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I SEMINÁRIO DE PESQUISA EM PRISÃO SÃO PAULO, 2 DE OUTUBRO DE 2015 GT 11: MOBILIZAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL E PRISÃO A TRAJETÓRIA DO PORTADOR DE TRANSTORNO MENTAL AUTOR DE INJUSTO PENAL EM RIO BRANCO-AC Rivana Barreto Ricarte de Oliveira

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I SEMINÁRIO DE PESQUISA EM PRISÃO

SÃO PAULO, 2 DE OUTUBRO DE 2015

GT 11: MOBILIZAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL E PRISÃO

A TRAJETÓRIA DO PORTADOR DE TRANSTORNO MENTAL AUTOR DE INJUSTO PENAL EM RIO BRANCO-AC

Rivana Barreto Ricarte de Oliveira

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A TRAJETÓRIA DO PORTADOR DE TRANSTORNO MENTAL AUTOR DE INJUSTO

PENAL EM RIO BRANCO-AC

Rivana Barreto Ricarte de Oliveira1

RESUMO. O trabalho, com base em pesquisa realizada sobre dados de 2005 a 2010 analisa a forma como é aplicada e executada a medida de segurança de internação aos portadores de transtornos mentais de Rio Branco-AC. Enfatiza-se o movimento da reforma psiquiátrica, que ensejou mudanças significativas na legislação de saúde mental e tem subsidiado, ainda que de maneira embrionária, experiências alternativas de desencarceramento do louco infrator. Através das análises dos processos judiciais, das instituições e das entrevistas realizadas foi possível obter informação concreta da situação dos portadores de transtornos mentais, autores de injusto penal, e verificar as violações aos direitos elementares de cidadania, saúde e dignidade. Os resultados da pesquisa demonstram a necessidade de atuação mobilizada da sociedade civil neste campo. Por fim, aponta-se a imprescindibilidade de readequação da política de aplicação e de cumprimento da medida de segurança de internação na cidade de Rio Branco-AC, dando ênfase aos métodos alternativos já praticados em alguns estados brasileiros. Palavras-chave: Transtorno. Pena. Alternativa.

INTRODUÇÃO

Afirmar que o ser humano é o centro de decisão da organização coletiva, implica

reconhecer na pessoa um valor inerente em torno do qual se estruturariam as organizações

sociais e políticas, não cabendo qualquer distinção ou discriminação entre os seres

humanos, sejam eles sujeitos sãos ou portadores de transtornos mentais. O trabalho, com

base em pesquisa realizada sobre dados de 2005 a 2010 analisa a forma como é aplicada e

executada a medida de segurança de internação aos portadores de transtornos mentais de

Rio Branco-AC, demonstrando a necessidade de envolvimento da sociedade civil em torno

da questão.

Diferentemente de outros Estados da federação, no Estado do Acre nunca foi

construído manicômio judiciário, nem hospital de custódia, para tratamento de pessoas

portadoras de transtornos mentais autoras de injusto penal. Isto, sem dúvida, pode

configurar um desenvolvimento de políticas públicas estreitamente amparadas pelo

desenvolvimento da forma de tratamento do portador de transtorno mental. Entretanto, 1 Doutoranda do programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Unversidade de São Paulo, sob a orientação do Professor Guilherme Assis de Almeida, atualmente desenvolve a pesquisa “Migração Humanitária no Brasil: o caso dos haitianos pós- terremoto de 2010”. Possui mestrado em Direitos Humanos pela Universidade Federal da Paraíba (2012) e é especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Cândido Mendes- RJ (2006). Possui gradução em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (2001). É Defensora Pública do Estado do Acre (2002) e Professora da Faculdade da Amazônia Ocidental (2012). E-mail: [email protected]. 2 O primeiro manicômio surgiu, de acordo com informações históricas colhidas na obra de Haroldo Costa Andrade, em 1800, quando o rei Jorge III foi vítima de uma tentativa de homicídio, praticada por um insano mental, que foi absolvido e internado por tempo indeterminado. Mais tarde, a Inglaterra instituiu o “Criminal Lunatic Asylum Act” (1860), que determinava o recolhimento de pessoas que praticassem algum delito, desde

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quando a questão é vista sob olhar mais atento, vê-se que a conclusão inicialmente

apresentada é lacunosa.

Nesse contexto, a proposta do artigo é focar a análise das mudanças em torno do

tratamento dado ao portador do transtorno mental à luz do movimento da reforma

psiquiátrica através da trajetória do tratamento dado ao portador de transtorno mental autor

de injusto penal em Rio Branco, ressaltando-se a desarticulação da sociedade civil

Para consecução dos objetivos pretendidos, o trabalho será dividido em três partes

centrais. Na primeira parte investigar-se-á o surgimento do manicômio judiciário. Em

seguida, apoiado nas pesquisas empíricas realizadas, confronta-se discute-se o instituto da

medida de segurança como resposta ao tratamento direcionado ao autor de injusto penal e

apresenta-se métodos alternativos já praticados em alguns estados brasileiros. Por fim,

aponta-se o estágio atual do tratamento dado ao autor de injusto penal em Rio Branco e o

envolvimento da sociedade civil neste processo.

Como ponto de partida para boa compreensão do tema aqui proposto, importante

esclarecer, a título introdutório, o uso dos termos “transtorno mental” e “injusto penal”.

Quanto a utilização do termo portador de “transtorno mental”, em vez de deficiente mental,

este se justifica sob amparo do livro de recursos da Organização Mundial de Saúde (OMS)

sobre saúde mental, direitos humanos e legislação, editado em 2005, porque esse é

cientificamente a nomenclatura correta e empregada pelos anais médicos-psiquiátricos, eis

que não se deve confundir o deficiente ou retardado mental (aquele que apresenta alguma

disfunção que dificulte seu convívio social) do doente mental portador de patologias

psicóticas ou esquizofrênicas. Já a escolha do uso da nomenclatura “injusto penal” no lugar

de infração penal dá-se porque aquela expressão encontra respaldo no âmbito da precisão

científica do termo, eis que sendo o crime um fato típico, antijurídico e culpável, e,

considerando ainda que a avaliação da culpabilidade pressupõe a imputabilidade, na

medida em que o portador de transtorno mental é considerado inimputável, ele não é

culpável e, assim, não pode ser autor de crime, tecnicamente falando. (OLIVEIRA, 2012).

1. Delineando a história da loucura

Ainda hoje, em pleno século XXI, a história da loucura continua sendo de exclusão

social, pois não houve avanços significativos no sentido de conceder ao portador de

transtorno mental um local de proteção na sociedade e a deterioração das relações sociais

contribui para o avanço da violência intra e inter-individuais.

1.1 O surgimento do manicômio judiciário

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O manicômio judiciário teve sua origem na Inglaterra2 e na França, no início do

século XIX, por ocasião da instalação do pensamento da Escola Positivista de Direito

Criminal, quando se passa a entender que algumas transgressões às normas vigentes são

sintomas de doenças e que isso é indicador de periculosidade, ou seja, o doente é criminoso

e, consequentemente, perigoso. Os doentes eram isolados da sociedade em instituições

carcerárias, os manicômios, com a ideia também de “segurança social”, como trazido pela

visão de Foucault (1987), em Vigiar e Punir.

No Brasil, a loucura veio a ter visibilidade social tardiamente, apenas no século

XVIII, sendo abordada, inicialmente, como questão de vadiagem e desordem. A assistência

psiquiátrica brasileira, por sua vez, nasceu em 1841, com a criação do Hospício Nacional,

no Rio de Janeiro – apesar de criada, a instituição só veio a ser inaugurada em 1852, com o

nome de Hospital Pedro II - que passou a receber os doentes mentais de todo o Império3.

Posteriormente, foram construídos novos hospícios em locais mais afastados dos centros

urbanos, nos Estados de São Paulo, de Pernambuco e da Bahia.

O Código Penal de 1890 determinava que os criminosos loucos ou os condenados

que enlouqueciam nas prisões brasileiras deveriam ser entregues às suas famílias ou

internados nos hospícios públicos, caso isso fosse essencial para a segurança dos

cidadãos. A obrigação de fornecer tratamento especial aos loucos só surgiu em 1903, sob

influência da Lei Francesa de 1838, com o trabalho de Teixeira Brandão, um dos mais

importantes defensores dos direitos do doente mental, que resultou na primeira lei

específica de proteção ao doente mental, o Decreto n° 1.132, de 22 de dezembro de 1903,

que reorganizava a assistência aos alienados, e encerrava, além da intenção de unificar a

assistência psiquiátrica no país, o estímulo à construção de asilos estaduais e à proibição

definitiva do cerceamento de doentes mentais "alienados graves", em prisões, determinando

também a humanização dos tratamentos, ao menos nos parâmetros do pensamento da

época.

O ano de 1903 marca, portanto, o momento em que a construção de manicômios

judiciários brasileiros torna-se proposta oficial. O referido decreto determina, no Brasil, a

separação dos doentes mentais que cometeram crimes, considerados perigosos, daqueles

2 O primeiro manicômio surgiu, de acordo com informações históricas colhidas na obra de Haroldo Costa Andrade, em 1800, quando o rei Jorge III foi vítima de uma tentativa de homicídio, praticada por um insano mental, que foi absolvido e internado por tempo indeterminado. Mais tarde, a Inglaterra instituiu o “Criminal Lunatic Asylum Act” (1860), que determinava o recolhimento de pessoas que praticassem algum delito, desde que penalmente irresponsáveis, a um asilo de menores (Trial of Lunatic Act), tornando-se o primeiro país a aplicar o tratamento psiquiátrico de criminoso. (ANDRADE, 2004; COHEN, 2006). 3 Com a queda do Império e o surgimento da República, em 1890, o Hospício de Pedro II passou a se chamar “Hospício Nacional de Alienados”, através do Decreto n° 206A, de 15 de fevereiro de 1890, ficando sob administração do governo federal, desvinculando-se assim da Santa Casa e ficando subordinado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Nesse mesmo ano, foi instituída a Assistência Médico-Legal aos Alienados e criadas e anexadas ao Hospício Nacional as Colônias de São Bento e a Colônia de Conde de Mesquita ambas para pacientes do sexo masculino, na Ilha do Galeão, atual Ilha do Governador. (AMARANTE, 1994, p. 76).

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que não praticaram nenhum ato contra a lei jurídica. Segundo esse documento, cada Estado

deveria construir manicômios e, até que eles ficassem prontos, seriam construídos anexos

especiais nos hospícios públicos para o recolhimento dos loucos infratores. (CARRARA,

1998, p. 49). O primeiro deles foi criado no Rio de Janeiro, em 1921, seguindo-se a criação

da instituição em Barbacena, Minas Gerais, em 1929, e em São Paulo, em 1933.

Apesar de o objetivo mais amplo com a criação dos manicômios judiciários,

segundo Carrara (1998), ser o de preservar os direitos básicos do preso e “humanizar” as

prisões, constatou-se que as leis criadas foram incipientes e pouco conhecidas, não

auxiliando a superar os preconceitos e tabus que persistem até hoje. As condições

enfrentadas pelos portadores de transtornos mentais, na verdade, produziram certa

indignação por parte de alguns trabalhadores em saúde mental e a grupos da sociedade

civil e, aos poucos, articulações políticas e sociais começaram a acontecer em prol da

humanização do tratamento em saúde mental. Muitas experiências ligadas aos movimentos

alternativos e às praticas da psiquiatria tradicional começaram a apresentar novos rumos

para o desenvolvimento da saúde mental no Brasil. Contudo, todo o processo instituído

pelos diversos movimentos que trabalhavam por um tratamento em saúde mental mais

humanizado não encontrou tanta ressonância na questão específica dos “loucos” infratores.

Carrara, após fazer um trabalho de imersão junto ao Manicômio Judiciário do Rio

de Janeiro, nos anos oitenta, concluiu que a instituição era incapaz de atingir o fim

terapêutico ao qual se propunha, uma vez que “[...] sob a fachada médica das instituições

psiquiátricas, desenrola-se, na verdade, uma prática secular de contenção, moralização e

disciplinarização de indivíduos socialmente desviantes”. (CARRARA, 1998, p. 27). Ou seja,

como ele bem observou, na prática não havia distinção entre o presídio comum e o

manicômio, pois ambas são instituições do mesmo gênero ou, de acordo com o conceito de

Goffman (2010, p. 170-171), “instituições totais” 4, vez que “[...] o internado vive todos os

aspectos de sua vida no edifício do hospital, em íntima companhia com outras pessoas

igualmente separadas do mundo mais amplo”.

O Código Penal brasileiro, de 1940, e a Lei de Execução Penal tenham modificado

a nomenclatura Manicômio Judiciário para Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico-

HCTP, vê-se que, em sua estrutura, pouca coisa mudou, pois, na prática, continuam sendo

lugares de confinamento de membros que se tornaram perigosos para a paz da sociedade.

1.2 O movimento de reforma psiquiátrica e o papel da sociedade civil

4 Goffman (2010, p.16) define Instituição Total como aquela que promove uma espécie de barreira à relação social com o mundo externo, fechando-se e impedindo o contato de seus participantes com qualquer realidade que lhe seja exterior.

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Após a Segunda Guerra Mundial, o modelo de tratamento psiquiátrico desenvolvido

por Pinel começa a ser combatido pelo movimento identificado sob a ampla nomenclatura

de “psiquiatria reformada”, a qual engloba a psicoterapia institucional, as comunidades

terapêuticas, a psiquiatria de setor, a psiquiatria preventiva e a antipsiquiatria.

De fato, o movimento antimanicomial surgiu no início da década de 50, na

Inglaterra com o movimento das Comunidades Terapêuticas com Maxwel Jones, enquanto

proposta de superação do Hospital Psiquiátrico. Na França, no mesmo período, surgem as

experiências da Psicoterapia Institucional, de Tosquelle, e da Psiquiatria de Setor em que

ambas tinham por objetivo, a reforma asilar sem questionar a função social da psiquiatria,

mas tão somente a busca pela promoção da restauração do aspecto terapêutico do hospital

psiquiátrico e a recuperação da função terapêutica da Psiquiatria, que, ao longo dos anos,

segundo seus defensores, havia perdido espaço para a violência e repressão dentro da

instituição. (AMARANTE, 1995).

A Psiquiatria Preventiva, por sua vez, nasce nos Estados Unidos na década de

1960, e tinha como estratégia intervir nas causas das doenças mentais, constituindo-se

numa aproximação da psiquiatria com a saúde pública na medida em que almejava, além da

prevenção das doenças, a promoção da saúde mental. Este preventismo estadunidense foi

adotado também pelas organizações sanitárias internacionais (OMS) e por inúmeros países

do Terceiro Mundo e produziu o falso imaginário da salvação, resultando, na verdade, em

um aumento da demanda ambulatorial e extra-hospitalar, sem que isso representasse a

transferência de egressos asilares para os serviços intermediários. (AMARANTE, 1995).

Também na década de 1960, iniciou-se, na Inglaterra, o movimento denominado de

Antipsiquiatria, com Laing e Cooper. Esse movimento promoveu um forte questionamento

não só à psiquiatria, mas à própria doença mental, tentando mostrar que o saber psiquiátrico

teórico não conseguia responder à questão da loucura. Para eles, a loucura é um fato social,

político e, até mesmo, uma experiência positiva de libertação, ou seja, uma reação à

violência externa e, por conseguinte, o louco não necessitaria de tratamento, nem de

qualquer medicalização. (AMARANTE, 1995).

Na verdade, foi a partir da tradição da antipsiquiatria que, embora tivesse falhas

quanto ao completo afastamento da medicalização da doença, alcançaram-se relevantes

contribuições para o conceito de desinstitucionalização como desconstrução conforme vinha

sendo trabalhado na Itália com Franco Basaglia5.

Basaglia, em contato com a realidade do ambiente hospitalar, verificou que as

simples reformas na instituição asilar não promoviam qualquer melhora efetiva e entendeu,

que para transformar a realidade era necessário abandonar o território exclusivamente

5 Franco Basaglia era médico e psiquiatra, e foi o precursor do movimento de reforma psiquiátrica italiano conhecido como Psiquiatria Democrática.

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psiquiátrico e construir na sociedade condições para que ela fizesse parte da solução. A

tradição basagliana 6 continuada pelo movimento da psiquiatria democrática italiana 7

confronta-se tanto com o manicômio, como com o modelo de comunidade terapêutica

inglesa e a política de setor francesa. A Psiquiatria Democrática Italiana, ancorada nesta

perspectiva basagliana, buscou substituir os serviços e tratamentos oferecidos pela lógica

hospitalocêntrica, com toda sua cultura de exclusão, por intervenções que visassem à

reinserção social do sujeito no pleno exercício de sua cidadania, pois desinstitucionalizar

pressupõe a compreensão da instituição no seu sentido complexo e dinâmico, relacionando-

se com fenômenos sociais e históricos.

Estas experiências repercutem positivamente e culminam com o questionamento

do modelo tradicional então vigente, resultando na revogação da legislação psiquiátrica, de

1904, em vigor e na promulgação da nova legislação, conhecida como Lei Basaglia,

aprovada em 13 de maio de 1978, dando origem a movimento pela reforma da legislação

psiquiátrica. As principais modificações propostas eram a abolição progressiva dos hospitais

psiquiátricos, a imposição de restrições ao tratamento sanitário obrigatório e a

responsabilização sanitária.

No Brasil, a reforma psiquiátrica foi um processo que teve início no final da década

de 1970, sob influência da Lei Basaglia, e se fortaleceu na década de 1980 como

consequência do processo de redemocratização vivenciado após duas décadas de regime

militar. A proposta principal da reforma psiquiátrica brasileira localiza-se na substituição do

modelo manicomial, entendido como inadequado e reprodutor de diversas formas de

exclusão social e cronificação dos loucos.

Foi necessária a redemocratização das instituições, convocando a participação da

sociedade civil e do Estado para a elaboração de novas ações. O papel da sociedade civil

foi essencial para o processo de reforma psiquiátrica brasileira, destacando-se o papel

Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM)8, na década de 1970, que começou

a denunciar o sistema nacional de assistência psiquiátrica, ressaltando a falta de recursos

das unidades e a precariedade das condições de trabalho, apontando os casos de violência

e tortura, a mercantilização da loucura, corrupções e fraudes, além de criticar o modelo

6 Esta crítica a psiquiatria tradicional foi iniciada por Francisco Basaglia enquanto diretor Hospital Psiquiátrico de Gorizia (1961 a 1968) com um trabalho que vai além da simples humanização do locus manicominal para atingir na comunidade a desconstrução do dispositivo de tutela, exclusão e periculosidade. (AMARANTE, 1996, p. 68-106). 7 O movimento Psiquiatria Democrática Italiana (PDI) foi fundado em Bolonha em 1973 e, embora seja muitas vezes confundido com a própria tradição teórica basagliana, trata-se de um movimento político que tem como mérito a “possibilidade de denúncia civil das práticas simbólicas e concretas da violência institucional e, acima de tudo, à não restrição destas denúncias a um problema dos ‘técnicos de saúde mental’’. (AMARANTE, 1995, p. 48). 8 O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) é “o primeiro movimento em saúde mental com participação popular, não sendo identificado como um movimento ou entidade de saúde, mas pela luta popular no campo da saúde mental”. (AMARANTE, 1995, p. 57).

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hospitalocêntrico.

O espaço de mobilização social é fortalecido pela realização da I Conferência

Nacional de Saúde Mental, realizada em 1987, e do II Congresso Nacional do Movimento

dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), realizado em Bauru-SP no mesmo ano, no

qual se concretiza o Movimento de Luta Antimanicomial. Influenciado pela tradição

basagliana, o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental lança o tema “Por uma

Sociedade sem Manicômios” e tem como meta principal o projeto da desinstitucionalização

com a reorganização de serviços e ações de saúde mental e de cunho social, agora com a

participação das associações de usuários e familiares.

A articulação da sociedade civil é essencial para o progresso desta luta. O conjunto

destas ações culmina na inclusão, na atual Constituição Federal, promulgada em 1988, em

seu artigo 196, da noção de saúde enquanto direito de todos e dever do Estado e, em 1990,

na aprovação da Lei 8.080, também chamada de Lei Orgânica da Saúde, a qual institui o

Sistema Único de Saúde, que preconiza a criação de uma rede pública e/ou conveniada - de

caráter complementar - de serviços de saúde, tendo em vista a atenção integral à população

nos níveis de prevenção, promoção e reabilitação. Ademais deu-se inicio a tramitação do

Projeto de Lei 3.657/89 do Deputado Federal Paulo Delgado, que dispunha acerca da

extinção progressiva dos manicômios e da criação de recursos assistenciais substitutivos,

bem como regulamenta a internação psiquiátrica compulsória. Em 1999, constituiu-se a

Comissão Nacional de Reforma Psiquiátrica, formada por entidades de familiares e usuários

dos serviços de saúde mental, conselhos profissionais da área de saúde, prestadores de

serviços públicos e privados bem como gestores de saúde, responsáveis pela política

nacional de saúde mental. No mesmo ano foi realizada a Campanha de Direitos Humanos

do Conselho Federal de Psicologia (CFP) instituindo a bandeira Manicômio Judiciário... o

pior do pior..., lançada na abertura do IV Encontro Nacional da Luta Antimanicomial, ocorrido

em Maceió, no período de 22 a 26 de setembro de 1999.

O Movimento de Luta Antimanicomial alcança seu ápice com a promulgação da lei

n°10.216/01 que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de

transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, privilegiando o

oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária, representando um grande

avanço no sentido de garantir os direitos da pessoa com transtornos mentais.

2. A loucura sob à luz do processo criminal

Há muito o direito penal e seus estudiosos discute qual seria a adequada maneira

de tratar o criminoso louco que representava perigo para a sociedade. A criação da medida

de segurança está de alguma forma inspirada na ideia geral de que existe diferença

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primordial nos crimes cometidos por “loucos” daqueles cometidos por seres humanos ditos

“normais”, uma vez que estes teriam consciência de suas decisões e controle de suas

ações.

2.1 Medida de segurança de internação: pena ou tratamento?

De acordo com o Código Penal brasileiro, os sujeitos infratores e considerados

portadores de transtornos mentais, declarados legalmente inimputáveis, são destinatários

das denominadas medidas de segurança, institutos que representam espécies de sanções

legais, que impõem, em alguns casos, a reclusão do indivíduo em estabelecimentos

específicos, conhecidos, pela terminação antiga, como Manicômios Judiciários ou, de

acordo com a terminologia atual, Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico- HCTP.

Após um longo percurso histórico e influenciado pelo Código Penal italiano e do

Código suiço, o Brasil passa a acolher a sistematização das medidas de segurança,

inaugurando o reconhecimento expresso à responsabilidade diminuída ou atenuada no

Projeto do Código Penal de 1927, tendo desenvolvido a visão acerca da medida de

segurança até acolher a tendência moderna de buscar uma medida unificada.

Assim, na reforma do Código Penal de 1984 9 , adotou-se o princípio da

fungibilidade10 entre pena e medida de segurança. O artigo 26 da nova parte geral do

Código Penal de 1984, atualmente em vigor, repete literalmente o texto do artigo 22 do texto

original de 194011, acrescentando, ao final, tão somente uma alteração relativa aos semi-

imputáveis12

De acordo com a legislação penal vigente, portanto, a doença mental é causa

excludente de culpabilidade e, por isso, as pessoas com transtornos mentais autoras de

delitos geralmente são absolvidas (absolvição imprópria), devendo ser tratadas, e não

punidas. O juiz, diante das circunstâncias do caso concreto, deve impor ao condenado

apenas a pena ou a medida de segurança. A medida de segurança passa a ser aplicada

9 A Reforma do Código Penal de 1984 se deu com a promulgação da Lei n° 7.209/84 de 11 de julho de 1984, em vigor desde 13 de janeiro de 1985. 10 O termo fungibilidade foi aqui empregado pelo significado de substituir uma coisa por outra. Neste caso, substituir a pena pela medida de segurança e não mais aplicar ambas de modo simultâneo. 11 O art. 22 do Código Penal de 1940 assim dispunha: Art. 22. É isento de pena o agente que, por doença mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se com esse entendimento. Parágrafo único. A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude da perturbação da saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. 12 Código Penal vigente. Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se com esse entendimento. Parágrafo único. A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude da perturbação da saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (Grifo nosso).

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apenas aos inimputáveis, tendo tal instituto a natureza essencialmente preventiva e não

punitiva.

Atualmente, portanto, duas são as espécies de medidas de segurança adotadas

pelo direito penal brasileiro: a internação em hospital de custódia (medida detentiva) e a

sujeição a tratamento psiquiátrico e o tratamento ambulatorial (medida restritiva). A

internação em hospital de custódia e tratamento, ou em outro estabelecimento adequado, é

chamada de medida detentiva (BITENCOURT, 2009) e se destina obrigatoriamente aos

inimputáveis que tenham cometido crime punível com pena de reclusão e facultativamente

aos que tenham praticado delito cuja natureza da pena abstratamente cominada seja de

detenção. Neste caso, o internado deverá se submeter aos exames psiquiátricos,

criminológicos e de personalidade13.

O tratamento ambulatorial, por sua vez, é uma medida restritiva mais liberal, pois

impõe, ao invés de internação, aplicação de cuidados médicos à pessoa para fins curativos.

Ela é aplicada aos inimputáveis cuja pena privativa de liberdade seja de detenção e os semi-

imputáveis na mesma situação14.

Vê-se que a medida de segurança, por sua vez, em sua origem, não foi concebida

e idealizada como medida punitiva, mas sim como um instrumento de defesa da sociedade

e de tentativa de recuperação social do portador de transtorno mental que cometeu um

delito. Contudo, apesar de ser sido instituída sob uma finalidade terapêutica, possuindo,

conforme lição de Zaffaroni e Pierangeli, natureza não propriamente penal, na prática, elas

são formalmente penais, uma vez que são impostas e controladas pelos juízes penais e as

leis penais impõem o controle penal. (OLIVEIRA, 2012, 85).

Seria, por assim dizer, uma terapia sui generis: aplicada e dosada pelo juiz, numa

instituição que apesar de ter “características hospitalares” é uma instituição do sistema

carcerário. E mais, ela seria um tratamento cuja alta não se dá em razão pura e simples da

recuperação do paciente, mas pela sua submissão a “perícia de cessação de

periculosidade” periódica, submetida ao juiz, que passaria, sem ser médico, a ter o “poder

clínico” de considerar o “paciente” curado, mesmo quando a própria ciência discute se é

possível falar em “cura da loucura”. Seria, além do mais, um tratamento imposto no âmbito

de um processo penal, por um juiz com competência penal, mas sob um discurso médico-

sanitarista. Esta incongruência acaba por sediar maior espaço para violação de direitos

13 Art. 100, da Lei de Execução Penal: “O exame psiquiátrico e os demais exames necessários ao tratamento são obrigatórios para todos os internados.”; Art. 174, da Lei de Execução Penal: “Aplicar-se-á, na execução da medida de segurança, naquilo que couber, o disposto nos artigos 8° e 9° desta Lei”. 14 Art. 97, do Código Penal: “Se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação (art. 26). Se, todavia, o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial.”

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2.2 Alternativas à medida de segurança

A partir da lei n° 10.216/01, deu-se início à construção da rede substitutiva ao

Hospital Psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntrico tradicional, a partir da criação de

serviços de atenção à saúde mental de caráter extra-hospitalar. Neste contexto, são

constituídos serviços como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS I, CAPS II, CAPS III,

CAPSi e CAPSad)15, ambulatórios de saúde mental, hospitais-dia, centros de convivência,

residências terapêuticas16, dentre outros, os quais, a partir da abordagem interdisciplinar,

visam a atender à demanda psiquiátrico-psicológica de determinada região geopolítico-

cultural.

Como reflexo deste movimento, e do embate entre a doença mental e a

periculosidade social, desde 2000, tramita os projetos de lei PL n° 3.473/2000 que visa

alterar o Código Penal, em seus artigos 96 a 98-A, possibilitando ao juiz conceder a

desinternação progressiva e estabelecendo o prazo máximo de cumprimento da medida de

segurança e PL n° 5.075/2001, que visa alterar a Lei de Execução Penal de modo a refletir o

proposto do PL n° 3.473/2000. Entretanto, até hoje nenhum dos projetos foi definido em

lei17.

Na tentativa de se mudar o destino dos loucos infratores e romper com a história de

exclusão da loucura, foram elaborados alguns programas de ressocialização com a

participação da sociedade civil, com destaque para o PAI-PJ de Minas Gerais18, o PAI-LI19

de Goiás, sendo que o primeiro destes foi o pioneiro, e serviu de base para a implantação

do segundo, e, por isso mesmo, deve ser utilizado como paradigma contra-hegemônico

alternativo à medida de segurança. (OLIVEIRA, 2012, p. 149). Os programas desenvolvidos

nos Estados de Minas Gerais e de Goiás, concluem que o caminho que leva à verdadeira

inserção social passa pela responsabilização pelo crime cometido, com a convocação do

15 Os CAPS se diferenciam pelo porte, capacidade de atendimento, clientela atendida e organizam-se no país de acordo com o perfil populacional dos municípios brasileiros. O CAPS I refere-se ao Centro de Atenção Psicossocial de menor porte (20.000 e 50.000 habitantes). O CAPS II tem serviços de médio porte (mais de 50.000 habitantes). O CAPS III compreende os serviços de maior porte da rede CAPS (mais de 200.000 mil habitantes), os serviços são de grande complexidade, e funcionam durante 24 horas em todos os dias da semana e em feriados. O CAPSi refere-se ao Centro de Atenção Psicossocial voltado especificamente pra a clientela infantil. Já o CAPSad é voltado a ações de prevenção e tratamento ao Uso Indevido de Álcool e outras drogas. 16 As residências Terapêuticas são dispositivos voltados, exclusivamente, para pacientes psiquiátricos de longa permanência em instituições asilares fechadas e sem possibilidade de restituição dos vínculos familiares. 17 O último andamento do PL n° 3.473/2000 foi em 31 de julho de 2003 quando foi a plenário e a “matéria não foi apreciada em face do encerramento do prazo regimental da Ordem do Dia”. (Disponível na internet em: < http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=19717>. Acesso em 10 jan. 2012). Já o PL n° 5.075/2001 (que visa alterar o art. 6°, parágrafo único; art. 7°, parágrafo único, art. 8°, §2°, art. 26, III, art. 66, II, IV, VII, “e” e “i” e VIII, art. 68, II, “c” e “g”, art. 101, arts. 171 a 173, arts. 175 a 179, e arts. 183 e 184) teve seu último andamento em 10 de fevereiro de 2005, quando se informava que o projeto estava pronto para ser incluído na pauta. (Disponível na internet em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/ fichadetramitacao?id Proposicao=32027>. Acesso em: 10 jan. 2012). 18 PAI-PJ: Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental Infrator. 19 PAI-LI: Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator.

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sujeito a construir suas razões, assumindo seu caráter de cidadão pleno em direitos e

deveres.

O Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento

Mental Infrator (PAI-PJ) foi implantado em 2000 e, conforme dispõe a Portaria Conjunta n°

25/2001, do TJMG, o programa é o resultado de uma parceria entre o Tribunal de Justiça de

Minas Gerais e da sociedade civil, através do Centro Universitário Newton Paiva. O seu

objetivo é assistir os infratores com suspeita de insanidade mental ou que já estejam

cumprindo medidas de segurança. O trabalho é realizado, assim, por equipe multidisciplinar

formada por profissionais da área de psicologia, assistência social e direito e conta com a

parceria das redes de saúde pública estadual e municipal.

A "intervenção" do PAI-PJ junto aos pacientes infratores é determinada por juízes

das varas criminais, que, auxiliados por equipe multidisciplinar do programa, podem definir

qual a melhor medida judicial a ser aplicada, com a intenção de conjugar tratamento,

responsabilidade e inserção social. Há uma interface entre o poder judiciário e as ciências

humanas, constituindo um modelo de intervenção afetado pelos diversos campos de saber,

um programa no campo da justiça, que se diferencia das práticas tradicionalmente utilizadas

para com os loucos infratores. A equipe auxilia os juízes a definir que medida deve ser

adotada para cada caso e, ainda, acompanha os pacientes visando a sua inserção social.

Salienta-se que, familiares, estabelecimentos prisionais ou outras instituições que tratam da

saúde mental, também podem encaminhar os casos diretamente para o programa.

Realiza-se uma avaliação clínica, jurídica e social da pessoa e, então, o juiz

autoriza o acompanhamento do caso. Passa-se ao tratamento terapêutico e social do

paciente junto a rede pública de saúde, sendo ainda disponibilizado acompanhantes de rua

para auxiliar aqueles pacientes que perderam os laços familiares e encontram dificuldade

em lidar com as tarefas diárias, tudo isso na tentativa de ampliar a reconstrução dos laços

sociais e a possibilidade de circulação deles dentro da sociedade. (BARROS-BRISSET,

2010, p. 28-29). A atuação do programa representa avanço para as conquistas da

efetivação dos direitos do portador de transtorno mental autor de injusto penal.

O Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator foi instituído em 26 de outubro

de 2006, a partir de proposta elaborada pelo Ministério Público do Estado de Goiás (através

da 25ª Promotoria de Justiça de Goiânia), mediante convênio pactuado entre as Secretarias

de Estado da Saúde e da Justiça, Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia, Tribunal de

Justiça e Ministério Público do Estado de Goiás. O intuito maior do programa é implementar

uma mudança de paradigma na execução da medida de segurança, na medida em que faz

com que o assunto deixe de ser tratado unicamente sob a ótica da segurança pública, para

ser observado também pelos serviços de saúde pública, através da participação de clínicas

psiquiátricas conveniadas ao sistema único de saúde (SUS) e serviços substitutivos (CAPS).

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O PAI-LI de Goiás se diferencia do PAI-PJ de Minas Gerais porque é autônomo,

isto é, não é vinculado ao Tribunal de Justiça ou a qualquer outra instituição, e, em

decorrência desta autonomia, não há dependência das decisões judiciais para o

encaminhamento dos pacientes do Programa para a família ou para uma residência

terapêutica.

Estas experiências de desenvolvimento de ações diferenciadas na atenção às

pessoas portadoras de transtornos mentais autoras de delito, frutos da participação

cooperativa entre a sociedade civil organizada e as instituições fora do sistema de justiça,

têm demonstrado que é possível o atendimento das pessoas com transtornos mentais

autoras de injusto penal fora dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP).

3. A trajetória da loucura no processo criminal em Rio Branco

Conforme já sinalizado não há manicômio judiciário na cidade de Rio Branco-AC20.

Esta premissa, de certa forma, em uma análise preliminar, poderia servir para ressaltar esta

ausência como um verdadeiro avanço sociopolítico nos exatos moldes preconizados pela

reforma psiquiátrica, uma vez que, em muitos Estados, a luta do movimento antimanicomial

é, justamente, para que os portões das instituições violadoras dos direitos do portador de

transtorno mental sejam cerrados.

No entanto, na prática, a inexistência de hospital de custódia e tratamento

psiquiátrico cria um problema de difícil solução e graves consequências para a qualidade de

vida dos pacientes acometidos por transtornos mentais e também para a administração da

Justiça acriana, com reflexos danosos à segurança pública e à sociedade. Isto porque,

muito embora a legislação penal preconize que “[...] o internado será recolhido a

estabelecimento dotado de características hospitalares e será submetido a tratamento”21 -

pois já evidenciado que o inimputável não deve ser recolhido à cadeia ou ao presídio

comum, devendo, ao revés, receber o tratamento psiquiátrico necessário em hospital ou em

local com dependência médica adequada, evitando assim que seja submetido a condições

degradantes e inconcebíveis ante ao princípio de dignidade humana -, a inexistência de

local apropriado no Estado do Acre esta implicando que o cumprimento de medida de

segurança de internação ocorra dentro da unidade penitenciária comum a outros presos,

algo que a Lei de Execução Penal não autoriza em hipótese alguma. Com isso há violação

explícita aos próprios princípios constitucionais, no tocante aos direitos e garantias do

cidadão, previstos no artigo 5º da Constituição Federal.

20 Dos 27 Estados brasileiros, apenas dez não possuem HCTP, são eles: Acre, Amapá, Rondônia, Tocantins, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal, e Goiás. 21 Art. 99, do Código Penal.

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Essa realidade impulsionou o interesse pela pesquisa e, assim, para que fosse

possível conhecer, in loco, o que isto implicaria na prática cotidiana, foi necessário conhecer

os processos judiciais e entender o funcionamento das unidades de saúde e unidades

prisionais, conhecendo as deficiências, e, principalmente, o que as pessoas que trabalham

com esses indivíduos pensam realmente sobre este problema, se é que ele é realmente um

problema.

3.1 Observação dos casos

A pesquisa partiu da análise dos processos da execução das medidas de

segurança de internação dos pacientes judiciários em Rio Branco no período assinalado.

Foram observados 17 (dezessete) casos, número este oriundo de dados coletados junto à

Vara de Execução Penal em Rio Branco, valendo lembrar que este número não reflete a

realidade das ocorrências envolvendo portadores de transtornos mentais, pois, diante das

informações coletadas, foi possível aferir que diversas pessoas acabam sendo tratadas

como se fossem plenamente sãs, ante a dificuldade de diagnosticar e tratar o problema no

Estado. A ele não é garantido tratamento em local adequado, pois, o Estado, além de não

disponibilizar espaço físico destinado a eles, não construiu qualquer rede substitutiva de

atendimento.

Durante o curso da pesquisa, constatou-se uma tentativa de se converter às

medidas de segurança de internação em medida de segurança ambulatorial na fase de

execução da medida. Esta alternativa foi fruto do trabalho conjunto pela Vara de Execução

Penal entre magistrado, promotor de justiça, defensor público, psicóloga, assistente social e

psiquiatra. Como resultado deste esforço conjunto, no final do ano de 2011, o número de

pessoas cumprindo internação dentro da unidade penitenciária foi reduzido para oito22.

Este trabalho conjunto demonstrou que os portadores de transtornos mentais não

têm qualquer índice concreto de probabilidade de retornar a delinquir que seja superior a

possibilidade que uma pessoa que goze de plena faculdade mental venha a fazê-lo, uma

vez que dos oito casos que tiveram sua internação transformada em prisão domiciliar com

acompanhamento ambulatorial, apenas um deles retornou ao presídio pela prática de outro

fato.

Depois de observar o desenvolvimento dos processos judiciais de execução das

medidas de segurança, fez-se uma sucinta descrição e análise do Hospital de Saúde Mental

22 Processos relativos a pacientes judiciários que cumprem medita de internação dentro do Complexo Penintenciário em Dezembro de 2011: 0002996-52.2009.8.01.0001, 0000360-64.2010.8.01.0006, 0002044-33.2010.8.01.0003, 0006531-52.2010.8.01.0001, 0006097-39.2005.8.01.0001, 0001146-60.2009.8.01.0001, 0007813-82.1997.8.01.0001 e 0009851-76.2011.8.01.0001. Todos os processos são digitais e podem ser consultados através do site <http://www.tjac.jus.br>.

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do Acre e as unidades penitenciárias de Rio Branco-AC, como forma de constatar a situação

física e estrutural. Os dados foram coletados junto ao Instituto Penitenciário do Estado

(IAPEN), à Vara de Execuções Penais (VEP) e ao próprio Hospital de Saúde Mental do Acre

(HOSMAC).

O Hospital de Saúde Mental do Acre (HOSMAC) é a única unidade pública

especializada em psiquiatria do Estado. Trata-se de unidade que presta atendimento

ambulatorial, de internação e de urgência, de baixa e média complexidade. No que tange ao

apoio prestado ao portador de transtorno mental autor de injusto penal a situação ainda é

mais precária. A direção do HOSMAC constata que a unidade não está preparada para

atender pessoas que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou

retardado, não conseguem compreender o caráter ilícito do crime, isso porque não há

profissionais habilitados em psiquiatria forense nem local apropriado para garantir o

tratamento com segurança. Sendo assim, a unidade não recebe internos compulsórios de

medida de segurança, fornecendo apenas o tratamento para aqueles casos de medida de

segurança ambulatorial. (OLIVEIRA, 2012, p. 123).

Em algumas ocasiões, alguns magistrados tentaram encaminhar pacientes de

medida de segurança para internação no Hospital de Saúde Mental do Acre-HOSMAC, mas

a direção, amparada no aspecto da indisponibilidade física do local, acabava por remeter o

paciente de volta ao sistema penitenciário. Desta forma, as medidas de segurança de

internação que são aplicadas vêm sendo cumpridas dentro do estabelecimento prisional.

As unidades penitenciárias de Rio Branco, por sua vez, são regidas e

administradas pelo Instituto de Administração Penitenciária do Acre (IAPEN). O referido

instituto, criado em 2007 pela Lei Estadual n. 1.908/2007, tem boa estrutura administrativa e

lida com a administração do Complexo Penitenciário do Estado do Acre, que é composto por

treze estabelecimentos prisionais distribuídos nas cidades de Rio Branco, Sena Madureira,

Tarauacá, Feijó e Cruzeiro do Sul. A pesquisa teve base no Complexo Peniteciário da

Capital, em especial na Unidade de Recuperação Social Francisco de Oliveira Conde (URS-

FOC), posto que os casos objeto do estudo encartado estavam inseridos nesta unidade

prisional.

De modo geral a situação das unidades prisionais no Estado do Acre não é boa. A

unidade Francisco de Oliveira Conde23 é a mais antiga e foi inaugurada há 27 anos. E, muito

embora já tenha passado por reformas e ampliação, não acompanhou a evolução

tecnológica, como em outros locais do país, o que acaba contribuindo para o aumento da

criminalidade dentro da própria unidade.

23 Desde 2007, busca-se utilizar a nomenclatura geral Complexo Penitenciário da Capital, uma vez que familiares do falecido Sr. Francisco de Oliveira Conde reclamaram do fato de ter sido colocado o nome deste para denominar um dos presídios do Estado. No entanto, em que pesem os esforços, a unidade continua a ser conhecida como penitenciária Francisco de Oliveira Conde.

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No período de junho a julho de 2010, foi realizado, pelo Conselho Nacional de

Justiça (CNJ), um mutirão carcerário no Estado do Acre24, que constatou a precariedade da

estrutura física e de pessoal do complexo, com celas escuras, mal ventiladas e sujas, e com

atendimento médico insuficiente. De acordo com avaliação feita pelo Conselho Nacional de

Justiça-CNJ, o Complexo Penitenciário da Capital possuía, em 2010, oficialmente, apenas

677 vagas, e abrigava 2.180 reclusos (média de 3,22 presos por vaga)25. Dentre este

número de presos, 1.516 estavam em regime fechado (dos quais 170 eram mulheres que

convivem no mesmo complexo, separadas apenas em pavilhões específicos), 537 em

regime semiaberto (destes, existem 251 em regime semiaberto com autorização para

trabalho externo) e 922 eram presos provisórios.

Em 2010, havia, como já dito anteriormente, dezessete pessoas em cumprimento

de medida de segurança de internação que eram colocadas juntas com os presos comuns,

sem qualquer constrangimento ou tratamento diferenciado, cumprindo salientar que,

naquela época, sequer havia médico psiquiatra a disposição do sistema prisional26. Em

decorrência de um valoroso trabalho realizado pela Vara de Execuções Penais da Comarca

de Rio Branco, ao longo do ano de 2010, muitos dos pacientes de medida de segurança

foram colocados em prisão domiciliar.

No curso da pesquisa, através da realização de entrevistas semiestruturadas,

coletou-se a visão dos juízes criminais, médicos psiquiatras, promotor titular da promotoria

dos direitos humanos e da execução penal e de defensores públicos sobre o tema, além de

representantes da sociedade civil, observando-se como a medida foi aplicada, buscando

sentir o que os envolvidos acham do atual sistema e quais são as principais dificuldades e

quais seriam as possíveis alternativas, caso entendam ser necessárias. O próprio discurso

dos entrevistados - de maneira unânime - demonstrou essa realidade de exclusão, porque

em vez de se referirem a esses indivíduos como pacientes judiciários que são, por lei e, por

isso, merecem tratamento diferenciado no sentido de alcançar um atendimento pleno a sua

saúde mental, foram quase constantemente chamados pelos entrevistados de presos, com

a diferença de cumprirem medida de segurança de internação dentro de uma unidade

prisional.

Das visitas realizadas ao Hospital de Saúde Mental do Acre, ao Instituto de

Administração Penitenciária e ao Complexo Penitenciário da Capital, percebeu-se que não

24 O Mutirão Carcerário do Conselho Nacional de Justiça é um programa desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça com o objetivo de diagnosticar a situação carcerária nos diversos estados brasileiros. No Acre o Mutirão foi realizado no período de junho a julho de 2010 e deste trabalho foi produzido um relatório final cujos dados podem ser acessados pela internet em: <http://www.cnj.jus.br/images/programas/mutirao-carcerario/relatorios/acre.pdf>. 25 De lá para cá a situação carcerária apenas piorou, com o aumento significativo do número de presos, tornando o Estado do Acre o Estado que, em numerous proporcionais, mais possui presos no Brasil. 26 Este dado encontra-se disponibilizado através do site do departamento penitenciário nacional, sendo que este documento consta na lista de documentos anexos a esta pesquisa.

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havia nenhum tratamento especializado voltado ao portador de transtorno mental que se

encontra cumprindo medida de segurança dentro da unidade prisional, sendo estes tratados

tão somente como presos comuns27. Muito ao contrário do que dispõe a legislação, o que se

verifica é que o tratamento desses indivíduos é agravado uma vez que, dentro de celas

comuns, junto a outros presos, são facilmente molestados e, carentes de qualquer

tratamento, chegam a ter seu estado de saúde piorado.

3.2 A precariedade da mobilização da sociedade civil

Em 2008, foi realizado o 1º Seminário de Saúde Mental no Acre com o objetivo de

propor uma nova atitude para o desenvolvimento de políticas públicas para a saúde mental

no Estado, de acordo com os princípios da Reforma Psiquiátrica, quais sejam a

descentralização dos hospitais de saúde mental e a ampliação do serviço público para o

setor, inclusive com distribuição de medicamentos em outras unidades de saúde. O

seminário contou com a participação de diversos profissionais das áreas de medicina,

psicologia, enfermagem, serviço social, familiares de pacientes e estudantes que juntos

elaboraram um documento com 18 (dezoito) propostas sugerindo ações de prevenção,

promoção e assistência aos portadores de transtornos mentais do Acre que foi entregue à

promotoria de saúde do Ministério Público Estadual (MPE), mas nenhuma atitude concreta

foi realizada para melhoria do sistema28.

A luta empreendida pelo movimento em prol da saúde mental no Estado do Acre

ainda não obteve avanços significativos já que, enquanto em muitos outros Estados da

federação a busca já é pela melhoria e ampliação das redes substitutivas, no Acre ainda se

luta pela implementação desta rede substitutiva, com a criação dos centros de atenção

psicossocial (CAPS), das residências terapêuticas e a reforma do hospital. Em Rio Branco,

até o momento atual, existe apenas o CAPSad, voltado para o atendimento de dependentes

de álcool e outras drogas, havendo, na cidade de Cruzeiro do Sul, interior do Estado, um

CAPS.

27 É interessante notar que no próprio discurso dos diversos atores entrevistados na pesquisa verfica-se que os portadores de transtornos mentais não chegam a ser referidos como “pacientes”, mas sim como “presos”, demonstrando que, de fato, como o tratamento que lhes é fornecido nada se assemelha a um atendimento de cura da sua saúde mental; os profissionais, sejam médicos, juízes, promotores, defensores públicos e profissionais técnicos não os consideram pacientes, mas tão somente presos. 28 Através da promotoria especializada de defesa da saúde, o Ministério Público instaurou, em 2010, um inquérito civil para verificar a situação da saúde mental no Estado do Acre como um todo, iniciando diálogo com a secretaria estadual e municipal de saúde, com o diretor do HOSMAC, com os representantes da associação dos portadores de transtorno mental, na tentativa de analisar e elaborar um cronograma para estabelecer um melhor tratamento da saúde mental no Estado do Acre. Entretanto, percebe-se que este é um trabalho muito incipiente e, dada a amplitude que pretende, abrigando todos os tipos de questões de saúde mental - como os menores adolescentes em conflito com a lei, os maiores que cometem fato ilícito e ainda aquelas outras pessoas que tenham problemas psiquiátricos/psicológicos, mas que não tenham participado de qualquer forma de ilícito -, ele está longe de produzir uma solução para a situação de violação que os portadores de transtorno mental autores de injusto penal estão sofrendo.

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A questão do louco infrator, embora de enorme relevância, ainda não é discutida na

sociedade acriana. Políticos, comunidade acadêmica, mídia, opinião pública, trabalhadores

da saúde mental, de modo geral, quando tratam o tema do transtorno mental, fazem-no de

forma genérica e superficial, não havendo uma rede de articulação expressiva que garanta a

visibilidade social necessária da questão deste grupo de vulnerabilidade social, qual seja, o

louco infrator.

Apenas para ilustrar a desarticulação da sociedade civil, constatou-se durante a

pesquisa, em diálogo mantido com o vice-presidente da Associação dos Pacientes e Amigos

da Saúde Mental no Acre (APASAMA), que não há qualquer atividade desta entidade

voltada à atenção do louco infrator, sendo que ela sequer tinha conhecimento de que havia

pessoas portadoras de transtornos mentais cumprindo medida de segurança de internação

dentro do Complexo Penitenciário do Estado do Acre. Isso é apenas um dado que revela o

quão delicado é a situação enfrentada. (OLIVEIRA, 2012)

Considerações Finais

Inegavelmente, a pessoa portadora de transtorno mental possui invisibilidade

social. Muitas vezes o doente não tem sequer o apoio familiar, ficando relegado à própria

sorte. E o pior: em situação de vulnerabilidade social ainda maior encontra-se o louco autor

de injusto penal, já que, quando o assunto gira a respeito do tratamento dispensado aos

doentes com transtorno mental que causaram delitos, outras questões, como a

criminalização da doença, entram na pauta da discussão.

Socialmente, ainda não se reconhece o chamado “louco” como pessoa portadora

de direitos e, portanto, passíveis de terem reconhecidos que seus direitos foram violados. É

como se vivessem tão à margem da sociedade que se esquece que são indivíduos dotados

de autonomia e vontade, embora com algum grau de comprometimento. Pode-se inclusive

se arriscar a dizer que a discriminação de tais pessoas é socialmente aceita, ainda que

eticamente inconcebível.

A forma como são historicamente tratados os portadores de transtornos mentais

pela psiquiatria e pelo direito tem sido uma das grandes preocupações dos estudiosos do

tema, que concluem, de modo geral, que a assistência aos indivíduos no manicômio

judiciário fere os direitos e as garantias fundamentais.

Os avanços que vem sendo sentidos no âmbito do fortalecimento do movimento de

luta antimanicomial no Brasil, sinalizam algum otimismo. Contudo o papel da mobilização da

sociedade civil é ponto essencial neste processo de reorientação do modelo de atenção ao

paciente em conflito com a lei. A sociedade é parte integrante e essencial do processo de

mudança da análise da questão ao longo de toda história da loucura e, na fase atual da

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busca pela reorientação do modelo de assistência, com a defesa da necessária mudança do

olhar criminal para o olhar terapêutico, abandonando-se a nomenclatura “portador de

transtorno mental autor de injusto penal” para paciente, a atuação da sociedade é

impresecindível.

A violação de direitos se torna mais evidente quando se constata a completa

ausência de participação social ativa em torno da questão, tal qual se verifica no Estado do

Acre. Como decorrência da ausência da mobilização social, tem-se maior sucateamento do

sistema e um evidente conservadorismo no discurso tanto do sistema judiciário, quanto do

discurso médico, que chegou a defender a construção de um HCTP, algo completamente

combatido pelo movimento antimanicomial.

Para além de pensar que o Estado é sempre o mal opressor e a sociedade é

sempre a vitima, urge-se, no Estado do Acre, construir uma rede de suporte aos familiares

dos portadores de transtornos mental autor de injusto penal, como forma de dar todo o apoio

que eles necessitam para se tornarem protagonistas da desinstitucionalização, isto é, serem

a âncora para a socialização continuada do louco infrator, uma vez que a família, na maior

parte das vezes, é o melhor contato que o doente pode ter com a realidade. A mobilização

do sociedade civil em torno da questão do louco infrator, seja na denunciação de violações,

seja na construção de um sistema alternativo de atendimento é imprescindível para o início

da mudança da trajetória de violação identificada.

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ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS, PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO I SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE PESQUISA EM PRISÃO

ISADORA LENZI MICHEL

A TORTURA, O INDIVÍDUO E A SOCIEDADE Reflexões sobre o papel da comunidade na efetivação dos

direitos dos presos e na proteção contra suas violações

Artigo apresentado no I Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão em 02 de outubro de 2015, na Universidade de São Paulo – USP, junto ao Grupo de Trabalho “Mobilização da Sociedade Civil e Prisão” (GT11).

SÃO PAULO 2015

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A TORTURA, O INDIVÍDUO E A SOCIEDADE Reflexões sobre o papel da comunidade na efetivação dos

direitos dos presos e na proteção contra suas violações

Isadora Lenzi Michel Bacharela em Direito pela

Universidade Federal do Paraná (UFPR) e aluna de Pós-Graduação em Direito Penal e Processual Penal pela

Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst)

1. TORTURA – UM DESAFIO ATUAL E GLOBAL

A mobilização mundial em torno do combate à tortura iniciou-se durante o pós-

Segunda Guerra Mundial, com a criação da Organização das Nações Unidas em 1945

e a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos1 por sua Assembleia Geral,

em 1948. Neste momento, governos do mundo todo reconheceram a importância de

se proteger determinados bens jurídicos, agora tidos como inerentes a todo ser

humano2. Foi aqui que o direito de viver livre da tortura passou a ser defendido

internacionalmente, sendo certo que, nas décadas seguintes, foram elaborados

diversos tratados e convenções abordando o tema, os quais apontam para um

reconhecimento geral acerca de sua importância.

No entanto, como bem apontado pela Anistia Internacional em relatório

recente, existe um abismo entre as promessas feitas por nossos representantes

quando da assinatura da Convenção da ONU, 31 anos atrás3, e suas atitudes atuais.

Falando especificamente sobre a América Latina, a Anistia afirmou que a incorporação

da tortura como crime específico e a criação de comissões de direitos humanos, na

maior parte dos países latino-americanos, não foi acompanhada pela investigação

efetiva das denúncias de abuso, de modo que os perpetradores da tortura raramente

enfrentam a justiça4. Esta crítica feita pela Anistia, como se buscará demonstrar na

sequência, é perfeitamente aplicável à realidade brasileira.

1 Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo 5º, III - Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. 2 GONÇALVES, Vanessa Chiari. A tortura como violência instituída e instrumento para a simulação do réu confesso. Curitiba, 2011, 272 f. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, p. 24. 3 Note-se que, embora a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes tenha sido adotada pela ONU em 1984, ela só foi aprovada e ratificada pelo Brasil em 1989, há 26 anos, portanto. 4 AMNESTY INTERNATIONAL. Relatório de maio de 2014. Torture in 2014: 30 years of broken promises. [online] Disponível para download na Internet via WWW.URL: <https://www.amnesty.org/en/ documents/ACT40/004/2014/en/>. Último acesso em: 11 out. 2015.

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O movimento de inclusão da proibição da tortura na legislação brasileira se deu

com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual determinou que ninguém

será submetido à tortura5 e que sua prática constitui crime inafiançável e insuscetível

de graça ou anistia, respondendo por ele os mandantes, os executores e os que,

podendo evitá-lo, se omitem6. A criminalização da tortura, portanto, faz parte das

demandas trazidas pela sociedade na ocasião da elaboração de nossa Constituição,

como parte de uma onda de redemocratização pós-ditadura ocorrida no final da

década de 807. Foi neste período, inclusive, que o Brasil se tornou signatário da maior

parte dos instrumentos internacionais e regionais voltados para a proteção e promoção

dos direitos humanos – tais como a Convenção Americana de Direitos Humanos e o

Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos8 –, bem como dos instrumentos

específicos sobre a tortura – como a Convenção contra a Tortura e outros

Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da ONU e a Convenção

Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura9.

Contudo, apesar dos compromissos internacionais firmados e da própria

previsão constitucional, a criminalização efetiva da tortura através de uma lei

específica só se deu em 1997, através da Lei nº 9.455. Foi através deste instrumento,

portanto, que se incorporou concretamente a Convenção contra a Tortura da ONU à

legislação nacional. Até então, a tortura somente era prevista como agravante ou

qualificadora em outros crimes, e os policiais que a praticassem eram processados

pelos crimes de abuso de autoridade, lesão corporal ou maus tratos10. É possível

perceber, portanto, que a tipificação da tortura é bastante recente.

Desde a edição da referida lei, diversas ações foram tomadas a fim de se

implantar uma cultura de respeito aos direitos humanos e de se enfrentar o problema

da tortura no Brasil. Neste sentido, foram instauradas comissões, organizadas

campanhas de conscientização e mecanismos de denúncia, bem como foram

elaborados diversos planos de ação integrada. De acordo com a ONG Human Rights

Watch, as medidas adotadas pelo Brasil ao longo das últimas décadas refletem o

reconhecimento por parte das autoridades de que conter a prática da tortura por

5 Constituição Federal, artigo 5º, III. 6 Constituição Federal, artigo 5º, XLIII. 7 PASTORAL CARCERÁRIA DA CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Relatório sobre tortura: uma experiência de monitoramento dos locais de detenção para prevenção da tortura. [online] Disponível na Internet via WWW.URL: <carceraria.org.br/wp-content/uploads/2012/10/Relatorio_ tortura_revisado1.pdf>. Último acesso em: 11 out. 2015. 8 Ambos promulgados no Brasil em 1992. 9 Ambas aprovadas pelo Congresso Nacional brasileiro em 1989. 10 PASTORAL CARCERÁRIA DA CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Relatório sobre tortura... [online]

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agentes estatais permanece um desafio11. Ainda, de acordo com o consultor de

Direitos Humanos Conor Foley, a atuação do governo brasileiro tem se refletido em

uma série de boas práticas de abertura e inclusão, tanto no que se refere às medidas

internas quanto em relação à ratificação de instrumentos internacionais e à abertura

do país aos Relatores Especiais da ONU12.

Contudo, inobstante serem bem vindas todas as iniciativas do governo, assim

como os elogios dos especialistas que as apontaram como bons exemplos a serem

seguidos, é de se questionar qual a eficácia prática de tais medidas. Questiona-se se

o longo trajeto percorrido pelo governo brasileiro durante as últimas décadas

conseguiu diminuir a tortura, estabelecendo uma cultura de respeito aos direitos

humanos e ampliando a rejeição da prática deste crime por parte da opinião pública13.

Mostra-se especialmente interessante resgatar, neste sentido, os dados

obtidos pela Anistia Internacional em pesquisa recente14, na qual se constatou que,

enquanto quase metade da população mundial (44%) teme sofrer tortura se estiver

sob custódia de seu Estado, no Brasil este número sobe para 80% – o que lhe

garantiu o primeiro lugar dentre os 21 países entrevistados. Este dado demonstra

claramente que os brasileiros não se sentem a salvo da tortura; e eles de fato não o

estão, conforme se percebe a partir dos registros das denúncias recebidas pelo

Disque 100 da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República desde

201115.

Para além da constatação acerca do constante crescimento do número de

denúncias recebidas16, os dados são significativos sobretudo para confirmar que a

11 HUMAN RIGHTS WATCH. Carta ao Congresso Nacional. Brasil: Proteja Pessoas sob a Custódia do Estado. [online] Disponível na Internet via WWW.URL: <https://www. hrw.org/pt/news/2014/ 07/25/254670>. Último acesso em: 11 out. 2015. 12 FOLEY, Conor. Protegendo os brasileiros contra a tortura: um manual para juízes, promotores, defensores públicos e advogados. Brasília: International Bar Association (IBA)/Ministério das Relações Exteriores Britânico e Embaixada Britânica no Brasil, 2011, p. 52-53. 13 CARDIA, Nancy; SALLA, Fernando. Um Panorama da Tortura no Brasil. In: CARDIA, Nancy; ASTOLFI, Roberta. (Org.). Tortura na Era dos Direitos Humanos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014, p. 327. 14 Pesquisa realizada entre dezembro de 2013 e abril de 2014. Ver AMNESTY INTERNATIONAL. Resultado de pesquisa global realizada entre dezembro de 2013 e abril de 2014. Attitudes to torture. [online] Disponível na Internet via WWW.URL: <https:// www.amnestyusa.org/pdfs/GlobalSurveyAttitudesToTorture2014.pdf>. Último acesso em: 11 out. 2015. 15 Os dados atualizados foram obtidos diretamente com o Coordenador-Geral do Disque 100 da Secretaria de Direitos Humanos, Sr. Sidnei Souza Costa, em 14 de setembro de 2015. 16 O que, ao contrário de sugerir necessariamente um aumento no número de ocorrências, parece muito mais indicar que o número de denúncias aumenta acompanhando a divulgação do serviço e a sua popularização, conforme ponderado pelo próprio Coordenador-Geral do Disque 100 da Secretaria de Direitos Humanos, Sr. Sidnei Souza Costa, de acordo com notícia publicada em 29 de julho de 2014, no site de notícias Último segundo. Ver OLIVEIRA, Ana Flávia. Denúncias de tortura praticada por agentes públicos crescem 21% em 2013.

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tortura realmente ocorre no Brasil, não se constituindo, ainda, como problema isolado

de uma única região, mas sim como característica sistêmica, estando presente na

maioria dos estados brasileiros. Além disso, é interessante notar que, desde 2011 –

ano em que o módulo específico para denúncias de tortura foi implantado –, a ordem

de colocação dos três ambientes com maior número de denúncias permanece a

mesma: em primeiro lugar têm-se os Presídios17; em segundo, as Cadeias Públicas18;

e, por fim, as Delegacias de Polícia19. Outros espaços físicos, como, por exemplo, as

Unidades de Medida Sócio-Educativa e os Hospitais Psiquiátricos, têm tido uma

crescente representatividade nos dados levantados20, embora com números bastante

reduzidos quando comparados aos ambientes supramencionados.

A partir de todos os dados e reflexões acima expostos, é possível chegar a

algumas constatações. Primeiramente, nota-se que o Brasil é signatário dos mais

importantes instrumentos internacionais de combate à tortura, bem como adotou, ao

longo das últimas décadas, iniciativas bastante interessantes e proativas em relação à

sua prevenção, o que mostra a preocupação e o reconhecimento acerca da

complexidade e urgência do problema. Contudo, verifica-se que os brasileiros não

estão e não se sentem protegidos contra a tortura. Esta prática continua ocorrendo de

maneira sistemática, em diversos ambientes, e os poucos números que possuímos

para análise21 indicam que os locais nos quais indivíduos encontram-se privados de

sua liberdade, ainda que precariamente, são aqueles nos quais este tipo de violação é

mais comum.

2. EXPECTATIVAS FRUSTRADAS – OS 18 ANOS DA LEI Nº 9.455/97

Conforme exposto acima, a criminalização efetiva da prática da tortura no

Direito brasileiro se deu através da Lei nº 9.455/97, a qual, desde então, tem sido

[online] Disponível na Internet via WWW.URL: <http://ultimosegundo. ig.com.br/brasil/2014-07-29/denuncias-de-tortura-praticada-por-agentes-publicos-crescem-21-em-2013.html>. Último acesso em: 11 out. 2015. 17 Foram 414 denúncias em 2011, 797 em 2012, 727 em 2013 e 1278 em 2014. 18 Foram 128 denúncias em 2011, 380 em 2012, 451 em 2013 e 758 em 2014. 19 Foram 114 denúncias em 2011, 199 em 2012, 222 em 2013 e 280 em 2014. 20 Em relação ao primeiro, os números foram de 1 denúncia, em 2011, para 17 em 2012, 29 em 2013 e 72 em 2014, enquanto em relação ao segundo foram 4 denúncias em 2011, 12 em 2012, 34 em 2013 e apenas 14 em 2014, cumprindo destacar que a significativa redução percebida no último ano não alcançou a maioria dos demais ambientes levantados, tendo sido bastante excepcional. 21 Sobre os poucos dados disponíveis para análise, a diretora da Human Rights Watch do Brasil, Sra. Maria Laura Canineu, destacou a importância do Disque 100, como sendo a única fonte de dados que possibilita dimensionar o problema, de acordo com notícia publicada em 29 de julho de 2014, no site de notícias Último segundo. Ver OLIVEIRA, Ana Flávia. Denúncias de tortura... [online]

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objeto de diversas críticas. O principal ponto questionado diz respeito ao reduzido

número de condenações que ela ensejou desde a sua edição, bem como à sua

ineficiência em relação à redução da frequência com que este crime ocorre. Além

disso, verifica-se que com base nela foram condenados principalmente indivíduos

privados, enquanto agentes do Estado continuam sendo processados – quando o são

– a partir de outros tipos penais, tais como o abuso de poder e a lesão corporal22. É

possível questionar, a partir disso, os motivos pelos quais a lei brasileira contra a

tortura não teve a eficácia esperada, no que se refere a alterar este preocupante

quadro de violência estatal.

Neste sentido, é interessante tratar da análise feita pela professora Mariana

Thorstensen Possas acerca dos discursos paradoxais sobre a tortura no Brasil23. De

acordo com ela, é possível reconhecer a existência de dois discursos oficiais sobre a

tortura e sua prática em nosso país: um contrário, expresso, por exemplo, na própria

lei que criminaliza a conduta; e outro favorável, refletido na prática policial24. A

existência dessas duas visões radicalmente diferentes sobre o tema está na base para

se compreender o motivo pelo qual a lei de 97 – assim como todos os outros

instrumentos normativos assinados pelo Brasil – não foi eficaz para eliminar a prática

da tortura. O motivo para isso é que a mera edição de uma lei não é capaz de

homogeneizar discursos contrários dentro da sociedade, de modo que seria

extremamente ingênuo acreditar que a considerável parcela da população que aceita a

prática da tortura em determinadas situações pudesse mudar de posicionamento

somente a partir de uma nova lei sobre o tema25.

Além disso, Mariana Possas fala sobre as diferentes expectativas que podem

surgir acerca da criminalização de uma determinada conduta. Segundo ela, é possível

que a opção pela criminalização tenha como objetivo simplesmente indicar de maneira

explícita a reprovação daquele comportamento, ou seja, declarar que a sociedade o

considera inaceitável e repulsivo. Mas o objetivo pode ser, por outro lado, a repressão

do comportamento, de modo que se opere uma redução drástica quanto à prática do

22 FOLEY, Conor. Protegendo os brasileiros contra a tortura..., p. 110. 23 POSSAS, Mariana Thorstensen. Os Discursos Paradoxais sobre a Tortura no Brasil: Reflexões a partir da Criação da Lei n. 9.455/97. In: CARDIA, Nancy; ASTOLFI, Roberta. (Org.). Tortura na Era dos Direitos Humanos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014, p. 437-471. 24 De acordo com a autora, o fato de este segundo discurso, favorável à tortura, não estar na lei não significa que seja menos oficial que o primeiro. Afinal, “se a polícia pratica a tortura com a autorização ou, no mínimo, com a conivência dos seus superiores – sejam estes o delegado de polícia, o secretário de Segurança ou, em última instância, o governador – não dá para dizer que essa não é uma política de Estado”. Ver POSSAS, Mariana Thorstensen. Os Discursos Paradoxais sobre a Tortura no Brasil..., p. 468. 25 POSSAS, Mariana Thorstensen. Os Discursos Paradoxais sobre a Tortura no Brasil..., p. 463.

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crime26. De acordo com a autora, a razão pela qual se percebe um sentimento de

frustração em relação à Lei nº 9.455/97 é a mistura de expectativas verificadas quando

de sua edição. Se, por um lado, havia um desejo de tornar clara a rejeição da prática

da tortura, por outro lado era forte a esperança de que a criminalização seria a solução

efetiva para o problema. Note-se que, quanto à primeira expectativa citada, não há

dúvidas de que tanto a Lei de 97 como os tratados internacionais assinados pelo Brasil

são plenamente eficazes, uma vez que apontam para um claro compromisso nacional

de repúdio à tortura. Por outro lado, é certo que tais instrumentos normativos são

extremamente limitados quanto aos seus efeitos práticos, sendo certo que a tipificação

não impedirá que a tortura continue ocorrendo27.

A partir desta análise, resta claro o motivo pelo qual a Lei nº 9.455/97 e os

demais instrumentos normativos assinados pelo governo brasileiro não foram

suficientes para eliminar a prática da tortura: a única expectativa que se pode ter em

relação a eles é a de explicitar a reprovação do comportamento, mas jamais esperar

que sejam capazes de alterar a realidade. Afinal, a aprovação de uma lei não alcança

as causas do problema. E há que se considerar ainda o perigo de se criar expectativas

neste sentido, uma vez que isso desvia as atenções de outras possibilidades de ação

situadas fora da esfera penal28. Assim, se o objetivo do governo for de fato reduzir

significativamente a prática da tortura no Brasil, é preciso pensar em alternativas que

atuem sobre o que de fato sustenta sua prática nos dias atuais: a nossa própria

cultura.

3. A VIOLÊNCIA BANAL E O COMBATE AO INIMIGO

Embora a tortura possa ter diferentes significados e diferentes motivações

dependendo do contexto no qual se encontra, do local em que ocorre e de quem são

os personagens envolvidos, é possível identificar dois elementos comuns à tortura

praticada contra pessoas que se encontram privadas de sua liberdade devido ao seu

envolvimento ou suposto envolvimento na prática de crimes – elementos estes

diretamente relacionados ao que sustenta essas violações ainda hoje. A banalização

da violência e a desvalorização da figura do infrator seriam, neste sentido, os pilares

26 POSSAS, Mariana Thorstensen. Os Discursos Paradoxais sobre a Tortura no Brasil..., p. 452-453. 27 POSSAS, Mariana Thorstensen. Os Discursos Paradoxais sobre a Tortura no Brasil..., p. 457. 28 POSSAS, Mariana Thorstensen. Os Discursos Paradoxais sobre a Tortura no Brasil..., p. 457.

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que sustentam a prática deste tipo específico de tortura atualmente, razão pela qual se

mostra interessante compreender melhor em que consistem tais fenômenos sociais.

Diversas são as abordagens através das quais é possível analisar a questão da

banalização da violência. Uma delas, no entanto, mostra-se especialmente

interessante, por envolver o resgate das reflexões de uma das mais influentes filósofas

políticas do século XX. Trata-se da releitura contemporânea da banalidade do mal de

Hannah Arendt.

A expressão “banalidade do mal” foi cunhada pela autora em seu relato sobre o

julgamento de Adolf Eichmann, na cidade de Jerusalém29. Ela está relacionada com a

indiferença com que a sociedade alemã e parte considerável dos executores da

política nazista percebiam o sofrimento infringido nos campos de concentração30. É

neste sentido que se argumenta que Eichmann não era movido por um ódio

enlouquecido ou por qualquer motivação criminosa, mas pela simples incapacidade de

reflexão sobre seus atos31. Isso não quer dizer que Hannah defendesse a teoria

segundo a qual deveria ser atribuída aos participantes do regime nazista a condição

de simples peças de uma grande engrenagem, isentando-os de culpas e

responsabilidades individuais. Ao contrário disso, ela defendia que Eichmann deveria

sim ser responsabilizado, mas levando-se em conta que seu erro não correspondia ao

desejo de extermínio – presente nos líderes do movimento totalitário –, mas sim em

não ter elaborado um juízo crítico e reflexivo sobre as ordens que recebia e

executava32. De acordo com a autora, a maior lição aprendida com o julgamento de

Jerusalém foi a maneira pela qual a ausência de reflexão e o desapego em relação à

realidade podem gerar mais devastação do que todos os maus instintos juntos33.

Essa ausência de vínculo entre o pensar e o agir, para além de explicar o

abismo existente entre a crueldade do genocídio nazista e o sentimento de indiferença

de parte de seus executores34, serve para a compreensão da tortura contemporânea.

29 CASANOVA, Marco. Do domínio do impessoal à banalidade do mal. In: DUARTE, André; LOPREATO, Christina; MAGALHÃES, Marion Brepohl de. (Org.). A banalização da violência: a atualidade do pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004, p. 329. 30 LEISTER, Margareth Anne; COSTA, Arlei da. “A Banalidade do Mal”: Uma releitura da expressão criada por Hannah Arendt. [online] Disponível na Internet via WWW.URL: <http://www.academia.edu/3670369/_A_Banalidade_do_Mal_._Uma_releitura_da_express%C3%A3o_criada_por_Hannah_Arendt>. Último acesso em: 11 out. 2015. 31 ANSART, Pierre. Hannah Arendt: a obscuridade dos ódios públicos. In: DUARTE, André; LOPREATO, Christina; MAGALHÃES, Marion Brepohl de. (Org.). A banalização da violência: a atualidade do pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004, p. 29. 32 SIQUEIRA, José Eduardo de. Irreflexão e a banalidade do mal no pensamento de Hannah Arendt. [online] Disponível na Internet via WWW.URL: <http://www.saocamilo-sp.br/pdf/bioethikos/89/A5.pdf>. Último acesso em: 11 out. 2015. 33 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 311. 34 SIQUEIRA, José Eduardo de. Irreflexão e a banalidade do mal... [online]

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Neste sentido, diversos autores afirmam a atualidade do pensamento de Hannah

Arendt, utilizando-se de suas reflexões para compreender fenômenos percebidos em

nossa sociedade, tais como o professor Bruno Gustavo Muneratto35 e a socióloga

Claudine Haroche36. Um trabalho em especial merece destaque, publicado pelos

autores Margareth Anne Leister e Arlei da Costa37, o qual, embora não trate do tema

da tortura, apresenta uma análise bastante relevante sobre a maneira como nossa

sociedade mostra-se indiferente ao sofrimento de determinados grupos de indivíduos –

no caso, as pessoas em situação de rua –, com as quais não há um sentimento de

identificação. Como bem colocado, a semelhança verificada entre o comportamento da

sociedade alemã do período nazista e os brasileiros que circulam pelas grandes

cidades nos dias de hoje relaciona-se ao fato de que a ausência de identificação com

o outro desencadeia um processo de coisificação do homem, do qual se retira

qualquer humanidade. Ao desconsiderarmos aquele indivíduo como igual, aflora um

sentimento de indiferença, e o resultado disso é que a maioria das pessoas não se

deixa incomodar pelas constantes violações de direito por ele sofridas38.

Esta mesma anuência implícita da sociedade com as constantes violações

impostas aos moradores de rua se verifica em relação aos indivíduos vitimados pela

tortura praticada em nossos presídios, cadeias públicas e delegacias de polícia. Como

os torturados são em sua maioria indivíduos investigados ou condenados pela prática

de crimes, ocorre um processo de identificação da sociedade em geral somente com

as vítimas da conduta delituosa, ao mesmo tempo em que aqueles não possuem

qualquer visibilidade enquanto iguais39. E se a sociedade não reconhece neles a

humanidade, também os policiais e agentes penitenciários, dentre outros, devem ser

capazes de negá-la, convencendo-se de que o indivíduo torturado não é um ser

humano e distanciando-se emocionalmente de suas próprias ações, pois somente

assim podem torturar sem remorso. Além disso, o torturador não se percebe agindo

sozinho, mas sim em meio a um grupo que lhe confia o exercício deste papel40.

Neste sentido, é interessante explorar as reflexões do filósofo Marco Casanova

acerca do domínio do impessoal. Segundo ele, nós vivemos cotidianamente sob o

35 MUNERATTO, Bruno Gustavo. A Nova “Banalidade do Mal”: O retorno de Hannah Arendt e a morte do Chapolin Colorado. [online] Disponível na Internet via WWW.URL: <http://www.historiaem perspectiva.com/2014/03/a-nova-banalidade-do-mal-o-retorno-de.html>. Último acesso em: 11 out. 2015. 36 HAROCHE, Claudine. Reflexões sobre a personalidade não totalitária. In: DUARTE, André; LOPREATO, Christina; MAGALHÃES, Marion Brepohl de. (Org.). A banalização da violência: a atualidade do pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004, p. 299. 37 LEISTER, Margareth Anne; COSTA, Arlei da. “A Banalidade do Mal”... [online] 38 LEISTER, Margareth Anne; COSTA, Arlei da. “A Banalidade do Mal”... [online] 39 GONÇALVES, Vanessa Chiari. A tortura como violência instituída..., p. 181. 40 GONÇALVES, Vanessa Chiari. A tortura como violência instituída..., p. 94.

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domínio do impessoal, o que significa que o que pensamos e o modo como agimos

estão estruturalmente ligados a um manancial de significações e sentidos previamente

constituídos. Este impessoal não se confunde com qualquer dimensão específica, tais

como a família, os meios de comunicação ou as lideranças políticas, mas perpassa

todas elas. A partir do momento em que este impessoal prescreve todo julgamento e

decisão, o nosso próprio se perde em meio a ele, e nós somos dispensados de ser41.

Deste modo, nos é retirado o encargo de assumirmos nossas responsabilidades, e

todos passam a se apoiar no impessoal, o qual responde por tudo já que, ao mesmo

tempo em que é todos, também não é ninguém42.

Direcionando este estudo para a questão da tortura, é fácil perceber que a

comunidade como um todo se exime de questionar a cultura de violência disseminada

nestes ambientes específicos, por ser muito mais simples não se sentir responsável

por isso. Embora saibam da prática frequente da tortura, e das consequências terríveis

que ela traz para os torturados, os indivíduos no geral se limitam a lamentar, quando

não estão aplaudindo e repetindo discursos do tipo “bandido tem que apanhar

mesmo”, ou “bandido bom é bandido morto”43. As pessoas se recusam a refletir sobre

o assunto, se recusam a tomar posições pessoais frente ao impessoal do coletivo,

anestesiam suas consciências ao perceber que todos ao redor agem da mesma

forma44, e essa indiferença e irresponsabilidade generalizada constituem-se como um

dos pontos centrais de sustentação da prática da tortura na atualidade.

Outro importante pilar que sustenta a prática da tortura contra este grupo

específico de indivíduos – qual seja aquele composto por investigados e condenados

pela prática de crimes – é a desvalorização da figura do infrator, através de sua

visualização como inimigo da sociedade. Neste sentido, é propagada a ideia de que os

indivíduos investigados pela prática de delitos não merecem um tratamento digno nem

41 CASANOVA, Marco. Do domínio do impessoal à banalidade do mal, p. 325-326. 42 CASANOVA, Marco. Do domínio do impessoal à banalidade do mal, p. 324. 43 Conforme expôs a professora Priscilla Placha Sá, um dos momentos nacionais em que se percebeu que a população em geral aplaude o policial que tortura o bandido foi na ocasião do lançamento da produção cinematográfica “Tropa de Elite”. Segundo ela, o sucesso de bilheteria, bem como de pirataria, indicam que a sociedade deseja este tipo de conduta e não percebe – assim como não o perceberam os alemães durante o regime nazista – que o resultado disso é catastrófico para ela mesma. Segundo Priscilla, “é impensável a ação e a omissão com essa gravidade sem a total ausência de consciência e razão do povo”. Ver SÁ, Priscilla Placha. Capitão Nascimento e Adolf Eichmann: ficção e realidade na violação aos direitos humanos. In: FOLMANN, Melissa; ANNONI, Danielle. (Org.). Direitos Humanos – Os 60 Anos da Declaração Universal da ONU. Curitiba: Juruá, 2008, p. 321-334. 44 Interessante refletir, inclusive, sobre o fato de que os mesmos discursos incansavelmente repetidos e repletos de figura de linguagem que buscam amenizar as atrocidades cometidas, assim como a supressão da consciência através da percepção de que a sociedade como um todo se posiciona da mesma forma, foram igualmente utilizados por Eichmann, conforme discutido por Hannah Arendt. Ver ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 65, 133 e 143.

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o respeito às suas garantias e direitos, devendo ser punidos não só pelo que

eventualmente fizeram, mas por tudo aquilo que representam. Embora as reflexões

sobre o tema por vezes em muito se aproximem do ponto anteriormente abordado –

sobretudo no que se refere à desumanização do outro, à dificuldade de se percebê-lo

como igual e à incapacidade de reflexão dos indivíduos – é interessante analisar esta

questão separadamente, uma vez que está envolvida aqui, para além da indiferença, a

manipulação do ódio da sociedade.

De acordo com o relatório divulgado em maio deste ano pela Anistia

Internacional, não há dúvidas de que, dentre os direitos humanos defendidos

internacionalmente, o direito de viver livre da tortura é um dos que conta com a

proteção mais robusta. As leis internacionais não abrem qualquer exceção em relação

a este direito, de modo que a proibição da tortura se estende a todos, em qualquer

lugar e em quaisquer circunstâncias. Nem mesmo situações de emergência, tais como

guerras ou ataques terroristas, abrem espaço para este tipo de violação45. Contudo, a

verdade é que exceções são abertas constantemente e a tortura continua ocorrendo

em larga escala em diversos países do mundo, sendo que em cada um deles é

possível identificar grupos de indivíduos especialmente vulneráveis a esta prática.

Enquanto a religião, a visão política ou a nacionalidade podem ser decisivas em

alguns países46, no Brasil destacam-se dois elementos que caracterizam a

vulnerabilidade à tortura: o racial e o econômico/social.

Para se compreender o uso atual da tortura e o seu direcionamento a

determinados grupos, alguns autores defendem a necessidade de se fazer uma

análise histórica, resgatando certos aspectos de nosso passado. A socióloga Vera

Malaguti Batista, por exemplo, explica que a tortura aflorou no Brasil pela primeira vez

no próprio encontro civilizatório, em meio ao genocídio de nossos índios e ao

estabelecimento da escravidão. Ela defende que foi por causa do olhar etnocêntrico de

nossos colonizadores que se naturalizou uma hierarquização dos indivíduos, através

da qual alguns homens eram tidos como menos humanos do que outros47. A

historiadora Angela Mendes de Almeida, por sua vez, afirma que o traço da

mentalidade brasileira que criminaliza a pobreza a priori e percebe alguns indivíduos

como não humanos tem suas origens em nosso escravismo. Segundo ela, a opção

tomada pelos colonizadores de se construir a sociedade com base em grandes

propriedades agroexportadoras trabalhadas por escravos – ao invés de pequenas

45 AMNESTY INTERNATIONAL. Torture in 2014… [online] 46 AMNESTY INTERNATIONAL. Torture in 2014… [online] 47 BATISTA, Vera Malaguti. A tortura como cultura. [online] Disponível na Internet via WWW.URL: <http://asa.org.br/boletim/ed146/a-tortura-como-cultura/>. Último acesso em: 11 out. 2015.

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propriedades com trabalho familiar – fez com que não se desenvolvesse aqui um

sentimento de solidariedade e igualdade entre os membros da comunidade. A

desigualdade radical percebida entre escravos e homens livres marcou profundamente

a mentalidade nacional, motivo pelo qual permanece a recusa em se admitir que todos

os indivíduos tenham direitos iguais48. Ela explica ainda que, com a abolição da

escravatura, os castigos corporais comumente aplicados aos escravos foram

transferidos para o tratamento dos delitos dos ex-escravos, de modo tal que a tortura

implementou-se nas delegacias como método privilegiado de investigação destes

indivíduos49.

Resta claro, portanto, que o processo de construção de um olhar que não

reconhece o outro como igual – no que se refere aos indivíduos oriundos de classes

mais desfavorecidas e, dentre eles, especialmente os de descendência africana –

remonta a uma longa tradição de exclusão social, cujas raízes podem ser encontradas

na escravidão e no extermínio dos povos indígenas50. Assim, a especial

vulnerabilidade destes indivíduos à tortura não é de hoje, constituindo-se como

característica histórica do Brasil. Somente em dois períodos específicos – quais sejam

o Estado Novo e a Ditadura Militar – é que a figura do inimigo mudou de

direcionamento, atingindo pela primeira vez na história membros da classe média e

elite brasileiras, na figura dos dissidentes e dos intelectuais51. Foi por este motivo que

a tortura destes períodos chocou a sociedade e é lembrada ainda hoje: porque foi

derrubada a imunidade dos setores privilegiados. Com o retorno à democracia, no

entanto, a tortura não acaba, apenas retorna às suas vítimas habituais52.

Para além desta questão histórica, é possível distinguir dois motivos principais

pelos quais os grupos mencionados são tão vulneráveis à prática da tortura nos dias

de hoje. Primeiramente, há que se considerar que estes indivíduos são aqueles que

têm maiores dificuldades no acesso à proteção e aos mecanismos de denúncia. As

razões pelas quais eles não recorrem a estes meios podem variar desde a falta de

48 ALMEIDA, Angela Mendes de. Violência e cordialidade no Brasil. [online] Disponível na Internet via WWW.URL: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/brasil/cpda/estudos/nove /angela9.htm>. Último acesso em: 11 out. 2015. 49 ALMEIDA, Angela Mendes de. Raízes históricas da violência policial. Juízes para a democracia. São Paulo: Associação Juízes para a Democracia, n. 63, 2014. 50 Outros autores que defendem este raciocínio, para além daquelas já citadas, são Mariana Joffily e Luciano Mariz Maia. Ver JOFFILY, Mariana. Mecânica do Interrogatório Político. In: CARDIA, Nancy; ASTOLFI, Roberta. (Org.). Tortura na Era dos Direitos Humanos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014, p. 379; e MAIA, Luciano Mariz. Tortura no Brasil: a banalidade do mal. [online] Disponível na Internet via WWW.URL: <www. altrodiritto.unifi.it/ricerche/ latina/maia.htm>. Último acesso em: 11 out. 2015. 51 PASTORAL CARCERÁRIA DA CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Relatório sobre tortura... [online] 52 PASTORAL CARCERÁRIA DA CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Relatório sobre tortura... [online]

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informação e uma série de dificuldades práticas até o medo de não serem levados a

sério ou sofrerem retaliações53. Inclusive, há quem destaque a dificuldade que os

membros desta parcela da sociedade têm para enxergar a si mesmos como sujeitos

de direito. Isso porque muitos deles convivem diariamente com a sua exclusão dos

meios de acesso aos direitos fundamentais mais básicos, graças a esta condição de

desigualdade determinada historicamente54. Certamente os torturadores têm

conhecimento desta situação, e é bastante provável que se utilizem desta razoável

certeza de impunidade para praticar a tortura tranquilamente55.

O segundo motivo diz respeito à existência de um discurso que busca

individualizar inimigos dentro da sociedade, autorizando todo tipo de tratamento

violento e abusivo em busca de sua neutralização – ou, em casos mais extremos, até

a sua aniquilação. Contra tais indivíduos é declarada uma espécie de guerra interna,

marcada pelo total desrespeito às garantias constitucionais e aos limites do poder

estatal56. Essa estratégia, como bem explica Eugenio Raúl Zaffaroni, tem sido utilizada

pelo poder punitivo desde a sua própria origem, o qual se vale do reforço aos

preconceitos da sociedade como forma de impor medo e, consequentemente, justificar

níveis repressivos elevados57. Alguns exemplos históricos disso são: as feiticeiras e

demais hereges, combatidos pelas Inquisições; os judeus, exterminados pelo regime

nazista; os comunistas perseguidos, por exemplo, pelas ditaduras latino-americanas;

e, atualmente, os indivíduos ligados ao tráfico de drogas e ao terrorismo.

É possível perceber, através destes exemplos, que sempre se admitiu um trato

diferenciado daqueles indivíduos que, por uma ou outra razão, incomodavam a

sociedade e, sobretudo, os detentores do poder. Inclusive, para os governantes é

bastante interessante manipular a opinião pública a fim de atribuir aos inimigos todas

as frustrações e revoltas do povo, porque isso possibilita a ocultação dos verdadeiros

53 AMNESTY INTERNATIONAL. Torture in 2014… [online] 54 GONÇALVES, Vanessa Chiari. A tortura como violência instituída..., p. 158. 55 Neste sentido, Vanessa Chiari Gonçalves constatou, através de entrevistas realizadas com policiais militares, que um dos motivos para a diferença no tratamento entre diferentes grupos sociais é a possibilidade de o indivíduo vir a denunciar possíveis torturas sofridas. Ver GONÇALVES, Vanessa Chiari. A tortura como violência instituída..., p. 187. 56 Sobre o tema, cumpre recordar as teorizações de Günther Jakobs acerca do Direito Penal do Inimigo. A crítica à ideia por ele defendida de que, ao lado de um sistema penal de garantias voltado para os cidadãos, deva existir igualmente um sistema penal altamente repressor contra aqueles que não podem ser considerados como pessoas – e, consequentemente, devem ser vistos como inimigos da sociedade – pode ser entendida a partir das reflexões de Massimo Pavarini. Ver PAVARINI, Massimo. Punir os inimigos: criminalidade, exclusão e insegurança. Curitiba: LedZe, 2012, p. 167-176. 57 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 34.

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males que sustentam a estrutura de dominação e poder58. Como bem exposto pela

juíza Maria Lúcia Karam, o combate a um inimigo determinado desvia as atenções da

busca por soluções eficazes que tratem não da punição do sujeito, mas sim das fontes

geradoras de criminalidade, permanecendo estas intocadas59.

Tudo isto se torna um problema ainda mais grave na medida em que os dados

sobre a criminalidade são manipulados a fim de se agravar o sentimento de

insegurança da população. Neste sentido, os professores Massimo Pavarini e André

Giamberardino afirmam que “no Brasil, o ‘medo do crime’ parece ter sido sempre

instrumentalizado como recurso político de legitimação do extermínio, e assim ainda o

é, atualmente, especialmente em face da altíssima percepção subjetiva de

insegurança atual”60. Segundo eles, mesmo que se admita um aumento real nas

possibilidades de vitimização, é imprescindível que se compreenda não ser este risco

o produtor direto da insegurança. Diferentemente disto, o que ocorre é a construção de

um imaginário que possibilita que se governe através do medo, enquanto tudo passa a

ser socialmente reconstruído segundo a ótica da segurança61. Neste mesmo sentido,

Maria Lúcia Karam afirma que a manipulação e a espetacularização dos dados sobre

a criminalidade substituem os verdadeiros riscos por superdimensionados riscos

imaginários. Segundo ela, a manipulação do sentimento de insegurança e do medo

coletivo difuso “gera um crescente clima de histeria e de pânico diante da

criminalidade, alimentando exacerbados desejos repressores e punitivos”62.

É dentro desta lógica que se insere aquilo que Zaffaroni chamou de o “novo

autoritarismo cool”63. De acordo com o autor, este novo tipo de discurso autoritário,

bastante difundido no mundo e especialmente na América Latina, se caracteriza pela

exagerada simplicidade e superficialidade das ideias que defende, reduzindo-se a

mera mensagem publicitária. Existe um apelo emocional que, promovendo impulsos

vingativos, busca vender o poder punitivo como uma mercadoria. Uma considerável

parcela da população adere a estes discursos, sem qualquer reflexão mais

aprofundada, acreditando em suas promessas de resgate da segurança perdida. Ao

mesmo tempo, diversos políticos sustentam este discurso sem qualquer convicção,

58 KARAM, Maria Lúcia. Segurança pública e processo de democratização. In: BATISTA, Nilo. (Dir.). Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 1998, p. 171. 59 KARAM, Maria Lúcia. Segurança pública e processo de democratização, p. 172. 60 PAVARINI, Massimo; GIAMBERARDINO, André. Teoria da Pena e Execução Penal: Uma Introdução Crítica. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 224. 61 PAVARINI, Massimo; GIAMBERARDINO, André. Teoria da Pena e Execução Penal..., p. 224-225. 62 KARAM, Maria Lúcia. Segurança pública e processo de democratização, p. 170. 63 Sobre as reflexões de Zaffaroni acerca do novo autoritarismo cool, ver ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal, p. 59-81.

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somente para não perder espaço publicitário. É por esta razão que tantas leis

absurdas são aprovadas, assim como é comum perceber uma rejeição por vezes

bastante violenta dos discursos relacionados aos direitos humanos64.

É interessante notar a considerável contribuição que a imprensa presta para a

disseminação destas ideias autoritárias. Ao mesmo tempo em que é ela que,

eventualmente, substitui os aplausos cotidianos à atuação violenta da polícia por

exigências de punição dos torturadores – ao divulgar ações particularmente cruéis65–,

ela também cumpre um papel estratégico na exacerbação dos desejos punitivos da

coletividade, ao favorecer a construção do medo e divulgar teses de endurecimento

penal66. É por isso que Zaffaroni fala na revolução tecnológica/comunicacional como

elemento central que permite o avanço deste discurso punitivo e repressivo em escala

mundial67. Esta guerra ao inimigo interno, como bem apontou o professor Massimo

Pavarini, nos convenceu progressivamente como uma escolha inevitável. Segundo

ele, defender-se, inclusive militarmente, do inimigo interno nos é apresentado como

uma necessidade68, e é por esta razão que já não a questionamos mais.

É possível perceber, portanto, que o medo exacerbado de ser vítima de

violência, a exclusão dos infratores do sistema de proteção e garantias legais e a

presença de valores, dentro de nossa sociedade, que promovem a aceitação desta

prática, podem sim ser considerados como alguns dos principais motivos pelos quais a

tortura continua ocorrendo, a despeito das várias iniciativas adotadas para erradicá-la

– como bem ponderado por Nancy Cardia e Fernando Salla69. É preciso se atentar a

isso, e à já citada banalização da violência – que se verifica através da coisificação do

outro, da negação da capacidade de reflexão sobre nossos próprios atos e da

ausência de um sentimento de responsabilidade perante o mundo –, uma vez que tais

fenômenos culturais e sociais são diretamente responsáveis pela crescente aceitação

da tortura e flexibilização das regras que a proíbem, por parte da população brasileira.

64 Neste sentido, como bem apontou Carlos Magno Nazareth Cerqueira, é raro, no cenário brasileiro, que as diretrizes governamentais na área de segurança pública adotem posições favoráveis à ideologia dos direitos humanos e, quando o fazem, são sempre acusadas de complacência com os criminosos. Ver CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Outros aspectos da criminalidade da polícia. In: BATISTA, Nilo. (Dir.). Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 1998, p.188. 65 KARAM, Maria Lúcia. Segurança pública e processo de democratização, p. 175. 66 CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Outros aspectos da criminalidade da polícia, p. 189. 67 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal, p. 53. 68 PAVARINI, Massimo. Punir os inimigos..., p. 59. 69 CARDIA, Nancy; SALLA, Fernando. Um Panorama da Tortura no Brasil, p. 315-316.

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4. A COMUNIDADE ENQUANTO AGENTE TRANSFORMADOR

A partir do momento em que se percebe, conforme exposto acima, que a

permanência da prática da tortura em nossa sociedade atual está muito mais

relacionada a questões culturais do que a uma eventual inércia do governo –

lembrando, ainda, que o Brasil tem sido bastante elogiado no que se refere à sua

postura frente a este tema –, resta claro que a sociedade civil não depende e nem

deve esperar que seja o Estado a protagonizar este movimento. O caminho, pelo

contrário, deverá ser trilhado pela própria comunidade, já que leis e demais medidas

adotadas pelo Estado jamais serão capazes de alterar uma realidade fática que

permeia toda a história de nosso país.

Em um primeiro momento, no que se refere à banalização da violência, a

solução para essa questão passa pelo resgate da capacidade de formular juízos

críticos, pela reconstrução do vínculo com o outro e pela conscientização acerca de

nossas responsabilidades para com o mundo. Neste sentido, é importante recordar as

reflexões do filósofo Marco Casanova sobre o domínio do impessoal, acima

traduzidas. Para o autor, a saída para aquele domínio do impessoal, caracterizado

pela dissolução de toda reflexão ética e pelo abandono das responsabilidades

individuais, está na conquista do si próprio. Nas palavras do autor, “só o si próprio é

capaz de prescrever no momento da decisão o caminho necessário a ser percorrido.

[...] Todo o nosso esforço precisa apontar, por isso, antes de tudo para uma luta contra

o que há em nós de impessoal”70. A partir disso, conclui-se que a solução para a

questão da banalização da violência envolve uma mudança de postura envolvendo

toda a sociedade. Todos devem se esforçar para abandonar a cômoda situação da

irreflexão e passar a questionar todo e qualquer discurso, assumindo responsabilidade

pelo mundo, a fim de garantir que não seremos cúmplices das violações às quais

ainda hoje tantos indivíduos são submetidos.

E a segunda mudança cultural necessária envolve a superação da tendência

de desvalorização da figura do infrator, a qual se opera, sobretudo, sobre aqueles que

pertencem a determinados grupos que têm sido vistos e tratados historicamente como

inimigos da sociedade – quais sejam os negros e os pobres. Como visto, os

investigados e condenados pela prática de crimes são muitas vezes considerados

como casos excepcionais, aos quais não se aplica a proteção contra a tortura. A

principal explicação para a aceitação deste tratamento diferenciado diz respeito à

existência de discursos que buscam afirmar uma suposta prevalência da impunidade e

70 CASANOVA, Marco. Do domínio do impessoal à banalidade do mal, pg. 331.

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reforçar preconceitos sociais, bem como contribuir para a exacerbação de sentimentos

como a insegurança e os desejos punitivos da sociedade. Não há dúvidas, portanto,

de qual a principal medida a ser adotada a fim de se romper com este segundo pilar

que sustenta a tortura contemporânea: é preciso atacar os discursos que legitimam a

sua prática. Primeiramente, há que se trabalhar no sentido de desconstruir

preconceitos historicamente presentes na mentalidade brasileira, promovendo a

inclusão dos excluídos e a interação entre os diversos grupos sociais71. Além disso, é

de extrema importância que o discurso se altere no sentido de não mais perceber os

infratores como inimigos, mas sim como cidadãos, reconhecendo e respeitando todos

os seus direitos e garantias. É fundamental, ainda, que deixem de ser constantemente

veiculados os discursos alarmistas sobre a impunidade e o crescimento da

criminalidade – os quais só contribuem para aumentar a insegurança da população e

exacerbar o ódio e incentivo à repressão. Por fim, considerando-se o que foi dito

anteriormente sobre a dificuldade que as vítimas da tortura têm para perceberem a si

mesmas como sujeitos de direito, resta clara a importância de se garantir sempre o

seu acesso a todos os seus direitos, para que tenham confiança na hora de denunciar

qualquer violação.

Não se pretende, com o presente trabalho, retirar a importância das medidas

adotadas pelo governo brasileiro ao longo das últimas décadas, as quais foram

fundamentais para facilitar a realização de denúncias e para reforçar a reprovação

deste comportamento. Não há dúvidas, no entanto, de que a necessária

transformação cultural deverá ser protagonizada pela comunidade, a qual deverá atuar

de maneira incisiva sobre os valores e concepções difundidos em nossa sociedade

que permitem a perpetuação de práticas violentas contra grupos pré-determinados.

Somente assim é que se poderá construir um ambiente livre da tortura.

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71 Considera-se como um bom exemplo de prática de inclusão que possibilita o combate a este tipo de preconceito o estabelecimento do sistema de cotas sociais e raciais para o ingresso nas Universidades e para concursos públicos.

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I SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE PESQUISA EM PRISÃO

2 DE OUTUBRO DE 2015

SÃO PAULO – SP

FACULDADE DE DIREITO,USP

G.T.11: SOCIEDADE CIVIL E PRISÃO

GRUPO DE DIÁLOGO UNIVERSIDADE-CÁRCERE-COMUNIDADE (GDUCC):

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE SEU FUNCIONAMENTO E SEUS LIMITES.

THALITA SANÇÃO TOZI – Mestranda em Direito Penal e Criminologia pela Faculdade

de Direito da Universidade de São Paulo

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GRUPO DE DIÁLOGO UNIVERSIDADE-CÁRCERE-COMUNIDADE

(GDUCC)1

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE SEU FUNCIONAMENTO E SEUS LIMITES.

THALITA SANÇÃO TOZI (USP)2

INTRODUÇÃO

Partindo-se da temática sobre as maneiras que a sociedade civil, suas organizações e

os movimentos sociais, poderiam influenciar no cenário do encarceramento em massa,

incluindo o compartilhamento de experiências concretas de intervenção, propôs-se a

apresentação do “Grupo de Diálogo Universidade-Cárcere-Comunidade” (GDUCC).

Trata-se de um grupo que busca a realização de diálogos sinceros e horizontais entre

pessoas em situação de privação da liberdade e pessoas externas ao cárcere

(pertencentes à comunidade em geral), que está em atividade em unidades

penitenciárias de São Paulo.

A partir do olhar de uma de suas coordenadoras adjuntas, este trabalho busca refletir

sobre os possíveis impactos que esta “janela de comunicação” entre os dois lados da

muralha causam na vida dos indivíduos que passam por essa vivência. A reflexão se

guiará pela possibilidade de considerar a existência de um desencarceramento

individual; bem como a reflexão do papel da Academia na realização de atividades de

intervenção da sociedade civil no cárcere.

1. CENÁRIO TEÓRICO

Dentre as bases teóricas que suportam a constituição do GDUCC está a reintegração

social. Para compreender este conceito, faz-se necessário diferenciá-lo da

ressocialização, baseando-se nos ensinamentos propostos por ALESSANDRO BARATTA.

A ressocialização é considerada uma função para a pena privativa de liberdade. O ato

criminoso seria sinal da não compreensão pelo indivíduo infrator dos valores regentes

1 Para maiores informações sobre o grupo enviar e-mail para: [email protected]; ou

[email protected].

2 Mestranda em Direito Penal e Criminologia pela Faculdade de Direito da Universidade de São

Paulo e Coordenadora Adjunta do GDUCC.

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na sociedade. Desta forma, a punição seria uma ferramenta pedagógica no intuito de

ensinar ao apenado – de maneira a evitar sua reincidência, “consertando-o”. Forma-

se, então, uma relação hierárquica do Estado com relação ao apenado, sendo este o

objeto da execução penal.

A reintegração social não é percebida como função da pena privativa de liberdade,

mas um modelo proposto a fim de minimizar os efeitos devastadores que as

instituições prisionais causam no apenado. A reintegração social aconteceria apesar

do cárcere e não por meio dele. Neste modelo, o indivíduo deixa de ser visto como um

objeto da execução que precisa aprender a viver em sociedade, passando a ser

encarado com bases de normalidade e de igualdade – sua diferença estaria tão e

somente na privação de sua liberdade. O apenado é sujeito de direitos.

Assim, este modelo apresenta o marco da relação horizontal com relação ao

encarcerado, reconhecendo-o como igual, detentor de seus próprios saberes, de uma

história, de valores. Atividades de intervenção baseadas nele, não buscam modificar o

individuo em situação de liberdade, mas, dentro do respeito do seu eu, objetivam

reatar a relação entre ele e a sociedade – esteja ela quebrada por conta da instituição

prisional, ou em razão da exclusão social3 que muitas vezes se deu antes da prisão.

Nesse sentido:

“O conceito de reintegração social requer a abertura de

um processo de interações entre o cárcere e a

sociedade, no qual os cidadãos recolhidos no cárcere se

reconheçam na sociedade externa e a sociedade externa

se reconheça no cárcere” 4

3 A maioria da população encarcerada pertence a uma classe social pobre e que por vezes já

se encontravam excluídas da sociedade antes mesmo de serem encarceradas. Esta exclusão

pode ser simbolizada pela existência de parcela da população considerada invisível, moradores

de ruas que não atraem olhares dos transeuntes e muito menos do Estado, que só considera

aquele indivíduo quando do cometimento de um delito; pessoas que não fazem parte do

padrão de consumo tecnológico; que não possui os padrões de moradia, educação e saúde;

que não veem respaldo de proteção nas leis postas. São pessoas que não se sentem iguais

àquele resto da sociedade pela diferença de suas prioridades e reconhecimento.

4 BARATTA, Alessandro. Por um concepto crítico de reintegración social del condenado. In

OLIVEIRA,E. (coord.). Criminologia Crítica. Fórum Internacional de Criminologia Crítica. Belém:

Cejup.1990.p.145.

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Na perspectiva relacional de via de mão dupla, o cárcere e a comunidade seriam

corresponsáveis em uma atividade ativa de reatar a relação entre os indivíduos. O

GDUCC se insere neste cenário, sendo seu principal objetivo estabelecer um diálogo

sincero e horizontal entre as partes. Nas palavras de ALVINO AUGUSTO DE SÁ:

“Uma coisa é certa: o GDUCC não visa à melhoria do

cárcere e nem propriamente da vida no cárcere. O

GDUCC trabalha com o reencontro de partes

historicamente litigantes. O GDUCC trabalha com o

diálogo dentro do contexto do litígio. Poderíamos então

dizer que seu objetivo é o de proporcionar aos seus

participantes uma oportunidade de amadurecimento na

forma de lidar com o litígio, de dialogar com a parte

litigante. A sociedade é toda permeada de conflitos, de

litígios. O crime, em si, não é litígio, mas sim uma das

múltiplas formas de expressão dos litígios existentes no

seio da sociedade. Litígios entre ter e não ter, ser e não

ser, pertencer e não pertencer, entre estar incluído e não

estar incluído.”5

2. FUNCIONAMENTO

O GDUCC estabeleceu-se como atividade vinculada ao Departamento de Direito

Penal, Medicina Forense e Criminologia na Faculdade de Direito do Largo São

Francisco – Universidade de São Paulo. Atuante desde 2006, hoje é oficializado como

um projeto de cultura e extensão universitária.

A Faculdade de Direito da USP funciona como uma facilitadora para que a atividade

ocorra. Seu respaldo institucional dá-se através da coordenação do Prof. Associado

Alvino Augusto de Sá e do Prof. Titular Sérgio Salomão Shecaira. Na linha de frente

da organização burocrática e da realização do grupo semanal, há uma equipe de

coordenadores-adjuntos que atualmente é composto por psicólogos e advogados –

trabalho este voluntário. Para a composição do grupo semestral, em geral, participam

vinte indivíduos em situação de privação de liberdade, e vinte externos (aberto a toda

a comunidade), por cada unidade penitenciária.

5 SÁ, Alvino. GDUCC: uma experiência de integração entre a sociedade e o cárcere. Brasília:

MJ.2013. Pg.36.

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Nos três primeiros encontros, há uma preparação teórica que busca delinear os

objetivos e os limites do GDUCC. Esta atividade ocorre na Faculdade de Direito,

contando com todos os indivíduos externos (ao cárcere) que se inscreveram para

participar da atividade – sem restrição de número. Este período dedica-se a leitura de

textos, discussão, dinâmicas, para oferecer noções basilares de criminologia, do

sistema carcerário em geral, e, principalmente, pontuar sobre o que o GDUCC não se

propõe – a proposta de dialogar no cárcere não se mostra de fácil compreensão. Este

momento mostra-se essencial para que toda a diversidade de participantes entenda a

busca pela horizontalidade e sinceridade em uma atividade que parece simples, mas é

complexa e depende da ação ativa de cada participante, para amadurecer no diálogo

de maneira sincera. Após estes três encontros apenas vinte pessoas são selecionadas

a participar dos encontros práticos do cárcere – limitação essa oferecida pelas

unidades penitenciárias.

Normalmente é possível agregar profissionais de diversas áreas o que enriquece as

trocas realizadas nas unidades. Antes do encontro com a outra metade do grupo, há

uma visita técnica à unidade penitenciária. Esta visita tem o objetivo de tirar o choque

que alguns participantes possam sofrer ao adentrar ao cárcere – o que prejudica a

interação com a outra metade do grupo; bem como de conhecer partes da unidade

penitenciária que normalmente não serão visitadas durante os encontros semanais.

Passa-se, então, para os encontros práticos. Contando, em média, com dois

coordenadores-adjuntos por grupo, estes se responsabilizam, além das atividades

burocráticas organizacionais, a facilitar as dinâmicas que envolverão os temas

escolhidos6. O GDUCC se completa quando há o encontro de suas duas metades.

Cada grupo é absolutamente único, e constrói dinâmicas e diálogos diversos. Este

grupo permanece junto durante cerca de dois meses. Frisa-se que ao menos um

encontro por semestre é organizado e coordenado pelos participantes em situação de

privação da liberdade.

Neste segundo semestre de 2015, vinculado à Faculdade de Direito da USP7, há três

grupos ativos nas seguintes unidades penitenciárias: Penitenciária II Desembargador

6 Não há um protocolo para efetuar esta escolha, que pode se dar em um diálogo do grupo, ou

através da percepção dos participantes. Exemplos de temas: música, família, identidade,

perdas, liberdade, prisão.

7 Especificou-se a atuação nesta unidade de ensino pois o GDUCC está em expansão pelo

país. Desde 2014, ano em que foi lançado o livro do GDUCC e realizado o I Encontro Nacional

“Diálogo, Sociedade e Cárcere”, ambos pelo Departamento Penitenciário (DEPEN) do

Ministério da Justiça, a experiência foi divulgada e há iniciativas que levaram/estão levando

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Adriano Marrey de Guarulhos; Penitenciária Feminina de Sant’Ana; e o Centro de

Detenção Provisória III de Pinheiros.

3. REFLEXÕES SOBRE DESENCARCERAMENTO INDIVIDUAL

O objetivo do GDUCC é “apenas” abrir uma janela na muralha das prisões e promover

o diálogo simétrico e autêntico entre esses indivíduos. Diz-se diálogo simétrico, por

objetivar a construção de uma relação horizontal; e autêntico, pois os indivíduos

devem ser verdadeiros com suas histórias e opiniões, despindo-se de máscaras

sociais. No entanto, apesar de o objetivo se restringir à busca pelo estabelecimento

deste diálogo, é possível apontar alguns frutos secundários desta atividade.

A despeito de haver grande limitação em auferir estes ganhos, reflexões levam ao

ideal de desencarceramento individual. Não quer dizer que necessariamente vai

ocorrer, mas que são resultados que podem acontecer.

Acredita-se que o diálogo possibilita que as diferentes partes do GDUCC se

reconheçam umas nas outras, seja através de suas igualdades ou de suas diferenças,

ambas se veem como iguais. Esta dinâmica fica nítida em certos grupos, que ao longo

dos encontros deixa de se reconhecer como duas metades, passando a se enxergar

como um inteiro. As divisões se desfazem, e os indivíduos se integram naquele

espaço, durante as duas horas de encontros semanais.

Analisando a partir da ótica dos participantes externos ao cárcere, é possível

identificar certa desmistificação da imagem do criminoso como um monstro, um ser

diferente que não é detentor dos mesmos direitos que o resto da “sociedade do bem”.

A percepção de o indivíduo em situação de privação da liberdade se amplia para além

de seu fato delituoso, o que é possibilitado através da construção de uma inter-relação

pessoal.

Neste sentido, extraem-se algumas reflexões. Primeiramente é possível identificar um

desencarceramento com relação às ideias do senso comum que definem o criminoso

como uma “espécie” de ser humano, merecedor da punição mais grave. Além disso,

muitos dos participantes são estudantes de Direito e possivelmente serão operadores

do direito com poderes de decisão sobre o encarceramento de alguém. A vivência no

cárcere, principalmente com o estabelecimento de relações pessoais, sensibiliza o

este projeto a outros estados, como por exemplo: Brasília, Pará, Bahia, Amazonas, Rio Grande

do Sul, Rio de Janeiro.

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indivíduo com relação à punição, à realidade das condições carcerárias, e possibilita a

criação de empatia com os outros seres humanos.

Já pelo olhar do indivíduo em situação de privação de sua liberdade, o movimento se

mostra a partir da mesma base. A pena privativa de liberdade submete o indivíduo a

um regime (quase) totalitário. Esta vivência pode causar os efeitos de “prisionização” 8.

Ou seja, o indivíduo fica vulnerável psicologicamente, e pode vir a internalizar a

autoimagem de ser um inimigo9 da sociedade, se identificando como um criminoso,

alguém não pertencente, diferente.

Assim, o movimento de se perceber como um igual possibilita a desconstrução de sua

armadura de inferioridade, e a percepção de si como um sujeito de direitos. É possível

pensar em um desencarceramento individual no sentido de reforço psicológico sobre a

própria imagem, vencendo os efeitos da prisionização do cárcere. Este

empoderamento ajuda, inclusive, no enfrentamento do preconceito pós cumprimento

da pena, pois possibilita a sensação de pertencimento. Perceber que há uma

sociedade e que se faz parte dela. Encorajar a viver fora do cárcere, a reacender o

seu eu que foi apagado pela exclusão social10.

Ambos os vieses apontam para a desconstrução de barreiras de preconceitos. A

“janela” permite o outro, que antes era um estranho e diferente, foco do medo e do

descaso, ser enxergado como um pouco de mim nele, e um pouco dele em mim. Este

mútuo reconhecimento, fruto do estabelecimento de relações interpessoais através de

um diálogo sincero, possibilita a reintegração social do indivíduo.

8 Entende-se por prisionização: “Entre os efeitos da prisionização, que marcam profundamente

essa desorganização da personalidade, cumpre destacar: perda da identidade e aquisição de

nova identidade; sentimento de inferioridade; empobrecimento psíquico; infantilização,

regressão. O empobrecimento psíquico acarreta entre outras coisas: estreitamento do

horizonte psicológico, pobreza de experiências, dificuldades de elaboração de planos a médio

e longo prazo. A infantilização e regressão manifestam-se, entre outras coisas, por meio de:

dependência, busca de proteção (religião); busca de soluções frágeis; projeção da culpa no

outro e dificuldade de elaboração de planos.” (SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e

psicologia criminal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.p.119.)

9 Para saber mais ver: SÁ, Alvino Augusto de. Desafios da Execução Penal frente aos

processos de construção da imagem do inimigo. In Revista Brasileira de Ciências Criminais.

Vol.99. São Paulo: IBCCRIM, 2012.

10 Pontua-se que a exclusão social muitas vezes ocorre independente e antes do cárcere. Mas

fez-se um recorte para ser trabalho neste trabalho.

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4. PAPEL DA ACADEMICA NA REALIZAÇÃO DO TRABALHO DE INTEGRAÇÃO

SOCIEDADE E PRISÃO

Pautado no marco teórico da reintegração social, o envolvimento da sociedade civil

seria elemento essencial para as intervenções no cárcere. Esta participação pode se

dar através do voluntariado e/ou de convênios com o Poder Público. Tendo em vista

que estas reflexões se baseiam na experiência do GDUCC, é sobre o voluntariado que

será focado este item.

O voluntariado permite a presença da sociedade civil na instituição prisional. Não se

nega a existência de entraves burocráticos e éticos no diálogo com o Poder Público

para o estabelecimento de atividades dentro do cárcere. A presença da sociedade civil

na instituição prisional significa a mudança de rotina, o que provoca temor baseado na

segurança dos participantes.

No entanto, este modelo de acesso permite uma liberdade maior na construção dos

parâmetros da atividade a ser realizada. Além disso, frisa-se que a sociedade civil

pode efetuar papel fiscalizador sobre a atuação estatal, pois o cárcere é uma temática

que chama pouca a atenção dos meios de comunicação e do Estado por sua reduzida

visibilidade em termos eleitorais. A presença da sociedade pode exigir reformas, e até

mesmo interferir na opinião pública - (o que pode ser considerado um entrave aos

olhos do poder estatal).

Neste cenário, para além do propósito de realizar pesquisa acadêmica11, ou de

adentrar ao cárcere com o intuito de Ensino (através das escolas), segundo ALVINO

AUGUSTO DE SÁ caberia à Academia um papel de liderança na estruturação do

voluntariado:

“A grande meta, o grande compromisso da Academia em

relação à questão penitenciária seria exercer uma

liderança perante a sociedade no sentido de buscar

reatar as relações com aquela população de excluídos,

procurando inclusive reparar os danos por eles sofridos e

assim restaurar valores, as capacidades, enfim, a

cidadania que neles ainda existe.”12

11

Nota-se que não se está desconsiderando a importância deste tipo de atividade, mas busca-

se dar destaque a outra maneira de atuação da Academia. 12

SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e psicologia criminal. 3. ed. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2013.Pg.186.

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Desta feita, a Academia detém um papel de facilitador para as questões burocráticas,

bem como para reunir os interessados e administrar o mínimo de organização para

que haja continuidade e concretude para a execução destas atividades. Além disso,

ela possui responsabilidade com sua conscientização em relação à temática carcerária

de intervir na realidade e atuar junto à comunidade – não apenas em seu círculo de

ciência.

No caso do GDUCC, o Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e

Criminologia, mostra-se como centro burocrático facilitando a comunicação e

organização da equipe coordenadora e seus supervisores institucionais, atuando como

centro informativo e elo burocrático no que tange ao fornecimento de créditos (para

aqueles estudantes a partir do segundo ano da FDUSP) e de certificados de

participação (outros participantes). Além disso, a Faculdade de Direito tem respaldo

institucional, mostra-se como centro para as negociações burocráticas, fornece espaço

físico para as atividades preparatórias, além de já possuir público possível para a

realização da atividade. Por fim, a Universidade de São Paulo concede verba para a

contratação do transporte que possibilita o deslocamento dos participantes da

FADUSP até às unidades penitenciárias, muitas vezes de difícil acesso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Grupo de Diálogo Universidade-Cárcere-Comunidade (GDUCC) é uma atividade de

cultura e extensão oferecida pela Faculdade de Direito da USP, que se propõe a

aproximar a comunidade – acadêmica e não acadêmica – dos indivíduos em situação

de privação de liberdade, a fim de estabelecer um diálogo simétrico e autêntico. Trata-

se de um exemplo de intervenção social no cárcere, em que a Academia cumpri seu

papel de facilitadora e de liderança.

A construção desta “janela” na muralha da prisão, ainda que por apenas duas horas

semanais, pode gerar inúmeros outros frutos para além de seu objetivo primário - o

amadurecimento dos participantes no diálogo. A inter-relação pessoal realizada de

maneira sincera transforma as pessoas, ao passo que preconceitos são quebrados,

semelhanças são observadas e a empatia é criada. Uma vez se tratando de indivíduos

em situação de privação de liberdade a criação dos laços, o estabelecimento do

mínimo de confiança, e a alteridade para que a sinceridade supere as amarras de

preconceito/vergonha, pode significar uma atividade desafiadora, mas proporciona

uma experiência de intensa significação.

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Apesar de não ser possível contabilizar os ganhos desta atividade, considera-se

possível identificar o desencarceramento das ideias fechadas e do não contato com

esta realidade, pelos indivíduos externos ao cárcere; e o desencarceramento do

indivíduo em situação de privação de liberdade no sentido de se auto afirmar como

pertencente à sociedade excludente, como um igual ainda que preservando inúmeras

diferenças. Estas reflexões seguem no sentido de identificar o GDUCC como uma

experiência de reintegração social.

BIBLIOGRAFIA

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro:

ICC, 1999.

BARATTA, Alessandro. Por um concepto crítico de reintegración social del condenado.

In OLIVEIRA,E. (coord.). Criminologia Crítica. Fórum Internacional de Criminologia

Crítica. Belém: Cejup.1990.

SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e execução penal: proposta de um modelo

de terceira geração. 1. ed. São Paulo-SP: Ed. Revista dos Tribunais, 2011.

SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e psicologia criminal. 3. ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2013.

SÁ, Alvino. GDUCC: uma experiência de integração entre a sociedade e o cárcere.

Brasília: MJ.2013.

SÁ, Alvino Augusto de. Desafios da Execução Penal frente aos processos de

construção da imagem do inimigo. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol.99.

São Paulo: IBCCRIM, 2012.