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8/9/2019 Acervo_performare_Flavio Rabelo - Estranho Um Cara Comum Processos de Criacao de Um Corpo Em Arte
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Estranho, um cara comum, processos de criao de um corpo em arte.
Flvio Rabelo. Mestrando em Artes
Unicamp.
Palavras chaves: processos criativos, corpo em arte,performance art.
O estado necessrio da mente uma disposio passiva arealizar um trabalho ativo, no um estado pelo qual
queremos fazer aquilo, mas desistimos de no faz-lo.Jerzy Grotowski.
No incio desta pesquisa1, a criao da primeiraperformance solo esteve relacionada a
trs encontros. Naquele momento, onde pretendia assumir pela primeira vez o meu corpo como
suporte e agente nico do acontecimento cnico, estava atrado por estados de solido do
homem contemporneo como vetor de criao.
O primeiro encontro que define os rumos desta trajetria, ocorreu com a obra Vidas
Secas do escritor alagoano Graciliano Ramos2. A solido como contingncia da condio
humana uma abordagem marcante e recorrente em toda a obra desse autor. Sua narrativa
concisa, onde s h espao para o vocbulo exato, revela o paradoxo do ser humano na
afirmao de sua individualidade. Seus personagens so guerreiros solitrios que lutam contra
os obstculos cotidianos; isolados, vidos de si mesmo, numa rede de agenciamentos onde o
egosmo decorre dessa impossibilidade de contato com o outro. Vejamos:
- Fabiano, voc um homem, exclamou em voz alta.Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falars. E, pensando bem, ele no era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dosoutros. Vermelho, queimado, tinha olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia emterra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se na presena dos brancos e julgava-secabra.Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, algum tivesse percebido a fraseimprudente. Corrigiu-a, murmurando:-Voc um bicho, Fabiano.Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades(Ramos, 1938: 20).
Graciliano transmite essa sensao da descoberta de si mesmo como um reflexo do
outro, acompanhada de uma asfixiante sensao de que no h possibilidades de coexistncia;ou vencemos ou somos vencidos por este outro; como bichos, lutamos par vencer nossas
dificuldades. E esta espantosa sensao de descoberta do outro que vai moldando e
conduzindo as personagens, passo a passo, nesta exasperada e opressiva batalha desigual.
No final do livro, Graciliano coloca seus personagens caminhando em direo a
cidade, destino de quem foge do flagelo da seca do serto nordestino, onde a misria e a fome
fazem parte de uma lenta, profunda e interminvel luta contra a natureza desafiadora e agressiva
e, principalmente, os interesses financeiros de uma minoria. Nesse serto amarelo e murcho,
Graciliano constri a saga de uma famlia composta de criaturas resignadas diante de seu
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destino trgico. Numa obra onde a solidariedade transgresso, os personagens mal falam, mal
conseguem coordenar seus pensamentos e vivem num vnculo de um amor primitivo onde a
unio contingencial. Assim:
Miudinhos perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram as suas
desgraas e seus pavores. O corao de Fabiano bateu junto do corao de sinh Vitria, umabrao cansado aproximou os farrapos que os cobriam. Resistiram fraqueza, afastaram-seenvergonhados, sem animo de afrontar de novo a luz dura, receosos de perder a esperana queos alentava (Ramos, 1938: 14).
Esta imagem afetou-me como colrio, limpando meu olhar para algo que j se tornara
invisvel h algum tempo. Quis encontrar aquela famlia e fui procur-la nas ruas de minha
cidade. Andando pelas ruas dos bairros de Jaragu e do Centro da cidade de Macei, encontrei
inmeras figuras gracilianas que tm nas caladas seu nico refgio. Alguns estavam em
famlia ou em pequenos grupos, mas a maioria encontrava-se s, largadas em seu destino.
Estranhei o que meus olhos no viam mais, estranhei o invisvel das ruas, estranhei o
grande nmero de corpos sentados nas caladas das cidades de Macei, geralmente com os
olhares voltados para o cho, s alguns lamentos ou pedidos traduzidos em pequenos gestos ou
sons espordicos, quando no o silncio absoluto. A abstrao, a fantasia, o delrio. A
concretude da cidade, o cotidiano em seus detalhes mais cruis.
O que Graciliano havia me mostrado, afetou profundamente minhas reflexes,
principalmente a partir do dilogo traado com idias do psiclogo Jurandir Freire (2000) sobre
o estado de alheamento em relao ao outro; postura social predominante e estabelecida como
condio na presente conjuntura scio-poltica. Segundo Freire:
O fato do alheamento de indivduos ou grupos humanos em relao a outros no novo nadinmica social. A capacidade que temos de tornar o outro um estranho, algum que no dechez nous, foi discutida exaustivamente por numerosos estudiosos... e consiste numa atitudede distanciamento, em que a hostilidade ou o vivido persecutrio so substitudos peladesqualificao do sujeito como ser moral (Freire, 2000: 79).
A misria alheia se banalizou, dilui-se a real crueldade de sua existncia entre novelas
e noticirios jornalsticos. Verificamos desta forma que
o que choca, no Brasil, no tanto a truculncia das agresses noticiadas, mas a impotnciacom que aprendemos a reagir a tudo isto. Cotidianamente nossos jornais mostram cenasestarrecedoras em que o horror e circo parecem misturar-se, ao mesmo tempo em queproliferam as estratgias da salvao individual, no sentido do termo dado por Max Werber.Para as elites, o que resta tentar ser feliz individualmente. Mas na busca desesperada poralgo que d sentido vida, entretanto, elas parecem perder o mundo e a si mesmas. (Freire,2000: 82).
neste contexto que ocorre o segundo encontro. Um senhor, em silncio absoluto,
sentado numa ladeira, em frente Catedral Metropolitana Nossa Senhora dos Prazeres. Um
homem que tinha largado tudo na vida para ficar ali, aparentemente inerte. Que ironia. Ele ali,
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sentado, olhando para o cho; eu ali, em p, olhando para ele com uma mquina fotogrfica na
mo. Mais uma vez opostos se encontram, o paradoxo se instaura. Algo que se conecta por
estranhamento. Um rudo. Um click. Uma imagem extremamente comum torna-se estranha e
enigmtica, e, paradoxalmente revela-se. Vale lembrar do unheimlich de Freud, que usando
Schelling, afirma: unheimlich tudo que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio a
luz (FREUD, 1996: 243).
Fui fisgado, atrado por aquele espao, e tudo que eu estava construindo para
performance solo se reestruturou.
Algumas perguntas no me esqueciam: como algum pode largar-se neste espao?
Que espao este? Como possvel, que ele, o velho Coruripe, possa ter abandonado sua casa,
seu trabalho e sua famlia para ir viver nas ruas? E se eu fizesse o mesmo?
Ao estranhar o outro, me estranhei. E a percepo de minha cegueira cotidiana me
levou a agir. Este foi o terceiro encontro; o encontro com o que sou e tudo aquilo que eu posso
ser. No apenas enquanto pensamento, mas principalmente em ao. Encontrei meu corpo e
resolvi despertar suas potencialidades, agir sob meu desejo e risco.
At aquele momento, tinha agido muito mais como professor ou encenador de teatro.
Valia-me de outros corpos para realizar minhas criaes e ali, este jogo se invertia em favor da
descoberta de minha prpria corporeidade cnica/performtica. E desta forma, como uma ao
em resposta a estes estranhamentos, encontros e dvidas, a este fluxo de revelaes, surgiu a
ao-performtica Estranho, um cara comum, que d origem a srie de aes em processo
que hoje chamo,corpoestranho,3.
A performance consiste em ficar doze horas sentado na calada em frente Catedral
das cidades4, como quem desiste de ver o mundo como estava acostumado. Provocando e sendo
provocado pelo olhar de quem passa. Um olhar que transita pela possibilidade de ser notado ou
no. Um corpo que visvel ou no a partir da sua capacidade de manipulao do eixo
tempo/espao. Cotidiano e performativo a partir das micro aes executadas. Uso apenas um
espelho velho, um despertador quebrado e um pedao de carvo como objetos durante a
performance. Busco um corpo em fluxo mesmo que sentado quase imvel numa calada;mantendo uma relao constante com as dinmicas de paisagens internas e externas, o dentro e
o fora, multi-relacional, e tambm um corpo imagem, instaurado. Estou, assim, interessado em
caminhar por estas fronteiras, na busca de um cotidiano em estado de arte pelo que se d no
entre vazio. E l, sentado no lugar do Coruripe, onde vivo o paradoxo da ao. Agir? Ou no
agir? Eis a questo na fronteira.
Bibliografia:
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COHEN, Renato. Performance como Linguagem-criao de tempo/espao de
experimentao.1 Edio. So Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de So Paulo,
1989.
___________. Work in Progress na cena contempornea: criao, encenao e recepo.
So Paulo: Perspectiva, 2004.
FERRACINI, Renato. Corpos em Criao, Caf e Queijo. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2004.
FREIRE, Jurandir. O Desafio tico. Rio de Janeiro: Garamond, 2000.
FREUD, Sigmund. O Estranho. In. Uma neurose infantil e outros trabalhos
(1917-1918). Traduo Jayme Salomo. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Obras completas
Volume XVII).
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 59 Edio. So Paulo: Record, 1989.
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1Iniciada em 2003, na graduao em Artes Cnicas Licenciatura/Teatro pela UFAL, com orientao da Dr NaraSalles.2 Durante a criao da performance Cho de Graa, ou poo da pedra, para a exposio O Cho de Graciliano,realizada pelo SESC - SP, Governo do Estado de Alagoas atravs da Secretaria Executiva de Cultura, na FundaoPierre Chalita, no ano de 2003. No processo fui roteirista e encenador da performance executada por Jorge Shutze,Glauber Xavier, Valria Nunes, Nadja Rocha, Tcia Albuquerque, Magnum ngelo e Jonathan Albuquerque.3 Com orientao de Renato Ferracini, co-orientao de Fernando Villar e financiado pela Fapesp.4
J realizei a performance em Macei/Al; Penedo/Al; Salvador/Ba e Londres/Uk.