atitude só serve para perpetuar o conflito, a dissonância entre

teoria e prática educacional.

Não se Ocupar Consigo Mesmo. A questão abordada entre dois Rabis, um, dirigindo-

se ao outro, afirma:

‘Veja, fiquei grisalho na cabeça e na barba, e ainda nem cumpri uma penitência!’ ‘Ah, meu amigo’, retrucou o Rabi Elieser, ‘você só pensa em você mesmo. Esqueça de você e pense no mundo!’ (BUBER, 2011, p.37).

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Para Buber, parece que há uma suposta contradição com tudo o que foi relatado até

agora sobre o ensinamento hassídico. “Aprendemos que cada um deve tomar consciência de si

mesmo, escolher seu caminho especial, unificar o seu ser, começar consigo mesmo; agora é

para esquecer-nos de nós mesmos” (BUBER, 2011, p.37).Buber põe em evidência que é a

nossa tarefa no mundo começar conosco mesmo; isso é coerente com o que foi falado. Porém,

também surge como um ingrediente necessário, como um estágio necessário em seu lugar no

todo. É preciso apenas perguntar: “Para quê”? Buber coloca que a resposta não é por mim.

Começar, mas não terminar consigo.

Santiago (2008, p. 303), defende que a realização desse projeto buberiano tem como

pressuposto o descentramento de si em função do outro. Diz o ensinamento hassídico: “A

alma não tem uma meta em si mesma. Bem que cada alma deve se conhecer, purificar-se,

tornar-se perfeita, não por causa de si, nem por causa de sua felicidade terrena, nem alcançar

sua felicidade celestial, mas por causa da obra que tem que realizar no mundo por Deus”

(BUBER, 2011, p.40-41). Nessa questão divide-se a verdadeira humildade e a soberba do

homem, ainda que ele se esconda atrás de motivos aparentemente nobres. Na soberba o

homem pensa em si; na humildade ele visa ao mundo (RÖHR, 2001b, p.20). Que contribuição

esse ensinamento hassídico tem para o educador, em seu agir sobre o educando? Ajuda o

educando a tirar o foco de si, evitando ficar preso a sentimentos de culpa. O educador ter o

panorama que a formação do seu educando é em vista de um projeto pessoal, ou de pessoas

cientes da sua responsabilidade com o mundo em que vive e cuja realização de sua ação.

Pode parecer que o educador trava uma luta sacrificante em prol do sucesso do seu

educando. O motivo pode ser encontrado em vontades egocêntricas do educador. A decepção

do educador, quando o educando escolhe um caminho diferente do projetado por ele, é sinal

evidente de um egoísmo velado. Em vez de simplesmente cumprir sua tarefa em verificar se o

novo caminho tomado pelo educando corresponde ou não ao interior dele, o educador lembra

de fracasso e de culpa (RÖHR, 2001b, p.22).

Aqui Onde Estamos. A temática expõe uma discussão: a possibilidade de realização da

existência como um tesouro a ser encontrado. Tudo esconde uma substância secreta de alma

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que depende de nós para alcançar sua forma pura, sua concretização. Tal realização parece

requerer momentos e lugares especiais. Para esclarecer essa problemática, Buber narra a

história do Eisik, filho de Jekel, em busca de um valioso tesouro que lhe aparece em sonho,

indicando o lugar. Ao chegar, e sendo inquirido pelo chefe dos vigias, narrou seu sonho e o

fato teve esse desfecho: Quando o sonho reapareceu pela terceira vez, Eisik partiu para Praga. Mas a ponte era guardada o tempo todo por vigias, e ele não tinha coragem de cavar. Mesmo assim, ele ia até a ponte todos os dias pela manhã e ficava rodeando-a até a noite. Finalmente o chefe dos vigias, que percebera seus movimentos, perguntou-lhe amistosamente se ele estava procurando alguma coisa ou se esperava por alguém. Eisik contou o sonho que o levara para o país distante. O chefe riu: ‘E aqui está você, pobre coitado com suas solas esburacadas, que peregrinou até Praga por causa de um sonho! Se fosse assim, eu é teria de ter obedecido a um sonho e ido até Cracóvia escavar um tesouro na casa um tesouro na casa de um judeu, Eisik, filho de Jekel – esse era seu nome. Eisik, filho de Jekel! Imagine só eu ficar batendo em todas as casas, lá onde metade dos judeus se chama eisik e a outra metade, Jekel’. E ele voltou a ri. Eisik curvou-se para cumprimentá-lo e voltou para casa, escavou o tesouro e construiu a casa de orações que se chama Reb Eisik Reb Jekels Schul (BUBER, 2011, p.43).

Embora a história faça alusão a um deslocamento espacial e tome como referência

objetos materiais, Santiago (2008, p.305) esclarece algo mais: aos lugares, pessoas e coisas

nos quais depositamos a possibilidade dessa realização, deslocando-a para a vivência concreta

na qual somo convidados a atuar. Na sociedade massificada, são raros os momentos em que a

grande maioria das pessoas sente, com plena consciência, que não está realizando a sua

própria existência. Porém, as buscas desesperadas de satisfação superficiais revelam a

presença constante do sentimento de falta dessa realização (RÖHR, 2001b, p.23).

Há algo que podemos encontrar num único lugar no mundo. É um grande tesouro que

podemos chamar de concretização da existência. E o lugar em que estamos é onde este

tesouro deve ser encontrado, como explica Buber: O ambiente que percebo como natural, a situação que o destino me confiou, aquilo com que me confronto dia após dia, aquilo que me exige dia após dia:

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aqui está minha tarefa principal e aqui está a concretização da existência que ainda não realizei (BUBER, 2011, p.45).

O ensinamento do Baal Schem nos diz que nenhum encontro com um ser ou uma coisa

no decorrer da nossa vida prescinde de um significado oculto, e mais: As pessoas com os quais convivemos ou com as quais encontramos vez ou outra, os animais que nos ajuda em nosso negócio, o solo que cultivamos, as matérias-primas que manufaturamos, os equipamentos que nos servem – tudo esconde uma substância espiritual secreta, que depende de nós para alcançar sua forma pura, sua concretização, se desprezamos essa substância espiritual que foi enviada ao nosso caminho, então vamos prestar atenção apenas aos seus usos, sem desenvolver uma relação autêntica com o ser ou com a coisa, em cujas vidas deveríamos tomar parte, assim como o ser ou a coisa tomariam parte na nossa vida: então vamos desperdiçar a existência autêntica, concretizada (BUBER,2011, p.46).

Röhr (2001b, p.23) enfatiza nesse ensinamento, o ponto mais profundo da metafísica

hassídica e, ao mesmo tempo, o pressuposto fundamental da antropologia filosófica, da

dialógica buberiana. Acentua Santiago (2008, p.306): significa que a realização autêntica

depende do direcionamento que é dado à vida, no sentido de melhor aproveitar as

oportunidades que nos colocam diante da substância da alma das coisas, estabelecendo uma

relação verdadeira para com os seres e as coisas que deveriam participar de nossa vida, como

nós, da deles.

A nossa realização acontece nesse mundo e não somente, como algumas religiões

acreditam, num outro, futuro, transcendente. Buber (2011, p.47) não admite a existência de

dois mundos. Enxergar o mundo dividido em dois é um desvio que tem que ser superado. “O

homem é criado para unificar os dois mundos. Ele contribui para essa unidade por meio de

uma vida santa, numa relação com o mundo no qual ele foi posto, no lugar onde vive”. Buber

ilustra isso com a anedota: Certa vez, o Rabi Mendel de Kozk surpreendeu alguns homens cultos que o visitaram com a pergunta: ‘Onde mora Deus’. Eles riram dele: ‘o que você está falando? O mundo está cheio de seu esplendor’. Mas ele respondeu à

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própria pergunta: ‘Deus mora onde permitimos que entre’ (BUBER, 2011, p.48-49).

Para Buber, o importante é deixar Deus entrar. Mas só podemos deixá-lo entrar no

lugar onde estamos, onde estamos de verdade, lá onde vivemos numa vida de verdade. Se

mantemos um convívio sagrado com nosso pequeno mundo, que nos é familiar, se estamos

ajudando, no âmbito da criação na qual vivemos, que a substância sagrada do espírito alcance

a completude, então estamos promovendo, no lugar onde vivemos, uma moradia de Deus,

estamos permitindo que Ele entre.

Encontramos nesse último item a formulação mais profunda como dica para uma

postura pedagógica em Buber: a responsabilidade do educador em educar para que o

educando assuma a co-responsabilidade com a plena realização dos entes e das coisas no

mundo (RÖHR, 2001b, p. 23-24). Essa co-responsabilidade não está nas metas modernas da

educação. O alcance delas está profundamente ameaçado quando o homem não começa

exatamente onde está. Esse começo está caracterizado por uma abertura para enxergar as

necessidades da substância da alma do outro. Para o educador captar as necessidades da

substância da alma do seu educando, necessita da experiência de um verdadeiro encontro, a

relação EU-TU. A percepção e aceitação profunda que, no encontro dialógico, são mútuas,

entre as duas pessoas envolvidas, são unilaterais na relação pedagógica; partem do educador.

Buber (RÖHR, 2013, p.136-137) afirma: “O educador se encontra nos dois pólos da situação

comum, o educando só num”. Tudo depende, nesse caso, da capacidade do educador de

“experienciar” o outro lado. Na sua postura pedagógica, o educador precisa estar, sem que a

atuação da sua alma enfraqueça por isso, ao mesmo tempo no outro lado, na superfície da

outra alma que o recebe. Ele precisa sentir como repercutem seus atos na alma do educando.

Tal postura pode conquistar a confiança do educando na atuação do educador, pois ele se

sente compreendido.

Tecendo algumas considerações, principalmente a partir do grupo de estudo dos

professores, percebemos uma possibilidade onde o pensamento filosófico e pedagógico de

Martin Buber solidifica a importância da interface teoria-prática. Nesse sentido, refazendo as

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reflexões que perpassaram as temáticas abordadas a partir da exposição do livrinho, o

Caminho do homem, por Buber, podemos extrair princípios que podem servir como dicas para

o educador em sua prática pedagógica, tendo como intenção a formação humana dos seus

educandos: auxiliar o educando que está fora do seu caminho, dando como condição a

autocontemplação, não permitir que o educando se esconda de si mesmo; o educador não tem

uma diretriz universal, nem um exemplo ou ideal, ele deve procurar ajudar o educando a

encontrar o seu caminho; o educador não pode nem participar parcialmente da tarefa de

unificação da alma do educando.

Ele pode ter uma atenção vigilante quando as obras ultrapassam a capacidade da alma

do educando; precisa, também, observar sua prática pedagógica evitando atitude de

ziguezague; o educador deve ser coerente com o pensamento, a palavra e a ação, criando a

ordem desses três por dentro de si – que é onde está a verdadeira origem dos conflitos. Assim,

o educador pode determinar sua prática a partir da sincronização do pensar, do falar e do agir;

ele não pode aceitar qualquer caminho do seu educando tomado como pose de convicção,

tendo como critério: para quê?; o educador tem a responsabilidade de educar para que o

educando assuma a co-responsabilidade com a plena realização dos entes e das coisas do

mundo. O educador também deve captar as necessidades da substância da alma do educando

no encontro genuíno, a relação EU-TU, encontrando-se nos dois polos da situação em

comum, enquanto o educando se encontra num só. Santiago (2008) coloca: Educação, para

Buber, é relação; uma relação direta, isenta de propósitos, cujo fim é ela mesma. Educar

revela-se como possibilidade de conduzir o educando a mudanças na relação dele com o

outro, com o mundo, levando-o a pronunciar a palavra TU, no modo de uma existência

autêntica. Esta ação é realizada apenas com a existência pessoal.

Referências

BUBER, M. O caminho do homem segundo o ensinamento chassídico. Tradução Claudia Abeling. SP: É Realizações, 2011.

______. Eu e Tu. Tradução Newton Aquiles Von Zuben, SP: Centauro, 2001.

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BARRETTO, E.S.S. Politicas de formação docente para a educação básica no Brasil: embates contemporâneos. REB/ANPEd, RJ, v.20, n.62, p.679-701, jul./set. 2015.

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O MÉTODO DIALÉTICO NA PESQUISA SOBRE POLITICA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Cláudio Wilson dos Santos Pereira∗ Leila Pio Mororó∗∗

PPGED/UESB

Resumo: O presente ensaio tem como objetivo apresentar discussões sobre a utilização do método dialético nas pesquisas de política pública de formação de professores. Constitui-se de discussões preliminares do capítulo teórico-metodológico do projeto de dissertação que tem como objeto de estudo as licenciaturas no Instituto Federal do Norte de Minas Gerais tendo como foco as políticas de formação de professores. O trabalho Parte se do pressuposto que as pesquisas em políticas públicas tratam da realidade educacional, por isso, seu fundamento teórico-metodológico está alicerçado no método do materialismo histórico dialético, pois esta perspectiva epistemológica constitui uma teoria social de caráter político-ideológico que vai além dos problemas teórico-filosóficos, o que permite levar em consideração um árduo processo de investigação sobre a realidade. Para tanto, a discussão parte da configuração dos elementos que constituem o processo metodológico sobre os quais revelam as categorias e os determinantes intrínsecos no objeto de estudo. Palavras-chave: Enfoque epistemológico. Método dialético. Política de formação de professores.

Introdução

As políticas de formação de professores tem sido objeto de discussão por parte

daqueles que preocupam com o destino da educação e da sociedade. Este embate tem provocado uma série de reflexões, propostas e análises que nos permitem visualizar o processo dos elementos que constituem a política de formação de professores. No âmbito da pesquisa este tema tem se tornado um campo fértil no desdobramento de investigação sobre política educacional.

Diante disso, vários enfoques epistemológicos têm direcionado as concepções que fundamentam os métodos de pesquisa sobre políticas públicas de formação de professores, sobretudo no campo da fenomenologia, do positivismo, do estruturalismo e do marxismo entre outras denominadas de pós- modernas. Entre estas grandes correntes do pensamento contemporâneo, as quais tem se destacado na orientação das pesquisas em ciências sociais, é sobre o enfoque epistemológico marxista que debruçamos nosso olhar.

Por isso este artigo tem por objetivo discutir sobre a utilização do método dialético nas pesquisas de política pública de formação de professores, levando em consideração a

∗ Licenciado em Pedagogia, Mestrando em educação. Professor do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais

(IFNMG). Membro do Núcleo de Estudo e Pesquisa de Formação de Professores (NEFOP) – UESB. ∗∗ Doutora em Educação. Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Coordenadora do Núcleo

de Estudo, Pesquisa e Formação de Professores (NEFOP).

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construção teórico-metodológicas do projeto de pesquisa de dissertação que tem como objeto de estudo as licenciaturas no Instituto Federal do Norte de Minas Gerais tendo como foco as políticas de formação de professores.

Sendo marxismo a base lógica do método dialético, é sobre este viés que a discussão do presente trabalho será conduzida, pois esta perspectiva constitui uma teoria ontológica de caráter político-ideológico que não se compromete com as concepções hegemônicas do mundo capitalista, o que nos permite levar em consideração um árduo processo de investigação sobre a realidade. Portanto, para situar o método de pesquisa é necessário fazer uma imersão do objeto em estudo, aprofundar e delimitar a questão de pesquisa, e se tratando da política de formação de professores é relevante levar em consideração os determinantes e categorias do objeto tendo como categoria central o trabalho como principio educativo. O processo metodológico da pesquisa de formação de professores

O método, enquanto construção filosófica, é condição imprescindível ao pesquisador

social na e para o planejamento, a definição dos procedimentos de investigação, o controle e, principalmente, a análise dos fatos, fenômenos e/ou sujeitosenvolvidos no desenvolvimento de pesquisa. Mesmo considerando as outras diversas áreas do conhecimento, o método é considerado como ponto de partida paraa eficiente execução de uma ação de pesquisa, de um trabalho, cuja adoção de técnicas e procedimentos é indispensável na orientação das atividades.

Nas ciências que se propõe investigar o campo educacional, segundo Triviños (2010), fazem parte pelo menos três grandes correntes do pensamento contemporâneo, as quais tem se destacado na orientação teórico-metodológica das pesquisas em ciências sociais: o positivismo, a fenomenologia e o marxismo

No contexto atual, no campo da pesquisa sobre educação e de modo particular na análise de política educacional, Cézar Tello (2012) tem apontado à necessidade de identificar nos trabalhos de pesquisa aspectos relevantes dos fundamentos teórico-metodológicos1, tais como: a perspectiva teórica, o posicionamento teórico e o enfoque epistemológico. No tocante á pesquisa qualitativa Triviños (2010) classifica o enfoque epistemológico em dois grupos distintos que correspondem ao modo de compreender a realidade: o primeiro trata-se dos enfoques subjetivista - compreensivista voltados para os aspectos “conscienciais e subjetivistas” dos atores; o segundo são os enfoques crítico participativos com visão histórico-estrutural, trata se da dialética da realidade social no sentido de conhecê-la e transformá-la.

1 Em síntese, Tello classifica as categorias em: perspectiva epistemológica: marxismo, neomarxismo,

estruturalismo, pós-estruturalismo, existencialismo, humanismo, positivismo e pluralismo; posicionamento epistemológico: critico radical, critico, critico analítico, humanista e economicista; enfoque epistemológico: neo-institucionalistas, institucionalistas, clássico, jurídico-legal, construtivismo político, da complexidade, ecletismo, pós-modernista, pós-modernista, hiperglobalista, neoliberal, funcionalista.

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Com base nestas categorias dos enfoques teórico-metodológicos apontados por Tello (2012) e por Triviños (2010) nas pesquisa em políticas públicas sobre educação que tratam da realidade educacional tem seus fundamentos teórico-metodológicos alicerçados não exclusivamente no método do materialismo histórico dialético, permeia também por outras concepções, utilizando se de outros métodos e formas de intervenção. Mas se tratando de posicionamento a perspectiva epistemológica marxista constitui uma teoria social de caráter político-ideológico que vai além dos problemas teórico-filosóficos, o que nos permite levar em consideração um árduo processo de investigação sobre a realidade.

Nesta abordagem, a questão metodológica da construção do objeto científico implica a questão epistemológica da reconstrução histórica ou de como logramos nos aproximar da realidade. “Implica também a compreensão de que o método não se separa da construção de seu objeto; ao contrário, é ele que o constitui” (CIAVATTA, 2014, p. 192).

Segundo Netto (2011), é a fidelidade ao objeto que garante a reprodução ideal do movimento real deste objeto, é a leitura da estrutura e a dinâmica do objeto que determinam o percurso metodológico e os procedimentos do pesquisador, a partir da posição (perspectiva) do sujeito que pesquisa que proporciona extrair do objeto as suas múltiplas relações.

O método em Marx começa pelo real, pelo concreto, na medida em que a análise, os elementos forem abstraídos vai se aprofundando, e chegando a conceitos e abstrações. No segundo momento há uma volta do abstrato para o concreto (é um caminho de volta). No primeiro método (do concreto para o abstrato) a representação plena valoriza se em determinações abstratas; no segundo as determinações abstratas conduzem as representações do concreto por meio do pensamento. (NETTO, 2011, p. 41)

Para o autor, o processo dialético do método permite ao sujeito capturar as estruturas e dinâmicas do objeto, utilizando de procedimentos analíticos e operando a síntese deste movimento, que o pesquisador transporta para o plano do pensamento o conhecimento da realidade do objeto, ou seja, é através da pesquisa viabilizada pelo método que o sujeito reproduz no plano ideal a essência do objeto que investigou. É, segundo Minto (2014), através de um método que foge das abstrações2 aplicada ao real, mas que parte da própria realidade do objeto para explicá-lo racionalmente, na qual o ato de pensar se apropria da realidade concreta, do objeto real, que existe pela própria natureza do objeto, independe do pensamento do sujeito, alem de proporcionar por parte do sujeito, as conexões e dinâmicas do objeto. 2 “abstração é a capacidade intelectiva que permite extrair sua contextualidade determinada, (de uma totalidade)

um elemento isolá-lo e examiná-lo; é um procedimento intelectual sem o qual a análise é inviável, alias, no domínio do estudo da sociedade, o próprio Marx insistiu que a abstração é um recurso indispensável para o pesquisador” (NETTO, 2011, p. 44)

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Partindo da concepção marxiana, este processo “consiste em elevar-se do abstrato para o concreto, único modo pelo qual o cérebro pensante se apropria do mundo”. (NETTO, 2011, p. 44).

As categorias mais simples são aquelas que podem ser abstraídas das relações concretas, expressando as relações mais gerais de uma dada realidade e funcionando como ponto de partida para sua compreensão, cumprindo esta etapa fazer uma “viagem de retorno” ao mais complexo (que também é o mesmo “concreto” que sirva de ponto de partida), para torná-lo pensado, isto é, a realidade caótica apreendida pelo pensamento e explicada por sua própria racionalidade. Entre o ponto de partida e o ponto de chegada produz-se, assim, um salto qualitativo. (MINTO, 2014, p.30)

Segundo Ciavatta (2014), diante da fragmentação das ciências e da instrumentalização do enfoque metodológico de pesquisa, na pesquisa dialética o processo metodológico deve partir do princípio de que o pesquisador seja capaz de situar a realidade em um contexto concreto, histórico para pensar o não revelado ou recolher, sistematizar, analisar, extrair das informações um conhecimento que não estava dado.

Neste sentido, segundo a autora a realidade social é constituída por um conjunto dinâmico de relações que passa, necessariamente, pela ação de sujeitos sociais. “no sentido marxiano é um conjunto de fatos articulados ou o contexto de um objeto em suas múltiplas relações, ou ainda, um todo estruturado que se desenvolve e se cria como produção social do homem” (CIAVATA, 2014, p. 195), tendo a dialética da totalidade social como princípio epistemológico e como método de produção do conhecimento.

para Marx o método não é um conjunto de regras formais que se “aplicam” a um objeto que foi recortado para uma investigação determinada nem, menos ainda, um conjunto de regras que o sujeito que pesquisa escolhe, conforme a sua vontade, para “enquadrar” o seu objeto de investigação. (NETTO, 2011, p. 52)

Sendo assim, a pesquisa sobre política de formação conduzida sob a base lógica do método histórico dialético, leva o pesquisador a atentar-se ao movimento da estrutura e da dinâmica do objeto de estudo, pois nesta perspectiva, a relação sujeito objeto3 norteia o principio de produção do conhecimento como processo cognitivo, não pela ação passiva do sujeito diante do objeto de conhecimento, muito menos pelo processo ativo do sujeito que sozinho desvenda o fenômeno.É neste movimento entre o fenômeno e o processo de investigação que se estabelece a relação entre o objeto e o investigador, proporcionando assim, o desvelamento, a apreensão e a transformação da realidade histórica.

3 Ciavatta (2014) aponta três posições que norteiam o seu conhecimento do objeto: o sujeito que conhece, o

objeto de conhecimento e o conhecimento como processo cognitivo.

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Toda realidade possui em se uma materialidade, uma história, uma existência objetiva mediada pelas relações que constituem a sua totalidade. O método constitui um longo processo de construção teórica que visa apreender os determinantes da realidade objetiva e social do objeto, é compreender seu passado histórico cultural ou seja é a materialidade que constrói as determinações históricas. Portanto o materialismo histórico é todo o processo de construção do método dialético.

Metodologicamente, é o resgate da dimensão histórica de uma questão que deve permitir superar o nível formal da expressão pelo desvelamento dialético da realidade investigada. O conhecimento produzido vai depender da pertinência da análise de uma totalidade histórica como apreensão de suas contradições recíproca e reconhecimento do caráter mediados dessas contradições na construção histórica dessa realidade. Dessa forma, não será nunca um conhecimento acabado, mas limitado e provisório, aberto a novas apreensões e novos reconhecimentos. (CIAVATTA, 2014, p. 215)

Este processo de construção e elaboração da síntese do objeto no método dialético é

resultante da triangulação entre estas três categorias apontadas pela autora (totalidade, contradição e mediação) que são nucleares no desenvolvimento teórico metodológico de Marx. Segundo Netto (2011), o método dialético busca analisar os elementos (complexos) que constituem uma totalidade para posteriormente, estudar cada uma delas e a partir daí, identificar as contradições manifestas em cada totalidade, categoria indispensável na análise do objeto no método marxiano, o que permite a compreensão da estrutura e da dinâmica desta totalidade, a apreensão da natureza destas contradições vão determinar as formas e as técnicas de exploração e compreensão do objeto. Por fim, a descoberta deste movimento pela ralação que se estabelece entre as totalidades mediadas pela estrutura de cada uma delas.

Diante das possibilidades de captar as categorias manifesta em um fenômeno e do problema que emerge do objeto de pesquisa, bem como dos objetivos que se propõe a desvelar as estruturas e dinâmicas da realidade qualitativa do objeto, o método dialético nos conduz ao caminho de uma abordagem de um cunho qualitativo.

Sendo assim, na pesquisa qualitativa que recorre ao método dialético, essas determinações que constituem a realidade dos objetos, apresentam a sua essência de forma aparente, empírica. Ela permite ao pesquisador ir além das aparências, proporciona buscar conhecer esta realidade em sua essência, vai além da investigação estrita das causas, das origens, busca compreender as causas de existência do fenômeno, explicar sua origem, suas mudanças e as inter-relações que se estabelecem, além de preocupar com a relevância social do objeto. Isto por que

aprecia o desenvolvimento do fenômeno não só em sua visão atual que marca apenas o início da análise, como também penetra em sua estrutura íntima, latente, inclusive não visível ao observável à simples observação ou

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reflexão, para descobrir suas relações e avançar no conhecimento de seus aspectos evolutivos, tratando de identificar as forças decisivas responsáveis por seu desenrolar característico. (TRIVIÑOS, 2010 p. 129)

A opção de um pesquisador pela ênfase da abordagem qualitativa no processo de investigação de uma pesquisa dialética está sempre articulada com a perspectiva epistemológica e ao posicionamento do pesquisador diante do objeto de investigação. Além disso, as características4 e os procedimentos metodológicos inerentes a uma pesquisa de abordagem qualitativa são condizentes com o método dialético.

A predominância da abordagem qualitativa não exclui os aspectos quantitativos da pesquisa, uma vez que as categorias determinantes5 intrínsecas no objeto de pesquisa podem revelar dados passíveis de averiguação estatísticas. Portanto, não existe a possibilidade de descartar o quantitativo no processo metodológico da pesquisa porque a realidade é desvelada mediante a construção do objeto e neste processo os determinantes quantitativos e qualitativos pertencem à mesma realidade.

Existe uma relação necessária entre a mudança quantitativa e a mudança qualitativa. E esta, é como sabemos, resulta das mudanças quantitativas que sofrem os fenômenos. Mas a qualidade do objeto não é passiva. As coisas podem realizar a passagem do quantitativo ao qualitativo e vice e versa (TRIVIÑOS, 2010: p.108)

Portanto, a opção pela abordagem qualitativa não exclui a dimensão quantitativa da pesquisa que se manifesta diante da necessidade de recorrer a outras técnicas para se apropriar dos dados contidos no objeto. Até mesmo porque a pesquisa qualitativa mediante a relação sujeito objeto bem como as ralações mediadas pelo complexo de totalidades do objeto permite ao pesquisador laçar mão de outros instrumentos, conforme o desvelamento do fenômeno exigir.

Os procedimentos teórico-metodológicos que norteiam uma pesquisa dialética se inserem nas características da abordagem qualitativa, pois tem no método histórico dialético seu principal suporte teórico. Neste sentido, os procedimentos, conforme Netto (2011) seguem o movimento da busca da reprodução ideal das estruturas e da dinâmica do objeto 4 Triviños descreve as 5 (cinco) característica da pesquisa qualitativa que são: a) A pesquisa qualitativa o ambiente natural como fonte direta dos dados e o pesquisador como instrumento

chave; b) A pesquisa qualitativa é descritiva; c) Os pesquisadores qualitativos estão preocupados com o processo e não simplesmente com os resultados e o

produto; d) Os pesquisadores qualitativos tendem a analisar seus dados indutivamente; e) O significado é a preocupação essencial na abordagem qualitativa (TRIVIÑOS, 2010 p. 128) 5 “Determinações são traços pertinentes aos elementos constitutivos da realidade; é um elemento essencial

constitutivo do objeto” (NETTO, 2011, p. 45)

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real, na qual a conexão entre as categorias do objeto de investigação e suas múltiplas determinações permite a apoderação, por parte do pesquisador, dos pormenores expressos no fenômeno, pois esta conexão entre o tratamento teórico e formulação metodológica uma unidade indispensável no tratamento do método dialético uma vez que não compreende o método sem uma profunda investigação teórica.

Para isso, segundo Ciavatta (2014) é necessários levar em consideração algumas questões do método que são fundamentais em Lukács:

A primeira destas questões é o movimento do abstrato para o concreto pensado, em que, partindo do concreto figurado [...], o conhecimento supõe que se a abstração mais delicada até atingirmos as determinações mais simples, a rica totalidade de determinações e relações numerosas” [...] a segunda questão é a anterioridade do real concreto onde fica delineada, critica e metodologicamente a base da inversão materialista [...] um terceiro aspecto é a existências de categorias e de sua relação com a realidade. As categorias são concretos de pensamento gerados sobre a realidade objetiva e diversificada, são mediações ontológicas da totalidade social, constituídas na sua particularidade histórica. (CIAVATTA, 2014, p. 219 -220)

Diante deste movimento, os procedimentos metodológicos caminharão sempre em direção a construção teórica expressa no objeto, sempre buscando na mediação das categorias singulares, particulares e universais as determinações da realidade do objeto. Segundo Ciavatta (2014), o percurso metodológico obedecerá a procedimentos distintos no processo os quais a autora os denomina de contemplação viva, análise do fenômeno e realidade concreta do fenômeno.

O momento da contemplação viva é um deslumbramento do objeto sobre o qual, o pesquisador busca encontrar na realidade objetiva e aparente do fenômeno seus condicionantes, categorias, determinações e características, é um levantamento de matérias, informações, seleção de documentos, bem como o momento de fazer o recorte espacial e temporal do objeto, ou seja, é a delimitação do fenômeno. Esta fase do procedimento é o ponto de partida da pesquisa, pois será uma situação de contato direto entre o pesquisador e o objeto de estudo, é a etapa de definição das categorias e de descoberta das determinações de existência do objeto.

O segundo momento, análise do fenômeno, constitui um juízo do objeto, pois, pauta-se na análise dos elementos inventariados na etapa anterior, é o aprofundamento da representação ideal do objeto no campo teórico, “é o movimento real do objeto transposto para o cérebro do pesquisador é o real reproduzido e interpretado no plano ideal”. (NETTO, 2011, p. 21). Nesta etapa os procedimentos da pesquisa concentram-se na análise da origem e desenvolvimento das estruturas e dinâmicas do objeto de estudo em sua totalidade. Busca-se identificar e compreender as concepções e pressupostos manifestos no fenômeno que direcionam a organização e o metabolismo do objeto em investigação.

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O terceiro momento da pesquisa, realidade concreta do fenômeno, constitui a representação real do objeto, é um retorno à realidade do objeto, é o momento de revelar as determinações concretas do objeto em sua essência, “isto significa estabelecer os aspectos essências do fenômeno, seu fundamento, sua realidade e possibilidades, seu conteúdo e sua forma e que nele é singular e geral o necessário e o contingente etc”. (TRIVIÑOS, 2010, p.74)

Quanto aos instrumentos de coleta de dados nas pesquisas em políticas educacionais é comum o pesquisador lançar mão de diversas técnicas de levantamentos de informações. Embora no método dialético não exista um conjunto de regras formais para aplicar a uma dada realidade, muito menos um conjunto de definições a priori sobre as quais se conduz a investigação, existem algumas técnicas que são frequentemente usuais, entre elas a análise documental, o questionário e a entrevista.

A utilização de documentos, enquanto instrumento de coleta de dados, constitui uma fonte imprescindível para a pesquisa social. Segundo Chizzotti (2006), documento é qualquer informação contida em um suporte material fixadas por técnicas especiais, ou seja, é toda informação sistemática, comunicada de forma oral, escrita, visual ou gestual fixada em um suporte material como fonte durável de comunicação, que tem por finalidade, segundo Gil (2008), esclarecer determinada coisa ou objeto que possa contribuir para a investigação de determinado fato ou fenômeno, vale-se dos registros cursivos,que são persistentes e continuados elaborados por agências governamentais ou registros episódicos e privados,constituídos principalmente por documentos pessoais e por imagens visuais produzidas pelos meios de comunicação de massa.

Diferente da análise documental, o questionário constitui uma técnica de coleta de dados aplicada diretamente às pessoas. Segundo Gil (2008), o questionário possibilita atingir grande número de pessoas, mesmo que estejam dispersas numa área geográfica muito extensa, já que o questionário pode ser enviado pelo correio; garante o anonimato das respostas; não expõe os pesquisados à influência das opiniões e do aspecto pessoal do entrevistado. Para o autor:

Pode-se definir questionário como a técnica de investigação composta por um conjunto de questões que são submetidas a pessoas, com o propósito de obter informações sobre conhecimento, crenças, sentimentos, valores, interesses, expectativas, aspirações, temores, comportamento presente ou passado etc. (GIL, 2008, p. 121)

Assim como o questionário, a entrevista caracteriza se por ser uma técnica de coleta de

informação que está ligada diretamente a problemas humanos, neste instrumento de pesquisa estarão sempre envolvidos numa relação direta, o investigador e o entrevistado.

Pode-se definir entrevista como a técnica em que o investigador se apresenta frente ao investigado e lhe formula perguntas, com o objetivo de obtenção dos dados que interessam à investigação. A entrevista é, portanto, uma forma

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de interação social. Mais especificamente, é uma forma de diálogo assimétrico, em que uma das partes busca coletar dados e a outra se apresenta como fonte de informação. (GIL, 2008, p. 109)

Diante disso, a entrevista por se tratar de questões de natureza humana, é uma das técnicas que permeia o campo sensível, ultrapassa as acepções de coletas de dados, é um instrumento utilizado para levantamento de informações a cerca das concepções, crenças, valores, sentimentos e percepções do sujeito.

Para situar o método de pesquisa é necessário fazer uma imersão ao objeto de pesquisa.A caracterização do objeto constitui um elemento central para construção metodológica de um projeto de pesquisa, pois como já referimos, é o momento do deslumbramento do objeto, onde o pesquisador busca descrever de forma aparente a sua realidade objetiva, seus condicionantes, suas categorias, suas determinações e suas características. É o momento de fazer o recorte espacial e temporal do objeto, ou seja, é a delimitação do fenômeno dentro de outras totalidades de complexos.

A ciência difere da filosofia e da arte, padece da necessidade de delimitar seus objetos. Não é possível pesquisar tudo ao mesmo tempo e nem todos os campos do conhecimento. Mas delimitar não é fragmentar e atomizar. A vigilância critica ao delimitar um objeto e as mediações que o constituem numa totalidade concreta são os elementos básicos que caracterizam o caráter dialético e, portanto, histórico do método. (FRIGOTTO, 2014, p. 58)

Esta fase do procedimento é o ponto de partida da pesquisa, pois será uma situação de contato direto entre o pesquisador e o objeto de estudo, é a etapa de definição das categorias e de descoberta das determinações de existência do objeto.

Considerações finais

A discussão até aqui apresentada, sobre a utilização do método dialético nas pesquisas

sobre políticas públicas de formação de professores, constitui-se de discussões preliminares do capítulo teórico-metodológico do projeto de dissertação que tem como objeto de estudo as licenciaturas no Instituto Federal do Norte de Minas Gerais e como foco as políticas de formação de professores.

A definição do objeto e opção pelo método dialético é um tanto desafiadora e surpreendente. Desafiadora, porque frente às crises paradigmáticas das velhas teorias clássicas e da emergência de novas concepções teóricas que se insurgem da sociedade pós-industrial, o materialismo histórico assim como outros referenciais se encontra em crise. O desafio constitui desenvolver e sustentar o posicionamento epistemológico diante das concepções pluralistas que se apresentam para dar explicações e propor análise da realidade social. Manter um posicionamento marxiano é conforme Frigotto (2014) é assumir a postura de que

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os referenciais estão em crise frente às mudanças bruscas proporcionada pelas relações sociais no interior do metabolismo do capital neste fim de século.

Por outro lado, estudar o método dialético é surpreendente porque mediante as proposições tradicionais de elaboração metodológica de pesquisa, o método dialético não nos oferece um conjunto de regras formais para trilhar o percurso metodológico da pesquisa ao mesmo tempo em que não propõem conjunto de definições para conduzir as investigações. No método dialético não existem possibilidades do pesquisador manter-se distante do objeto, não existe uma relação passiva entre o sujeito e o sujeito e o objeto é uma relação mediada na qual o sujeito precisa passar pelo movimento de ida e volta no sentido de aproximar o plano ideal do plano real do objeto.

Portanto, sendo o método dialético uma construção teórico-metodológica, o percurso metodológico vai se manifestando na medida em que se aproxima da realidade do objeto em estudo, é a estrutura e dinâmica do objeto que determinas as ações do pesquisador, quanto mais se aprofunda teoricamente na compreensão das contradições e procura estabelecer as mediações entre as totalidades mais se aproxima da representação ideal do objeto, esta possibilidade é dada pela conexão inseparável entre a investigação concreta e o tratamento teórico. Referências CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa em ciências humanas e sociais. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2006. (Bilioteca da educação da educação. serie 1. escola; v. 16). CIAVATTA, Maria. O conhecimento histórico e o problema teórico-metodológico das mediaçoes. In: FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria (Org.). Teoria e educação no labirinto do capital. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2014. FRIGOTTO, Gaudêncio. As novas e velhas faces da crise do capital e o labirinto dos referenciais teóricos. In: FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria (Org.). Teoria e educação no labirinto do capital. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2014. GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. - 6. ed. São Paulo : Atlas, 2008. MINTO, Lalo Wantanabe. A educação da miséria: particularidade capitalista e educação superior no Brasil. 1 ed. São Paulo: Outras Expressões, 2014. PAULO NETTO, José. Introdução ao estudo do método de Marx. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

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ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

Edna Furukawa Pimentel1 UESB

Resumo: Considerando o objetivo alvo deste estudo: contextualizar o pensamento educacional de alguns dos principais representantes da Filosofia da Educação, como Platão, Comênio, Rousseau, Herbart, entre outros, buscou-se apresentar brevemente suas principais contribuições teórico-metodológicas. Desta forma, partiu-se do entendimento de que, para compreendê-las, é necessário reconhecer as relações existentes entre sociedade, filosofia, educação e teorias pedagógicas. É preciso esclarecer que não se intenta promover um aprofundamento teórico dos autores considerados clássicos da Filosofia da Educação, mas retomar de forma breve as suas contribuições, em virtude da posição que ocupam na história do pensamento educacional e, de forma mais específica, pelo fato de terem imprimido novos rumos à educação, influenciando significativamente a educação no Brasil. Esse entendimento determinou a escolha da perspectiva histórica, com o intuito de acompanhar o desenvolvimento do pensamento filosófico e sua relação com a educação, e, de forma mais específica, as propostas educacionais e seus métodos de ensino. Esse posicionamento remeteu à história da filosofia e ao seu surgimento, na Grécia Antiga. Palavras-chave: Filosofia da Educação. Fundamentos da Educação. Pedagogia.

Filosofia da Educação: breves

Desde o final do século VII a.C. a civilização Grega já apresentava as condições

apropriadas para o surgimento da filosofia, que logo se tornou a principal referência da

pedagogia. Primeiro, porque se atribuiu à filosofia a finalidade, o fundamento ético orientador

da atividade educativa e, segundo, em virtude de a educação grega estar voltada à preparação

e formação da criança para a vida.

Para Saviani (2008), a filosofia tornou-se referência para a pedagogia quando os

principais filósofos gregos começaram a refletir sobre a educação. Desde esse período, já

competia aos filósofos a responsabilidade de educar, formar ou pensar a educação, assumindo

inclusive a função de preceptor. Os gregos começaram a depositar na filosofia a definição de

rumos, fins e valores da sociedade. No entanto, se de um lado desenvolveu-se uma reflexão

elaborada em função da finalidade ética, orientadora da atividade educativa, do outro lado, se

1 Dra. Profa. Assistente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)

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impôs o sentido empírico e prático, voltado para formar a criança para a vida, reforçando a

importância do aspecto metodológico presente na própria etimologia da palavra pedagogia,

entendida como meio, caminho, isto é, condução da criança.

Nesse período, o pensamento platônico embasava a concepção idealista. Platão (428

ou 427-347 a.C.) se perguntava se seria possível superar o nível do empírico, em que a

multiplicidade dos fenômenos torna o pensamento inseguro, e o discurso, meramente

opinativo, até alcançar a esfera das essências, ou seja, da verdade. Nessas esferas, as coisas

poderiam ser percebidas como realmente eram, e os discursos seriam precisos, exatos, fiéis.

Para a pedagogia platônica, educar é não ensinar; é forçar uma recordação, isto é, a

educação não ensina nada de novo, mas força a alma a recordar o que ela já sabe. Desse

entendimento platônico, compreendem-se a educação e a aprendizagem como recordação, e

essa recordação remete à contemplação das ideias, à contemplação da essência, estabelecendo

a divisão platônica entre corpo e alma. Ao propor essa distinção, a cultura grega contribuiu

para lançar as bases da pedagogia da essência (SAVIANI, 2008).

Outro ilustre grego foi Aristóteles (384-322 a.C.), crítico do idealismo platônico, que

defendia uma teoria realista. Em lugar de essências ideais e sombras materiais, Aristóteles

desenvolveu, sistematicamente, conceitos sobre forma e matéria. Afirmava que, enquanto a

matéria é o princípio da passividade, a forma é ativa, duradoura, atribui qualidade definida à

coisa. A mudança que se opera em todas as coisas é uma passagem da “potência” ao “ato”, na

realização da forma definida, portanto, a forma do ser humano como racionalidade. A tarefa

da educação é realizar essa potencialidade na pessoa para torná-la um ser humano verdadeiro.

Assim, na Antiguidade Grega predominou uma forma de ensinar direcionada para a

compreensão lógica, voltada para a busca da verdade.

Outra influencia consistente no que se refere ao ensino da Filosofia da Educação pode

ser identificado no período medieval, cujas propostas educacionais centravam-se

prioritariamente na filosofia agostiniana-tomista. A patrística (século 1 ao século 5), cujo

principal representante é Agostinho, defendia a necessidade de buscar a síntese entre fé e

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razão. Essa escola estava ligada à tarefa religiosa da evangelização e à defesa da religião

cristã contra os ataques teóricos e morais que recebia dos antigos.

Também importante referência da filosofia medieval foi Aquino, um dos principais

representantes da escolástica, doutrina que se caracterizou pelo estudo da Revelação. A

escolástica foi a doutrina que mais se aproximou da concepção essencialista, herdada dos

gregos, também dividindo, de um lado, a realidade verdadeira, eterna e espiritual e, de outro, a

realidade aparente, temporal e corrupta (MONDIM, 1981).

Para Mondim (1981), apesar das contribuições riquíssimas da escolástica no campo da

filosofia, da teologia, da educação e da dialética, especialmente com Abelardo, pensador

contrário a posturas autoritárias e discriminatórias, como retratam suas aulas, as quais

efetivam o uso do método da dialética ou da disputa, que se constrói a partir da qualidade da

argumentação, ainda assim, parece ter prevalecido uma educação centrada na função de

realizar o que o ser humano deve ser, portanto, uma educação de caráter essencialista.

Apesar de propor uma prática de ensino de forma diferenciada da Antiguidade Grega,

no Período Medieval mantinha-se a mesma posição quanto a direcionar as condições e

potencialidades dos jovens a um modelo ideal. Assim, o objetivo era desenvolver no ser

humano um ideal de perfeição. Para os atenienses, o mundo perfeito; para os patrísticos e

escolásticos, a pátria celeste (DEMIS, 1990).

Nos séculos seguintes, especialmente no período caracterizado como época dos

desbravamentos e das descobertas, séculos XV e XVI, ocorreu o movimento renascentista,

que contribuiu significativamente para a formação de uma mentalidade assinalada por

intensas mudanças políticas, econômicas, culturais e educacionais, que impulsionaram a

transição entre a Idade Média e o início da Idade Moderna (GADOTTI, 2005). Para o autor, o

Renascimento, filosoficamente, significou a proposta de rompimento com a visão aristotélica

e tomista, que não atendia mais aos novos tempos.

Surge o esforço de renovação e construção de um novo conceito de sociedade e de ser

humano: livre, independente, orgulhoso e ousado. Esse movimento ligou-se a fatores mais

gerais, como as grandes navegações (séculos XV e XVI), a invenção da imprensa por

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Gutemberg (séculos XIV e XV), a invenção da bússola (século XV), entre outros, dando

origem à revolução científica do século XVI. Esse modelo de racionalidade, que presidia a

ciência moderna, alcançou maior êxito nos séculos seguintes, especialmente no domínio das

ciências naturais (GADOTTI, 2005).

No campo da educação, nesse período, se destacaram o humanismo e o

enciclopedismo, representados por importantes educadores, como Vittorino da Feltre (1378-

1446), que propôs uma educação individualizada, alegre e autogovernada pelos alunos;

Erasmo de Desidério (1467-1536), que publicou Elogios da Loucura (1509), uma sátira

contra o obscurantismo da pseudo-religião e da cultura medieval; Montaigne (1533-1592),

que também repudiou a erudição e a disciplina escolástica; e François Rabelais (1483-1553),

que, com a obra Gargântua e Pantagruel, além de fazer duras críticas ao formalismo da

educação escolástica, propôs inovações no método educacional, sugerindo que a educação

deve ter como ponto de partida as coisas e situações cotidianas, para que se possa aprender

efetivamente as palavras e seu significado (VALDEMARIN, 2004).

O movimento renascentista, ao ressaltar o indivíduo e o livre-arbítrio, repercutiu na

Igreja e contribuiu para sua ruptura, produzindo as bases da Reforma Protestante, cujo líder

foi o monge agostiniano Martinho Lutero (1483-1546). A Reforma foi considerada a primeira

revolução burguesa, conforme pode ser constatado na carta escrita por Lutero em 1527,

destinada aos regedores de todas as cidades da nação alemã, em que afirma: “[...] a educação

pública destinava-se em primeiro lugar às classes superiores burguesas e secundariamente as

classes populares, às quais deveriam ser ensinados apenas os elementos imprescindíveis”

(GADOTI, 2005, p. 64).

Conforme o autor, a Igreja Católica reagiu intensamente contra a Reforma Protestante,

no Concílio de Trento (1545-1563), criando três importantes instrumentos de combate: o

Índex ou a lista de livros proibidos; a Companhia de Jesus (1534); e a Inquisição (1542).

Quanto à Companhia de Jesus, Loyola e sua ordem tinham por missão converter os hereges e

fortalecer a fé dos cristãos hesitantes. Com esse intuito, uma das estratégias foi fundar

colégios destinados a jovens ávidos por conhecimento e potenciais candidatos a jesuítas. Com

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a demanda cada vez maior pelos colégios e a falta de experiência dos professores, passaram a

elaborar o Plano de Estudos da Companhia de Jesus – o Ratio Studiorum, concluído em 1599.

Um plano eficaz na normatização do trabalho docente e na disciplina do aluno (SAVIANI,

2008).

Para o autor, o Ratio Studiorum constituía-se em uma proposta de ensino com planos,

programas e métodos da educação católica, com ênfase na formação em latim, grego, filosofia

e teologia. Predominando a linguagem verbal, esse método se estrutura em cinco momentos: a

preleção, a contenda ou emulação, a memorização, a expressão e a imitação, ou, conforme o

Ratio Studiorum:

Todos os dias, exceto o sábado, os dias feriados e festivos, designe uma hora de repetição aos nossos escolásticos para que assim se exercitem as inteligências e melhor se esclareçam as dificuldades ocorrentes. Assim, um ou dois sejam avisados com antecedência para repetir a lição de memória, mas só por um quarto de hora; em seguida um ou dois formulem objeções e outros respondam; se ainda sobrar tempo, proponham-se dúvidas. E para que sobre tempo, procure o professor conservar rigorosamente a argumentação em forma [silogística]; e quanto nada de novo se aduz corte a argumentação (RATIO STUDIORUM apud FRANCA, 1952, p. 146).

Segundo Franca (1952), o método estava voltado principalmente para o exercício da

repetição, disputa e interrogatório dos assuntos ensinados em sala de aula, pois a finalidade

era a memorização das informações de forma acrítica, mas corretamente reproduzida pelos

alunos quando se fizesse necessário. Essa forma de aprender envolvia castigos físicos

dolorosos, entendidos como parte da rotina escolar.

O objetivo era formar pessoas eruditas, capazes de defender os preceitos da Igreja.

Esse documento vigorou por quase dois séculos, até que o Papa Clemente XIV determinou

a extinção da Companhia de Jesus, em 1773. Décadas depois, em 1814, o Papa Pio VII

restaurou a ordem, nomeando uma comissão para revisão do Ratio Studiorum, concluída

em 1832.

Se a intenção inicial foi renovar o ensino para frear o movimento reformista, o que

existiu na prática foi a revitalização dos princípios da educação escolástica, a qual influenciou

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na formação de importantes intelectuais, como Descartes (1596-1650), Montesquieu (1689-

1755), Rousseau (1712-1778), entre outros (FRANCA, 1952).

Declara o autor que a influência da filosofia idealista, da lógica formal e do método

escolástico contribuiu para consolidar, ao longo do tempo, os pressupostos conservadores do

método de ensino. O método escolástico se expandiu por todo o ocidente, chegando inclusive

ao Brasil, no século XVI, com os jesuítas.

Foi nos séculos XVI e XVII que a burguesia, classe de maior ascensão e poder,

implantou outras formas e meios de produção, alterando substancialmente a filosofia

dominante até então. Com forte crítica à escolástica e ao seu método,2 diversos filósofos e

cientistas passaram a discutir o problema do método de conhecimento e a estimular a

produção de novas técnicas e ferramentas em diversos campos: Giordano Bruno (1548-1600)

na astronomia; Galileu Galilei (1564-1642) na física; Francis Bacon (1561-1626), fundador

do método científico moderno; Renné Descartes (1596-1650), com seu Discurso do Método.

Enfim, grandes pensadores e cientistas fincaram as bases da nova ciência, do método

matemático e do domínio cada vez maior da natureza.

Maior representante do racionalismo, René Descartes, ao propor a matemática como

modelo da ciência perfeita, inaugurou, decisivamente, o pensamento moderno, indicando o

uso disciplinado da razão como caminho para o conhecimento verdadeiro e definitivo da

realidade. Propôs princípios para essa nova forma de produção de saberes, caracterizada por

uma série de operações de decomposição da coisa a conhecer e sua redução às partes mais

simples. Esse novo método científico substituiu a fé pela razão, a filosofia pela ciência

(GADOTTI, 2005).

Poucos foram os momentos da humanidade em que se vivenciou uma tensão tão

profunda. Esse contexto representou uma mudança conceitual de visão de mundo, provocada

pela insatisfação com os antigos modelos explicativos. Sem dúvida, a transição do

2 “[...] fundamentado no idealismo, no dogmatismo, no argumento de autoridade, no espírito especulativo, no

distanciamento da observação empírica, da experiência e da prática que levava a conclusões sem fundamento na realidade” (SILVA, 2007, p. 27).

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pensamento aristotélico e cristão para o paradigma cartesiano foi um divisor de águas na

história da humanidade, conforme Capra (1996, p. 34):

Nos séculos XVI e XVII, a visão de mundo medieval, baseada na filosofia aristotélica e na teologia cristã, mudou radicalmente. A noção de um universo orgânico, vivo e espiritual foi substituída pela noção do mundo como uma máquina, e a máquina do mundo tornou-se a metáfora dominante da era moderna. Essa mudança radical foi realizada pelas novas descobertas em física, astronomia e matemática, conhecidas como Revolução Científica, e associadas aos nomes de Copérnico, Galileu, Descartes, Bacon e Newton. (CAPRA, 1996, p.34).

Esse conjunto de teorias, ligado ao nascimento do método científico, constituiu

importante fator desencadeador da forma de pensamento da modernidade. Nesse embate, duas

grandes correntes se destacaram: o racionalismo e o empirismo, que influenciaram

efetivamente os educadores, suas propostas e métodos de ensino.

Contribuições de Comênio e Rousseau

Segundo Saviani (2008), foi a partir do século XVII, que a finalidade ética e a questão

metodológica na educação tenderam a se unificar. Essa iniciativa partiu de Comênio (1592-

1670), que, influenciado por Bacon, procurou equacionar os aspectos metodológicos da

pedagogia. Para isso, buscou construir um sistema em que a consideração dos fins da

educação constituía a base para a definição dos meios. Neste sentido, propôs uma didática

como possibilidade de ensinar tudo a todos. Deve-se ressaltar que, antes de Comênio, não

havia grande interesse no campo do método de ensino.

Considerado como um dos grandes expoentes da educação do seu século, Comênio,

desde cedo, identificou problemas na sua própria trajetória escolar, que o fizeram perceber

que os procedimentos educacionais eram inadequados e completamente distantes dos avanços

da ciência, especialmente do empirismo de Bacon. Ele também sofreu influência do

movimento renascentista, que já demonstrava que a aprendizagem poderia ser mais agradável

e fácil, e das ideias de Descartes (COVELLO, 1991).

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Para a autora, seu pensamento representou uma composição das ideias de um novo

projeto de sociedade, tornando-se uma proposta de renovação da escola, influenciada por

valores que superavam o dogmatismo e o autoritarismo, até então presentes na sociedade.

Todas essas influências permitiram a Comênio escrever a Didática Magna (1976), em

que apresentou um método pedagógico de ensinar com rapidez e sem cansaço. Essa obra

contribuiu para alterar os fundamentos da pedagogia, ainda influenciada pelo método

escolástico.

No contexto em que viveu Comênio, a ciência moderna, respaldada na “[...] precisão,

rapidez, objetividade, racionalização, universalização, perfeição, excesso de organização,

rigorosidade, fragmentação, certeza” (SANTOS, 2006, p 115), passou a substituir a base

filosófica até então dominante na sociedade e a influenciar a educação.

Absorvendo as influências de seu tempo, inclusive do racionalismo, Comênio tinha

semelhanças e divergências com Descartes:

Para começar, tanto um como outro se haviam decepcionado com as humanidades ensinadas nas escolas de seu tempo [...] Tanto Comenius como Descartes foram intelectuais do método e ambos defendiam o método como condição para aquisição do saber. [...] Descartes, da mesma forma que Comenius, aspirava a uma ciência universal que pudesse ser alcançada por todos. [...] Mas as divergências entre os dois pensadores eram igualmente grandes. Enquanto Comenius encarava a ciência como meio de aproximação com Deus, Descartes preconizava a ciência para fins exclusivamente humanos, sem colorido religioso. [...] Descartes queria uma ciência com base na razão e repudiava a Bíblia como fonte de conhecimento científico. Para ele, a Bíblia era apenas fonte de salvação. Já Comenius encontrava nas Sagradas Escrituras os fundamentos de seu sistema filosófico e em todas as suas obras a Bíblia é mencionada como fonte de sabedoria. Ciência e religião unem-se em Comenius, ao passo que, no entender de Descartes, esses dois campos devem permanecer separados, cada qual a desempenhar sua própria função: verdades reveladas nada têm que ver com verdades científicas. A postura cultural de Descartes é a de um racionalista puro. A de Comenius é a de um intuitivo. (COVELLO, 1991, p. 62-63).

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Comênio entendia que a educação deveria formar o homem de acordo com finalidade

previamente estabelecida. Neste sentido, propôs uma forma lógica para organizar o ensino,

definindo os fundamentos do ensinar e do aprender com facilidade e rapidez: A arte de ensinar nada mais exige, portanto, que uma habilidosa repartição do tempo, das matérias e do método. Se a conseguirmos estabelecer com exatidão não será mais difícil ensinar tudo à juventude escolar, por mais numerosa que ela seja, que imprimir, com letra elegantíssima, em máquinas tipográficas, mil folhas por dia, ou remover, com a máquina de Arquimedes, casas, torres, ou qualquer outra espécie de pesos, ou atravessar num navio o oceano e atingir o novo mundo. (COMÊNIO, 1976, p. 186).

Quanto à influência naturalista, Comênio buscou na natureza os fundamentos para a

arte de ensinar, comparando-a à do jardineiro que lança a semente no jardim. Nesse processo,

passou a considerar a capacidade de cada criança, a valorizar sua experiência, seu

conhecimento, propondo um currículo que contemplasse a vida e a natureza. Propôs a

utilização de imagens, gravuras e objetos que favorecessem a memorização.

Como os sentidos são fiéis colaboradores da memória, àquela que chega a saber graças à demonstração sensível sabe para sempre. Por certo, se já experimentei açúcar, vi um camelo, ouvi o canto de um rouxinol, estive em Roma e visitei (com atenção), tudo isso terá fixado em minha memória, de onde não poderá mais desaparecer. Por esses exemplos podemos notar que será fácil imprimir na mente das crianças, por meio de imagens sensíveis, trechos bíblicos e outras histórias. (COMÊNIO, 1976, p.234).

Para o autor, os livros de texto eram inadequados, os programas, desinteressantes, e a

ênfase, na memorização, por meio da explicação verbal. Entretanto, mesmo diante dessa

constatação e das contribuições, tanto dos educadores renascentistas, quanto de Comênio, no

que se refere à forma, o método de ensino praticamente não se alterou, continuou

predominando o ensino abstrato, distante da vida e dos interesses das crianças.

No século seguinte, considerado “O Século das Luzes”, inaugurou-se definitivamente

o apego à racionalidade e a luta em favor das liberdades individuais. Segundo Cambi (1999),

o iluminismo foi um movimento cultural da elite intelectual europeia do século XVIII, que

procurou mobilizar o poder da razão para reformar a sociedade contra a tradição medieval.

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Seus principais representantes foram Spinoza (1632-1677), Locke (1632-1704) e Newton

(1643-1727). Criaram a Enciclopédia (1751-1772), editada por Diderot (1713-1784) e

D'Alembert, contando com as contribuições de centenas de filósofos e intelectuais, como

Voltaire (1694 -1778) e Monstesquieu (1689-1755).

O gérmen de uma nova tendência educacional, que se contrapôs à pedagogia

tradicional, surgiu no século XVIII. Com objetivos explícitos de se opor à educação de seu

tempo, Rousseau (1712-1778) fez duras críticas aos métodos de ensino utilizados até ali,

propondo substituí-los pela experiência direta das coisas (VALDEMARIN, 2004).

Rousseau (1979) escreveu Emílio, um tratado filosófico em forma de romance, que

trouxe extraordinárias contribuições para a educação da época e influenciou importantes

educadores, como Pestalozzi, Froebel, Claparède e outros grandes nomes da educação

moderna.

Ao defender novas ideias, Rousseau afirmou que o ser humano não se constitui apenas

de intelecto, mas, também, de emoções, instintos e sentimentos, que existem antes do

pensamento elaborado, por isso essas dimensões primitivas são mais dignas de confiança do

que os hábitos sociais impostos ao indivíduo. Para ele, o desconhecimento do adulto em

relação aos modos de agir, de sentir e de pensar das crianças pequenas é nocivo, pois “[...]

nunca sabemos colocar-nos no lugar das crianças; não penetramos em suas ideias,

emprestamos-lhes as nossas; e, seguindo sempre nossos próprios raciocínios, com cadeias de

verdade, só enchemos suas cabeças de extravagâncias e erros” (ROUSSEAU, 1979, p. 178).

O autor exemplifica esta afirmação, utilizando o ensino da geometria: “Ao invés de nos

fazerem encontrar as demonstrações, ditam-nas; ao invés de nos ensinar a raciocinar, o

professor raciocina por nós e só exercita a nossa memória” (ROUSSEAU, 1979, p. 179).

Propondo um desenvolvimento atrelado aos ritmos da natureza, seja a natureza

exterior, seja a da própria criança, Emílioserá criado no campo:

Tornai vosso aluno atento aos fenômenos da natureza, muito breve o tornareis curioso. Mas, para alimentar sua curiosidade, não vos apresseis nunca em satisfazê-la [...]. Quereis ensinar-lhe a geografia e ides procurar globos, esferas, mapas: quanta estória! Por que todas essas representações?

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Por que não começais mostrando-lhe o próprio objeto a fim de que ele saiba, ao menos, de que lhe falais? (ROUSSEAU, 1979, p. 175).

Provavelmente o autor foi de alguma forma, influenciado pelo método de ensino de

Rabelais e de Comênio, com forte influência empirista, ao enfatizar a importância da

educação dos sentidos, denominada posteriormente de método de ensino intuitivo

(VALDEMARIN, 2004). No entanto, Rousseau rompeu com a perspectiva da pedagogia

tradicional: ao colocar o aluno como figura central no processo de ensino-aprendizagem,

desloca o eixo da formação, que antes estava centrada na memorização, para a atividade

prática, através de métodos que despertassem o interesse, considerando a aprendizagem como

um processo.

Rousseau morreu uma década antes da promulgação da Revolução Francesa, mas suas

ideias avançadas embasaram o projeto burguês de sociedade.Após a Revolução, a população

reivindicou um sistema educacional, exigindo que a Assembleia Constituinte apresentasse

projetos que garantissem a educação nacional. Neste sentido, destacaram-se os projetos de

Condorcet (1743-1794), que propôs o ensino universal como meio para eliminar as

desigualdades, ou as ideias de Lepelletier (1760-1793), que defendia a formação

revolucionária, garantida por meio de internatos obrigatórios, gratuitos e mantidos pelas

classes dirigentes.

No entanto, nenhum desses projetos obteve êxito; ao contrário, com a ascensão da

burguesia ao poder, Lepelletier, por exemplo, acabou morto na guilhotina: “[...] No final, a

própria revolução recusou o programa educacional de universalização criado por ela mesma”

(GADOTTI, 2005, p. 90). Isso porque a burguesia logo entendeu que, para se manter no

poder, teria que oferecer educação diferenciada, distinta para cada classe.

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Aproximações entre filosofia, pedagogia e a ciência moderna

No século seguinte, com apoio da burguesia, o modelo de ciência, antes restrito às

ciências naturais3, passou a ser ampliado, estendendo-se às ciências sociais emergentes, o que

serviu para fomentar as bases do novo paradigma científico, denominado paradigma

dominante ou paradigma cartesiano-newtoniano (SANTOS, 2002).

Dessa forma, a ciência moderna, numa espécie de racionalidade hegemônica, estendeu

a lógica do estudo da natureza para o estudo da sociedade. Esse entendimento foi

sistematizado pela corrente filosófica positivista, representada pelo francês Augusto Comte

(1798-1857), defensor da ideia de que o conhecimento científico é a única forma de

conhecimento verdadeiro. Desconsiderando a teologia, a metafísica e as demais formas do

conhecimento que não pudessem ser comprovadas cientificamente, essa teoria gerou a defesa

de que o progresso da humanidade dependeria exclusivamente dos avanços científicos.

Segundo Cambi (1999), o positivismo, ao enfatizar o determinismo, a hierarquia e a

obediência, se posicionou, explicitamente, a favor do governo e da elite intelectual.

Essa visão de ciência e de conhecimento dominante nos séculos XIX e XX

caracterizou-se pelo predomínio da física como modelo canônico da ciência moderna, que

teve no positivismo comteano um forte aliado para generalizar-se até as ciências sociais. Tal

forma de pensamento teve repercussão direta na educação, influenciando importantes

educadores do século XIX e XX, conforme sugerem Amado e Boavida (2008, p. 9):

Herbart, por exemplo, é por muitos considerado o pai da Pedagogia Científica ou Ciência da Educação; é, pelo menos, alguém que influencia de forma extraordinária o pensamento pedagógico do século XIX e início do século XX, quer pelo pendor moralista que defende para a educação, quer pela exigência de aplicação da psicologia (AMADO E BOAVIDA, 2008, p. 9).

3Que tinha como base a teoria heliocêntrica de Copérnico, as leis de Kepler, as leis de Galileu, a síntese de

Newton e a consciência filosófica que lhe atribuíram Bacon e, sobretudo, Descartes.

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Para esses educadores, seria interessante formular uma pedagogia, que, de alguma

forma, garantisse instrução mínima para a classe trabalhadora, disciplina e incorporação da

visão de mundo burguês. Quanto à elite, deveria ser preparada para o avanço tecnológico.

Para consolidar esse projeto, era necessário definir o objeto e a forma específica da ciência

pedagógica, em oposição à prática espontânea, predominante até então. Surgiu, assim, a

pedagogia científica (DEMIS, 1990).

Para Saviani (2007), se Comênio (1592-1670) tentou unificar a finalidade ética,

orientadora da atividade educativa, reforçando a importância do aspecto metodológico, foi só

com Herbart (1776-1841), dois séculos depois, que esses dois aspectos da tradição pedagógica

foram identificados como distintos e unificados num só sistema: os fins da educação, que a

pedagogia deve elaborar a partir da ética; quanto aos meios educacionais, a mesma pedagogia

elabora com base na psicologia (SAVIANI, 2007).

Ainda segundo Saviani (2007), a proposta educacional herbartiana apresentava

sintonia com os interesses do grupo dominante da época. Atribuindo rigor e certa

cientificidade ao método, fomentou uma proposta de ensino bastante específica, disciplinar,

caracterizada por um método de ensino objetivo, rigoroso, com passos bem definidos a serem

seguidos: preparação, apresentação, assimilação, generalização e aplicação.

Saviani (1999, p. 55) assinala a similaridade do método de Herbart com o método de

Bacon.

Método de Herbart: dividido em cinco passos: 1) preparação: recordação da lição anterior, ou seja, do que já é conhecido; 2) apresentação: o aluno é colocado diante de um novo conhecimento, que deve assimilar; 3) assimilação – comparação: a assimilação ocorre por comparação, onde o novo é assimilado a partir do velho; 4) generalização: o aluno deve ser capaz de identificar todos os fenômenos correspondentes ao conhecimento adquirido; 5)aplicação: verificar através de exemplos novos, se o aluno realmente assimilou o que lhe foi ensinado. [...] Método de Bacon: 1) observação: os três primeiros passos de Herbart correspondem ao primeiro passo de Bacon: identificar e destacar o diferente entre os elementos já conhecidos; 2) generalização: subsunção sob uma lei extraída dos elementos observados, pertencentes a determinadas classes de fenômenos de todos os elementos (observados ou não) que integram a uma classe de fenômenos; 3)

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confirmação: se os alunos aplicam corretamente os conhecimentos adquiridos a assimilação está confirmada. Pode-se afirmar que ao ensino correspondeu uma aprendizagem.

O autor considera o século XIX como o berço da pedagogia herbartiana, que, pela

primeira vez, formulou uma pedagogia organizada e abrangente com fins claros e meios

definidos. Essa proposta de ensino, além de imprimir um caráter científico à pedagogia,

também propõe a psicologia aplicada como eixo central da educação, reafirmando a

supervalorização do método e o seu formalismo lógico.

Neste sentido, “[...] Comenius, Pestalozzi e Herbart trataram de formular um método

que, dotado de valor universal, fosse capaz de imprimir ordem e unidade em todos os graus do

saber” (CANDAU, 1996, p. 156).

O século XIX foi também o período de instalação das grandes redes de ensino público

na Europa, que utilizaram especialmente a pedagogia hebartiana como orientadora do ensino.

Interessante ressaltar que, pelo fato de ser uma pedagogia elitista, com ênfase na instrução, na

cultura erudita, não se esperava que pudesse ampliar efetivamente a cultura da massa

trabalhadora. No entanto, contraditoriamente, essa pedagogia elevou o nível cultural das

massas, o que passou a incomodar a burguesia, que logo buscou estagnar esse processo,

utilizando a pedagogia escolanovista, de base filosófica pragmatista.

Diante da diversidade de propostas educacionais, Suchodolski (1978) realizou uma

importante síntese, agrupando, do ponto de vista da pedagogia, as diferentes concepções de

educação em duas grandes tendências: a primeira atribui prioridade à teoria sobre a prática,

denominada pedagogia da essência; e a segunda, inversamente, subordina a teoria à prática,

denominada pedagogia da existência.

No grupo da pedagogia da essência, conforme Suchodolski (1978), estariam as

diversas modalidades de pedagogia tradicional, ou seja, aquelas em que a preocupação se

centra nas “teorias do ensino”, no como ensinar, o que levou à formulação de métodos de

ensino. Aqui se encontram a pedagogia de Platão, a cristã, a jesuítica, as pedagogias dos

humanistas, a de Comênio, dentre outras.

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O conjunto das teorias educacionais denominadas de pedagogias tradicionais, com

propostas voltadas para a transmissão de conhecimentos pelo professor, com ênfase nos

conteúdos e na formação intelectual do aluno, predominou até a segunda metade do século

XIX, quando começou a surgir o gérmen do movimento denominado de Nova Escola ou

escolanovismo. Se Rousseau foi considerado o precursor desse movimento, sem dúvida um de

seus maiores expoentes foi o norte-americano John Dewey (1859-1952).

Mesmo não contemplando os grandes expoentes educacionais do século XX e da

atualidade, como por exemplo, os prinicpais representantes das teorias escolanovistas ou das

pedagogias marxistas, a intenção deste breve esboço foi a de demontrar que o pensamento

filosófico continua influenciado as proposições educacionais, mantendo-se

historicamenteimbricado com o campo educacional.

Referências

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COMÉNIO, J. A., Didática magna.Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1976. COVELLO, Sérgio Carlos. Comenius, a construção da pedagogia. São Paulo: SEJAC, 1991. FRANCA, Leonel S.J.O método pedagógico dos jesuítas. Rio de Janeiro. Agir, 1952.

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CURRÍCULO, DIFERENÇA, ENCONTROS E ALEGRIAS: O QUE PODE O MODELARTE – PROJETO DE FILOSOFIA E ARTE DOENSINO MÉDIO EM IPIAÚ- BA

Elenida Alves Brandão1 Elenise Cristina Pires de Andrade2

UEFS

Resumo: Esta investigação está vinculada ao Mestrado em Educação de Unversidade Estadual de Feira de Santana, Bahia (UEFS) onde um dos autores (as) está desenvolvendo pesquisa como aluna do mesmo curso. A presente proposta de estudo inclui o recorte da problemática da “desnaturalização” curricular no ensino médio, uma vez que esta encontra-se elaborado no seio de conhecimentos historicamente constituídos em valores socioculturais, homogêneos, capitalísticos, colonizadores ; apesar de “defender” um discurso intercrítico, e pluricultural em seus documentos oficiais. Aborda algumas propostas pertinentes dos estudos pós-estruturalistas da educação buscando alargar rachaduras na discussão em torno da filosofia da diferença alinhavada ao currículo, e, desta conexão: encontros, rizomas e perspectivismo; como possibilidades aplicadas no cotidiano de uma escola pública da cidade de Ipiaú, Bahia. Nos Atos de Currículo desenvolvido pelos estudantes do ensino médio a partir de um projeto de Filosofia e Artes- MODELARTE; sendo o campo empírico formado por quatro turmas do ensino médio. O perspectivismo dialógico está centrado na discussão epistemologia da filosofia da diferença.Desta forma, diálogos com Nietzsche, Deleuze & Guattari, Gallo, Paraíso, Certeau e Corazza serão imprescindíveis. A abordagem metodológica constitui-se em torno do etnométodo buscando uma visão mais humanizada e menos categorizadora da pesquisa trazendo a discussão com os cotidianos dos sujeitos envolvidos. Palavras-chaves: currículo, filosofia, diferença encontros, rizoma, ensino médio.

Introdução

Um passeio pela história do pensamento da humanidade nos convida a refletir sobre as

concepções de razão, entendimento, verdade e essência instituída pelos filósofos gregos nos

séculos VII a III a. C. mais precisamente nas ideias de Platão e Aristóteles. Sobre esse

patamar foi edificado o conhecimento humano engradado em doses de verdade rígidas; de um

sujeito uno; com essência impermeável. As projeções dessas ideais nortearam a história e o

1 Mestanda em educação pela UEFS; Pós-graduanda do Curso de Especialização em Filosofia Contemporânea-

UESB; Profa. de Filosofia da Rede Estadual de Ensino da Bahia Professora de Filosofia do Ensino Fundamental II da Rede Municipal de Ibirapitanga/ Bahia; Membro do Grupo de Estudos em Territorialidades da Infância e Formação Docente (GESTAR/CNPq). E-mail: [email protected]

2 Doutoura em educação pela Universidade Estadual de Campinas, Mestrado em educação pela Universidade estadual de Campinas , Professora do Departamento de Educação UEFS (BA). Participa do grupo de pesquisa TRACE (Departamento de Educação) UEFS. Membro do grupo de pesquisa OLHO da Faculdade de Educação de Campinas e do grupo&quot;multi;TÃO: proliferar-artes. Pesquisadora associada junto ao Labjor (UNICAMP).

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conceito de culturae de certa forma em todos os segmentos da vida social organizada, entre

estes, a escola em suas concepções idealistas e dogmáticas.

Muitas são as teorias que buscam “modernizar” o ensino através das décadas propondo

uma educação inclusiva, transversal e moderna capaz de construir a “autonomia” dos

indivíduos e promovendo a cidadania; porém, o que se observa na realidade é a

predominância de um discurso centralizador e unilateral, atrelado a uma estrutura curricular

rígida Foucault (2003) apud Veiga-Neto (2004, p. 88) “O poder, longe de impedir o saber, o

produz.” e totalizadora, onde o sujeito é considerado como um receptor em potencias e deve

ser capaz de aprender tudo que lhe for ensinado na submersão da “modernidade líquida”

Bauman (2003, p. 16) e fria, envolto numa teia de cobranças onde a exclusão e a

competitividade éferrenha.

Neste contexto a “educação é determinante e exige que o indivíduo se adapte às suas

exigências” Durkheim (1996, p. 86) e a escola é o principal instrumento desta adaptação.

Então, as marcas das instituições e do “poder que ela opera sobre os sujeitos” Foucault (2003)

torna a escola um instrumento de reprodução das forças de dominação e isso implica em

anular espaços para a criação e subjetividade não-determinada e assim contribuir para que se

instaure um indeterminismo e as práticas multiculturais e discursivas na realidade do jovem

estudante na contemporaneidade.

Oterreno onde se desenvolve esta pesquisa em andamento é ondular, carregado

deindagações, perspectivismo, desterritorialização e reterritorialização dos saberes

historicamente centralizador e eurocêntrico. Movidos pela inquietação dos modos como se

vem se constituindonas escolas públicas, onde se “aceitou sem maiores questionamentos a

cultura como o “melhor” que a humanidade havia produzido” Veiga-Neto (2004, p. 34) nos

remetemos ao apurar a prática humanizada e sensível num conhecimento construído a muitas

mãos, desnivelado, conecto é de onde brota a proposta deste trabalho. Uma via onde as dobras

anteriormente formadas no universo das “verdades prontas e imutáveis” se desintegram,

defasem-se dando lugar a outras inquietações dividindo perspectivas ecompartilhando

protagonismos.

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A pesquisa no campo curricular da educação brasileira tem se expandido ainda que

lentamente. Algumas direções e propostas denominadas pós-críticas em consonância com o

pensamento pós- estruturalista vem desenhando outra dinâmica curriculista na educação que

timidamente vai tomando “espaço nos cotidianos escolares.” Certeau (1994, p. 52). Contudo,

o campo da produção das subjetividades nas práticas educacionais, no que diz respeito ao

“currículo e diferença no ensino médio”, a partir das desconstruções/construções curriculares

apresenta um déficit de produções e investigações e, quando relacionadas à educação do

ensino médioem escolas públicas, essa lacuna torna-se ainda mais evidente.

Um dos principais dilemas da educação contemporânea é aquele que gira em torno da

permanência dos alunos do ciclo médio nos bancos escolares. Atraídos pelo número de

estímulos e pela “velocidade da sociedade” Bauman (2008 p. 23), a escola lhes parece

enfadonha e menos atrativa do que as multimídiaspresentes na realidade contemporânea. Na

visão de Tiramonti (2005, p. 88) “A escola necessita de uma mudança radical do projeto

cultural.” O e desinteresse dos adolescentes pela vida escolar tem gerado muitas reflexões

sobre os possíveis caminhos de fazer com que o ensino médio seja vivido e percebido como

significativo.

Nessa perspectiva, o desafio dos sistemas de ensino nos últimos anos envolve a

capacidade de organizar um programa curricular que, consiga ao mesmo tempo formar os

jovens para continuar os estudos no ensino superior e, prepará-los para o mercado de trabalho.

Ou seja, fazer com que se escolarizem o mais possível, o que muitas vezes obscurece outros

sentidos da educação.

Aparentemente a escola de ensino médio que nos dispusemos investigar, comunga

com a mesma realidade das outras escolas brasileiras: apresenta a centralização curricular; o

que acarreta entre outros aspectos representa a não-democratização do ensino e a não-

adequação escola/sujeito/realidade, pois, ainda centrada na constituição dos “saberes

essencialistas e compartimentalizados.” Gallo (2008, p. 61). Essa configuração possivelmente

é uma das responsáveispelos altos índices de evasão escolar. Movidos por linh(as) de fug(as)

que nos remete pensamentos na direção desta investigação e considerandoo espaço espaço

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real tecnológico e sem fronteiras diante de um futuro “cheio de incertezas e mudanças

constantes.” Malucci (1997, p. 10). Em face das incertezas do futuro, do significado que o

tempo tem para a adolescência e de uma mudança cultural, encontramos nos jovens o

privilégio do presente, neste sentido, partimos da problemática:

O que pode o currículo do ensino médio a partir do MODELARTE? Quais as

forças utilizadas pelos estudantes que deformam as formas, desterritorializam saberes e

instauram encontros alegres?Quais linhas de fugas são tomadas para fazer brotar a

partir do projeto a arte, a filosofia e a diferença? Como a execução deste projetotem

buscando alargar rachaduras nesta discussão, através da impetração de atos

curriculares, onde as realidades multiculturais possam conectar-se em rizomas e serem

representadas e constituídas no cotidiano das salas de aula do ensino médio?

A partir de um olhar situado na perspectiva da filosofia da diferença que é mais uma

peregrinação e, partindo de experiências que ousam desconstruir o óbvio e arriscar o

imprevisível, tecendo espaços em branco que ora estão preenchidos de certezas e outrora só se

deparam com dúvidas, assim, dialogando com autores que buscam nas teias da vida,construir

um currículo ao vivo! Com direito a erros e acertos tal como a caminhada humana, que

reinvente o óbvio e não tenha medo do erro, da crítica da (im)possibilidade. Tal qual

proclamou Nietzche (2007, p. 104) “ É preciso dançar aos pés do acaso.” E a isso, some-se ao

estudante, envolva-se/forme-se/deforme-se com e para ele.

“Um currículo pode ser feito da mesma matéria de uma vida?” Foi esta a pergunta que

fezParaíso (2010, p. 67) num de seus inúmeros escritos curriculista. É inevitável então deixar

de reconhecer o espaço escolar plano onde o currículo flui e influi. data, forma, impede,

marca, determina, anula, proíbe, relaciona, contextualiza e que quase sempre deixa de incluir

a vida como tecido constitutivo. A referida autora em seus mergulhos no campo dos estudos

curriculares constroi concepções que nos desafiam a acreditar na diferença como tecido

constitutivo das tessituras da vidanossadecadadia. Vida que deve tomar espaços para além do

bem e do mal, por ter sua singularidade impossível de ser pensada nos limites particularistas

dos vínculos institucionais.

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Não se trata apenas de traçar trabalhar um plano sobre o vago e viver as aventuras

errantes de uma currículo sem início ou fim. Trata-se de tomar avida como matéria prima do

currículo e arriscar-se nas (im)possibilidades que cada estudante traz consigo.Neste sentido,

arriscamos enveredar por alguns conceitos pensados por Deleuze (1998, p 37) “os afetos e

perceptos, seduzidos do campo da psicologia onde se passa da experiência da percepção

simples para o afeto nas percepções e deste, a um afeto extraordinário criando a possibilidade

de desterritorializar saberes viabilizando a construção da diferença. O mesmo afirma Spinoza

(2007, p. 163) “as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou

diminuída, estimulada ou refreada.”

E de qual diferença falamos? A mesma que nos orienta a olhar na direção do múltiplo

e perceber a multiplicidade que habita cada um dos personagens curriculistas: educadores,

educandos, comunidade escolar. Diferença não é aquilo que determina a distinção entre

entidades conceitualmente articuladas. A diferença é esta potência interna da in-diferença que

corrói toda determinação. Neste caso, o que é determinado no currículo potencializa-se como

vetores de forças em direção ao indeterminado. Este conceito defendido na filosofia de

Deleuze e aplicado à educação inaugura o perspectivismo, a multiplicidade, a

desterritorialização.

Como fazer a diferença deleuzeana funcionar num currículo seja ele qual for? Se os

currículos já são estratos da realidade atualizados, como a diferença irá proliferará no

currículo? Os cartógrafos currículistas devem estar atentos a qualquer linha de fuga que

acontece dentro deste. já que esse, como afirma Paraíso “O currículo pode parecer

aparentemente pronto mas, não está.” Para isso estamos na vigília deste escape, vazante

curriculista que é o projeto MODELARTE para observar onde ele escorrega, prolifera,

multiplica-se, defasa-se e torna-se um devir- outro.

SegundoParaíso pensar o currículo com a diferença deleuzeana“ É tirar o foco da

identidade: tanto do pensamento identitário (que tem como critério a reunião como do

conceito de identidade (que procura o comum sobre a diversidade ou que identifica pessoas e

grupos para, em seguida, agrupá-los como diferentes).” Paraíso (2010, p. 64) Se a reunião é o

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critério da generalidade e da identidade, o acontecimento é o critério da diferença. Então, a

diferença segundo Deleuze (1998, p. 76)“é comportar-se em relação a algo que não tem

semelhante ou equivalente. A diferença é o que vem primeiro; é o motor da criação; é a

possibilidade de no meio, no espaço-entre, começar a brotar hastes de rizoma.”

Aplicado ao currículo, podemos considerar que o ato da criação embutido na própria

vida é o pode se tornar um vetor da forças para a consolidação dos saberes trabalhados em

classe ou não. E, durante o projeto MODELARTE desenvolvido na escola do ensino médio da

qual nos dispusemos repousar o olhar, queremos destacar a matéria do currículo que é a

tessitura da vida,ondeabandona-se a obrigatoriedade da territorialização, inclusive, de saberes.

Por fim, um currículo que não estabiliza o fluxo-devir-vida e paralisa as forças. Que despoje-

se do caráter da forma/repetição e visite o terreno do simulacro.

Rizomas em Teias de Formação e Vida: atos

A perspectiva chamada “pós moderna” e “pós-estruturalista” tem trazido novos

conceitos e reflexões à cerca dos problemas relacionados à educação, entre estes, o modo de

organização currícular.A concepção do conceito de Atos de currículo traz uma leitura de

Macedo (2011, p. 45) considerando a proposta de Bakhtin (2003, p.23) “Ato/atividade não se

confunde com a ação física. É a ideia de ato como elemento que realiza a potencia que o

originou, destacando o processo da potencia ao ato”. Compreendendo o Ato no campo

curricular mediamos o agir humano a partir da realidade que pode criar, modificar, pois o ato

em sua inteireza, “postula, cria” Macedo (ibdem).

Diante do poder criativo e inventivo percebemos atos de currículo embutidos no o

projeto MODELARTE que acontece anualmente no Colégio Modelo Luis Eduardo

Magalhães e tem duração de um bimestre. Este ato curriculista tem o “poder” motivacional

decontaminarturmas do ensino médio e toda a comunidade escolar, para a promoção de

encontros alegres. O terreno empírico enviesado-rizomáticotraz a visibilidade de um ato de

currículo como atos virtuais que se atualizam e produzem diferença, singularidades. Nosso

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encontro com os estudantes começou ainda no primeiro bimestre de dois mil e catorze,

camuflados entre árvores pátios, aulas e corredores observamos a caixa colocada no pátio da

escola. A mesma ficaria ali por semanas que antecedem o projeto, para receber dos alunos

pedaços de papéis escritos com temasque poderão se transformar na temática central do

mesmo

Acreditamos que este ato que toma carona no projeto MODELARTE apenas para

dizer-se, está na base da participação singular do ser, e pode acontecer em diversos outros

espaços, pois, implica responsabilidades; um gesto ético. Identificamos uma possível conexão

com as ideias Nietzche (2005, p. 52) vislumbrando uma possibilidade de um sujeito “não

sujeitável às verdades determinantes”. Pensa o homem não metafísico ou livre de uma

concepção de ser uno e imutável. Inscreve importantes lições sobre a verdade e o

conhecimento, sobre o sujeito e a subjetividade, sobre a força e o poder, sobre a moral e os

valores.

Nos emaranhados rizomáticos Deleuze & Guattari (1995) traçam no tecido

constitutivo da existência dos sujeitos a subjetividade, desenvolvendo a idéia de rizoma que

brota na biologia e encontra ressonâncias na teia da vida, em vias de negociação e saberes.

Segundo os autores Deleuze & Guattari (1995, p. 97) “Um rizoma não começa nem conclui,

ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas

o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem

como tecido a conjunção e… e… e…”. Tomando como referências as conjunções possíveis,

reiteramos a proposta de construir uma confluência entre Atos de currículo, rizoma e estética

e suas possibilidades no ensino médio. educação.

Compreender a educação na perspectiva rizomática, seja na educação básica ou na

universidade, como um campo de construção de conhecimento requer, sobretudo, a

compreensão de que existem diversas formas de conhecimento, e que elas dialogam entre si.

Nos multifacetados contextos culturais, históricos e sociais, onde estão presentes

sujeitos/alunos oriundos dos mais diversos territórios; e, trazem consigo uma diversidade de

saber/fazeres. Conectados como rizomas nas realidades dos alunos/atores/sociais; como forma

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de explanarem sobre suas reais necessidades e vontades. Conceber de fato a efetiva

participação do aluno/sujeito no espaço tempo oportuno: o agora.

Neste caminho, nossa bandeira é a multiplicidade, por isso, não descartaremos outras

visões e olhares sobre a nossa pesquisa e aceitaremos interferências que ressoam em nós

rastros e bifurcações, dobrasque conduzam à singularidades. Atravessamentos como Corazza

(2013) que nos inquieta cita Heráclito: “O tempo do acontecimento é o reino das crianças.”

Coraza (2013, p. 31)Presa à teia da filosofia da diferença chama a atenção para a possibilidade

de se dançar aos pés do acaso. Solto, despido do compromisso do fazercumpriralei, do estar

preso à gravidade o acaso é um convite aos destemidos que sem medo de soar ridículo,

enfrenta exatamente pontos onde muitos desejam evitar e faz deste jogo de dados a vontade de

potencia que cria e recria as possibilidades de um currículo no ensino médio.É uma

reterritorialização dos direitos de construção dos saberes espalhados em gotas de reflexão e

por isso inundado de cidadania. “Rizomatizando” as multiplicidades dos sujeitos é o modo

mais eficaz de se construir a si mesmo em suas subjetividades; amparados pelas “concepções

identitárias flutuantes” HALL (1998, p. 43), realidades culturais e sociais, estas, palco

adequado para se estrear o protagonismo tendo neste veio, a escola.

Os sujeitos em atos de encontro e vida

“Não estamos sugerindo que há “uma” pedagogia libertadora completa, com

estratégiase técnicas. Não há nada pronto para empacotar e comercializar para uso em dez

lições.” (BILLINGS; HENRY, 2000)

O campo empírico desta pesquisa em andamento é o Colégio Estadual Luís Eduardo

Magalhães localizado no centro da cidade de Ipiaú-BA, onde além do ensino fundamental II,

a presença de seis turmas do ensino médio, atende uma clientela de adolescentes e adultos

oriundos de vários bairros da cidade de pouco mais de cinquenta mil habitantes. As atividades

econômicas giram em torno da agricultura, pecuária, extrativismo mineral e comércio, no

entanto, boa parte da população é considerada de baixa renda segundo dados do IBGE 2014.

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Entre os diversos acontecimentos dentro de um currículo no cotidiano escolar nos

dispomos observar o desenvolvimento de algumas etapas do projeto MODELARTE, por ser

este refletido e elaborado, pelos estandantes do ensino médio e este ter se tornado ao longo

dos anos, tamanha sua dimensão e amplitude um “Acontecimento” na comunidade escolar.

Não nos interessa o projeto e sim a filosofia da diferença impetrada nas suas entrelinhas Os

espaços de criação e encontros alegres ocorridos durante seu espaço/tempo.

Como Corazza (2010, p. 19) nos sugere E ainda sugere: “queremos escrever a

educação como ficção científica, romance policial, não evitando o que não sabemos, ao

contrário, nestes pontos fixar que muito tem ainda a nos dizer.” Transferir a aula para o

terreno do impossível, marcar e ser marcado, atravessar e ser atravessado pela diversidade de

possibilidades que chagam todos os instantes até nós. Deixar que a aula siga o mesmo pulsar

da vida, privilegiando, quando possível, as alegrias, os encantos, os encontros.

Ser artesão, esteta, artista e artisteiro para saber no que a diferença nos transforma.

Tomando a observação e a conversa informal como artefatos seguimos a linha de fuga do

projeto MODELARTE: O que vai se passar no currículo do ensino médio durante esse

projeto? O que ele pode? Que clarão provoca? O que conta? Quais afetos e perceptos

desperta? O que reterritorializa e ou desterritorializa? De qual devir são tomados os estudantes

através dos labirintos do MODELARTE?

O MODELARTE, explica a professora de Filosofia do ensino médio“ Surgiu desde

dois mil e seis e é um amontoado de atividades livres onde os estudantes problematizam no

espaço tempo de uma semana a temática sorteada e astransforma em ideias, em formas de

poemas, poesias, dança, teatro, novela, conto, vídeo,musica.A escola para para ver o projeto

acontecer.” Zorilma Freitas (professora de Filosofia do Ensino médio).

“O tema deste ano é massa. Não foi o tema que eu coloquei na caixa. Eu havia

colocado prostituição infantil, mas esse sobre internet é um mundo e podemos falar de muitas

coisas.” Felipe Santos, aluno do 1 anoA As vozes vão nos sussurrando: “ O palco é o espaço

onde falamos. Talvez coisas que queríamos ter dito em outros momentos e não foi possível.”

Sônia Lins 17 anos, aluna do 2 ano B. Entre os labirintos das salas de aulas, entre atos e

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ensaiosseguimos ouvindo anotando, registrando...

“Eu esperei a oportunidade para apresentar aquela paródia que havia criado com meu

colega. Ali colocamos tudo o que pensamos sobre o mundo de hoje, a política, a escola, as

pessoas na internet. Fiquei nervoso mas, gente se sente até meio artista, importante. Ana

Carolina Vidal, 16 anos, 1 ano B. Percorrendo os corredores das inseguranças em meio a

gritos, aplausos e choros vamos iniciando o mapa do currículo MODELARTE e já

percebemos que os limites cartográficos este devem ser simplesmente a-l-i-n-h-a-v-a-d-o-se,

talvez não receba mesmo um acabamento perfeito concluso, pois, diante da riqueza do projeto

de das linhas que nos atravessam a todo instante, sentimos escapar – o pronto e desencadear

um currículo novo pré-inventado, pensado e vivo!

“Todos os professores do ensino médio estão envolvidos indiretamente no projeto.

Somos ajudadores, motivadores, porém as ideias e execução são dos alunos. Estamos

presentes na escola em todo o período, no entanto são eles que correm, escrevem, ensaiam,

apresentam...Pensam. O resultado até nos assusta, nos espanta. Emociona. É gigante.” Elenita

Ribeiro Melo, professora de Artes do ensino médio.

O cenário que envolve a manifestação de aportes sociais, afetivos e culturais dos

estudantes trazem uma riqueza imprescindível e surpreendente de linguagens, simbolismo e

imagens que quase sempre não estão presentes no cotidiano escola, sobre isso nos fala Apple

(1982, p. 88) “ Eu nunca me vi na escola, estudei anos e anos, li muitos livros e textos, mas,

nunca me encontrei neles.” O autor em sua “queixa” revela as entrelinhas de um currículo

elitista, centralizador que não traduz a realidade dos sujeitos envolvidos no processo de

aprendizagem que quase sempre aprende de um mundo desconecto com sua realidade cultural

A criatividade dos estudantesrevelando-se em composições, passos de danças, criações

artísticas se revelam e revelam os artefatos culturais presentes numa soma de múltiplas

culturas e valores sem contudo, uma sobrepor-se à outra, como gramas, rizomas, composição

do mosaico de uma educação que é retrato de subjetividades, estética e vida que já conferimos

nas linhas iniciais desta pesquisa.

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No caminho das reticências

“O rizoma não conclui.”

Deleuze; Guattari (1988)

Ao que tudo indica, nesta breve abordagem e prévias observações deste estudo em

andamento, que são os atos de currículo propostos no MODELARTE, dança, canta,

diferencia-se e proporciona encontros alegres. A não-obrigatoriedade ou tarefas pré-

estipuladas faz o currículo dançar nos pés do acaso e a cada abre-fecha das cortinas do palco

da escola os jovens e adolescentes em seu devir-artista constroem um currículo que flutua

entre o terreno do saber e a face da vida. Garcia (2000, p. 91) “É a necessidade de não ser

espectador e ousar arriscar gestos.”

Observamos também que as atividades interacionistas e de caráter artístico é uma

porta acessível à construção de atos de currículo multicultural e rizomático e promovem a

anulação de conceitos historicamente constituídos como centralizadores de que uma

determinada cultura é “superior” a outra e por isso deve ser ensinada e aprendida. O educando

entãotorna-seum sujeito reflexivo do processosocial e educacional que está inserido, uma

contribuição à formação política, portanto. Isso reconhece Billings; Henry (2000, p. 56): “Ao

ensinar aos educandos reconhecerem que eles trabalham em oposição ao mesmo sistema que

as emprega, eles entendem e podem articular suas opiniões sobre o propósito social do

ensino.”

Nos posicionamos no caminho das reticências, com a certeza de que a dança dos

currículos fazem par com a diferença deleuzeana e que as conexões rizomáticas dão mãos

com os encontros alegres. Estamos quase certos de que o poder dos afetos alegres invade a

vontade de potencia nos espaçosescolares e faz o currículo-diferençaMODELARTE e VIDA

dançarem de rosto colados. Pois daí vimos surgiruma prática curriculista singular e sensível,

que vai do vrtual ao atual nas bases do pensamento esteta e que deixa fluircomo vazante a

dominar outros terrenos estruturados, trancafiados,rígidos.

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CONCEPÇÃO FILOSÓFICA NA CRIAÇÃO DOS INSTITUTOS FEDERAIS DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA: UMA PROPOSTA PARA ALÉM DO TECNICISMO

Eliane Cristina Gualberto Melo Mineiro1 João Leandro Cássio de Oliveira2

Sheila Cristina Furtado Sales3 PPGED/UESB

Resumo: Realiza-se neste artigo uma análise da criação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, tendo como eixo norteador sua concepção filosófica, presente em suas concepções e diretrizes. Em 29 de dezembro de 2008, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 11.892/08, que criou 38 Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. A mencionada lei instituiu a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica no âmbito do sistema federal de ensino, vinculada ao Ministério da Educação. Estão presentes em seus valores, entre outros, a ética, inclusão social e responsabilidade social. Utilizamos como procedimentos metodológicos a pesquisa bibliográfica e a análise dos instrumentos normativos dessa Instituição. A criação dos Institutos Federais contempla a concepção filosófica em suas diretrizes, não se limitando ao tecnicismo. A formação humana, cidadã precede a formação técnica e científica, garantindo aos profissionais formados possibilidade de contínuo desenvolvimento profissional e humano.

Palavras-chave: Concepção Filosófica dos Institutos Federais. Educação Profissional, Científica e Tecnológica. Formação cidadã. Introdução

Em 29 de dezembro de 2008, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei

nº 11.892/08, que criou 38 Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. A

mencionada lei instituiu a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica no

âmbito do sistema federal de ensino, vinculada ao Ministério da Educação e constituída pelas

seguintes instituições: Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia – Institutos

Federais; Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR; Centros Federais de

1 Pedagoga no Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG), mestranda em Educação pela da

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), e-mail: [email protected] 2 Professor efetivo e coordenador de curso no Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG) , mestrando

em Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB ); e-mail: [email protected] 3 Professora Titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Doutorado em Educação pela

Universidade Federal de São Carlos, Brasil (2008), e-mail: [email protected]

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Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca – CEFET-RJ e de Minas Gerais – CEFET-

MG; Escolas Técnicas vinculadas às Universidades Federais (OTRANTO, 2010).

Os Institutos Federais ressaltam a valorização da educação e das instituições públicas,

aspectos das atuais políticas assumidos como fundamentais para a construção de uma nação

soberana e democrática, o que, por sua vez, pressupõe o combate às desigualdades estruturais

de toda ordem. É, pois, para além da estrutura institucional estatal e dos processos de

financiamento e gestão de caráter técnico-administrativo, principalmente na dimensão

política, no campo dos processos decisórios, na intermediação dos interesses de diferentes

grupos utilizando-se de critérios de justiça social em virtude de sua função social, que os

Institutos afirmam a educação profissional e tecnológica como política pública. Portanto, é na

compreensão das estruturas institucionais e na intervenção nas relações sociais moldadas por

diferentes interesses e expectativas que os Institutos Federais assumem o papel de agentes

estratégicos na estruturação das políticas públicas para a região que polarizam, estabelecendo

uma interação mais direta junto ao poder público e às comunidades locais.

Nesse contexto, buscou-se analisar a criação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e

Tecnologia, tendo como eixo norteador sua concepção filosófica, presente em suas diretrizes. Quanto

aos procedimentos metodológicos, para realização dessa análise foi realizada uma pesquisa

bibliográfica, de caráter qualitativo, por meio da análise dos instrumentos normativos e valorativos

dessa instituição, combinada com aspectos da pesquisa descritiva. Conforme destaca Cervo e Bervian

(2002), a pesquisa descritiva procura explicar o objeto de estudo a partir de observações, registro,

análise e de referências teóricas publicadas em documentos.A pesquisa documental possibilitou a

análise dos documentos formais do Instituto Federal, tais como: relatórios, ofícios, leis, resoluções

normativas, pareceres, indicadores, avaliações e planejamento.

A educação profissional e tecnológica: evolução histórica e conceitos

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 6º, prevê como direitos sociais, entre

outros, a educação e o trabalho. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB nº

9.394, de 20 de dezembro de 1996), em seu § 2º do artigo 1º, determina que “a educação

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escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social”(BRASIL, 1996), sendo a

educação profissional uma maneira de se transportar ao desenvolvimento de aptidões na vida

produtiva, contribuindo para a melhoria e elevação da escolaridade do educando. No governo do então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi promulgada a Lei nº 11.892,

em 29 de dezembro de 2008, que institui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e

Tecnológica e cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Conforme prevê o artigo

2º da referida Lei:

Os Institutos Federais são instituições de educação superior, básica e profissional, pluricurriculares e multicampi, especializados na oferta de educação profissional e tecnológica nas diferentesmodalidades de ensino, com base na conjugação de conhecimentos técnicos e tecnológicos com as suas práticas pedagógicas, nos termos desta Lei (BRASIL, 2008).

Neste contexto, o cenário mundial, voltado para a globalização da competitividade econômica,

determina o desenvolvimento da educação profissional e tecnológica de qualidade, voltada para as

exigências do mercado de trabalho, para a qualificação e conhecimentos tecnológicos e

consequentemente para o desenvolvimento econômico e social do país.

Diante do crescimento do país e investimentos em infraestrutura e indústrias tecnológicas, o

Governo Federal passa a investir em políticas públicas voltadas para a educação profissional. Os

Institutos Federais representam essa política, sendo uma forte expressão da valorização da educação e

das instituições públicas, em prol do alcance dos objetivos constitucionais, buscando garantir o

desenvolvimento nacional e reduzindo as desigualdades sociais e regionais.

Com relação à iniciativa de expansão da Rede Federal, destaca-se o documento sobre

as Principais Ações e Programas - PPA (2012-2015) de responsabilidade do Ministério da

Educação e Cultura (MEC). Esse documento enfatiza que o objetivo da Educação Profissional

e Tecnológica é expandir, interiorizar, democratizar e qualificar a oferta de cursos de

educação profissional e tecnológica, considerando os arranjos produtivos, sociais, culturais,

locais e regionais. Além disso, contempla a necessidade de ampliação das oportunidades

educacionais dos trabalhadores e os interesses e necessidades das populações do campo,

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indígenas, quilombolas, afrodescendentes, mulheres de baixa renda e pessoas com deficiência

(BRASIL, 2012).

Ressalta-se, ainda, no âmbito do financiamento da educação, Fundo de Manutenção e

Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação

(FUNDEB), com vigência estabelecida para o período de 2007-2020. O Fundo financia toda a

educação básica brasileira e foi criado como mecanismo de redistribuição de recursos visando

à equidade, à redução de desigualdades, à valorização do magistério e à qualidade da

educação. Segundo Otranto(2010) o Instituto Federal “é a expressão maior da atual política

pública de educação profissional brasileira. Está produzindo mudanças significativas na vida e

na história das instituições que optaram por aderir à proposta governamental” (OTRANTO,

2010).

A lei nº 11.892/08 criou 38 IFETs, com a finalidade de ofertar educação profissional e

tecnológica em todos os níveis e modalidades e promover a integração e a verticalização da

educação profissional, desde a educação básica até a educação superior, otimizando a infra-

estrutura física, os quadros de pessoal e os recursos de gestão. Segundo a legislação que o

instituiu, o Instituto Federal deve constituir-se como centro de excelência na oferta do ensino

de ciências, em geral, e de ciências aplicadas, em particular e qualificar-se como referência no

apoio à oferta do ensino de ciências nas instituições públicas de ensino, oferecendo

capacitação técnica e atualização aos docentes (BRASIL, 2008).

Para Pacheco (2011, p.16), “a implantação dos Institutos Federais está relacionada ao

conjunto de políticas em curso para a educação profissional e tecnológica”. Neste sentido,

instalados em todo o território nacional, os Institutos Federais atuam em cursos técnicos,

licenciaturas e graduações tecnológicas, podendo ainda disponibilizar especializações,

mestrados profissionais e doutorados voltados principalmente para a pesquisa aplicada de

inovação tecnológica. Essa organização pedagógica verticalizada, da educação básica a

superior, é um dos fundamentos dos Institutos Federais. Desse modo, Pacheco (2011) afirma

que:

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A criação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia dá visibilidade a uma convergência de fatores que traduzem a compreensão do atual governo quanto ao papel da educação profissional e tecnológica no contexto social do Brasil e deve ser reconhecida como ação concreta das atuais políticas para a educação brasileira. Esta compreensão considerada a educação profissional e tecnológica estratégica não apenas como elemento contribuinte para o desenvolvimento econômico e tecnológico nacional, mas também como fator para fortalecimento do processo de inserção cidadã de milhões de brasileiros (PACHECO, 2011, p. 17).

Conforme as concepções e diretrizes (BRASIL, 2010), os Institutos Federais ressaltam

a valorização da educação e das instituições públicas, aspectos das atuais políticas assumidos

como fundamentais para a construção de uma nação soberana e democrática, o que pressupõe

o combate às desigualdades estruturais de toda ordem. Nesse sentido, os Institutos Federais

devem ser considerados bem público e, como tal, pensados em função da sociedade como um

todo na perspectiva de sua transformação. Os Institutos Federais respondem à necessidade da

institucionalização definitiva da educação profissional e tecnológica como política pública.

Enquanto política pública, os Institutos Federais assumem o papel de agentes colaboradores

na estruturação das políticas públicas para a região que polarizam, estabelecendo uma

interação mais direta junto ao poder público e às comunidades locais.

Concepções e marco legal da educação profissional e tecnológica no Brasil

O Ministério da Educação e Cultura (MEC) preconiza a concepção e as diretrizes dos

Institutos Federais, por meio do documento “Concepção e Diretrizes dos Institutos Federais”

em consonância com a Constituição Federal de 1988, que, estabelece:

a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (art. 205) (BRASIL, 2015).

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O artigo 39º da LDB nº 9394/96, prevêque “a educação profissional, integrada às

diferentes formas de educação, ao trabalho, à ciência e à tecnologia, conduz ao permanente

desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva” (BRASIL, 1996). Assim, a educação

profissional preconizada na LDB otimiza as chances de capacitação profissional e

empregabilidade, em diversos campos e níveis de atuação, não se limitando à formação de

técnicos de nível médio, mas é um fator de mudança para os educandos, através dos

conhecimentos, habilidades e atitudes.

Para Berger Filho (1999), “a Lei de Diretrizes e Bases de 1996 é considerada um

marco na sua forma de tratamento da educação profissional, pela forma global com que o

tema é tratado, e pela flexibilidade permitida ao sistema e aos alunos”.Para este autor, a Lei de

Diretrizes e Bases anterior tratou da educação profissional apenas parcialmente. Assim, conforme a legislação brasileira, a educação profissional possui os seguintes níveis:

• Nível básico: voltado à qualificação de estudantes de qualquer nível de instrução.

• Nível técnico: destinado a proporcionar habilitação profissional a alunos matriculados ou

egressos do ensino médio.

• Nível tecnológico: Voltado para pessoas que queiram cursar um ensino superior

tecnológico, correspondente a cursos de nível superior na área tecnológica,

destinados a egressos do ensino médio e técnico.

Do mesmo modo, o principal objetivo da educação profissional é a criação de cursos

voltados para acesso ao mercado de trabalho, que buscam ampliar suas qualificações. E nesse

contexto, os novos currículos voltaram-se para atender tanto ao mercado nacional como às

características das diferentes regiões brasileiras, além de se adaptarem às exigências dos

setores produtivos. O objetivo é criar cursos que garantam perspectivas de trabalho para os

jovens e facilitem seu acesso ao mercado; que atendam, também, os profissionais que já estão

no mercado, mas sentem falta de uma melhor qualificação para exercerem suas atividades, e,

ainda, sejam um instrumento eficaz na reinserção do trabalhador no mercado de trabalho. A

formação profissional não se esgota na conquista de um certificado ou diploma. A nova

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política estabelece a educação continuada, permanente, como forma de atualizar, especializar

e aperfeiçoar jovens e adultos em seus conhecimentos tecnológicos.

Políticas públicas: criação da rede federal de educação profissional e tecnológica

Desde os tempos mais remotos a formação dos trabalhadores já havia no Brasil, como,

por exemplo, os aprendizes de ofícios, os índios e os escravos. A Rede Federal de Educação

Profissional e Tecnológica, segundo o MEC, bem como a sua evolução histórica

sistematizada pelaFundação Joaquim Nabuco4, teve seus marcos regulatórios iniciais traçados

a partir do ano de 1909, pelo Decreto nº 7.566 assinado pelo Presidente Nilo Peçanha, criando

19 “Escolas de Aprendizes Artífices”.

No final da década de 1930, as Escolas de Aprendizes Artífices deram lugar aos

Liceus Industriais. A partir de 1942, surgiram as Escolas Industriais e Técnicas, no lugar dos

Liceus, com o objetivo de oferecer a formação profissional em nível equivalente ao do

secundário. No ano de 1959, as Escolas Industriais e Técnicas passaram à categoria de

autarquias e foram denominadas Escolas Técnicas Federais. Em 1978, devido ao crescimento

e evolução, três delas se transformaram em Centros Federais de Educação Tecnológica,

surgindo os CEFETs do Rio de Janeiro, Paraná e Minas Gerais.

Em 1996foi sancionada a LDB nº 9.394, que dispõe sobre a Educação Profissional

num capítulo separado da Educação Básica, superando enfoques de assistencialismo e de

preconceito social contido nas primeiras legislações de educação profissional do país. Em

2005 foi lançado o Catálogo Nacional dos Cursos Técnicos.

Em 29 de dezembro de 2008, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei

nº 11.892/08, que criou 38 Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. E em 2009

a Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica comemorou seu centenário, diante de

uma história que mostra saldos positivos na educação profissional.

4 Consultar a Linha do Tempo da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, disponível na página da

Fundação Joaquim Nabuco:www.fundaj.gov.br

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Percebe-se, portanto, que a rede federal está vivenciando a maior expansão de sua

história.Trata-se de uma política pública do Governo destacada no Plano Plurianual

Participativo (PPA Participativo). Com isso, pretende-se garantir o desenvolvimento dos

jovens para uma inserção cidadã na vida social e no mundo do trabalho, contribuindo para a

elevação de escolaridade dos trabalhadores, bem como inovando e diversificando os

currículos escolares, promovendo acesso dos estudantes ao conhecimento científico, às artes,

à cultura e ao trabalho. Além disso, a Educação Profissional articular-se com políticas,

programas e ações do Governo em prol do desenvolvimento socioeconômico e ambiental, e

de geração de trabalho, emprego e renda, na perspectiva da inclusão.

Concepção filosófica dos institutos federais

As concepções e diretrizes dos Institutos Federais convergem para o compromisso

com o social, com a formação do cidadão e retratam as atuais políticas para a educação

brasileira, as quais almejam não somente a qualificação profissional, como também destaque

para uma política de inserção dos cidadãos. Conforme Pacheco (2011),

O que está em curso, portanto, reafirma que a formação humana, cidadã, precede à qualificação para a laboralidade e pauta-se no compromisso de assegurar aos profissionais formados a capacidade de manter-se em desenvolvimento. Assim, a concepção de educação profissional e tecnológica que deve orientar as ações de ensino, pesquisa e extensão nos Institutos Federais baseia-se na integração entre ciência, tecnologia e cultura como dimensões indissociáveis da vida humana e, ao mesmo tempo, no desenvolvimento da capacidade de investigação científica, essencial à construção da autonomia intelectual (PACHECO, 2011, p.16).

Nesse sentido, percebe-se que a concepção filosófica que orienta os Institutos Federais

inclui a transformação social, proporcionando a intervenção na realidade pelos seus agentes

de transformação. Nessa perspectiva, sua concepção almeja, ainda, a inclusão social, em

direção ao desenvolvimento local e regional.

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Pacheco (2011) entende que o Instituto Federal como “um compromisso de

transformação e enriquecimento de conhecimentos, capazes de modificar a vida social e de

atribuir-lhe maior sentido e alcance no conjunto da experiência humana” (PACHECO, 2011,

p17).Ainda para esse autor,

A educação para o trabalho nessa perspectiva se entende como potencializadora do ser humano, enquanto integralidade, no desenvolvimento de sua capacidade de gerar conhecimentos a partir de uma prática interativa com a realidade, na perspectiva de sua emancipação. Na extensão desse preceito, trata-se de uma educação voltada para a construção de uma sociedade mais democrática, inclusiva e equilibrada social e ambientalmente. As políticas públicas e inclusivas para a educação, em especial, para a educação profissional e tecnológica, representam a intensificação da luta pela construção de um país que busca sua soberania, e a decisão de ultrapassar a condição de mero consumidor para a de produtor de ciência e tecnologia (PACHECO, 2011, p.29).

Diante desse contexto, o referido autor afirma ser a educação profissional e

tecnológica um instrumento realmente vigoroso na construção e resgate da cidadania e da

transformação social. Ainda segundo Pacheco (2011),

O desafio colocado para os Institutos Federais no campo da pesquisa é, pois, ir além da descoberta científica. Em seu compromisso com a humanidade, a pesquisa, que deve estar presente em todo trajeto da formação do trabalhador, representa a conjugação do saber na indissociabilidade pesquisa, ensino e extensão. E mais, os novos conhecimentos produzidos pelas pesquisas deverão estar colocados a favor dos processos locais e regionais numa perspectiva de reconhecimento e valorização dos mesmos no plano nacional e global (PACHECO, 2011, p.30).

Assim, está presente na concepção dos Institutos Federais a ideia do desenvolvimento

holístico do ser humano, em sua integralidade, para além do tecnicismo. Formar um

profissional não somente para o mercado de trabalho, mas um cidadão para atuar no mundo

do trabalho, seja com técnico, filósofo, artista, ou tudo isso, superando as barreiras do

reducionismo tecnicista na perspectiva da emancipação humana.

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Considerações finais

Os Institutos Federais trazem uma proposta inovadora, capaz de desenvolver o

conhecimento tecnológico e acadêmico através do ensino, pesquisa e extensão, voltados para

a formação humana, cidadã, contribuindo para o desenvolvimento local, regional e nacional.

Estão presentes em sua concepção valores a ética, gestão participativa, inclusão social,

responsabilidade social e transparência. Busca-se uma educação técnica, porém, de modonão

cartesiano e reduzido, formação de mão de obra qualificada, reafirmando a preocupação com

as outras dimensões humanas. Nessa perspectiva, observa-se no seu discurso o incentivo e o

espaço para legitimar a educação de pessoas, de cidadãos como agentes de transformação

política, ecológica e social para a construção de um outro mundo possível.

Nesse sentido, em sua concepção filosófica, estão presentes princípios e valores na

perspectiva de crescimento humano, na interlocução entre as novas formas de relação entre o

conhecimento, a produção e as relações socioambientais, colaborando significativamente com

o desenvolvimento do país.

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A FILOSOFIA NO ENSINO BÁSICO: ALGUMAS PISTAS PARA A REFLEXÃO DA DISCIPLINA NA ESCOLA PÚBLICA EM VITÓRIA DA CONQUISTA, BAHIA

Euvaldo Cotinguiba Gomes1 PPGED/UESB

Resumo: O trabalho aqui apresentado é fruto de um projeto de pesquisa em andamento no Programa de Mestrado em Educação na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e tem como objetivo apontar algumas considerações acerca do processo de oficialização do ensino de Filosofia nos componentes curriculares a partir de 2009. Apresentamos alguns elementos sobre o que se espera da disciplina no processo de formação do estudante e expomos algumas questões sobre as limitações que se colocam neste processo, sobretudo referentes à questão da identidade da disciplina e à realidade escolar que constitui elemento central de nossa investigação neste projeto. Palavras-chave:Filosofia, currículo, identidade, escola.

Neste artigo buscaremos abordar as circunstâncias de implantação do ensino de

Filosofia na educação básica em Vitória da Conquista no estado da Bahia a partir de 2009

quando esta se tornou obrigatória nos componentes curriculares tendo até 2011 para a efetiva

implantação da mesma.

O momento inicial, embora seja muito claramente definido do ponto de vista legal,

acabou por tornar-se um grande problema frente à realidade que se encontrava nas escolas por

não terem disponíveis profissionais devidamente habilitados e preparados para este fim. Esta

questão fica muito clara em pesquisa anteriores a este período que mostravam a situação da

disciplina no país; Em pesquisa realizada em 2003 ficava evidente a grande deficiência de

professores na área e a despreocupação do estado em promover concursos que oferecessem

vagas nesta disciplina mesmo ela já estando presente no currículo de alguns estados, ainda

que de forma não regulamentada. Na Bahia, que é o Estado em que se localiza a cidade aqui

estudada aconteceu um concurso em 2000 oferecendo pouquíssimas vagas para esta

disciplina, apenas 30 para todo o território (KOHAN, 2004). Em outros estados a realidade se

repete, pois não tínhamos neste período uma uniformidade sobre a presença da disciplina nos

1 Professor de Filosofia na rede pública estadual da Bahia e aluno no Programa de Pós-Graduação em Educação

na Universidade Estadual da Bahia.

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componentes curriculares, são várias as realidades encontradas pelos pesquisadores ao

fazerem o levantamento da situação desta no país e apresentá-la em estudo publicado no

artigo intitulado “O Ensino de Filosofia no Brasil: Um Mapa das Condições atuais”

(CADERNOS CEDES, 2004).

Trazemos estes dados para mostrar que a realidade encontrada no momento de se

iniciar a implantação da Filosofia no ensino básico em 2009 é bastante dispare, sem uma

culturaou um fazer pedagógico que pudesse oferecer condições para uma identidade da

disciplina. A Escola encontrava-se pronta e em funcionamento e de repente vê-se obrigada a

revisar o seu modo de fazer para inserir duas novas disciplinas em seu currículo, Filosofia e

Sociologia. Muitos estudos acadêmicos e discussões já vinham sendo travadas antes deste

momento, mas todas muito isoladas ou centradas em experiências localizadas. Aquilo que se

propunha a partir das reformas e novas leis desde 1988 com a Constituição Federal e a Nova

Lei de Diretrizes e Base, Lei n. 9.394/96 coloca a disciplina de Filosofia e Sociologia como

conhecimentos a serem desenvolvidos no ensino básico, mas não especificaram nem

definiram o lugar destas nos componentes curriculares, conservam-na em um estado de

instabilidade como sempreesteve na história das disciplinas escolares no currículo brasileiro.

Sabemos que esta situação não depende apenas do desejo e querer daqueles que a pensavam,

mas outros interesses foram decisórios neste processo, dentre eles acentuadamente os

interesses políticos, econômicos e ideológicos. Mesmo quando da aprovação do Projeto de

Lei n° 3.178/97, pelo Congresso e no Senado ao chegar para ser sancionado pelo então

presidente da República Fernando Henrique Cardozo acabou sendo vetado por razões

claramente econômicas, já que isto obrigaria o Estado à realização de concursos e

contratações de novos professores. Alguns estudiosos inclusive apontam isto como sendo um

argumento falacioso, mostrando que outros interesses foram decisivos e não apenas este.

Passados aproximadamente cinco anos as discussões voltam e isso leva à aprovação definitiva

da disciplina no currículo pelo então presidente da República Luiz Inácio da Silva por meioda

Lei n° 11.684, que tornou efetivamente obrigatório o ensino de Filosofia em todas as séries do

ensino médio, provocando uma nova redação na LDB 9.394/96, esse feito se dá após

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aproximadamente 40 anos da sua retirada do currículo escolar, fato que se deu em 1971 pela

reforma impetrada pelo regime militar. (SCHENINI, 2009).

Estes fatos apontam muito claramente para uma crise de identidade no ensino de Filosofia na

escola pública decorrente de diversos fatores. Dentre estes podemos destacar uma ausência de

profissionais habilitados, concursados e capacitados para este fim; o desconhecimento e até

ausência de um programa curricular para o ensino de Filosofia e o exercício do filosofar, o

esquecimento histórico pelo qual passou a própria disciplina com a sua exclusão dos

componentes curriculares ou a intencional colocação desta à margem em relação a outras

disciplinas e áreas do conhecimento de acordo com interesses e modelos pedagógicos

específicos.

Alguns aspectos estruturais interferem no desenvolvimento da disciplina e de como

esta acaba se organizando a partir da realidade encontrada e não daquilo que havia sido

estabelecido pelas leis, desejado e pensado nos espaços acadêmicos e decisórios sobre a

presença da disciplina no ensino básico. Estes aspectos são perceptíveis quando observamos a

história da disciplina de Filosofia ao longo das últimas décadas em nossa história da

educação, como mostramos a seguir.

A Filosofia e o que se espera dela no currículo escolar

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/96), em seu artigo 36

determina que ao final do ensino médio, todo estudante deverá “dominar os conhecimentos de

filosofia e de sociologia necessários ao exercício da cidadania”. Isso representou um avanço

fundamental e norteador para a presença da filosofia no Ensino Médio, uma vez que leis

anteriores como a Lei n. 4.024/61, de 1961 havia praticamente declarado a morte da disciplina

através da sua desobrigatoriedade. Posteriormente a Lei n. 5.692/71 a exclui definitivamente

do currículo básico, marcando drasticamente a história da disciplina e relegando-a ao rol de

saber desnecessário à educação.

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Essa realidade altera-se com o fim do regime militar e com as novas Diretrizes

Curriculares Nacionais para o Ensino Médio quando teremos o retorno do ensino de Filosofia

na educação básica e seu reaparecimento dentro das escolas. Especificamente com a

Resolução CEB/CNE n. 3/98, aprovada pelo Conselho Nacional de Educação em 1998, e os

PCNEM em 1999, os responsáveis oficiais pela política educacional do período – ministro,

membros da Secretaria de Educação Média e Tecnológica (SEMTEC) e pareceristas do

Conselho Nacional de Educação (CNE) – caracterizam os conhecimentos filosóficos dentro

do conjunto de temas transversais. Nesse momento, as discussões em torno da Filosofia como

disciplina nos componentes curriculares voltam à cena e, embora, os documentos não

excluam o ensino disciplinar, a presença transversal nos currículos já lhe assegura, em tese, o

determinado na LDB onde diz que “os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação

serão organizados de tal forma que ao final do ensino médio o educando demonstre “domínio

dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania.” Não

se determina ainda a necessidade de uma disciplina específica, mas abrem-se melhores

possibilidades desta, uma vez que não a exclui.

Esse aspecto abre de imediato duas possibilidades ao ensino de Filosofia, a de

reafirmarmos a construção daquilo que alguns autores chamam de Educação Republicana,

entendida

como processo de formação humana que permite o acesso a saberes, à capacidade de pensar, de argumentar, de julgar e de fazer escolhas que propiciem a inserção consciente nos processos sociais e políticos, e a participação na esfera pública. Enfim uma educação que empodere os despossuídos com as habilidades necessárias para que se sintam e se tornem pessoas, ou cidadãos ativos (BRAYNER, 2008, p.14).

A segunda possibilidade é de que a disciplina torne-se dentro do processo educacional

um conjunto de conceitos a serem utilizados para formar o “cidadão crítico” ou sujeito crítico.

Utilizando-se destes conteúdos previamente definidos pelos manuais e orientações diversas

domesticam-se as vontades, organiza-se a sociedade pela formação do cidadão seguindo

critérios e conceitos de cidadania, de ética, de moral, de política previamente definidos como

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constituindo a razão da disciplina e seu retorno ao currículo. Não atende assim às questões da

transversalidade tão própria da Filosofia. Como muito bem resume Ronai Pires da Rocha ao

dizer que

se o ensino de filosofia no nível médio se resume ao acréscimo de uma disciplina no currículo, perdemos o jogo antes de entrar em campo. A filosofia, pela sua natureza e história, pode naturalmente vir a ser um momento curricular de percepção da unidade, da complexidade e da riqueza do espírito humano. (RONAI, 2008, p 48).

A Filosofia é assim uma disciplina que não pode se reduzir a um conjunto de

conteúdos a serem disseminados, isso levaria a uma instrumentalização da disciplina sem que

se alcançasse os objetivos ou fins inerentes à mesma.Neste sentido os parâmetros curriculares

nos traz uma definição do que seja a disciplina e nela percebemos esse caráter de disciplina

para a formação crítica que não se restringe a um ato mecânico de transmissão de conteúdo

quando diz que:

A Filosofia é compreendida em linhas gerais como uma reflexão crítica a respeito do conhecimento e da ação, a partir da análise dos pressupostos do pensar e do agir e, portanto, como fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas. (PCN’s, p. 41).

Sendo a filosofia essa disciplina ela não pode abrir mão do seu caráter transversal, pois

isso acarretaria o não cumprimento desse seu fim como disciplina teórica e crítica dos

conhecimentos e das práticas.Não podemos esquecer que a práxis dessa disciplina acontece no

espaço da escola que como expressa Kohan e Waksman é:

Antes de tudo, uma instituição de controle social e de formação de subjetividades, um dispositivo que normaliza e simultaneamente totaliza enquanto engloba, ou procura englobar, os que assistem a ela, naquilo que uma instância exterior determina como normal e sanciona como correto.Como tal, a escola produz e reproduz saberes e valores afirmados socialmente.Para isso se vale da complexidade do currículo (em suas dimensões explícita e oculta), isto é, não só dos conteúdos curriculares, mas também do conjunto de práticas, discursivas e não discursivas, que abriga: desde aspectos mais visíveis como as normas de comportamento, a exigência

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de uniformes, o posicionamento dos corpos em sala de aula, corredores, pátios e salas de direção, a disposição do espaço institucional, até outros menos visíveis como asrelações deestima eauto estima,o ordenamento do tempo, a avaliação do êxito individual e a competição, medo da aposta e do fracasso. (KOHAN & WAKSMAN, 1998, p. 85).

Aqui podemos acompanhar aquilo que sugere Cerletti em sua obra o Ensino de

Filosofia como Problema Filosófico onde nos diz que cabe a essa disciplina possibilitar a

construção subjetiva sustentando-se em elementos objetivos e conjunturais, tendo ela uma

dimensão pública, (CERLETTI, 2009, p. 37).

E a Escola, como enxerga a disciplina de Filosofia? Tem um comprometimento com

esta ou deixa-a reduzida a um espaço menos significante no conjunto das disciplinas

formadoras deste currículo?Como se efetiva a constituição histórica dessas formas de

subjetivação no Ensino de Filosofia? Haveria uma submissão das subjetividades nesse fazer

pedagógico deixando-a a mercê da própria subjetivação?

Atrelado a estas questões é imprescindível não esquecermos que o modelo de

educação presente na escola pública neste período encontra-se vinculados às décadas de 80 e

90 e que este acabou por deixar-se seduzir pelo neoliberalismo. Temos hoje uma escola

influenciada por estas ideias subordinadas a políticas educacionais que seguem a lógica

econômica. Alterou sua escala de valores assimilando para si a competição, a concorrência, os

padrões de excelência etc. Ficou refém de um modelo educativo que se afirma pelo critério da

utilidade e finalidade prática. Exemplo disso é o questionamento muitas vezes colocado sobre

para que serve essa ou aquela disciplina; neste leque quem primeiro sofre tais

questionamentos é a própria Filosofia.

A escola que temos é uma escola voltada à transmissão de conhecimentos e saberes

que preparem o estudante para atender a um determinado modelo de sociedade. (CHAUÍ,

1995, p. 13). Ou ainda, a propósito da mesma questão como afirma Barroso:

[...] assiste-se, por isso, à tentativa de criar mercados (ou quase-mercados) educativos transformando a ideia de ”serviço público” em “serviços para clientes”, onde o “bem comum educativo” para todos é substituído por

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“bens” diversos, desigualmente acessíveis. Sob a aparência de um mercado único, funcionam diferentes sub-mercados onde os “consumidores” de educação e formação, socialmente diferenciados, veem-lhes serem propostos produtos de natureza e qualidades desiguais”. ( BARROSO, 2005, p. 742).

Nesse contexto encontra-se a disciplina de filosofia e passa por ela um modelo de

cidadão já construído por meio dos Parâmetros e Orientações Curriculares. Cabe-lhe o papel

de disciplina formadora do cidadão por excelência, daquele que terá espírito crítico, senso

ético, boa formação e discernimento político. À filosofia reserva-se a função de ser o baluarte

do doutrinamento moral e ético dentro da instituição escolar que serve bem à sociedade

capitalista e ao estado democrático. Podemos dizer que este é o lugar reservado a essa

disciplina dentro do currículo mesmo sendo questionada sobre o para que ela serve. Este

constitui mais um dos entraves do pensar a Filosofia no ensino médio, romper a

instrumentalização ditada pelo aparelho burocrático do estado e destes mesmos aparelhos

retirar a possibilidade de ação para o enfrentamento do real.

O ensino de filosofia e as várias questões presentes neste é tema que muito se tem

discutido. Continuamente nos deparamos com artigos, teses, livros, dissertações e diversas

outras formas de discussão e divulgação sobre o tema. Levantar as implicações deste no

cotidiano de nossa prática pedagógica é uma forma de revisão do caráter público do currículo

de Filosofia desenvolvido em nossas escolas e por complementaridade no próprio sistema

educacional. De maneira indireta pode-se atribuir à Filosofia o papel de auxiliar “a recriação

dessa escola como espaço público de decisão coletiva, baseada numa nova concepção de

cidadania”. (BARROSO, 2005, p. 746). Nos deparamos com um grande paradoxo, carecemos

de uma identidade para o ensino ao mesmo tempo que o seguimento de um modelo único

pode não constituir a possibilidade desta identidade, mas a sua própria negação. A filosofia

precisa torna-se juíza de si mesma e de sua prática a fim de que não se caia num labirinto

esperando a sua morte enquanto se questiona o porquê de ter ido parar neste lugar. É um

pensar a prática a partir de sua práxis.A Filosofia extrapola a questão da transmissão histórica

de conteúdos acumulados, sua significação está no fazer o outro participar da construção do

conhecimento partindo de suas necessidades e dos seus pressupostos. Ela está além do

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privado, vai ao dialógico como possibilidade de construção coletiva de um espaço público.

(CERLETTI, 2009, p. 87).

Os problemas em torno da Filosofia começam quando esta realidade pensada e

desejada muitas vezes se frustra e frustra aos que dela espera tanto, pois suas condições reais e

as condições encontradas nem sempre corroboram com esse tão idealizado modelo.O real

extrapola o pensado e desejado e daí muitas vezes nos deparamos com o um sentimento de

impotência daqueles que no dia-a-dia têm de fazer o pensado tornar-se real.

Pensar o currículo e programas da disciplina dentro da realidade escolar do Estado da

Bahia, questionar e recuperar no sistema tradicional de valoração presente no conjunto de

normas e leis que regem o ato de ensinar filosofia no ensino médio representa nosso maior

desafio através deste trabalho, mesmo porque muitas vezes estes operam sem consistência a

ponto de não apresentar qualquer sentido e fundamento à construção do conhecimento e da

ação do homem no mundo. (GIACÓIA JR., 2000, p. 60).

Fato é que a partir de 2009 de uma forma ou de outras a Filosofia começa a chegar nas

escolas, seja da forma que foi pensada ou da que se era possível naquele momento ela passa a

ocupar seu espaço e delimitar suas linhas de atuação, com ou sem uma identidade formada ela

se estabelece e participa da vida escolar. À medida que os anos vão passando muitos modelos

e modos de fazer vão surgindo, professores formados ou não em Filosofia vão inventando

uma cara para a disciplina e buscando demarcar seu território dentro destes espaços.

Atualmente a Disciplina já conta com um bom número de professores formados e

concursados para este fim, muitos passaram por processos de formação e se capacitaram,

outros continuam improvisando, mas estes vão aos poucos deixando de ser maioria na vida

escolar.

Considerações finais ou algumas angústias

A Filosofia inserida e sendo parte desta realidade seria capaz de superar aquilo que

Adorno dizia estar presente como “ideologia dominante hoje em dia, definindo que, quanto

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mais as pessoas estiverem submetidas a contextos objetivos em relação aos quais são

impotentes, ou acreditam ser impotentes, tanto mais elas tornarão subjetiva esta impotência”?

(ADORNO, 1995, p. 36).Estaria ela contribuindo para a superação das subjetivações

existentes na própria escola e por extensão na sociedade?

Queremos entender que motivações, ideologias ou modismos estão por trás das

escolhas feitas, visto que “o currículo é sempre o resultado de uma seleção: de um universo

mais amplo de conhecimentos e saberes”. (TADEU, 2000, p. 13). Sendo estes os lugares de

onde partem o currículo cabe agora buscarmos a devida contextualização e significação que

têm esses lugares no desenvolvimento da disciplina de Filosofia na Educação Básica dos

espaços em que atuamos, neste caso a Escola Pública Estadual de Vitória da Conquista na

Bahia.

Repensar estes dilemas dentro do processo educacional e, sobretudo dentro do ensino

de Filosofia, é muitíssimo oportuno numa perspectiva de “transvaloração”, de resgate da

“vontade de potência” do sujeito como forma de encontro de subjetividade que altere os

estados de subjetivação postos pelos diversos aparatos históricos, sociais e legais que regem o

ensino e para isso é imprescindível entendermos como se deu a disseminação do modelo

filosófico presente em nossas escolas.

Com esse entendimento talvez tenhamos algumas pistas de como este processo poderá

juntar a Filosofia novamente ao coletivo atrelando a existência do sujeito à comunidade.

Partimos da ideia de que o grande ponto de encontro da vida em comunidade se faz na e

através da escola. Nesse espaço é onde buscamos construir um conjunto de valores que sirva a

todos e que não esteja restrito a grupos específicos. A escola é o grande centro de comunhão

efetiva da vida pública. Devolver a filosofia à cidade é o grande desafio que se coloca à

questão do ensino de filosofia na educação pública. Será possível este acontecimento

mediante o modelo que temos aí estabelecido?

As vicissitudes do fazer filosofia são inerentes ao próprio filosofar, estamos diante

uma realidade em que apontamos para um estudo em que provavelmente tenhamos de recriar

métodos e novas abordagens da própria pesquisa apontando para uma ressignificação dos

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espaços e fazeres da Filosofia e este constitui na atualidade um dos grandes desafios do ensino

de Filosofia, sobretudo quando estas escolas são públicas e lidamos com uma série de

problemas que por vezes transcendem nossa possibilidade de ação.

Bibliografia ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

ARANTES, Paulo Eduardo et al. Filosofia e seu ensino. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1995. ARENDT, H. A condição humana. São Paulo: EDUSP/ Forense Universidade, 1988. BALL, Sthephen J. Performatividade, privatização e o pós-estado do bem-estar. Tradução Alain Francois, Educação e Sociedade, v. 25, n. 89, p. 1105-1126, Set./Dez. 2004. BARROSO, João, O Estado, in Revista Educação e a Regulação das Políticas Públicas, in Revista Educação e Sociedade, Campinas, v. 26, n. 92, p. 725 – 751. Especial, out. 2005. BRAYNER, Flávio. Educação e republicanismo– esperimentos arenditianos para uma educação melhor. Brasília, Liber Livro, 2008. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Ciências Humanas e suas Tecnologias, Brasília, DF: Ministério da Educação, 1998. v. IV. BRASIL. Projeto de Lei, 2003. Altera dispositivos do artigo 36 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2003. CADERNOS CEDES, Campinas, v. 24, n. 64, p. 257-284, set./dez. 2004. CERLETTI, Alejandro. O ensino de filosofia como problema filosófico. Tradução Ingrid Muller Xavier. Belo Horizonte, Autêntica, 2009. CESTARI, Luiz Arthur Santos; Rev. Bras. Est. Pedagógicos, (online), Brasília, v. 95, n. 240, p. 363-384, maio/ago. 2014. CHAUÍ, Marilena.Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2008. GIACCOIA JR. Oswaldo. Nietzche. São Paulo: Publifolha, 2000.

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MODERNIDADE TECNOCIENTÍFICA E (IN)EXPERIÊNCIA DO PENSAMENTO: UM ESPECTRO QUE RONDA E DESAFIA O PROCESSO FORMATIVO NO IFPE – CAMPUS VITÓRIA

Evandro da Fonseca Costa1 UESB

Resumo: Como pensar o mundo dominado pela tecnociência e pensar o que, neste mundo, acontece com o pensamento?! A partir desta dupla interrogação o texto desenvolve um diagnóstico crítico da racionalidade tecnocientífica moderna e sua intrigante resistência à experiência do pensamento. Esta arquiteta a indiscernibilidade entre ciência e técnica e confunde conhecimento e poder, enfraquecendo a noção de saber.Feito tal diagnóstico, ousa-se indagar sobre as repercussões de uma tal cultura tecnocientífica no processo formativo que se dá no IFPE – Campus Vitória. Este caminho de análise aponta para um novo viés investigativo sobre os efeitos do projeto pragmatista e neotecnicista que, simplificando sobremaneira o universo das questões epistemológicas, ambientais e existenciais, flerta com o objetivismo estreito e o formalismo sem vida, incongruentes com a experiência do pensamento em sua inquieta busca pelo sentido. O presente trabalho estabelece o horizonte de uma investigação ainda em andamento e que visa encontrar respostas para a seguinte questão: quais seriam, de fato, os efeitos, para um processo formativo, advindos dessa simbiose entre racionalidade tecnocientífica e (in)experiência do pensamento cultivada no seio de uma instituição de ensino técnico? Esta pergunta sinaliza para um caminho de investigação, tanto das práticas quanto das concepções teóricas, merecedor da atenção dos que atuam no IFPE – Campus Vitória, notadamente daqueles que se dedicam ao exercício da produção reflexiva do conhecimento, com os jovens, no Ensino Médio integrado aos Cursos técnicos de Agroindústria e de Agropecuária. Palavras-chave: Experiência do pensamento. Modernidade. Racionalidade tecnocientífica. Introdução

Saruman, o Mago, perverte a sua nobre missão de guardião da Terra-Média. Deixou-se seduzir por um projeto de dominação, que pressupõe e articula ciência e técnica, na implementação de um mundo novo que se pretende totalmente apartado da tradição cultural do mundo do qual é parte. Em sua astúcia, ele é tão sinistro quanto Sauron ou Morgoth. Se estes simbolizam “o mal místico, destruidor do espírito”, Saruman é o portador das falsas promessas de um mundo moderno, é o intruso que polui e destrói as coisas da natureza, é o diabólico cientista que, articulando saber e ânsia de poder, produz uma estirpe particularmente violenta de orc, que não tem medo da luz e possui a força de dois guerreiros Sauron. Enfim, lidando com máquinas e tecnologia, ele arquiteta, num ritmo alucinante, realizar uma “modernização” que há de chegar até ao Condado, sem se dar conta da batalha de Isengard que se aproxima. Mas, ele será derrotado pelos heróis que lutam na Guerra do Anel. Estes salvarão a Terra-Média pela aplicação dos “velhos métodos”,

1 Evandro F. Costa. Professor de Filosofia do IFPE – Campus Vitória, mestre em Filosofia pela Universidade

Federal de Pernambuco ([email protected]).

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pela força do heroísmo de outrora, pela magia natural de Gandalf, pela indignação ética, que tarda mas não falha, dos reflexivos Ents, pela lealdade dos Hobbits e pela bondade daqueles que trabalham com a natureza e não contra ela2.

Talvez o próprio J. R. R. Tolkien desaprovasse transformar a sua obra O Senhor dos

Anéis numa alegórica crítica à Modernidade, pois “a última coisa que ele queria era que

leitores [...] rebaixassem seu épico grandioso e atemporal ao relacioná-lo às proezas sórdidas

e vergonhosas da vida humana moderna” (WHITE, 2013, p. 198). Mas, também talvez, possa

se sustentar, aqui, esta infame tentativa, pelo fato de que, como testemunhou o seu filho

Christopher Tolkien, “ele não gostava do mundo moderno (...); o mundo moderno significava

para ele, essencialmente, a máquina” (WHITE, 2013, p.193).

Sem entrar no mérito do debate literário, que implicaria na retomada das polêmicas

análises dos críticos desde a época do lançamento da obra, importa, numa alusão à épigrafe

acima, que reporta a passagens do O Senhor dos Anéis – As duas torres, publicado em

novembro de 1954, na Inglaterra, situar o contexto que investigamos e nomear o desafio que

nele se nos apresenta: como pensar o mundo dominado pela tecnociência sem cair refém da

turva e míope apocalíptica visão de que não há alternativa possível frente ao aniquilamento do

espírito, que se processa na Modernidade? Contribuir nesse processo, compartilhado por

muitos, de “pensar o que acontece com o pensamento” (NOVAES, 2010, p. 9) no contexto em

que uma racionalidade tecnocientífica, campeia, ao que parece, vitoriosa, é o intento que se

persegue neste texto.

A trama, acima epigrafada, que situa o embate entre a inteligência desmemoriada,

astuciosa e ágil de um Saruman, de um lado, e a razoabilidade de um pensamento que,

aportado na memória, requer a atitude imaginativa, reflexiva e mesmo lenta de um Barbávore

e seus irmãos Ents, de outro, sinaliza não só o caminho a ser feito, mas também o lugar onde

se colocar para fazê-lo. A realidade proposta pela tecnociência, enquanto arquiteta, como um

2 Cf. cenas 5, 40, 42, 44, 46 e 49 do filme O SENHOR dos Anéis: as duas torres. Direção: Peter Jackson. Nova

Zelândia: Wingnut Films, 2002. DVD. Cf. também p. 194 e 199 da obra de Michael White (2013) sobre a vida de Tolkien.

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Saruman, a indiscernibilidade entre ciência e técnica e confunde conhecimento e poder,

enfraquecendo a noção de saber, indica o necessário caminho do repensar dos conceitos de

mundo, natureza, objeto, sujeito, experiência, memória, tradição, verdade, sabedoria, entre

outros.

Nesse percurso, o próprio pensamento é levado a se desdobrar, reflexivamente, sobre

si mesmo, num repensar-se que exige, no contraponto da alucinante velocidade da sociedade

tecnológica, que torna tudo efêmero e por isso, efetivamente, não pensa, a paciência quase

irritante que se verifica no “entebate”, posto que, como diz Barbávore, “leva muito tempo

para dizer alguma coisa no velho entês e que nós nunca dizemos nada a menos que valha a

pena levar muito tempo para dizer”3.

Em relação ao lugar no qual se colocar para esse caminho fazer, é importante lembrar

que, enquanto na era tecnocientífica o que se pode ver é “o elogio do presente eterno, sem

passado nem futuro” (NOVAES, 2010, p. 10), na experiência do pensamento, que visa

alcançar o sentido ou a significação de todo o vivido, ao contrário, situar-se-á, aquele que se

dedica à atividade de pensar, entre o passado e o futuro, transitando entre a memória crítica da

Tradição e a inerente capacidade humana de projetar-se, para além do aqui e do agora, no

ressignificar de suas experiências de mundo. Lembra Hannah Arendt, no prefácio à sua obra

de sugestivo título Entre o passado e o futuro, que

o ponto em questão é que [sem] o ‘acabamento’ que de fato todo acontecimento vivido precisa ter nas mentes dos que deverão depois contar a história e transmitir seu significado (...), sem este acabamento pensado após o ato e sem a articulação realizada pela memória, simplesmente não [...] [sobra] nenhuma história que [...] possa ser contada (2000, p. 32).

Na mesma página, só um pouco mais abaixo, a pensadora sentencia, reportando a uma frase

de Tocqueville, presente no último capítulo de DemocracianaAmérica: “Desde que o passado

deixou de lançar luz sobre o futuro, a mente do homem vagueia nas trevas”.

3 Cf. a cena 40 do DVD O SENHOR dos Anéis: as duas torres (2002).

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Na perspectiva de quem se coloca em busca desse “acabamento” capaz de fazer

perscrutar as significações, o presente texto, longe da magistral criatividade de um John

Ronald Reuel Tolkein, objetiva lançar um olhar crítico sobre a racionalidade tecnocientífica

moderna e sua intrigante resistência à experiência do pensamento. Para tal, muito

modestamente, num primeiro momento, feitos os esclarecimentos semânticos iniciais, visará

identificar, nos pilares da Modernidade, Bacon e Descartes, os pressupostos da representação

técnica do mundo; em seguida, buscará delinear um quadro crítico da racionalidade

tecnocientífica que, em seu objetivismo fisicalista e em seu formalismo matemático-

calculador, apartou-se da vida e da tradição, empurrando-nos para o abismo da (in)experiência

do pensamento; por fim, à guisa de conclusão, a partir desse diagnóstico crítico, ousará

indagar sobre as repercussões de uma cultura tecnocientífica no processo formativo que se dá

no Instituto Federal de Pernambuco – Campus Vitória de Santo Antão.

Um crítico do OxfordTimes previu, na edição de 13 de agosto de 1954, em relação ao

autor da obra O Senhor dos Anéis, “que ‘os rigorosamente práticos não terão tempo para ele.

Aqueles que têm a imaginação para ser despertada vão se encontrar completamente seduzidos

a seguir adiante, tornando-se parte da movimentada expedição...” (WHITE, 2013, p. 184).

Quiçá, também aqui, encontre, o texto que segue, o olhar paciente de um leitor disposto a

embarcar neste diálogo inacabado.

A modernidade e a representação técnica do mundo

Inicialmente, importa delinear a concepção de Modernidade que se assume nesta

reflexão, posto que muitas são as acepções possíveis no uso deste termo. Além disso, caberá

um foco especial no conceito de razão instrumental que, sobretudo com a contribuição dos

frankfurtianos Horkheimer e Adorno, compreendeu-se como o modelo de racionalidade que

predominará e demarcará os contornos desse paradigma. Feitas as aproximações semânticas

iniciais e necessárias, ater-se-á aos pressupostos de uma representação técnica do mundo,

encontrados, ainda no alvorecer da Modernidade, em Francis Bacon e em René Descartes.

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Modernidade e razão instrumental: aproximações semânticas iniciais

Assumir-se-á, aqui, a compreensão de que a Modernidade é – para além de um

conceito sociológico, político ou histórico – “um modo de civilização, que se estruturou a

partir da sociedade ocidental e, estendendo-se por todo o planeta, quer ser [ou se impor como]

‘o’ modelo de civilização” (COSTA, 2002, p. 134). Ela constituir-se-á como um fenômeno

que tem seu nascedouro no Humanismo da Renascença, sua emergência no calor das novas

concepções filosóficas e políticas dos séculos XVII e XVIII e sua implantação nos séculos

XIX e XX, sendo que, deste último século para cá, processam-se suas grandes crises.

Assumindo como sua grande meta instituir-se autonomamente, a sociedade moderna

promoverá uma laicização do pensamento e uma racionalização de todos os critérios em todos

os domínios: a razão tudo organiza! Ela atingirá todos os setores: política, direito, economia,

religião, educação... ratificando, dessa forma, a Modernidade como Era de revoluções.

A sua trajetória permitirá identificar, como característicos do paradigma moderno que

se institui, os seguintes traços: a plena autonomia da razão humana que, com a dispenda da

função legitimadora da religião, desembocará no imanentismo; o antropocentrismo, com a

consequente negação da metafísica e da transcendência; o pluralismo, com tendência tanto

para a tolerância quanto para o relativismo absoluto; e a multiplicidade e a autonomia das

ciências, que se afirmam na sua independência em relação à Teologia, à Metafísica e à Ética

(Cf. COSTA, 2002, p. 140-1).

Olgária Matos (In: NOVAES, 2010, p. 157) lembra que Baudelaire já caracterizara a

Modernidade como o “desaparecimento dos vestígios do pecado original”, como a se referir à

concepção de “um mundo sem nenhuma referência a valores transcendentais, incapaz de criá-

los ou de reconhecê-los, com o esgotamento de sua capacidade ética na dizimação de

populações inteiras pela miséria e da natureza por razões econômicas”.

Atendo-se ao que interessa à temática em questão, a Modernidade configurar-se-á

como a “modernidade” da

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razão instrumental, formal e despersonalizadora, para a qual importam apenas a eficiência e o sucesso, segundo a crença em um novo controle humano do universo, no qual o indivíduo é capaz de fazer sempre mais e de gerir inteiramente a vida, o corpo e, assim, dominar riscos. [...] [Trata-se da modernidade da razão analítica que] produz a catástrofe das significações, pois “substitui a Lei pela regra e a regra pela fórmula, para o funcionamento automático do pensamento”; criando um princípio de realidade que reduz todos os aspectos da vida à autoconservação, impondo o reino da necessidade como medida e conteúdo da “vida do espírito” (MATOS In: NOVAES, 2010, p. 157).

Aqui, uma breve objeção é merecedora de atenção: refere-se ao conceito de razão

instrumental. A análise crítica do conceito de razão instrumental feita pelos frankfurtianos,

notadamente, Horkheimer (Eclipse da razão) e Adorno (Dialética do esclarecimento, em

parceria com Horkheimer), é referência imprescindível. A Modernidade, em seu sonho

iluminista da razão que mais se configurou como o pesadelo do mito do esclarecimento, uma

vez que perdeu a sua dimensão de reflexividade4, assumiu uma concepção “reducionista,

unidimensional e [que] leva o sujeito a desenvolver um tipo de procedimento em que o

mundo exterior é reduzido a um objeto que pode ser manipulado de acordo com seu interesse”

(MÜHL In: CENI, 1996, p. 66).

Esta racionalidade, de viés pragmático, que ganha terreno na Modernidade em função,

especialmente, do seu caráter técnico-instrumental, privilegiará a eficácia dos procedimentos,

o poder da manipulação e a imediatez dos resultados, acabando por confundir o saber com o

poder ou mesmo reduzir aquele a este (Cf. MÜHL In: CENI, 1996, p. 66-7). Assim, uma

razão que nasceu com o ideal da emancipação limitar-se-á, no seu operar, à “capacidade de

calcular probabilidades e desse modo coordenar os meios correntes com um fim determinado”

(HORKHEIMER, 2002, p. 15).

4 Adorno e Horkheimer, a partir dos conceitos de esclarecimento e de indústria cultural, desenvolverão um

diagnóstico da racionalidade moderna. Segundo Eldon H. Mühl (In: CENCI, A., 1996, p. 74), em relação à primeira ideia ou conceito, “o esclarecimento, que foi ao longo da história o programa básico do pensamento humano ocidental, na modernidade, é obscurecido pelo modelo técnico-científico, modelo de racionalidade instrumental que se tornou hegemônico. Este obscurantismo do esclarecimento representa [...] a transformação da razão em mito. Na base dessa transformação, está a conversão do saber em técnica e a consequente perda do poder de auto-reflexão, que é próprio do esclarecimento”.

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Dessa forma, entregue a um formalismo e a um objetivismo estreitos, essa razão

iluminista, compreenderá Horkheimer, esvaziou-se de seu sentido ético e político, perdendo

seu caráter humano e seu valor universal, tornando-se, consequentemente, incapaz “de avaliar

a consistência racional de seus propósitos e de analisar a conveniência dos resultados para o

sujeito” (MÜHL In: CENI, 1996, p. 69).

Bacon e descartes: os pressupostos de uma representação técnica do mundo

Encontramos, já em Francis Bacon (Novum Organum, aforismo 3), uma das

características mais marcantes da Modernidade. Considerando que, para ele, conhecimento e

poder são sinônimos e que, aquilo que na filosofia contemplativa é causa na ciência prática

será regra, conclui-se, por conseguinte, que “de acordo com essa concepção, pensar o mundo

significa acumular poder sobre as coisas mediante o conhecimento das regras que governam o

comportamento dos fenômenos” (SILVA In: NOVAES, 2010, p. 51).

Rascunha-se, neste momento de emergência da Modernidade, uma nova concepção de

objeto: não se trata de algo que está diante de nós para ser contemplado, mas para ser

dominado, num processo pretencioso que almeja, isso sim, o desvendamento da conduta da

natureza pela descoberta (e pelo registro preciso) de suas regularidades. Desdobrar-se-á,

também daí, uma outra concepção da posição do homem no mundo. Esta será, na

Modernidade, a de um sujeito que sabe criar para si uma situação de domínio da realidade.

Além disso, com “a substituição do ideal contemplativo pelo método que permite

empreender regras, preconiza uma nova racionalidade segundo a qual a atividade de pensar e

de agir são consideradas inseparáveis” (SILVA In: NOVAES, 2010, p. 51-2). Ao se

identificar conhecimento e poder, “os resultados do saber já não são vistos como fins em si

mesmos, mas principalmente como meios de interferir na realidade a partir de propósitos

humanos” (SILVA In: NOVAES, 2010, p. 52). Assim, uma racionalidade instrumental

delimitará a forma do conhecimento.

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Bacon, o pai da técnica, para o qual a ciência é tão somente um instrumento a serviço

do homem, através do qual colocará a natureza a seu serviço, traçará, ainda “no alvorecer da

modernidade, a rota de um processo de civilização pautado pela conjunção entre ciência e

técnica” (SILVA In: NOVAES, 2010, p. 52). Esse ideal civilizatório é retratado, pelo filósofo,

na forma de uma utopia tecnocientífica, em sua inacabada obra intitulada Nova Atlântida,

publicada postumamente, em 1627. Nesta, a ciência é apresentada como uma “luta árdua e

diária com a natureza”5 em vista da ampliação dos poderes do homem nos mais diversos

campos.

Outro pilar da Modernidade é René Descartes, e este cumprirá, por sua vez, a função

de recolocar em termos mais gerais a perspectiva baconiana, produzindo, para ela, “uma

justificativa lógica e metafísica ao elevar a união entre teoria e prática ao estatuto de autêntica

sabedoria, sob a égide da unidade da razão” (SILVA In: NOVAES, 2010, p. 52).

Esclarecendo: Os fundamentos metafísicos dessa nova visão de mundo foram estabelecidos por Descartes através da afirmação de que a primazia da subjetividade, por via de um conhecimento representacional metodicamente exercido, seria a única garantia da verdade, tanto em relação ao objeto quanto ao que concerne ao sujeito (SILVA In: NOVAES, 2010, p. 52).

A metafísica de Descartes, em sua determinação ontológica, que reduz as coisas e a

própria realidade a objetos da representação da consciência subjetiva e concebe a verdade

como certeza da representação matemática do mundo, será decisiva para a compreensão do

fenômeno moderno do pensamento representacional-calculador. Abre-se caminho, a partir

dessa nova fundamentação ontológica, tanto para o estabelecimento de uma outra relação

entre o homem, o mundo e a natureza, quanto para a articulação de uma outra forma de

intervenção deste homem na realidade que o circunda.

Mediada por procedimentos tecnocientíficos que reduzem a realidade a fórmulas

matemáticas, a relação entre o homem, o mundo e a natureza não será mais sensorial. E, a sua

intervenção ativa neste mundo e nesta natureza orientar-se-á pelos esquematismos lógicos das 5 ANDRADE, J. A. R. de. Bacon – vida e obra. In: BACON, F. Nova Atlântida. Trad. José Aluysio Reis de

Andrade. São Paulo: Nova cultural, 1997 (Col. Os Pensadores). p. 18.

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representações intelectuais, de inspiração cartesiana, e implementar-se-á mediante a

fabricação de novos aparatos tecnocientíficos, aos moldes das contribuições de um Galileu,

viabilizadores de novas experiências que redimensionam as possibilidades desta representação

e levam, consequentemente, à subjugação deste mundo e desta natureza (Cf. DUARTE, 2010,

p. 62-5).

Configurar-se-á, pelos caminhos desta ontologia moderna – segundo a qual, mediante

a utilização de critérios metódicos, o sujeito poderá estabelecer, adequadamente, a

correspondência entre realidade e pensamento – uma nova concepção de sabedoria, na qual

“é possível identificar a relevância do poder reivindicado pelo sujeito” (SILVA In: NOVAES,

2010, p. 52). Nessa nova compreensão – e para além das pressuposições metafísicas

cartesianas –, a reciprocidade entre saber e poder manifestar-se-á, notadamente, “na

destinação técnica da racionalidade que opera no conhecimento e nos demais aspectos da

organização da vida” (SILVA In: NOVAES, 2010, p. 53).

Se há, verdadeiramente, em Descartes, uma busca desinteressada que visava atingir

um conhecimento puro é difícil precisar. Contudo, o que se pode observar é que houve ali,

consciente ou não dos seus contornos ideológicos e/ou das suas consequências futuras, toda

uma articulação astuciosa do entendimento que, pragmática e sistemicamente, arquitetou e

desenvolveu o plano “de um conhecimento totalmente voltado para a ação” (SILVA In:

NOVAES, 2010, p. 53). É importante verificar que se encontra subentendida, na

Modernidade, tanto no campo das novas ciências particulares quanto nas diferentes linhas ou

tendências filosóficas que as fundamentam, uma “articulação da realidade de modo que

possamos agir sobre ela” (SILVA In: NOVAES, 2010, p. 54), fiada na concepção de que a

validade das próprias teorias científicas relaciona-se ao poder de intervenção, que estas nos

dão, sobre esta realidade.

Racionalidade tecnocientífica e (in)experiência do pensamento

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Para o que nos interessa, nesta abordagem, vale salientar que, sob a diretriz de uma

racionalidade instrumental, “a representação da realidade através da inteligência produz uma

imagem técnica do mundo, que se reflete na posição do sujeito” (SILVA In: NOVAES, 2010,

p. 55). O conhecimento que daí deriva terá uma índole restritiva uma vez que submete (e,

consequentemente, reduz) a realidade a uma estrutura categorial que visa, por sua vez, uma

representação pragmática da mesma. Isso explicaria, pelo menos em parte, primeiro, o triunfo

de uma ciência estreitamente associada à técnica e, segundo, a força desse fenômeno no curso

da sociedade moderna.

Heidegger, em A questão da técnica,analisa Franklin Silva (In: NOVAES, 2010, p.

55), reconhecerá que, na Modernidade – que promove, desde o seu alvorecer, a identificação

entre conhecimento e poder –, “a presença da tecnociência responde a uma necessidade

profundamente inscrita na conformação de um mundo que o homem [a um só tempo, sujeito

de conhecimento e agente de transformação] habita e explora”. Isso decorre, como já se

aludiu, da mudança de compreensão que se dá em relação ao significado do conhecimento e

se traduz, muito claramente, na modificação da própria noção de teoria, cunhada pelos gregos,

herdada pelos latinos e expressa na palavra contemplação.

A racionalidade tecnocientífica que, por desdobramento, se estabelecerá na

Modernidade, cumprirá o papel de levar ao limite o processo de desencantamento do mundo,

que se verifica no Renascimento, no qual se dá, segundo Max Weber, uma reconfiguração da

relação do homem com a natureza, despindo-a de quaisquer traços de sacralidade. Por meio

do uso da técnica, o ser humano tem interferido tanto na natureza, em vista dos seus interesses

que, ao relacionar-se com a mesma de forma tão objetal, experimenta tão somente a sua

própria presença ativa: “a imagem técnica da natureza é a imagem do próprio homem”

(SILVA In: NOVAES, 2010, p. 56). A efetivação do domínio do homem sobre as coisas,

possibilitada pela tecnociência, parece levar a uma indistinção crescente entre o homem e a

natureza.

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Ao negar a natureza em sua oltridade, ou seja, como esse outro frente ao qual se

coloca e que é o fundamento de toda relação ética, e, ao se entregar à exterioridade da técnica

que pautará essa relação enquanto exercício de domínio, o homem amargará a negação do

próprio ser. Este, estando totalmente preso ao que faz, no sentido dessa exterioridade da

técnica, perderá a relação consigo mesmo e, por decorrência, nem sequer se verá como

responsável pelo que é solicitado a fazer. Em outros termos, “o homem se expôs de tal modo à

causalidade técnica (causa eficiente) que já não pode mais compreender a sua proveniência,

ou seja, já não pode relacionar a produtividade técnica àquilo que é essencialmente”

(HEIDEGGER, 1997, p. 83). Essa relação de negação e de exteriorização que se interpõe

entre ele e a natureza, reforçará, no ser humano, uma incompreensão que o persegue: não se

compreender, também ele, natureza.

A racionalidade tecnocientífica, em sua relação calculada e calculável com a natureza,

que permitiu a realização do ideal baconiano, levou, simultaneamente, ao velamento da

verdade da natureza e da verdade do próprio homem. Estes, retraídos em seu manifestar ou

em sua fenomenalidade inerente, ficam reféns das mutilações promovidas pelos

esquematismos de uma razão instrumental em seu paranoico “desejo de converter o

desconhecido em algo previsível e controlável” (MATOS In: NOVAES, 2010, p. 171).

Esta racionalidade tecnocientífica, em seu viés instrumental, que expressa e, ao mesmo

tempo, é expressão de uma correlação, anuladora das diferenças, entre conhecimento e poder

e que, em seus procedimentos, identifica ciência e técnica, será responsável pela articulação

de uma representação técnica da natureza. Esta representação, no seu processar, reduz a

natureza a um mero reservatório de matéria-prima à disposição da inventividade técnico-fabril

do ser humano e, no contraponto, mas não contraditoriamente, também reduz o próprio

homem a sujeito da apropriação tecnicamente elaborada dos recursos naturais. Desde a

perspectiva do olhar heideggeriano, pode-se inferir que

A representação técnica da natureza ao se constituir de imagens daquilo que será feito, em benefício do domínio da natureza, deixa necessariamente escapar a realidade original e, assim, faz desaparecer também o sujeito que

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poderia pensá-la numa relação que precedesse a representação utilitária (SILVA In: NOVAES, 2010, p. 59).

Verifica-se, por decorrência, que a racionalidade tecnocientífica e sua correlata

representação técnico-utilitária da natureza, enquanto são mediadas pelas formulações

matemáticas e pelos aparatos técnicos complexos inerentes à tecnociência, colocam-se

resistentes à experiência do pensamento, que se implementa como esse esforço de articular

uma compreensibilidade significativa a seu respeito. Hannah Arendt, em A condição humana,

alertará, segundo observa André Duarte (2010, p. 52), “para o abismo que se abre cada vez

mais entre a linguagem na qual podemos pensar e nos exprimir e a linguagem formal que

orienta a produção do conhecimento científico moderno”.

Ciente, com Heidegger, dos perigos da perda das capacidades genuinamente humanas

a que se expõe o homem quando se coloca frente a uma visão tecnocientífica do mundo,

Arendt preocupar-se-á com o crescente fosso que se abre “entre as capacidades fabricantes do

homem no âmbito tecnocientífico e sua capacidade de falar, pensar, julgar e opinar de

maneira significativa a respeito daquilo que ele é capaz de fazer” (DUARTE, 2010, p. 51).

Nessa linha, advertirá, a pensadora, para as implicações, inclusive políticas, de uma apartação

completa entre conhecimento tecnocientífico e pensamento que, no limite, reduziria os seres

humanos a “criaturas desprovidas de pensamento à mercê de qualquer engenhoca

tecnicamente possível, por mais mortífera que seja” (ARENDT, 2014, p. 4).

Atendo-se, pois, a esta (in)experiência do pensamento à qual nos expomos no contexto

de afirmação da tecnociência, cabe reportar, também, a uma imagem trazida por Marx e que

sintetiza bem aquilo que a tradição filosófica ocidental (dos clássicos gregos a Hegel) sempre

supôs: a anterioridade do pensamento em relação à fabricação. Referimo-nos, aqui, a este

diferencial do trabalho humano, de que a ação é um momento singular, distinto e

inconfundível antecedido por um projeto (momento da decisão), onde o homem reconstrói, na

mente, a intervenção a ser feita na realidade antes mesmo de sua ocorrência, o que, em outros

termos, significa dizer que “no fim do processo do trabalho aparece um resultado que já

existia antes idealmente na imaginação do trabalhador” (MARX, O capital, seção III, cap. V).

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É essa experiência de liberdade e de consciência, tipificadora do trabalho humano, que

demarcará a distância intransponível, no dizer de Marx, entre o pior dos arquitetos e a melhor

das abelhas.

Na contramão da tradição, observa-se que, “quando prevalece a representação técnica

[e, portanto,] sobrevém um certo obscurecimento da consciência de si e do real, dada a

impossibilidade de distinguir a decisão da ação, isto é, o instrumento daquele que o utiliza”

(SILVA In: NOVAES, 2010, p. 60), algo de fundamental se perde. Esse fenômeno configura

o que acima se chamou de razão instrumental: “a impossibilidade de distinguir entre a razão e

o instrumento por ela fabricado, de tal modo que a própria razão se torna um instrumento”

(SILVA In: NOVAES, 2010, p. 60).

Mas, o que se perde nesse processo? O percurso que vai da consciência à coisa ou da

liberdade à ação desaparece. Na história da realização da vocação dominadora da ciência e da

técnica, na qual a própria relação entre a subjetividade e a técnica fica obscurecida, parece não

haver mais lugar para o elemento originário da decisão livre e consciente (Cf. SILVA In:

NOVAES, 2010, p. 61). “É nesse sentido que a expressão ‘tecnociência’ (indiscernibilidade

entre ciência e técnica; [e] portanto, entre conhecimento e poder) define a racionalidade que

se manifesta na modernidade tardia” (SILVA In: NOVAES, 2010, p. 61).

Se considerarmos as abordagens especulativas do pensamento, tais como as

encontramos em Heidegger (Qué significa pensar?) e em Arendt (A vida do espírito),

veremos que essa indiscernibilidade, que se constata no seio da tecnociência, entre ciência e

técnica e entre conhecimento e poder, anda paripasso com a crescente indiferenciação, apesar

dos reclamos de um Kant, que iguala e reduz a razão, em sua multidimensionabilidade

compreensiva, ao intelecto, em sua unidimensionabilidade lógico-formal-calculadora. Além

dessa, Hannah Arendt também chamará a atenção para a identificação, acima reportada, entre

o pensar e o agir. Esta última e equivocada indiferenciação, por desdobramento, levará à

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negação da liberdade, inerente à atividade de pensar que, em seu processar, é “um fim em si

mesmo”6 e, portanto, averso, por princípio, à instrumentalização.

Essa racionalidade tecnocientífica, enquanto se configura como uma inteligência que

aposta na compartimentação crescente dos saberes e na consagração das especialidades ou

competências, caminha na direção de uma ruptura com a tradição cultural. Aliás, a referência

à tradição, já pouco valorizada no contexto de uma racionalidade iluminista oitocentista e

completamente descartada no contexto de uma cientificidade positivista, não é mais

considerada prioritária no processo de construção de um conhecimento que, em suas

pesquisas de cunho cada vez mais tecnicistas, prescinde, sobremaneira, de qualquer referência

a um mundo cultural e histórico. O elogio do moderno, compreendido como expressão do

novo/atual, que se tornou um traço característico desta civilização tecnológica, na qual se

processa, por decorrência, um “‘desencantamento da cultura’, atesta a perda de seu papel

filosófico e existencial [...] [num] mundo inteiramente tecnologizado” (MATOS In:

NOVAES, 2010, p. 160).

6 Em sua obra A vida do espírito (Trad. César Augusto de Almeida, Antônio Abranches e Helena Martins. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.), em que aborda a Vita contemplativa na análise das atividades espirituais do pensar, querer e julgar, Hannah Arendt reiterará, em várias passagens (da primeira parte) do seu texto, que a atividade de pensar é “um daqueles atos que [...] têm o seu fim em si mesmos e não deixa nenhum produto, externo e tangível, no mundo que habitamos (p. 149). Enquanto é um invisível lidando com invisíveis, esta atividade, dependente da imaginação, não é condicionada por nenhuma das condições do mundo, obedecendo apenas às leis inerentes à própria atividade (p. 88-9). Isso não quer dizer, no entanto, que o pensamento não tenha um papel importante na busca científica do conhecimento, mas, observa Arendt, “é o papel de um meio em relação a um fim” (p. 71). Contudo, quando isso se dá, isto é, quando se utiliza do pensar tão somente como um meio para alcançar certo fim (verdades factuais, no caso das ciências), nega-se o pensar no seu sentido mais pleno ou stricto sensu. Reporta-se aqui, como pressuposto, à velha e sábia a distinção kantiana entre Vernunft (razão) e Verstand (intelecto), entre a faculdade de pensar, pela qual a razão busca um sentido ou significado, e a faculdade de conhecer, cujo critério mais elevado é a verdade, pela qual o intelecto realiza a cognição.

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Conclusão: a pergunta pelos efeitos da tecnociência no processo formativo no IFPE -

Vitória

Como pensar o mundo dominado pela tecnociência e pensar o que, neste mundo,

acontece com o pensamento?! Esta foi a dupla interrogação que inquietou e levou à busca que

se deu até aqui e que nos leva, por derradeiro, a perguntar pelos efeitos da cultura

tecnocientífica nos processos formativos que se dão no IFPE – Campus Vitória. Esse percurso

cobrou uma perspectiva de leitura que, indagando sobre a racionalidade tecnocientífica

predominante na Modernidade, abriu uma janela que fez ver que quanto mais esta

racionalidade identifica conhecimento e poder, tornando-os indiscerníveis; articula, em seus

procedimentos, ciência e técnica, sem levar em conta suas diferenças identitárias; e,

pressupõe a inseparabilidade das atividades de pensar e de agir... mais caminha na direção de

um distanciamento do uso crítico da razão em sua relação com a tradição cultural, da qual é

parte, e com a concretude da vida, referência última do sentido de suas próprias

representações.

Quanto mais essa racionalidade, em seu objetivismo fisicalista e em seu formalismo

matemático-calculador, assume os contornos de uma razão instrumental mais se afasta das

condições viabilizadoras da experiência do pensamento que, enquanto se manifesta como essa

interna, invisível e silenciosa reflexividade de um pensar que, sobretudo, se pensa a si mesmo,

implica o pôr-se frente aos próprios procedimentos e resultados, meios e fins, numa atitude

indagadora da razoabilidade desses fins e da conveniência daqueles meios tendo em vista a

humanidade do homem, a realidade da natureza, a conformação de um mundo em que ambos,

na correlação de identidade e diferença, possam ser.

Ao perder a dimensão de reflexividade, inerente ao pensamento, essa racionalidade,

longe de se efetivar como um caminho de esclarecimento, tornar-se-á o mais pavoroso

pesadelo de um “pensamento” que se apartou da vida e da tradição e que, assim configurando-

se, nada tem a dizer ao homem enquanto sujeito de liberdade, especialmente quando este se

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coloca ante seus mais candentes problemas, aqueles que perguntam pelo sentido ou não-

sentido do ser e do fazer que se processam em seu mundo vital.

A racionalidade tecnocientífica moderna, ao produzir uma representação técnico-

utilitária do mundo, promoverá, como se viu, vários e preocupantes reducionismos: ao

assumir um conhecimento de índole restritiva, reduzirá a realidade a uma estrutura categorial,

a natureza a um objeto de domínio e exploração à disposição da ação técnico-fabril de um

homem que, por sua vez, se reduz ao sujeito dessa apropriação tecnicamente conduzida.

Reduz também a própria concepção de cientificidade ao torná-la refém de uma técnica que,

sendo meio, traveste-se de fim em si mesmo.

Diante deste diagnóstico crítico de uma racionalidade tecnocientífica que se apartou da

vida e da tradição, empurrando a Modernidade para o abismo da (in)experiência do

pensamento, cabe verificar que este é um espectro que ronda o campus Vitória do IFPE e

desafia os que, nele, se comprometem com um processo de formação humana que ousa

vivenciar, no âmbito da ação pedagógico-educativa, uma concepção de mundo, de natureza,

de ciência, de conhecimento e de experiência do pensamento que, na ruptura com os

referenciais da tecnocientificade e seu aporte na ciência moderna e na concepção filosófica

que a fundamenta, caminham na direção de uma compreensibilidade fenomenológico-

hermenêutica da vida e do existir humano.

Há que, portanto, assumir um novo viés investigativo sobre os efeitos do projeto

pragmatista e neotecnicista que, simplificando sobremaneira o universo das questões

epistemológicas, ambientais e existenciais, flerta com o objetivismo estreito e o formalismo

sem vida incongruentes com a experiência do pensamento em sua inquieta busca pelo sentido.

Impõe-se o desafio de ousar se perguntar: a resistência à atividade de pensar, que se verifica

com frequência entre discentes do referido campus, não seria uma decorrência da

racionalidade tecnocientífica que se implementa no âmbito das ações pedagógico-educativas?

A fragmentação do saber e a circunscrição das preocupações no âmbito do prático (com suas

sedutoras soluções técnicas) mais comprometeria o processo formativo com a manutenção do

status quo do que com a vivência de um pensar radical que, a partir de um novo horizonte

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compreensivo, poderia potencializar a reconexão, a ser intersubjetivamente perseguida, entre

conhecimento, ética e vida? Quais seriam, de fato, os efeitos, para um processo de formação

humana, advindos dessa simbiose entre racionalidade tecnocientífica e (in)experiência do

pensamento cultivados institucionalmente?

Estas são perguntas que sinalizam um novo caminho de investigação, tanto das

práticas quanto das concepções teóricas, que mereceria atenção especial dos que atuam no

IFPE – Campus Vitória, notadamente daqueles que se dedicam ao exercício da produção

reflexiva do conhecimento com os jovens no Ensino Médio integrado aos Cursos técnicos de

Agroindústria e de Agropecuária.

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SISTEMA EDUCACIONAL BRASILEIRO: CRISE E NOVAS PERSPECTIVAS

Felipe dos Anjos Figueiredo Vieira da Silva1 Rafael Santos Reis2

UESB

Resumo: Ao longo da história o homem estabeleceu modelos educacionais para ajudar a sociedade a evoluir. No entanto, alguns modelos propostos não conseguem desempenhar a sua função com excelência. O Brasil vivencia atualmente uma grande crise no sistema educacional, as escolas não possuem em sua maioria uma boa estrutura, o modelo pedagógico não é estimulador e se baseia em disciplinas fragmentadas que muitas vezes não se comunicam com a realidade dos alunos, deixando assim o princípio da interdisciplinaridade fora da relação de conteúdo. Além disso, há pouca coesão entre educadores e familiares, prejudicando o processo de aprendizagem. A filosofia e os filósofos sempre buscaram entender e propor novas maneiras de se pensar a educação, talvez seja o momento adequado de aprendermos com eles. Palavras-chaves: Educação. Problemas. Resolução. Introdução

A educação é fundamental para que o homem alcance o saber e reconheça o sentido da

vida, tornando-se um indivíduo com capacidade de raciocinar e discernir entre o relevante e o

supérfluo, o elementar e o acessório, o sensato e o temerário. É ela que dá consciência e de

certa forma exercita nossa cidadania, nos fazendo homens e mulheres capazes de tomarmos as

rédeas de nossas próprias vidas. Entretanto o sistema educacional brasileiro vivencia uma

grave crise, se apoiando em escolas que não conseguem exercer o seu papel fulcral, que é

formar atores sociais preparados para a sua existência.

É necessário compreender a educação como uma função social para que possamos

entender o declínio das instituições escolares referência para formação social, política, ética,

do homem; uma vez que uma má formação poderá ter conseqüências desastrosas para as

relações sociais.É importante que fique claro que o sistema educacional brasileiro, vive uma

1Graduando em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Email:

[email protected]. 2Graduando em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Email:

[email protected].

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crise pois está afetado por diversos fatores que vão desde das dificuldades sociais que alguns

alunos encontrampara o seu desenvolvimento, até problemas na própria estruturação dos

projetos pedagógicos e curriculares que a grande maioria das instituições educacionais

defendem sejam eles publicas ou privadas.

Paulo Freire repetia que “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela

tampouco a sociedade muda.” Seguindo nessa linha de pensamento podemos perceber

claramente que a educação, em sua pluralidade de interpretações é um meio de transformação

social.Destarte, se a educação encontra-se em crise, consequentemente o corpo social

enfrentará problemas.

Marco Téorico

Talvez o primeiro questionamento necessário seja buscar entender o porquê das

discussões levantadas nas escolas parecerem tão supérfluas e desinteressantes. O filósofo

norte-americano da educação Mortimer Adler, notando a vivacidade das perguntas infantis em

contrapartida a dos adultos faz um acurado comentário:

As crianças fazem perguntas admiráveis: “Por que as pessoas existem?” “O que é que o gato quer?” “Qual o nome do mundo?” “Por que Deus criou o mundo?”. Da boca das crianças saem, senão a sabedoria, ao menos a busca por ela. A filosofia, segundo Aristóteles, nasce do espanto. Ela certamente começa na infância, mesmo que, para a maioria de nós, também acabe nela. A criança é um questionador natural. Não é o número de perguntas que ela faz, mas a sua natureza que a distingue dos adultos. Os adultos não perdem a curiosidade que parece um traço inato do ser humano, mas a qualidade dessa curiosidade vai se deteriorando. Eles querem saber se uma coisa é de um jeito, mas não o porquê. Mas as questões das crianças não ficam limitadas ao tipo que pode ser respondido por uma enciclopédia. O que será que acontece entre o jardim de infância e a universidade para secar o fluxo de questões, ou melhor, para transformá-lo nos canais adultos, mais chatos, da curiosidade a respeito de questões factuais? Uma inteligência que não seja agitada por boas questões não tem como apreciar nem mesmo a importância das melhores respostas. Aprender as resposta é bastante fácil. Mas desenvolver inteligências ativamente inquisitivas, ativadas por questões reais e profundas – isso é outra história. Por que deveríamos tentar desenvolver essas inteligências se as crianças já nascem com elas? Em algum momento, a curiosidade dos adultos perde a

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profundidade que tinha originalmente. Talvez a própria escola debilite a inteligência com o peso morto dos saberes decorados, muito dos quais nem são necessários. É bem provável que os pais sejam ainda mais culpados, tantas vezes dizemos a uma criança que não há resposta, mesmo quando há, ou pedimos a ela que pare de fazer perguntas. (ADLER, 2010)

Interessante notar que o próprio ritmo escolar e universitário debilita o questionamento

e a curiosidade dos adultos. A filósofa Viviane Mosé traz uma crítica nesse sentido ao modelo

escolar, argumentando: “o sistema educacional, se tornou, uma fabrica de pessoas, uma escola

de massa que não se preocupa com o verdadeiro sentido de educar.”3 Os índices de

analfabetismo no Brasil são altos, a evasão escolar e o aumento de analfabetos funcionais

também se destacam nos levantamentos que são feitos. É preciso buscar novas filosofias

educacionais que combata os obstáculos em torno da educação brasileira, resgatando assim o

conhecimento.

Em plano mais concreto encontra-se a desigualdade social latente do Brasil que ainda

é um dos principais fatores que prejudica o caminho em busca do conhecimento, pois

impossibilita que milhões de crianças tenham acesso às mais diversas ferramentas de

aprendizado e a inserem num local de turbulência e violência, dividindo seu tempo de estudo.

Além disso, outros fatores também ocasionam a degradação educacional do país. A falta de

comprometimento e união entre a família e a escola contribui bastante para que a formação de

crianças nas séries iniciais seja prejudicada, e na maioria das vezes estes jovens não

conseguem avançar nos conteúdos, abandonado a escola precocemente; a escola por sua vez

torna-se cada vez mais desinteressante através da fragmentação curricular e da falta de

concretude na apresentação de suas matérias.

Para que a educação alcance seus objetivos e faça com que o verdadeiro proposito de

educar se efetive é preciso que novas perspectivas dentro do sistema educacional sejam

alcançadas, visando maior conexão entre os conteúdos e uma relação direta com os

acontecimentos da vida dos alunos atrelado a uma criticidade e uma contextualização, sendo

fundamental para que a educação comesse a trilhar o seu caminho; como Paulo Freire falava

3 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EigUj_d5n80.

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“Não basta saber ler que 'Eva viu a uva'. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa

no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho.”

De forma satírica, o cronista Rubem Braga aponta o afastamento do atual modelo

educacional brasileiro da vida concreta, em seu livro Ai de ti Copacabana.

Foi logo depois das férias de junho que o professor passou nova composição: Amanhecer na Fazenda. Ora, eu tinha passado uns quinze dias na Boa Esperança, fazenda de meu tio Cristóvão, e estava muito bem informado sobre os amanheceres da mesma. Peguei da pena e fui contando com a maior facilidade. Passarinhos, galinhas, patos, uma negra jogando milho para as galinhas e os patos, um menino tirando leite da vaca, vaca mugindo... e, no fim, achei que ficava bonito, para fazer pendant com essa vaca mugindo (assim como "consoladora como a esperança" combinara com "ardente como o desejo"), um "burro zurrando". Depois fiz parágrafo, e repeti o mesmo zurro com um advérbio de modo, para fecho de ouro: "Um burro zurrando escandalosamente." Foi minha desgraça. O professor disse que daquela vez o senhor Braga o havia decepcionado, não tinha levado a sério seu dever e não merecia uma nota maior do que 5; e para mostrar como era ruim minha composição leu aquele final: "um burro zurrando escandalosamente". Foi uma gargalhada geral dos alunos, uma gargalhada que era uma grande vaia cruel. Sorri amarelo. Minha glória literária fora por água abaixo. (BRAGA, 1996)

Nessa realidade é de suma importância reconhecer as dificuldades que o Brasil

enfrenta para que possamos traçar mecanismos capazes de driblá-los. Um relatório da

UNESCO publicado pelo portal G1 educação em 29 de Janeiro de 2014 é uma fonte para

percebermos o tamanho do problema educacional que vivenciamos.

Um relatório divulgado nesta quarta-feira (29) pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) aponta que o Brasil aparece em 8° lugar entre os países com maior número de analfabetos adultos. Ao todo, o estudo avaliou a situação de 150 países. De acordo com a mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2012 e divulgada em setembro de 2013, a taxa de analfabetismo de pessoas de 15 anos ou mais foi estimada em 8,7%, o que corresponde a 13,2 milhões de analfabetos no país. Em todo o mundo, segundo o 11° Relatório de Monitoramento Global de Educação para Todos, da Unesco, há 774 milhões de adultos que não sabem ler

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nem escrever, dos quais 64% são mulheres. Além disso, 72% deles estão em dez países, como o Brasil. A Índia lidera a lista, seguida por China e Paquistão. O estudo também mapeou os principais desafios da educação no planeta. A crise na aprendizagem não é só no Brasil, mas global. Para a Unesco, o problema está relacionado com a má qualidade da educação e a falta de atrativos nas aulas e de treinamento adequado para os professores. No Brasil, por exemplo, atualmente menos de 10% dos professores estão fazendo cursos de formação custeados pelo governo federal, segundo dados do Ministério da Educação (MEC). Entre os países analisados, um terço tem menos de 75% dos educadores do ensino primário treinados. Sobre os investimentos na área, das 150 nações analisadas, apenas 41 atingiram a meta da Unesco, ou seja, aplicaram em educação 6% ou mais de seu Produto Interno Bruto (PIB), que é a soma de todas as riquezas geradas. O Brasil é um deles, mas o gasto anual por aluno da educação básica é de cerca de R$ 5 mil. Em países ricos, esse valor é três vezes maior.No Fórum Mundial de Educação realizado em 2000, 164 países (entre eles, o Brasil), 35 instituições internacionais e 127 organizações não governamentais (ONG) adotaram o Marco de Ação de Dacar, em que se comprometem a dedicar os recursos e esforços necessários para melhorar a educação até 2015. Na ocasião, foram traçados seis objetivos: os países devem expandir os cuidados na primeira infância e na educação; universalizar o ensino primário; promover as competências de aprendizagem e de vida para jovens e adultos; reduzir o analfabetismo em 50%; alcançar a paridade e igualdade de gênero; e melhorar a qualidade da educação. Segundo o relatório da Unesco, esse compromisso não deve ser atingido globalmente, apesar de alguns países terem apresentado avanços nos últimos anos. Em todo o mundo, a taxa de alfabetização de adultos passou de 76% para 82% entre os períodos de 1985-1994 e 1995-2004. Mas, por região, os índices ainda permanecem bem abaixo da média na Ásia Meridional e Ocidental e na África Subsaariana (ao sul do deserto do Saara), com aproximadamente 60%. Nos Estados Árabes e no Caribe, as taxas estão em cerca de 70%. (Jornal Bom dia Brasil, 2014).

Diante de tal levantamento é possível perceber, que o Brasil enfrenta um serio

problema no que diz respeito a alfabetização, é necessário uma nova proposta para que esse

problema que muita vezes é desencadeado pela desigualdade social se resolva, nesse sentido o

posicionamento de Paulo Freire é importante:

A pedagogia tem de ser forjada com ele (o oprimido) e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da

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reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará. (FREIRE, 1987)

Nesse sentido Freire defende a ideia que uma das filosofias para a efetiva educação é

buscar a contextualização entre os sistemas educacionais e a realidade da vida dos alunos,

tentando dessa forma mudar os padrões da educação que foram estabelecidos ao longo dos

anos, reconhecendo que a contextualização está diretamente relacionada com a união da

parcela da população que é oprimida pelo sistema, uma vez que diz que: “Ninguém liberta

ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão.”

É justamente nessa perspectiva de pensar qual o sistema educacional que de fato

queremos, concomitantemente relacionando com a importância do conhecimento para a vida

do homem que surge a importante reflexão kantiana: “Com a educação presente, o homem não

atinge plenamente a finalidade da sua existência. [...] Podemos trabalhar num esboço de educação

mais conveniente e deixar indicações aos pósteros, os quais poderão pô-las em prática pouco a pouco.”

Dessa forma o ponto crucial a ser levantado é se o atual modelo de educação do Brasil

cumpre o seu papel de alcançar a essência da existência humana. Infelizmente de acordo com

índices e avaliando a própria conjuntura da educação brasileira fica claro que ele não almeja

suas perspectivas. Principalmente porque o modelo educacional atual, no que tange a projeto

pedagógico encontra-se acorrentado à uma divisão de disciplinas, que muitas das vezes não

permite um amplo entendimento sobre o mundo, si mesmo e como as coisas

funcionam.Franco Araújo já defendia em suas analises a importância da correlação de

conteúdos quando ressalta que, A interdisciplinaridade só ocorrera, quando houver uma fusão dos conteúdos das disciplinas, trabalhando em conjunto para compreensão de uma determinada importância social. (ARAÚJO, 2009)

Nesse sentido, reconhecendo a importância de uma formação em conjunto que não

veja o conhecimento de forma apartada as perspectivas educacionais a serem alcançadas são

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de grande relevância, para reforçar tal argumento a experiência trazida pela revista Nova

Escola é interessante:

Interdisciplinaridade: um avanço na educação Em grandes grupos, em dupla ou até mesmo sozinho é possível integrar diferentes matérias e levar os alunos a compreender plenamente os conteúdos curriculares. Há três anos, um apagão obrigou a população a racionar energia e o Brasil a buscar alternativas. A crise, mostrada à exaustão nos noticiários, passou a ser o centro das discussões nas salas de aula. Seis professoras do Colégio Santa Maria, de São Paulo, foram além e se reuniram em torno de um projeto interdisciplinar. Desde então, os alunos estudam fontes alternativas de energia, produzem aquecedores solares e ensinam a população a utilizá-los. O sucesso do projeto se explica principalmente porque os conteúdos de Ciências, Matemática, Geografia, Língua Portuguesa, História e Ensino Religioso foram colocados a serviço da resolução de um problema real, de forma integrada. Um ambiente de aprendizagem como o que se formou no Santa Maria também pode nascer em sua escola. Essa abordagem interdisciplinar só acontece quando os conteúdos das disciplinas se relacionam para a ampla compreensão de um tema estudado. "A relação entre as matérias é a base de tudo", afirma Luís Carlos de Menezes, professor da Universidade de São Paulo. Muita gente acha, porém, que basta falar sobre o mesmo assunto para trabalhar de forma interdisciplinar. "Isso é apenas multidisciplinaridade", esclarece o consultor em educação Ruy Berger, de Brasília (ver quadro). Ao utilizar os conhecimentos de outras áreas que não são de seu domínio, você pode encontrar dificuldades. Mas aprender com os colegas é uma das grandes vantagens dessa prática, que estimula a pesquisa, a curiosidade e a vontade de ir aos detalhes para entender que o mundo não é disciplinar. (CAVALCANTE, 2005)

Platão já dizia que: “A coisa mais indispensável a um homem é reconhecer o uso que

deve fazer do seu próprio conhecimento.” Nesse sentido o conhecimento é fundamental para o

desenvolvimento da vida em sociedade, o que permite uma analise direta com a experiência

do Colégio de Santa Maria, pois o conhecimento quando é utilizado de forma pratica, e

correlacionada apresenta resultados brilhantes e que de fato alcança as singularidades do

saber.

Comungando com essa mesma ideia de rompimento de padrões educacionais únicos e

sem flexibilidade o filme Sociedade de poetas mortos de 1989 traz uma boa mensagem,

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questionando o sentido da educação e trazendo novos métodos de aprendizagem: “Quando

você pensa que conhece alguma coisa, você tem que olhar de outra forma. Mesmo que pareça

bobo ou errado, você deve tentar!”.

Dessa forma o filme traz uma ideia de que é possível, se pensar em novas formas para

se alcançar o conhecimento. E é justamente essa nova roupagem trazida pelo filme, que pode

ser uma das soluções para diminuir a dimensão da crise no sistema educacional que está em

curso no Brasil, pois novos métodos de ensino por consequência acabam sendo mais

interessantes e estimulam o aluno a buscar aprender cada vez mais. Ideia forte que ressalta a

importância da educação, e a necessidade que a mesma funcione é a de Rubem Alves quando

diz: “As palavras só têm sentido se nos ajudam a ver o mundo melhor. Aprendemos palavras

para melhorar os olhos”.

Outra dificuldade que a educação enfrenta, não podendo ficar sem ser abordada é a

falta de parceria entre família e escola, realidade que se faz presente na vida de muitos

estudantes prejudicando o desenvolvimento escolar do aluno. Dessa maneira Para Denis

Mizne, diretor geral da Fundação Lehmann, organização sem fins lucrativos, voltada à

melhoria da educação pública no Brasil, “não existe o aluno e o filho como duas entidades

separadas. São a mesma pessoa.” O foco primordial da escola, ressalta, deve estar na

aprendizagem.

Quando a parceria entre escola e família não acontece de forma positiva, o rendimento

escolar do aluno fica baixo atrelado com grande evasão escolar o pensamento da pesquisadora

Miriam Abramovay é constante “O que mais se vê é a culpabilização de uma pela outra, pela

repetência, evasão escolar e violência na escola”. É de suma importância ressaltar que a falta

de parceria entre família e escola muitas vezes pode se desencadear por uma série de fatores,

estes que podem estar associados a jornada de trabalhos exaustivas dos pais, atrelados com

uma condição social desfavorável, até uma realidade de famílias que são assoladas pela

violência doméstica, não permitindo assim que o conceito de lar se efetive, e isso é lamentável

para o aprendizado do aluno pois como afirma Osorio:

Costuma-se dizer que a família educa e a escola ensina, ou seja, à família cabe oferecer à criança e ao adolescente a pauta ética para a vida em

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sociedade e a escola instruí-lo, para que possam fazer frente às exigências competitivas do mundo na luta pela sobrevivência. (OSORIO, 1996, p.82).

Seguindo essa linha de pensamento é visível a parcela de importância que a família

apresenta no processo de formação do aluno, pois um ambiente familiar que acolha os filhos e

se relacione com o ambiente escolar só criará pontos positivos para crescimento social da

criança, partilhando dessa ideia Piaget fala que: Uma ligação estreita e continuada entre os professores e os pais leva, pois, a muita coisa mais que a uma informação mutua: este intercâmbio acaba resultando em ajuda recíproca e, frequentemente, em aperfeiçoamento real dos métodos. Ao aproximar a escola da vida ou das preocupações profissionais dos pais, e ao proporcionar, reciprocamente, aos pais um interesse pelas coisas da escola, chega-se até mesmo a uma divisão de responsabilidades. (PIAGET, 1972).

Em contrapartida e de forma ainda mais profunda, o sociólogo Guilherme Melo de

Freitas, em publicação pela revista Dicta e Contradicta, argumenta que ainda mais importante

do que educar para o conhecimento, seria trabalhar nos alunos, o senso de responsabilidade e

a virtude da prudência:

Sendo assim, que tipo de estudante desejamos? Ou, o que esperamos dos jovens que passaram pelo sistema educacional: simplesmente, que saibam ler, fazer contas e que possuam noções básicas de ciências naturais? Não seria necessário pensarmos numa educação que também contribuísse para que as pessoas desenvolvessem sua capacidade de decidir e o seu senso de responsabilidade? T.S. Eliot já se perguntava na primeira metade do século passado: “Onde está a sabedoria que nós perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que nós perdemos na informação?”. Se formamos pouco para o conhecimento, menos ainda para a sabedoria. Aliás, temos utilizado a palavra “sabedoria” muitas vezes com um viés esotérico e, por incrível que pareça, oriental – o que soa surpreendentemente contraditório, se pensarmos na fala de Weiwei. Talvez isso aconteça porque temos lido muito Piaget e Vygotsky, mas esquecemos de Platão e Aristóteles: por isso, nossos sistemas de ensino e de avaliação descartam a formação para as virtudes da prudência e da justiça, que capacitam – no sentido moral, não no “mercadológico”! – o ser humano a decidir e a ter senso de responsabilidade. (FREITAS, 2014).

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Outro ponto que necessita ser abordado nesse contexto de crise educacional diz

respeito à falta de valorização dos professores, que é uma situação muito delicadano sistema

educacional contemporâneo no Brasil. Muitos profissionais vivenciam em seus ambientes de

trabalho situação de risco pois é comum ver casos em que os professores são expostos a

violência por parte de muitos alunos, sem contar a baixa remuneração atrelada com rotinas de

trabalhos que não permitem que o profissional desenvolva o seu trabalho da melhor forma

possível no sentido de proporcionar a fomentação de pesquisas, trabalhos científicos e

métodos de ensino cada vez mais convidativo para que o aluno consiga aprender mais. O

trecho da Revista Regional discute com muita clareza a questão da desvalorização da

educação por parte do estado:

A desvalorização do profissional da educação não aconteceu por acaso no Brasil. Hoje temos cerca de 2,3 milhões de professores espalhados por este país vivendo realidades as mais variadas. Só numa coisa eles têm uniformidade: sua desvalorização. É aviltante acompanharmos o atual debate do piso salarial dos professores onde diversos Estados e municípios não querem praticá-lo. Está mais do que na hora de o governo federal aumentar sua participação nos investimentos da educação básica. Dados de 2009 revelam que para cada R$ 1,00 investido na educação básica, os Estados investem $ 0,41, os municípios $ 0,39, a União entra com somente $ 0,20. Está mais do que na hora de os Estados e municípios aumentarem seus investimentos na educação – 25% não são suficientes para atingirmos os amplos objetivos educacionais que temos. Está mais do que na hora de se rever a Lei de Responsabilidade Fiscal no que tange a folha de pagamento da educação, já que a mesma é um fator inibidor para as esferas públicas investirem mais nos salários. (CAVEDEN, 2014)

No que diz respeito a situações de violência, seja ela psicológica ou física o portal

Terra Educação, traz uma matéria de 2013 que infelizmente ainda é atual necessitando da

atenção de toda a sociedade:

Quando a tarefa de ensinar vira caso de polícia

O que era para ser uma simples reprimenda pela bagunça no corredor da escola, tornou-se caso de polícia após uma aluna partir para a agressão física contra a professora. Glaucia Teresinha da Silva bateu com a cabeça no chão,

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teve traumatismo craniano, ficou 15 dias no hospital e seis meses em casa até se recuperar. Isso aconteceu em 2009, numa escola pública de Porto Alegre. Glaucia deu a volta por cima, enfrentou o medo da sala de aula, e hoje desenvolve um projeto de alfabetização que é exemplo no Rio Grande do Sul. Mas passados quatro anos do caso que ganhou repercussão nacional, a violência contra professores nas escolas se multiplicou. Segundo pesquisa divulgada pelo Sindicato dos Professores do Ensino Oficial de São Paulo (Apeoesp) em maio deste ano, 44% dos professores da rede estadual já sofreram algum tipo de violência na escola. A agressão verbal é a forma mais comum de ataque, tendo atingido 39% dos docentes, seguida de assédio moral (10%), bullying(6%) e agressão física (5%). O estudo mostra ainda que quem mais sofre violência escolar são os professores do sexo masculino que lecionam no ensino médio: 65% deles foram agredidos de alguma forma. Professores sem autoridade e desmotivados com o quadro de abandono da carreira, pais que repassam para a escola a tarefa de educar, alunos inquietos uma sala de aula que parece ter parado no tempo e governos omissos formam a bomba-relógio da violência. Para contar o drama de quem precisa conviver com a violência física e psicológica, o Terra ouviu relatos de educadores de todo o Brasil. Eles já levaram tapas, socos, chutes, foram ofendidos por alunos e pais. Alguns superaram o trauma, outros não conseguem voltar para a escola. Eles não querem assumir o papel de vítimas, e reconhecem que a escola precisa mudar. Mas pedem respeito, e principalmente, querem ser valorizados como professores. (CHAGAS, 2013)

Situações lamentáveis essas citadas anteriormente que só fazem reforçar a ideia de que

o sistema educacional brasileiro está em crise, não permitindo que o homem consiga caminhar

rumo ao conhecimento, pois o problema em torno da educação limita as oportunidades dos

alunos, sabotando dessa maneira a sociedade.

Considerações finais

Diante do exposto fica claro que o modelo atual de educação adotado pelo Brasil

apresenta sérios problemas, prejudicando a formação de jovens e adolescentes, não dando a

oportunidade para que estes alcancem o conhecimento da forma mais plena possível.

Ao longo do processo histórico o modelo de educação defendido pelo Brasil apresenta

índices de ineficiência a cada ano, um baixo número de alunos desenvolve uma base critica

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social e politica adequada; realidades que são reflexos de uma educação que não realiza o seu

proposito e que por decorrência de métodos de ensinos fragmentados proporcionao aumento

donumero deanalfabeto, e aqueles que conseguem se formar infelizmente em sua maioria

apresenta déficits na aprendizagem.

Muitos teóricos da área da educação defendem que a interdisciplinaridade e a

contextualização dos conteúdos teóricos com a realidade da vida de cada aluno é a formula

para que se alcance o saber. É justamente nessa linha que achamos que a educação deve

caminhar, pois a partir do momento que a teoria for aprendida juntamente com experiências

do dia a dia a metodologia se tornará extremamente interessante, estimulando o aluno.

Outro ponto que tratamos anteriormente diz respeito à falta de estruturas de algumas

escolas, e também a questão de falta de valorização do professor. Esses pontos precisam de

uma atenção especial do governo no que diz respeito à própria valorização da educação,

ambientes escolares propícios e profissionais realizados é fundamental no processo de

aprendizagem, pois o conhecimento é uma troca e acaba sofrendo influência da

contextualização externa que os envolvidos no processo sofrem.

Entretanto a falta de parceria entre a família e a escola acaba sendo um dos principais

fatores que prejudicam o processo de aprendizagem dos alunos, estes que estão inseridos em

uma escola que possui métodos educacionais que já não é o mais estimulador, somado com

grades de disciplinas fragmentadas. Necessitando da ajuda da família bem como o

envolvimento da mesma com a escola para que sejam sanadas no lar as lacunas que o próprio

processo educacional impõe, ajudando seus filhos a se desenvolver socialmente da melhor

maneira possível.

Dessa forma fica claro que a crise na educação é um dos grandes problemas da

sociedade atual, pois se trata de um tipo de um malefício que vai refletir ao longo da formação

social. Nesse contexto a busca por novos métodos, e as reflexões em torno do sistema

educacional do Brasil é extremamente importante. Portanto, é necessário que se repense a

estrutura da educação no que diz respeito aos resultados que realmente estão sendo

alcançados, buscando reconhecer as falhas, com o objetivo de alcançar novas perspectivas.

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FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO FILOSÓFICA DO EDUCADOR1

Ferdinand Röhr UFPE

Resumo: Os estudos na área de Filosofia da Educação podem tomar como ponto de partida a Filosofia ou a Educação. Trata-se, no primeiro caso, prevalentemente, de tentativas de apresentar uma compreensão da Educação que corresponda aos preceitos e anseios de uma Filosofia considerada mais adequada à situação histórico-cultural, normalmente uma das em moda. Se partir da Educação, é preciso identificar quais questões educacionais solicitam uma reflexão filosófica e, consequentemente, têm que fazer parte da formação filosófica do educador. Partindo do fato de que o educando percebe o educador não só na sua atuação pedagógico-técnica, mas como ser humano inteiro e essa percepção tem relevância significativa no processo educacional, faz-se necessário uma formação filosófica como contribuição central na formação humana do educador. Demonstra-se, no exemplo da polêmica fundamental sobre o sujeito na discussão filosófico atual, a necessidade de decidir-se diante das possíveis crenças metafísicas em que se fundamentam os conceitos do sujeito atuais. A formação filosófica do educador tem que considerar a responsabilidade do futuro educador em assumir a sua própria fé filosófica diante de questões desta natureza. Pressuposto para essa tomada de decisão é a clareza tanto sobre as possibilidades de fé diante dos conceitos filosóficos centrais quanto sobre as formas de adquirir uma fé numa atitude responsável. Palavras-chave:Formação Filosófica do Educador. Responsabilidade Pedagógica. Fé Filosófica.

Iniciamos as nossas reflexões com um breve mapeamento das abordagens que

encontramos no âmbito da Filosofia da Educação para apontar o lugar sistemático da nossa

temática. Apresentamos, em seguida, um levantamento das principais opções norteadoras do

que o educador dispõe, caso assuma a responsabilidade por sua prática pedagógica e

respectivas fundamentações filosóficas dessas opções. Finalmente, discutimos as posturas

filosóficas em jogo no encaminhamento de uma formação filosófica do educador.

Se determinarmos o âmbito das temáticas da Filosofia da Educação de forma mais

ampla, poderemos incluir nele todas que tratam as possíveis relações estabelecidas entre

Filosofia e Educação. Distinguimos, neste caso, duas perspectivas: o olhar da Filosofia para a

Educação e o da Educação par a Filosofia.

1O presente texto foi apresentado, numa versão mais resumida, sob o título “Formação Filosófica do Educador”

no “Colóquio Internacional da SOFELP” (Sociedade de Filosofia da Educação de Língua Portuguesa) com a temática “Filosofia ou Filosofias da Educação? Um debate em torno das identidades filosóficas das problemáticas educativas contemporâneas”, que aconteceu nos dias 21 e 22 de novembro de 2014, no Instituto de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Portugal.

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1. No olhar da Filosofia para a Educação, estudamos filósofos e Filosofias, associando-

os a questões educacionais. Elencamos, em seguida, as principais possibilidades:

• O tipo de abordagem mais comum é partir de uma determinada Filosofia ou de um

pensamento de um filósofo considerado o mais verdadeiro/adequado à

realidade/época/cultura/sociedade existente, perguntando-se sobre a viabilização,

divulgação e/ou aceitação através de processos educacionais. A questão sempre é:

Qual a Educação adequada a uma posição filosófica específica? Partindo de uma

Filosofia marxista, existencialista, pragmatista ou pós-moderna, por exemplo: qual

seria a Educação marxista, existencialista, pragmatista ou pós-moderna

correspondente?

• Podemos também analisar o pensamento de filósofos que desenvolveram reflexões

sistemáticas próprias sobre a Educação.

• Muitas vezes só encontramos afirmações esparsas de um filósofo sobre a

Educação. Podem-se fazer tentativas de sistematizá-las num corpo teórico

coerente.

• Diante de um filósofo que não se pronunciou sobre a Educação, existe ainda a

possibilidade de buscar uma teoria educacional subjacente à sua Filosofia.

• Além disso, é interessante estudar a atuação pedagógica de filósofos e a coerência

dessa com a Filosofia que apresentam.

• Finalmente, consta uma possibilidade de estudar a Educação que um filósofo

recebeu e suas repercussões na sua Filosofia.

2. Existe uma questão que solicita um duplo olhar, quer dizer, que precisa de um olhar

tanto da Filosofia para a Educação quanto da Educação para a Filosofia. Trata-se da

questão do ensino da Filosofia, que depende tanto da compreensão que se tem da

Filosofia quanto da Educação.

• Podemos partir de uma Filosofia e pesquisar quais condicionantes ela estabelece

para poder ser ensinada ou não.

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• Parte-se de uma compreensão da Educação ou de uma teoria de aprendizagem

específica e aplica esta aos conteúdos e procedimentos da Filosofia.

• Finalmente, é possível buscar pontos de sincronia entre posições filosóficas e

formas de agir educativamente como base do ensino de Filosofia.

3. No olhar da Educação para a Filosofia, o ponto de partida é o estudo de questões

propriamente educativas que têm ligação com a Filosofia.

• Uma questão pouco focalizada, porém bastante instigante, é a de se perguntar até

que ponto determinadas Filosofias educam ou deseducam. Óbvio que essa análise

parte, necessariamente, de um conceito definido do que é Educação.

• O olhar mais essencial dessa perspectiva talvez seja: partir de um levantamento de

questões do pensamento pedagógico que solicitam uma reflexão filosófica, a fim

de analisar as Filosofias nas respostas que oferecem e submeter estas ao

julgamento da responsabilidade pedagógica que se fundamenta no bem do

educando.

4. Incluímos como ponto específico a formação filosófica do educador, que é na verdade

uma questão que interliga os itens 2. e 3. Esta questão não parte nem de uma noção

específica de Filosofia, nem de Educação, mas da responsabilidade que o educador

assume na sua prática educacional e diante das escolhas teóricas subjacentes a ela.

Diante da enorme quantidade de teorias educacionais existentes, a necessidade do

educador escolher é inegável. Uma suposta saída para essa questão seria o educador delegar

essa escolha às instâncias consideradas responsáveis pela Educação: família, Estado, igrejas

etc. Nesse caso, a função do educador seria a de executor de ordens externas a ele, seja qual

for a natureza. A Educação seria reduzida a um aspecto meramente funcional, sem agente

próprio interferindo no seu direcionamento, tornando-se serva das instâncias e conjunturas

político-social-econômico-culturais. Porém, delegar a responsabilidade a essas instâncias não

quer dizer que o educador, de fato, livrou-se dela. No mínimo, continua a responsabilidade

pelo ato de haver delegado a mesma. Se fosse possível isentar-se da responsabilidade sobre a

própria prática pedagógica, não precisaríamos entrar numa reflexão filosófica e poderíamos

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excluir Filosofia da Educação do currículo da formação do educador. Podemos afirmar, em

termos mais gerais, que todas as nossas tentativas de isentar-nos da responsabilidade pelo que

fazemos não tem fundamento, fato que Sartre tanto se empenhou em ressaltar. Nenhuma

instituição social, política, econômica, filosófica ou religiosa pode tirar, em última instância, a

responsabilidade do educador pela sua prática pedagógica. Com essa afirmação, jamais

pretendemos isentar as instâncias mencionadas da responsabilidade na criação das condições

externas, necessárias para possibilitar e facilitar a atuação pedagógica do educador,

principalmente salários condizentes com as exigências da atuação pedagógica, condições

ambientais apropriadas, materiais didáticos motivadores/atualizados e oferta de formação

continuada de boa qualidade. Mesmo assim, o oferecimento dessas condições externas, por si

só, não garante que todos os educadores, de fato, reconheçam para si a própria

responsabilidade pela sua prática pedagógica. Existem muitos motivos para negá-la. Em

alusão a Kant, mencionamos os dois mais visíveis: a preguiça e a covardia. Os que agem a

partir desses motivos são, em geral, os que mais os negam. Também nisso, fazem uso do seu

livre arbítrio. Bem como grande parte dos educadores que, ao contrário, assumem sua

responsabilidade pedagógica nas mais precárias condições externas.

No caso em que o educador se reconhece responsável pela determinação da sua tarefa

pedagógica, ele se depara com duas tendências: uma mais restrita e uma mais ampla.

1. A compreensão mais restrita da Educação é aquela em que a tarefa pedagógica se reduz a

algo que pode ser plenamente realizado pela prática educacional. Um dos argumentos

básicos é: somente uma tarefa bem delimitada e definida pode ser responsavelmente

cumprida. Por dentro dessa visão podemos distinguir duas vertentes:

1.1 Uma possibilidade de delimitar a tarefa pedagógica seria restringir a mesma a uma

tarefa de socialização ou enculturação, tais como ler e escrever, fazer contas e

apreender leis da natureza e/ou seguir códigos de convivência social. Trata-se de

tarefas de adequação da nova geração aos processos sociais ou de aprendizagem de

técnicas culturais tanto atuais quanto atendendo às projeções para o futuro. Uma vez

tomada a decisão, normalmente baseada em argumentos bastante pragmáticos, a

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realização da tarefa torna-se um problema técnico que se resolve com meios

científico-tecnológicos e não carece de mais um suporte da Filosofia da Educação.

1.2 Outra forma de delimitar a tarefa pedagógica é atribuir ao educador a responsabilidade

de optar por uma visão do mundo que deve ser propagada pela Educação. Podem

tratar-se de ideologias político-econômico-sociais, crenças religiosas ou abordagens

filosóficas específicas. Tarefa do ensino da Filosofia da Educação, neste caso, é

demonstrar que uma posição tem superioridade diante das outras e buscar convencer o

futuro educador disso. Observamos nessa vertente tendências mais impositivas e

dogmáticas, defendendo com todos os meios uma suposta verdade única contra todos

os supostos equívocos dos outros, e mais moderadas, que visam a necessidade de gerar

uma convicção própria no educador, sem, portanto, abdicar de uma atitude persuasiva,

sutil.

2. A visão mais ampla da tarefa educacional parte de uma reflexão sobre as consequências

negativas das visões mais restritivas da Educação, mas também sobre as contribuições

positivas que podem oferecer, vistas a partir de uma compreensão abrangente da

Educação. O objetivo de uma visão mais ampla da Educação é incluir todas as facetas da

vida humana nas reflexões sobre a Educação. Este objetivo não é alcançável de forma

conclusiva. Se acreditássemos na possibilidade de fechar uma visão ampla de forma

conclusiva, voltaríamos para o ponto 1.2. Cada descrição do todo contém decisões

excludentes em seu bojo, que por si impossibilitam o alcance do todo.Deparamo-nos,

portanto, com diferentes propostas de abraçar o ser humano na sua íntegra. Essas

diferenças dependem das inter-relações que se estabelecem entre os elementos que fazem

parte do todo e principalmente a decisão sobre o que faz parte da realidade e o que dela

consideramos inexistente, ilusório. Uma das decisões mais fundamentais e polêmicas é a

existência ou não de algo transcendente.

2.1 Podemos tentar situar a nossa visão do todo unicamente no imanente, naquilo que tem

evidência inquestionável diante dos nossos sentidos e do nosso pensamento.

Consideramos que a proposta da complexidade de Edgar Morim é desse tipo.

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2.2 De outro lado, temos os que argumentam que a imanência não é tudo, como, por

exemplo, o holismo ou a ecocosmologia. Dentro das posições que admitem a

transcendência podemos ainda distinguir aqueles que pensam nela como “horizontal”,

considerando-a como algo transcendente que existe em cada pessoa, o que pode

aparecer nas relações com os outros e com a natureza (Luc Ferry, René Barbier,

Gabriel Madinier, entre outros), e os que percebem a transcendência numa relação

“vertical”, como um Além transcendente (Karl Jaspers, Martin Buber, Leonardo Boff,

entre muitos outros).

A Educação, em todas essas vertentes, seria formação humana, tentativas de contribuir

para o desenvolvimento proporcional e gradativo de todas as potencialidades do ser humano.

Obviamente, não podemos esperar o homem pleno e perfeito como resultado. Todos os

esforços educativos só podem ser considerados como contribuições para uma plenitude mais

rica, uma aproximação maior do ideal. O conceito da integralidade humana somente atua

como ideia regulativa para identificar e evitar os mais diversos reducionismos.

O panorama que desenhamos das opções do educador para direcionar a sua prática

pedagógica, talvez não seja completo e, com certeza, pode ser bastante mais detalhado.

Porém, já fornece uma nítida impressão da responsabilidade que o educador assume na hora

da decisão por uma delas. E não se trata de uma questão estritamente profissional, mas de

uma existencial que diz respeito a sua própria vida e envolve vários aspectos. Que sentido tem

a minha atuação como educador na minha vida? Como se relaciona o sentido que atribuo a

minha vida com esta atuação? O que é contingente e o que é essencial na minha vida? Qual o

significado da realidade em que vivemos? Essa realidade se encerra, para mim, na imanência

ou admito uma transcendência? No segundo caso: Qual a visão que temos da transcendência?

De onde vêm as orientações para o meu agir? Somos nós mesmos os que criam/constroem a

nossa orientação ética ou ela existe e temos de descobri-la, seja em nós mesmos ou em algum

lugar fora de nós?

Escutamos os contra-argumentos: O educador é um profissional da Educação. Ele tem

que distinguir entre a vida particular e a atividade profissional. Uma não deve interferir na

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outra. Sua atividade profissional, afirma-se, está determinada por métodos, técnicas e regras

didáticas que independem das características e crenças individuais da pessoa. Esses

procedimentos podem ser descritos, pesquisados na sua eficiência e adquiridos por um

treinamento profissional. Não negamos que uma parte da formação do educador pode ser

simples formação profissional. Porém, o educador não se reduz a isso. Na nossa percepção o

educador não pode atuar diferente, a não ser como pessoa inteira, mesmo se ocupando

“apenas” com uma tarefa pedagógica técnica e limitada. Isso porque o educando não restringe

a sua percepção do educador apenas à intenção pedagógica específica que o educador atribui a

si mesmo. Se o educador, por exemplo, mesmo agindo de acordo com as orientações

científicas mais atualizadas, não acredita no que faz ou na capacidade do educando

corresponder às exigências feitas, o educando o percebe, na grande maioria das vezes, mais

rapidamente do que o educador imagina, e reage de acordo. Querendo ou não, o educador atua

na sua prática como pessoa inteira. Por isso acreditamos que necessariamente tem que existir,

ao lado da formação profissional do educador, uma formação humana que o habilite a lidar

com as questões essenciais e existenciais da vida. E, de fato, essas questões fundamentais da

vida humana são as questões eternas da Filosofia. A pergunta básica que temos de responder

diante disso é: Como formar o futuro educador para habilitá-lo a encontrar respostas próprias

diante dessas questões?

Em primeiro lugar, temos de demonstrar a ele que não é possível tomar decisão por

um critério objetivo. O fato de que todas essas posições coexistem em constante debate há

bastante tempo nem deixa espaço para sonhar um consenso generalizado e muito menos abre

para a expectativa de uma resposta definitiva da ciência, que, pelos próprios procedimentos de

escolha de objetos específicos e definição de metodologia apropriada, não se ajusta a esse tipo

de questão. Nesse caso, resta perguntar como tratar o aspecto subjetivo da questão? Trata-se

de mero decisionismo, em que não existem critérios para a decisão; trata-se de uma decisão

em que somente ponderamos os fatores externos e suas consequências em prol de interesses

próprios, quer dizer, um pragmatismo egocêntrico, ou existe uma instância interna no ser

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humano que pode ser ativada para orientar a decisão do indivíduo, que poderia significar um

essencialismo?

Todas as Filosofias dispõem de uma forma própria de encaminhar as questões

fundamentais da vida humana. Bem como todas as respostas ao sentido da vida humana

implicam um aspecto de escolha. Filosofias são discursos articulados e parcialmente

referendados pela realidade empírica e racional. Portanto, não existe uma Filosofia que abraça

a realidade na sua inteireza. A adesão a uma posição filosófica implica, sempre em algum

ponto, num ato de crença, de fé, não necessariamente religiosa, mas metafisica. Mesmo as

posições antimetafísicas fazem uma afirmação sobre o Ser, identificando-o como unicamente

físico, portanto, não deixa de ser uma afirmação metafísica. Também a posição ascética em

relação ao Ser inclui um relacionamento com as questões metafisicas: a relação de não querer

se pronunciar sobre o Ser por considerá-lo fora do alcance do conhecimento humano. Se as

últimas questões sobre o sentido da vida humana são questões de fé e o educador não pode se

isentar diante delas, as questões fundamentais da Filosofia da Educação relacionadas à

formação filosófica do educador são:Como se adquire uma fé de forma responsável? Quais as

formas em que podemos acreditar e quais são os diferentes atos em que assumimos uma

fé?De fato não estamos muito acostumados com essas questões na área da Filosofia. É mais

comum defrontar-se com esforços enormes para esconder as crenças subjacentes às Filosofias

do que expô-las. No entanto, acreditamos que somente a segunda atitude é adequada a uma

formação filosófica do educador.

Não dispomos de espaço para desenvolver uma reflexão mais sistemática sobre essa

questão. Existe uma vasta literatura sobre a fé nas mais diversas perspectivas. Sentimos falta

de uma ampla abordagem fenomenológica sobre a variedade de atos de fé e seus pressupostos

e processos de adesão, começando com as crenças subjacentes às ações do cotidiano seguindo

até às religiosas e metafisicas. Para os fins desta apresentação, restringimo-nos a discutir a

questão apenas relacionada a uma polêmica que nos parece uma das mais fundamentais da

nossa época. Trata-se da questão do sujeito. Abordamos a questão em termos bem genéricos,

tentando caracterizar as posições em forma “tipo ideal” no sentido weberiano. Não

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pretendemos nem podemos, no espaço possível, demonstrar todas as variações e posições

intermediárias. O que interessa é demonstrar diferentes atitudes básicas diante da questão de

adesão a uma fé metafisica.

Existe uma polêmica contundente, principalmente inaugurada por Nietzsche, contra a

imagem que se fez do sujeito na tradição cristã, mas também no racionalismo desenvolvido na

Época das Luzes. Resultou da polêmica contra esses dois conceitos do sujeito, hegemônica na

época, a conclusão da não existência de um sujeito preexistente. Tudo que atribuímos ao

sujeito humano é adquirido historicamente no bojo das relações sócias e culturais. Nessa

posição, não existe uma instância inata no ser humano que serve de orientação diante das

influências recebidas do mundo exterior. O que percebemos como sujeito é algo construído a

partir das múltiplas influências recebidas e pode ser desconstruído e reconstruído a partir de

novas experiências. Nesse processo não existem normas válidas universalmente nem

conhecimentos seguros. A arte é apreender viver e conviver com as incertezas, compreender e

aceitar as diferenças, identificar e negociar a viabilidade da realização dos nossos desejos.

Podemos afirmar, em termos de orientação prática da nossa vida, pelo menos para o mundo

ocidental, que essa visão do sujeito representa a tendência geral do nosso tempo.

Faz-se presente, com crescente força, uma reação a esse relativismo subjacente ao

movimento mais geral. Renasce um novo fundamentalismo, principalmente religioso, que

tenta restaurar a crença num destino predeterminado que habita no sujeito e deve guiar de

forma unívoca o agir humano. As influências que o sujeito recebe na sociedade não são

negadas, porém avaliadas na sua contribuição ou não na realização do destino. A pessoa tem a

opção de seguir o seu destino ou se perder nas tentações do mundo.

Existe uma terceira posição que praticamente não tem grande visibilidade social. Essa

posição concorda com a crítica de visões dogmáticas e reducionistas em relação ao conceito

do sujeito humano. Contudo, não nega a existência do sujeito como algo dado. Aceita o

óbvio: o ser humano é um ser no mundo e recebe constantemente influências externas.

Acredita, porém, na existência de um Eu que é capaz deidentificar em que momentos e

decisões esse Eu se sente em sincronia consigo mesmo, quer dizer, autêntico e quando se

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encontra fora de si, em desarmonia com o que acha adequado mais intimamente. As

orientações que o Eu alcança têm validade somente para ele, não universalmente. O problema

é que o acesso a essa subjetividade íntima e existencial não é fácil. As influências externas

cobrem constantemente os sentimentos mais íntimos sobre nós mesmos e os nossos desejos

mais imediatos e superficiais se sobrepõem fortemente ao desejo de agir de forma autêntica

consigo. Diante das tentações externas, a mente humana é muito fértil e hábil em gerar

argumentos e desculpas, alegando que, nessa situação que vivemos, é admissível não seguir o

que o nosso saber íntimo sobre nos indica.

Confrontamo-nos nessas caraterizações genéricas com três formas de fé sobre o sujeito

humano. Trata-se de formas de fé mesmo, pois nenhuma delas tem condições de provar em

termos de validade universal a verdade da sua posição. Cada uma dessas três formas de fé

implica numa maneira própria de passar essa fé para outrem. Quer dizer, dispusemos, na

perspectiva que adotamos, de três respostas à questão como o educador dos educadores pode

habilitar estes a aderirem a uma fé, sobre o sujeito, que fundamente sua prática pedagógica.

A fé no relativismo se propaga, adquire e preserva na atitude crítica contra todas as

tentativas de afirmar algo essencial sobre o sujeito humano. Enquanto as possibilidades de

crítica não se esgotam, a crença se afirma. Na medida em que se admite que as críticas se

baseiem em generalizações, elas, de fato, não se esgotam. Vale ressaltar que a atitude de

crítica tem, sem dúvida, uma relevância inegável na convivência humana, preservando-nos de

erros, enganos, ingenuidades, intenções subjacentes e interesseiras – nossas e de outros –,

demanipulações, repressões e persuasões sutis. Porém, não raras vezes, ela se afasta da

intenção de buscar o que é mais verdadeiro e se torna instrumento de autoafirmação. O crítico

parece ser o mais inteligente, o mais desperto, superior aos outros. Nessa perspectiva, o crítico

não se sente na obrigação de apontar soluções ou até ser coerente no seu agir com suas

argumentações críticas. Assim, a postura crítica pode se desvirtuar e servir para gerar uma

aparência de comprometimento, que na verdade torna-se um meio de ausentar-se diante da

própria responsabilidade de melhorar a realidade em que vivemos.

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A fé dogmática se adquire num ato de adesão que pode ter as motivações mais

diversas, porém baseadas, em última instância, no desejo de obter uma orientação segura e

unívoca para sua vida. Trata-se de um ato de sair da própria insegurança diante das mais

variadas possibilidades de crenças diferentes. Uma vez assumida uma determinada fé como

verdade absoluta, utiliza-se de diversas metodologias da “catequização” para propagar sua fé.

Torna-se eminente a vontade profunda de convencer os outros, pois cada nova adesão serve

de suposta confirmação da própria escolha.

No caso da fé existencial partimos também do desejo humano de guiar a sua vida com

determinação, segurança e certeza. Porém, desista-se da pretensão de encontrar uma verdade

única para todos. Também se preza a postura crítica diante das orientações externas

existentes, porém, principalmente diante si mesmo na percepção de si mesmo. A diferença é

que essa postura crítica não está direcionada e amarrada pelo pressuposto da não existência do

sujeito. A crítica tem a função de questionar se os valores com que o Eu se identifica são de

fato os autênticos. O único que pode saber disso é o sujeito mesmo e a forma de saber é

vivenciá-los e perceber a identificação íntima ou não com esses valores, aproximando-se

assim sempre mais de si mesmo. Não se trata de uma transposição de fé – de um para o outro

– como nas posições anteriores. A tarefa pedagógica seria incentivar a busca de uma fé

própria que se torna incondicional para a pessoa, mas não transponível nem válida para os

outros. O educador tem possibilidades de criar condições mais favoráveis para a aquisição de

uma fé dos futuros educadores, mas não deve antecipar a decisão deles, tentando evitar todas

as formas de persuasão sutil. A intenção pedagógica seria a de que o outro seja ele mesmo.

Para isso, eles, primeiramente, precisam conhecer e reconhecer em si próprios as tendências

que fazem com que nos afastamos de nós mesmos. Isso é fundamental, pois quando surgem

em processos de autoconhecimento primeiras percepções da própria identidade, revelam-se

exigências de mudar a vida. Mais uma vez é oportuno mencionar a preguiça e a covardia

como possíveis contrapontos a essa exigência. A confirmação ou não dessas primeiras

percepções sobre si mesmo só pode se dar na análise dessas na vida ativa, nas tentativas de

realização e avaliação de como repercutem no nosso ser íntimo. O educador da Filosofia da

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Educação, diante disso, tem uma dupla tarefa: primeiramente, encorajar o educando/futuro

educador no seu esforço de vencer as tendências que dificultam a adequação do seu

pensamento, falar e agir ao seu Eu autêntico e, em segundo lugar, vigiar a coerência que o

educando alcança entre esses fatores. Se ele não fala o que pensa ou não faz o que fala, a

ironia socrática é um meio adequado para apelar para uma atitude mais coerente.

O resultado para a nossa questão de formação filosófica do educador pode ser

formulado do seguinte modo: da mesma forma que identificamos, em termos mais gerais, três

formas de fé diferentes em adotar uma posição filosófica, confrontamo-nos também com três

maneiras de agir pedagogicamente diante das formas de fé. As primeiras duas formas de fé

permitem a transmissão de um determinado conteúdo de fé, são formas de convencimento dos

educandos em relação a uma suposta verdade, tratando-se, porém, de verdades opostas: a não

existência da verdade ou a posse dela. A terceira parte da existência da verdade, mas ao

mesmo tempo da impossibilidade de conhecê-la por inteira. Fé, nessa posição, não é ponto de

entrada, mas resultado inconcluso de uma experiência de busca de fé própria. As conquistas

parciais da verdade de cada um não são transmissíveis, só têm valor como fé própria, que,

enquanto tal, compromete incondicionalmente.

Diante disso, reformulamos a nossa questão: Como o professor de Filosofia de

Educação que pretende promover a formação filosófica do educador vai se posicionar diante

dessas três formas de fé? A nossa proposta seria fornecer ao futuro educador uma noção o

mais claro possível dessas formas de fé, com suas respectivas práticas pedagógicas, para que

ele se posicione e decida. O problema é que os adeptos mais firmes das duas primeiras formas

de fé dificilmente aceitarão a nossa proposta. Para abrir espaço para convicções diferentes só

é possível apelar. Na nossa perspectiva e proposta de possibilitar a aquisição de uma fé

própria pelo futuro educador, é necessário o professor de Filosofia de Educação subordinar a

sua própria fé à intenção pedagógica, que consiste no respeito diante da liberdade e

responsabilidade do futuro educador. Isso, no caso da terceira posição, não é uma negação da

própria fé, mas a confirmação da fé na liberdade do outro.

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Resumindo nossas reflexões, podemos afirmar: Na formação filosófica do educador o

ponto de partida são as questões em prol da prática pedagógica que solicitam uma reflexão

filosófica. Somente negando a responsabilidade do educador por sua prática ou sua atuação

como pessoa inteira isenta o mesmo da reflexão filosófica. Se o educador assume a

responsabilidade por seu atuar pedagógico, a Filosofia se torna parte indispensável da sua

formação humana como condição fundamental da sua formação profissional. Como a

Filosofia não se apresenta como pensamento único, mas dividido em várias formas de ver a

realidade, cada uma delas baseia-se em pressupostos metafísicos diferentes e dependem, com

isso, de um ato de fé na sua aceitação. O que fizemos no exemplo do conceito do sujeito,

polêmico e central na Filosofia atual, a saber, esclarecer as possibilidades de fé diferentes e

suas formas de adesão, seria tarefa em relação também às demais questões filosóficas

envolvidas na prática pedagógica, deixando sempre a responsabilidade do posicionamento

para o futuro educador. Com isso não queremos negar nem a importância nem a legitimidade

de abordar as demais facetas e temáticas que a Filosofia da Educação abriga, elencadas no

início do texto. Porém, visualizamos como tarefa central desta área de conhecimento a sua

contribuição na formação filosófica do educador. Acreditamos que as várias temáticas

possíveis ganham em termos de importância, na medida em que elas, de fato, intencionam

oferecer uma contribuição significativa na tarefa fundamental de auxiliar o futuro educador na

aquisição da sua fé filosófica própria.

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DIÁLOGO FILOSÓFICO: AÇÃO PEDAGÓGICA E EMANCIPAÇÃO Francisco Flávio Alves Felipe1

UNEB Márcio Camargo da Silva

Marcos Henrique Repa PPGED/UESB

Resumo: Neste artigo, analisamos o processo efetivo de ensino-aprendizagem, do diálogo filosófico na educação, ou seja, em que medida o conhecimento filosófico vem fortalecendo ou não o processo formação de alunos numa perspectiva crítica, voltada para a emancipação e formação da consciência crítica dos estudantes. Em última instância, pretendemos descobrir a contribuição, no “chão da escola”, no processo efetivo de ensino-aprendizagem, do diálogo filosófico na educação. A escolha do tema encontra relevância acadêmica, epistemológica, política, social e educacional, uma vez que a investigação e o conhecimento filosóficos são fundamentais para a constituição de seres pensantes, atuantes, capazes de se relacionar de forma ativa e com altivez frente às situações vivenciais surgidas no contexto da sociedade técnico-informacional na qual estamos inseridos. Palavras-chave: Diálogo Filosófico na Educação. Ensino-Aprendizagem. Emancipação e Formação da Consciência Crítica.

Introdução

Através desse estudo pretendemos investigar o alcance, o significado e as

possibilidades do diálogo filosófico na educação. A filosofia, que se traduz em amor a

sabedoria, vem sendo cada vez mais valorizada, sobretudo no currículo do Ensino

Fundamental e Médio das escolas brasileiras. Foi nesse sentido que o Conselho Nacional de

Educação (CNE) aprovou o Parecer CNE/CEB nº 38/2006, que estabelece a inclusão

obrigatória das disciplinas de Filosofia e Sociologia no currículo do Ensino Médio.

A análise das propostas político-pedagógicas das escolas públicas brasileiras, em

qualquer uma das esferas administrativas, aborda a perspectiva de propiciar a formação de

pessoas que conseguem interagir de forma dinâmica com o mundo, tentado perceber os nexos

relacionais e explicativos para os fatos e acontecimentos que ocorrem a sua volta.

1 UNEB – Campus VI – Caetité

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Todo e qualquer ser humano necessita de educação de qualidade, precisa munir-se de

instrumentais, apropriar-se de conhecimentos, métodos e técnicas. A escola enquanto arena

cultural e política, local de aquisição sistemática do saber e espaço de luta e formação de

visão critica do mundo, não deve arrefecer no cumprimento de tão importante tarefa,

sobretudo, quando inserida em setores da população secularmente discriminados e alijados

social e economicamente, como no caso do Brasil e demais países em desenvolvimento.

Segundo Castells (1999), o mundo globalizado, informacional, caminha decidido em

direção a uma postura epistemológica que prima pela ação do conhecimento sobre o

conhecimento, pela preocupação com a informação e seu processamento, com a capacidade

do conhecimento de gerar mais conhecimento e com a defesa da singularidade e da cultura do

sujeito contra a lógica do mercado.Acreditamos, pois, que estas são as implicações

educacionais contidas nesta nova etapa do desenvolvimento sócio-econômico e tecnológico

das sociedades mundiais.

Para Lévy (1993, p. 17), “nenhuma reflexão séria sobre o devir da cultura

contemporânea pode ignorar a enorme incidência das mídias eletrônicas (sobretudo a

televisão) e da informática”.

Devido a esses fatores e às diversas mudanças sociais que vêm ocorrendo, nós

educadores devemos processar uma pedagogia que sirva ao sucesso, a inclusão social, que

prefere a “ética universal do ser humano”, como contrapartida a ética menor do mercado,

excludente e perversa. Portanto, a educação deve privilegiar o ser humano, a sua valorização e

a sua grande capacidade de pensar, criar e recriar o conhecimento como forma de se fortalecer

contra a exclusão social e a diminuição da pessoa humana.

A escola e todo o sistema educacional devem se empenhar para ajudar o aluno a

experimentar o sucesso. Afinal de contas, aprendemos as coisas e não as esquecemos mais, se

são significativas. Uma pedagogia voltada para sucesso nos mostra que o aluno busca

aprender através de ações afirmativas, que reforcem nele, a autoconfiança e a certeza de que

sabe e que pode saber mais.

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O aluno vai à escola para aprender, a fim de melhor se capacitar para os desafios de

um mundo que exige cada vez mais competências e habilidades do sujeito. Aquele que

aprende vislumbra na escola uma das formas de apreender o conhecimento e as fantásticas

descobertas que a humanidade foi e écapaz de realizar, tornando-se, portanto, construtor de

novos saberes. Busca-se a escola como espaço privilegiado de reflexão acerca da realidade em

que vivemos, do mundo concreto que está a nossa volta. O poeta Johann Wolfgang Von

Goethe, afirmou que “quem, de três milênios, não é capaz de se dar conta, vive na sombra, à

mercê dos dias, do tempo” (GAARDER, 1995, p.8). O processo educativo deve privilegiar a

construção de conhecimento, a aprendizagem, a autonomia, o desenvolvimento de

competências, capacidades e de uma consciência crítica da realidade na qual está inserido o

educando. Para Perrenoud (1999, p.07) competências são “uma capacidade de agir

eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem

limitar-se a eles.”

Edgar Morin (2010, p. 9) ao propor a reforma do pensamento e, portanto, a reforma do

ensino, defende que a missão desse ensino é transmitir não o mero saber, mas uma cultura que

permita compreender nossa condição e nos ajude a viver, e que favoreça, ao mesmo tempo,

um modo de pensar aberto e livre.

O educador Chico Alencar (2003, p. 99) afirma que a assim como a História, o próprio

ser humano é uma possibilidade. Citando Hannah Arendt, importante filósofa do século XX,

ele defende que o ato educativo resume-se em humanizar o ser humano, tarefa que não é

simples. Segundo Alencar, existem saberes básicos para o educador humanista, a saber:

compreender a realidade, compreender a realidade para quem quer transformá-la e acreditar

nos grupos e classes como sujeitos da história. Ele compreende quemagistério é missão,

profissão, luta econstrução.

O alcance, o significado e as possibilidades do diálogo filosófico na educação

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Através desse estudo pretendemos investigar o alcance, o significado e as

possibilidades do diálogo filosófico na educação. A filosofia, que se traduz em amor a

sabedoria, vem sendo cada vez mais valorizada, sobretudo no currículo do Ensino

Fundamental e Médio das escolas brasileiras. Foi nesse sentido que o Conselho Nacional de

Educação (CNE) aprovou o Parecer CNE/CEB nº 38/2006, que estabelece a inclusão

obrigatória das disciplinas de Filosofia e Sociologia no currículo do Ensino Médio

A análise das propostas político-pedagógicas das escolas públicas brasileiras, em

qualquer uma das esferas administrativas, apontama perspectiva de propiciar a formação de

pessoas que conseguem interagir de forma dinâmica com o mundo, tentado perceber os nexos

relacionais e explicativos para o fatos e acontecimentos que ocorrem a sua volta.

A educação é socialmente referenciada.Trata-se de uma prática social inserida na

dinâmica da sociedade como um todo. A prática educativa é intencional, sendo que os seus

fundamentos, objetivos e significados são construídos pelo conjunto da sociedade. O fazer

educativo é um ato de coragem, de amor, de entrega e sobretudo, um eterno aprender e

reaprender a palavra e o mundo.

O professor Ernani Maria de Fiori ao prefaciar o livro Pedagogia do Oprimido

(1987)afirma que pensar o mundo é julgá-lo. Fiori (1987) diz que o educando para assumir

responsavelmente a sua missão de homem, há de aprender a dizer a sua palavra, pois com ela,

constitui a si mesmo e a comunhão humana em que se constitui, além de instaurar o mundo

em que se humaniza, humanizando-o. Coadunando com Freire (1987), não cremos numa

educação redentora, capaz de transformar o mundo, a sociedade, o poder instituído. Acreditar

que a educação sozinha tudo pode fazer, é no fundo, uma grande ingenuidade. Porém, se ela

não pode fazer tudo, não significa que nada pode fazer. A educação pode de algum modo

ajudar a recuperar a humanidade perdida de homens e mulheres coisificados pelas condições

sociais e econômicas da sociedade que se esforça para impedi-los de realizar a sua vocação

ontológica de “ser mais”. Assim, se a sociedade quer transformar homens em coisas, o ato

educativo representa uma boa oportunidade de iniciar um processo de humanização que lhes

devolvaa condição de homens e mulheres autênticos.

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Pensar a educação desta forma e com o propósito supracitado, significa não separá-la

da política e da sociedade. Carlos Rodrigues Brandão, em seu livro O que é educação (2004,

p.7) afirma categoricamente que ninguém “escapa” da educação. Esta tese sublinha e

confirma a importância, a relevância desta prática social. Todavia, devemos ter clareza quanto

à impossibilidade de haver neutralidade na educação. Ela pode servir tanto para oprimir como

para libertar. Pode agir em conformidade com o poder e manutenção do status quo, mas pode

e deve ajudar a criar o contra poder e derrubar a ordem social vigente, injusta com o povo.

Essa perspectiva coloca a educação como um fazer que busca a emancipação e o

empoderamento dos sujeitos, sobretudo, aqueles que historicamente ficaram à margem da

sociedade, do ponto de vista econômico, social, políticoe cultural.

Libâneo (2003, p. 118) afirma que o papel da educação no contexto da sociedade

técnico-informacional em que vivemos, deve assegurar um processo formativo que privilegie

a formação para a cidadania, para a ética e para o mercado de trabalho. Ética e cidadania, são,

portanto, dois componentes fundamentais, sobretudo no que diz respeito à preparação de

pessoas atuantes no contexto societário.

Marilena Chauí ao citar Merleau-Ponty (1997, p.18) diz que “a filosofia é um

despertar para ver e mudar nosso mundo”. Essa afirmação coaduna perfeitamente com as

proposições desse estudo, que pretende investigar o alcance, o significado e as possibilidades

do diálogo filosófico na educação.

Para Gadotti (1981) a filosofia vai ao “fundo das coisas”, procura a ordem, o sentido

das coisas, ela pretende penetrar as coisas até a sua raiz.Para ele, a tarefa da filosofia da

educação consiste em desvelar, desnudar a condição humana e propor vias de libertação para

o ser humano. É nesta linha, portanto, que queremos inserir o diálogo filosófico na educação.

Na acepção de Luckesi (1994, p. 31), “a educação é uma prática humana direcionada

por uma determinada concepção teórica”. Para esse autor, a prática pedagógica se articula

com uma pedagogia. Ao falar de filosofia, Luckesi ( 1994, p. 22) sustenta que a mesma “se

traduz num corpo de conhecimento, constituído a partir de um esforço que o ser humano vem

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fazendo no sentido de compreender o mundo e dar-lhe um sentido, um significado

compreensivo”

Para Aranha e Martins (1996, p.75) “é a filosofia que dá o distanciamento para a

avaliação dos fundamentos dos atos humanos e dos a que eles se destinam”.A filosofia, de

acordo com Severino (1994, p.30) “é uma forma de saber e representa um esforço de

conhecimento, de reflexão, de esclarecimento, que os homens desenvolvem com o objetivo de

compreender a significação de sua existência”. Trata-se, portanto, de uma busca sistemática,

insistente, profunda e radical acerca da existência humana. Corroborando com as ideias

supracitadas Aranha (1996, p. 108) afirma que a filosofia é uma “reflexão radical, rigorosa e

de conjunto que se faz a partir dos problemas propostos pelo nosso existir, é inevitável que

entre esses problemas estejam os que se referem à educação”. Nesse sentido, o filósofo deve

acompanhar de forma reflexiva e critica, a ação pedagógica.

Os vários conceitos e definições tanto de filosofia, como de educação, aqui

apresentados, demonstram as conexões e interelações entre esses dois campos do

conhecimento humano, apontando as possibilidades de ambos num processo de formação da

consciência crítica em práticas educativas situadas. Na visão de Luckesi(1994, p.31),

As relações entre Educação e Filosofia parecem quase “naturais”. Enquanto a educação trabalha com o desenvolvimento dos jovens e das novasgerações de uma sociedade, a filosofia é a reflexão sobre o que e como devem ser ou desenvolver estes jovens e esta sociedade”

O diálogo filosófico na educação, pode significar a instauração de um processo

permanente de investigação, de crítica, de debate, de discussão em torno do pensar e do agir

de homens e mulheres historicamente e socialmente situados, que poderá ter como

consequência a formação de pessoas capazes de se “espantar” e de se “admirar”com o mundo

em que vivem, construindo, assim, o que chamamos de atitude filosófica, ou seja, um exame

profundo acerca do tudo que ocorre ao nosso redor.

Mediação educativa e formação da consciência crítica

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O educador imbuído da tarefa de formar a consciência crítica, de propiciar que homens

e mulheres leiam o mundo, deve ser comprometido com a vida, com os seres humanos

concretos com quais atua, enfim com a realidade da qual faz parte. É preciso conhecê-la,

analisá-la criticamente, para que se tenha o desejo de transformá-la e possibilitar que outras

pessoas tenham o mesmo desejo. Mas o educador dito progressista, desejoso por criar as

condições para que seus educandos formem um consciência crítica, tem necessariamente que

apresentar uma determinada concepção de mundo, da história, de ser humano e uma postura

diante do mundo.

Agir no sentido de criar uma consciência crítica, de possibilitar e incentivar uma

leitura do mundo por parte dos educandos e educadores, exige uma visão de mundo como

uma “realidade em continua transformação”, em constante movimento. O educador

compromissado com a mudança concebe a História como campo de possibilidades. Crer que

ela é determinada e que segue um ritmo pré-estabelecido é castrar a ação educativa no

seucomeço.

A construção da educação emancipadora, transformadora e libertadora, exige uma

postura diante do mundo por parte do educador. Tal postura se caracteriza por uma atitude

questionadora do mundo, de admiração e de espanto diante do mundo. Devemos deixar a pura

contemplação do mundo, a análise superficial do mesmo, para buscarmos as suas raízes, o seu

verdadeiro sentido, as suas contradições internas.

Deste modo, o educador realmente compromissado com a existência, deve se tornar

um sujeito inquiridor do mundo, conhecedor de suas formas de organização, sejam elas,

políticas, econômicas, sociais ou culturais. Diante do mundo é sempre importante fazermos a

seguinte pergunta: que é isto - o mundo, a educação, a sociedade, a fome, a miséria, a

opulência, a sociedade dividida em classes sociais? Essas perguntas evidentemente não nos

fornecem as respostas ou todas as respostas, contudo, possibilitam que trilhemos um caminho,

ainda que não seja o único, na busca de outro caminho.

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Acreditamos que o educador ao se lançar no caminho da formação da consciência

críticadeve sair de sua “imersão no mundo”, deixar a visão ingênua que tem do mesmo, visão

esta que a ideologia dominante busca constantemente petrificar na consciência de homens e

mulheres. Freire (2000, p. 115) afirmaque “mudar é difícil, mas é possível”. Além disso,

éfundamental ao educadorprogressista, se engajar na prática de uma pedagogia crítica.

O educador consciente se reconhece numa sociedade dividida em classes sociais. Sabe

que uma classe detentora do poder, a classe dominante, tenta manter o poder a todo custo e

que a classe trabalhadora necessita se capacitar, organizar, para transformar a sociedade e as

suas reais condições de vida. Ter consciência de que o fazer educativo não é neutro, pois

poderá direcionar a sua ação educativa tanto para a transformação como para a manutenção

do status quo, sendo por isso mesmo, uma ação também política.

O educador com a firme decisão de levar adiante o processo de mudança social e

educacional é dotado de consciência individual e coletiva, disposto a colaborar no processo de

construção de uma sociedade nova, no qual todos tenham acesso aos bens materiais e

espirituais, onde possam participar e decidir os rumos da coletividade.

O educador democrático, progressista, ao se preparar para fazer a mediação do

educando com o conhecimento, ao sistematizar a sua intervenção pedagógica, deve ter clareza

político-pedagógica de que são os educandos e o seu contexto, que precisam ser ouvidos, pois

deles dependerá a legitimidade da prática educativa.

Concebemos o educador como um mediador, jamais como aquele que se comporta

como um profeta capaz de substituir a capacidade do educando de aprender, de produzir

novos conhecimentos e falar do seu mundo. Mas ser mediador entre o educando e o mundo e

com os conhecimentos historicamente acumulados pela humanidade não significa que o

educador possa se eximir da responsabilidade de pesquisar, de se informar, alargar mais o

conhecimento, bem como a sua competência científica. Segundo Luckesi (1994, p. 115):

O educador é aquele que, tendo adquirido o nível de cultura necessário para o desempenho de sua atividade, dá direção ao ensino e a aprendizagem. Ele assume o papel de mediador entre a cultura elaborada, acumulada e em processo de acumulação pela humanidade, e o educando.

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Os educandos além do conhecimento que trazem consigo ao ingressarem na escola,

com o passar do tempo vão avançando cada vez mais, se apropriando de mais

conhecimentos,tornando-se críticos, atentos, trazendo assuntos, noticias e temas para serem

estudados. Ora, essa postura ativa do educando serve como retroalimentador da prática

docente. Defendemos uma concepção e prática de educação que considera relevante a troca de

conhecimentos e experiências. Portanto, não pode o educador prescindir da pesquisa, do

estudo sério, da devida preparação científica para que possa cumprir o seu papel.

Educador e educando ativos e curiosos, sabem que não sabem tudo, mas que não

ignoram tudo e sabem ainda, que podem saber mais. Guiados pela curiosidade epistemológica

e pelo desejo de saber sempre mais, esses sujeitos cognoscentes, sujeitos conhecedores do

objeto, se provocam mutuamente no sentido de avançar cada vez mais no desnudamento do

mundo.

Acreditamos que uma das coisas mais bonitas deste mundo, é ver um ser humano

resgatando o seu sentimento de cidadania, aprendendo a dizer a sua palavra, através da qual

pode comunicar aos outros que já não aceita ser tratado como “coisa”, um objeto passivo da

ação inescrupulosa daqueles que desejam ver os seus semelhantes sempre na condição de

oprimidos.

Seres humanos altivos, proativos, cabeça erguida, falando e escrevendo sem medo,

compreendendo tudo o que passa a sua volta, relacionando, analisando e principalmente se

pronunciando, opinando, aprendendo que a nós cabe o direito da decisão. Afinal, somos seres

de decisão e por isso não podemos permitir que sempre alguém decida por nós. Portanto, a

reconquista de si, é a maior conquista que os educandos podem conseguir.

Cada educando tem uma forma diferente de avançar, de aprender, de desenvolver a

sua percepção de mundo e esse fator deve ser respeitado. O educador crítico, compromissado,

ao fazer a sua leitura de mundo e da palavra, se engaja no processo de transformação da

realidade. É importante falar sobre os seus sonhos, sua postura político-pedagógica, sua

indignação frente a tantas injustiças sócio-político-econômicas.

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O educador deve orientar o seu fazer pedagógico no sentido de que também os

educandos tenham a oportunidade de ler o mundo e a palavra, para que em comunhão com

todos os oprimidos da terra, sintam-se comprometidos com a construção de um projeto novo

para a nossa sociedade na qual todos sejam, sem distinção, tratados com dignidade e sejam

valorizados como seres humanos.

A prática educativa deve ser permeada por uma concepção de educação libertadora, na

qual educação e cidadania estejam interelacionadas, sendo o processo de ensino-

aprendizagem também, direcionado para a conscientização do educando e relação ao seu

contexto.O processo educativo deve voltar-se para a transformação de uma sociedade que se

apresenta marcada por muitas injustiças e desigualdades sociais.

Sabemos que a educação não pode por si só modificar as estruturas de uma sociedade,

pois pensar assim evidenciaria muita ingenuidade. Todavia, o ato educativo contribui e

impulsiona a gestação e a concretização de um novo projeto para a sociedade. “Se a educação

não pode tudo, alguma coisa fundamental a educação pode” (FREIRE, 1996).

Os educandos precisam ser encarados desde o princípio como pessoas importantes e

capazes de conhecer e de produzir conhecimento.Devem ter a certeza de que podem realizar

coisas muito além do que imaginam. Eles devem ser encorajados a aprender com liberdade,

responsabilidade, altivez e fundamentalmente com esperança. Disso tudo, nasce a

criatividade, a curiosidade, o risco de aprender, de errar. O educando consciente das suas

possibilidades, das dificuldades, dos seus avanços e retrocessos, é justamente aquele que mais

aprende. Por isso mesmo podem ser chamados de sujeitos do processo de ensino-

aprendizagem.

A educação que pensamos envolve-se com as situações significativas presentes no

contexto social do educando. Era preciso aprender sem se isolar do mundo. Ler a palavra e o

mundo significa uma tomada de consciência sobre a existência, sobre os problemas do

cotidiano. O ato educativo se aproxima de uma atitude filosófica, onde as perguntas são

importantes, pois é perguntado sobre as coisas do mundo, que vamos encontrando respostas e

mais perguntas vão surgindo.

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Segundo Freire, a educação pode de algum modo ajudar a recuperar a humanidade

perdida de homens e mulheres coisificados pelas condições sociais e econômicas da sociedade

que se esforça para impedi-los de realizar a sua vocação ontológica de “ser mais”. Assim, se a

sociedade quer transformar homens em coisas, façamos do nosso ato educativo uma boa

oportunidade de iniciar um processo de humanização que lhes devolva a condição de homens

e mulheres autênticos.

Por fim, sem a clareza político-pedagógica acerca da função do educador, do

significado do ato educativo, sem o desvelamento do mundo, sem desnudá-lo, vemos uma

certa dificuldade para o surgimento de educadores encorajados a dar a sua parcela de

contribuição para criar as bases necessárias para que hoje pessoas transformadas “em coisas”

recuperem a sua humanidade perdida, retomando a capacidade de “ser mais”.

Sem uma postura crítica, questionadora, ativa e propositiva diante do mundo, nossas

ações se assemelham a de sonâmbulos que não sabem o que fazem.

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ATEORIA CRÍTICA DE ADORNO E OS DESAFIOS DO PENSAR: DIRETRIZES PARA UMA EDUCAÇÃO EMANCIPATÓRIA1

Givanildo Ivanildo da Silva2 Maria Betânia do Nascimento Santiago3

UFPE Resumo: A formação humana constitui-se em tarefa fundamental à educação escolar, e questão da qual se ocupa a filosofia da educação, que reconhece a centralidade da problemática da ética e evidencia os significativos desafios que se interpõe à essa experiência no espaço escolar. Nessa direção, o trabalho se ocupa com a compreensão do sentido da formação a partir da ideia de esclarecimento anunciada pela teoria crítica de Adorno. Assumindo esse referencial, procura delinear os caminhos apontados por esse pensador no que pese ao sentido da educação e aos caminhos a serem trilhados na formação indivíduo.Para Adorno é finalidade da educação proporcionar a experiência de um pensar que conduza à autorreflexão crítica, que expressa a emancipação anunciada pelo esclarecimento, como possibilidade de desbarbarização da sociedade. Nesse contexto, torna-se uma exigência à escola assumir o papel formativo, considerando a dialética que marca essa experiência, pois é tarefa da educação preparar os jovens para se orientar no mundo, mas também alimentar uma atitude de resistência, de compromisso com o processo de transformação, que pressupõe a vivência da autonomia do pensar. Palavras-chave: Adorno. Desbarbarização. Esclarecimento. Formação Humana.

Introdução

A formação humana constitui-se em tarefa fundamental à educação escolar, e questão

da qual se ocupa a filosofia da educação, que reconhece a centralidade da problemática da

ética e evidencia os desafios que se interpõe à essa experiência na atualidade. Essa

problemática nos remete a questões mais amplas, relacionadas à própria configuração do

mundo em que vivemos. Um dos pensadores que oferece uma significativa leitura dessa

realidade, assim como indicativos para o enfrentamento dos desafios que se interpõem à

formação é o filósofo e sociólogo Theodor Adorno (1903-1969). Na obra Dialética do

Esclarecimento (1985), escrita em parceria com Horkheimer (1895-1973), ele apresenta uma

1 O trabalho vincula-se à pesquisa Ética, Direitos Humanos e Formação: Sentidos de uma Educação Integral

no Contexto das Escolas de Referência do Agreste Pernambucano, coordenada pela Prof. Dra. Maria Betânia do Nascimento Santiago.

2 Graduando em Pedagogia pela Universidade Federal de Pernambuco – [email protected]. 3 Professora da Universidade Federal de Pernambuco. Graduada em Filosofia e Doutora em Educação –

[email protected].

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crítica à racionalidade que impera na sociedade moderna, abordando de maneira pontual os

limites que se evidenciam com a Indústria Cultural, com a semicultura, cujo desdobramento é

o processo de semiformação dos sujeitos. Tal leitura revela como a consciência dos sujeitos é

“adestrada” pela sociedade.

Considerando essa realidade, Adorno assinala que o grande problema da educação é o

fato de ela está sendo desviada da sua principal finalidade, que é promover caminhos para o

desenvolvimento da plena capacidade de reflexão e de pensamento. Quanto a isso, o alerta é

que a instituição escolar tem se tornado instrumento da indústria cultural, que transformou a

educação em um produto da sociedade mercadológica, na qual a formação também está

primordialmente direcionada a uma demanda exigida pelo sistema e se configura como uma

“semiformação”, onde o indivíduo é levado ao aprimoramento de habilidades e competências.

Dessa forma, o trabalho pedagógico da escola tende a centrar-se predominantemente no

direcionamento para consecução dos resultados esperados em exames e vestibulares.

Ante o quadro anunciado, cabe a exigência de uma formação que se volte para a

realidade propriamente humana. Dentre esses aspectos, destaca-se a centralidade do pensar, e

o desafio de que ele conduza à emancipação da consciência, por meio de uma educação para a

autorreflexão crítica (ADORNO, 1995).É nessa perspectiva que se situa o conceito de

consciência, cuja construção decorre da mediação de dois direcionamentos opostos: “como

meio de adesão ao mundo da cultura administrada e como seu contraponto, qual seja, a

possibilidade de crítica e consequente transformação da sociedade existente” (OLIVEIRA,

2005, p. 319). Adorno (1985) afirma que a sociedade está apenas interessada em atender ao

capital, sendo indiferente aos interesses humanos. Tal realidade configura um progresso da

dominação que transformou e aprisionou a consciência, através de uma cultura

industrializada, uma “semicultura”, que retirou do indivíduo a capacidade de pensar por si

próprio, de buscar relações de diálogo com o outro, de se constituir como sujeito emancipado.

A crítica de Adorno à sociedade encontra-se diretamente relacionada aos

desdobramentos da semicultura e dos desafios que se apresentam à educação nesse contexto,

ante o quadro de semiformação. Dessa forma, ele aponta para os limites da experiência

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formativa e denuncia uma educação que não trata o próximo como igual, uma educação do

“consciente coisificado” (PUCCI, 2008, p. 133). A leitura revela o quadro de muitas

instituições escolares, que tendem a direcionar os seus olhares para a constituição de

habilidades, secundarizando a formação do indivíduo, de sujeitos éticos e orientados por

valores.

Essa realidade evidencia uma problemática fundamental à formação humana, que

Adorno tematiza ao reconhecer o duplo caráter da educação, que “traz dentro de si uma

ambiguidade: ela é ao mesmo tempo adaptação e autonomia” (PUCCI, 2008, p. 138). Isso

implica em reconhecer a existência desses dois aspectos no mesmo sistema educativo: a

adaptação, pois é preciso educa-los para que consigam viver em sociedade; e uma educação

para a resistência, a partir da qual é possível formar seres pensantes, autônomos, que podem

realizar uma reflexão do que está posto e decidir o que fazer ante a realidade que se impõe.

Considerando tais direcionamentos, o artigo busca destacar a relevância da formação

humana no contexto atual, caracterizando a problemática a partir da ideia de esclarecimento

discutida por Adorno. Tendo como referência esse ideal de esclarecimento, procura-se

delinear os caminhos apontados pelo filósofo em sua teoria crítica sobre o direcionamento que

a educação deve assumir para a formação de indivíduos capazes de pensar, de exercício

crítico em relação à realidade e que vivenciem essa criticidade como autorreflexão. Tais

direcionamentos expressam a emancipação do pensar, como possibilidade de desbarbarização

da sociedade e finalidade da educação.

O trabalho resulta do diálogo com as obras de Adorno – Dialética do Esclarecimento

(1985)e Educação e Emancipação (1995) – que mais especificamente se ocupam com a

problemática em destaque. Esse estudo se vincula à pesquisa “Ética, Direitos Humanos e

Formação: Sentidos de uma Educação Integral no Contexto das Escolas de Referência do

Agreste Pernambucano”, coordenada pela Prof. Dra. Maria Betânia Santiago4. Elese ancora

4O vínculo à referida pesquisa se constituiu como atividade complementar da Bolsa de Manutenção Acadêmica.

De tal experiência resultou o Projeto de Pesquisa na modalidade iniciação científica, intitulado Ética, Consciência e Formação Humana: sentidos de uma Educação Integral e a perspectiva da Escola de Referência de Pernambuco aprovado no Pibic/CNPq deste ano (2015).

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numa pesquisa bibliográfica, a partir da qual se buscou aprofundar questões que orientam essa

ação, considerando-as segundo o referencial da teoria crítica de Adorno. Dessa forma, o

trabalho está estruturado em duas partes: a primeira aborda o conceito de esclarecimento na

perspectiva de Adorno e Horkheimer, entendendo-o como um fator essencial à formação

humana do indivíduo; a segunda parte do texto aponta como o esclarecimento torna-se uma

via para a desbarbarização da sociedade, caracterizando o significado da educação no

enfrentamento da racionalidade instrumental. Por fim, apresentamos nas considerações finais,

alguns destaques a essa reflexão, considerando a problemática da formação humana e da

desbarbarização, refletindo sobre a prática educativa nesse contexto.

Esclarecimento na perspectiva de Adorno e Horkheimer

Segundo Adorno e Horkheimer, o esclarecimento nasce com a pretensão de libertar os

homens, de livrá-los do medo e da dependência, tornando-os donos de si. Esse esclarecimento

resulta no processo de “desencantamento do mundo” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.

17), onde os mitos elaborados pela sociedade seriam destruídos e a imaginação daria lugar ao

saber. Nessa perspectiva, Bacon, considerado o “pai da filosofia experimental”, aponta alguns

comportamentos humanos – a exemplo da credulidade sem questionar, a aversão à dúvida –

que impediram que acontecesse o casamento entre entendimento humano e a natureza das

coisas, de alcançar o esclarecimento. Contudo, a partir do momento que o homem não

questiona o que lhe é colocado como conhecimento, ele perde sua autonomia de pensar e

refletir, guiando-se pelas ideologias e mitos incorporados no sistema social. A ausência de

articulação entre o entendimento humano e a natureza das coisas, assinala que, atrelado aos

mitos, o homem se abstém de um pensar reflexivo e se conforma com o que lhe é colocado.

Limita-se a aceitar as concepções, sem indagar sobre a veracidade delas, ou refletir e

construindo sua própria ideia, produzindo assim, a partir da autonomia de pensar por si, um

novo conhecimento sobre o fato.

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O homem tem a sua superioridade afirmada no saber, algo que não pode ser comprado,

nem dominado pelo poder do rei e sua vontade real, tornando-o, em sua essência,

democrático, pois como afirma ele: “não conhece barreira alguma, nem na escravidão da

criatura, nem na complacência em face dos senhores do mundo”, reconhecem Adorno e

Horkheimer (1985, p. 18). Dentro do saber reside a técnica, que visa ao método e a utilização

do trabalho de outros. Essa técnica serviria para que os homens aprendam da natureza a forma

de usá-la para dominá-la e também aos homens. Nessa relação com o saber, poder e

conhecimento tornam-se sinônimos. No entanto, não é a “verdade” que importa aos homens,

mas sim o procedimento eficaz, considerando que este iria promover descobertas que iriam

melhorar e auxiliar a vidas dos sujeitos. Aí está apontado o principal objetivo da ciência. Com

esse direcionamento dado à ciência moderna, o homem renunciou ao sentido, tendo

substituído o conceito pela fórmula, a causa pela regra e pela probabilidade. Assim, ele vê-se

diante de um pensamento positivo, marcado pela busca de uma ciência esclarecida pela razão

empirista, onde a fórmula e a probabilidade são instrumentos para um saber que se constitui

através da experiência.

O esclarecimento desmistifica os mitos que permeiam a sociedade antes da nova

ciência. Antes contrário às pretensões de uma verdade universal, vendo-a como superstição,

converte-se em novo mito e a racionalidade que o caracteriza torna-o totalitário. Tal

direcionamento resulta do fato de o esclarecimento reconhecer como ser e acontecer somente

aquilo que se deixa captar pela unidade. Sendo assim, o ponto principal do esclarecimento

seria um sistema que pudesse deduzir todas as coisas. Esse pensamento unitário orienta-se

pela a lógica formal e a pela ideia do equacionamento do pensamento, expressando o anseio

pela desmitologização, pelo qual o número se tornou o referencial do esclarecimento. Essa é a

lógica que rege a sociedade burguesa, marcada pela equivalência unitária. Nela, tudo se traduz

e é explicado pela racionalidade, pelos números, e o que não pode ser explicado dessa forma,

é considerado ilusão.

Assim, compreende-se a afirmação de que o esclarecimento, que nasce com finalidade

emancipar o sujeito e torna-los livres, assume características mais disciplinares,

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transformando-se em mito; o conhecimento se converte em ciência positiva, que irá definir

que tipos de conhecimentos são válidos e como esse conhecimento são validados. Nas

palavras de Adorno e Horkheimer (1985, p. 21) O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-os na medida em que pode manipulá-los. O homem de ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las. É assim que seu em-si torna para ele. Nessa metamorfose, a essência das coisas revela-se como sempre a mesma, como substrato da dominação.

Ao apontar o esclarecimento como “ditador”, os autores revelam uma forte

característica do positivismo. Para melhor compreender o que eles afirmam, podemos

imaginar o positivismo como uma “linha de testes de controle de qualidade” do

conhecimento. Dessa forma, o saber precisa passar por “testes” para ser aprovado. Assim se

configura o método para a ciência positiva, que trata o saber como algo a ser testado e

comprovado. Isso revela a dualidade inerente ao esclarecimento, pois, se por um lado, o

homem tem o direito de pensar por si próprio, por outro lado, o conhecimento reconhecido

como verdadeiro é aquele que se pode provar através da experimentação.

A partir da análise de Adorno, vê-se como o esclarecimento, com o positivismo,

tomou uma forma distinta daquela anunciada. A princípio, ele busca proporcionar que o

individuo alcance sua emancipação enquanto sujeito autônomo, livre para construir seu

pensamento e reflexão sobre aquilo que está posto. Posteriormente, ele se converte num tipo

de conhecimento marcado pela certeza, invalidando todo pensar para além desse parâmetro.

Educação e emancipação: esclarecimento como via para a desbarbarização

Ante o cenário traçado, cabe destacar melhor seus desdobramentos na configuração do

mundo, e especialmente as consequências para a formação humana. Quanto a isso, Adorno

reconhece o papel desbarbarizador da educação na sociedade, levando-nos a indagar: a partir

de que aspectos ela deve trabalhar e com quais finalidades? Esses aspectos despontam da

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perspectiva anunciada pelo autor, que aborda a questão a partir de uma leitura constituída no

contexto pós segunda guerra mundial, durante o qual a barbárie foi vista e sentida de um

modo tão forte que deixou as marcas de sua destruição, tanto física quanto psicológica na

sociedade. Em tal contexto, o processo de desbarbarização se tornou a questão mais urgente a

ser resolvida. Com efeito, é preciso entender o que Adorno define como barbárie, e a partir de

um pequeno esboço, que posteriormente seria aprofundado:

Entendo por barbárie algo muito simples, ou seja, que, estando na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relação a sua própria civilização — e não apenas por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos termos correspondentes ao conceito de civilização, mas também por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda esta civilização venha a explodir, aliás uma tendência imanente que a caracteriza (ADORNO, 1995, p. 155).

Dessa forma, a barbárie é associada, ingenuamente, a agressividade primitiva, ou seja,

ao atraso cultural e cognitivo dos indivíduos. Adorno discorda dessa leitura e aponta para

outra situação de barbárie na sociedade, que assume características peculiares. Em um

contexto social de avanços tecnológicos e numa cultura elevada, como a da Alemanha, a

barbarização da sociedade aconteceu de forma eficaz por meio do adestramento do pensar, da

imposição de um sistema de ideologias próprias que dita regras de maneira sutil por meio de

diversos instrumentos sociais. Tomando como exemplo a educação alemã na década de 60,

Adorno (1995) destaca a importância da desbarbarização, assinalando que “tentativa de

superar a barbárie é decisiva para a sobrevivência da humanidade” (p. 156). Essa afirmação

leva em consideração as características dessa educação, que buscava impor valores de um

sistema dominante, fazendo com que suas concepções fossem perpetuadas a partir do sistema

educativo.

O primeiro passo para o processo de enfrentamento da barbárie seria coloca-la no

centro da consciência da sociedade. Tal experiência significaria uma mudança no pensamento

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dos sujeitos. Isso é pertinente, visto que a barbárie é imposta à sociedade de maneira sutil, por

meio da cultura, do processo educativo que a própria sociedade promove, mesmo que de

maneira indireta. Dessa forma, trazer a barbárie ao centro da consciência levaria no mínimo a

uma indagação do que ela é e um pensar mais atento aos fatos que contribuem para tal

manifestação.

Com uma leitura ancorada no referencial psicanalítico de Freud, nosso pensador

destaca os instintos de agressão, característica existente no processo de barbarização da

sociedade, como algo inerente ao ser humano. Esses instintos de agressão podem conduzir

tanto a barbárie, quanto a algo produtivo. Desse modo, o confronto pode se configurar como

via de enfrentamento e combate à barbárie, e principalmente, dentro do processo educativo

nas instituições escolares, talvez seja possível a existência de atos bárbaros. Nessa linha, a

afirmação de Adorno (1995, p. 158) explicita bem a questão: “Portanto, creio que na luta

contra a barbárie ou em sua eliminação existe um momento de revolta que poderia ele próprio

ser designado como bárbaro, se partíssemos de um conceito formal de humanidade”.

Um exemplo dessa questão pode ser encontrado na obra em questão – Educação e

Emancipação (ADORNO, 1995), ao relatar um caso no qual um grupo de jovens protestaram

contra o aumento da tarifa do transporte em Bremen, manifestação na qual ocorreram

momentos bárbaros. Esse tipo de ato não corresponde à barbárie que é apontada pelos autores

como mazela da sociedade. Tais protestos protagonizados pela juventude alemã, demostram

exatamente o contrário da barbárie sem sentido que é criticada por Adorno, pois resultam da

experiência de pensar dos jovens, que, como seres autônomos, expõem sua visão de mundo e

a insatisfação com o sistema que governava a sociedade daquela época.

Considerando essa questão, é necessário definir com mais clareza o que caracteriza a

barbárie a ser combatida pela experiência formativa. A partir do contexto educativo alemão,

Adorno (1995, p. 159-160) assim caracteriza a questão:

Suspeito que barbárie existe em toda parte em que há uma regressão à violência física primitiva, sem que haja uma vinculação transparente com objetivos racionais na sociedade, onde exista, portanto, a identificação com a erupção da violência física. Por outro lado, em circunstâncias que a violência

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conduz inclusive a situações bem constrangedoras em contextos transparentes para a geração de condições mais dignas, a violência não pode sem mais nem menos ser considerada como barbárie.

Para que tais reflexões produzam um impacto no mundo, de formar e realizar uma

mudança no processo de barbarização, elas precisam estar esclarecidas e firmadas em suas

finalidades humanas. Porque a reflexão por si só não garante o esclarecimento, indicado como

desbarbarização da educação, visto que “a reflexão pode servir tanto à dominação cega como

ao seu oposto. As reflexões precisam, portanto, ser transparentes em suas finalidades

humanas” (ADORNO, 1995, p. 161). Pode-se então afirmar que, para que o pensar reflexivo

assuma um caráter emancipatório, ele precisa se efetivar como práxis reflexiva. Mas, qual o

significado da práxis nesse contexto? O conceito de práxis pode ser definido como um

pensamento ou reflexão com uma finalidade específica e que, com esse pensamento colocado

em prática, é visada uma mudança tanto individualmente no sujeito de tal prática reflexiva e

pensada, quanto na sociedade de uma forma coletiva. Com isso, pode-se conceber que os atos

bárbaros dos jovens em protesto foram ações previamente pensadas, com finalidade e que

buscavam mudanças tanto para eles individualmente, quanto para a sociedade em geral.

Nessa perspectiva, Adorno (1995, p. 161) indaga: “como educar os jovens para que

efetivamente apliquem essas reflexões a objetivos humanos, ou seja, isso é factível para os

jovens?” Quanto a essa problemática, ele aponta aquilo que não deve ser aplicado como

educação para os jovens, tomando como exemplo o sistema educativo do seu país. A primeira

questão a ser levantada é a competição entre as crianças e também entre os jovens estimulada

nas escolas. Tal prática é considerada mais um elemento da educação para a barbárie, indo na

direção contrária a uma formação humana. A competição evidencia um ponto central ao ideal

educativo hegemônico, e orientado ao individualismo, algo que Adorno reconhece como

sendo contrário ao ser social e emancipado buscado pela desbarbarização da educação. A

competição, nesse contexto, serviria apenas para um aumento da eficiência de forma

desumanizadora. O sujeito é treinado para se tornar melhor que os outros, colocando o

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próximo numa posição inferior a sua, alimentando o conceito de desigualdade entre os

semelhantes.

É aqui que se diferencia a individualidade, defendida por Adorno, e o individualismo,

criticado por ele. A defesa da individualidade implica em reconhecer o homem com ser único,

singular, com suas especificidades, que se reconhece na semelhança com os outros, mas

principalmente na alteridade, entretanto não se vê superior a esses. Enquanto o

individualismo coloca na prática a expressão popular: “cada um por si”. Numa realidade onde

torna-se normal querer superar o outro, e que essa superação pode ser executada de toda

forma, mesmo que seja injustamente, o que vale é alcançar o objetivo esperado. Contudo, não

se trata aqui de condenar totalmente a competição, pois esse é um elemento característico da

sociedade em diversos âmbitos. O que está em questão é a forma como ela se constitui nas

instituições educativas.

Uma das principais causas da barbárie, apontada por Adorno é a falência da cultura.

No processo de construção da sociedade, a cultura dividiu os homens, principalmente segundo

as atividades laborativas. Nessa linha, ele destaca: “A cultura, que conforme sua própria

natureza promete tantas coisas, não cumpriu a sua promessa. Ela dividiu os homens. A

divisão mais importante é aquela entre o trabalho físico e o intelectual. Deste modo ela

subtraiu aos homens a confiança em si e na própria cultura” (ADORNO, 1995, p. 164).

Na medida em que a cultura não cumpre sua promessa de tornar a sociedade civilizada

e racional, a barbárie se impõe sutilmente e os indivíduos passam a dirigir a sua raiva contra o

próprio sistema. Para Adorno (1995), esse deslocamento da raiva é algo que levaria à

movimentação da consciência, tirando o sujeito da passividade. Essa saída da passividade

daria inicio ao processo de esclarecimento, visto que a passividade dos indivíduos é algo

esperado pelo sistema de educativo, onde as crianças e jovens são levados a obedecer sem

questionar, a se adaptar ao que é posto como modelo de sociedade sem nenhum movimento

de resistência.

Ora, a resistência é um componente do processo formativo, considerando em sua

perspectiva dialética. Se a adaptação, revela-se importante para que os jovens sejam

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orientados para a inserção no mundo existente, o reconhecimento da autonomia, evidencia a

questão da racionalidade, da emancipação do sujeito enquanto ser pensante. Essa segunda

torna-se mais relevante devido ao processo de adaptação que lhes é imposto desde a mais

tenra infância. É o que afirma Adorno ao vincular a importância da educação à realidade,

assinalando que ela muda historicamente, e quanto a isso destaca a tarefa de resistência que se

impõe aquele momento histórico: “A educação por meio da família, na medida em que é

consciente, por meio da escola, da universidade teria neste momento de conformismo

onipresente muito mais a tarefa de fortalecer a resistência do que de fortalecer a adaptação”

(ADORNO, 1995, p. 145). Nessa linha, caberia à educação escolar “intermediar uma

consciência da realidade”, para a qual não se pode aguardar a vida adulta, mas precisa ser

realizada na infância.

A realização de uma educação que consiga gerar essa vergonha nas pessoas, torna-se

uma exigência que esse processo educacional para o esclarecimento aconteça desde a mais

tenra idade. É preciso que a conscientização se inicie desde a pré-escola, tornando assim o

processo mais eficaz, pois tratará o esclarecimento antes mesmo que a barbarização seja

colocada para essas crianças. Com efeito, esse direcionamento está atrelado a outro, pois, para

que aconteça, é necessário a formação dos educadores que possam lidar com uma educação

para a adaptação, mas também para a resistência; que tenham condições de orientar a criança

e o jovem na sociedade a partir desses dois direcionamentos. Quanto a esse direcionamento à

experiência formativa, ainda estamos engatinhando, como assinala (cf. ADORNO, 1995, p.

166).

Outro aspecto apontado como causador do processo de barbarização é a autoridade

desmedida exercida pelos educadores. Ela impõe colocações sem sentido ou explicação,

tornando crianças e jovens obedientes e passivos à ordem estabelecida, sem nenhum tipo de

justificação convincente ou esclarecida. Nesse caso, combater essa autoridade sem

fundamentos é essencial para a desbarbarização, como explica Adorno (1995, p. 167): “a

dissolução de qualquer tipo de autoridade não esclarecida, principalmente na primeira

infância, constitui um dos pressupostos mais importantes para uma desbarbarização”. De fato,

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quando se impõe uma autoridade sem fundamentos para o sujeito, a mera atitude autoritária,

sem esclarecimento, ele vai apenas aprender a obedecer sem questionar o que lhe for colocado

na vida. Por isso, é relevante que ela se fundamente em valores reais e que o indivíduo

entenda o sentido da autoridade em sua vida, que o leve a refletir sobre suas ações.

Assim, combater a autoridade não esclarecida, conduzir ao sentimento de vergonha

perante os atos bárbaros, trabalhar com a criança desde a primeira infância, são alguns dos

aspectos fundamentais, apontados por Adorno, para que a educação conduza a um processo de

resistência contra a barbárie; que contribua para a emancipação e ao esclarecimento dos

sujeitos, para que estes consigam se reconhecer como seres pensantes, como sujeitos ativos na

sociedade. É importante que reconheçam que suas ações acarretam consequências que afetam

não apenas a eles, mas também aqueles que estão ao seu redor. Dessa forma, compreende-se

que a educação tem a tarefa de promover a individualidade juntamente com a sociabilidade,

no reconhecimento do outro como ser diferente de si, mas igual, uma vez que compartilham a

mesma condição de seres humanos.

Considerações finais

Diante do que foi exposto, podemos perceber que a finalidade da educação, o sentido

de educar são questões que já não estão claras, especialmente considerando o nosso contexto,

no qual a formação humana encontra-se vinculada a um processo educativo adaptador à uma

sociedade que foi perdendo de vista essa dimensão mais finalista da experiência educativa. É

frente a essa realidade que se coloca o desafio de a educação escolar assumir o papel

formativo, considerando a dialética que marca essa experiência

Isso significa ater-se ao processo de adaptação, considerando a exigência de

preparação do jovem para essa sociedade, aprendendo a conviver, estabelecer relações nela,

dentre as quais aquelas que o vinculam ao mundo do trabalho. Ou seja, é tarefa da educação

proporcionar as qualificações que permitam ao jovem orientar-se no mundo. Entretanto, ela

terá falhado com o ser humano, se apenas o preparar para se ajustar bem na sociedade, pois se

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ele acompanha somente a ideologia que está posta, está demasiadamente fadado à alienação.

Dessa forma, as instituições escolares têm como tarefa alimentar uma educação para a

resistência nesse jovem, comprometida com o processo de transformação, e que conduza o

indivíduo à vivência da autonomia do pensar, à autorreflexão crítica e, mesmo que ele se

encontre numa sociedade de massas, poderá refletir criticamente sobre essa realidade e atuar

nela de forma autônoma.

Essa transformação do sujeito através da educação para a resistência visa garantir a

individualidade do jovem. Individualidade difere do individualismo fomentado pelo modelo

capitalista de sociedade, uma vez que interligada ao pensamento de coletividade. É algo que

só se constitui pela relação com os outros, que se constrói na diferença, pela alteridade.

Assim, a escola tem a tarefa conduzir a experiência formativa do indivíduo enquanto ser

singular, mas em sociedade para uma maior autonomia e reconhecendo o seu próprio eu. A

partir desses caminhos a educação pode levar o sujeito ao esclarecimento.

Como foi visto, essa resistência pode se manifestar por meio de alguns atos bárbaros.

Diante de colocações impostas pelo sistema econômico, muitas vezes tais atos são necessários

para o enfrentamento das injustiças às quais estão submetidos. No entanto, esses atos não se

restringem apenas a agressividade e violência. Como ações previamente pensadas, que

possuem finalidades sociais, que não só estão ancoradas em pensamentos individuais, mas

que buscam ideais comuns para a melhoria da sociedade, são por isso expressão da resistência

anunciada por Adorno como parte do movimento dialético da educação, especialmente num

contexto onde a necessidade de uma educação para a resistência se mostra tão necessária.

Adorno não indica claramente os passos como e para onde a educação deve caminhar.

Mas apresenta os pontos principais que a educação deve evitar: ela não pode ser autoritária

nem opressora com o sujeito, nem deve se constituir pela ênfase na competição. Ela deve

promover a formação humana dos sujeitos, apontando caminhos que promovam ações que

visem a emancipação e a autonomia, para que assim o indivíduo possa refletir sobre si

mesmo.

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Assim, a escola vê-se diante de um grande desafio, que é a formação de jovens em um

contexto fortemente marcado pela conformação. Dentro de um sistema educativo que está

fadado a atender a uma demanda e formar mão de obra trabalhadora; contornar um sistema

educacional que a todo momento cobra resultados é extremamente difícil. Um sistema que

coloca demandas e metas a serem alcançadas, visando apenas a apropriação de habilidades e

competências para dar conta da necessidade de mão-de-obra trabalhadora, tornando mais

difícil a construção de uma educação humanizadora. Nesse contexto, enfrentar esse sistema de

racionalização instrumental e promover a construção do pensamento crítico e reflexivo, é uma

questão fundamental principal a uma educação emancipadora.

Referências

ADORNO, T. W. Educação e emancipação. Tradução Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. ADORNO, T. W.; HOKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. OLIVEIRA, C. P. F. A construção do conceito de consciência em Freud, Marx e Adorno.Inter-ação (Goiânia), Goiânia, v. 30, p. 305-329, 2005. PUCCI, Bruno; OLIVEIRA, N. R.; ZUIN, A. A. S. Adorno: o poder educativo do pensamento crítico. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

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UM ESBOÇO DA NOÇÃO DE AUTOCONHECIMENTO NAS PERSPECTIVAS FILOSÓFICA E EDUCACIONAL PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Jonathas GomesMoraes1 PPGED/UESB

Resumo: O presente texto tem por objetivo apresentar algumas perspectivas da noção de autoconhecimento a partir de concepções encontradas nas literaturas filosófica e educacional. A necessidade de interpor essas perspectivas se justifica, tendo em vista, que o autoconhecimento pode estar sofrendo um processo de esvaziamento conceitual, se distanciando da sua concepção epistêmica e das identidades historicamente construídas para se compreender os processos da subjetividade. Tal aspecto se percebe pelo fato de que são utilizadas diversas abordagens envolvendo a temática, sem uma análise mais profusa da sua epistemologia, justificando de que a crença no resgate da autoestima do professor, pela busca plena realização de si, seja a solução dos problemas enfrentados por esses profissionais no ambiente escolar. Palavras chave: Autoconhecimento. Circulação de ideias. Formação de professores.

Introdução

Extraímos a necessidade de problematizar a noção de autoconhecimento, dentro do

campo educacional, partindo de uma inquietação que tem por finalidade compreender o modo

com que o campo percebe esta temática, nas instâncias diretivas à formação de professores

dentro dos seus processos formativos no enlace com a sua subjetividade. As reflexões aqui

apresentadas fazem parte de uma pesquisa ainda em andamento2, contudo, servirá de aporte

epistemológico para pensarmos a nossa fundamentação teórica e as possibilidades de

compreender o tema dentro da discussão a ser desenvolvida.

Entretanto, no âmbito de uma análise mais cuidadosa a ser desenvolvida a posteriori, o

objetivo da pesquisa terá em vista investigar em que medida esta abordagem tende a

influenciar as literaturas direcionadas à formação de professores, trazendo a tona uma 1 Licenciado em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).Mestrando em

Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGed/UESB). E-mail: [email protected].

2 O texto aqui apresentado é parte de um projeto de dissertação de Mestrado ainda em desenvolvimento, vinculado ao Grupo de Pesquisas Sobre as Circulações de Ideias Pedagógicas (CIPED) da UESB, que visa compreender a circulação de ideias no campo educacional.

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discussão mais profusa no sentido de compreensão os processos de individualismo extremo,

subjacente à busca desenfreada pela realização emocional de si mesmo.

Para o alcance disso, encontramos pressupostos nos estudos de Cestari (2013), que tem

pesquisado a circulação de ideias na educação do Brasil. Concordando no sentido de que as

noções de autoconhecimento3tenham se esvaziado no contexto educacional, onde o sujeito é

posto diante de necessidades autoafirmativas da sua subjetividade, em que o mesmo deve

estar “afeitoa mobilidade identitária” (p. 131) na busca por um sentido de si, dentro do seu

contexto social no qual está inserido, adotando as autobiografias como um modelo teórico-

metodológico num sentido de construção existencial.

O processo de esvaziamento em questão se justifica pelo esgotamento metodológico

em que as pesquisas relacionadas às teorias sociais tenham sobreposto à necessidade de

participação dos sujeitos pesquisados na pesquisa, descrevendo os seus relatos das

experiências de vidas, favorecendo-se por uma maior diversidade de formas na descrição dos

dados, até o ponto de justificar a necessidade de resgate da identidade destes sujeitos

(CESTARI, 2013). Teremos em vista outra problemática que temos percebido, se refere ao

distanciamento das concepções epistêmicas historicamente construídas, concernentes a esta

temática, onde não se evidência os objetivos de compreensão do sujeito enquanto objeto do

conhecimento.

Desta forma, as noções de autoconhecimento que buscamos apresentar, a partir das

literaturas filosófica e educacional é parte da composição de uma fundamentação teórica, a

fim de compreender, de forma mais aprofundada a temática. Além de tomar esta como uma

perspectiva teórica e que nos sirva de pano de fundo para pensar a nossa nossas ações no

decorrer da pesquisa, podemos levar em conta uma perspectiva mais pessoalde pensar a nossa

relação consigo mesmo. Entretanto, as concepções aqui delineadas se apresentam para nós de

modo teórico e nos âmbitos das possibilidades, do que deve se tornar o sujeito para estar mais

3 O autor tem desenvolvido pesquisas no âmbito de compreender a circulação dos modismos no campo

educacional, apresentando as pesquisa autobiográficas como um exemplo de modismo enquanto ideia circulante e disseminada na educação, onde entendemos que a noção de autoconhecimento seja uma das possibilidades de abordagem da pesquisa autobiográfica.

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próximo da meta do autoconhecimento. Tendo em vista essa abordagem, esclarecemos que as

noções do autoconhecimento identificadas na literatura são obtidas dentro de diversas

conotações semânticas, a saber: conhecimento de si, autorrealização, automotivação,

consciência de si, experimentar-se a si mesmo, existência de si, entre outras.

Posto isto, e admitindo que o autoconhecimento dispõe de um percurso ao longo da

história, diante de um contexto epistêmico, na constituição do que se discute a respeito da

subjetividade, parte-se do princípio que, em certa medida, surge como um pressuposto na

tentativa de responder questões inerentes da individualidade enquanto existência humana. O

que nos faz pensar o modo com que o campo educacional se apropria do conceito de

autoconhecimento, onde, vigoram-se diversos aspectos associados às suas abordagens, o

conceituando quase como um método.

Um aspecto em especial e de interesse da pesquisa é a necessidade do sujeito resgatar

o sentido de si pela adoção de modelos que, usualmente, se apresentam como prescritivos.

Esse aspecto é reforçado pelas próprias demandas da subjetividade impostas por condições

concernentes ao meio em que os professores estão inseridos na contemporaneidade, que,

muitas vezes, tais abordagens têm por objetivo resgatar a sua autorrealização, a autoestima e a

motivação desses profissionais diante das dificuldades enfrentadas no ambiente escolar.

Para tanto, as reflexões apresentadas tomam como eixo norteador da sua a discussão a

circulação de ideias e como estas são disseminadas no campo educacional (CESTARI, 2013).

Essa perspectiva assume a preocupação de analisar a disseminação de uma ideia a partir do

pressuposto que uma ideia tende a assumir o centro das atenções de educadores e

pesquisadores em um dado momento. Para assumiressa perspectiva, partimos da premissa de

que a ideia em circulação adquire formas de interesse, legitimados pelos intelectuais do

campo educacional. Assim, a compreensão da circulação de ideias na educação pode tomar

como análise três contextos; o contexto de emergência que visa compreender a origem da

ideia, o contexto de recepção, de como ela é apreendida e o contexto de disseminação, visa

entender como se difunde a ideia (CESTARI, 2013, 2014).

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Entretanto, nesse primeiro momento apresentaremos um esboço do que percebemos

enquanto a origem do autoconhecimento no contexto ocidental. Para então, pensarmos seus

reflexos na formação de professores, a partir das perspectivas filosófica e educacional. Tendo

em vista que, ao buscarmos compreender a ideia de autoconhecimento, diante do seu

panorama histórico apresentado pelas literaturas filosófica e educacional, esta servirá de base

conceitual para pensarmos, posteriormente, o modo com que a ideia se dissemina em um

processo deesvaziamento conceitual, apresentado por abordagens prescritivas no âmbitoda

formação de professores, dando margem ao cenário do individualismo, solapada pela

superficialidade com que esses conceitos são disseminados.

A perspectiva do autoconhecimento na literatura filosófica4

Consideraremos, nesse primeiro momento, um delineamento epistêmico dentro da

literatura filosófica, a fim de compreendermos o sentido do autoconhecimento dentro do seu

contexto histórico. Podemos assumir, diante disso, que a noção de autoconhecimento tenha

surgido desde a perspectiva teórica filosófico do período socrático, que se evidencia a partir

do aforismo ‘conhece-te a ti mesmo’. Palavras essas contidas como inscrição no Templo de

Apolo em Delfos, que para Sócrates o ‘conhece-te a ti mesmo’ significava o conhecimento do

que aparece para mim e permanece relacionado à minha própria existência e, assim, posso

compreender a verdade. Sendo essa verdade considerada como absoluta e igual para todos os

homens, partindo do princípio de que a verdade da opinião de um homem revela-se para si e

para os outros (ARENDT, 2002).

Contribuindo a este entendimento, Adorno (2002) nos apresenta a síntese do ‘conhece-

te a ti mesmo’:

4 É importante salientar que as noções aqui apresentadas não esgotam sobremaneira as possibilidades de se

pensar o autoconhecimento a partir da literatura filosófica, muito menos as possibilidades de interpretações da temática, para aqueles autores citados ou não.

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[...] a posição de Sócrates como protréptica e encaminhadora, possa através da interpretação do ‘conhece-te a ti mesmo’ e do encontro, mediante o diálogo de si consigo próprio e com os outros, modos a partir dos quais se marca o nosso agir e o nosso ser, coloca esses modos como as razões de ser do todo [...] (ADORNO, 2002, p. 94).

Além disso, o autor diz que esse diálogo a ser feito consigo próprio se transforma em

Platão como que o motivo do ‘conhecer como recordar’, sendo essa a via seguida por Platão,

onde o homem teria que, mesmo a partir de dentro, transcender, “fixando modos ou

formaseternas em si, para além do homem.” (ADORNO, 2002, p.94).

Indo mais além, afirma que essa ação dentro do plano ético da dialética socrática,

derivaria a atuação de si num exercício de se libertar da passividade, das paixões, esforçando

a libertar-se de todos e de tudo indiferentemente. Ao reconhecer que para Sócrates no âmbito

da dimensão humana, não havendo qualquer fundamento moral, a solução se apresenta

através da consciência de si, em fazer o bem, cada um a seu modo, reconhecendo que

conhecendo as nossas possibilidades podemos transformar as relações humanas e essa

capacidade de se realizar plenamente a si e aos outros é, portanto, a virtude (ADORNO,

2002).

Em Santo Agostinho, entretanto, a noção de autoconhecimento surge (derivando essa

concepção da própria perspectiva socrática) com a ideia de conhecer a Deus, para o alcance

da sabedoria e da espiritualidade, atingindo um significado pleno ao regular o homem a essas

duas condições, afirmando que só através desses conhecimentos o homem reconhece quem

realmente é e a sua verdadeira condição no mundo (OLIVEIRA, 2012).

O conhecimento da verdade surge, portanto, diante do sentido da beatitude tratada em

Santo Agostinho, como condição essencial, pois é dela, a verdade, que o sentido beatificador

transforma a alma para que viva de acordo com sua verdadeira natureza, ou seja, o

conhecimento enquanto procura de si mesmo é no homem é um instinto inato conferido por

Deus a fim de reconduzi-lo à Sua direção (GILSON, 2007, p. 18-19).

O autoconhecimento, nesse ínterim, é contemplado em Santo Agostinho como um

“olhar retrospectivo sobre si mesmo”, é um instinto que nasce a partir de uma compreensão

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chamada falsa consciência [Grifo Nosso]. Este aspecto da falsa consciência se mostra no

momento em que o sujeito se considera saudável, mesmo estando doente5, transparecendo

diante da condição instintiva a necessidade de retomar o olhar para si repensando sua

condição diante de Deus (BRACHTENDORF, 2012, p. 71-72).

Já em Spinoza podemos observar uma análise mais crítica, a respeito dessa

perspectiva, em que a noção de autoconhecimento aparece em dois sentidos. Em um sentido

que podemos conotar a esta noção, se perfaz em sua argumentação ontologia dentro da ideia

de Deus ou Natureza, onde, essas concepções se sobrepõem no monismo substancial, ou seja,

só há uma única substância que se articulará às compreensões das leis naturais. Sendo que o

conhecer-se surge, diante da ideia de Deus, ou Natureza, como algo inerente à própria

existência enquanto Deus e é, por definição, uma substância dependente de si mesma para sua

existência6. O monismo substancial expressar-se-á enquanto Deus (Natureza) como uma

consciência que conhece a si mesmo, com capacidade de autogeração, alcançando sua alta

expressão na constituição das suas próprias leis (BENNETT, 2011, p. 92-93; EZCURDIA,

2008).

Um segundo sentido é quando Spinoza sustenta a ideia de que “a mente humana não

conhece o seu corpo, nem a existência de seu corpo, exceto à medida que ele é afetado por

coisa externas”, ou seja, seriam as coisas externas que causariam essa percepção, ou afecções

na mente, da existência do corpo. Sustenta, ademais, que a mente humana pode conhecer a si

mesma quando percebe as afecções do corpo, neste caso independente das causa externas,

pois a mente está buscando o conhecimento de si mesma, de forma não imediata e partindo de

si mesma na sua relação com o corpo (WILSON, 2011, p. 142-144).

Sobrepondo às questões até aqui apresentadas, Marques (2012), para todos os efeitos,

nos apresenta que dentro das várias possibilidades de se perceber o autoconhecimento na

literatura filosófica clássica, é possível que esta adote, de fato, uma variedade de dimensões,

quer seja nas perspectivas da filosofia empirista, seja na perspectiva racionalista, a 5 O estar doente aqui apreciado em Santo Agostinho é compreendido como doenças da alma [Grifo Nosso]. 6 Compreendemos que Deus, ou a Natureza, passa a existir em Spinoza enquanto manifestação da substância, a

partir do conhecimento que tem de si mesmo.

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abordagem, via de regra, se relaciona com as ideias de introspecção e reflexão. Contesta

(mesmo assumindo que essa possa ser uma posição errônea) que as primeiras concepções

epistêmicas, da ideia de autoconhecimento, se iniciam a partir de Descartes e continuando a

partir de Kant.

Afirma o autor que em Descartes o autoconhecimento manifesta-se como seu

paradigma clássico, mas é duramente criticado por Kant. Para tanto, o autor admite que na sua

perspectiva a noção de autoconhecimento assume proeminente representação em Locke e

Hume. Pois, é em Locke onde transparece uma conceituação clara do sentido de reflexão,

associando-o aos sentidos de introspecção e de autoconhecimento. Não podemos deixar de

citar aqui que o autor defende a tese de que o conhecimento de si, dado apenas pela

introspecção é relativamente pobre, por não levar em consideração as dimensões da estrutura

temporal da memória (MARQUES, 2012).

Contudo, a noção de autoconhecimento que melhor evidencia, a nosso ver, o projeto

de sujeito na busca pela compreensão reflexiva de si nas dimensões da subjetividade, e

satisfaz a compreensão do autoconhecimento no sentido de teorizá-lo, o aprofundado

enquanto ideia a ser posta em evidência diante do problema posto, é àquela encontrada em

Schopenhauer e Nietzsche.

Quando pensamos no projeto de sujeito enquanto objeto de conhecimento de si mesmo a

partir da frase ‘o mundo é minha representação’, Schopenhauer (2005) apresenta a proposição

num sentido de nos fazer pensar o que existe para o conhecimento, nos diz que é tão somente

a relação do sujeito com o objeto7, a partir da sua intuição e do modo com que o mundo se

torna representação. Afirma que tudo que é pertencente ao mundo é, inevitavelmente, para o

sujeito um estado de representação da sua existência. Além disso, ao tomar como referência

tudo àquilo que pode ser conhecido, o autor ainda nos posiciona diante da vontade[Grifo

Nosso] que tende a saltar quando o sujeito se põe em investigação mais aprofundada, numa

perspectiva abstrata, de si para consigo mesmo.

7 Considera todo objeto existente, incluindo o próprio corpo como um objeto da relação.

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Aprofundando um pouco essa discussão, Schopenhauer posiciona o sujeito como a

condição universal do conhecimento, onde todo objeto existe para seu conhecimento, todavia,

esse pressuposto só é possível quando o sujeito admite a sua necessidade de conhece, pois,

encontra-se no mundo na condição de busca do conhecer. Contudo, o sujeito que a tudo busca

conhecer, desconhece a si próprio. Neste sentido é posto que:

[...] todo conhecimento de um objeto propriamente dito, ou seja, de uma representação intuível no espaço, existe apenas para e pelo entendimento, logo, não antes, mas somente após o seu uso. Portanto, o corpo como objeto propriamente dito, ou seja, como representação intuível no espaço, só é conhecido, justamente como os demais objetos, de maneira mediata, pelo uso da lei de causalidade na ação de uma de suas partes sobre as outras [...] (SCHOPENHAUER, 2005, p.63-64).

Compreendemos nesse sentido, que para Schopenhauer tudo que é passível de ser

conhecido são pontos de partida da intuição do mundo para o sujeito, que a tudo conhece, mas

que, diante dessa premissa, o sujeito põe o mundo à sua vontade transformando-o enquanto

representação da sua intuição, mas desconhece a si mesmo como objeto a ser conhecido.

De certo modo, buscamos complementar essa compreensão junto à leitura de

Nietzsche que, ao seu estilo, sofre profunda influência de Schopenhauer. Nietzsche situa o

homem moderno em um cenário trágico da sua própria existência, que insatisfeito com a sua

condição no mundo, utiliza-se de estratégias para se distanciar dos problemas. Nietzsche

considera que a busca pelo conhecimento, de uma forma geral, é um caminho árduo para a

compreensão da existência em si, não é mais a busca por verdades, mas um encontro com

sinais[Grifo Nosso] na interpretação do próprio mundo do indivíduo.

Nesse aspecto, Nietzsche em A Gaia Ciência, evidencia a partir do excerto de que os

homens têm “pouca fé em si mesmos”, refletindo esse aspecto como uma “cegueira útil” ou

como um “obscurecimento parcial do espírito”, por não acreditar que o homem deseje olha

para si mesmo, com receio do que possa descobrir. Mas àqueles que assim a busca, desvenda

o véu do seu ceticismo diante do conhecimento, porém, quase nunca estão satisfeitos consigo

mesmos. Por esse aspecto, Nietzsche critica, em certa medida, a necessidade de conhecimento

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de si, enquanto um domínio de si próprio, pois, limitaria a liberdade do instinto, constituindo

um sujeito armado contra si mesmo e desconfiado quanto a sua moral, torna-se, assim, um

indivíduo pesado para si mesmo e para os outros (NIETZSCHE, 2008, p. 197).

Além disso, complementando essa dimensão discutida, podemos pensar no sentido em

que Nietzsche atribuíra a expressãoalém-do-homem, em que este é despertado pela vontade de

potência [Grifo Nosso]. Pois, quando a objetividade é adequada pela vontade na compreensão

da subjetividade, experimentar-se-ia a si mesmo, favorecendo a conquista da liberdade do

espírito e a ascensão cultural, além da capacidade de análise crítica da moralidade. Contudo,

afirma que esse fato não se efetiva, na conquista do eu, pelo caráter irresponsável do

indivíduo consigo mesmo por não reconhecer seus atos, ou contrapondo sua natureza pela

moralidade, isso configuraria um prejuízo para consigo mesmo (DE OLIVEIRA, 2009).

O autoconhecimento na perspectiva educacional

A perspectiva em que a noção de autoconhecimento é comumente abordada no campo

educacional é aquela direcionada às práticas pedagógicas e ao resgate da identidade

profissional do professor, como, da sua autoestima, e da autorrealização, partindo de

processos motivacionais. Desta forma, optamos por apresentar neste momento recortes de

algumas perspectivas que julgamos mais relevantes, no nosso intento, para compreender o

modo com que o campo educacional vem abordado a temática do autoconhecimento.

Essa forma de apropriação já vinha sendo descrita em Larrossa (1994), onde buscava

compreender a lógica em que os diversos dispositivos pedagógicos vinham construindo na

compreensão da relação do sujeito consigo mesmo. Algumas utilizações que o autor aponta

são aquelas nas quais as práticas pedagógicas se utilizavam para fazer essa mediação da

experiência de si mesmo, ditas tecnologias do eu como, a autorreflexão, as formas narrativas

(autoexpressão), autoavaliação, autocontrole, assim como autoconhecimento entre outras.

Concorda que dentro dessas possibilidades estariam implícitas tentativas de relação reflexiva

da pessoa consigo mesma e na busca de exercer poder sobre si mesmo. Afirmando, sobretudo

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que o discurso pedagógico atual tem sofrido influência da “Psicologia Social do

Desenvolvimento” (p. 39) em que o conceito de consciência de si se torna quase obrigatório e

posto quase como análise terapêutica8, onde as práticas pedagógicas tomam como princípio

normativo para o sujeito maduro a premissa de modificar-se pela autoconsciência.

Além disso, podemos observar uma perspectiva mais afirmativa de uma possibilidade

de aplicação dos preceitos do autoconhecimento em Santo (2007), no seu livro

Autoconhecimento na formação do educador, ao abordar a temática, o autor afirma que esta

perspectiva deva ser considerada uma necessidade para o educador, como o início do caminho

no seu processo educacional e na busca pela verdadeira identidade de educador, pois, justifica

que é ele, o educador, a base e o início da formação daqueles que serão as futuras gerações.

O mesmo autor (2012), em Desafios na formação do educador: retomando o ato de

educar, ao reconhecer o educador como a base do processo de formação dos educandos, diz

que ao haver um consenso na educação, quanto à necessidade da formação continuada, se faz

necessário o emprego de atividades que visem despertar o autoconhecimento para que o

conceito de professor [Grifo Nosso] possa transcender à perspectiva de educador. Sendo,

diante dessa premissa, que o professor se autorreconheça como educador, teria em vias de

convicção própria a capacidade de despertar o potencial criador presente em cada pessoa.

Haja vista, que o ser educador está além do ser professor e, assim, sugerindo que a formação

continuada seja direcionada para que mais professores se tornem educadores e que o

autoconhecimento faça parte da base dessa formação.

Todavia, em Soares (2007) pudemos perceber uma relação do autoconhecimento com

a perspectiva da transdisciplinaridade, aonde a autora nos apresenta a ideia, que vai um pouco

mais além daquela acima discutida, apresentando nessa relação uma busca existencial do

indivíduo de si para consigo mesmo, com o objetivo de desenvolver integralmente o indivíduo

dentro das esferas intelectual, psicológica, emocional, espiritual e outras. Para isso propõe

uma vivência denominada arte de aprender, onde educadores e educandos poderiam desfrutar

8 Larroussa, também comenta as possibilidades e adoções das ‘tecnologias do eu’ pelas vertentes estritamente

terapêuticas, assim como as semelhanças da linha terapêutica com a pedagógica.

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dessa proposta, numa perspectiva de o indivíduo exercitar uma autoridade sobre si mesmo o

incentivado a vivenciar o exercício existencial. Desse modo, o autoconhecimento seria um

princípio da perspectiva trandisciplinar, por onde, esta relação estaria fundamentada no

entendimento de que uma das funções da educação transdisciplinar é despertar o ser humano

na sua capacidade de conhecer a si mesmo.

Além disso, em outra perspectiva de análise, identificamos o emprego de concepções

inerentes à temática do autoconhecimento, que a aproxima como alternativa de resgatar uma

condição emocional deprimida do professor diante das dificuldades enfrentadas no seu

ambiente escolar, em vias de satisfazer suas expectativas pessoais e profissionais.

Diante disso, Santoset. al. (2008) posiciona o autoconhecimento como o caminho da

autorrealização, pois se o professor (a partir do autoconhecimento) estiver ciente das suas

potencialidades e necessidades,poderá traçar objetivos pessoais e profissionais, o qual

determinará seus níveis de motivação e autorrealização. Considerando, de certa forma, que

esse caminho no processo de realização motivacional, deve ser estabelecido como uma meta,

direcionada por um desejo internalizado de realização no âmbito das relações interpessoais.

Também contribuindo nessa perspectiva, tendo em vista a condição de o professor

realizar-se em meio às relações conflituosas no ambiente escolar, Rêgo e Rocha (2009)

posicionam que a relação entre o professor e o educando, via de regra, é marcada por

dificuldades, incertezas e ausência de valores humanos, além da violência, raiva e frustração.

Apontando, sobretudo, uma direção que é o caminho da educação emocional, tendo o

autoconhecimento como uma de suas competências, na busca pelo equilíbrio emocional, para

melhor lidar com as difíceis relações dentro do contexto escolar.

Para além dessas perspectivas, também observamos uma preocupação que se aproxima

mais com a nossa intenção de pesquisa, que é o estudo desenvolvido por Lopes (2010),onde a

autora denuncia que diante desse atual cenário profissional dos professores citados

anteriormente, surgem diversas literaturas, publicações de grande tiragem e visando o grande

público como, por exemplo, de Hamilton Werneck e Augusto Cury que se baseiam nos

modelos da literatura de autoajuda, dirigidas diretamente aos professores (ou a quem mais se

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interessar), com a finalidade de apresentar receitas de sucesso aos professores, ou para

amenizar as frustrações e insatisfações da sua vida pessoal e profissional.

Considerações finais

Diante do exposto, retomando a probelmatização posta em questão a ser desenvolvida

no sentido de compreender a disseminação da noção de autoconhecimento no campo

educacional, especialmente àquelas direcionadas a formação de professores. Reconhecemos

que são diversas as formas de pensar a temática nos âmbitos filosófico e educacional, tendo

em vista as possibilidades de interpelação nos processos da subjetividade, justificando a

adoção da concepção de autoconhecimento nas diversas abordagens utilizadas pelo campo

educacional, para que os sujeitos tenham como necessidade o propósito de resgatar o sentido

si.

Por conseguinte, salientamos que as perspectivas aqui levantadas sobremaneira

esgotam as possibilidades de se pensar a temática do autoconhecimento tanto no campo

filosófico, quanto no educacional. Sobretudo, tendo suscitado diversas conotações para a

mesma no sentido de pensar a relação do sujeito consigo mesmo. Doravante, acreditamos que

tais perspectivas possam servir como princípio de uma base conceitual, podendo ser levada

em consideração, tanto das abordagens utilizadas no campo educacional, quanto dos pontos

de vista da ambiência pessoal de introspecção.

Como Nietzsche nos coloca que para àqueles que “nunca fizeram dos acontecimentos

de sua vida uma questão de consciência para o conhecimento”, referindo-se que esta falta de

reflexão sobre si mesmo, é representada como uma “espécie de fraqueza”, pois não

poderíamos perder de vista os preceitos da razão e da cientificidade enquanto interpretes dos

acontecimentos da vida (NIETZSCHE, 2008, p. 220).

Posto isto, é relevante dizer que não somos contrários à possibilidade de o professor

refletir sobre sua prática formativa, ou sobre a sua trajetória de vida, tendo como possibilidade

a perspectiva do autoconhecimento. Mas queremos chamar a atenção de que a adoção dessa

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apreciação, enquanto abordagem metodológica, não poderia admitir a redução da

individualidade dos sujeitos nas dimensões autoafirmativas, buscando-se apenas aspectos

positivos da sua vida, frente ao seu fazer pedagógico. Assim como, atentar para o

distanciamento epistemológico, mesmo que se justifique a valorização heurística do

conhecimento, pois tende a favorecendo um esvaziamento dos conceitos, quando posta uma

ideia em ampla circulação, ocorrendo uma adesão ao conceito por imitação sem a devida

reflexão epistêmica da sua origem (CESTARI, 2013).

Ademais, percebemos, entre outros aspectos, que esta concepção tem uma abrangência

muito maior do que poderíamos conceber simplesmente a partir de uma abordagem

metodologia, onde, as histórias de vida dos professores pudessem ser postas como um

parâmetro afirmativo numa reconstrução positiva da autoimagem e resgate do sentido de si.

Referências ADORNO, Francesco. Sócrates. Lisboa:Ed. 70, 2002. ARENDT, Hannah. A dignidade da política. 3. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. BRACHTENDORF, Johannes. Confissões de agostinho. 2. ed.São Paulo: Loyola, 2012. BENNETT, Jonathan. Metafísica de Spinoza. In. GARRETT, Don (Org.). Spinoza. Aparecida, São Paulo: Ideias e Letras, 2011. CESTARI, Luiz Artur dos Santos. Autobiografias e formação: a circulação da crença autobiográfica. 1 ed. Curitiba: CRV, 2013. ______. Esboço de uma compreensão da circulação de ideias: orientações para um estudo das modas educacionais. Rev. Bras. Estud. Pedagog. (online), v. 95, n. 240, p. 363-384, 2014. Disponível em: <http://www .scielo.br/pdf/rbeped/v95n240/07.pdf>. Acesso em: 03 abr. 2015. DE OLIVEIRA, Jelson Roberto. Apontamentos sobre a influência de Montaigne sobre Nietzsche nos escritos do segundo período. Cadernos de Ética e Filosofia Política, n. 14, p. 123-145, 2009.

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EXPERIÊNCIA FORMATIVA E AÇÃO: SENTIDOS DA EDUCAÇÃO INTEGRALA PARTIR DE HANNAH ARENDT

Julianne Luiza da Silva1 Maria Betânia do Nascimento Santiago2

UFPE Resumo: A problemática da ética encontra significativo espaço no campo da Filosofia da Educação, colocando em destaque a experiência formativa realizada por eles no âmbito da escola. Nesse contexto, a proposta de educação integral das Escolas de Referência do Estado de Pernambuco, constituída segundo a visão interdimensional,possibilita um significativo debate por indicar uma compreensão do ser humano em sua integralidade.A discussão dessa proposta nesse trabalho assume o desafio de compreendê-la assumindo as contribuições da pensadora H. Arendt, reconhecendo a importância de uma formação comprometida com a construção da autonomia do pensamento e da ação, no sentido criador e modificador dos sujeitos no mundo. As caracterizações apresentadas constituem parte dos resultados da pesquisa Ética, Diálogo e Pensamento: desafios e perspectivas na Formação dos Jovens no contexto das Escolas de Referência, desenvolvida no contexto da iniciação científica, que objetivou compreender a relevância do espaço escolar para formação do jovem, ocupando-se com o sentido da proposta da instituição. A análise dessa realidade aponta para uma formação relacionada à educação para valores, como possibilidade de orientar as ações dos sujeitos que enfrentam dilemas éticos, permeado pela construção e desconstrução de conceitos e formas de pensar. Nesse contexto, a figura do professor/a é reconhecida como presença educativa fundamental, especialmente considerando o significado atribuído à educação integral, como experiência capaz de formar jovens autônomos e críticos, para agir no mundo. Questão problematizada por Arendt ao assinalar a importância das ações singulares em meio à pluralidade. Palavras-Chaves: Ética. Formação. Ação

Introdução

O debate sobre a ética encontra significativo espaço no campo da Filosofia da

Educação, colocando em destaque a experiência formativa nas diferentes instituições,

especialmente considerando as relações entre os sujeitos e as ações vivenciadas e realizadas

por eles. Nesse contexto, a formação dos jovens se apresenta como um dos mais significativos

desafios à educação escolar e o enfrentamento dessa temática nos coloca ante o

reconhecimento da educação como direito do ser humano a uma formação que abarque a sua

integralidade. Dentre esses anúncios destaca-se a proposta de educação integral, constituída 1 Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal de Pernambuco e bolsista de Iniciação Científica da

FACEPE – [email protected]. 2 Professora da Universidade Federal de Pernambuco. Graduada em Filosofia e Doutora em Educação –

[email protected].

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segundo a visão Interdimensional da educação das Escolas de Referência de Pernambuco,

objeto desse estudo.

O exercício de teorização sobre essa proposta formativa assume o desafio de

compreender a problemática a partir das contribuições da pensadora H. Arendt (ARENDT,

2010; 2011; ALMEIDA, 2011; LAFER, 2003; WINCKLER, 2004), reconhecendo a

relevância da leitura proposta por ela, para quem a educação se apresenta como possibilidade

de continuidade ao mundo, somente possível a partir das ações humanas. Esse fato coloca em

questão a formação humana como preparação do sujeito para ser e agir no mundo. É nessa

perspectiva que situamos a problemática de uma Educação Integral, quanto ao anúncio da

integralidade do ser, e especialmente quanto ao reconhecimento da problemática da ética em

sua relação com o mundo comum. Nesse viés, buscamos compreender a importância da

formação ética para as ações dos sujeitos, e discutir o papel da educação escolar nesse

processo.

Nessa perspectiva, o trabalho destaca a importância da formação ética no contexto da

sociedade atual, apontando a educação integral como alternativa para a promoção da

autonomia dos sujeitos, ao passo que se ocupa com a experiência formativa em curso no

contexto da Escola de Referência, objeto de estudo da pesquisa desenvolvida no âmbito da

Iniciação Científica, intitulada Ética, Diálogo e Pensamento: desafios e perspectivas na

Formação dos Jovens no contexto das Escolas de Referência3, realizada na Escola de

Referência em Ensino Médio Corsina Braga, localizada na cidade de Cachoeirinha/PE. Esta

ação objetivou compreender a relevância do espaço escolar para formação do jovem,

ocupando-se com o sentido da visão formativa que orienta a proposta da instituição. O

trabalho assumiu a abordagem hermenêutico fenomenológica como via de investigação,

visando compreender e interpretar a problemática como ela se apresenta em curso, na busca

dos sentidos que constituem essa realidade.

3 Projeto Iniciação Científica aprovado no Edital da FACEPE – Fundação de Apoio à Ciência e Tecnologia do

Estado de Pernambuco – Edital FACEPE – 2014, e vinculado à Pesquisa Ética, Direitos Humanos e Formação: Sentidos de uma Educação Integral no Contexto das Escolas de Referência do Agreste Pernambucano, coordenada pela Prof. Dra. Maria Betânia do Nascimento Santiago.

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Tal estudo se constituiu a partir de pesquisa bibliográfica e da investigação empírica

realizada por meio de observação das práticas educativas da escola e da entrevista reflexiva

com professores e alunos da mesma4. Desse encaminhamento, resultou a estruturação deste

trabalho, que está dividido em três partes: a primeira aborda o sentido da formação ética

compreendendo-a na relação com a reflexão acerca do modo de pensar e de agir dos sujeitos,

bem como, a importância da ação para a singularidade dos sujeitos em meio a pluralidade; a

segunda alude sobre a perspectiva de uma educação integral que se orienta pela concepção de

Educação Interdimensional, e que contempla uma educação para valores, buscando entender

as contribuições dessa concepção para a ação dos sujeitos no mundo; e, a terceira parte

constitui-se numa reflexão sobre a experiência educativa em curso na instituição campo

empírico de nossa pesquisa, considerando os elementos conceituais indicados nesse debate.

1. Formação Ética e Ação

A sociedade atual encontra-se marcada pela fragilidade de valores e a inconstância de

princípios, realidade que nos leva ao debate sobre formação, considerando a exigência de

fundamentos de uma ética que guie os sujeitos, quanto ao pensar e a agir no mundo. Importa

reconhecer que o debate sobre a ética se encontra intimamente relacionado a essas questões.

Com efeito, essa abordagem não se restringe a comportamentos e condutas a serem seguidas

sem questionamentos, mas a capacidade de refletir sobre o agir e a capacidade de agir

coletivamente, em vista do bem comum.

Trata-se de reconhecer que a ética do bem comum está ligada ao que Arendt chama de

“pensar no plural” (cf. LAFER, 2003, p. 59), que não se restringe apenas a dimensão

contemplativa, situando-se no plano da ação. Quanto ao sentido do pensar, e sua relação com

a ética, Arendt enfatiza a importância de pensar por si mesmo, assinalando o risco de viver

4 Os relatos apresentados neste trabalho resultam das entrevistas com professores/as, aqui são identificados pelas

siglas P1, P2 e A2.

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sob a condição de obediência ou imitação, como sujeitos vivendo em um “não mundo”, ou

seja, num ambiente sem relações comuns (ALMEIDA, 2011, p. 53).

A ação permite ao sujeito revelar-se como singular, visto que ao agir o mesmo

aparece. Aparecer, nesse sentido, ultrapassa a aparência física, relacionando-se ao ser e, por

isso um configurar-se como único, não sendo idêntico a nenhum outro ser que existe ou que

virá a existir; está relacionado a alteridade que permite ao sujeito diferenciar-se de outros

seres. Com efeito, a distinção é que propriamente caracteriza o ser humano que, através do

discurso e da ação se mostra, tornando-se capaz de compartilhar a sua alteridade com os

outros, visto que “a ação e o discurso são os modos pelos quais os seres humanos aparecem

uns para os outros, certamente não como objetos físicos, mas qua homens” (ARENDT, 2010,

p. 220). Assim, “alteridade é a qualidade de ser outro” (WINCKLER, 2004, p. 9). Qualidade

que só é identificada em meio as diferenças.

Nessa perspectiva, a ação se apresenta como conceito bem mais amplo do que a

palavra parece indicar. Agir para Arendt significa criar, mover, transformar, tudo em um

processo contínuo (cf. LAFER, 2003, p. 64). É a capacidade de começar algo novo por

iniciativa própria (cf. ARENDT, 2010, p. 221), o que exige dos homens e mulheres uma

coragem para desprender-se do mundo privado e encarar a vida pública. Revela-se como uma

coragem ética, ao passo que expressa à saída do comodismo para preocupar-se com um

espaço que não é só do indivíduo, mas é comum. Ao mesmo tempo é um espaço em que o

sujeito precisa defender a si mesmo através do discurso e da ação. Conforme Arendt, não há

ação sem discurso, visto que é no discurso que o sujeito tem a oportunidade de ser

protagonista, sendo um “pronunciador de palavras” (Ibidem, p. 223) daquilo que realizou e

que vai realizar.

Para Arendt, o espaço para a ação deve ser o político, pois envolve a ética, as relações

e o mundo comum (cf. ALMEIDA, 2011, p. 92). A ação política se refere ao exercício da

cidadania, que não é praticada em espaço privado, mas político. Arendt toma como referência

o mundo grego, em cujo ambiente a igualdade era preservada no exercício pleno da cidadania.

Como afirma Winckler (2004, p. 14), “as pessoas são iguais na medida em que podem

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mostrar-se, revelar sua única e exclusiva identidade (subjetividade). Viver entre iguais

significa estar entre pares, e isto só se pode alcançar no âmbito público da vida”. Contudo,

esse espaço ao fundir-se com a esfera privada foi perdendo suas características, tornando-se

âmbito de imposição e aceitação de regras, transformando os cidadãos em súditos.

Tal problemática se evidencia na sociedade moderna, na qual a ação foi substituída

pelo comportamento. Ao tratar dessa problemática, Arendt (2010) destaca o perigo do

conformismo que exclui a capacidade de ação, nivelando as atitudes, impossibilitando ações

singulares que se destaquem ou se diferenciem das demais. Assim, afirma a filósofa: “Ao

invés de ação, a sociedade espera de cada um dos seus membros certo tipo de comportamento,

impondo inúmeras e variadas regras, todas elas tendentes a “normalizar” os seus membros, a

fazê-los comportarem-se, a excluir a ação espontânea ou a façanha extraordinária” (p. 49).

Essa leitura demonstra o risco que os sujeitos enfrentam de perder os aspectos

subjetivos da vida, os quais se desvelam nas coisas simples e pequenas, e que perdem

importância diante de um sistema social que busca grandes feitos e visa resultados palpáveis,

e que banalizam as atitudes retirando delas seus verdadeiros sentidos. Nessa perspectiva,

observa-se a pertinência das análises de Goergen (2010, p. 159) ao indicar o mal-estar ético

no mundo, "caracterizado pelas rápidas mudanças tendentes a reforçar o individualismo, o

relativismo, o materialismo e o consumismo". Esse quadro provoca o conformismo dos

indivíduos, impedindo-os de se mostrarem enquanto singulares e construírem valores

coletivos. Essa questão coloca em destaque o tipo de relação que se estabelece entre os

sujeitos, pois numa sociedade que não se orienta por princípios recíprocos, é impossível

pensar numa ética do bem comum, uma vez que cada ser estará voltado para si mesmo, sendo

incapaz de pensar e agir conjuntamente.

Ora, o agir ético decorre da capacidade dos seres humanos de pensar, colocando-se no

lugar do outro, entendendo suas limitações e necessidade, assumindo uma dimensão coletiva.

Nesse contexto, desenvolver uma atitude ética é um desafio a todos, sobretudo à experiência

educativa, ante o enfrentamento da crise ética anunciada. Reconhecendo tal crise, Goergen

(2010) aborda a ausência de um parâmetro de valores que oriente os sujeitos no presente, pois

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encontramo-nos numa realidade marcada por princípios imediatos e individualistas. Esse novo

contexto social dificulta a autonomia e destrói a singularidade dos sujeitos através da

denominada "mundialização totalizadora". Esse processo abarca "o sujeito que assume formas

de ser, de pensar, de julgar e de agir contrárias aos mais elementares princípios do respeito, da

tolerância e da justiça" (GOERGEN, 2010, p. 167). Concordamos com o autor ao afirmar que

é necessário resistir a essa "violência viral ou visceral da mundialização" (Ibidem, p. 168),

através de mudanças de comportamentos e atitudes, e mudanças no pensamento de cada ser.

Nesse contexto a educação se vê ante a responsabilidade de agir para efetivação dessas

mudanças. Segundo Arendt (2011), a educação tem o duplo compromisso: preparar o mundo

para os novatos, assim como, preparar esses novatos para agir no mundo. A formação adquire

relevância pela necessidade dos sujeitos de sentirem-se em casa, estando no mundo, para

então assim, cuidarem dele. Esse sentir-se no mundo resulta de uma experiência formativa

que seja capaz de contribuir para o desejo de “iniciar algo novo espontaneamente”

(ALMEIDA, 2011, p. 112), o que significa dizer que é necessário educar o desejo dos mais

novos para que tomem a decisão de agir no mundo. Tal contribuição só se efetiva se o próprio

mundo for apresentado aos mais jovens, isto é, os conhecimentos e experiências precisam ser

confiados a eles. Na linha do que assinala Goergen (2010) como “educação moral”, que

possui o compromisso de oportunizar a compreensão da herança cultural, no que diz respeito

à ética. Ante o reconhecimento da autonomia dos sujeitos frente a educação padronizadora, o

autor assinala:

A educação moral que objetiva apenas adaptar o sujeito à realidade é tautológica. O único caminho capaz de nos conduzir ao encontro do objetivo de gerar novos vínculos e sentidos, que julgo central à formação moral em nossos dias, é a constituição de um sujeito autônomo. Porém, a constituição da autonomia subjetiva só é possível a partir do pressuposto de que a subjetividade é instituída socialmente. A moral não é um fenômeno solitário do sujeito, muito embora o caráter moral dos atos humanos dependa da autonomia e da liberdade, ou seja, do livre arbítrio do sujeito que decide. (GOERGEN, 2010, p. 168)

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Nesse sentido, a educação moral assume o compromisso de favorecer princípios que

ajudem os sujeitos em suas decisões e assim agir de acordo com o bem comum. Perceber que

essa experiência educativa é constituída socialmente, coloca em questão duas perspectivas: de

um lado a contribuição formativa que as relações sociais podem proporcionar quando ligadas

a ética do bem comum, de outro, o perigo de as pessoas serem enquadradas num sistema

ideológico/moral. Tal paradoxo pode ser rompido pelo livre arbítrio destacado pelo autor,

revelando a importância da autonomia e do pensamento crítico para agir no mundo, posto que

o sujeito tem a capacidade de decisão e ação. A escola apresenta-se nesse contexto como

instituição que permanece entre tal paradoxo, pois a mesma pode influenciar tanto o

desenvolvimento da autonomia e criticidade, quanto para nivelar os sujeitos.A figura do

professor/a nessa experiência formativa é de suma importância, pois cabe ao mesmo fomentar

ou não essas perspectivas.

Arendt reconhece o perigo que as pessoas correm ao se tornarem dominadas por um

sistema político/ideológico, e responsabiliza o totalitarismo pela destruição do indivíduo

cidadão, moral e singular, tornando-o um ser supérfluo na sociedade. Em resposta a esse

perigo a autora refere-se à ação política e ao reconhecimento da singularidade na pluralidade

(cf. ALMEIDA, 2011, p. 104-108).É na pluralidade que os homens e mulheres são iguais,

mas também conseguem distinguir-se: iguais na medida em que se reconhecem e podem

entender-se entre si; distintos na medida em que se mostram diferentes através de palavras e

atos (cf. WINCKLER, 2004, p. 18). Essa perspectiva exige um convívio que relaciona e

separa os sujeitos, feito a partir do ser e do social. Aspecto que atualmente mostra-se

enfraquecido, como assinala Goergen (2010), ao afirmar que os indivíduos têm cada vez mais

se distanciado da sociedade e criado suas próprias leis e normas, que muitas vezes dizem

respeito somente a si e/ou ao grupo ao qual pertencem. Segundo o autor, isso acontece porque

o "tempo social e o tempo interior encontram-se desarticulados, da mesma forma como se

encontram desarticuladas a subjetividade e a socialidade" (Ibidem, p.170).

Analisando esse fato à luz da visão de H. Arendt percebe-se que o sujeito não encontra

relação entre o próprio ser e o mundo, o que provoca um desconhecimento tanto de si quanto

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do lugar que vive (cf. ALMEIDA, 2011). Esse sentimento acaba por obrigar o indivíduo a

isolar-se e criar o seu próprio mundo, individualizado, descontextualizado e até mesmo

desmoralizado; tornando-se um sujeito estranho em sua própria casa – o mundo –, ficando

dessa forma descuidado para com ela. Da mesma forma, o mundo aparentemente não possui

mais a capacidade de acolher os indivíduos em suas dimensões, deixando-os à margem da

herança cultural, oferecendo-lhes apenas orientações para sobrevivência no tempo presente,

não sendo apto a abarcar as necessidades plenas dos sujeitos, como seres particulares e

sociais.

Nesse processo de reconhecimento de si e do mundo, a educação assume um papel

fundamental na relação dos novos com o mundo, ao passo que evidencia a centralidade da

escola como instituição que comporta vários agentes que intervêm diretamente na formação,

ou educação moral dos alunos/as. Como afirma Goergen (2010, p. 172), “a educação moral é

da ordem do social que envolve todo o processo de socialização dos jovens com o qual a

escola está, bem ou mal, incontornavelmente envolvida”. Nesse cenário, a figura do

professor/a é indispensável, e o mesmo pode se constituir em referência de modelo ético e

moral, capaz de transmitir esses conceitos através da educação e da ação. Para isso, Arendt

assinala que “é fundamental que cada professor se identifique minimamente com algum

aspecto do mundo que lhe cabe apresentar aos novos” (ALMEIDA, 2011, pp. 115-116). Se o

professor não reconhece nenhum sentido em sua função e não acredita no mundo, não poderá

contribuir para uma formação orientada por princípios do bem comum. É necessário que ele

contagie o aluno com seu amor mundi, o que só poderá acontecer através de sua atitude em

relação ao mundo.

Diante dessas questões, percebe-se a necessidade de uma formação ética que abarque

o sujeito e suas dimensões, que promova a autonomia do pensamento e da ação, além da

consciência moral baseada na coletividade. Tal questão se apresenta como desafio às escolas,

bem como, à concepção formativa assumida pelos docentes. A formação vivenciada nessas

instituições pode favorecer significativamente o processo de desenvolvimento ético e moral

dos indivíduos, contribuindo para sua forma de agir e se relacionar no mundo.

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2. Educação integral para agir no mundo

Considerando que os princípios éticos e morais constituem a forma de pensar e agir do

sujeito, a formação se apresenta como elemento indispensável ao mesmo, e, nesse processo a

escola adquire especial significado. Tal contribuição pressupõe que ela abarque o sujeito em

suas dimensões, considerando-o como ser singular e plural, comprometendo-se com a tomada

de decisão sobre a própria vida e o mundo. Assim concebida, a formação se vincula ao

pensamento e a ação. Arendt conceitua esses dois termos, definindo pensamento como a

capacidade de reflexão e busca de sentidos e ação como prática mobilizadora para mudança e

continuidade do mundo, implicando numa responsabilidade com a subjetividade e com a

coletividade, adquirindo assim um compromisso ético.

Essa direção aponta para busca de alternativas educativas capazes de favorecer um

processo formativo que possibilite ao sujeito o desenvolvimento de princípios ligados ao bem

comum.No tocante a isso, a perspectiva da Educação Integral das Escolas de Referência de

Pernambuco, por considerar as várias dimensões do humano, assume especial significado.

Esse debate encontra relevância na promoção do Protagonismo Juvenil, bem como, no sentido

de tal proposta, fundamentada na visão Interdimensional de Educação desenvolvida por Costa

(2008).

Essa proposta educativa, ao anunciar o reconhecimento das várias dimensões do

humano, assume um claro direcionamento para a problemática da ética, que se compreende na

articulação com os princípios que caracterizam e orientam a visão educativa ancorados em

quatro dimensões – logos, pathos, eros e mythos, que constituem os sujeitos. A concepção

Interdimensional da educação parte do reconhecimento dessas dimensões, as quais se revelam

como fundamentais ao processo educativo:

1. o logos, a dimensão do pensamento, do conceito ordenador e dominador da realidade pela razão, ciência e técnica; 2. o pathos, a dimensão do sentimento, da afetividade, geradora da simpatia, a empatia, da antipatia e da apatia na relação do homem consigo mesmo e com os outros;

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3. o eros, a dimensão do desejo, das pulsões, dos impulsos, da corporeidade, das emanações vitais básicas, do élan vital; 4. o mytho, a dimensão da relação do homem com o mistério da vida e da morte, do bem e do mal. (COSTA, 2008, pp. 16-17)

A educação na perspectiva Interdimensional integra as dimensões acima, visando

contribuir para uma formação integral do sujeito, reconhecida como capaz também de

possibilitar aos indivíduos o desenvolvimento dentro de uma ética que guia sua vida. De

modo expressivo, a afirmação da ética encontra-se relacionada à proposta de uma Educação

para Valores, sendo a escola considerada espaço propiciador dessa experiência e os

professores como agentes fundamentais no processo formativo do sujeito.

No que pese a esse aspecto, Costa (2008) afirma que os valores estão relacionados aos

sentidos, pois são eles que determinam o que somos e o que queremos ser; são os valores que

estão inculcados em nossas decisões e ações. Valor para este autor é a atitude de colocar-se

diante de si mesmo e avaliar suas ações e conhecimentos. Afirma-se aí a sua estreita relação

com a educação e a posição do professor/a, que não é apenas um transmissor de saberes, mas

exemplo para os educandos especialmente quando a relação com as práticas e vivências

possibilita situações para que os valores sejam incorporados e vivenciados pelos estudantes

(cf. COSTA, 2008, p. 33). Essa questão se relaciona ao viés do protagonismo juvenil

indicado, e que se vincula a educação para valores, assim como à participação dos jovens na

sociedade, para que não se tornem indiferente às situações, mas assumindo atitudes de decisão

e ação (cf. COSTA, 2008, p.29).Desse modo, o Protagonismo agiria como “um verdadeiro

laboratório da educação para a cidadania”, afirma Costa (2008, p. 42). Essa perspectiva

exige novas posturas dos/as jovens: capacidade “de ver, entender, sentir, decidir, agir,

interagir e reagir” (Ibidem, p. 44). Assim, ele relaciona à educação para participação

democrática através de práticas e vivências que promovam a autonomia e valores de

cidadania.

É importante destacar que os termos ação/agir e cidadania, indicados por esse

pensador, diferenciam-se do sentido atribuído por Arendt, e ao qual nos referimos

anteriormente. Ação para Costa (2006) é sinônimo de cidadania, ligada a participação

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democrática através do protagonismo juvenil, que possui como objetivo “criar condições para

que o educando possa exercitar, de forma criativa e crítica, essas faculdades [pensamento e

palavra] na construção gradativa de sua autonomia” (COSTA, 2006, p. 139). Nesse sentido, a

escola se apresenta como local adequado para preparar o jovem para participar da sociedade,

visto que considerada uma “fábrica de cidadãos” (Ibidem, p. 151). Dessa forma, o

protagonismo parece expressar a perspectiva de uma formação, marcada pela ênfase no

sistema produtivo, algo que se expressa na defesa do empreendedorismo, mas que orienta

“tanto a inserção do jovem no mercado de trabalho como a sua atuação no melhoramento das

condições sociais que o cercam” (MOURA, 2012, p. 27). O que significa dizer que prepara o

jovem para competir na esfera econômica e coloca-o como parte da solução para os

problemas da sociedade.

Pensando sob o viés de uma filosofia da educação que dialoga com a perspectiva

arendtiana, aqui cabe uma questão: estaria a escola promovendo a experiência formativa ou

preparando o jovem para enquadrar-se num sistema socioeconômico?Os limites dessa

proposta de educação integral podem ser relacionados à preocupação de Arendt, ao enfatizar

que os sujeitos quando moldados num sistema ideológico são reduzidos a “partículas” que

estão expostas aos movimentos arbitrários do mercado e que, a qualquer momento, podem ser

substituídas por outras “partículas” ou por novas tecnologias” (ALMEIDA, 2011, p. 49). Com

isso, os seres humanos perdem suas singularidades, ao mesmo tempo em que precisam a todo

tempo, mostrar que são úteis para sobreviver ao sistema.

Com efeito, o sentido da ação em Arendt é inteiramente político e implica na relação

contínua entre teorias e acontecimentos. Agir no mundo não é ter só a capacidade de dar

continuidade ao mesmo, “mas intervir nele e renová-lo” (ALMEIDA, 2011, p. 28). Mas a

educação é vista pela autora como um espaço “pré-político”. No dizer de Arendt (2011, p.

238): “Normalmente a criança é introduzida ao mundo pela primeira vez através da escola. No

entanto, a escola não é de modo algum o mundo e não deve fingir sê-lo; ela é, em vez disso, a

instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo [...]”. A escola (apesar

de ser espaço privado), é o primeiro ambiente que promove a socialização com uma

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diversidade de sujeitos, propiciando uma forma de relação que pode ser favorável à

construção dos indivíduos. Justamente por ser espaço de preparação, tal instituição corre os

riscos apontados.

Tendo princípios éticos que orientam a forma de pensar e a forma de agir no mundo, é

possível converter a ação em algo inesperado, único, preservando assim a singularidade dos

indivíduos. Nesse sentido, a escola pode ser um importante palco para a formação humana,

possibilitando aos alunos um espaço constituído por relações, capaz de favorecer a educação

integral comprometida com a autonomia do pensar e do agir. À medida que a formação

reconhece as quatro dimensões, constituindo o ser integralmente, há maiores possibilidades

também de favorecer uma educação para valores, proporcionando ao mesmo tornar-se um

sujeito que age a partir de princípios que conjugam elementos singulares e coletivos. Assim, a

formação oportunizada pela escola pode servir como espaço para essas experiências

formativas.

3. A escola como espaço de experiências formativas

A escola torna-se um possível palco de manifestação e desenvolvimento dos aspectos

citados acima, os quais são fomentados a partir das relações estabelecidas nesse âmbito, bem

como da especificidade das propostas em curso. A partir desse olhar tentamos compreender a

realidade educativa da Escola de Referência em Ensino Médio Corsina Braga considerando

sua proposta educativa e ações que envolvem uma formação ética, que se constitui segundo os

princípios orientadores do Programa de EducaçãoIntegral do Estado de Pernambuco.

Em sua materialização, essa iniciativa revela-se ora flexível, ora predeterminada. Ou

seja, por um lado, pode-se afirmar que há uma responsabilidade com a formação destinada

aos estudantes pelos professores/as, assim como, um compromisso, ou como afirma Costa

(2008, p. 62) uma atitude de “não-indiferença” frente ao estudante; buscando caminhos

apropriados para abordar determinados temas, adequando os mesmos ao contexto vivenciado,

para que os/as jovens consigam assimilar os conhecimentos explorados em classe. Mas, por

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outro, percebe-se na proposição que orienta os conteúdos programáticos em sala de aula um

explícito direcionamento para os processos seletivos destinados a ações futuras dos/as

estudantes.

A visão formativa que norteia a instituição atribui significativa relevância ao

Protagonismo Juvenil como uma experiência baseada na autonomia dos jovens, ao passo que

atribuí destaque para a formação do ser, enquanto sujeito que reflete e faz; a uma educação

para valores, ao passo que correlaciona essa experiência ao bem comum; o dilema ético

enfrentado pelos jovens; e a relação entre professor-aluno que ganha destaque nessa

experiência. A defesa da autonomia dos jovens é percebida na referência à

motivação/orientação deles a serem atuantes na sociedade, como afirma o P2 (2014):

Essa filosofia de trabalho que a gente desenvolve, a gente desenvolve o protagonismo, a gente tenta fazer com que os estudantes percebam que eles são seres atuantes e não seres passivos. Enquanto a gente vê muito aquele modelo ainda no Regular, justamente de que tem mais que obedecer do que ser.

Nessa leitura, além de demarcar a distinção da proposta da Escola de Referência para

o ensino Regular, nota-se uma preocupação em fomentar o desejo no/a jovem de ser

protagonista, não sendo meros reprodutores de ações e discursos, mas ter autonomia e

criticidade para agir, o que está associado a uma educação para ser. Tal direcionamento

parece relacionar-se a reflexão sobre atitudes e conceitos que fazem parte da vida do jovem, o

qual precisa ter capacidade para ser invés de simplesmente reproduzir um modelo ou fazer

aquilo que outros dizem. A formação nesse sentido é, de fato, um desafio, pois envolve uma

relação de mão dupla, exigindo do professor/a como representante do mundo que é, mas

também do aluno/a como aquele que decide se vai ou não agir nesse espaço.

Por outro lado, essa visão formativa encontra-se explicitamente ancorada na defesa do

protagonismo juvenil, ao enfatizar a importância de um jovem “empoderado, isto é, um jovem

capaz de atuar sobre a realidade em que está inserido” (COSTA, 2008, p. 40). Agir nesse

sentido vincula-se aos feitos dos jovens na sociedade, aqueles que podem favorecer mudanças

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que venham a melhorar o contexto social em que vivem.O que pode converter-se em um

risco, pois transferem para o jovem a responsabilidade no enfrentamento de problemas sociais

e políticos, indo em direção oposta ao que é defendido por Arendt (2010) ao afirmar que os

mais novos precisam ser protegidos dos problemas do âmbito público para que “não haja

distúrbios em seu amadurecimento” (p. 238).

Para agir no mundo, segundo Arendt (2010) os sujeitos precisam conhecê-lo, mas

também interpretá-lo para então assim decidir como agir. As experiências vivenciadas em sala

de aula no que concernem ao trato com os conteúdos exigem dos estudantes essa

interpretação, isto é, um pensamento próprio sobre o que está sendo discutido. Essa forma de

olhar para os conteúdos é apresentada como um desafio aos jovens da instituição, provocando

dilemas variados, e que podem ser sintetizados como “dilema ético”, causados pelas

dificuldades em refazer os pensamentos, exigindo novas significações e mudança de atitudes.

O quadro revelado aponta para a exigência de que esse processo que seja realizado a longo

prazo, como reconhece P1 (2014):

A dificuldade deles é de deixar de lado velhos paradigmas, sabe? Velhos conceitos arraigados, seja familiares, religiosos. Então eles vêm assim... é interessante, muito marcados por preconceito e discriminação e não sabem que estão [neles] e que são preconceituosos. [...] Mas, até que você consiga fazer com que eles abram o leque de possibilidades para pensar sobre esta situação, você leva assim, uma gama de tempo.

O direcionamento educativo comprometido com o diálogo com outras visões de

mundo pode proporcionar aos estudantes oportunidade para o amadurecimento na forma de

pensar e de se posicionar no mundo. De modo que, não haverá apenas uma visão única,

limitada ou imposta, mas diferentes perspectivas, inclusive a do próprio estudante, que

decidirá qual é mais favorável para o convívio e para a realização de suas ações.Assim, a

formação pode proporcionar a correlação entre o pensar e o agir, ajudando o sujeito a se

reconhecer como ser que reflete e que age. Esse direcionamento revela-se como característica

da visão interdimensional de Costa (2008), especialmente no tocante a educação para

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valores, afirmando que são “os valores [que] colocam os homens diante de si mesmo, diante

dos outros e do mundo, numa atitude de conhecimento, discernimento, avaliação e ação” (p.

33).

A escola como ambiente formativo, é também espaço de ações não políticas que

interferem no processo formativo.Nesse âmbito, construído por diversos sujeitos e que, por

isso, estabelecem diferentes relações, destaca-se a relação professor-aluno cuja reconhecida

centralidade no processo formativo favorece afinidade e conhecimentos. Nessa experiência,

o/a professor/a se destaca como exemplo de autoridade, por se constituir numa relação que

pressupõe confiança e responsabilidade. Confiança na medida em que o educador assume a

responsabilidade de responder pelo mundo. Cabe ao professor favorecer uma relação de

abertura e compromisso com o/a estudante, especialmente por influenciar no processo

formativo dos mesmos. Tal relação envolve conflitos e desafios que requerem um

direcionamento, e que sejam vivenciados e resolvidos de acordo com o bem comum.

Nessa perspectiva, as relações entre os/as professores/as e os/as alunos/as reveladas na

pesquisa podem ser relacionadas à atitude de presença educativa anunciada na visão

interdimensional (COSTA, 2008), sendo essa experiência reconhecida como tal pelos

professores como pelos estudantes. Segundo Costa (2008) a presença se orienta por três

princípios/pressupostos: 1. Abertura, como disposição para “entrar na experiência de vida da

pessoa com quem nos relacionamos e permitir que ela entre na nossa” (COSTA, 2008, p. 59);

2.Reciprocidade, como “o movimento vital que nos leva a influenciar e a ser influenciados.

[...] A reciprocidade é a troca de elementos que nos dá a certeza de que temos valor para

alguém” (Ibidem, p. 60); 3. Compromisso, como “atitude de não-indiferença” (Ibidem, p. 62),

responsabilidade pelo que oferece ao outro, cuidado para com este e atuar como suporte

construtivo em sua vida.À medida que os professores/as revelam essa abertura, os/as

estudantes sentem-se confiantes para estabelecer uma relação de reciprocidade visto que não

há indiferença entre eles, como expresso na fala da A2 (2014), que relata:

Aqueles professores que chegam na sala estão abertos a ouvir, estão abertos a discussão é os mais fáceis de se relacionar. Um exemplo é a P1 mesmo:

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você chegar nela pedir para conversar sério; pra pedir um conselho que tenho certeza que ela vai escutar, porque ela está aberta a isso. A gente consegue perceber.

Nessa leitura percebemos que a abertura possibilitada, resulta da experiência de

diálogo oportunizado em sala, o qual contribui para o estabelecimento dos vínculos

destacados. Assim, a relação vivenciada na sala de aula, especialmente a atitude do/a docente

é capaz de favorecer uma experiência formativa vinculada a outros aspectos, para além dos

conteúdos vistos em classe, abarcando a própria vida dos/as jovens. Desse modo, a formação

não se restringe aos aspectos cognitivos, mas envolve todas as dimensões dos sujeitos.

Tais experiências formativas expressam o que é anunciada na concepção de

EducaçãoInterdimensional que fundamenta essa proposta de educação integral. Na forma

como se apresenta, destaca-se a ênfase atribuída ao protagonismo juvenil, relacionado à

formação autônoma do/a jovem enquanto sujeito capaz de agir para modificar o contexto que

vive. Da mesma forma, as ações educativas aí configuradas mostraram-se vinculadas a outros

aspectos também centrais a essa concepção educativa, como a defesa de uma educação para

valores e uma educação para ser. Esses direcionamentos estão significativamente

relacionados à noção de presença educativa assumida pelos docentes, como atitude capaz de

colaborar para uma formação ética. Diante disso, não há como descartar a importância da

escola, apesar dos limites, dado que é nesta instituição que o sujeito se qualifica para agir

publicamente, do mesmo modo que pode ser educado para uma vivência ligada ao bem

comum.

Considerações finais

A formação assume um importante papel na constituição do ser, por oferecer

princípios orientadores das ações dos sujeitos no mundo. Ações estas que precisam ser

pautadas numa dimensão coletiva, objetivando o bem comum, além de contribuir para a

criação e recriação do mundo, como sugerido por Arendt. Nesse contexto, a escola pode ser

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um importante espaço formativo, pois é um local de saberes, relações e desenvolvimento de

habilidades. Perceber que a educação favorece a formação humana é essencial para

compreender que a mesma é um horizonte infinito que inclui o indivíduo integralmente.

Dessa forma, é tarefa da escola contribuir para formação do senso crítico no indivíduo, a fim

de que ele tome consciência de seus atos enquanto ser singular e plural, para assim poder agir

no mundo.

O reconhecimento desse potencial no jovem implica também em assinalar a

necessidade de um espaço onde suas potencialidades sejam fomentadas e aperfeiçoadas, como

experiência capaz de abranger todas as dimensões do humano. Não obstante a especificidade

dos referenciais que permeiam a concepção de Educação Interdimensional, assinalamos aqui

a sua contribuição em auxiliar nessas questões, como uma pedagogia assentada no

reconhecimento do humano, apoiada numa visão integral desse ser, por não estar focada

apenas no aspecto cognitivo, mas preocupada com suas outras dimensões.

Os sentidos que despontam da pesquisa nos revelam a importância de tal concepção

formativa, visto que assentada no favorecimento da autonomia dos jovens, expressa na defesa

do protagonismo juvenil e a educação para valores. Essa autonomia para ser desenvolvida

enfrenta dilemas éticos que foram revelados no contexto da instituição e que estiveram

relacionados à exigência de desconstruções de conceitos e visões de mundo pelos/as jovens, a

necessidade de tomada de decisão sobre qual perspectiva seguir, e agir em seu contexto

social, em vista da melhoria do mesmo. Nesse sentido, o/a docente, como presença educativa,

apresenta-se como fundamental, podendo contribuir para novas formas de olhar e agir no

mundo, além de ser alguém que colabora para a transmissão, problematização e desvelamento

de saberes essenciais à experiência formativa.

O protagonismo juvenil abordado na proposta de educação integral aponta para a

participação do/a jovem no meio social tendo o objetivo de torná-lo ativo ao ponto de

modificar sua realidade. Questão que apresenta um viés contrário ao defendido por Arendt

(2010) no que pese a responsabilidade dos adultos para com os jovens, uma vez que exige

uma exposição desses jovens, o que pode significar uma antecipação dessa inserção no

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mundo, dispensando-o dos cuidados dos adultos. Sabendo que a escola não é o mundo e não

deve fingir sê-lo, como assinala Arendt (cf. 2011, p. 238), pois há coisas que apenas no

mundo os jovens conhecerão, a questão é: qual o momento propício para a exposição dos

mais novos ao mundo? Seria o protagonismo juvenil uma atitude precipitada ou necessária?

Mesmo considerando a indagação proposta acima, não podemos deixar de reconhecer

os aspectos positivos da proposta de educação interdimensional, especialmente quanto à

afirmação de uma educação para valores, que se vincula à atribuição de significados e à ética.

Os significados mobilizam sentimentos e desejos que impulsionam as práticas, isto é, ao

atribuirmos sentido ao que fazemos, despertamos uma ação voltada para as dimensões do

pathos e do ethos. Tal experiência se associa a ética, pois através do valor o sujeito atribui a

ação, que o mesmo determina o quê e como agir, assim como, pode assumir uma atitude de

auto avaliação dos seus atos.

É importante reconhecer o papel da educação para ação no mundo, pois ela pode

contribuir para formar agentes passivos ou ativos, aprisionados ou livres. Compreendemos

que a escola é também espaço de/para a liberdade, de expressão, de pensamento, de voz; um

ambiente no qual a palavra guia a ação, e esta pode estender-se ao campo político, como

defendeu Arendt. Nesta perspectiva, é importante ressaltar o papel do educador como agente

ativo e transformador desse espaço, mas também o papel do educando que atua em conjunto

com aquele num processo recíproco e ininterrupto.

Referências

ALMEIDA, Vanessa Sievers de. Educação em Hannah Arendt: entre o deserto e o amor ao mundo. São Paulo: Cortez, 2011. ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução Roberto Raposo. Revisão técnica Adriano Correia. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. ______.Entre o passado e o futuro. Tradução Mauro W. Barbosa. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.

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COSTA, Antonio Carlos Gomes da. Protagonismo juvenil: adolescência, educação e participação democrática. 2. ed. São Paulo: FTD, Salvador, Bahia: Fundação Odebrecht, 2006. ______. Educação. São Paulo, SP: Canção Nova, 2008. (Coleção valores). GOERGEN, Pedro. Educação moral e cultura. Estudos de Sociologia, Araraquara, v.15, n.28, p.159-175, 2010. LAFER, Celso. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Paz e Terra, 2003. MOURA, Maurinúbia Monteiro de. Formação humana e escolarização: um estudo da proposta formativa das escolas de referência de Pernambuco. Caruaru: O Autor, 2012. WINCKLER, Silvana. Igualdade e cidadania em Hannah Arendt. Direito em Debate, Ano XII, n. 22, p. 7-22, jul./dez. 2004.

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PLANO DE IMANÊNCIA E/OU CONTEXTO DE EMERGÊNCIA DA IDEIA DOS CICLOS DE FORMAÇÃO HUMANA

Larissa Monique de Souza Almeida1 Luiz Artur dos Santos Cestari2

PPGED/UESB Resumo: Tomando como referência o deslocamento de um conceito entre plano de constituição, este trabalho objetiva apresentar um movimento de aproximação entre dois conceitos: Plano de imanência em Gilles Deleuze e Guattari (2010) e contexto de emergência em Cestari (2013). Destacamos que este trabalho teórico-acadêmico de aproximação entre os referidos planos, está em asseverar que estamos falando da “casa” onde nasceu o conceito de Ciclos de Formação Humana. Com o intuito de problematizar os ciclos, períodos de escolarização que coloca em cheque a escolaridade em graus, apresentamos o conceito de Ciclos de formação como formação humana em Miguel Arroyo (2011), como um campo de multiplicidades para auxiliar na formação da criança e no respeito aos seus tempos de vida. Palavras-chave: Ciclos de formação humana. Contexto de Emergência. Plano de Imanência.

Introdução

O que move o nosso pensamento? O que entendemos por pensar? Talvez só façamos

estes questionamentos quando estamos envolvidos pela vontade de criar novas maneiras de

pensar um conceito. Mas, afinal, o que é isso que fazemos e nem nos damos conta? Trazemos

em nossas mentes uma possível imagem do que entendemos por pensamento, mesmo sabendo

de antemão que não é possível representá-la tal como ela é.

Nutrimos conhecimentos sobre sua forma, tamanho e função para o desenvolvimento

de nossa vida cotidiana. Isto pode ser compreendido como uma representação. Representar

como uma maneira de tentar mostrar claramente o que é um objeto em discussão, uma

suposição de ter uma imagem que o identifica. Também podemos trazer uma explicação

psicológica sobre o pensamento, remetendo suas funções atreladas ao cérebro e as possíveis

1 Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) da Universidade Estadual

do Sudoeste da Bahia(UESB), Campus de Vitória da Conquista. Bolsista da CAPES. E-mail: [email protected].

2 Orientador. Doutor em Educação (UFPE). Professor adjunto do curso de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED), ambos pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. E-mail: [email protected].

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opiniões que podem ser feitas. Somos convidadosa pensar propondo um retorno ao universo

imerso e encantador da alma, onde o sentido da vida encontra-se acima do sentir, onde a

poesia e a arte preenchem o espírito. Mas, afinal, o que é pensar?

Podemos destacar que, nos últimos anos, no campo da reorganização dos sistemas de

educação, um grande número de escolas da Educação Básica tem optado por organizar o

currículo do Ensino Fundamental em ciclos. No Brasil, em outros países da América Latina e

em alguns países europeus, tem se efetivado a noção de que esta forma de organização

corresponde à melhor perspectiva para garantir a aprendizagem dos educandos e educandas,

além de possibilitar a realização de uma educação democrática.

Com a intencionalidade de regularizar a escolarização e limitar a repetência, os ciclos

escolares, definidos desde os anos 1920, fizeram-se presentes em algumas propostas de

inovação pelos estados brasileiros na década de 1960, sendo que cada proposta educativa

buscava redefinir o problema à sua maneira, tendo como base as urgências que dominavam

em suas instituições escolares. Contudo, desafios permanecem até os dias de hoje, como

auxiliar os educandos na permanência escolar com garantia de aprendizagem efetiva e

alcançar uma educação de qualidade (BARRETTO; MITRULIS, 1999).

Os ciclos são períodos de escolarização que diferentemente das séries anuais estão

organizados em blocos que podem variar de dois a cinco anos de duração, colocando em

cheque a escolaridade em graus e representando uma tentativa de superar a fragmentação e

desarticulações do currículo. A categoria tempo escolar é repensada nesta perspectiva,

articulada em unidades maiores e mais flexíveis na tentativa de favorecer a aprendizagem em

diferentes ritmos.

Os ciclos de formação agregam alunos da mesma faixa etária, tendo como eixo

estruturante a vivência sociocultural de cada idade, compreendendo as características de cada

período, infância, pré-adolescência e adolescência. No processo ensino aprendizagem, busca-

se uma lógica global com uma visão integrada do aluno, atentando para a sua autoestima e

para a construção da identidade nos grupos de socialização, ou seja, é importante que o aluno

continue no mesmo grupo de idade sem a ruptura das repetências. Se no final de cada ciclo

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não conseguir o desenvolvimento equilibrado em todas as dimensões, poderá permanecer um

ano no ciclo, mas sem, contudo distanciar dos seus pares.

Trazendo como protagonista a proposta de ciclos de formação humana, encontramos

em Arroyo (1999, p. 158) a importância de “desenvolver os educandos na especificidade de

seus tempos-ciclos, da infância, da adolescência, da juventude ou da vida adulta. Arroyo

(2011) revela uma possibilidade de dialogar com outro olhar sobre os educandos,

reconhecendo sua condição de sujeito de direitos, novas sensibilidades e proximidades com

suas trajetórias humanas e escolares. Conhecendo essa peculiaridade, dar-se conta da

dificuldade de articular os tempos de viver com os tempos da escola, com a defasagem, com o

fracasso.

Assim, compreendemos que um currículo organizado em Ciclos de Formação

Humana, como um campo de multiplicidades para auxiliar na formação da criança e no

respeito aos seus tempos de vida, deve escapar. Neste vazamento, as individualidades, os

modos de ser dos sujeitos, dá abertura para as subjetivações e propicia uma proposta

formativa enredada na constituição humana. Destacamos que andar nos limites tem grande

relevância diante deste aspecto. É mais salutar explicar como as coisas funcionam ao invés de

dizer o que elas são. Aberto ao jogo, o indivíduo agencia (age na realidade operando

deslocamentos), e a noção de individualidadevai se constituindo como diferença.

Para tanto, lançamo-nos em uma investida: Tomando como referência o deslocamento

de um conceito entre plano de constituição, iremos desenvolver neste artigo, um trabalho

acadêmico de aproximação entre dois conceitos: Plano de imanência em Gilles Deleuze e

Guattari (2010) e contexto de emergência em Cestari (2013).Este plano é como a “casa” onde

nasceu o conceito de Ciclos de Formação Humana.

Aproximações entre os conceitos plano de imanência e o contexto de emergência

Platão, no século IV a. C., demonstrou com a Alegoria da Caverna, o que ele

compreendia por pensamento. Para ele, o mundo está dividido entre o mundo das ideias e o

mundo dos sensórios. O mundo das ideias é o mundo da realidade. Ele, num plano ideal tem a

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essência das ideias puras, a própria verdade, enquanto que o mundo sensível é uma imagem,

uma cópia da verdade. Nossa vida para Platão é como a de prisioneiros: Vivemos

acorrentados. O que conhecemos do mundo é uma ilusão, já que a verdade encontra-se no

mundo das ideias, e só podemos ter acesso se nos desacorrentarmos. Ele problematiza:

Devemos desconfiar do que vemos, sentimos e somos tocados para nos guiar pela razão, pelo

pensamento. Pensar para ele, é imitar, pois a ideia é sempre transcendente.

Esta lógica de pensamento em Platão é conhecida como transcendente com um ideal

de homem dotado de pensamentos superiores ao corpo. Sabemos que as ideias sobre o tema

foram efervescentes para aqueles que dedicaram seus estudos para aprofundar estes

questionamentos. Todavia, destacamos que séculos depois Deleuze e Guattari (2010)

acreditam que ela instaura uma forma decadente da Filosofia, negando a pluralidade do

próprio pensamento do Ser e fazendo uma ruptura entre o desejo e o pensamento.

Inspirados em Nietzsche, buscam pensar o platonismo sob outras perspectivas. Ao

invés de buscar as formas puras na ideia, atentam para os detalhes da sensibilidade. Uma

Filosofia que pense o múltiplo e não o uno. Uma Filosofia do concreto cotidiano e não do

universal abstrato. Eles não pensam por categorias e mediações, mas articulam um trabalho de

pensamento. Referenciado com a multiplicidade de um conceito, o pensamento vai instituindo

novos conceitos. Assim, pensar não é uma redução, mas o homem hierarquiza e estratifica a

potência do pensar no mundo, que é pura produção.

Deleuze e Guattari (2010) desenvolvem um esforço de crítica a este tipo de

pensamento designado de representação. A imagem racionalista da Filosofia, contrapõe uma

nova imagem de pensamento. Ela terá como maior característica a relação de forças externas

que fazem o pensamento sair da sua imobilidade, provocando encontros, intercessões. Para

eles, a imagem do pensamento será o contrário da representação. Ela dependerá de um

movimento que lhe é imanente, e só será possível por intermédio de um plano que ela

autoriza.

O pensamento sob a lógica imanente demarca que a essência do corpo é a potência do

pensar, então, passa pelo desejo. O plano da imanência é a relação entre desejo e pensamento,

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em que a energia, o movimento, os afetamentos configuram o pensar. Daí Deleuze e Guattari

(2010) definirem a imanência como o crivo estendido sobre o caos e “pensar é sempre seguir

a linha de fuga do voo da bruxa” (p. 53). Neste sentido, a criação de conceitos é a própria

atividade da Filosofia, entendendo conceito não como uma definição, mas como

imanentemente inseparável do objeto. Pensar é criar e não contemplar.

Quando pensamos em imanência, comumente atrelamos o seu sentido a algo imanente

a alguma coisa. No entanto, para Deleuze e Guattari (2010), a imanência não pode ser

entendida desse modo porque ela não é uma dualidade. Em, A imanência, uma vida...,

Deleuze (2006) diz que “[...] a imanência absoluta é nela mesma: ela não está em alguma

coisa, dentro de alguma coisa, ela não depende de um objeto nem pertence a um sujeito (s/p).”

Ela só pode ser entendida como algo nela mesma, ou seja, devemos suprimir todo o plano

dual: Céu e terra, imanente e transcendente, bem como interromper o modo de entendimento

que age como uma consciência subjetiva a qual pensa um objeto que está fora dela, pois não

há separação entre o sujeito e o objeto, nem mesmo entre a imanência e o que há nela

(DELEUZE, 2006).

Partindo dessa premissa, é preciso entender a imanência como um caos.

Compreendemos que para se pensar a imanência, torna-se necessário criar planos funcionando

para desacelerar o caos, assim como esboços. Por isso, é imprescindível cortar o caos para que

a imanência seja pensada. Deleuze e Guattari (2010, p. 53) se contrapõem ao modo platônico

de entendimento ontológico:

O plano de imanência é como um corte do caos, e age como um crivo. O que caracteriza o caos, com efeito, é menos a ausência de determinações do que a velocidade infinita com a qual elas se esboçam e desaparecem: não é um movimento de uma à outra, mas, ao contrário, a impossibilidade de uma relação entre duas determinações, uma vez que uma não aparece sem que a outra já tenha desaparecido, e que uma apareça como evanescente quando a outra desaparece como esboço. O caos não é um estado inerte, não é uma mistura ao acaso. O caos caotiza, e desfaz toda consistência no infinito. O problema da filosofia é adquirir uma consistência sem perder o infinito no qual o pensamento mergulha (o caos, sob esse aspecto, tem uma existência tanto mental quanto física).

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Para Deleuze (2006), dir-se-á que a pura imanência é uma vida, nada mais. Ela não é

“imanência à vida, mas o imanente que não é imanente a nada específico é ele mesmo uma

vida. Uma vida é a imanência da imanência, a imanência absoluta: ela é potência e beatitude

completas” (s/p). Ou seja, assim como a vida é imanente a ela mesma, a imanência é imanente

a imanência, não pode ser separada, não pode ser dividida e não pode haver nada fora dela.

Isso quer dizer que, tanto o plano como o caos são imanentes: Não se separa o cortado do que

se cortou, apenas se cria uma desaceleração nas correntes de intensidades. A imanência é a

intensidade da vida. Para ele,

[...] uma vida está por todos os lugares, por todos os momentos que atravessam este ou aquele sujeito vivo e que medem tais objetos vividos: vida imanente trazendo os acontecimentos ou singularidades que apenas se atualizam nos sujeitos e nos objetos. Essa vida indefinida não tem, ela mesma, momentos, por mais próximos que estejam uns dos outros, mas apenas entretempos, entremomentos. (s/p)

Para pensar a imanência é preciso pensar a vida. Contudo, para pensar a vida, é preciso

desacelerá-la. Em Deleuze e Guattari (2010) o plano de imanência pode ser comparado ao

mapa do mundo. Mapa que permite ao filósofo locomoção e singularização do lugar onde fala

e problematiza a realidade, fazendo com que ela se dobre de determinado modo. Desse modo,

o plano de imanência é o lugar onde se cria um modo de vida onde o não pensado pode ser

experimentado. É não pensado e por isso é considerado pré-filosófico e pré-conceitual, pois

ele não é pensamento, mas a matéria na qual o pensamento se dobrará.

Trata-se, portanto, para Deleuze e Guattari (2010) de produzir Filosofia a partir de sua

história, sem contudo, não ficar confinado a ela, apenas reproduzindo o pensamento, mas

criando conceitos. Sem desconsiderar este conhecimento histórico da Filosofia, ele parte dela,

mas não compreende-a como ponto de chegada. Assim, fazer Filosofia não é repetir os

filósofos, de certo que é difícil fazer Filosofia sem repetir os pensamentos, mas busca-se

pensar o novo, e como Gallo (2008, p. 31), acreditamos que a “Filosofia de Deleuze é uma

importante atenção ao mundo e ao tempo presente, a busca dos pequenos detalhes que são o

que de fato importa.”

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Os conceitos não são necessariamente formas, achados ou produtos. A Filosofia é a

disciplina que consiste em criar conceitos. Deluze e Guattari (2010, p. 13) refutam a ideia da

Filosofia como reflexão, contemplação e comunicação: “Toda criação é singular, e o conceito

como criação propriamente filosófica é sempre uma singularidade. O primeiro princípio da

filosofia é que os Universais não explicam nada, eles [...] devem ser explicados.” Assim, os

autores potencializam que o lugar e o tempo para a criação de conceitos é a Filosofia.

Então, podemos questionar: O que é um conceito? Primeiramente, vamos entender que

ele não é uma representação. Ele pode ser considerado uma aventura do pensamento instituída

por vários acontecimentos, vez que permitem um novo ponto de vista sobre o mundo. “Todo

conceito remete a um problema, a problemas sem os quais não teria sentido, e que só podem

ser isolados ou compreendidos na medida de sua solução.” (DELEUZE; GUATTARI, 2010,

p.24). Mesmo na Filosofia, não se cria conceitos a não ser em função dos problemas

considerados mal colocados. Ele não pode ser separado de um problema ao qual ele tenta

responder e de um plano sobre o qual ele ocorre.

Formados por linhas e por componentes com traços intensivos, eles não são criados do

nada. Um conceito não tem energia, só intensidades e ele diz o acontecimento, não a essência

da coisa. Um filósofo ao criar um conceito, coloca nele um sentido que é só seu, como Gallo

(2008, p.40) diz: “Cada filósofo assina o mundo à sua maneira, por meio dos conceitos que

cria.” Ele é uma multiplicidade, um acontecimento, algo que produz, faz acontecer, faz pensar

e permite pensar.Ele é dado no âmbito das condições e opera nelas. Um plano tem que ter

curvatura e movimentos. O trabalho filosófico dar-se pelo plano da imanência, sobre o qual os

conceitos são gerados. Ele é o solo da criação conceitual.

Quando Deleuze e Guatarri (2010, p. 45) esclarecem: “Os conceitos são como vagas

múltiplas que se erguem e que se abaixam, mas o plano de imanência é a vaga única que os

enrola e os desenrola e o plano envolve movimentos infinitos que o percorrem e retornam”,

viabilizam que o plano de imanência não é um conceito, mas a imagem do pensamento, a

imagem do que significa pensar, ou seja, o uso feito do pensamento. Diferentemente de um

método, do conhecimento sobre o cérebro, para entender a imagem do pensamento,

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precisamos separar as questões cerebrais, como a memória e a reflexão, para reter o que o

pensamento pode reivindicar de direito, enfim, o que pode ser levado ao infinito. É esta a

constituição da imagem do pensamento: O movimento do infinito. Podemos destacar que o

plano não consiste evidentemente num programa, num projeto, ele constitui “o solo absoluto

da filosofia, sua Terra ou sua desterritorialização, sua fundação, sobre os quais ela cria seus

conceitos”, conforme Deleuze e Guattari (2010, p. 52).

Não podemos afirmar que a atitude de criação de conceitos é encontrada apenas em

Deleuze e Guattari (2010), mas toda a Filosofia tem essa função. A diferença é que os autores

trazem um lugar de partida para os conceitos serem criados. Destacamos a importância do

lugar de criação não ser fundado na transcendência, todavia, deve se envolver na imanência.

Sendo assim, o conceito não está fora da imanência, mas pertence a ela e uma vez criado o

conceito no plano de imanência, eles não se separam. Portanto, o filósofo precisa criar

conceitos e traçar um plano e criar personagens conceituais que farão o conceito movimentar

no plano.

O personagem conceitual é o responsável pela mobilidade no plano de imanência: “Os

personagens conceituais, operam os movimentos que descrevem o plano de imanência do

autor, e intervêm na própria criação de seus conceitos.” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.

78). Esta citação nos permite compreender que o criador de conceitos, o filósofo, tem de ser

íntimo do plano para conseguir expressá-lo e, assim, ser problematizado na imanência e,

como resposta às problematizações, criar conceitos.

Pensar a vida em multiplicidade, é pensar um mundo sem transcendência, sem a ideia

de eminência. Um campo transcendente não pertence nem a um objeto nem a um sujeito.

Deleuze e Guattari (2010) podem contribuir para pensar a noção de individualidade no

currículo organizado em Ciclos de Formação Humana. No modo como eles criaram vários

conceitos, mudam o modo de olhar o mundo, de experimentar o mundo, de fazer um recorte

no mundo para entendê-lo.

Deleuze e Guattari (2010) não pensaram a Educação. Este não foi o campo o qual eles

se preocuparam. Com eles estamos propondo exercícios de pensamento que implicam um

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devir, um processo prenhe de movimentos. Pensar a Educação como um conjunto de

acontecimentos e os deslocamentos dos conceitos como agenciamentos que nos permitam

problematizar os problemas educacionais.

Num plano educacional, encontramos em Cestari (2013) o desenvolvimento de uma

teoria circular como condição para interpretar a forma como as ideias emergem. O autor

compreende que uma ideia emerge quando se atribuem a ela um lugar epistemológico com

contextos cujo valor ainda não tinha sido atribuído em outros contextos e outros momentos.

Esta percepção de um grupo acerca de uma determinada ideia acontece num contexto

específico: O contexto de emergência, como podemos observar em Cestari (2013, p. 19)

quando ele diz que “toda ideia quando é recepcionada traz consigo as marcas significativas

constituídas em sua origem, especificamente no contexto epistemológico, local e histórico

onde ela surge, o que denominamos neste trabalho de contexto de emergência.”

Temos que a emergência de uma determinada ideia num campo de conhecimento e a

sua possível aproximação para um campo específico, não acontece apenas impulsionada por

uma justificativa circunstancial, mas uma ideia emerge em um contexto específico quando um

grupo de estudiosos ou pesquisadores atribuem um lugar epistemológico para determinada

ideia, como podemos perceber em Cestari (2013, p. 26):

[...] nosso interesse é demonstrar que a ideia emerge de uma diversidade de condições discursivas no interior das ciências humanas e que a aproximação destas justificativas é a consideração de que a superação das limitações para construção dos saberes estaria na valorização da vida dos sujeitos por eles mesmos na construção do seu conhecimento.

Na perspectiva de Cestari (2013) quando uma ideia começa a ser analisada, ela tem

que ter um ponto de partida. Contudo, este tipo de análise objetiva mostrar as formas de

negociação utilizadas com o intuito da ideia ser justificada num campo de saber. Sendo assim,

para compreender a circulação da ideia é preciso considerar três contextos: O contexto da

emergência, o contexto da recepção e o contexto da disseminação. Para o nosso objetivo neste

trabalho, focaremos apenas o contexto de emergência, por entender que uma ideia emerge

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justamente quando algum fato novo surge e este precisa ser vinculado no domínio perceptivo,

com o intuito de “encontrar as justificativas que permitiram a ideia entrar no âmbito da

percepção dos pesquisadores de um campo, ou seja, quais condições permitiram a ideia entrar

num campo” (CESTARI, 2013, p. 131).

Neste âmbito, buscamos fazer uma aproximação entre os conceitos, plano de

imanência em Deleuze e Guattari (2010) e contexto de emergência em Cestari (2013) através

de algumas considerações. Compreendemos que o plano de imanência, conforme já

explicitado acima, é formado por movimentos e potências dotados de vida, criando junto com

o pensamento novas relações. Sendo assim é possível dizer que o plano é composto por puras

imanências, com objetos também imanentes, vivos.

Cestari (2013) enfatiza o caráter vivo da emergência de uma ideia quando ele explicita

que a emergência da novidade não é tratada pelo autor apenas como um fato descoberto, mas

este processo ocorre num contexto específico e passa por critérios que ultrapassam os limites

transcendentes do contexto da descoberta. Ele precisa ser contextualizado com o lugar de

origem.

Não há possibilidade de fazer Filosofia, deleuzianamente falando, sem investir num

duplo movimento: Constituir um problema e criar conceitos, ou seja, só faz sentido se a

Filosofia for problematizada. Cestari (2013) deixa evidente que de início, a emergência de

uma ideia acontece pelo fato de que algo novo surgiu. É preciso problematizar a noção e

relacioná-la ao contexto que permitiu aos sujeitos incluí-la no domínio de sua percepção.

Tomando os seus estudos como referência, questionamos: Por que e quais razões a ideia

aparece de forma tão significativa para o assunto naquele momento? O que permitiu a

abordagem ocupar espaço entre um determinado grupo? Estamos problematizando nosso

campo de pesquisa levando em consideração a importância dos problemas serem colocados

num plano de imanência compreendendo que,

[...]a emergência da novidade não é tratada [...] apenas como um fato que é descoberto e que possamos delimitar exatamente o momento inaugural de sua emergência, ao contrário disso, este processo ocorre em um contexto e

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passa por critérios que ultrapassam os limites do contexto da descoberta científica (CESTARI, 2013, p. 14).

Para Deleuze e Guattari (2010) um conceito não pode ser separado de um problema ao qual

ele responde e do plano sobre o qual ocorre. Ele condensa-se nos componentes que o formam.

Um conceito tem sempre uma verdade que lhe advém em função das condições de sua

criação. Cestari (2013) considera que uma ideia emerge relacionada com os contextos

epistemológico, local e histórico onde ela surge e passando a assumir um lugar de destaque

em um grupo num determinado momento. Os autores coadunam da seguinte proposição: Para

compreender uma ideia ou um conceito, não podemos desconsiderar a problemática presente

nos contextos os quais eles foram originados e nem tampouco desconsiderar que eles buscarão

responder inquietações próprias da origem de sua criação.

Ciclos de formação como formação humana

Estruturar a escola respeitando os tempos dos educandos decorre da compreensão da

tarefa de formar, acompanhar a formação plena, respeitando seus tempos.Quando analisamos

a Paideia, a constituição da primeira pedagogia, percebemos que ela foi constituída em torno

dessa questão: Formar o ser humano com virtudes e atributos. Com o foco nessa função

formadora, a pedagogia vai girar em torno do pressuposto de ensinar através da temporalidade

da formação humana. Sendo assim, o sentido da primeira pedagogia está em reconhecer que a

formação do ser humano é possível, e aceita a possibilidade de educá-lo (ARROYO, 2011).

A pedagogia nasce quando se reconhece que essa formação é uma tarefa, um projeto,

uma arte que vai além do autoconhecimento. É na sociedade educativa que se humaniza. Será

determinante nesta formação, como o ser humano em cada tempo de sua vida se relaciona

com o mundo. Quando temos essa compreensão, entendemos que a formação é determinante

para a inserção da criança na sociedade. Assim, a educação e a formação caminham juntas.

Contudo, acompanhando a passagem da história da educação, com a Renascença e a

pedagogia moderna, por exemplo, questionamos: As ideias educativas e formadoras da

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Paideia não ficaram para trás? O pensar atual parece-nos ser mais pragmático? Estamos sendo

preparados para capacitar para o mercado, para passar de ano, no vestibular ou no concurso.

Será que o pensamento contemporâneo continua vinculando a educação com a formação

humana? (ARROYO, 2011).

Falar em ciclos de formação e respeito ao tempo tem a intenção política e pedagógica

de confirmar que contemporaneamente não pode ser negado o direito da criança à formação

integral. O termo formação, portanto, chama a nossa atenção para o direito que toda criança

tem de ser um sujeito social, mental, ético, estético, emotivo, sensível. Compreendemos que o

respeito aos tempos de vida nos ciclos de formação funcionam como uma afirmação das

intencionalidades pedagógica, cultural e política, “para afirmar o direito de todos à formação

plena como seres humanos. Para quebrar imaginários sociais e pedagógicos que veem a

cultura e a educação como uma herança que vem de berço” (Arroyo, 2011, p. 238).

Neste movimento, Cestari (2012) destaca o entendimento sobre a noção de um

conceito denominado individualidade. Ele direciona compreender os processos formativos

sob duas dimensões do campo educacional: A dimensão constitutiva do ser, ou seja, o que

tem sido o indivíduo como processo de subjetivação em acordo com as demandas que lhe

impõem as formas de socialização determinantes; e a dimensão do dever ser, entendida aqui

como o lugar das intencionalidades e do que há de potencial para afirmar sobre a constituição

de outros processos de subjetivação e com Gilles Deleuze (1995) chamo a atenção para a

compreensão das individualidades3como diferenciação e constituição de subjetividades, ou

seja, como modos de ser da infância.

Algumas considerações

Deleuze e Guatarri (2010) destacam a importância de um plano ser traçado para que o

conceito seja construído. Acreditamos que o objetivo de Cestari (2013) ao justificar o

3 Aqui o conceito é utilizado no plural pois, não há apenas um modo de ser que constituem os sujeitos, mas uma

infinidade de potencialidades de constituição das suas subjetividades, além de estarmos falando de um grupo de crianças.

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contexto de emergência para compreensão de uma determinada ideia, é fazer emergir o lugar

de origem de formulação de um determinado conceito: Onde ele foi pensado? Por que foi

pensado? Quais as intenções do criador? Estes questionamentos podem ser caracterizados

como o próprio envolvimento dos movimentos infinitos no plano de imanência, vez que o

conceito que o povoará será elástico, já que o plano, o contexto de emergência é fluído.

Entendendo o conceito como um agenciamento, algo que é inventado a partir de dadas

condições, nosso objetivo é compreender como o conceito de Ciclos de Formação Humana foi

engendrado. Deslocando a ideia do trabalho científico dar-se pelo plano da imanência sobre a

qual são gerados os conceitos, buscaremos conhecer o seu solo de criação. O contexto em que

ele emergiu, uma vez que por uma condição interna e necessária para que o conhecimento

exista, pois sem esse plano, o conceito estaria perdido no vazio. Estaremos focados no ponto

de partida e nas justificativas que surgiram para que ele fosse vinculado no domínio

perceptivo dos grupos pensadores da Educação brasileira.

Encontramos nos argumentos de Arroyo (2011), as elaborações da compreensão dos

Ciclos de Formação como formação humana, que visam superar as determinações das

experiências seriadas de ensino na educação brasileira. Neste plano, temos a elaboração de

uma proposta de Ciclos de Formação Humana apontando a importância de desenvolver nos

educandos uma escolaridade pautada na especificidade de seus tempos de vida.

Referências ARROYO, M. G.Ciclos de desenvolvimento humano e formação de educadores.Educação & Sociedade, Campinas, SP, ano XX, n. 68, p. 143-162, dez. 1999. ___. Imagens quebradas: trajetórias e tempos de alunos e mestres. 6. ed. Petropólis: Vozes, 2011. BARRETTO, E. S.; MITRULIS, E. Os ciclos escolares: Elementos de uma trajetória. Cadernos de Pesquisa, n. 108, nov. 1999. CESTARI, Luiz Artur dos Santos. Individualidade e formação humana: argumentos em favor da educação como um campo próprio de saber. Educação. Porto Alegre, v. 35, n. 2, p. 217-224, maio/ago., 2012.

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______. Autobiografias e formação: a circulação da crença autobiográfica. Curitiba: CRV, 2013. DELEUZE, Gilles.A imanência: uma vida... Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27, p. 10-18, jul./dez. 2002. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 1. Tradução Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. ______. O que é a filosofia? 3. ed. Tradução Bento Prado Jr. E Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Ed. 34, 2010. GALLO, Sílvio. Deleuze & a Educação. 2. ed.Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

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DA NOÇÃO DE EPISTEME AO PLANO DE IMANÊNCIA: ESTENOGRAFIA CONCEITUAL DO CONTEXTO DE EMERGÊNCIA DE UMA IDEIA

Luiz Artur dos Santos Cestari1 PPGED/UESB

CIPED

Resumo: Este trabalho pretende mostrar a filiação do conceito de contexto de emergência com outros dois conceitos na filosofia pós-estruturalista e que me veio, inicialmente, com a leitura do livro “As palavras e as coisas”de Michel Foucault e, depois, com o livro “Deleuze e a Educação” do professor Silvio Gallo. Ao fazer uma breve exposição do conceito de plano de imanência. Gallo afirma que “enquanto solo da produção filosófica, o conceito de imanência deve ser considerado um conceito pré-filosófico” e que, segundo ele, ressaltando as devidas proporções, poderíamos traçar um paralelo com a noção de episteme em Foucault. Assim, tentarei caminhar no rastro de Deleuze para mostrar como o conceito de contexto de emergência elaborado no campo da educação, para interpretar um problema da efemeridade, tem convergências com as noções de episteme em Foucault e Plano de Imanência em Deleuze, mesmo reconhecendo a divergência inerente de que estes filósofos não incluem no horizonte da elaboração destes conceitos o campo da educação. Palavras-chave: Episteme. Plano de Imanência. Contexto de Emergência

Introdução

Uma das formas que tenho escolhido para estudar os fenômenos educativos tem sido a

de tentar compreender a efemeridade no campo educacional, por isso o tema da moda ou,

melhor ainda, a problematização do reconhecimento do fenômeno da moda no campo

educacional tem se tornado objeto de meus estudos e preocupações filosóficas. A primeira

influência desta iniciativa veio de minha leitura da obra de um filósofo francês chamado

Gilles Lipovetsky, de modo particular de uma das mais importantes “O império de efêmero”.

Lipovetsky destaca neste texto que a história do vestuário é a referência privilegiada

de tal problemática, mas, paralelamente, e em graus diversos, outros setores foram também

atingidos pelos processos da moda, tais como o mobiliário e os objetos decorativos, a

linguagem e as maneiras, os gostos e as ideias, os artistas e as obras culturais etc.A questão

urgente em apontar tal problematização para o campo educacional é levar em consideração

1Prof. do Programa de Pós-graduação em educação (PPGED/UESB) e Coordenador do Grupo de Estudos em

Circulação de Ideias no Pensamento Pedagógico Brasileiro.

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que o fenômeno da moda agora tenha também atingido um dos lugares que seria mais

refratário à efemeridade que são os campos de produção de saberes e ou conhecimentos, e

digo isso deste modo porque a consistência que se espera de uma elaboração dita científica

deveria se opor consequentemente às experiências passageiras pelas quais a socialização pós-

moderna nos submete diariamente, segundo a qual uma percepção é imediatamente

substituída por outra antes mesmo que esta encontre um lugar no domínio de nossa

compreensão. No sentido deleuziano, a efemeridade nos tornam sujeitos de percepção e não

de perceptos, pois estes demandariam dos sujeitos uma vivência com a intensidade e a

duração necessária para fazer com que a percepção ganhe consistência nas suas elaborações

ao ponto de não deixa-los sob a influência passiva de uma nova torrente.

Especificamente no campo educacional, temos alguns relatos sobre modismos e

poderíamos dizer de modo preliminar que se tratam de ideias pedagógicas que, em certo

momento da história da educação no Brasil, exerceram influências ao ponto de provocar

adesão coletiva dos profissionais da educação e, ao mesmo tempo, ser uma referência para a

interpretação de questões da realidade escolar. Um dos exemplos que poderíamos citar é o

caso do construtivismo e, de certo modo no Brasil, o que nos chegou como “construtivismo

piagetiano”, que embora tenha sido uma perspectiva epistemológica elaborada no campo da

psicologia cognitiva, chegou aqui no Brasil como uma orientação para a formação de

professores e depois alcançando o status de uma “pedagogia”, considerando que muitas

escolas no Brasil se apresentavam nos anos 80 e 90 como escolas construtivistas ou

socioconstrutivistas.

O problema que se pretende apresentar neste texto está relacionado a estas formas de

apropriação que retira uma ideia de um contexto local e histórico e o submete a outro

horizonte de percepção, mudando consequentemente a natureza e finalidade do uso que se faz

da ideia em acordo com o seu contexto. Para dar conta desta tarefa teórica, postulamos o

conceito de contexto de emergência, compreendido aqui como o contexto local, histórico e

interpretativo de produção de uma ideia e foi partindo disso que apresentamos o esboço de

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uma compreensão da circulação de ideias no campo da educação, ver, por exemplo, Cestari

(2013, 2014).

De modo específico, pretendo neste texto mostrar a filiação deste conceito com outros

dois conceitos na filosofia pós-estruturalista e que me veio, inicialmente, com a leitura do

livro “As palavras e as coisas”de Michel Foucault e, depois, com o livro “Deleuze e a

Educação” do professor Silvio Gallo. Ao fazer uma breve exposição do conceito de plano de

imanência em Gilles Deleuze, Gallo (2008, p.45) afirma que “enquanto solo da produção

filosófica, o conceito de imanência deve ser considerado um conceito pré-filosófico” e que,

segundo ele, ressaltando as devidas proporções, poderíamos traçar um paralelo com a noção

de episteme em Foucault. Ele ainda chama atenção a uma diferença básica entre os autores

que, segundo ele, “[...] a concepção foucaultiana há apenas uma episteme em cada época,

enquanto que para Deleuze [...] podem coexistir múltiplos planos de imanência” (GALLO,

2008, p. 45).

Assim, tentarei caminhar no rastro de Deleuze para mostrar como o conceito de

contexto de emergência elaborado no campo da educação, para interpretar um problema que

se refere ao modo como as ideias educacionais circulam, tem convergências com as noções de

episteme em Foucault e Plano de Imanência em Deleuze, mesmo reconhecendo a

divergência inerente de que estes filósofos não incluem no horizonte da elaboração destes

conceitos o campo da educação. Neste sentido, o conceito de contexto de emergência é um

intercessor (DELEUZE, 1992, p. 151) que permite fazer movimentos de pensamento diante

do problema da efemeridade no campo da educação e nos encontros teóricos com estes dois

autores e seus conceitos.

1. Sobre o conceito de episteme em Foucault

Comecemos pela noção de episteme. Três exemplos citados por Foucault

impressionam os leitores de “As palavras e as Coisas” e apresentam a preocupação do autor

em expor as condições pelas quais são determinados o verdadeiro e o não-verdadeiro.

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Primeiro, a taxinomia da enciclopédia chinesa em referência ao poema de Borges2. Esta

taxinomia transborda os limites de nosso pensamento e as regras que regem as positividades

nas culturas ocidentais. Colocar num mesmo plano de classificação animais, que pertencem

ao imperador, baleias, fabulosos, que se agitam como loucos etc.; proporciona um

deslumbramento com a “possibilidade de pensar isso” (FOUCAULT, 1999, p IX).

O segundo é a descrição e a análise da função do autor na obra de Velásquez (Las

meninas, cap I, p.02). No interior da cena e inserindo a si como presente na construção do

mundo do qual faz parte, Velasquez deixa muitas coisas à disposição da visibilidade, mas, ao

fazer isso, oculta muitas outras. Segundo Foucault (1999, p. 20) “[...] É que nesse quadro

talvez, como toda representação do que ele é, por assim dizer, a essência manifestada, a

invisibilidade profunda do que se vê é solidária com a invisibilidade daquele que vê –

malgrado os espelhos, os reflexos, as imitações, os retratos”.

Por fim, a terceira exemplificação. Foucault nos traz, também, a história do cavaleiro

errante de Cervantes, Dom Quixote. Nesta, ele destaca a busca incessante de Dom Quixote

pelos ideais da cavalaria por meio dos quais intentava utilizar o mundo para provar a

“verdade” dos romances. Ele (Dom Quixote) lê o mundo para demonstrar os livros, como diz

Foucault (1999, p. 64): “[...] Sua aventura será uma decifração do mundo, um percurso

minucioso para recolher em toda a superfície da terra as figuras que mostram que os livros

dizem a verdade”.

Por meio dos exemplos acima é possível discutir as teses apresentadas por Foucault na

obra “As palavras e as Coisas”, na qual se percebe a intenção de situar os saberes

constitutivos das ciências humanas. A arqueologia volta-se ao que é denominado de espaço

geral do saber, quer dizer às configurações e ao modo de ser das coisas tal como elas

aparecem, bem como a uma série de mutações necessárias e suficientes para circunscrever o

limiar de uma positividade nova. 2 “Esse texto cita certa enciclopédia chinesa onde será escrito que os animais se dividem em: a) pertencentes ao

imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classficação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n ) que de longe parecem moscas”.

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279

Assim, Foucault argumenta que a partir do século XVI tivemos três momentos

distintos marcados por uma única episteme em cada época. A primeira, denominada de

clássica, toma como ondem implícita dos saberes a semelhança, pois há uma relação

intrínseca entre o que se diz e o que é a coisa tal como se pronunciar algo fosse torná-lo

concreto. O exemplo da taxinomia chinesa, citada anteriormente, mostra esta junção entre a

palavra e a coisa de que as palavras tentam senão expressar a concordância entre o dito e o

visível. Gallo (2004) afirma que esta noção está muito ligada aos mitos antigos e que ainda

hoje é possível encontrar exemplos disso nos saberes populares. Ele exemplifica dizendo que

algumas pessoas evitam pronunciar certos nomes (de uma doença, por exemplo) para não

correr o risco de nos trazê-la de volta. Há um comportamento bem comum no Brasil de não

repetir palavras que evoquem coisas ruins que aconteceram, para que isso não mais volte a

acontecer, em geral nos é solicitado: - “Bata na madeira três vezes”.

Em seguida, Foucault nos abre ao espaço do impensável, ao que denomina de “não-

lugar” da linguagem, revelando as descontinuidades da ordem do discurso, no qual estamos

inseridos. Ele apresenta - como base em sua leitura da história do conhecimento – outras duas

grandes descontinuidades na episteme da cultura ocidental: “[...] aquela que inaugura a idade

moderna (por volta dos meados do século XVII) baseada na figura da representação e aquela

que, no início do século XIX, considerada emergente, que se articula em torno da linguagem.

Segundo Foucault, no nível arqueológico os sistemas de positividades mudaram de

maneira maciça na curva dos séculos XVIII e XIX. Em sua análise pôde mostrar a coerência

que existiu durante toda a idade clássica, entre a teoria da representação e as da linguagem,

das ordens naturais, da riqueza e do valor3. Para ele essa configuração mudou

significativamente a partir do século XIX, ou seja, a teoria da representação desaparece como

fundamento geral de todas as ordens possíveis.

3 Para levar adiante essas afirmações, este autor investiga e apresenta as figuras do saber predominante desde a

Antigüidade e apresenta as condições que vão alterar as positividades. Afirma que até o fim do século XVI a semelhança desempenhou um papel construtor no saber da cultura ocidental, pois foi por meio dela que foi orientada a exegese e a interpretação dos textos. Neste longo período, Foucault demonstra a predominância na cultura ocidental da representação como repetição. Assim, investiga como, no fim do século XVI, a semelhança foi desvinculada de seu papel de organizadora das figuras do saber.

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Retomando o quadro de Velasquez, Foucault nos coloca diante de uma situação

clássica da linguagem, quer dizer, o fato de que conhecimento e linguagem estão estritamente

entrecruzados, pois a linguagem pertence ao saber, seja registrando suas aquisições ou retendo

a discursividade. Com este quadro, de início, ele nos mostra que todo saber é representação

daquilo que se vê, sendo aquilo que se apreende das coisas que se vê o que resulta em saber.

Assim, quando se vê já é representação; e a linguagem, evocada daquilo que se vê, é o

desdobramento da primeira representação, ou seja, a representação da representação.

Diante disso, ele vai mostrar as mudanças das positividades das quais se referiu

anteriormente. Ele visualiza que o poder da linguagem é “de atribuir sinais adequados a todas

as representações, quaisquer que sejam e de estabelecer entre elas todos os laços possíveis”

(FOUCAULT, 1999, p.101). Por exemplo, a natureza dos séculos XVII e XVIII só é visível a

partir do dizível, visível por que é dizível: visão e linguagem se identificam e coincidem.

Uma mudança substancial na relação entre linguagem e conhecimento vai ser

apontada por Foucault no final do século XVIII, o que significou uma sensível passagem da

representação à interpretação e a linguagem deixa de aparecer como um sistema de

representações. O poder e a função de recortar e de recompor outras representações são

substituídos e, em seu lugar, o que se designam são ações, estados e vontades que vão além

daquilo que se vê o que significa designar o que se faz ou o que se sofre. Como afirma o

autor:

[...] A profunda interdependência da linguagem e do mundo se acha desfeita. O primado da escrita está suspenso. Desaparece então essa camada uniforme onde se entrecruzam indefinidamente o visto e o lido, o visível e o enunciável. As coisas e as palavras vão separar-se. O olho será destinado a ver e somente a ver; o ouvido somente a ouvir. O discurso terá realmente por tarefa dizer o que é, mas não será mais do que ele diz. (FOUCAULT, 1999, p. 59)

Em conformidade com esta citação, acredita-se ser o momento adequado para retomar

o terceiro exemplo foucaultiano. Dom Quixote nunca pareceu tão útil. A busca incessante

pelo desvelamento de um mundo que justifique as palavras, quer dizer as verdades contidas

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nos romances de cavalaria fazem Dom Quixote percorrer o caminho inverso, das teorias da

realidade ao signo. Esta obra é considerada por Foucault a primeira das obras modernas, pois

que aí se vê a razão cruel das identidades e das diferenças desdenharem infinitamente dos

signos e das similitudes.

Desta forma, a linguagem já aparece como uma mediação necessária uma vez que as

palavras são consideradas como possibilidades de conhecimento, o que possibilita uma forma

de exegese. Para Foucault, alguns autores modernos, que inovaram nas formas daquilo que se

podem afirmar sobre o mundo, tais como Marx, Nietzsche e Freud são exegetas de uma nova

fase da história do saber, pois neles percebe-se a tentativa de fazer falar algumas palavras que

estavam mudas porque enquadradas nos discursos e ofuscadas pelas positividades

estabelecidas. Por exemplo, Marx é visto como um exegeta do “valor”, Nietzsche de algumas

“palavras gregas” e Freud das “frases mudas” que servem de base aos nossos discursos.

A mudança no status da linguagem tem para Foucault implicações relevantes para a

ciência a partir do século XIX. Anteriormente, falou-se em duas descontinuidades em relação

à cultura ocidental (figura da semelhança), deste modo, é necessário retomá-las. A primeira,

nos limites entre os séculos XVII e XVIII, trata-se da proliferação de uma “mâthesis

universalis” que intentava encontrar um método predominante para as ciências tomando como

base o discurso racionalista cartesiano, com a tarefa de elaborar conceitos e métodos

positivos. A afirmação deste discurso vai ser marcada também pelos silêncios que oculta e um

importante silêncio ressaltado é a ausência do homem nas teorias deste período.

É no século XIX que o campo epistemológico explode. Fragmentando-se em direções

diferentes, ele vai passar a se constituir num espaço volumoso, no qual se tornam visíveis o

retraimento da “mâthesis” e o aparecimento do homem. Este processo foi marcado por uma

abertura em três dimensões. Primeiro, pelo encadeamento dedutivo das matemáticas e das

físicas; segundo, pelo estabelecimento da relação entre elementos descontínuos, mas análogos

sejam na linguagem, na vida e ou na produção e distribuição de riquezas. Para Foucault, a

emergência de cada uma das ciências humanas vai se dá pela exigência da ordem teórico-

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prática4; terceiro, pela reflexão filosófica e seu aparecimento frente às novas empiricidades,

ou seja, são transpostos para a filosofia conceitos e problemas dos diferentes domínios

empíricos, como as diversas filosofias da vida, do homem alienado e ou das formas

simbólicas.

Assim, as ciências humanas vão ser caracterizadas pelas análises do homem em suas

positividades, como ser que trabalha que vive que fala; permitindo a este ser buscar saber

também o que é a vida, em que consiste a essência do trabalho e de suas leis e de que modo se

pode falar. Com isso, são colocados para as ciências humanas dois problemas fundamentais:

um que parte da possibilidade do que é visível no homem, mas também aquele que põe em

evidência os mecanismos, as frases e processos inconscientes, como afirma Foucault é... Aos

limites da consciência exteriores a que eles se dirigem.

Portanto, há “ciências humanas” não apenas onde esteja o homem em questão, mas

onde se analise a condição das formas e dos conteúdos, ou seja, “não é o homem que as

constitui e oferece um domínio específico, mas é a disposição geral da episteme que lhes dá

lugar, as requer e as instaura – permitindo-lhes constituir o homem como seu objeto”

(FOUCAULT, 1999, p. 504).

Em Foucault percebemos que a emergência dos saberes modernos nas ciências

humanas foi possível pela forma como o homem aparecia, quer dizer outro regime de

positividades permitiu que o homem fosse abordado em determinado momento segundo a

forma como a episteme lhe deu lugar, ou seja, ele realiza uma crítica às condições de

surgimento dos discursos no campo das ciências humanas e uma das questões ressaltada por

ele relacionava-se à condição da linguagem por meio da qual se tornam visíveis muitas

positividades, mas que também ofuscam as condições de aparecimento dos saberes dos quais

estas positividades são constitutivas.

Foucault coloca em “As Palavras e as Coisas” que a linguagem é a representação do

saber que já é uma representação, ou seja, o que é “visível” e o que é possível se tornar

“dizível” em função das condições que permitem aos saberes a se constituírem em

4 A psicologia e a sociologia, por exemplo.

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positividades. Com o exemplo da taxinomia chinesa o autor nos coloca frente àquilo que em

nosso pensamento ocidental é recusado dizer. Na obra de Velásquez, as condições de

visibilidade, criadas pela presença do autor na cena, demonstram a função estratégica dele

como imanente à construção do saber, ou seja, ele faz parte da configuração das positividades

no interior de um campo.

Por fim, o outro exemplo Dom Quixote de Cervantes, demonstra o caráter da

linguagem nas sociedades modernas segundo Foucault, quer dizer, da separação entre as

palavras e as coisas, do deslumbramento de Dom Quixote pelas palavras ao tentar encontrar

territorialidade para os romances de cavalaria: onde estão as coisas referentes às minhas

palavras?

2. Indo em direção a Deleuze...

Não seria o primeiro a dizer que Gilles Deleuze não tomou o campo da educação

como lugar de suas discussões filosóficas, do mesmo modo como fez com a literatura e o

cinema por exemplo. Poderíamos até afirmar que um pesquisador em literatura ou cinema tem

mais apropriadamente a traduzir Deleuze para o universo de suas questões do que um

pesquisador em educação. No entanto, por algumas razões isso é permitido na filosofia deste

autor. Uma delas é apontada por Gallo quando afirma que por meio de “deslocamentos”

podemos tencionar a educação, não para “[...] apresentar ‘verdades deleuzeanas sobre

problemas educacionais’”, mas para mostrar o quanto pode ser fecundo o pensamento de

Deleuze para nos fazer pensar a educação. (GALLO, 2010).

Diria que prefiro o argumento introduzido por Deleuze em sua concepção de filosofia,

pois para ele esta não se constitui num ato de “reflexão sobre”5, posto que esta intenção venha

pôr a filosofia num lugar mais elevado que os outros saberes e disso Deleuze quer se livrar, a

saber, de considerar que existe qualquer hierarquia entre os saberes, principalmente da relação

5 No início do livro “O que é Filosofia?” Deleuze (1997, p. 14) questiona: “Vemos ao menos o que a filosofia

não é: ela não nem contemplação, nem reflexão, nem comunicação”

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da filosofia com as outras ciências, de modo que a filosofia pudesse ser a chamada de “ciência

das ciências”. Vejo que Deleuze volta-se contra isso, e aceitar isso, significa ser

condescendente com o mesmo argumento positivista que põe o saber matemático no lugar

mais alto da hierarquia dos valores entre os saberes, ou seja, tomar a filosofia como “reflexão”

elimina o caminho de investigar as condições de possiblidade que fizeram com que a filosofia

possa assumir tal condição, ou seria aceitar a superioridade da filosofia pela “vontade de

poder” dos próprios filósofos ou, ainda, pelo fato de que a própria filosofia ter sido um saber

que fugiu a todo tempo às tentativas de submetê-la as mesmas condições e orientações de

elaboração da ciência moderna.

Por isso, propõe-se aqui uma estratégia metodológica deleuzeana com tentativas de

aproximações e afastamentos com outras filosofias, concepções, perspectivas para definir um

lugar do nosso pensamento. Segundo Willians (2012) a visão do pensamento como sendo a

interpretação e transformação do que vem antes é típica da filosofia de Deleuze, até porque

filósofos como ele e Foucault, por exemplo, estão sempre em busca das condições de

possiblidade que permitiram a fixidez em algo, ou seja, ao invés de se perguntar o que é o

âmago, preocupa-se em questionar os limites disso, as condições transcendentais (condições

de possiblidade) que o constitui.

Um exemplo disso é a relação de ambivalência que estes filósofos estabelecem com o

pensamento do filósofo alemão Immanuel Kant. Ao mesmo tempo em que eles se aproximam

do procedimento filosófico kantiano ao investigar as condições necessárias de uma dada

intuição, em a “Crítica da razão pura”, por exemplo, quando Kant, naquilo em que considera

uma das questões fundamentais da filosofia “Que podemos conhecer”, mostra seu

entendimento sobre a faculdade da razão em geral e todos os conhecimentos que esta pode

buscar atingir independente da experiência.Por outro lado, os autores se distanciam de Kant,

pois suas perguntas se afastam das intenções kantianas por considerar a questão “o que é?”

como menos importante para a filosofia. Vejamos um trecho do Deleuze em seu texto: o

método da dramatização.

Não está assegurado que a questão o que é? Seja uma boa questão para descobrir a essência ou a ideia. É possível que questões do tipo: quem?,

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quanto?, como?, onde?, quando?, sejam melhores – tanto para descobrir a essência quanto para determinar algo mais importante concernente a ideia. (DELEUZE, 2006, p.131)

Temos aqui uma primeira intersecção com o conceito de contexto de emergência. Nos

estudos sobre a circulação de ideias na educação sempre visualizamos o problema da

efemeridade apresentando questões do tipo: “Por que dentre muitas uma determinada ideia se

torna mais importante que outras numa época? (quando?); Quais as condições sociais e

teóricas de sua viabilidade? (Como?); Quais os sentidos atribuídos num contexto ou noutro?

(Onde?); Quais os ganhos intelectuais na circulação de uma determinada ideia?” (Quem?). Ou

seja, as questões sempre perguntam pelas condições dadas para a adesão de uma determinada

ideia pelo campo da educação, pressupondo que fazendo isso estamos utilizando uma

estratégia que possa considerar que o contexto e o recorte que se faz para delimitar os

contornos de uma ideia é condição primeira para interpretar os sentidos da própria ideia.

Assim, se nossa tarefa filosófica tem sido trazer para o campo da educação o conceito

de moda, para lidar como o problema da efemeridade, deve-se levar em conta o que Deleuze

define por filosofia, e neste sentido ele indica dois aspectos: “criar conceitos e traçar planos”

(DELEUZE, 1997, p. 55). Deste modo, ao criar o conceito de moda de ideias na educação,

teve-se por obrigação traçar o contexto de emergência da própria ideia e é neste aspecto que

consigo exemplificar como a noção de contexto de emergência parte da episteme e almeja

chegar ao plano de imanência.

De início, nos termos de Foucault e tal como argumentamos na seção anterior, temos a

episteme como este “[...]chão pré-teórico e pré-filosófico, que subjaz e prefigura (nos seus

‘diagramas implícitos’) a forma de saber que só pode ser compreendido a partir deste campo

prévio” (PRADO JR., 1997, s/p). Quando pensamos no problema da efemeridade devemos

sinalizar que este se tornou problema para nós porque num determinado estágio do

capitalismo o efêmero ganhou status de império, se queremos usar os termos do livro de

Gilles Lipovetsky. Ou seja, estamos sob a condição de uma época em que propicia um tipo de

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socialização que nos submete a uma relação de superficialidade com as coisas do mundo e

que, de modo específico, isto também tem atingido o mundo das ideias.

Considerar isso, em nosso entendimento, não explica o problema da efemeridade na

educação e nem define os contornos que o conceito de moda assume no campo da educação.

Neste aspecto precisamente, visualizamos que o conceito de plano de imanência nos obriga,

embora soe paradoxal, seguir a imanência do próprio conceito de moda de ideias na educação.

Assim, quando abordamos o exemplo do “construtivismo pedagógico” como um modismo

que ocupou o campo educacional numa época, optamos por dois caminhos. O primeiro foi o

de tentar entender a episteme, ou melhor, o contexto de uma época do capitalismo avançado

em que o efêmero se tornou uma forma de relação imediata entre os sujeitos, as coisas e suas

ideias.

Esta última questão será melhor compreendida se nos atermos a um pequeno texto do

Deleuze intitulado “Post-scripitum: sociedades do controle”. Aqui, ele vai mostrando como a

feição assumida pelas sociedades no capitalismo contemporâneo vai se afastando

progressivamente das sociedades modernas, de modo que as instituições traziam em suas

práticas normatizações para disciplinar os corpos dos sujeitos e um exemplo notório, segundo

Foucault, e Deleuze reafirma isto, foi quanto à utilização dos exames nas escolas, pois este

representava o seguinte:

As sociedades disciplinares tem dois pólos: a assinatura que indica o indivíduo, e o número de matrícula sua posição numa massa. É que as disciplinas nunca viriam incompatibilidade entre os dois, e é ao mesmo tempo que o poder é massificante e individuante, isto é, constitui num corpo único aqueles sobre os quais se exerce, e molda a individualidade de cada membro do corpo. (Foucault via a origem desse duplo cuidado no poder pastoral do sacerdote - o rebanho e cada um dos animais – mas o poder civil, por sua vez, iria converter-se em pastor laico por outros meios). (DELEUZE, 1992, p. 222)

Contrariamente a isso, as sociedades do controle vão se tornar sociedades mais

flexíveis, tornando esta instituição mais aberta a variadas formas de fazer educação, mas

também, tornam-se flexíveis as relações entre os sujeitos nestas instituições, não é por acaso

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que uma escola ao estilo tradicional (entendida aqui como prática orientada pela ratio

studiorium jesuítica, por exemplo) é basicamente um afronto ao modelo de escola dita

construtivista ou socioconstrutivista.

Estas, ao contrário, apostam nas novas relações entre quem aprende e ensina, entre

coordenador e coordenados, entre diretor e o corpo de profissionais da instituição. Não

queremos dizer com isso que os avanços, que tivemos para tornar a escola mais democrática,

são caminhos indevidos, ao contrário, precisamos historicamente apreender novas formas de

lidar com o poder nas instituições e acredito que a democratização dos espaços educacionais é

a melhor forma. No entanto, o que está em questão aqui são as formas sutis pelo qual o poder

se manifesta numa sociedade do controle, tal como argumenta Deleuze.

Em nosso entendimento, a socialização passageira perpetrada pela efemeridade no

mundo capitalista é uma forma fácil de exercício de poder sobre os indivíduos, pois substitui

as formas de coação das sociedades disciplinares. A moda tem feito isso de diversas formas

na sociedade, pois ao tempo em que cria o estilo, prepara os produtos adequados para as

escolhas possíveis dos sujeitos, fazendo-os acreditar que a escolhas entre as possiblidades

disponíveis são escolhas livres destes sujeitos.

De modo particular o efêmero atinge o campo da educação, pois a moda de uma ideia

depende do deslocamento da ideia entre contextos, e entre o contexto onde ela surge e o da

sua recepção há um processo de apropriação no qual se torna predominante uma relação de

superficialidade com a ideia, pois o que se negligencia é o seu contexto de emergência em

função do que ela pode se tornar em sua recepção, criando facilmente dois efeitos discursivos

nos sujeitos, ou a generalização e ou o reducionismo.

No caso da generalização, lembra-se aqui o trabalho feito em pesquisa anterior sobre a

circulação das ideias autobiográficas no campo da educação (CESTARI, 2013, 2014).

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Ao fazermos a exposição da perspectiva autobiográfica no Movimento

Pesquisa/Formação6, visualizamos que a ideia que circulava nas pesquisas se tratava do que

denominamos de “crença autobiográfica” que pode ser sistematizado pelo argumento

largamente aceito de o sujeito deveria contar a si sua história e a experiência resultante desta é

considerada necessariamente uma socialização positiva para ele. Boa parte das pesquisas

estudadas tomava este argumento independente dos contornos específicos dos problemas e

dos argumentos em torno do objeto de estudo num determinado domínio do campo da

educação, por isso mapeamos a circulação deste argumento em pesquisa sobre didática da

matemática, ciências, nos estudos sobre linguagem, assim como em outros campos do saber.

Assim, o que importava é que o argumento e o uso do método eram, para qualquer situação,

facilmente justificáveis.

Quanto ao reducionismo, percebemos, por exemplo, o estreitamento da noção

memória como memória afirmativa. Ao enfatizar a eficácia do processo socializador da

experiência autobiográfica, o Movimento Pesquisa/Formação teve a intenção de conduzir os

sujeitos a resgatarem o processo socializador da construção das narrativas acreditando que os

processos de socialização intrínsecos apontam necessariamente para o acesso pelo sujeito às

dimensões positivas das relações humanas.

Na memória afirmativa, vinculada à ideia de construção da lógica narrativa do “eu”, a

afirmação do sujeito deve acontecer após o processo socializador das biografias. Por exemplo,

Dominicé relata três exemplos de vidas nos quais demonstra a eficácia da socialização das

biografias ao destacar que “[...] todos os três {Alice, Eric e Jean} [grifo nosso] conseguiram

fazer face à complexidade das histórias de suas vidas” (DOMINICÉ. 2002), encontrando ora a

liberdade, a identidade ou o sentido ainda distante de suas vidas. Nos casos relatados pelo

6Nos últimos 20 anos na Europa, as autobiografias e ou as histórias de vida têm sido apropriadas pelo campo da

educação com o sentido de uma experiência teórico-metodológica de construção existencial. Esta perspectiva teve início com a preocupação em apresentar nova orientação para trabalhar com a educação e formação de adultos na Europa reunindo pesquisadores da Suíça, França, Portugal e Inglaterra com a intenção de demonstrar que a valorização da experiência do professor, mediante a história de vida, pudesse colocar os mestres para falarem de si por si mesmos, valorizando sua vida e a experiência do processo de pesquisa como formação de uma experiência existencial. Ver Pineau (2006), Josso (2004) e outros autores que tem denominado este movimento de Pesquisa/Formação.

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autor há a predominância de um tipo de resolução positiva provocada pela experiência

autobiográfica. Este tipo de função da memória que denominamos de memória afirmativa

deixa de lado a parte sombria da memória, aquelas questões que incomodam os sujeitos ou até

a sua função reativa, de reafirmação da culpa em relação às ações cometidas no passado. O

reducionismo acontece quando os autores nesta perspectiva só conseguem visualizar a função

de eficácia da memória, por isso, denominei esta perspectiva de “crença na eficácia da

experiência autobiográfica” (CESTARI, 2011).

Em nosso entendimento, as implicações destes efeitos estão no fato de que a ideia de

autobiografia no campo da educação circula de modo a colonizar seus diversos domínios com

mesmos efeitos (a generalização e o reducionismo), operacionalizando um tipo de

cristalização da ideia que circula indiferenciada porque é aceita como argumento facilmente

justificável para diversos tipos problematização. Com isso, entendemos ainda que, fazendo

isso, há a negligência da imanência do conceito e dos problemas inerentes a cada domínio do

conhecimento no campo educacional.

Retomando a discussão com Deleuze, diria que o conceito de contexto de emergência

nos serve para mobilizar no campo da educação o conceito de plano de imanência. Segundo

Deleuze (1997) o plano de imanência tem dois aspectos complementares, o de criar conceitos

e traçar planos. Ele afirma ainda que:

[...] os conceitos são como vagas múltiplas que se erguem e se abaixam, mas o plano da imanência é a vaga única que os enrola e os desenrola. O plano envolve movimentos infinitos que o percorrem e o retornam, mas os conceitos são velocidades infinitas de movimentos finitos que percorrem cada vez somente seus próprios componentes (DELEUZE, 1997, p. 51)

Diante disso, o que a moda de ideias faz com o campo educacional, negligenciando os

contextos de constituição dos problemas inerentes ao campo, é distanciar-se da exigência

posta por Deleuze de que antes se devem traçar planos para criar conceitos. O que a

efemeridade faz no campo educacional é viabilizar a circulação de ideias que passam por

cima de todos os domínios, seus traços e seus conceitos, colonizando lugares, uma espécie de

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ambição pela repetição da mesma ideia cuja finalidade é a negação da diferenciação dos

traços, contextos e planos frente à multiplicidade de como podemos fazer isso no campo

educacional.

Referências

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A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA NA SENSIBILIDADE DOS MOVIMENTOS DE PROFESSORALIZAÇÃO

Maria Emérita Jaqueira Fernandes Jussara Midlej

UESB Resumo: Neste estudo, entrelaçamentos entre docência/pesquisa, memória/formação vinculados a movimentos de professoralização. Analisa a produção da professoralidade; como se vem sendo na docência. Envolveu observações, conversações, ateliês (auto)biográficos. Palavras-chave: Experiência estética. Formação docente. Método (auto)biográfico.

A pesquisa sobre o método biográfico na formação de professores é identificada como

importante contribuição das Ciências Humanas ao articular-se amplamente com as práticas

culturais e sociais, como produção de significados em circunstâncias históricas.Advém do

século XIX, na Alemanha como alternativa à sociologia positivista e, no decorrer de sua

evolução, desencadeou importantes polêmicas epistemológicas e metodológicas as quais vêm

definindo a sua consolidação e autonomia. (NÓVOA; FINGER, 2010). A pesquisa biográfica

ganhou ênfase filosófica ao ser instada a buscar as relações entre existir e narrar, implicada

em atos mediacionais e, estes, voltados à reflexividade autobiográfica e à consciência

histórica - em especial conectadas à educação de adultos1. Um dos pioneiros do movimento

socioeducativo das Histórias de vida em formação, Gaston Pineau, publicou, em 1980, uma

obra que marcou “[...] o início da utilização sistemática do método biográfico no âmbito da

Educação Permanente e da Formação de Adultos.” (Idem, p. 25). Ele considera as histórias de

vida como um método de investigação-ação relacionado à autoformação. Nessa mesma

sintonia, o pesquisador Pierre Dominicé (1984) utilizou o conceito de biografia educativa

como instrumento de investigação para a educação de adultos aproximando, por sua vez, o

biográfico do educativo. Ferrarotti (2010, p. 39), por sua vez, argumenta que “[...] os

materiais utilizados pelo método biográfico são, na maioria, autobiográficos.”

1 Esse termo, comumente utilizado na Europa corresponde, no Brasil, à denominada formação continuada de

professores e demais profissionais.

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Tal movimento ganhou relevância na perspectiva da pesquisa biográfica associada à

formação de professores, em especial a partir das contribuições de outros estudiosos europeus

aos quadros epistemológicos e metodológicos da biografização. Com seus princípios

epistemológico-metodológicos apresentados em eventos científicos, o também denominado

método das Histórias de Vida começou a ganhar, paulatinamente, espaços acadêmicos; as

discussões demonstraram-se proveitosas para a elaboração/promulgação da Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional/1996, a qual institui em seus artigos 62 e 63 a denominação de

profissionais da educação para pedagogos e professores; como importante conquista

determinou a “[...] exigência de curso de nível superior de graduação plena em universidades

e Institutos Superiores de Educação, para substituir o curso de magistério do nível médio.”

(ARANHA, 2006, p. 326). No citado contexto, os debates foram acirrados com legítimas

reivindicações pela mudança da formação e do perfil docente e, nesse sentido, contribuíram

para o desenvolvimento da pesquisa educacional ao trazerem, para a ordem do dia, o interesse

em novas formas de socialização da profissão docente relacionadas a aspectos pessoais e

profissionais, cujos processos de individualização e subjetivação apareceram claramente

vinculados às transformações sociais do final do século XX.(BUENO et al, 2006). O processo

formativo, agora não mais vinculado apenas ao aspecto de dar forma a, passou a envolver,

também estratégias de estranhamento de políticas de cognição cristalizadas, como modos de

construir outros modos de relação com mundo, consigo mesmo, com pessoas, com a

profissão.

(Auto)biografia: entrelaçamento de saberes

Gadamer (1997) trabalha o conceito de formação num sentido de bildung– como na

tradição alemã – e revela-o na condição de experiências e elevação do ser singular, que se

desliga de si para alcançar a consciência histórica, para se manter aberto ao diferente, a outros

pontos de vista menos individuais e mais universais. (HERMANN, 2008, 2014). Seus estudos

levam à construção de diálogos entre a dimensão estética da vida e a produção de

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subjetividades inter-relacionadas à questão formativa e, assim, pautados num campo

epistemologicamente autônomo e ao mesmo tempo intimamente conexo à Pedagogia – a

Filosofia.

A circulação de retornos sobre si mesmos, foram trazidos para o presente estudo e se

processaram na direção de ampliar a compreensão de si - como um si mesmo transformado -

ou, como diz Ricoeur (1990), como um si mesmo refletido,mediante a narrativa

(auto)biográfica. Ampliados sentidos acadêmicos, trazidos pela Filosofia, ao demonstrarem

articulações entre dinâmicas humanas e a profissão docente, remeteram-nos2 ao tecido social

e à produção de subjetividades pessoais, trazem a dimensão hermenêutica, da mediação

biográfica, da perspectiva histórica da pessoa, para o cerne de nossos interesses. Tais

aberturas, ao criar um crescente interesse na condição de sujeito histórico levou-nos a investir

em revisões de literatura que tratassem de articulação de narrativas, a partir de retornos

reflexivos sobre si e como (re)construção da experiência. (DEWEY, 1976, 2011;

FOUCAULT, 1985,1992;GADAMER, 1997).

De modo significativo os estudos levaram-nos ao aprofundamento epistemológico

pertinente à estética da professoralidade (PEREIRA, 1996; 2013a, b; MIDLEJ, 2008)e

ampliou-nos as perspectivas no pretendido campo de investigação-formação.A formação

estética, ao sofrer uma torção conceitual e não se restringir apenasa uma teorização da arte

(HERMANN, 2014) conduziu-nos a momentos de ruptura e conexões com outras

potencialidades e referências, outros eixos de investigação e teorização. As criações humanas,

envolvidas em parâmetros de emoção e subjetividade, de caráter autopoiético3, agora

crescentemente em dilatadas percepções, trouxeram-nos vieses de desenvolvimento de

consciência, de visão. Com isto, ampliamos o conceito de formação para as artes de si mesmo,

2 Esta denominada investigação-formação processou-se numa ação conjunta entre a autora, na condiçãode

orientanda e a coautora como orientadora. Assim, propositadamente, em determinados momentos os tempos verbais encontram-se na terceira pessoa do plural; noutros, na vivência específica como mestranda, na primeira pessoa do singular.

3 Autopoiético deriva de Autopoiésis - do grego auto (próprio) e poiese (criação). O termo remete à Poética de Aristóteles em relação à criação artística. Também cunhado na Biologia pelos pesquisadores chilenos Maturana e Varella foi deslocado para as Ciências Humanas no sentido de o sujeito produzir-se em sua relação com o mundo. (PASSEGI, 2011; SOUZA, A. V. M., 2007).

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de diferenciação do que se vinha sendo, na perspectiva de processos internos de constituição

em constante evolução e aperfeiçoamento em sentidos universais (GADAMER, 1997), como

gêneses de vidas em fluxos. Tais contribuições trouxeram forças novas, a nos instigarem à

realização da análise do processo de formativo docente e da prática pedagógica como campos

ativos de produção do sujeito, como espaços plurais de memória e narração, de articulação

dos atos de lembrar e dizer o sujeito que se vem sendo, igualmente os movimentos que vão

compondo a docência. Os germes da demarcação e da particularidade desta presente

investigação-ação nasceram atrelados a uma problemática próxima à denominada estetização

da profissão docente: De que modos a experiência estética poderá contribuir para a produção

de renovados movimentos de professoralização, em especial aqueles que abranjam atos de

articulação da dimensão humana sensível, de cultivo de singularidade e diferença? A análise e

a compreensão das possibilidades de a experiência estética compor revitalizados movimentos

de professoralização constituíram-se como objetivos a serem alcançados no decorrer desta

ação acadêmica.

A heterogeneidade das histórias levou-nos à Filosofia da educação, a fim de

referenciar os meandros do tema. Dentre outros, foram realizados estudos acerca daprodução

da profissão docente; a relação entre a ética, a estética e a educação; a estética da

professoralidade (PEREIRA, 1996; 2013a), os sentidos do diálogo e da singularidade do outro

no fenômeno da vida cotidiana e suas aproximações com a (auto)formação humana; a

hermenêutica filosófica (GADAMER, 1997) centrada no diálogo; a fenomenologia como

acontecimentos que se oferecem às oportunidades de (re)leituras.

A docência, efetivada entre 2013 e 2015, surgiu atrelada aoCurso de Licenciatura em

Pedagogia, do PARFOR,ao campus XXI da UNEB4, num contexto acadêmico expandido5, no

município de Ubatã6. Vinculada ao componente curricular Práxis e Estágio Supervisionado, a

classe foi inicialmente composta por 32 professoras-alunas; no decorrer do tempo, restaram

4 Localizado a 20 km de Ipiaú - sede do campus Dr. Salvador da Matta. 5 Disciplina ministrada por uma de nós: Maria Emérita J. Fernandes. 6 Ubatã é um município pertencente à microrregião sul da Bahia. Ipiaú é o município-sede do campus XXI da

UNEB, onde se delineiam as atividades administrativas do PARFOR.

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apenas 25 destas. Exercitei diferentes formas de organizar a docência acadêmica,estreitamente

relacionada à educação básicae, estas, mediadas por estudos relacionados à constituição da

docência, à biografização e à (auto)formação. Propor atividades mediadas por experiências

estéticas deu-se como possibilidades de incrementar e estudar a prática pedagógica a partir

destas: busquei relacionar o conhecimento acadêmico ao mundo pessoal das partícipes

criando diálogos sensíveis. Em tais dimensões, um dos maiores desafios foi o investimento

em vieses de “[...] interpenetração nos processos discursivos daqueles que vivem

culturalmente de forma restritiva.” (HERMANN, 2014, p. 103). Tocar seus universos de

significação, acionando a linguagem e a historicidade, provocou emoções e

subjetividadesfundamentadas no si mesmo e pareceu ‘desestabilizá-las’ e provocar

reflexividades críticas, “[...] fazer contrapontos às convenções do cotidiano e [...] romper a

rigidez da limitação das mentalidades e do empobrecimento cultural.” (Idem, p.103-105).

A ação docente acadêmica, complementada pelas observações diretas aos contextos

escolares, chegourecheada de orientaçõespautadas em elementos epistemológicos e em

estratégias pedagógicas; acontecia, para mim, como atravessamentos e produção de

subjetividades e demonstrava a desmotivação destas em seus processos, como professoras e

alunas: havia, amiúde, alegações de uma declarada sobrecarga de trabalhos, agora acrescida

de encargos acadêmicos, os quais, segundo estas, pareciam não fazer sentido para o exercício

docente, em sua maioria. Estas,também companheiras/esposas, mães e donas de

casa,exerciam a profissão em classes dos anos iniciais da educação. Com idades a variar entre

35 a 50 anos, possuíam apenas cursos realizados em Escolas Normais (habilitação específica

para o magistério)7e uma média de 15 a 20 anos de exercício docente. Na instância

universitária suas queixasocorriam com frequência:relacionavam-se a ditas muitas exigências

e afirmadas poucas aprendizagens.

7 No Brasil, a formação de professores para as quatro primeiras séries do ensino fundamental, através das

Escolas Normais, consolidou-se ao longo do século XX até a década de 1960. Em seguida a Lei n. 5.692/71 (Brasil, 1971) modificou a estrutura e estas desapareceram. Pelo parecer n. 349/72 (Brasil-MEC/CFE, 1972) a habilitação específica do magistério foi reduzida a uma habilitação dispersa em meio a tantas outras, configurando um quadro de precariedade bastante preocupante na educação brasileira. (SAVIANI, 2009).

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Com o tempo e, no necessário delineamento da ação investigativa, vimos a

impossibilidade de realizar a tarefa com toda a classe. Daí, definimos que o processo

acadêmico geral, sistematizado, prosseguiria com todas; de modo mais específico,

paralelamente, se daria apenas com aquelas que desejassem, voluntariamente, compor um

grupo singular de estudo.Demarcamos o número de partícipes entre 5 e 10 pessoas,

alegandoque um contingente ampliado poderia inviabilizar o aprofundamento analítico e as

necessárias compreensões mais aprofundadas do fenômeno. E ainda: as que se escolhessem,

teriam a carga horária devidamente certificada como Atividades Complementares8. A

negociação do campo delimitado foi feita no coletivo e acompanhada pelas devidas

justificativas, após os convites realizados, indistintamente, a todas. O grupo específico foi

composto de 5 das 25 professoras-alunas que formavam a classe, a partir de adesões

voluntárias.

Firmamos compromissos de fazer ciência com consciência crítica; como estratégia

coletiva central houve a realização de ateliês (auto)biográficos9, os quais criaram

possibilidades de resgates de memórias, participação intensa, trocas de informações individual

e coletivamente. Além disso, a compor as condições metodológicas do processo, investimos

em observações diretas, relações, articulações a fim de proceder a recolha de informações.

Sem perder o sentido [...] do rigor constitutivo de reflexão ética, expressão estética,

compromisso político [...].” (MACEDO, 2006, p. 45). Podemos adiantar que as experiências

deram claras manifestações de que verdadeiramente “[...] durante toda a sua vida o indivíduo

está em processo de formação” (PEREIRA, 2010a, p. 64) por possuírem “[...] uma

subjetividade complexa e variada refletida nos artefatos e nas instituições sociais nas quais

vivem.” (MACEDO, 2006, p. 53).

De modo significativo,o aprofundamento epistemológico, pertinente à estética da

professoralidade (PEREIRA, 1996; 2012 a, b; 2013a, b, c), ampliava-nos as perspectivas

epistemológicas e dava-nos renovadas aberturas conceituaisem pretensões de gerar outras

8 Estabelecidas nas Diretrizes Curriculares dos Cursos de Graduação pela Lei 9.394/96. 9 O primeiro, realizado com toda a classe; os demais, com o grupo específico.

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compreensões do fenômeno humano e docente; desse modo,epistemologicamente nos

referendamos melhor e abrimos probabilidades de ver explicitadas, em narrativas, as

experiências e as afecções que tornaram os professores o que eles vinham sendo.

A compreensão de denominadosmovimentos de professoralização “[...]como me tornei

o professor que sou, por que me tornei o professor que estou sendo” (PEREIRA, 2010a, p. 67)

nos mobilizam e funcionam como fios condutores a buscar encadeamentos de “[...] como me

tornei no que sou (no que venho sendo) e como tenho as ideias que tenho (que venho tendo).”

(JOSSO, 1988, p. 41). A partir do interesse em saber como se forma e aprende o sujeito, o

desenvolvimento desta ação se atrelouàformação do ponto de vista dos sujeitos. (NÓVOA,

1989; 1995; 2015; TARDIF; LESSARD, 2012).

Nessa direção, quando pensamos a formação a partir das narrativas de experiência,

sejam estas faladas ou escritas, partimos da convicção de que “[...] as palavras produzem

sentido, criam realidades e às vezes funcionam como potentes mecanismos de subjetivação”,

(pois) “[...] pensar não é somente raciocinar ou calcular ou argumentar, como nos tem sido

ensinado, mas é, sobretudo, dar sentido ao que somos e ao que nos acontece.” (LARROSA,

2002, p. 21).

Ponderamos, a exemplo de Foucault (2004a, b), a formação numa perspectiva ético-

estética, como uma arte de viver, uma estética da existência implicando em ser capaz de viver

criando diferentes estratégias de relacionamentos com o mundo, com o outro, com as

condições concretas da vida com a normatividade que ultrapassa as regras criadas pelo

próprio sujeito.Em tais dimensões a “[...] universalidade e a particularidade não se excluem

[...] se constituem pelo reconhecimento da tensão entre o eu singular e o nós (ethos comum).”

Assim sendo, o processo formativo acontece como bildung que se constitui num “[...]trabalho

de si mesmo, numa abertura dialética entre a experiência no mundo e um projeto de mundo.

Nesse trabalho de si, há uma dimensão estética como uma livre criação de si.” (HERMANN,

2008, p. 18). A confluência entre bildung, arte de viver e estética da existência, parece estar

em nos permitir conduzir nossas próprias vidas, através de exercícios diários de pensamentos

crítico-reflexivos sobre os acontecimentos, nossas atitudes nas variadas situações as quais

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somos levadas a escolher, a tomar decisões. A difícil arte de viver, nesses vieses, passa por

“[...] decidir a nossa própria ação, a criação de nós mesmos” (Idem, p. 28), ao sentir o outro

na própria pele e exercitar, ao mesmo tempo, nossas razão e sensibilidade.Fazemos isso, aqui,

ao vincular a teoria da formação (auto)biográfica como metodologia de educação de

professores e promoverrevisitações às suas histórias, especialmente vinculadas à instituição

escolar, aos caminhos que fizeram para ser quem vêm sendo. (PRADO; SOLIGO,

2005).Assim, também a experiência no contexto da formação, ou em formação, nos remetea

movimentos, cuja noção envia a novas compreensões e interpretações de si a cada narrativa da

experiência de vida, a uma ressignificação que consideramos aqui, “[...] razão estimulante

para a pesquisa educacional, pois nos conduz a buscar as relações entre viver e narrar, ação e

reflexão, narrativa, linguagem, reflexividade autobiográfica e consciência histórica.”

(PASSEGI, 2011, p.148).

Neste ensejo, a experiência como a fonte de toda narrativa, conforme Walter

Benjamim (1987, p. 114) sempre fora comunicada aos jovens “[...] de forma concisa, com a

autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa com a sua loquacidade, em histórias;

muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e

netos.”Para este, a fonte original de toda narrativa é a experiência; ele se refere à tradição oral

na qual o narrador é uma pessoa que conta suas histórias em contextos tradicionais de vida

coletiva, veiculando os valores do seu tempo. No entanto, ele(Idem, 1987, p. 114)ressalta a

pobreza da experiência como uma das marcas da modernidade, quando o narrador não tem

mais expressão, porque a experiência perdeu seu significado original. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?

Nesse sentido, poderíamos dizer que não é o menino o pai do homem (FREUD, 1996),

mas “[...]esse é o lugar de onde nos fala o narrador de memórias, o lugar do velho para quem

tudo é lembrança e o futuro, a consciência cada vez mais inalienável da própria morte.”

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(CHIARA, 2001, p. 23). Assim, apesar de a ausência dos espaços e sujeitos narrativos terem

contribuído para o desaparecimento do narrador tradicional, na contemporaneidade o narrador

não morre, ele se transforma e surge nos livros, nas músicas, nas mídias, nas redes sociais dos

tempos pós-modernos, renovado.Hoje parece sernecessário reinventar o narrador, a partir de

outras possíveis narrativas. Mais do que isso, é preciso escutar as experiências coletivas dos

professores, estas são especialmente ricas porque “[...] vêm de um investimento social, no

caso do processo escolar, ou das tramas dos encontros e desencontros que temos com os

outros e com o meio, ao longo da vida.” (BRAGANÇA, 2011, p. 160).

Nos modos de uma inversão da consciência filosófica para a consciência que

experimenta, “[...] a dialética da experiência tem sua própria consumação não num saber

concludente, mas nessa abertura à experiência que é posta em funcionamento pela própria

experiência.” (GADAMER, 1997, p. 525).Nessa perspectiva,“[...] ensinar e aprender como

um processo contínuo de reconstrução da experiência [...] como uma força em movimento [...]

influencia o que virão a ser experiências futuras.”(DEWEY, 2011, p. 91). Ora, transparece

nesses ditos que, num processo contínuo, a experiência reconstrói o objeto no sentido de

atualizar-se, ou seja, aquilo que se vivenciou numa experiência passada, se recompõe no

presente de outra forma. A partir da linguagem gadameriana “[...]a verdadeira experiência faz

parte da própria historicidade.” (GADAMER, 1997, p. 364).

De maneira semelhante Rolnik (1993) pensa em experiência como uma marca na

nossa existência, como estados inéditos que se produzem e transformam o nosso estado de

ser, cria novas composições de existir, de forma que “[...] cada um destes estados constitui

uma diferença que instaura uma abertura para a criação de um novo corpo, o que significa que

as marcas são sempre a gênese de um devir.” (Idem, p. 2). Desse ponto de vista, a autora

relaciona a experiência ao conceito de devir, explicitando que enquanto vivemos, fazemos

marcas, nos transformamos; que uma marca continua viva e pode ser reativada quando atrai e

é atraída por ambientes onde encontra ressonância. (Idem, 1993). A marca, a se reatualizar em

novos contextos seguem produzindo diferenças, criando novos corpos para a existência dessa

diferença. Dessa maneira “[...] a marca conserva vivo seu potencial de proliferação, como

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uma espécie de ovo que pode sempre engendrar outros devires: um ovo de linhas de tempo.”

(Idem, p. 3). Complementando, a autora em pauta afirma que a concepção do sujeito advém

dos devires, a partir de suas marcas conducentes, através das quais “[...] o que o sujeito pode

[...] é tentar criar sentido que permita sua existencialização – e quanto mais consegue fazê-lo,

provavelmente maior é o grau de potência com que a vida se afirma em sua existência.”

(Idem, 1993). É nesse sentido que o “[...] devir-profissional é uma figura virtual que depende

de uma atitude de disponibilidade para atualizar-se.” (PEREIRA, 2010a, p. 127).

Ao situar a linguagem no centro desse processonos apoiamos em Bakhtin (2006, p. 36-

127) e trazemos à tona os sentidos da comunicação em sua afirmativa “[...] a palavra é o

fenômeno ideológico por excelência [...] a língua constitui um processo de evolução

ininterrupta que se realiza através da interação verbal e social de locutores.” A linguagem,

como uma condição humana e social, segue a produzir, nos enunciados, atos singulares

irrepetíveis - o simples fato de ser ouvido, por si só, estabelece uma relação dialógica, e

abrange o quanto “[...] a palavra quer ser ouvida, compreendida, respondida e quer, por sua

vez, responder à resposta, [...]ela entra num diálogo em que o sentido não tem fim.”

(BAKHTIN, 1997 p. 348).Cada palavra é assim, constituída de outras, com outra e para outras

palavras, por isso, o passado e o futuro são infinitos e por isso não há limites no contexto

dialógico.

Em tais dimensões, a hermenêutica, ao fazer parte de um movimento filosófico

denominado antifundacional, iniciado com Nietzsche no final do século XIX, tem como

proposta dar continuidade à conversação da espécie humana, numa perspectiva em que “[...] a

procura das verdades tem a ver com negociação de sentido, com linguagem, com diálogo com

a tradição [...] como um frutífero campo de inspiração na busca de caminhos investigativos

em educação.” (GRÜN; COSTA, M. V. 1996 p. 85). O significado da palavra hermenêutica

provém do grego hermeneia traduzida como “interpretar”, está associado ao deus grego

Hermes, identificado como um mensageiro com habilidades especiais na realização de

negociações, trocas e funções de transmutações, ou seja, de “[...] transformar tudo aquilo que

ultrapassa a compreensão humana em algo que essa inteligência consiga compreender.”

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(PALMER, 1988, p. 24). O foco da atenção hermenêutica filosófica gadameriana, ao situar o

lócus do significado na linguagem - e não no sujeito - está na “[...] capacidade de se entregar

aos objetos e deixar que eles o redefinam [...] (estes) em uma postura investigativa

hermenêutica vão se modificando [...] abalam suas certezas prévias e produzem novas

asserções.” (Idem, p. 99-100). Para Gadamer (1997), o outro é a própria tradição na qual o

sujeito não-centrado, que é o eu-tu, está inserido; assim, a linguagem, para este, ao

condicionar a vida humana, elabora uma ontologia do evento da compreensão. Ao invés de

tentar revelar ou descobrir verdades absolutas, a hermenêutica abre possibilidades para a

compreensão dos problemas, seus limites e suas perspectivas.

O referencial e as possibilidades metodológicas “[...] consideradas um conjunto de

preceitos ou processos de que se serve uma ciência [...]” (LAKATOS, 2008, p. 110) deram-

nos sustentação para o encaminhamento desta complexa ação. Assim, processaram-se através

das recolhas de informações por meio das narrativas de formação nas múltiplas interações

realizadas com as professoras-alunas. Do campo empírico, os significados brotaram dos

acontecimentos, das experiências vividas em realidades sócio-históricas, das narrativas e

alimentarem denominados círculos hermenêuticos - compreensão, interpretação, nova

compreensão (FAZENDA, 1994) e foram analisados na perspectiva de identificar percursos

existenciais imbricados na profissão, traços de possíveis ocorrências de estetização do sujeito

– nesse caso atravessado pelas experiências de narrar-se. (PASSEGI, 2008; 2010). As citadas

estratégias ocorreram relacionadas a contextos socioeconômicos e políticos das partícipes nos

quais os discursos se sucediam, também em atos das falas, “[...] adotando a perspectiva de que

o conhecimento não é uma coisa que as pessoas possuem na cabeça, mas algo que elas fazem

juntas.” (SPINK, MEDRADO, 2000, p. 76). Houve, nessas proposições, sentidos de favorecer

conexões de abertura para as análises de como vem se constituindo os movimentos de

professoralização. (PEREIRA, 2010a, b; MIDLEJ, 2013; 2014a, b).O portfóliofoi utilizado

como suporte formativo (MIDLEJ; NOGUEIRA, 2013), tendo funcionado como um

instrumento ímpar para a produção sistematizada do conhecimento: suas fontes materiais, a

conter anotações de todo o processo, desde o início deram mostras de um acontecer

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pedagógico vinculado à presente investigação-formação. A busca da estetização da

(auto)formação docente encontrou, neste instrumento, um viés apropriado de recolhas

variadas e complexas, a subsidiar, de modo relevante, esta ação.

A triangulação do ‘corpus empírico’ (MACEDO, 2006, p. 136) deu-se a partir das

recolhas das informações, advindas das observações da docência e foram, paulatinamente,

sendo registrado no diário de campo; numa linguagem não verbal, em fotos digitais. As

gravações, em áudio, realizadas na imersão em campo, nas conversações feitas com cada

professora e nos ateliês (auto)biográficos de memória e formação docente. Dada a

importância do diálogo entre as partes da experiência que nos pareceram mais relevantes,

optamos pela triangulação das sínteses das dimensões temáticas que vieram de várias

fontes,sintonizadas com a temática estudada e a análise do conjunto, num movimento

contínuo e dialético. (MARCONDES; BRISOLA, 2014; MACEDO, 2006).A análise dessas

informações recebeu um tratamento minucioso e profundo, no sentido de uma busca

arqueológica das palavras, em atitudes atencionais de ativa receptividade. (KASTRUP, 2007;

MEIRELES, 2014). A triangulação das informações, portanto, se processou de forma

caleidoscópica ampliando as possibilidades de análise dos discursos e possibilitando uma

visão “[...] de identificação do processo pelo qual as pessoas dão forma discursiva às

interações sociais, produzem sentidos ao que falam e orientam suas ações no contexto em que

vivem.” (CHIZZOTTI, 2006, p. 122).

Sensíveis compreensões Pathos

Essa vida quer religamento enquanto hesito

fragmento. Jussara Midlej, 2011

As lembranças de ambientes escolares, das primeiras professoras, revelaram modos de

constituição da docência; em sua maioria as narrativas trouxeram consigo resgates de cargas

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emocionais que se constituíram em experiências a abrirem espaços para processos de reflexão,

sobre si mesmase, possíveis entendimentos de como estas as afetaram.

Aqui, registros das partícipes, específicas, deste estudo:

[...] comecei a estudar numa escola que era uma garagem, que hoje conhecemos como a tal banca ou reforço escolar e, por não dispormos de condições financeiras a professora não exigia muito por pagamentos, ela me ajudava muito e foi assim que tive os meus primeiros contatos com a escola, lá conheci as primeiras letras, números e pequenas palavras, estudei com essa professora dois anos, quando estava com 9 anos fui para a escola.(Mariana).

Fui matriculada numa escola particular no curso de alfabetização. Lembro da professora muito rígida e sisuda, mas também lembro a doçura da ajudante que eu chamava de tia. Naquele mesmo ano aprendi a ler e escrever. Estudei nessa escola por dois anos, tive momentos muito felizes [...] os tristes por conta de certa ignorância que hoje sei que é preconceito. (Nádia).

Meu processo de alfabetização teve início aproximadamente aos oito anos de idade, foi quando fui passar um tempo [...] na casa de uma tia, ela me colocou para estudar o ABC no sindicato rural, a professora não tinha formação do magistério, mas demonstrava ter muita dedicação [...] ensinava gratuitamente. Dois anos depois voltei para a roça e meus pais me colocaram para estudar a cartilha (Alice) com uma professora que se chamava Rosa, ela era leiga tinha concluído o curso primário. (Juliana).

Lembro-me dos livros, eram forrados com plástico e tinham dois furos onde colocávamos uma fita vermelha, todos os alunos usavam fardas, todas bem passadas e muito limpas. Tínhamos desfiles em comemoração ao dia da pátria e ao dia da cidade. [...] De todos os professores que tive me marcaram o respeito e de como tínhamos que manter a organização do material e do fardamento.(Maria).

[...] o primeiro contato com as colegas era quase sem diálogo, com o tempo fui ficando mais confiante e segura, conseguindo ser mais participativa. O professor era o dono do saber com autoridade máxima na sala de aula e o aluno submisso, quase nunca tinha oportunidade de questionar. (Roberta).

Estas narrativas revelam resgates de memórias retrospectivas e interpretações de fatos

relacionados a práticas pedagógicas, estereotipadas, recheadas de traços de caráter devocional,

vocativo, institucional e improvisado da atividade professoral herdada durante o processo

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histórico da educação no Brasil. Ao serem trazidas do passado, em recortes instantâneos,

desprovidas de embates reflexivos, demonstram um exercício de memória preso às

lembranças, em territórios existenciais que ressurgem de modo estático. Ratificam que um

exercício memorialístico feito a partir da representação de quem eu fui - engessa e constitui a

narrativa (auto)biográfica identitariamente. Segundo Pereira, (2013a, p. 63-64) “[...] a

identidade é, nesses casos, tomada como ponto de partida porque é compreendida como forma

de um sujeito [...] tomada como uma causalidade linear que resulta em uma figura fixada

[...].” Nosso desafio, nesse processo, estava em buscar, nas substâncias da memória,

influências e reverberações na constituição de dimensões pessoais, sociais e profissionais das

partícipes, que trouxessem probabilidades de indicarprováveis momentos de quebra das

formas vigentes e possíveis desestabelecimentos de padrões fixos, obsoletos, e projetarem

outras possibilidades de colocar a docência em fluxo.

Noutros sentidos, planejamos estratégias que criassem possibilidades de instigá-las a

registrar suas memórias, a fim de analisarmos a ocorrência, ou não, de deslocamentos de si, de

sinais produtivos de subjetividade, em especial, na profissão docente. Agimos em sentidos

investigativos e formativos, portanto. Inicialmente acionamos o filme ‘Nenhum a Menos10,’

(1999) que ao trazer as condições de um ambiente escolar bastante precário e localizado numa

zona rural chinesa, aproxima-se de lugares pedagógicos das partícipes deste estudo. O filme

gerou expressões particulares, inicialmente em ricas discussões orais e, depois, através de

registros escritos. Como um feixe de forças dialógicas, provocou comentários sobre um

ambiente escolar problemático: no filme, ínfimas condições pedagógicas e materiais,

abrigadas num contexto multisserializado, cuja única expressão de ensino/aprendizagem se

resumia às silenciosas e intermináveis tarefas discentes de copiar textos do quadro de giz. A

monotonia de um ambiente pobre materialmente e em possibilidade didáticas alia-se à

inexperiência da mocinha que se constituía professora.

10Nome original: Not One Less/ Yi Ge Dou Bu Neng Sha. Diretor: Zhang Yimou; Elenco: Wei

Minzhi, Zhang Huike, Tian Zenda,Gao Emman, Sun Zhimel; Duração: 106 min; Ano: 1999.

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Resgatamos inicialmente um registro que traz à tona uma questão que permeou as

discussões:

Sou igual à professora do filme: [...] todo processo do ensino fundamental para mim é alfabetizar, da educação infantil ao 5º ano sempre é alfabetização. (Mariana).

O ato alfabetizador foi uma preocupação constante entre elas; suas compreensões dos

fatos e acontecimentos chegaram envolvidas em variadas contradições, inseguranças

didáticas, empregos de métodos relacionadas à realidade de classes multisseriadas (em

especial em zonas rurais). Nos comentários, houve demonstrações de que elas oscilam entre

os modos tradicionais de exercer a docência e os pretensamente aprendidos na experiência

acadêmica em curso. As inseguranças didáticas, nesse campo, revelaram-se centrais: em suas

classes as demandas ‘por ensinar a ler e a escrever’ são imensas e deu para perceber que as

cenas do filme encorajaram-nas a fazer correlações entre o que estão estudando e o cotidiano

de suas tarefas docentes; a reflexão sistemática e intencionada tornou visível o

desenvolvimento de uma compreensão dos princípios que regulam a prática, como se pode

observar nas palavras da professora Juliana, logo abaixo:

[...] O início de minha vida profissional na rede pública tem um pouco a ver com a professora do filme. Eu não tinha experiência, e nenhuma vivência com a realidade dos alunos, enfrentei algumas dificuldades em todos os sentidos, nunca desisti, sempre procurei mudanças nas minhas ações e atitudes, visando o aluno como a principal descoberta para o crescimento dos conhecimentos e aprendizagem. (Juliana).

Ao revelar a semelhança de ação com Wei, a professora fala da inexperiência no início

de sua carreira; revela que vai construindo, com o tempo de convívio e experiência com os

alunos, os sentidos da profissão. Demonstra, com isso, que a docência pode funcionar como

um laboratório de aprendizagem da professoralidade (PEREIRA, 2010a, b), uma disposição

para a mobilização dos rumos da prática; embora reconheça que há dificuldades na tarefa, fala

da disposição de mudanças de ações e atitudes. Isto revela que a professoralização vai se

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constituindo em movimentos de desequilíbrios, inacabamentos, diferenças do que se vinha

sendo. Numa conversa particular ela chegou a afirmar que “[...] ainda que seja difícil trabalhar

com alguns conteúdos que não sejam de modo tradicional, eu procuro mudar [...].” Há aqui

uma evidência de que, a professoralidade, ao não se constituir como um estado estagnado

encontra-se em fluxo, num processo interminável – como devires provisórios, em

movimentos de professoralização.

A mediação da linguagem, em festas de ressurreição da historicidade (BAKHTIN,

2006), propiciou conversações, fluxos de singularidades, resgastes e interpretações de

fragmentos (auto)biográficos, demonstrando que a agregação de conhecimentos, produzidos

em vínculos contextuais particulares, de ação, incita as reflexões acerca de si, traz olhares

para a própria experiência, fala da transição entre um acontecimento e outro. (BAUER;

GASKELL, 2002). Nas polifonias de linguagem das docentes-estudantes, a prevalência e a

reverberação do aparato de controle que a sociedade tem exercido sobre o sujeito apareceu

sob a forma de marcas conservadoras (ROLNIK, 1993) em suas concepções de formação,

Escola, docência, alunos, processo ensino/aprendizagem, a apontar para a lógica identitária

homogeneizante, fixa, relacionada a modelos. A reflexão acerca de suas experiências e

influências sociais, ao serem mediadas pela criticidade e processos de prática (ou cuidado) de

si, de subjetivação, pareceu produzir uma contra-memória (FOUCAULT, 1985) como

provável ampliação de consciência e resistência a padrões. (RABELO, 2007).

O fato é que, a entrada em cena da estética, como ciência do conhecimento sensível,

ao não se restringir ao campo da arte, abriu acessos de desconstrução com a ordem habitual

das certezas confiáveis e afetou-as com estranhamentos conectados a aspectos formativos,

desconsiderados pela tradição racionalista. Nos dois ateliês, focados em estratégias vinculadas

à realização de contrapontos às convenções pedagógicas, à recuperação de certo humanismo

do outro, (HERMANN, 2014) geraram inquietações. As experiências, realizadas como

lugares de produção, como devir, especialmente aquelas pautadas em leituras de textos

literários e de cunho filosóficos e linguagens não verbais, fez entrar em jogo potências

sensíveis que acionaram discursos provocadores de deslocamentos de sentidos. As narrativas,

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tanto as orais, quanto as escritas trouxeram as marcas de desassossego com a percepção das

rupturas provocadas com o fortuito, a descontinuidade dos acontecimentos, a

imprevisibilidade das emoções, como aspectos determinantes da experiência

humana.Apreendemos que as ansiedades externadas advinham do campo de experimentação

das substâncias presentes na memória projetiva, cuja natureza se desassocia do caráter

cognitivo da aprendizagem e se configura como rupturas, abalos radicais nos modos como se

vem sendo. (PEREIRA, 2013 a , b).

O processo complexo evidenciou outras frequências e novos timbres dialógicos - que

chegavam aos vieses investigativos como anúncios de recomeços, de desfamiliarização com

antigos modos de pensar atos pedagógicos. Crescentemente elas pareceram se apresentar em

possibilidades de renovadas sensibilidades, dilatar entendimentos das situações nas quais

estavam inseridas, dando mostras, embora rudimentares, de (re)pensar a vida como instância

de aprendizagem num tempo em andamento.Nessa direção, ressaltaram o processo formativo

do PARFOR como propiciador de reflexões, ao apontá-lo, indistintamente, como um

importante polo ampliador da docência para outras perspectivas. Os indícios de que

começavam a ensaiar novas/outras práticas apareceram em seus movimentos de

professoralização em, ainda incipientes atividades que se demonstravam mais sensíveis,

significativas. Enfim, deram de olhar, mais detidamente, para si mesmas.Consideramos, do

mesmo modo, que as possibilidades abertas pela experiência realizada constituiu-se em

valioso território para nós, pesquisadoras-professoras. Ao nos render às afecções trazidas pelo

presente objeto/pesquisa novas figuras existenciais, também se fizeram em nós, em vastas

produções de subjetividade.

Por fim, na consideração de que as forças históricas nos constituem e operam com

sentidos que já se encontram na linguagem, há na presente investigação-formação, fortes

indícios de que a experiência estética, ao promover a recriação das escutas do tempo em

curso, convocou a um sucessivo jogo de (re)interpretação e recriação da vida, deu mostras de

desestabilizar concepções rígidas e produzir dinamismos e diferenças em tramas professorais.

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Como deflagradora de experimentos subjetivos coletivos e intensificados, trouxe perspectivas

de revitalização da professoralidade, dos movimentos de professoralização.

Enquanto isso, nosso trabalho pedagógico prossegue à cata e à espera de novos

acontecimentos;crescentemente se deseja relacionado à estetização epistemológica desse

tempo crísico de agora. (MORIN, 1984).

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NOTAS SOBRE APRENDER E ESQUECER María José Guzmán

UESB/CAPES Resumo: Walter Benjamin teve uma relação intensa com a obra de Marcel Proust. Sabemos que no romance de este último Em busca do tempo perdido aparece o célebre problema da memória involuntária.Destacaremos aqui alguns pontos da reflexão benjaminiana que permitem adentrar a questão da memória, da narração e da destruição e que são produto das reflexões do filósofo berlinense em torno desse romance. Apontaremos depois certos problemas do campo da educação que é possível repensar a partir dessas observações benjaminianas, a saber, a relação entre aprender e lembrar, a questão do sujeito, a História e a narração.

Palavras-chave: Aprendizagem. Destruição. Memória.

Memória e esquecimento

O presente trabalho faz parte de um projeto ainda não concretado que persegue figuras

literário-filosóficas do aprender. Ou seja, imagens ou ideias que guardam relação com o

aprendizado e que coloquem em jogo de diversas formas a literatura e a filosofia. Essa

triangulação entre a arte a filosofia e a educação requer um especial cuidado em evitar a

simples subordinação de qualquer uma delas a outra. Por exemplo, não se trata aqui de que a

literatura venha “ilustrar” de alguma forma ideias filosóficas ou de que a filosofia interprete e

sancione uma interpretação canônica sobre a arte. Não se trata de colocar bases filosóficas

para a educação no sentido de ditar princípios ou imperativos, nem de que a literatura ensine

valores. Busca-se, ao contrário, uma dinâmica na qual cada vértice do triângulo provoque os

outros e os leve além de seus limites. Benedito Nunes o expressa muito bem ao falar das

relações entre filosofia e literatura: se trata de que cada uma aprenda da outra. Y se trata,

sempre, de que o aprender seja um ir além, uma surpresa, uma ruptura, o aparecimento do que

antes não existia, um ponto de vista novo para observar o velho mundo.

Walter Benjamin (1892-1940) confessava seu medo de ser “contaminado” ou

“envenenado” por Marcel Proust (1871-1922), tal a intensidade da sedução que o romancista

francês exercia sobre ele. Robert Kahn, quem compilou todos os textos do pensador

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berlinense sobre Proust (2010) afirma que, de todos os escritores sobre os quais Benjamin

trabalhou, o romancista francês foi quem mais o influenciou e observa que foi também aquele

ao qual lhe dedicou seus melhores talentos: o traduziu, realizou um trabalho crítico sobre sua

obra e, inclusive, de alguma forma, o rescreveu – dado que para Kahn (2010, p. 7) Infância

em Berlim por volta de 1900 (BENJAMIN 1994) seria a versão benjaminiana de Em busca do

tempo perdido. Ele foi um dos primeiros leitores alemães de Proust e uma exceção entre os

críticos alemães de esquerda que em geral receberam mal o romance proustiano. Por fim,

Benjamin reservou-lhe a Proust um lugarimportante no seio das suas ideias filosóficas.

Destacaremos aqui alguns pontos da reflexão benjaminiana que permitem adentrar a

questão da memória, da narração e da destruição e que são produto de suas reflexões em torno

de Em busca do tempo perdido1de Marcel Proust. Apontaremos depois problemas do campo

da educação que essas observações benjaminianas nos permitem repensar.

Segundo seu amigo Gershom Scholem (1981, p. 148), Benjamin passa grande parte do

ano de 1926 em Paris traduzindo Proust. É nesse período que a cidade que continuará sendo o

objeto de reflexões ao longo de sua vida conquista seu coração. Em 1929 pública “A imagem

de Proust”2 (1994) na revista Literarische Welt. O ensaioestá dividido em três partes, nos

ocuparemos aqui apenas da primeira delas, que reflete sobre a memória e o esquecimento,

vinculando esses conceitos ao tecido e ao sonho. A passagem que citaremos na continuação se

repete com tanta frequência entre os comentadores, que se corre o risco de ignorar a

heterogeneidade dos elementos que Benjamin coloca em relação: memória, esquecimento,

sonho e tecido. Os três primeiros já aparecem entrelaçados por Proust, mas o tecido, o ato de

tecer não deixa de ser surpreendente:

Sabemos que Proust não descreveu em sua obra uma vida como ela de fato foi, e sim uma vida lembrada por quem a viveu. Porém esse comentário ainda é difuso, e demasiadamente grosseiro. Pois o importante, para o autor

1 O romance, cuja edição mais comum se apresenta em sete volumes, foi publicado entre 1913 e 1927. Os

últimos três volumes apareceram postumamente. 2 Daqui em diante citaremos esse ensaio como IP. Para que na leitura se distinga facilmente de qualquer outro

ensaio publicado no mesmo volume das Obras Escolhidas.

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que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido da sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência (IP, p. 37).

Como ele dirá mais à frente, “a unidade do texto está no actus purus da própria

recordação, e não na pessoa do autor, e muito menos na ação” (IP, p. 37). Essa afirmação nos

remete a Ortega y Gasset (1957) – citado por Benjamin em outra passagem do ensaio que nos

ocupa – quem afirma que no romance proustiano não se trata de coisas que são lembradas,

mas da própria lembrança. Reformulando: se trata do processo ou do funcionamento da

memória que narra (ou que tece).

Mas vamos nos deter no tecido. Um tecido pode ser apenas um objeto acabado, mas

pode ser mais interessante pensá-lo como um trabalho, como uma ação (a figura de Penélope,

nesse sentido, nos autoriza a pensá-lo, aliás, como uma ação jamais acabada, ou ainda, como

uma ação que não tem o acabamento por finalidade). A figura de Penélope evoca o fazer e

desfazer, movimento “de vaivém” (GAGNEBIN, 1999, p. 4). Lembrar e esquecer, tecer e

destecer: esse vaivém aproxima a ideia da morte e do fim, mas os mantêm em suspense.

Penélope esquece seu marido durante o dia, enquanto à noite, destecendo, de alguma forma o

recupera. Enquanto Odisseu permaneçavivo na lembrança de Penélope, ela irá desfazer o

tecido, enquanto o tecido estiver inacabado, ela não irá casar com os outros homens que a

pretendem. Os pretendentes, de seu lado, não tentam eliminar a Odisseu, que está ausente,

desaparecido já faz tempo; mas eles precisam combater a lembrança de Odisseu. A figura de

Penélope, do seu trabalho, do seu esforço, introduz já a memória como um “campo de forças”

(IP, p. 40), apontando na relação entre a lembrançae o esquecimento para um terceiro

elemento incontornável: o poder.

A palavra tecido, afirma Benjamin, tem a mesma raiz que a palavra texto. A memória

aparece então como um campo de forças e o desfazer - associado a outra ideia cara a

Benjamin, a de destruição - como parte constitutiva dessa forma de memória que é o narrar. E

mais ainda, se para Benjamin o “trabalho de Penélope do esquecimento” está aparentado com

a memória involuntária, o texto narrativo nega ser apenas uma função solidária à memória,

mostrando um vínculo constitutivo com o que corriqueiramente identificamos como seu

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oposto: o esquecimento. Para produzir uma narração, é preciso entretecer ambos

(GAGNEBIN, 1999, p. 5). É importante esse movimento que reúne a perda (aquilo que não se

pode alcançar, aquilo que se abandona, aquilo que se destrói) e a produção como partes

constitutivas da memória, negando qualquer tendência a pensá-la sob o modelo da simples

agregação:

Movimento de recolhimento e de dispersão que funda a atividade narradora, tantas vezes percebida como sendo de reunião e restauração. Movimento mesmo da linguagem onde as “coisas” só estão presentes porque não estão aí enquanto tais, mas ditas na sua ausência (GAGNEBIN, 1999, p. 5, grifo da autora).

A escrita sempre sensível de Gagnebin sugere uma ampliação do jogo da

presença/ausência. Se o senso comum nos leva a crer que aquilo que se esquece pertence ao

passado, Gagnebin sugere-nos outra questão: sempre estamos esquecendo e, se nos atemos à

dinâmica presença-ausência que a linguagem instaura, podemos dizer que esquecemos

inclusive do presente. Não percebemos nem lembramos sem esquecer, negligenciar, destruir.

Proust insiste na dificuldade de “lembrar” o presente. O amor em Proust é um caso

emblemático de esquecimento do presente, como o é toda experiência que nos leva ao limite e

nos afasta do cotidiano, do imediato, do que reconhecemos facilmente.

Destruição e produção

Como disse Gagnebin (1999, p. 5), a linguagem é sempre um jogo com aquilo que está

ausente. Porque esquecemos precisamos narrar, porque esquecemos apreciamos os relatos. As

melhores narrativas são reverberam, repercutem, se repetem, se releem, se contam uma e

outra vez. Narrar e lembrar são trabalhos esforçados de uma memória insuficiente e

destrutora. Uma memória objetiva ou perfeita ou apenas agregadora é limitada se a

confrontamos com aprovocativa conclusão que Benjamin extrai de Proust: que o

acontecimento lembrado é sem limites. No vaivém, atada ao esquecimento, tecendo e se

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tecendo, puxando os fios que arrastam novas redes, a memória destrói e criar.Ela abre uma

porta pela que tudo o que "volta" na linguagem volta de maneira diferente. Ensina Deleuze

que das grandes obras podemos dizer que elas carregam em si mesmas uma espécie de

necessidade de voltar, de se repetir, mas nunca se repetem identicamente; não há nada que se

assemelhe a elas: são únicas e ao mesmo tempo, voltam sempre diferentemente.

A ideia da memória involuntária remete a esses lapsos de rememoração que de

maneira intempestiva descortinam um mundo que estava esquecido e o trazem de volta. E

quando esse mundo volta, ele aparece como jamais foi vivido. A descoberta dessa simples

diferença que se cria quando o vivido é rememorado é um motivo literário com interessantes

repercussões na filosofia. As forças mentais às que obedece a lembrança não respondem à

vontade e inclusive a contrariam (as lembranças traumáticas impossíveis de apagar, mas

também as rememorações que nos assaltam repentinamente quando sentimos um cheiro

podem servir de exemplo). Não todas as lembranças são plenas, nem igualmente intensas.

Frequentemente Não nos é dado decidir quando se ativa uma lembrança ou se abandonam

outras, nem como se associam as lembranças entre elas, que acontecimentos disparam a

recordação de outros que permaneciam na sombra.

Diremos, portanto, que é a semelhança, e não a identidade, o que ativa a memória

involuntária. A memória não é um depósito de vivências lúcidas que vêm à tona se

preservando idênticas, ela é um movimento, um trabalho, uma força tateante. Ou melhor, a

memória pode ser tratada e exercitada como se fosse um depósito de vivências lúcidas, mas o

que Benjamin e Proust, cada um de forma diferente permitem é refletir sobre uma gama de

estados entre lembrar e esquecer que ficam semiencobertos, que podem se perder para sempre

ou voltar num lampejo. O herói proustiano conhece bem esses estados intermediários

(Giorgio Agamben os denomina “crepusculares” 3). Se o passado e o presente fossem

perfeitamente distintos poderiamos apenas contemplar sua absoluta diferença. Se a memória 3Estados como o sonho, a passagem do sono para a vigília, ou a memória involuntária, aparecem em “Infância e

História” (AGAMBEN, 2005, p. 49) como “estados crepusculares”. Há em Proust uma especial atenção a esses estados em que o tempo e o espaço vacilam e os objetos se distanciam, quando isso acontece, algo impede ou distorce o conhecimento (lógico, racional, científico) e ao mesmo tempo, se oferece um aceso diferente à verdade.

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do narrador de Em busca do tempo perdido fosse infalível, provavelmente não teria escrito

sequer uma linha. Para se mover a imaginação precisa, precisamente, desse espaço escuro e

heterogêneo da semelhança. É precisamente porque a memória humana esquece que ela pode

“saltar”, ignorar as particularidades, mas também superar as generalizações. O esquecimento

e a destruição são motores da memória – essa memória que, a cada vez que retoma o passado

produz algo no presente. E os estados crepusculares nos dão a pensar mais do que o senso

comum está disposto a reconhecer.

A ideia da memória plena está ligada à da percepção plena e ambas, por sua vez, a um

estado de vigília e lucidez extremas. Dissemos anteriormente que Benjamin tece os conceitos

de memória e esquecimento junto ao de sonho, um estado crepuscular, regido pela

semelhança e a intensidade. Podemos, portanto, entender melhor a afirmação benjaminiana de

que aquilo que Proust buscava incansavelmente enquanto acordado eram as semelhanças que

o sonho produz – sem esquecer que aqui semelhança é diferente de identidade. Elas são, diz o

filósofo, deformantes, e nos mostram o rosto surrealista da existência, que é “o verdadeiro”

(IP, p. 40). Se o máximo de consciência se dá na vigília, o sonho é o estado que confunde os

dados e os objetos daquela. Ora, é nesse estado de inexatidão, de consciência não plena ou de

semelhança que se funda, segundo Benjamin, a possibilidade de viver o passado da maneira

como ele nunca foi vivido4. Vale a pena insistir aqui: “um acontecimento vivido é finito, […]

ao passo que o acontecimento lembrado é sem limite” (IP, p. 37). O vivido e o sujeito que

vive são finitos, existem e perecem no tempo, mas a memória é infinita, porque não há termo

para as conexões que ela pode realizar. Porque o passado não está dado, está sempre, como o

presente, sendo tecido. Para Benjamin, parece evidente que a memória não é o oposto do

esquecimento, da mesma maneira que a vigília não exclui sempre o tipo de percepção que

temos durante os sonhos.

4 Jeanne Marie Gagnebin diz : “salvar o passado no presente graças à percepção de uma semelhança que os

transforma os dois: transforma o passado porque este assume uma forma nova, que poderia ter desaparecido no esquecimento; transforma o presente porque este se revela como sendo a realização possível dessa promessa anterior […]. Daí também a importância […] do conceito de semelhança na filosofia de Benjamin” (1994, p. 16, grifo nosso)

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Para Benjamin, o trabalho de Proust era desfazer aquilo que a vigília tecia em torno de

suas imagens noturnas; isto é, resgatar no seu texto com uma paciência que tem algo de

artesanal aquilo que a vigília e suas forças aliadas – a razão, o hábito, o eu, a objetividade, a

identidade – desfazem. Proust se mantém em guerra contra as forças da vigília, o despojo

dessa guerra são as intermitências da memória involuntária, próxima dos estados

crepusculares em geral, mas próxima do esquecer que do lembrar.

É dessa maneira que aparecem os conceitos de memória, esquecimento, vigília e sonho

quando problematizados a partir da distância. Já dissemos que eles trazem à tona as questões

da semelhança e da produtividade. Por último e remetendo-nos à imagem do tecido, é preciso

apontar que a memoria fica associada a uma trama de relações. Ao acordarmos, diz Benjamin,

trazemos conosco um pedacinho de tecido, mas a luz do dia desfaz “o trabalho da noite” (IP,

p. 37). Não apenas o esquecimento, mas a memória voluntária também pode desfazer essa

trama. Talvez não haja exemplo mais claro do perigo que representa para Proust a memória

voluntária que o da vontade de lembrar um sonho, processo no qual a própria rememoração

vai destruindo aquilo que penetra. Dito nos termos que temos proposto aqui: o elo que liga o

sonho – a semelhança – é extremamente vulnerável à vontade. A lembrança de um sonho

implica num grande esforço que jamais atinge completamente seu propósito, porque o

sonhado não se deixa traduzir à linguagem5; na medida em que vamos lembrando o sonho tal

como o sonhamos vai se apagando. Assim, o produto da rememoração pode ser fixado na

consciência, na linguagem; mas destruindo o sonho tal como foi sonhado, do qual temos uma

lembrança crepuscular. Um dos esforços de Proust que Benjamin admira e reconhece é o de

tentar por em palavras esse mundo que se esvai na luz do dia. O romancista não mostra

apenas que o lembrar se tece com o esquecer, mas também que na rememoração se trava uma

luta e se mantém sempre uma tensão entre o voluntário e o involuntário.

É no vaivém, no percurso incerto de uma memória errante que se constroem as

lembranças e que se torna possível, eventualmente, narrar. A memória se mostra como um

5 Talvez se deixe traduzir em linguagem poética, mas não na linguagem habitual, que é também uma das formas

da vigília.

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campo de forças e não como uma simples compilação exaustiva ou automática. É interessante

resgatar que outro grande pensador contemporâneo, Friedrich Nietzsche também relaciona

memória, esquecimento e criação:

para o filósofo Nietzsche, memória e esquecimento relacionam-se à vontade criadora […] Neste sentido, a faculdade do esquecimento é concebida positivamente, como força ativa, regeneradora e curativa, visto que permite àquele que esquece a digestão de suas experiências, permite-lhe liberar-se do fardo dos acontecimentos passados. O ressentido, para Nietzsche do Ecce Homo, é aquele que “não consegue desembaraçar-se de nada; não sabe liquidar nenhum assunto pendente, não sabe rechaçar nada. Tudo fere. Os homens e as coisas aproximam-se indiscretamente demais; todos os acontecimentos deixam traços; a lembrança é a chaga purulenta” (MEINERZ, 2010).

A nossa expectativa ao desenvolver este texto é que a imagem da memória que aqui

apresentamos repercuta nas nossas ideias sobre o aprender, assim como nas nossas práticas de

ensino e nos nossos aprendizados. Na continuação tentaremos explorar algumas repercussões

possíveis.

Notas sobre a memória e a educação

Esperamos que estas notas exploratórias e inacabadas suscitem novas anotações, que

abram outras perspectivas e que signifiquem um desafio para as nossas práticas. As

apresentaremos apenas como grandes tópicos, com o objetivo abrir uma diálogo e de

continuar a pensar nelas:

1) A relação entre aprender e lembrar. É célebre a teoria platônica: o

conhecimento é em verdade uma lembrança. É estendida a ideia de que não vale a

pena aprender de memória, ou de que aprender de memória seria como o contrário

de um aprendizado que faz sentido. É comum ainda que uma avaliação detecte

melhor uma correta memorização do que uma boa reflexão. Em companhia de

Benjamin, acredito, podemos estender a crítica da simples memorização, ir além

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delamaximizando a nossa disposição para acolher o involuntário, o intempestivo, a

ruptura, o sonho, o surreal; assim como para acolher certas formas de destruição.

Não para transformar o aprendizado em uma brincadeira ou em algo divertido, mas

para tentar a difícil tarefa de reconhecer a esses estados crepusculares e algo

selvagens o estatuto do nos força a pensar. Não para subordinar o surreal no

pensamento, mas para inocular um pouco do primeiro no segundo e manter o

pensamento em estado de inquietude, estado que nos parece favorável à

aprendizagem.

2) O sujeito. A filosofia do século XX foi marcada por longas discussões em torno

do conceito de sujeito. A crítica desse conceito associou-se, em um determinado

momento, à crítica dos grandes relatos. Ora, a memória e as técnicas que com ela

se relacionam tem sido identificadas como técnicas de sujeição (pensemos na

psicanálise, na confissão cristã, na anamnese clínica, nos exames, etc.). Com

sujeição nos referimos aqui a modos sociais de entender o sujeito segundo os quais

o próprio sujeito se entende também a si mesmo e que, ao defini-lo, o sujeitam aos

poderes estabelecidos. Pensar a memória como uma tarefa criativa e destrutiva é

pensa-la também como uma forma de relação ao passado transformadora do

presente. Mesmo que não saibamos como nos libertar das nossas sujeições, sempre

podemos contar as nossas histórias uma e outra vez, até que, talvez, elas consigam

romper com os imperativos muitas vezes inconscientes que obedecemos sem ter

escolhido.

3) A história e as histórias. Como já dissemos, certas histórias e narrações carregam

intrinsecamente uma produtividade. Não sabemos de antemão quais as histórias

que vão repercutir em nós ou em nossos alunos e provavelmente essa repercussão,

de acontecer, responderá a uma temporalidade que nada tem a ver com os

esquemas aos que comumente se submete o tempo numa aula. Para tentar propiciar

os efeitos produtivos da narrativa, talvez devamos renunciar a querer governar

esses efeitos, assim como à tentação metodológica de colocar uma data ou um

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horário para que eles aconteçam. Para propiciar um encontro produtivo com a

narrativa (seja que se trate de ficção, da História como disciplina ou das formas de

narrar-se a si mesmo) talvez devamos, por exemplo, deixar de lado às histórias que

tentam transmitir alguma coisa (um valor, uma moral, uma lição) e abraçar aquelas

que não podemos esquecer, ou as que não acabamos de compreender.

Apontamos apenas três grandes tópicos, eles precisam ser discutidos mais

detalhadamente e remetem a outras possibilidades que esperamos poder explorar em breve,

como os “usos” da ficção ou da arte; o papel da História segundo o modo em que a

entendemos; as formas possíveis de propiciar o involuntário no pensamento e no aprendizado,

etc. Depois da leitura de Benjamin se tem a certeza de que a arte é a condição de possibilidade

de seu pensamento, mas depois de ler os textos benjaminianos sobre arte, as obras se

transformam em outras obras. Esperamos que algo de essa força transformadora haja

transparecido aqui e posa também inspirar as práticas e as escolhas dos professores, seja

quando eles ensinam, seja quando eles aprendem.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005.

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. Tradução Sergio Paulo Rouanet. Prefácio Jeanne Marie Gagnebin. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Walter Benjamin ou a historia aberta.” In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 7–19.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1999.

KAHN, Robert (Org.). BENJAMIN, Walter. Sur Proust. TraduçãoRobert Kahn. Caen: Nous, 2010.

MEINERZ. Viés e revés da memória: análise a partir de “Funes - o memorioso” de Borges e a doença do esquecimento em “Cem Anos De Solidão” de Gabriel Garcia Marquez. Justicia.

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In:SEMINARIO INTERNACIONAL POLÍTICAS DE LA MEMORIA, 3., 2010. Historia, Verdad. Escrituras de la memoria. Comunicaçao oral...Buenos Aires, 2010. Disponível em <http://www.derhuman.jus.gov.ar/conti/2010/10/mesa-06/meinerz_mesa_6.pdf>. Acesso em: 31 jul. 2015

ORTEGA Y GASSET, José. “Tiempo, distancia y forma en el arte de Proust.” In: Obrascompletas.Madrid: Revista de Occidente, 1957. Tomo II.

SCHOLEM, Gershom. Walter Benjamin: histoire d’une amitié. Paris: Calmann-Levy, 1981.

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POLÍTICAS PÚBLICAS DE ALFABETIZAÇÃO DE PESSOAS JOVENS E ADULTAS NO BRASIL: REFLEXÕES

Oney Cardoso Badaró Alves da Silva1 Sheila Cristina Furtado Sales2

PPGED/UESB Resumo: A alfabetização vem sendo considerada como um compromisso fundamental para a garantia do direito universal à educação com qualidade das pessoas jovens e adultas. Sendo assim, o objetivo deste trabalho é apresentar de forma sucinta algumas reflexões acerca das políticas públicas de alfabetização de pessoas jovens e adultas no contexto brasileiro, considerando que alfabetizar todas as pessoas seja um grande desafio que o país ainda tem de enfrentar. Dessa forma, o texto aborda sobre a dificuldade que o governo brasileiro teve e continua tendo para enfrentar a problemática do analfabetismo e preferiu, ao longo da história, implantar programas emergentes, que finalizam junto com o governo a uma proposta permanente que pudesse dar conta da solução do problema. Embora seja um trabalho de revisão bibliográfica, pode-se afirmar que o país não vai conseguir resolver o problema do analfabetismo sem a estruturação de um projeto político específico para essa demanda, ou seja, é necessária a implementação de uma política de Estado.

Palavras-chave: Alfabetização, jovens e adultos, políticas públicas

Introdução

Nos últimos anos, de forma mais explícita, a alfabetização vem sendo considerada

como um compromisso fundamental para garantir o direito universal à educação com

qualidade das pessoas jovens e adultas que, por diferentes motivos ou circunstâncias, não

tiveram oportunidade ou acesso ao processo de escolarização básica na infância ou

adolescência. Em sendo assim, o objetivo deste trabalho é apresentar de forma sucinta

algumas reflexões acerca das políticas públicas de alfabetização de pessoas jovens e adultas

no contexto brasileiro, considerando que alfabetizar todas as pessoas seja um grande desafio

que o país ainda tem de enfrentar. Dessa forma, o texto aborda também sobre a insistência do

1Graduada em Pedagogia com Habilitação em Alfabetização - UNEB (Universidade do Estado da

Bahia); Especialista em Psicopedagogia - UESC (Universidade Estadual de Santa Cruz) e em Educação, Cultura e Memória - UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia); Professora da Rede Regular de Ensino de Vitória da Conquista - BA; Mestranda do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Educação PPGED/UESB. Email: [email protected]

2 Docente do Programa de Pós-graduação em Educação – PPGEd, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Email: [email protected].

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governo brasileiro em enfrentar a problemática do analfabetismo com a implantação de

programas emergentes, que finalizam junto com o governo sem apresentar saldo positivo.

No ano de 2003 o debate acerca do analfabetismo no Brasil é colocado em evidência

quando o Ministério da Educação (MEC), embora reconheça avanços recentes na área

educacional, estabelece como prioridade o combate ao analfabetismo. A medida para isso foi

subsidiar a implantação de políticas públicas visando à erradicação do analfabetismo. O MEC

passou a defender, na ocasião, que deveria considerar as diferenças regionais e intra-regionais

do país, pois era preciso perceber essas diferenças na implantação de toda política educacional

para atingir seus objetivos. O Brasil, ao longo de sua história, já apresentou outras propostas

para combater o analfabetismo, mas efetivamente não apresentou resultados significativos em

nenhuma delas, pois os índices continuam altos.

Outros motivos colocam em pauta o debate acerca do analfabetismo nos últimos anos.

Entre eles, os baixos índices alcançados pelos estudantes nas avaliações realizadas para

verificar o desempenho da leitura e da escrita. Provinha Brasil, Enem, Saeb, Enade e Pisa são

alguns dos exames realizados com estudantes dos diferentes níveis. De acordo com

Rosemberg (2001), esses exames vêm sendo realizados sob influência de organismos

internacionais como o Banco Mundial, com o objetivo de controlar verbas e apoios

financeiros dados pelos órgãos financiadores.

Segundo os interesses desses órgãos, a melhoria dos índices, não está relacionada à

formação de sujeitos com consciência para o exercício de uma cidadania plena. Além do

mais, não se verifica mudanças significativas de um ano para o outro. De acordo com Morais

(2009, p. 28),

Os resultados das avaliações referentes aos diferentes níveis e etapas da educação brasileira parecem anunciar, já algum tempo, uma mesma conclusão: alunas e alunos brasileiros pouco compreendem daquilo que lêem. O que significa dizer que pouco dominam a língua que usam.

Tomando esses índices como ponto de referência, questiona-se por que os índices

permanecem praticamente os mesmos se, ao longo dos anos foram implementados programas

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e ou políticas para solucionar o problema? Como as avaliações apontam um diagnóstico, por

que não o tem tomado como ponto de partida para solução dessa problemática? Não há mais o

que constatar por meio dessas avaliações, pois elas são suficientes para dizer que os

estudantes brasileiros se encontram num nível de desempenho de leitura e escrita muito

inferior ao esperado para seu grau de escolaridade.

No ano de 2003, o MEC instituiu o Programa Brasil Alfabetizado, voltado para a

alfabetização de pessoas jovens, adultas e idosas, considerando esse Programa como

possibilidade de acesso à cidadania e o despertar do interesse pela elevação da escolaridade.

Esse Programa priorizou o atendimento aos municípios que apresentavam as taxas mais altas

de analfabetismo, mas atualmente é desenvolvido em todo o país. Ao aderirem ao Programa,

os governos estaduais e municipais se comprometem a implementar as ações do programa, no

sentido de garantir a continuidade dos estudos aos alfabetizandos na rede regular de ensino.

Entre os anos de 2003 a 2012, esse Programa registra um número aproximadamente de

14,7 milhões de pessoas jovens e adultas atendidas em todo o país, o que denota uma

dimensão do analfabetismo no Estado brasileiro. A seguir, para fins de contextualização dessa

problemática, apresenta-se alguns de seus antecedentes para depois centrar a discussão acerca

de políticas de governo e políticas de Estado no contexto dos novos/velhos programas

historicamente implementados no Brasil com objetivos e metas mirabolantes e nenhum nem

outro alcançado.

Antecedentes

A Organização das Nações Unidas – ONU e a Organização das Nações Unidas para a

Educação, a Ciência e a Cultura declararam o dia 8 de setembro como dia internacional da

alfabetização, no ano de 1967. A partir daí, os países latino-americanos, irmanados por uma

mesma história, assumiram o compromisso de enfrentare resolvero problema do

analfabetismo. É de se supor que nenhum sistema democrático se orgulha com uma

percentagem significativa da população analfabeta. A falta de formação básica e qualificação

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técnica eprofissional adequada impede que o sujeito saia do ciclo de pobreza. A pobreza, por

sua vez, aumenta o analfabetismo.

A Constituição Federal promulgada no ano de 1988, ao afirmar os direitos e deveres

dos cidadãos brasileiros, entre eles o direito à educação, garantiu que em dez anos o

analfabetismo deveria ser extinto. Mais de vinte anos depois da promulgação da Constituição,

verifica-se que o país ainda conta com um alto índice de pessoas jovens e adultas analfabetas

e sem acesso à escolarização, ou seja, o analfabetismo ainda persiste. Ao implantar o

Programa Brasil Alfabetizado, o presidente Lula também afirmou que em 10 anos o

analfabetismo seria extinto no Brasil, o que não aconteceu.

Historicamente, no Brasil, o analfabetismo é explicado, a partir da consideração de

que em sua origem ele está relacionado à estrutura socioeconômica, política e cultural

desigual e injusta, que se manifesta no estado de pobreza e miséria em que vive parte da

população. Portanto, para combater o analfabetismo, é preciso acabar com a pobreza e

garantir os serviços básicos desaúde, educaçãoeinfra-estrutura. Sem dúvida, essa é uma tarefa

do Estado, que deve oferecer esses serviços paraaqueles quedeles carecem.

Apesar do aparente consenso nacional, sobre a importância da educação para o

melhoramento da qualidade de vida da população e para o desenvolvimento do país, ainda há

muitos brasileiros sem acesso à educação. Esse é o retrato de uma nação que prega a

universalização da educação, de uma educação para todos, mas não oferta nem possibilita que

todos tenham o acesso à escola. O sistema educacional brasileiro, nesse contexto, tem sido

pouco eficaz para alcançar que seu processo e seu produto responda às necessidades e

aspirações do contexto social. O Brasil se encontra entre os países da América Latina com

indicadores mais baixos, em termos de analfabetismo.

No ano de 2001, o índice de analfabetismo no Brasil, entre a população de 15 anos de

idade e mais, era de 13,6% , o que representa uma população aproximada de 16 milhões de

pessoas. No entanto, evidencia-se que no mundo moderno a educação seja vista como agente

poderoso com o qual se conta para o desenvolvimento econômico, social, cultural e político

de um país e a alfabetização, por sua vez, é o elemento principal da educação. Esta é essencial

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como estratégia de equidade e unidade nacional. A alfabetização é, portanto, concebida como

instrumento de desenvolvimento.

O IBGE aponta, no entanto, que o índice tem reduzido nos últimos anos. Caiu de

11.5% em 2004 para 8,7% em 2013. Embora se verifique que os índices do analfabetismo

absoluto estão diminuindo, cresce o número de analfabetos funcionais, aqueles que não

conseguem fazer uso da linguagem escrita como prática social. Nesse sentido, é bom lembrar

que a concepção de alfabetização adotada pelo IBGE se limita ao domínio mecânico do ato de

ler e escrever. Isso sugere dizer que esses índices seriam bem diferentes se considerasse como

alfabetizado o sujeito que usa a leitura e a escrita com autonomia.

A Educação de Jovens e Adultos, a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional, LDB 9394/96, passou a ser parte integrante da Educação Básica e de

responsabilidade dos municípios, embora os benefícios na prática tenham sido pouco visíveis

pela sociedade, pois não há um projeto consolidado para essa modalidade de ensino, as

escolas e ou espaços onde funcionam as classes de jovens e adultos são, em sua maioria,

improvisados; não há, portanto, uma escola para jovens e adultos e, entre outros aspectos, as

classes de pessoas jovens e adultas funcionam sempre à noite, excluindo, as pessoas

analfabetas que trabalham no noturno.

O analfabetismo está ainda associado a outros problemas sociais como a falta de

moradia, a fome, o desemprego, a alienação, entre outros. Historicamente, a população

considerada analfabeta é a mesma população que passa por esses problemas, podendo afirmar,

assim, que o analfabetismo atinge, principalmente as pessoas das camadas menos

privilegiadas social e economicamente.

Programas e estratégias de alfabetização

O Brasil é marcado historicamente por uma sequência de programas e ou políticas de

alfabetização de pessoas jovens e adultas. Esses programas e ou políticas se enquadram mais

no que se pode chamar de políticas de governo do que como políticas de Estado, o que

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denuncia o descaso com essa modalidade de educação. A problemática do analfabetismo no

Brasil é antiga e ainda hoje esse problema vem sendo tratado por meio de programas

emergenciais e todos eles, basicamente, com as mesmas estruturas e ou características. Por

conta disso, essa problemática continua na pauta das políticas públicas.

Instituídos a partir do século XX, as campanhas e ou programas de alfabetização

confirmam que a preocupação do governo volta-se mais para a sua marca do que para a

redução dos índices de analfabetismo e com a qualidade da alfabetização oferecida à

população. A atenção ao ensino da leitura e da escrita, desenvolvido por meio dos programas

e pela escola brasileira, se pautou em objetivos mais políticos que pedagógicos. Como

resultado disso, o Brasil chega à segunda década do século XXI com milhões de analfabetos

entre as pessoas jovens, adultas e idosas. A implementação sempre de programas – políticas

de governo, pode ser um dos fatores da permanência desse problema. Claro que a solução do

analfabetismo está condicionada à solução de outros problemas de cunho social, quiçá, da

própria estrutura da sociedade.

As políticas de governo das políticas de Estado são assim diferenciadas por Oliveira

(2011, p. 329):

Considera-se que políticas de governo são aquelas que o Executivo decide num processo elementar de formulação e implementação de determinadas medidas e programas, visando responder às demandas da agenda política interna, ainda que envolvam escolhas complexas. Já as políticas de Estado são aquelas que envolvem mais de uma agência do Estado, passando em geral pelo Parlamento ou por instâncias diversas de discussão, resultando em mudanças de outras normas ou disposições preexistentes, com incidência em setores mais amplos da sociedade.

Os dados atuais acerca do analfabetismo revelam, denunciam, entre outras coisas, a

não priorização da educação de pessoas jovens e adultas. Isso, numa sociedade que adota um

discurso de educação como direito de todos e que investe em políticas para a sua

universalização. Verifica-se, no entanto, um quadro de precarização da escola pública,

principalmente em relação ao ensino da leitura e da escrita, considerando que as avaliações da

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educação básica revelam que as crianças concluem a primeira etapa do ensino fundamental

sem terem domínio da leitura e da escrita, ou seja, sem estarem alfabetizadas.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 reconhece a educação como direito

de todos e inclui a Educação de Jovens e Adultos na Educação Básica. Ainda que a educação

seja direito de todos, nem todos têm tido seu direito de aprender, nem todos os que se

matriculam na escola aprendem a ler e escrever, assim como nem todos os que aprendem ler e

escrever têm sucesso escolar. Os próprios organismos governamentais reconhecem que

[…] no Brasil, 35% dos analfabetos já frequentaram a escola. As razões para o fracasso do País na alfabetização de seus jovens são várias: escola de baixa qualidade, em especial nas regiões mais pobres do País e nos bairros mais pobres das grandes cidades; trabalho precoce; baixa escolarização dos pais; despreparo da rede de ensino para lidar com essa população. (INEP, 2007, p. 10)

Além das questões educacionais, estão envolvidas nesse complexo processo as

questões socioeconômicas e culturais. A oferta de uma educação de qualidade é vista como

um dos fatores que contribui para a mudança do quadro de desigualdades no qual se encontra

o país. Para Di Pierro, Joia e Ribeiro (2001, p. 58),

A educação de jovens e adultos é um campo de práticas e reflexão que inevitavelmente transborda os limites da escolarização em sentido estrito. Primeiramente, porque abarca processos formativos diversos, onde podem ser incluídas iniciativas visando à qualificação profissional, o desenvolvimento comunitário, a formação política e um sem número de questões culturais pautadas em outros espaços que não o escolar.

Além da má qualidade da oferta da alfabetização para pessoas jovens e adultas no

contexto sociohistórico brasileiro, percebe-se que ela é marcada por Programas, sempre de

governo, mudando apenas o nome com a mudança do governo, pois as ações permanecem as

mesmas, bem como os objetivos. Agindo dessa forma, o governo não faz cumprir o direito

adquirido que todas as pessoas têm à educação, muito menos à aprendizagem, pois

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A oferta reduzida e a precária qualidade da educação de jovens e adultos no Brasil podem ser explicadas, em grande medida, pelo fato de que em nenhum momento da história da educação brasileira a modalidade recebeu aporte financeiro significativo, embora em alguns períodos as políticas para o setor tenham se beneficiado de recursos vinculados ou fonte própria de financiamento (UNESCO, 2008, p. 50).

Como não há espaço aqui para tratar de todos os Programas de alfabetização de jovens

e adultos no Brasil, optou-se por apresentar sucintamente aqueles implantados a partir da

década de 1960, considerando a intensidade e visibilidade desses programas a partir de então.

Essa década é marcada por vários movimentos como o Movimento de Educação de Base –

MEB; Movimento de Cultura Popular – MCP; Centro Popular de Cultura – CPC e Campanha

de Educação Popular – CEPLAR. Esses programas foram extintos no período da ditadura e,

na oportunidade, foi implantado o MOBRAL – Movimento Brasileiro pela Alfabetização. É

importante salientar que os movimentos anteriores à ditadura foram iniciativa do povo e não

de organismos governamentais, que os apoiaram posteriormente. O MEB, por exemplo, foi

criado pela Conferência Nacional de Bispos do Brasil CNBB).

Com o fim do período militar, chega ao fim também o MOBRAL, que é substituído

pela Fundação EDUCAR, criada pelo Governo Sarney, no ano de 1985 e extinta pelo

Governo Collor, quando implantou o PNAC – Programa Nacional de Alfabetização e

Cidadania, no ano de 1990. Esse programa durou apenas um ano, embora tenha sido

estabelecido metas a serem alcançadas em cinco anos. Com o impeachment de Collor, é

instituído o Plano Decenal de Educação para Todos no Governo Itamar Franco. Em 1997, o

Governo Fernando Henrique institui o Programa Alfabetização Solidária – PAS, extinto em

2003 quando o Governo Lula lança o Programa Brasil Alfabetizado.

Tendo em vista os índices do analfabetismo, pode-se dizer que todas as políticas de

alfabetização de pessoas jovens e adultos fracassaram, pois nenhuma delas conseguiu atingir

as metas. É o resultado da carência de políticas de Estado para a elaboração de projeto de

educação que atenda às necessidades da população, no caso, a alfabetização. Os programas,

todos eles, foram emergenciais e não trazem em seu bojo, a necessidade de promover uma

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transformação social. Ferreira e Fonseca (2011, p. 64) destacam que “A intenção do

Ministério da Educação é integrar um conjunto de programas para dar organicidade ao

sistema nacional de educação, mobilizando toda a sociedade em prol da melhoria da

qualidade da educação”.É preciso que as propostas contidas no planejamento educacional

brasileiro demonstrem efetividade e consequentemente, continuidade.

Enfrentar o problema do analfabetismo, que é histórico, por meio de programa, é não

dá prioridade à educação pública do país. De acordo com Gramsci (1997), a alfabetização

precisa ser encarada como uma prática social vinculada tanto à configuração do conhecimento

e poder quanto à luta política e cultural pela linguagem e pela experiência. Outro aspecto

desses programas é considerar a alfabetização mera habilidade técnica de aprendizado da

leitura e da escrita. Mais do que isso, é preciso pensar a alfabetização de jovens e adultos

como instrumento que não só dê condição ao sujeito aprender a ler o mundo, mas também

para poder escrever a história.

Algumas considerações

Conforme apontou-se acima, mudou-se o programa a cada mudança de governo. Foi

assim desde o período militar. No entanto, a mudança significativa ocorre mesmo com o

nome do programa, já que o principal objetivo é o mesmo – alfabetizar jovens e adultos. As

metas mudam em função dos índices apresentados em cada época. Por exemplo, a Fundação

Educar incorporou algumas iniciativas do Mobral, assim como o Pnac do Governo Collor,

incorpora iniciativas da Fundação Educar. Assim, a história se repete.

Além de afirmar que nenhum desses programas conseguiu atingir objetivos e metas

em relação à alfabetização de pessoas jovens e adultas, pode –se afirmar também que essa

educação é marcada pela descontinuidade. Cada governo e, consequentemente, cada programa

estabeleceu objetivos e metas mirabolantes e já cientes de que era impossível solucionar o

problema. Em seus discursos, iam aparecendo novos discursos ou substituindo um pelo outro,

de modo que pudesse, cada um deixar sua marca. Assim, todas as metas foram ousadas, mas a

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do Governo Lula parece superar ao apresentar o discurso da universalização da alfabetização

de todos os brasileiros em seu primeiro mandato.

É preciso registrar, contudo, a existência das várias experiências significativas que

ocorreram e ainda ocorrem na sociedade brasileira, quando se trata da alfabetização de

pessoas jovens e adultas. A primeira delas foi o trabalho desenvolvido pelo educador Paulo

Freire, em Angicos, Rio Grande do Norte quando alfabetizou os cortadores de cana, nos

chamados círculos de cultura. Do mesmo modo, ainda que com a precarização, nos programas

de alfabetização citados acima, há relatos de que muitas pessoas aprendem ao menos escrever

o próprio nome, o que acaba sendo uma conquista para quem não tinha conhecimento nem

mesmo de que seu nome pudesse ser escrito.

Ao instituir o Programa Brasil Alfabetizado, o Presidente Lula chegou a dizer que não

seria com o dinheiro que universalizaria a alfabetização a todos os brasileiros, mas com

decisão política. Com esse discurso, o governo justifica o não investimento necessário para

melhorar e qualificar a educação das pessoas jovens e adultas analfabetas no país. Assim, deu

continuidade a precarização do docente/alfabetizador, que poderia ser qualquer pessoa da

comunidade, chamado de alfabetizador voluntário, sem nenhuma formação específica para o

desenvolvimento da função. Dessa forma, são também precários os espaços onde funcionam

as turmas, são espaços cedidos pela comunidade, sem infraestrutura adequada.

Como o objetivo aqui foi tecer algumas reflexões acerca das políticas de alfabetização

de pessoas jovens e adultas no contexto brasileiro, é preciso dizer que grande ainda é o

desafio dessa sociedade para alfabetizar todas as pessoas jovens e adultas. Para isso, é preciso

fazer valer as políticas públicas educacionais vigentes, substituindo os programas de governo,

com propostas emergenciais por políticas de Estado, que considere de fato a educação como

prioridade e possibilidade de avanço da sociedade no sentido de representar melhoria de

condições de vida para toda a população.

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Referências

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FORMAÇÃO INTEGRAL DO PROFESSOR: O CASO DOS PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS

Tatiana Cristina dos Santos de Araújo Ana Gregória de Lira

Rodrigo Nicéas Carneiro Leão UFPE

Resumo: Este estudo analisa o processo de formação das convicções pedagógicas que funcionam como princípios norteadores da prática docente dos formadores dos futuros professores. Partimos do princípio que é necessária uma nova compreensão da concepção de formação profissional para os professores que irão atuar nas diferentes modalidades de ensino, tomando como foco uma dimensão da formação de seus mestres, os professores dos cursos de formação, os formadores de novos formadores. Os sujeitos escolhidos foram docentes que atuavam em cursos de pedagogias. Optamos por uma análise dessa formação orientada pelas contribuições de Henri Bergson. A razão desta opção teórica repousa na possibilidade de aproximação à inteireza de cada pessoa com a formação humana, pensada aqui como integralidade humana, onde a intuição é uma das dimensões cruciais para a percepção desta integralidade. Elegemos professores, inicialmente, a partir da aplicação de questionário entre os discentes do curso de Pedagogia de duas instituições do ensino superior da cidade do Recife. Após a tabulação dos questionários identificamos os professores mais citados pelos alunos. Com estes professores efetuamos uma primeira entrevista, a partir de um roteiro semi-estruturado. Depois selecionamos três professores de cada instituição com os quais iniciamos os encontros temáticos para coleta das narrativas biográficas. Foi possível detectar que os professores pesquisados, embora de maneira diferenciada, assumem ter convicções pedagógicas, porém, nas narrativas, alguns tiveram mais dificuldades de expressar essa convicção que outros. É importante ressaltar que todos os professores demonstraram atenção à experiência de sua prática pedagógica e aos resultados dessa.

Palavras–chave: Convicção Pedagógica. Formação de professores. Professor Universitário.

Introdução

Nas últimas décadas, tornou-se inegável a necessidade de instituir uma nova

concepção de formação profissional dos professores, o que caracteriza na pesquisa

educacional uma temática recorrente, qual seja, uma nova compreensão da concepção de

formação profissional para os professores que irão atuar nas diferentes modalidades de ensino.

Entretanto, a literatura produzida por estas pesquisas pouco tem contemplado a formação do

professor universitário. Dito de outra forma, a formação dos professores universitários

também é pauta das preocupações do campo educacional, haja vista as demandas que são

colocadas aos sistemas de ensino, ainda que seja incipiente a pesquisa sobre a formação do

professor para este nível de ensino.

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Do ponto de vista da normatização, a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 – Lei

de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBN, implementou a política educacional de

formação de professores vigente, privilegiando a formação do professor da educação básica

em detrimento do professor da educação superior. Ao professor da educação superior dedicou

apenas um dispositivo legal, remetendo a formação desses professores para os cursos de pós-

graduação. Cabe considerar que o papel precípuo dos cursos de mestrado e doutorado consiste

na formação de pesquisadores e não de professores para o ensino superior. Este modelo

formativo expressa a ideia de que o bom pesquisador é bom professor. Segundo Vasconcelos,

na formação desses professores a maior preocupação centra-se na pesquisa, “[...] ou para uma

competência técnica, ficando os aspectos relativos às questões pedagógicas [...] restritas [...] a

uma preocupação tecnicista, instrumentalista, metodológica para o imediatismo ou para o

mero conhecimento de diferentes abordagens do ensino [...]” (1996, p. 5).

Imbernón (2002) assegura que a formação inicial dos professores propicia a

aprendizagem dos saberes disciplinares e dos saberes pedagógicos e contextuais, que

acompanhem o futuro professor na sua trajetória pessoal, social e profissional.

No âmbito das práticas pedagógicas, a disputa de diferentes parâmetros reguladores do

social pôs em xeque o paradigma de modernidade, centrado na tutela científico-instrumental

das instituições, dentre elas, o Estado. Esta disputa de parâmetros reguladores chega à escola e

atinge as práticas consubstanciadas pelos professores. Os reflexos dessas transformações

também ecoaram na formação do educador que ao longo dos tempos tem se mostrado pautado

sob o pilar da racionalidade técnica, deixando à parte outras dimensões que envolvem a

pessoa do professor e que são igualmente importantes para o seu processo formativo.

Os reflexos diretos desta discussão podem ser sentidos na crise atual de legitimação

dos programas de formação de educadores, que em hipótese alguma pode ser dissociada desta

realidade em mudança. Isto porque a formação de professores está marcada, em sua própria

raiz, pela coloração do projeto modernista.

Considerando estas questões, compreendemos também que no campo educacional,

sentem-se muito fortemente as influências da fragmentação do pensar desse sujeito/professor

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que, apesar de apresentado por teóricos distintos, possui características muito próximas no

que se refere à sua constituição. Essa forma de conceber o sujeito está presente em quase

todas as teorias que interpretam a ação pedagógica reforçando, assim, uma condição que

pouco muda em relação, por exemplo, ao próprio conceito de educação.

Se observarmos a própria relação ensino-aprendizagem, podemos perceber claramente

que esta se respalda muito fortemente em um caráter dualista clássico, em que a relação

sujeito objeto é marcada por um distanciamento quase obrigatório, como se esse fosse de fato

o objeto maior da educação.

Escolhemos a problemática da formação de professores, sobretudo, por perceber que

há a importância e influência significativa dos professores formadores do curso de Pedagogia

na formação não apenas profissional, mas principalmente humana, dos alunos, futuros

pedagogos. Segundo nosso olhar, estes professores universitários também são responsáveis

direta e indiretamente por uma parcela importante da constituição identitária dos alunos em

formação. Mais especificamente, objetivamos compreender, através de narrativas de

professores universitários atuantes em cursos de Pedagogia, quais foram as experiências que

constituíram suas convicções pedagógicas mais recentes. Como essas convicções

permanecem e são vivenciadas em sua postura pedagógica atual?

A preocupação com a procura dos caminhos que alcancem quem é esse professor,

assim como quais os elementos constitutivos da identidade docente não é algo novo na

pesquisa educacional. A literatura pedagógica registra um significativo movimento de

investigação sobre este tema desde meados da década de 90, ainda que tenha assumido eixos

diferenciados ao longo do tempo, pois passou de uma preocupação com aquisição de saberes

acadêmicos disciplinares para uma centralidade na aprendizagem das competências

(RAMALHO; NUÑEZ; GAUTHIER, 2004, p. 11).

Algumas perspectivas buscam novas saídas e apostam na interlocução entre a

formação mais ampla e a formação profissional, apontando a compreensão da “voz do

professor” como iniciativa para valorização da experiência. Aqui acreditamos que nesta

experiência está contida uma formação que se expande além da formação profissional. E mais

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que isso, “... os processos de formação são vividos não como novas aberturas com o passado,

mas como novas aberturas que encadeiam as dimensões temporais” (MOITA apud SAUL,

1996, p. 116). Quando falamos dessa formação não estamos apenas nos referindo à formação

continuada, mas também à formação humana.

Nossa ideia inicial é que cabe à educação desenvolver as dimensões da pessoa

humana, “... de modo gradativo e proporcional do ser humano na sua integralidade...”

(RÖHR, 2006, p. 438). Integralidade tratada por Röhr como uma ideia regulativa, “... no

sentido de ser de fundamental importância para o direcionamento da nossa prática

pedagógica, e [...] que não se alcança na sua totalidade na realidade empírica” (2003, p. 4).

Este processo que estamos compreendendo como formação humana é um reflexo de

um emaranhado de experiências que acontecem ao longo de nossa vida e as possibilidades de

interpretação e sentido que damos às mesmas. O seu conceito remete-nos a conceitos

históricos que marcam profundamente sua compreensão; assim se deu com as compreensões

de Paidéia, Humanitas e Bildung, que a seu tempo representaram um ideal de homem e suas

aspirações sócio-culturais. Quando os grupos sociais fazem uso destas compreensões, surgem

modelos de educação que os tomam como sinônimo. Porém, em algum momento estes

conceitos começam a ser deturpados, principalmente pela busca incessante do homem de

instrumentalizar a educação.

Caminhos da formação do professor

Historicamente, a docência no ensino superior está marcada pela inexigibilidade de

formação específica. Esta inexigibilidade funda-se na seguinte compreensão de professor:

quem detém o conhecimento técnico-disciplinar ou a experiência profissional sabe ensinar

(MASETTO, 1998).

Cabe notar que a formação para o magistério superior restringe-se a uma ou duas

disciplinas, quer nos cursos de especialização, quer nos cursos de mestrado e doutorado.

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[...] geralmente essa preparação vem ocorrendo por intermédio de uma disciplina de 45 ou 60 horas, com diferentes características. Apesar de restritas, conferem alguma possibilidade de crescimento pedagógico aos docentes do ensino superior. No entanto, é importante que se considere a exiguidade desse tempo para profissionalizar qualquer profissional, incluindo, portanto, a profissionalização para a docência [...] (PIMENTA; ANASTASIOU, 2002, p. 250).

Para Gatti (2001, p. 433), “[...] um professor para o ensino superior necessita de uma

formação aprofundada nos conteúdos da sua área de atuação, que tenha uma formação em

investigação científica e também didática [...]”. A identificação de formação para o magistério

superior como formação de pesquisadores e algum preparo didático-pedagógico, emergente

do modelo formativo imposto pela Lei n. 9.394/1996, incide em um equívoco: apenas as

universidades são obrigadas à pesquisa; as demais instituições de ensino superior poderão

desenvolver ou não atividades de pesquisa.

Logo, considerando que os programas de pós-graduação são espaços apropriados para

a formação de pesquisadores, então podemos considerar que estes cursos não constituem o

espaço mais apropriado para a formação para a docência no magistério superior. Esta

identificação entre formação de pesquisadores e formação docente, em boa medida, reproduz

uma concepção de docência para o ensino superior pautada na ideia de exercício do

magistério restrito ao domínio do conteúdo técnico e das técnicas de pesquisa, considerando

pouco a formação pedagógica. A cultura universitária teve, por outro lado, de atribuir um maior status acadêmico à pesquisa até transformá-la no componente básico da identidade e do reconhecimento do docente universitário [...] embora possa soar como contraditório, a docência transforma-se em uma atividade marginal dos docentes (ZABALZA, 2004, p. 154).

Na perspectiva da reflexão sobre a própria prática, professores são convocados a

refletir sobre suas ações cotidianas. Nesse sentido, segundo Nóvoa (1995), é necessário se

pensar a formação dentro de três processos de desenvolvimento, a saber: o pessoal, o

profissional e o organizacional. A partir desses três processos, podemos pensar que se formam

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os professores tanto para o ensino fundamental como superior. E é pensando nesses três

elementos que podemos compreender qual o grau de complexidade do desafio que se lança às

pesquisas em educação, mais especificamente as voltadas à formação de professores, ou seja,

pensar o que torna uma pessoa um professor.

Algumas contribuições de Bergson para esse estudo

Buscamos no filósofo Henri Bergson mais uma contribuição para entender o que vem

a ser a convicção, e nos inspiramos nele para nossas interpretações, dando um suporte

epistemológico na análise de narrativas dos professores investigados.

A filosofia de Bergson é um constante convite para que oeducador seja também

filósofo e atento também às próprias intuições. Buscar uma aproximação das experiências

originárias é uma necessidade pedagógica fundamental se observarmos que para se chegar a

um pensamento sobre algo ativamos elementos dentro de nossos espíritos que não podemos

dar conta apenas com as referências das ciências, mesmo que muitas vezes tentemos fazer isso

por meio de descrições pormenorizadas.

Trata-se de algo extremamente relevante, pois, assim como Bergson, cremos na

continuidade da vida interior. Vida é consciência e os fatos da consciência refletem a nossa

alma. Esta realidade interior é dinâmica e se movimenta em uma “continuidade indivisível e

indestrutível” (BERGSON, 1994, p. 25), e ainda dura por muito tempo (o tempo da

consciência). Pensar a vida como a própria duração implica pensar no tempo da consciência.

Tempo que se opõe ao tempo da ciência que fragmenta a realidade para poder lhe dar

simbologias. A duração, concretamente vivida, conhece-se quando tomamos consciência dela

em nós mesmos. Ser verdadeiramente nós mesmos, segundo Bergson (1999), corresponde ao

“conjunto de nossos sentimentos, de nossos pensamentos e de nossas aspirações mais

íntimas” (p. 217).

Já o conceito de intuição é uma dessas noções altamente problemáticas do vocabulário

filosófico, adquirindo nuances e sentidos próprios em diferentes sistemas de pensamento. Esta

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noção tem se apresentado insistentemente na história do pensamento filosófico. Para Bergson,

o termo tem uma ligação profunda com a própria atividade filosófica. Segundo ele há duas

vias para se conhecer a realidade. Dois movimentos opostos. O primeiro movimento é o que

segue o próprio intelecto, generalizando, classificando. Esta forma de conhecimento é o

ambiente privilegiado no qual se desenvolvem as ciências positivas. Por outro lado, há o

movimento da intuição que, segundo Bergson, é o método que deve ser empregado no estudo

filosófico.

A intuição se contrapõe à atividade intelectual – que consiste em fazer o que os

cientistas e homens ordinários fazem: tornar as coisas estáticas, estudando, por esse caminho,

apenas o aspecto superficial da realidade. A atividade intuitiva busca, em outra direção,

conhecer e explicar uma realidade que flui no tempo.

Nessa perspectiva, o processo de formação de uma convicção está diretamente

relacionado ao que, no pensamento bergsoniano, compreende-se como liberdade. As nossas

convicções mais profundas se originariam ao longo do processo existencial, em um

movimento de recriação de si mesmo, no encontro com a sua própria duração. As convicções

se processariam na duração, projetando na vida a autenticidade do nosso próprio “eu”.

Suspeita-se, então, que as convicções pedagógicas originam-se na nossa realidade interior.

Embora admitamos que as convicções possam ser alimentadas também das

experiências superficiais, é na realidade profunda que uma determinada convicção vai

encontrar seu solo de enraizamento, diferindo, por exemplo, dos dogmas e das crenças

adquiridas externamente. Um dos elementos importantes no florescimento dessas convicções

é exatamente a experiência intuitiva. Como vimos, o fenômeno intuitivo é algo que nos

acontece mais comumente do que imaginamos, contudo ele passa por nós sem que tenhamos

a clareza do seu impacto sobre nossas construções cotidianas.

Mas mesmo que não tenhamos consciência, as experiências significativas ficam

registradas em nossa memória e podem refletir-se em ações que colaboram com a nossa

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construção identitária. Por isso, a intuição, mesmo que comunicada de forma “incompleta”,

pode ser expressa através da inteligência sendo intermediada frequentemente por imagens.

A partir de nossas reflexões, extraídas deste breve diálogo com as ideias de

Bergson sobre intuição, é possível inferir que para o nosso estudo a convicção pode ser

sim ponderada como uma certeza profunda acerca de algo. Esta certeza pode ser

identificada, através deaproximações, a atitudes cotidianas do indivíduo (no nosso caso

os professores), e também em seu agir pedagógico.

A convicção originada das dimensões subjetivas e objetivas baseia-se em princípios

assumidos, convictamente, como um ato de liberdade. Assim, a convicção não é uma certeza

que se instala logo ao nascermos e que continua a mesma durante toda a vida. As convicções

são construídas a partir de movimentos do nosso pensamento até chegar à certeza profunda

sobre algo.

Ao pensar a convicção como uma questão educativa relevante, busca-se ultrapassar

uma visão fragmentada da realidade, ou melhor, solicita-se uma visão de educação mais

integral. Não estamos sozinhos nesse empreendimento. Seguindo Guimarães (2006),

acreditamos que a reflexão gnosiológica de Bergson permite uma análise renovada dos

pressupostos que ancoram os processos educacionais.

Considerações metodológicas e breve análise

Para compor o nosso caminho metodológico de investigação partimos da ideia de

retomar através das falas de alguns professores do curso de Pedagogia elementos que podiam

colaborar para compreendermos como e quais foram os fenômenos, eventos, pessoas, entre

outros elementos, que fizeram parte desse processo. Para elegermos os professores a serem

pesquisados, aplicamos um questionário entre os discentes de duas instituições do ensino

superior da cidade do Recife, pedindo que apontassem os professores mais significativos em

sua formação.

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Escolhemos a abordagem biográfica, mas essa preferência não foi aleatória, nem

responde à aderência a mais um modismo do campo da pesquisa educacional. O nosso

desejo ao fazer essa escolha era, além de ouvir as experiências dos professores, também

propiciar que esses professores tomassem o papel de narradores de suas próprias

histórias. Precisávamos ouvi-los, tentar voltar às raízes das coisas, com os ouvidos

atentos e abertos para as suas “vozes interiores”, algumas seriam externalizadas, outras

não, mesmo sabendo que não alcançaríamos o que há de mais inteiro em cada professor,

nos arriscamos a uma aproximação. Nessa perspectiva, todos os nossos sentidos estavam

orientados por uma visão hermenêutica e fenomenológica, que também colaboraram em

nosso caminho metodológico.

Cremos que ao definirmos as convicções pedagógicas como nosso objeto de estudo e

os professores como sujeitos, nos deparamos com duas questões. A primeira diz respeito ao

aspecto pouco comum dessa temática no campo pedagógico. Além disso, embora os temas de

formação e de autoformação possam relacionar-se a ela, são comumente abordados por um

viés de políticas públicas com destaque para os processos formativos e/ou precarização do

exercício da profissão.

Pelo que pudemos observar, as análises demonstraram que, além de algumas

características em comum entre esses professores, existem algumas diferenças significativas e

também – para nós – algumas dúvidas sobre a existência de convicções propriamente ditas.

Na nossa análise, tratamos da sistematização dos dados levantados no processo de

investigação e, ao mesmo tempo, apresentamos uma interpretação, entre outras

possíveis, das falas dos narradores. As questões apontadas nas falas não são esgotadas

na análise; antes, são robustecidas e favorecem a elaboração de outras questões e

discussões impulsionadoras de novos estudos.

Ainda observamos que os professores indicados pelos alunos demonstraram um

grande envolvimento, engajamento e seriedade em relação ao próprio trabalho pedagógico. Os

narradores apontaram mudanças em suas vidas profissionais que não têm respaldo em uma

causa racional, formal.

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Ao mesmo tempo, apontam que estas mudanças são fruto do desejo de “fazer melhor”,

da ideia de que fazendo assim seria melhor, ainda que não tenham um discurso racionalizado

sobre o porquê. Nessa tentativa de “fazer melhor”, encontramos todos os professores, que de

certo procuraram formas de aperfeiçoamento. Damos como exemplo o PROFESSOR 01 que

apesar de muito cedo já ter experiências com o ensinar, não assumia ainda para si essa escolha

profissional, exercia a profissão de técnico em edificações. Inicia o curso de Pedagogia para

ampliar seus conhecimentos e isso reverberar na melhoria de suas ações em um espaço não

formal onde era voluntário.

... Eu não tinha a ideia de me profissionalizar, a ideia era adquirir uma bagagem de saberes, de procedimentos que me possibilitassem, mesmo sendo uma atividade voluntária, uma atividade que não era profissional, mas fazer isso da melhor forma possível (PROFESSOR 01).

Esse professor nos chamou atenção, pois a procura pelo curso foi mais uma exigência

pessoal de “fazer melhor”. Ele não tinha a princípio, a ideia de se profissionalizar, mas queria

adquirir conhecimentos que qualificavam o seu fazer. Mesmo continuando como voluntário,

aceita um convite para trabalhar em outra experiência não formal de ensino, necessitando

deixar seu trabalho como técnico em edificações. Alega ter sido mais forte para sua escolha,

as experiências que aconteceram em espaços não formais paralelas ao curso de graduação.

Essa disposição para “fazer o melhor” aparece no conjunto dos relatos de todos os narradores

como uma das motivações para a superação das dificuldades do cotidiano profissional. Essa é

uma demonstração de uma preocupação com o resultado da sua ação pedagógica, mesmo

diante de diversas dificuldades.

Muitas vezes, no aprendizado da docência, os professores se defrontam com

momentos de desequilíbrio e sentimentos de insegurança gerados por situações que não

podem controlar e, justamente, pelo caráter desafiador delas, são levados a refletirem sobre

suas convicções pedagógicas. Tal processo provoca, sutilmente, a auto formação que consiste

em um movimento interno de reflexão sobre si mesmo, seu saber e fazer pedagógico na

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relação com o outro. Essa descoberta podemos notar em todos os professores narradores,

como ilustração podemos retomar a experiência do PROFESSOR 01 que em contato com um

grupo e adolescentes percebe a sua própria fragilidade,

... Num primeiro momento eu percebi isso como uma fragilidade pessoal, achava que era porque de fato, apesar de estar num curso de Pedagogia, eu ainda não tinha adquirido uma competência para ensinar Português, Matemática, História e Geografia, porque os meninos não aprendiam ... (PROFESSOR 01).

Essa sensação de crise, de fracasso, uma “frustração significativa”, configura para

todos os professores momentos de reestruturação, reflexão e para alguns de mudanças acerca

de suas crenças. Mas também, como podemos observar, mesmo havendo esses momentos de

desequilíbrio ou frustração, é na relação com os alunos que todos os professores atribuem um

sentido positivo a ação pedagógica.

Os professores pesquisados demonstram uma atenção especial à relação que possuem

com os seus alunos; ela é vista como algo essencial para o êxito das suas próprias ações. Não

por acaso, os dados apontam a importância dos elementos relacionais, afetivos e contextuais

envolvidos na constituição da convicção pedagógica. Esta questão é observada nos

professores como tendo muitas formas de manifestação. Por vezes essa preocupação é vista

como relação de vínculo, uma relação maternal, uma relação em que deve prevalecer a

preocupação com a compreensão do aluno acerca do seu papel social ou para preparar o aluno

para o mundo. Apesar da diversidade de intenções, o que subjaz nelas é o elemento relacional

como pano de fundo do ato pedagógico. Podemos então afirmar que os professores que nos

deram mais segurança em afirmar que têm uma convicção pedagógica enfatizaram a

descoberta sobre a importância da relação interpessoal no processo pedagógico. Por vezes

ainda os reflexos dessa relação encontram aliados nos instrumentos didáticos. Isso pode ser

visto em boa parte dos professores que mencionam claramente a avaliação enquanto processo

que auxilia nas suas práticas e colaboram também no elemento relacional.

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Ainda encontramos uma clara dissociação entre os professores sobre a supremacia de

instrumentos e conteúdos e o êxito da relação pedagógica. Para todos os professores, mesmo

em suas falas distintas, o “fazer” não está acima do “ser”. Podemos compreender uma

associação entre o “saber”, o “fazer” e o “ser”, pilares estes relevantes para uma educação

voltada para uma integralidade. Em outras palavras, identificamos que a maioria dos

professores possui a clareza de que a convicção não é demonstrada apenas por um domínio de

técnicas e conteúdos, mas, sobretudo, na certeza que aquele é o melhor procedimento ou

técnica a ser adotada. Assim, a convicção pedagógica colabora para que a utilização de

técnicas e a seleção dos conteúdos sejam coadjuvantes na ação do professor. Essa relação

entre a experiência vivida e a experiência intuitiva, a partir das histórias narradas, aponta para

o papel formativo da intuição. Efetivamente os sujeitos narradores deste trabalho apontaram

em diversos momentos compreensões sobre a sua prática que se fundam em percepções da

totalidade do processo, em respostas que não estão estruturadas por questões explicitadas na

própria narrativa do professor.

Quanto ao papel da instituição na aquisição da convicção, podemos dizer que boa

parte dos professores investigados trabalha também em instituições não-formais. Apesar dessa

constatação vemos que isso não é decisivo na construção das convicções de alguns deles,

embora nos casos investigados esse tipo de experiência tenha sido significativa para os

sujeitos. Em relação ao contexto acadêmico, também podemos afirmar que a convicção não

responde a um tipo específico de instituição, ou seja, tanto em instituições públicas quanto

privadas encontramos professores com convicção pedagógica.

Talvez não seja possível haver uma convicção única para todos os narradores ou uma

convicção única para todas as dimensões do sujeito. Cada sujeito vai atribuindo sentidos às

suas práticas a partir de suas convicções mais íntimas nos diversos espaços onde atua. É

possível que um certo número de sujeitos compartilhe das mesmas convicções e as considere

em diversos espaços de sua vida; mas a convicção, fruto das vivências intuitivas, é sempre

algo singularizado.

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Evidentemente que há ainda muito a se investigar sobre a vida desses professores, pois

não podemos afirmar que pela percepção dos alunos sobre esses professores e pela análise de

suas narrativas possamos captar a transversalidade de suas vidas em diversas dimensões:

pessoal, social, profissional dentre outras. Mais ainda, o esforço consistiu em captar indícios

de suas convicções pedagógicas, suas certezas na sua prática docente, que por vezes

emergiram de suas vidas com a família, com amigos, com os “outros”, ou ainda apesar deles.

Nossos sujeitos tentam seguir seus princípios, procurando aproximar-se do exposto em suas

falas, fruto de suas reflexões sobre a objetividade e a subjetividade de suas relações.

Referências

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CONTRIBUIÇÕES DA INTUIÇÃO BERGSONIANA PARA O CAMPO EDUCACIONAL: O CASO DAS CONVICÇÕES PEDAGÓGICAS

Tatiana Cristina dos Santos de Araújo Ana Gregória de Lira

Rodrigo Nicéas Carneiro Leão UFPE

Resumo:O presente artigo trata tem como objetivo compreender a formação de professores sob a ótica do pensamento bergsoniano, para subsidiar reflexões sobre a formação das convicções dos professores, tendo a intuição como um fenômeno relevante para esse processo. Vale ressaltar que as ideias de intuição que perpassam esse trabalho estão ancoradas na noção de Henri Bergson tem da mesma. Para esse filósofo a intuição é tanto uma forma de conhecimento, que pode em circunstâncias específicas acontecer espontaneamente, quanto pode ser propiciada por meio de certos procedimentos analíticos, um esforço árduo e penoso por meio do qual se rompe com as ideias preconcebidas e com determinados hábitos intelectuais. Ao término do estudo constatou-se que há ainda muito a se investigar sobre a formação de professores e as interfaces com a filosofia da educação, mas podemos captar a transversalidade de suas vidas em diversas dimensões: pessoal, social, profissional dentre outras. Porém na construção da convicção, a intuição contribui para que muitas das experiências que ocorrem ao longo da vida dos sujeitos fiquem registradas na sua memória, atuando decisivamente na construção das convicções pessoais e isso, consequentemente, influencia na prática pedagógica dos professores.

Palavras–chave: Convicção. Formação docente. Intuição.

Introdução

Há muito tempo nos debatemos com o alcance de algumas metanarrativas que se

julgam hegemônicas na explicação do conceito de sujeito e de suas relações com a sociedade.

Um dos grandes problemas destas metanarrativas, a marxista, a positivista, a pragmática, por

exemplo, é a visão absoluta que possuem sobre todas as coisas, deixando muitas vezes a

sensação de “déjá vu”, pois apesar de alguns dos seus princípios fundantes parecerem

distintos, sua compreensão de homem e de mundo são muito aproximadas, pois partem de

princípios universais que povoam universo do discurso.

Nos parece que

[...] estamos de novo regressados à necessidade de perguntar pelas relações entre ciência e a virtude, pelo valor do conhecimento dito ordinário ou vulgar que nós, sujeitos individuais ou coletivos, criamos e usamos para dar sentido às nossas práticas e que a ciência teima em considerar irrelevante,

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ilusório e falso; e temos finalmente de perguntar pelo papel de todo o conhecimento científico acumulado no enriquecimento ou no empobrecimento prático das nossas vidas, ou seja, pelo contributo positivo ou negativo da ciência para a nossa felicidade (SANTOS, 1999, pp. 8-9).

No campo educacional, sente-se muito fortemente essa forma de conceber o sujeito e

está presente em quase todas as teorias que interpretam a ação pedagógica reforçando, assim,

uma condição que pouco muda em relação, por exemplo, ao próprio conceito de educação. Se

observarmos a própria relação ensino-aprendizagem, podemos perceber claramente que esta

se respalda muito fortemente em um caráter dualista clássico, em que a relação sujeito objeto

é marcada por um distanciamento quase obrigatório, como se esse fosse de fato o objeto

maior da educação.

Dessa forma, acreditamos que o debate em torno da integralidade humana no campo

educacional não pode ficar restrito a simples questões de orientações curriculares e/ou

procedimentos metodológicos, como podemos perceber nos inúmeros documentos e propostas

existentes nos espaços voltados para a educação, pois dessa maneira não avançaremos num

debate que problematize devidamente a tradição cartesiana de separação e hierarquização das

dimensões do ser humano. Investigar novos elementos teórico-conceituais capazes de

reconfigurar a integralidade humana como resultado de nosso processo de formação humana

exige novos caminhos e impulsos investigativos no âmbito educacional. Assim acreditamos

que no âmbito educacional é impossível se “... separar o eu pessoal do eu profissional,

sobretudo numa profissão fortemente impregnada de valores e ideais muito exigentes do

ponto de vista do empenhamento e da relação humana“ (NÓVOA, 1995, p. 44). Pensar sobre a integralidade aqui remete-nos à visão de suas diferentes, mas complementares,

dimensões entre elas a dimensão intuitiva. Nesse sentido, compreendemos que entre os fenômenos que

repercutem significativamente na vida do sujeito, encontra-se a intuição que em nossa visão é o que

contribui para que muitas das experiências que ocorrem ao longo da vida fiquem registradas na nossa

memória, atuando decisivamente na construção das convicções pessoais.

Nossa perspectiva direciona-se para uma reflexão sobre a formação do professor, mais

especificamente a uma aproximação de como em sua formação foram construídas suas convicções

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pedagógicas. Investigar as convicções pedagógicas dos professores é considerar que, no percurso de

vida destes várias vivências e experiências foram presenciadas, porém o tempo presente é o que

representa o resultado das experiências que ficam.

É o professor que, independente da proposta de curso, está diretamente com os alunos, futuros

pedagogos, e se este se apresenta em suas ações e reflexões fragmentado ou desconectado de uma

convicção, corremos riscos de realizar um ensino que visa a uma formação apenas técnica e

fragmentada ou talvez nem isso. Ter uma convicção não é uma condição para colaborar com a

formação de alunos mais convictos de suas próprias convicções, porém devemos refletir seriamente

sobre uma ação docente que não encontra sentido em si mesma, e mais que isso, que não consiga

produzir nos professores que a efetivam a sua auto formação.

Dessa forma, esse texto busca compreender a formação de professores sob a ótica do

pensamento bergsoniano, para subsidiar reflexões sobre a formação das convicções dos professores,

tendo a intuição como um fenômeno relevante para esse processo.

Liberdade e intuição em Bergson: apontamentos para a compreensão das convicções

pedagógicas de professores

Henri Bergson, mesmo não tendo proposto uma teoria educacional, na atualidade, sua obra

tem possibilitado uma reflexão bastante aprofundada sobre questões de natureza educativa, o que

talvez se justifique por sua disposição crítica em relação às posições de matiz positivista. Como

ressalta Guimarães (2006),

perpassando a obra de Bergson, pode-se abstrair uma teoria implícita da educação. Há, entretanto, uma coerência profunda entre a gnoseologia e esta filosofia da educação, ambas apoiadas, segundo a reflexão bergsoniana, na vontade de criar, móvel fundamental do homem. Para Bergson a educação tem como objetivo conservar e aumentar o impulso vital, élan vital, fazendo desabrochar a liberdade e a criatividade (p. 12).

Suas contribuições, ainda segundo Guimarães (2006), as ideias bergsonianas exerceram uma

grande ressonância na Escola Nova, na França, onde a primeira indagação de Bergson se fez ouvida:

que gênero de homem pretendemos formar? E sua resposta foi clara: como não temos a previsão do

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futuro, ficou muito difícil formar um homem para ele, o que se pode fazer é desenvolver a liberdade

das pessoas, fazer com que aflorem nelas a iniciativa e a criatividade.

Nessa direção, a filosofia de Bergson é um constante convite para que o educador seja

também filósofo e atento também às próprias intuições. Buscar uma aproximação das

experiências originárias é uma necessidade pedagógica fundamental se observarmos que para

se chegar a um pensamento sobre algo ativamos elementos dentro de nossos espíritos que não

podemos dar conta apenas com as referências das ciências, mesmo que muitas vezes tentemos

fazer isso por meio de descrições pormenorizadas.

Trata-se de algo extremamente relevante, pois, assim como Bergson, cremos na

continuidade da vida interior. Vida é consciência e os fatos da consciência refletem a nossa

alma. Esta realidade interior é dinâmica e se movimenta em uma “continuidade indivisível e

indestrutível” (BERGSON, 1994, p. 25), e ainda dura por muito tempo (o tempo da

consciência). Pensar a vida como a própria duração implica pensar no tempo da consciência.

Tempo que se opõe ao tempo da ciência que fragmenta a realidade para poder lhe dar

simbologias. A duração, concretamente vivida, conhece-se quando tomamos consciência dela

em nós mesmos. Ser verdadeiramente nós mesmos, segundo Bergson (1999), corresponde ao

“conjunto de nossos sentimentos, de nossos pensamentos e de nossas aspirações mais

íntimas” (p. 217).

A manifestação do movimento ininterrupto dessa consciência e a aproximação da sua

compreensão é o que nos leva à liberdade. Liberdade enquanto expansão do movimento

permanente da própria consciência. Liberdade com que a consciência, em sua mais densa e

profunda intuição, recria-se a si mesma e nesse movimento recria também a própria vida

(BERGSON, 1999).

Assim há o “eu superficial” e o “eu profundo”, em outras palavras “... onde a

personalidade permanentemente está consciente, enquanto vive a melodia contínua da própria

vida” (GUIMARÃES, 2006, p. 03).

Essa concepção de “eu profundo” está impregnada de liberdade, a qual lança suas

raízes no “eu profundo”, no eu que quer, que se apaixona, que amadurece, que é puro

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dinamismo e constitui a verdadeira personalidade. De fato, para Bergson, a realidade desse eu

profundo é vir-a-ser, e a inteligência não capta esse dinamismo, fazendo-se necessária a

presença e atuação da intuição, elemento indispensável para abarcar toda a realidade do ser.

Assim, com base nas reflexões bergsonianas sobre a intuição, é possível defender

como princípio a existência de um pensamento, capaz de fundamentar as nossas ações

pedagógicas, numa realidade mais profunda do que a então reconhecida pelas teorias

educativas da nossa época. Esta realidade encontra-se na vida interior, no espírito, e tem na

duração a sua existência (DEVAUX, 2001, p. 138), na consciência profunda do nosso eu.

Convicção pedagógica e intuição

A reflexão filosófica acerca da intuição e da liberdade, em Bergson, permite extrair

elementos importantes para a compreensão do que estamos denominando de convicção

pedagógica. Trata-se de uma operação delicada e arriscada, sem dúvida, a que tentamos, pois

significa reconciliar o que o filósofo preconizava em seu tempo: relacionar filosofia e vida.

Não se trata de um empreendimento fácil, sabemos, já que envolve um esforço difícil e, às

vezes, penoso pelo qual se rompe com as idéias preconcebidas e os hábitos intelectuais para

recriar ideias que começam por serem obscuras. O mesmo vale para a validação da

experiência mesma da intuição, a qual só pode ser comunicada por meio da inteligência,

devendo para lograr transmitir-se, “cavalgar sobre as ideias”.

Desse modo, para que uma ‘ideia radicalmente nova e absolutamente simples, que capta mais ou menos uma intuição’ (PM1, p.31), torne-se clara, é necessário um trabalho de ‘longo prazo’. Tal idéia, que a princípio nos aparece como ‘incompreensível’ ‘obscura’, ‘dissipará as obscuridades’ presentes nos ‘diversos departamentos de nosso conhecimento’ e, o dissolver os ‘problemas que julgamos insolúveis’, ela ‘se beneficiará do que tiver feito por esses problemas’ (PM, p. 32). (COELHO, 1999, p. 160).

1 Coelho faz referência ao livro de Bergson “O Pensamento e o Movente” (PM).

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Esse talvez seja o caso do que estamos denominando de convicção pedagógica. Uma

idéia nova, apreendida mais ou menos como uma intuição, e que exige um trabalho longo para

torná-la reconhecível na esfera acadêmica em que circulam nossos conhecimentos. O que

vamos conseguir extrair desta idéia é algo a se ver, mas, de todo modo, nós acreditamos ter

tocado em um ponto central das lições bergsonianas e por isso defendemos que a construção

da convicção inclui processos intuitivos.

Bergson apreende que uma idéia intuitiva se torna mais inteligível à proporção que se

a aplica, e ela se mostra fecunda quando soluciona problemas “insolúveis”. A questão é como

expressar essas idéias tendo em vista que, segundo o próprio filósofo, a intuição não pode ser

encerrada em uma representação conceitual? Ele admite que os conceitos, em certa medida,

são indispensáveis, mas, ao mesmo tempo, a filosofia precisaria abandonar os conceitos

prontos que estão à nossa disposição e criar conceitos diferentes. Esses adviriam da visão

direta do real. Trata-se, nesse caso, como nos lembra Coelho (1999), de criar completamente,

para um objeto novo, um novo conceito, talvez até mesmo um novo método de pensar (p.

162).

Por essa razão, Bergson caracteriza esses “conceitos intuitivos” como representações

flexíveis, móveis, fluídas, ou, ainda conceitos que se remodelam sem cessar sobre os fatos.

Depreende-se daí que o método intuitivo bergsoniano compreende dois aspectos fundamentais: o aspecto negativo, que consiste tanto na denúncia do caráter ilusório das produções da inteligência quanto na identificação da origem de certos problemas filosóficos; e o aspecto positivo, que diz respeito à solução do problema, a qual envolve a intuição propriamente dita. Deve-se considerar, ainda, que esses dois aspectos estão intimamente relacionados. Se por um lado a crítica ao entendimento cria as condições propícias para o surgimento da intuição, por outro, não se pode ignorar que as objeções à inteligência não podem ser dissociadas da resposta proporcionada pela intuição aos problemas formulados pela própria inteligência, incluindo aí a desqualificação destes (COELHO, 1999, p. 159).

Assim, para Bergson, a intuição é tanto uma forma de conhecimento, que pode em

circunstâncias específicas acontecer espontaneamente, quanto pode ser propiciada por meio

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de certos procedimentos analíticos, um esforço árduo e penoso por meio do qual se rompe

com as idéias preconcebidas e com determinados hábitos intelectuais. Nesse sentido, a

contingência seria a ultrapassagem do entendimento intelectual até o conhecimento intuitivo,

proporcionando ao ser humano o contato com o ato gerador da vida e projetando a própria

vida para além do determinismo (BERGSON, 2005).

Sintetizando bastante seu pensamento pode-se dizer que há um impulso de vida que

cria e que se desenrola num tempo real, culminando no aparecimento do ser humano

constituído de consciência, memória e liberdade. Bergson entende que a realidade dura, ou

seja, que existe um movimento dinâmico de ininterrupta criação. Essa duração se percebe,

intuitivamente, em primeiro lugar, em nós mesmos como um eu.

Ao lado do corpo que está confinado ao momento presente no tempo e limitado ao lugar que ocupa o espaço, que se conduz como autômato e reage mecanicamente às exigências exteriores, apreendemos algo que se estende muito mais longe que o corpo no espaço e que dura através do tempo, algo que solicita ou impõe ao corpo movimentos não mais automáticos e previstos, mas imprevisíveis e livres: isto que ultrapassa o corpo por todos os lados e que cria atos ao se criar continuamente a si mesmo, é o “eu”, é a “alma”, é o “espírito” - o espírito sendo precisamente uma força que pode tirar de si mesma mais do que contém, devolver mais do que recebe, dar mais do que possui (BERGSON, 2005, p. 84).

Onde Descartes acreditava encontrar o pensamento, uma coisa que pensa, Bergson vê

essencialmente uma coisa que dura. Assim, consciência para esse autor é uma espécie de

conversão da atenção para o mundo interior, “afastando do campo da consciência os conceitos

fabricados para satisfazer as necessidades da vida social e da conversação, e afastando as

imagens depositadas em nós pela longa convivência com os objetos do mundo” (AMORIM;

HABITZREUTER, 2006, p 13). Por isso, Bergson nos convida a um desnudamento para

vivenciar uma experiência de inocência com o pensamento original desprovido de conceitos.

Ele nos incita a olhar em nós e aí descobrir os dados imediatos da consciência.

Há, portanto, dois aspectos da consciência como experiência. Um no qual a

consciência se ocupa das coisas externas. Outro no qual a consciência entra em si mesma, se

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toma a si mesma, aprofunda-se a si mesma. A primeira é percepção, enquanto a segunda é

duração. Na consciência exterior, o sujeito se opõe ao objeto. Ela desdobra-se em sujeito e

objeto. Na duração, ou consciência interior, a consciência é uma continuidade em que os

momentos não se individualizam uns em relação aos outros e não se opõem ao eu que os

vivencia. Essa consciência forma um todo que é a própria pessoa. Por isso,

co-extensiva à consciência, ela (memória pura) retém e alinha uns após outros todos os nossos estados à medida que eles se produzem, dando a cada fato seu lugar e consequentemente marcando-lhe a data, movendo-se efetivamente no passado definitivo, e não, como a primeira (memória hábito), num presente que recomeça a todo instante (BERGSON, 1999, p. 177) 2.

A memória assim teria como função mais preeminente

evocar todas as percepções passadas análogas a uma percepção presente recordar-nos o que precedeu e o que seguiu, sugerindo-nos assim a decisão mais útil. Mas não é tudo. Ao captar numa intuição única momentos múltiplos da duração, ela nos libera do movimento de transcorrer das coisas, isto é, do ritmo da necessidade. Quanto mais ela puder condensar esses momentos num único, tanto mais sólida será a apreensão que nos proporcionará da matéria (BERGSON, 1999, pp. 266-267).

Disso tudo, depreende-se que duração, sendo consciência e memória, a liberdade surge

pelo simples fato de duração ser criação. E criação em Bergson não supõe causalidade,

determinismo ou finalismo. É essencialmente um ato livre, contingente. A própria sucessão na

duração já supõe a liberdade, pois a verdadeira liberdade é criação de si mesmo por si mesmo,

não é uma opção de escolha entre fatos dados, mas uma escolha em criar fatos novos.

2 Com essa compreensão da memória, Bergson (1999) contribui ainda para combater uma visão utilitarista da

matéria. Neves (1994) afirma que segundo ele a matéria “[...] é um conjunto de imagens”. E por “imagens [...] entendemos uma certa existência que é mais do que aquilo que o idealista chama uma representação, porém mais do que o aquilo que o realista chama coisa – uma existência situada a meio caminho entre ‘coisa’ e a ‘representação’” (p.14).

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O que nos sobrevém é sempre novo, desconhecido, imprevisível. E nisso a duração é a própria originalidade, porque nela nada se repete. A liberdade consiste no algo mais que é criado. Este algo mais não é de ordem quantitativa, mas quer dizer outro, diferente, novo, algo novo qualitativamente, de caráter imprevisível (AMORIM; HABITZREUTER, 2006, p. 14).

A liberdade em Bergson (s/d) emerge como um esforço de interiorização. Esforço que

à medida que vai se aprofundando faz despontar novas dimensões da liberdade. Desse modo,

a liberdade se faz como um dinamismo criador que é o próprio ser verdadeiro. Com essa

experiência de liberdade, o homem ultrapassa suas limitações ordinárias e, ao mesmo tempo,

trilha o caminho para a constituição de suas convicções.

Nessa perspectiva, o processo de formação de uma convicção está diretamente

relacionado ao que, no pensamento bergsoniano, compreende-se como liberdade. As nossas

convicções mais profundas se originariam ao longo do processo existencial, em um

movimento de recriação de si mesmo, no encontro com a sua própria duração. As convicções

se processariam na duração, projetando na vida a autenticidade do nosso próprio “eu”.

Suspeita-se, então, que as convicções pedagógicas originam-se na nossa realidade interior.

Embora admitamos que as convicções possam ser alimentadas também das

experiências superficiais, é na realidade profunda que uma determinada convicção vai

encontrar seu solo de enraizamento, diferindo, por exemplo, dos dogmas e das crenças

adquiridas externamente. Um dos elementos importantes no florescimento dessas convicções

é exatamente a experiência intuitiva. Como vimos, o fenômeno intuitivo é algo que nos

acontece mais comumente do que imaginamos, contudo ele passa por nós sem que tenhamos

a clareza do seu impacto sobre nossas construções cotidianas.

Como nos diz Coelho (1999, p. 162),

Em L’intuition philosophique, o filósofo define a imagem como ‘quase matéria, pois se deixa ainda ver, e quase espírito, pois não se deixa tocar’ (PM, p.130). Essas imagens, que derivam da intuição, são indispensáveis para apreendê-la. Elas são necessárias para ‘obter o signo decisivo, a indicação da atitude a tomar e do ponto para onde olhar’.

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Breves apontamentos a respeito da convicção

Refletimos que uma aproximação não é algo extemporâneo, pois seguindo a

compreensão de Japiassú e Marcondes (1996), para quem a convicção configura-se como um

“grau bastante forte do assentimento que se interioriza” (p. 55), vislumbra-se que uma

convicção não se instala, como nos diz Bergson, mediante um olhar superficial sobre alguma

coisa, mas a partir de uma íntima certeza construída por reflexões profundas do eu. Nessa

mesma direção, Durozoi (1993), Luft (1995), Torrinha (1939), Fernandes (1998) reforçam a

idéia de uma certeza íntima que se constrói sobre algo. Certeza atrelada à persuasão íntima -

do latin persuadio, conscientia -, uma opinião firme que se tem sobre algo, a convicção,

conviction (inglês), conviction (francês) ou do latim convictus. Assim, a palavra convicção

aponta para certeza profunda e pode apontar uma aproximação intuitiva ao conhecimento

sobre as coisas que se refletem na vida dos indivíduos3.

Nossa suposição é que a convicção está relacionada ao que no pensamento

bergsoniano pode-se associar ao próprio movimento da existência. Nessa perspectiva, as

convicções mais profundas se originam ao longo do processo existencial de cada indivíduo,

num movimento de recriação de si mesmo, na coincidência com a sua duração. É desse

processo existencial que podemos dar conta, pois dele “estamos mais certos e [...] melhor

conhecemos [...], pois de todos os outros objetos temos noções que podem ser julgadas

exteriores e superficiais, ao passo que percebemos a nós mesmos interiormente,

profundamente” (BERGSON, 2005, p. 1). A fim de apreender esse processo,

não é necessário associar vários fatos de consciência para reconstituir a pessoa: toda ela se encontra num só deles, contanto que se saiba escolher. E a manifestação exterior deste estado interno será precisamente o que se

3 Abbagnano (1982) apresenta uma idéia próxima às demais, porém acrescenta uma compreensão kantiana sobre

o termo. Para Kant, na Crítica da Razão Pura, a convicção representa uma crença e é “válida para todos, desde que estes sejam dotados de razão, o fundamento dessa crença é objetivamente suficiente”. Embora concordemos com a relevância do argumento kantiano, em nossa compreensão as características apontadas por Kant para a convicção seriam insuficientes, pois tomada como regra do agir uma convicção não seria necessariamente válida para todos.

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chama um ato livre, porque só o eu será o seu autor, uma vez que ela exprimirá o eu total. Neste sentindo, a liberdade não admite o caráter absoluto que o espiritualismo lhe empresta, por vezes admite graus (BERGSON, 2006, p. 116).

Assim, enquanto se assiste a um espetáculo ou se participa de uma conversa, surge, de repente, a convicção4 de que já se viu o que se vê, já se ouviu o que se ouve, já se pronunciaram as frases que se pronunciaram – que esteve ai, no mesmo lugar, nas mesmas disposições, sentindo, percebendo, pensando e querendo as mesmas coisas – enfim, de que se revive nos mínimos detalhes alguns instantes da vida passada. Algumas vezes, a ilusão é tão completa que a todo momento, enquanto dura, acredita-se nela a ponto de predizer o que vai acontecer: como já não sabemos, uma vez que sentimos que teremos sabido? (BERGSON, 2006, pp. 95-96).

Essa sensação de ser estranho a si mesmo, por estar diante de situações que

convictamente crê já ter presenciado, mas não podendo compreender racionalmente, pois são

situações do presente, é o que Bergson chama de “despersonalização”5, termo este

relacionado - mas não sinônimo – a “falso reconhecimento”. O falso reconhecimento nos leva

a fazer várias observações do acontecimento, assumindo muitas vezes expressões idênticas.

O alcance de uma convicção é o resultado de um profundo processo do pensar que é

criativo e não ingênuo. De fato, é a própria liberdade em manifestação, pois quando atingimos

a convicção sobre algo, ela não é uma simples escolha entre duas vias; se assim o fosse seria

também dogma e não convicção. Para ser livre, o “eu” não deve explicações do motivo que o

levou a tomar certas decisões, já que “é da alma inteira que emana a decisão livre; e o acto

será tanto livre quanto mais a série dinâmica a que se religa tender para se identificar com o

eu fundamental” (BERGSON, s/d, p. 117). Muitos irão viver e morrer “sem terem conhecido

a verdadeira liberdade” (ibid.).

4 Grifo nosso. 5 Bergson menciona este termo que, segundo ele, foi criado por M. Douglas (Um caso de despersonalização,

Revue Philos, vol. XlV, 1898, pp. 500-507).

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Ao refletir a convicção como um tema educativo relevante, convidamos para uma

visão de educação mais integral. Isso não é um apelo isolado, nos aliamos ao próprio Bergson,

que segundo Guimarães (2006), admite uma análise renovada dos pressupostos que ancoram

os processos educacionais. Mais ainda, segundo essa autora,

Bergson concebia a educação como uma formação integral, na qual os aspectos moral, intelectual, sociológico e físico têm seu lugar assegurado de direito. Bergson quer aliar, no ensino, o esprit de géometrie (estudos científicos) com o esprit de finesse (estudos culturais), tornando equilibrada e harmoniosa a educação. Se nos atentarmos para o ensino tradicional, veremos um ensino meramente informativo,acumulativo e enciclopédico, que não é formativo. Uma indisciplina que pode comprometer o élan vital, presente no educando. O élan vital que é sempre exigência motivada de criação, renovação e estímulo (idem, p. 06).

É nesta perspectiva que procuramos no pensamento de Henri Bergson elementos que

permitissem a compreensão de determinados processos que atravessam a educação dos seres

humanos, embora nem sempre esses processos sejam tomados em sua consistência própria

como é o caso das experiências intuitivas. A dificuldade de encontrar uma linguagem que

permita expressar o fenômeno da intuição não pode ser uma justificativa para relegar o papel

educativo desse fenômeno. O argumento comumente veiculado de que “a intuição é

inerentemente inexplicável” (PARIKH; NEUBAUER; LANK, 1998, p. 79), ancorado na

conceituação da intuição do próprio Bergson que a qualifica como inexprimível, passa ao

largo das análises que ele próprio realizou no sentido de evidenciar que o caráter inexprimível

refere-se não à impossibilidade de expressar algo da intuição, mas de não se poder alcançar de

forma absoluta, o que cada ser tem de único. Assim, não há nada que impeça uma abordagem

da intuição mediante aproximações, inclusive intelectuais, já que como também reconhece

Bergson, o intelecto é necessário e imprescindível para o conhecimento e o estudo de um

dado objeto. O cuidado metodológico, quando da aproximação com a temática, aponta apenas

que a análise não retratará fielmente a vivência original.Tomado esse cuidado, o estudo da

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intuição enquanto vetor formativo das nossas convicções pedagógicas constitui-se de uma

importância fundamental para a “formação” dos professores.

Nesse sentido, os apontamentos discutidos têm como intenção afirmar que a formação

de professores também é um problema filosófico, isso porque toda a educação e toda

formação remete-nos a um determinado conceito de ser humano e de suas relações com o

mundo. Logo, como educadores, precisamos estar atentos aos nossos processos intuitivos,

pois muitas vezes buscamos a explicação para os grandes problemas humanos e educacionais

em instâncias distantes de nossa própria autenticidade.

Daí a relevância de se analisar a construção das nossas convicções pedagógicas e seus

impactos nas decisões e práticas cotidianas. Admitimos, portanto, que há uma interface entre

o que aqui chamamos de convicção profunda e o que Henri Bergson chama de intuição íntima

das coisas.

Considerações finais

Retomar as lembranças em nossa memória é um movimento necessário para podermos

compreendê-las e tentar criar e recriar novas lembranças, porém não se assemelha a uma

superposição. Completar uma lembrança com detalhes mais pessoais não consiste, de modo algum, em justapor mecanicamente lembranças a esta lembrança, mas em transportar-se a um plano de consciência mais extenso, em afastar-se da ação na direção do sonho. Localizar uma lembrança não consiste também em inseri-la mecanicamente entre outras lembranças, mas em descrever, por uma expansão crescente da memória em sua integralidade, um círculo suficientemente amplo para que esse detalhe dopassado ai apareça. [...] A inteligência, movendo-se a todo instante ao longo do intervalo que as separa, as reencontra, ou melhor, as cria de novo sem cessar... (BERGSON, 1999, pp. 282-283).

É a partir das lembranças que vamos nos debruçar para perceber o que elas podem nos

mostrar dos professores em relação a suas intuições e à construção de suas convicções.

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Segundo Whitrow (2005, p. 39), “nossa mente certamente retém abaixo do nível da

consciência uma grande massa de memórias que normalmente jamais recordamos e de que

nunca precisamos recordar...”; assim o esquecimento pode ser o resultado de falhas no

exercício de recordar nossas experiências de vida. E recordar as lembranças, inclusive as

esquecidas, é o nosso objetivo aqui, pois elas nos aproximam da duração de cada um.

Ainda sobre as lembranças, Bergson (1999) afirma que são “... essencialmente

fugazes, elas só se materializam por acaso, seja porque uma determinação acidentalmente

precisa [que] nossa atitude corporal as atraia, seja porque a indeterminação mesma dessa

atitude deixe o campo livre ao capricho de sua manifestação” (p. 120).

Para Bergson (1999), há algo que em algum momento nos faz lembrar do passado, um

feixe de luz e então o passado vem e também se faz no presente. E então passado e presente

fazem parte de um mesmo tempo.

Evidentemente que há ainda muito a se investigar sobre a formação de professores e as

interfaces com a filosofia da educação, mas podemos captar a transversalidade de suas vidas

em diversas dimensões: pessoal, social, profissional dentre outras.Porém entendemos que, na

construção da convicção, a intuição contribui para que muitas das experiências que ocorrem

ao longo da vida dos sujeitos fiquem registradas na sua memória, atuando decisivamente na

construção das convicções pessoais.

Referências

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OS CICLOS EM VITÓRIA DA CONQUISTA: PEDAGOGIA DAS COMPETÊNCIAS E TRABALHO DOCENTE

Vanessa Cristina Fernandes1 Cláudio Pinto Nunes2

PPGED/UESB

Resumo: No presente artigo, apresentamos parte de uma pesquisa de mestrado, do Programa de Pós-Graduação em Educação PPGED, da UESB.Deste modo, trazemos uma análise das Propostas Pedagógicas dos Ciclos de Aprendizagem e Formação Humana, que foram implementadas no município de Vitória da Conquista (PMVC) desde o ano de 1998, contudo o recorte temporal da pesquisa inicia no ano de 2000 até o ano de 2010. O objetivo da pesquisa é demonstrar como que a execução das propostas pedagógicas dos Ciclos de Aprendizagem e Formação Humana, influenciaram nas condições de trabalho enfrentadas pelos professores da rede municipal pública de ensino de Vitória da Conquista. Para isto, partimos nossa análise das propostas dos Ciclos, considerando o que eles apresentam nas propostas como um de seus principais objetivos, o desenvolvimento de habilidades e competências dos estudantes. A análise busca demonstrar de que maneira o acompanhamento necessário oferecido ao estudante, ao propor o desenvolvimento destas habilidades e competências comprometem as condições de trabalho encontradas pelos docentes do município, uma vez que estas não são mencionadas nas referidas propostas pedagógicas. Palavras-chave: Ciclos. Competências. Trabalho Docente.

Os Ciclos de Aprendizagem e Formação Humana são propostas pedagógicas

implantadas no município de Vitória da Conquista, através da Secretaria Municipal de

Educação (SMED), inicialmente na modalidade de ciclos de Aprendizagem iniciado no ano

de 19983, um ano após a prefeitura ter sido assumida pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e

permanece até o ano de 2005, nesta ocasião, a proposta passa por algumas alterações e passa a

chamar Ciclo de Formação Humana esta modalidade de ciclo permanece durante o restante do

período do recorte temporal, o ano de 2010.

As políticas dos Ciclos têm sido uma identidade de governos do Partido dos

Trabalhadores, não só em Vitória da Conquista, como em outros estados administrados pelo

mesmo governo. 1 Graduação em História, Pós-Graduação lato sensu (Especialização) em Educação, Cultura e Memória, Pós-

Graduação stricto sensu (Mestrado em curso) em Educação. Professora substituta da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. [email protected].

2 Graduação em Pedagogia, Pós-doutorado em Educação, pela Universidade Federal de Minas Gerais, Professor Titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. [email protected].

3 Em 29 de dezembro de 1998, através da resolução Nº 017/98, o Conselho Municipal de Educação (CME), aprova o primeiro Projeto do Ciclo de Aprendizagem apresentado pela SMED.

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A proposta do Ciclo de Formação Humana reorganiza a estrutura do Ciclo de Aprendizagem, incorporando todos os alunos do ensino fundamental e propondo uma sistemática de trabalho que contribua para quebrar os problemas até então vivenciados na passagem dos alunos da última série dos anos iniciais para a quinta série (LEITE, 2008, p.176).

De acordo com documento da proposta do Ciclo de FormaçãoHumana, esta

modalidade de ensino “preconiza a construção de uma novalógica, capaz de respeitar a

diversidade de ritmos de aprendizagem e as características próprias dos sujeitos, de

acordocom os ciclos da vidahumanaemqueeles se encontram” (PMVC/SMED, 2007, p.07).

O documento do Ciclo de Formação Humana cita algumas teorias de alguns autores

como Piaget, para relacionar as idades e os níveis de desenvolvimento da criança às suas

possibilidades de desenvolvimento cognitivo. A ênfase nos aspectos psicológicosé utilizada

para justificar o avanço automático, pois se entende que em cada ciclo serão trabalhadas

habilidades e competências dos estudantes de acordo com o potencial de desenvolvimento que

as idades possuem. Além disso, são desconsiderados outros fatores como as condições

sociais, as condições de trabalho encontradas pelos profissionais, que também vão influenciar

nos resultados do trabalho realizado, os problemas relacionados à indisciplina também são

ignorados no documento do ciclo.

O Ciclo de Formação Humana é embasado de acordo com as faixas de idade e com as

competências e desenvolvimento que se espera de cada faixa etária. Os ciclos são divididos

em três, a partir do desenvolvimento da infância, que agrega os alunos de 6 aos 8 anos de

idade e onze meses, da pré-adolescência, alunos de 9 aos 11 anos e onze meses e

adolescência, de 12 aos 14 anos e onze meses. Para cada ciclo são previstas as possibilidades

de aprendizagem e desenvolvimento de habilidades e competências, que vêm descritas no

documento da proposta do referido ciclo.

Deste modo, os ciclos totalizam nove anos, com três ciclos de três anos cada. São

divididos em: ciclo da infância; ciclo da pré-adolescência e ciclo da adolescência. As

mudanças, mais evidentes, podem também ser observadas a partir de sua organização

curricular embasada no potencial de desenvolvimento que se espera dos estudantes de acordo

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com suas idades, cada ciclo abarca idades que são compatíveis com aquele nível de ensino,

isto a partir das habilidades e competências que se espera que os estudantes potencialmente

possuam, considerando os níveis de desenvolvimento das idades, a partir da fundamentação

das teorias de Piaget. De acordo com o documento do Ciclo de Formação Humana, no ciclo I

(idade de 6 a 8 anos e 11 meses): Em talperíodo, a criança está transitando do estágio pré-operacional para o estágio das operações concretas. Conforme Piaget (1978), essa passagem é importantepara a reconstrução da inteligência. A característicamaisevidente é a superaçãolenta do nível intuitivo do pensamento. A criança é capaz de uma organização assimilativa, podendo agirsobre o seuambiente, através de açõesreaisou concretas, podendo, então, vislumbraroperações e nãoapenas ações. (PMVC/SMED, 2007, p.13)

Já no segundo ciclo, que atende alunos de 9 a 12 anos de idade, de acordo com a

proposta do Ciclo de Formação Humana, baseando-se em Piaget, para definir as habilidades e

competências a serem atingidas pelos docentes, de acordo com o autor: Segundo Piaget (1993), esseestágio é aqueleemque a criança atinge o equilíbrio das operações concretas; efetua operaçõesmentalmente, embora continue pensando emobjetosreais; é capaz de conservarquantidades, comprimentos, números; tornareversíveis as operações, desfazendo-as mentalmente; usapalavras e outrossímbolospararepresentarobjetosconcretosquando faz exploraçõesmentais. (PMVC/SMED, 2007, p.15)

As exigências e as expectativas sobre os estudantes são ampliadas, visto que,

considera-se que o pré-adolescente encontra-se em uma fase de transição entre a infância e a

adolescência, nesta fase de formação e de amadurecimento, o meio social no qual estes

sujeitos então inseridos influenciam em sua formação.

Quanto ao ciclo III de FormaçãoHumana, este é composto por alunos de 12 a 15 anos.

De acordo com o documento dos ciclos, nesta fase da vida, os sujeitos já possuem condições

de compreender a realidade, embora ainda não façam abstrações puras, já se utilizam

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plenamente da linguagem.“Nesse período, segundo Piaget (1993), o sujeito está passando para

a maneiraadulta de pensar”. (PMVC/SMED, 2007, p.17)

A adolescência possui características específicas, pois várias estruturas biológicas, psicológicas e neuronais estão concluindo seuprocesso de maturação, influenciadas pelomeio no qual estão sendo formados os sujeitos – suasexperiências culturais, sociais e econômicas (PMVC/SMED, 2007, p.16).

As propostas pedagógicas dos Ciclos trazem uma série de exigências em seu texto, no

que diz respeito à necessidade dos profissionais envolvidos com o processo educacional de

oferecerem um acompanhamento individualizado dos estudantes, de modo que seja possível

conhecer o potencial de habilidades e competências dos alunos, bem como as dificuldades

enfrentadas pelos mesmos.

Para mensurar estas questões são exigidos dos professores uma série de avaliações,

que são feitas na forma de pareceres individualizados.Contudo não há qualquer referência nos

textos dos ciclos no que se refere à maneira pela qual os professores vão realizar estes

acompanhamentos, ou seja, não registros nos documentos de adequação para que os

professores tenham condições efetivas de desenvolverem seu trabalho, ou seja, o que antes era

exigido do profissional apena que avaliasse o aluno e atribuísse a estes uma nota quantitativa,

com o número e forma de avaliação de sua escolha, com os ciclos estes professores precisam

fazer relatórios em forma de pareceres para cada aluno descrevendo as habilidades e

competências que estes desenvolveram.

É importante registrar também que embora haja uma exigência padronizada com

relação ao número e forma de avaliação dos estudantes, estes avançam de um ciclo para o

outro independente dos resultados obtidos. Segundo a proposta pedagógica, as avaliações são

importantes para que o professor consiga conhecer o aluno e desta forma melhor trabalhar

para o seu bom desempenho, com isto também é possível que a proposta passe por avaliações.

No documento dos ciclos (PMVC/SMED, 2007) é possível observar que o discurso

está voltado para a formação cidadã, para a construção de sujeitos que sejam capazes de atuar

na comunidade.

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A proposta traz sugestões de como operacionalizar para atingir os objetivos propostos. O ciclo apresenta uma novavisão de formação dos alunos e do papel da escola, propondo umtrabalho de equipe, comencontros, debates e estudos. Nesse processo e fruto de trabalhocoletivo, novasidentidades e valores, novossaberes e habilidades, articulados pormeio da interaçãoentre os conteúdos das disciplinas e a realidadesocial, devem ser gestados junto aos sujeitos envolvidos – educandos e educadores. (PMVC/SMED, 2007, p.09)

É possível ainda observar no discurso do documento, que a formação é direcionada

para o desenvolvimento de habilidades e competências. Quando analisados os resultados na

prática, os professores mostram-se insatisfeitos e preocupados com a qualidade do ensino,

pois os alunos têm aprovação automática e avançam de um ciclo para outro

independentemente dos resultados obtidos.

Além disso, como o objetivo é captar as informações diretamente com os sujeitos

envolvidos com o objeto de estudo, estão sendo realizadas entrevistas com professores da

rede, bem como profissionais da SMED (como gestores e coordenadores) ligados à

implantação e execução das propostas dos Ciclos.

A pesquisa vem mostrando, através de entrevistas com professores da rede municipal,

que as propostas dos ciclos, além de afetarem as condições de trabalho enfrentadas pelos

professores, também apresentam outros problemas como, a certeza do avanço automático que

desestimula os alunos a estudarem. Quando estes não conseguem alcançar o desempenho

mínimo necessário, a única medida prevista na proposta é um acompanhamento didático-

pedagógico que deve ser pensado pelos profissionais que atuam na escola. Os processos de aprendizagem e avaliação, integrando-se de formacontínua e paralela, não permitirão a retenção dos alunosnosCiclos, conforme art. 32 §2º da Lei 9.394/96. Ao final de cadaCiclo, caso o alunonão tenha adquirido as competências e habilidades necessárias parasuapromoção, deverá ser encaminhado ao Cicloseguinte, comumPlanoDidáticoPedagógicoespecífico, elaborado pelocoletivo da Escola. (PMVC/SMED, 2007, p.12)

A condição de avanço automático dos estudantes, independentemente dos resultados

alcançados, faz com que inevitavelmente aumente consideravelmente os índices de

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aprovação. A justificativa apresentada para o avanço automático está na relação que é

estabelecida a partir da citação das teorias de Piaget, onde na proposta do Ciclo de Formação

Humana, as idades aos níveis de desenvolvimento da criança e às suas possibilidades de

desenvolvimento cognitivo.

Ao analisar a proposta, foi possível observar que a ênfase nos aspectos psicológicos,

aparece, como argumento que ajuda a justificar do avanço automático, pois, conforme foi

mencionado, se entende que em cada ciclo devem ser trabalhadas habilidades e competências

dos estudantes de acordo com o potencial de desenvolvimento que as idades possuem.

Esta concepção é embasada na pedagogia das competências, nesta concepção o aluno

tem uma centralidade no processo de aprendizagem, para tanto há uma mudança, com relação

à seriação não apenas curricular, mas também metodológica. Entre estas mudanças podemos

destacar no que se refere à metodologia e a concepção de avaliação. Esta é tomada como mais

um instrumento da aprendizagem e não um mecanismo de reprovação através da mensuração

do conhecimento por meio de notas e conceitos. A compreensão de avaliação deve ser de

formação, segundo Manfredi (2008), a avaliação permite que o professor realize ajustes para

que o aluno possa se desenvolver mais, pois conhecendo as fragilidades dos educandos, é

possível melhor acompanhá-los.

Quanto à relação das propostas educacionais baseadas na pedagogia das competências,

com o pensamento de Piaget, está no fato de que:

A construção do conhecimento acontece através de ações físicas ou mentais sobre o objeto, transformando-o em esquemas ou estruturas mentais modificadoras, e, devido à repetição torna-se mais refinada, sendo assim, essa metodologia destaca-se dentre as mudanças apresentadas e justifica o seu relacionamento com novos tempos e considera-se um novo modelo de ensino (FILHO, 2011, p.08).

Quando falamos em pedagogia das competências, a centralidade não está nos

conteúdos a serem trabalhados com os alunos, mas nas possibilidades de mobilização dos

saberes a determinadas situações. “De nada adianta a transmissão do conhecimento

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acumulado, se não houver a virtualização de uma ação, ou seja, a capacidade de recorrer ao

que se sabe para realizar o que se deseja, o que se projeta” (FILHO, 2011, p.08).

Neste sentido a noção de competência atende aos objetivos das propostas pedagógicas

dos ciclos, a operacionalização das competências,

se refere a situações que requerem, não somente a transmissão de conhecimento, mas sim a tomada de decisões e a resolução de problemas. No cerne do seu pensamento, uma competência permite ao indivíduo a mobilização de conhecimentos para enfrentar uma determinada situação(FILHO, 2011, p.13,14).

Para a efetivação da proposta dos ciclos, os professores devem realizar um

acompanhamento sistemático e individualizado dos alunos. De acordo com a proposta deve

ser oferecido aos estudantes, “a construção de uma novalógica, capaz de respeitar a

diversidade de ritmos de aprendizagem e as características próprias dos sujeitos, de

acordocom os ciclos da vidahumanaemqueeles se encontram” (PMVC/SMED, 2007, p.07).

Contudo, embora sejam lançadas aos profissionais novas exigências, não há qualquer

referência à nova realidade de trabalho que se apresenta, ou seja, não há registro de como

serão as condições de trabalho enfrentadas pelos profissionais, ou sequer é oferecida qualquer

forma de contrapartida para os mesmo, visto que as demandas e exigências são ampliadas

com estas propostas, isto leva a um questionamento, se estas propostas não contribuem com a

precarização das condições de trabalho dos docentes.

Os problemas relacionados à indisciplina dos estudantes, também são ignorados nos

documentos dos Ciclos. Considera-se que deve haver o respeito aos diferentes níveis de

aprendizagem, uma vez que os alunos avançam independentemente dos resultados alcançados

por eles, mas a proposta não prevê nenhuma forma de incentivo para que o aluno se esforce

para aprender, exceto quando, ao final do Ciclo, aborda-se a possibilidade de

acompanhamento pedagógico para aqueles que não atingiram os resultados esperados, mas

também não aponta como isto deve ser realizado na prática.

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no estudo do desenvolvimento do ser humano (neurociências, psicologia, psicolingüística) e sua inserção no contexto sociocultural (antropologia, sociologia, comunicação), que exige formas de organização dos tempos de aprender. [...] Educar por Ciclos é organizar o tempo da escola e considerar os tempos e ritmos do educando, possibilitando adequar o espaço escolar às características biológicas e culturais do desenvolvimento de todos. (PMVC/SMED, 2005a, p. 6)

Quanto aos objetivos pedagógicos dos ciclos de formação humana, como já foi

mencionado, estes pretendiam compor um tipo de currículo que se propusesse a priorizar o

desenvolvimento das habilidades e competências dos educandos. Para isto trás em seus

documentos um detalhamento do que se pretendia que os alunos desenvolvessem. Mais uma

vez não observamos nos documentos qualquer referência à que condições o trabalho seria

desenvolvido para que os objetivos pedagógicos fossem alcançados.

A participação emgrupo deseja-se que o aluno seja capaz de; Desenvolver atitudes de participação, nas atividades de grupo, ouvindo os colegas e professores, expressando suas ideias, sentimentos etc; reconhecer e saberexpressarseusvalores, sentimentos, ideias, numa perspectiva de interação social; reconhecer e respeitar as formas de expressão e valores dos outros; ter iniciativasindividuais e desenvolvê-las dentro de umprocesso grupal; falar emgrupo e ouvir os colegas; respeitar as opiniões e colocações do grupo, mesmoque sejam divergentes das suas; posicionar-se diante do grupo, sabendo argumentar e justificar o seuponto de vista; participar ativamente e comresponsabilidade da vida da turma, inclusive na construção de regras e funcionamento do grupo; superar inibições e tomariniciativas, estabelecendo relações afetivas e construtivas no grupo. (PMVC/SMED, 2007, p.40)

No que diz respeito à avaliação, estas deveriam ser feitas processualmente, ou seja,

durante todo o período letivo, os professores tinham que realizar pareceres de cada um dos

alunos, para evidenciar o que estes aprenderam, bem como as fragilidades observadas durante

o processo de formação dos mesmos. Na proposta do Ciclo de Aprendizagem, na parte que

trata da avaliação, é evidenciado que o: professor deverá fazer o acompanhamento diário do aluno, em relatórios individuais (utilizando fichas apropriadas e diário de classe) registrando os avanços e dificuldades a serem tomados como subsídios para planejamento

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diário bem como para a continuidade do processo nas séries subsequentes, priorizando os aspectos qualitativos e o seu desenvolvimento quanto à aquisição das competências básicas necessárias a sua promoção. (CICLO DE APRENDIZAGEM, 1998, p.07)

O Ciclo de Aprendizagem, em Vitória da Conquista, foi substituído, no ano de 2005,

pelo Ciclo de Formação Humana, o objetivo era atender melhor às demandas educacionais

que o Ciclo de Aprendizagem não conseguiu alcançar. Deste modo, com relação à avaliação

seu conceito fora ampliado para além das individualidades dos educandos, como é

evidenciado no texto do Ciclo de Aprendizagem. Na proposta do Ciclo de Formação Humana,

a dimensão da avaliação é estendida para a comunidade escolar, com isso:

Pode-se dizerque a avaliação deve buscar, antes de tudo, estabelecerrelaçõesentre as ações, as estratégias e o pensamento do aluno e do professor. Deve, pois, ser formadora, enfatizando a compreensão das etapas do ensino, da aprendizagem e do percurso de cadaindivíduo e identificando os sucessos, as dificuldades e os erros desse percurso. Deve procurarentender o processo de desenvolvimentohumanoemsuadimensão cultural, social, biológica e afetiva. (PMVC/SMED, 2007, p.25,26)

Todas estas exigências com relação às avaliações, não apenas no que refere à

quantidade, mas também ao fato de que estas devem ser feitas através de pareceres e não mais

por meio de notas como ocorria com a seriação, intensificou o trabalho docente, visto que

ampliou as exigências sobre os professores, o que gerou a necessidade de mais tempo para a

realização destas avaliações, contudo na proposta do Ciclo de Formação Humana não há

qualquer referência quanto às condições nas quais os docentes deveriam realizar estas

avaliações, não é mencionada também a necessidade de redução do número de alunos por

turma, embora seja uma necessidade dos ciclos, para que o profissional consiga acompanhar

efetivamente o desenvolvimento dos mesmos.

No texto do documento do Ciclo de Formação Humana, é enfatizada a necessidade de

utilizar as avaliações, não como meio de reter o aluno, visto que nos ciclos não há reprovação,

o aluno avança de um ciclo para o seguinte independente dos resultados obtidos, o que é

previsto é que em casos onde o aluno não tenha tido êxito nos resultados, que este seja

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acompanhado com aulas de reforço, para que assim o mesmo possa acompanhar o restante da

turma. Portanto, a avaliação se apresenta como meio de conhecer e diagnosticar as demandas

dos estudantes, sem perder de vista, a perspectiva mais coletiva, como a comunidade escolar,

bem como a execução das propostas, uma prova disso é que os ciclos desde que

implementados no município, passaram por várias mudanças, sendo a mais contundente a

transição do Ciclo de Aprendizagem para o Ciclo de Formação Humana.

A compreensão que se tem de avaliação, portanto, é que ela deve ser processual, com

participação do toda a comunidade escolar, “com funçãodiagnóstica, prognóstica e

investigativa”. (PMVC/SMED, 2007, p.25) Esta concepção defendida na proposta pedagógica

do Ciclo de Formação Humana:

leva a proporque a avaliação não fique no educando e no seudesempenho cognitivo, masque seja um re-olhar sobre o conjunto da escola, pois as situações de aprendizagem e produção de conhecimentonãosãoresponsabilidade de apenasum dos segmentos da comunidadeescolar. Por essa razão, paraalém das tradicionais indagaçõescríticasque se fazem sobre avaliação – ou seja, “o quê”, “quando”, “como”, “comquê” e “paraquê” se avalia, – é importanteabordar outras questões, taiscomo “comquem” e “paraquem” se avalia. (PMVC/SMED, 2007, p.25)

As referidas propostas foram implantadas com os recursos do Fundo de

Desenvolvimento de Manutenção do Ensino Fundamental (FUNDEF), programa então

desenvolvido pelo Governo Federal. O município passou a utilizar esse tipo de recurso, em

suas propostas dos Ciclos com objetivo de atender às demandas educacionais do município,

no sentido de reduzir os índices de evasão e repetência.

As primeiras escolas que receberam o Ciclo de Formação Humana em Vitória da

Conquista foram as escolas municipais: Zica Pedral e Professor Paulo Freire, onde foram

apresentados aos professores no “Seminário para expansão de Ciclo III”. A proposta do Ciclo de Formação Humana reorganiza a estrutura do Ciclo de Aprendizagem, incorporando todos os alunos do ensino fundamental e propondo uma sistemática de trabalho que contribua para quebrar os

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problemas até então vivenciados na passagem dos alunos da última série dos anos iniciais para a quinta série” (LEITE, 2008, p.176).

De acordo com documento da proposta do Ciclo de Formação Humana, esta

modalidade de ensino “preconiza a construção de uma novalógica, capaz de respeitar a

diversidade de ritmos de aprendizagem e as características próprias dos sujeitos, de

acordocom os ciclos da vidahumanaemqueeles se encontram” (PMVC/SMED, 2007, p.07). A

proposta não traz sugestões de como os professores e a escola devem operacionalizar para

atingir os objetivos propostos. O Ciclo apresenta uma novavisão de formação dos alunos e do papel da escola, propondo umtrabalho de equipe, comencontros, debates e estudos. Nesse processo e fruto de trabalhocoletivo, novasidentidades e valores, novossaberes e habilidades, articulados pormeio da interaçãoentre os conteúdos das disciplinas e a realidadesocial, devem ser gestados junto aos sujeitos envolvidos – educandos e educadores. (PMVC/SMED, 2007, p.09)

Este novo modo de pensar o papel da escola e dos profissionais a partir de uma

perspectiva de trabalho coletiva, participativa, em busca da valorização dos saberes dos

alunos, de resgate da identidade destes, pautado em uma visão ampliada da formação do

educando, além das crescentes exigências no que diz respeito à necessidade do

acompanhamento individual dos alunos, necessário para atender às exigências dos ciclos,

estão explicitados nos documentos das propostas dos mesmos, como vimos, estas propostas

são baseadas nas teorias da pedagogia das competências e em Piaget, contudo embora seja

demonstrada a necessidade de acompanhamento sistemático dos alunos por parte dos

docentes, não há nenhuma referência com relação às condições nas quais os profissionais

deveriam realizar o trabalho, a ausência de preocupação nas propostas e nos documentos

quanto às condições do trabalho docente evidenciam uma tendência a precarizar o trabalho

dos mesmos.

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Referências

LEITE, Maria Iza de Amorim. Avaliação e financiamento de políticas públicas em educação: estudo do FUNDEF na rede municipal de ensino de Vitória da Conquista. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2008.

LOPES, Alice Cassimiro; DIAS, Rosanne Evangelista. Discurso e textos nas políticas de currículo. In: MACEDO, Elizabeth; MACEDO, Roberto Sidnei; AMORIM, Antonio Carlos (orgs). Discurso, texto, narrativa nas pesquisas em currículo. Campinas: FE/UNICAMP, 2009.

MANFREDI, Silvia Maria. Trabalho, qualificação e competência profissional - das dimensões conceituais e políticas. Educação & Sociedade.Educ. Soc.,Campinas,v. 19, n. 64, Sep. 1999. Disponível em: <http:// www.scielo.br>. Acesso em: 10 abr. 2014.

______. Da Qualificação às Competências: o que há de novo? E-civitas Revista Científica do Departamento de Ciências Jurídicas, Políticas e Gerenciais,UNI-BH Belo Horizonte, v. I, n. 1, nov. 2008. ISSN: 1984-2716. Disponível em: <http://www.unibh.br/revistas/ecivitas>. Acesso em: 10 out. 2014.

PREFEITURA MUNICIPAL DE VITÓRIA DA CONQUISTA. Secretaria Municipal de Educação. Proposta Pedagógica do Município de Vitória da Conquista: Ciclos de Formação Humana. Vitória da Conquista, 2007.

______.Proposta Pedagógica do Município de Vitória da Conquista: Ciclo de Aprendizagem. Vitória da Conquista, 1998.

SILVA FILHO, Raimundo Barbosa.Noções de competência: possíveis evidências, v.02, n.02, 2011.Disponível em: <http://www.revistaseletronicas.pucrs.br>. Acesso em: 02 mar. 2015.