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Chinua Achebe, a voz incómoda da não vitimização africana Sobre ele Nelson Mandela disse que “na sua companhia os muros da prisão caíam”, mas a verdade é que o resto do mundo conhece Chinua Achebe como o escritor nigeriano que aos 28 anos escreveuThings fall apart (Quando tudo se desmorona), o primeiro grande romance africano, profundo e “descomplexado”, que foi já traduzido em mais de 40 idiomas e que comemorou o seu 50º aniversário. Às facetas de romancista, cronista, poeta e actual professor de Línguas e Literaturas no Bard College, nos EUA, Chinua Achebe junta uma voz crítica, e muitas vezes incómoda, que se recusa a desfraldar a bandeira da “vitimização africana” e que se recusa a compactuar com os complexos de culpa histórica e com a atitude paternalista ocidental europeia, “que perpetua ainda resquícios de colonialismo, com recurso a dependências económicas, tecnológicas, culturais e ideológicas”, explicou o escritor. A Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa comemorou o 50º aniversário do seu livro mais conhecido, Things fall apart, com uma conferência que contou com a presença de vários especialistas literários de África, Europa e América. Estava à espera desta homenagem portuguesa dirigida a si e à sua obra? Não estava à espera de ser homenageado em Portugal, sobretudo porque se trata de um país com quem não mantenho uma relação de estreita proximidade. No entanto, fiquei muito contente e senti-me um escritor muito honrado. O facto da conferência ter juntado representantes de Angola em Portugal, décadas depois do fim da era colonial, demonstrando que existem laços de amizade entre os dois países, deixou- me igualmente muito satisfeito. Things fall apart está traduzido em mais de 40 idiomas e é considerado por muitos críticos literários “o marco da literatura moderna africana”. É um livro com 50 anos mas que poderia ter escrito agora? O seu conteúdo continua actual e aplicável aos tempos de hoje? Sim. É muito interessante e surpreendente para mim que, passados 50 anos após a edição deste livro, as relações entre a Europa e a África se mantenham basicamente as mesmas, embora não exactamente ao

ACHEBE, Chinua - Entrevista

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ACHEBE, Chinua - Entrevista

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  • Chinua Achebe, a voz incmoda da no vitimizao africana

    Sobre ele Nelson Mandela disse que na sua companhia os muros da priso caam, mas a verdade que

    o resto do mundo conhece Chinua Achebe como o escritor nigeriano que aos 28 anos escreveuThings

    fall apart (Quando tudo se desmorona), o primeiro grande romance africano, profundo e

    descomplexado, que foi j traduzido em mais de 40 idiomas e que comemorou o seu 50 aniversrio. s

    facetas de romancista, cronista, poeta e actual professor de Lnguas e Literaturas no Bard College, nos

    EUA, Chinua Achebe junta uma voz crtica, e muitas vezes incmoda, que se recusa a desfraldar a

    bandeira da vitimizao africana e que se recusa a compactuar com os complexos de culpa histrica e

    com a atitude paternalista ocidental europeia, que perpetua ainda resqucios de colonialismo, com

    recurso a dependncias econmicas, tecnolgicas, culturais e ideolgicas, explicou o escritor.

    A Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa comemorou o 50 aniversrio do seu livro mais

    conhecido, Things fall apart, com uma conferncia que contou com a presena de vrios

    especialistas literrios de frica, Europa e Amrica. Estava espera desta homenagem portuguesa

    dirigida a si e sua obra?

    No estava espera de ser homenageado em Portugal, sobretudo porque se trata de um pas com quem

    no mantenho uma relao de estreita proximidade. No entanto, fiquei muito contente e senti-me um

    escritor muito honrado. O facto da conferncia ter juntado representantes de Angola em Portugal, dcadas

    depois do fim da era colonial, demonstrando que existem laos de amizade entre os dois pases, deixou-

    me igualmente muito satisfeito.

    Things fall apart est traduzido em mais de 40 idiomas e considerado por muitos crticos

    literrios o marco da literatura moderna africana. um livro com 50 anos mas que poderia ter

    escrito agora? O seu contedo continua actual e aplicvel aos tempos de hoje?

    Sim. muito interessante e surpreendente para mim que, passados 50 anos aps a edio deste livro, as

    relaes entre a Europa e a frica se mantenham basicamente as mesmas, embora no exactamente ao

  • mesmo nvel. Os laos de amizade e de hostilidade que unem os continentes africano e

    europeu evoluram at aos tempos de hoje, mas os eixos fundamentais sobre os quais assentam esses

    laos continuam os mesmos, por isso que eu acho que as pessoas continuam a ler o meu livro e o

    acham actual.

    Uma das personagens em Things fall apartlembra que o homem branco colocou uma faca

    naquilo que nos mantinha juntos e ento desmoronmo-nos. Referiu que as relaes Europa-

    frica continuam actuais mas no ao mesmo nvel: as feridas deixadas pelo colonialismo no esto,

    afinal, a cicatrizar?

    O colonialismo continua a existir, apenas de um modo diferente e mais subtil. Agora ningum invade o

    pas vizinho. Essa forma de colonialismo brbara e explcita de invadir pases deu lugar a uma nova

    forma de colonialismo assente na economia e nas trocas comerciais. uma nova forma de colonialismo

    que perpetua resqucios de colonialismo passado, com recurso a dependncias econmicas, tecnolgicas,

    culturais e ideolgicas. Quer seja atravs do comunismo quer seja atravs do capitalismo, a Europa

    continua a impor a sua ideologia no processo de desenvolvimento de alguns pases.

    A sua lngua materna o Igbo. Defendeu que o ingls era um idioma de colonizadores e, no

    entanto, escreveu a maior parte dos seus romances em ingls. Porqu? H lnguas-me que no so

    suficientemente fortes para poderem ser usadas em livro?

    Bem, um assunto difcil de explicar. bvio que toda gente devia ser capaz de dizer no, eu no vou

    escrever em ingls, porque o ingls a lngua dos que foram meus colonizadores. No entanto, se

    quisermos ser verdadeiramente livres, escapando plenamente de todas as regras impostas pelo

    colonialismo, vamos ser obrigados a lutar por essa liberdade em ingls, o idioma usado por aqueles que

    nos colonizaram. Eu penso que a linguagem uma opo livre de cada um. A minha relao com o ingls

    sobretudo profissional, pois prefiro guardar a minha lngua-me, o Igbo, para contextos mais ntimos e

    familiares, como o da conversao.

    Na homenagem que a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa lhe prestou, estiveram

    presentes Boaventura Cardoso e Luandino Vieira, dois nomes do panorama literrio angolano. O

    que pensa da literatura angolana?

    Infelizmente no conheo bem a literatura e a cultura angolana. Esta ignorncia tem a ver com o

    problema da cultura africana em geral, que continua inserida numa espcie de gueto escondido do resto

    do mundo. uma problemtica tambm relacionada com a lngua na qual so escritas as obras.

    No obstante, conheo alguns poemas angolanos que falam da luta contra o colonialismo e de como o

    povo angolano vivia sufocado por esse tipo de poltica. Essa fora interior dos poetas e escritores foi algo

    que me motivou a ler e a querer saber mais da luta de Angola pela sua independncia.

  • A propsito da independncia de Angola, como que tem visto a evoluo que Angola atravessa nos

    ltimos tempos a nvel econmico, poltico e social?

    A independncia de Angola vem na sequncia dos restantes movimentos de independncia em frica,

    movimentos esses que comearam nos anos 50, graas a Kwame Nkrumah, presidente do Gana. Esta

    nsia de liberdade rapidamente se espalhou pelo resto dos pases do continente, enchendo o povo africano

    de coragem. A independncia das colnias lusfonas africanas deu-se, efectivamente, mais tarde, mas eu

    estou particularmente feliz com o resultado vitorioso da luta angolana e com a soberania de Angola como

    nao independente.

    Tornou-se um crtico da literatura europeia sobre frica, tendo como um dos temas predominantes

    dos seus romances a interseco da tradio africana com a modernidade e as influncias do

    colonialismo europeu. O que que os escritores europeus continuam a escrever sobre frica que

    no lhe agrada?

    So vrias as coisas que no me agradam na literatura europeia que fala de frica. O exemplo que, para

    mim, continua a pesar muito, apesar de toda a distncia histrica, o da literatura da poca dos

    descobrimentos e dos primeiros contactos com frica. As descries dessas viagens de

    explorao, feitas h centenas de anos, descrevem frica e os africanos de uma forma muito negra.

    uma descrio de frica que pode ser considerada um atentado aos Direitos Humanos. Sobre esta

    temtica escrevi, em 1975, o livro An image of Africa: Racism in Conrads Heart of Darkness.

    Nos anos 70 mudou-se para os EUA, onde reside actualmente. Viver na Amrica mudou a sua

    maneira de pensar sobre a Nigria e sobre frica em geral?

    No, eu no permito que isso acontea. A minha imparcialidade mantm-se intacta em relao ao que

    vejo acontecer no meu pas, ao que acontece no resto do continente africano e o mesmo se aplica ao resto

    do mundo.

    Muitos crticos defendem que a cobertura meditica sobre temas relativos a frica est viciada,

    focando apenas aspectos como a fome, os desastres naturais, os tumultos populacionais e os

    atentados aos Direitos Humanos, e deixando de fora aspectos mais positivos que

    tambm acontecem no mesmo continente. Concorda com esta afirmao?

    Sim, isso verdade. Fazia apenas um reparo que d conta das vicissitudes inerentes ao processo de

    transio de um regime para outro nesses pases. Essa transio implica fomes e guerras, no um

    processo fcil que esteja composto apenas por coisas positivas. Logicamente que uma cobertura apenas

    centrada nos pontos negativos no ajuda a que os acontecimentos se desenvolvam de uma maneira mais

    saudvel.

    Na obra Home and Exile, que escreveu em 2000, expressa o sonho de uma civilizao universal.

    Ainda falta muito tempo para que o Homem consiga atingir essa utopia relacional?

    No alcanmos ainda essa convivncia utpica. H um longo caminho a percorrer nesse sentido, sendo

    que um dos primeiros passos para que isso se venha a realizar comear por admitir que no estamos a

    fazer o suficiente para que isso seja atingvel. Eu acredito que fazem falta ainda mais alguns esforos, mas

    a ideia em si possvel, desejvel e necessria.

    Exerce actualmente funes como professor de Lnguas e Literaturas no Bard College, em

    Nova Iorque

    Sim. Eu adoro dar aulas, mas devo dizer que uma actividade que exige muito de mim como pessoa.

    Sendo eu uma escritor e sendo escrever a minha primeira paixo, ensinar rouba-me alguma energia que

    deveria ser canalizada para os meus livros. Ensinar maravilhoso mas exige uma entrega completa.

  • Para alm de ensinar, o que mais gosta de fazer?

    Gosto de aproveitar a vida. Depois disso, passo muito tempo preocupado com assuntos sociais e polticos

    que vo acontecendo, sobretudo em frica. Nesta perspectiva, a literatura serve-me para chegar vida

    das pessoas para quem escrevo: eu conto o que acontece nas vidas delas, os problemas que elas tm e com

    que polticas elas tm de lidar nos pases onde vivem.

    E como que um escritor que escreve para o povo africano lida com o problema do acesso aos

    livros em frica?

    Eu sinto-me antes de mais honrado com o facto de os meus livros serem lidos por tanta gente. Sou um

    escritor africano privilegiado. Quanto ao custo dos livros em frica, esse um problema que me

    preocupa, porque eu gostava que todos os livros, incluindo os que no so meus, fossem acessveis a mais

    gente. Existem diversos problemas relacionados com o mecanismo de funcionamento das editoras e com

    a pouca sada que os livros de escritores africanos encontram no mercado, problemas esses que tm de ser

    resolvidos pelos prprios governos africanos. No est nas mos do escritor resolver a totalidade

    destes problemas.

    Os seus alunos questionam-no acerca do que escreve?

    H sempre algum mais curioso que pergunta. Eu no fao questo de dar aulas centradas nos meus

    prprios livros, prefiro que sejam os estudantes a perguntar por mim e pelo meu trabalho.

    Est neste momento a trabalhar em algum novo livro?

    Sim, estou a trabalhar em dois ou trs livros. Um deles, o que est mais perto do fim, a minha

    autobiografia, um livro sem fico e para onde convergem vrias temticas que explicam o percurso da

    minha vida.

  • Things fall apart

    O livro que revolucionou a percepo que o Ocidente tinha de frica faz 50 anos

    Em 1958, Chinua Achebe escreveu, com apenas 28 anos, aquele que viria a ser o primeiro grande

    romance africano, profundo e descomplexado, escrito em lngua inglesa. Things fall apart, que se

    encontra actualmente traduzido em cerca de meia centena de lnguas, mundialmente considerado como

    o marco da modernidade na literatura em frica e visto pelos crticos literrios como um dos fortes

    candidatos ao ttulo de melhor romance alguma vez escrito. O nome do livro tem origem num verso de

    A segunda vinda, poema de William Yeats, onde se l, a propsito da carnificina resultante do fim da

    Primeira Guerra Mundial, Tudo se desmorona, o centro emperra/ A mera anarquia invade a

    Terra. O ento jovem Achebe reciclou o verso de Yeats e transformou-o no relato-livro da vida do

    guerreiro Okonkwo, filho do flautista Unoka, que habita no seio de uma tribo nigeriana de guerreiros, leal

    aos seus costumes e aos seus mitos, e que v o seu mundo tradicional desmoronar-se com a chegada dos

    primeiros missionrios britnicos pacificadores de indgenas, durante o final do sculo XIX.

    Com Things fall apart, Chinua Achebe revolucionou a percepo que o mundo ocidental tinha de frica

    - uma percepo que, at essa altura, se baseara unicamente na opinio do colonizador branco e que era,

    na melhor das hipteses, antropolgica e, na pior, consumadamente racista, como descreveu o

    prprio Achebe na sua obra.

    Chinua Achebe, nigeriano a viver actualmente nos EUA,

    Albert Chinualumogo Achebe nasceu a 16 de Novembro de 1930, na aldeia de Ogidi, Nigria. Oriundo de

    uma famlia crist evanglica, recebeu uma educao em ingls, tendo sido o seu prprio nome escolhido

    em honra do prncipe Alberto, marido da rainha Vitria de Inglaterra. Apesar do fervoroso protestantismo

    evanglico dos pais, Achebe sempre se regeu pelos valores tradicionais da cultura Igbo, qual pertencia

    etnicamente, tendo por isso, em meados dos anos 40, renunciado ao seu nome britnico em favor do seu

    nome indgena, Chinua.

    Depois de estudar Medicina e Literatura na Universidade de Ibadan, Achebe foi trabalhar para a

    Companhia de Radiodifuso Nigeriana, em Lagos, mas a sua carreira radiofnica terminou de forma

    abrupta quando, em 1966, a sublevao nacional e os massacres conduziram guerra do Biafra. O

    percurso de Achebe como acadmico universitrio comeou em 1967, ao ser nomeado Senior Research

    Fellow da Universidade da Nigria. Desde ento o escritor nigeriano tem recebido inmeras distines de

    diferentes partes do mundo, incluindo mais de vinte doutoramentos honorrios de universidades na Gr-

    Bretanha, nos EUA, no Canad e na Nigria. Em 1987 recebeu o mais importante galardo nigeriano que

    premeia o trabalho intelectual, o Prmio de Mrito Nacional Nigeriano. Em 2007 foi a vez do Man

    Booker International Prize distinguir a totalidade da sua carreira literria.

    Achebe autor de muitos romances, contos, ensaios e livros infantis. A Things fall apart, o seu primeiro

    romance, seguiram-se No longer at ease (1960), A flecha de Deus (1964), que arrecadou o primeiro

    New Statesman Jock Campbell Prize, e Um homem popular (1966). Beware soul brother, um livro de

    poesia, recebeu o Commonwealth Poetry Prize, em 1972. Ano aps ano, o escritor nigeriano continua a

    ser um dos favoritos ao Prmio Nobel da Literatura.

    Casado e pai de quatro filhos, Chinua Achebe optou por residir nos EUA desde os anos 70, tendo

    posteriormente passado a desempenhar funes de docente no Bard College, instituio de ensino liberal

    e artstico, onde ainda lecciona. Em 1990 Achebe foi vtima de um grave acidente de automvel que o

    deixou paraplgico.

    Publicado originalmente no Novo Jornal, Luanda, Abril 2008

    por Bruna Pereira

    Cara a cara | 23 Fevereiro 2011 | frica, chinua achebe, literatura, literatura angolana, nigria, things fall