1991

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Adolfo Caminha

Um polígrafo na literatura brasileira doséculo XIX (1885-1897)

Carlos Eduardo de Oliveira Bezerra

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BEZERRA, CEO. Adolfo Caminha: umpolígrafo na literatura brasileira doséculo XIX (1885-1897) [online]. SãoPaulo: Editora UNESP; São Paulo:Cultura acadêmica, 2009. ISBN 978-85-7983-033-4. Available from SciELOBooks <http://books.scielo.org>.

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Adolfo Caminha: umpolígrafo na literatura

brasileira do séculoXIX (1885-1897)

Carlos Eduardo de Oliveira Bezerra

Adolfo Caminha

Um polígrafo na literatura brasileirado século XIX (1885-1897)

© 2009 Editora UNESP

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Bezerra, Carlos Eduardo deOliveira

Adolfo Caminha : um polígrafo

na literatura brasileira doSéculo XIX (1885-1897) [livroeletrônico]. / Carlos Eduardo deOliveira Bezerra. - São Paulo :Cultura Acadêmica, 2009.

7452 Kb ; ePUB

Inclui bibliografia

ISBN 978-85-7983-033-4

1. Caminha, Adolfo, 1867-1897- Crítica e interpretação. 2.Escritores brasileiros - SéculoXIX. 3. Literatura brasileira -História e crítica - Século XIX.I. Título.

09-6240

CDD: 928.699

CDU: 929:821.134.3(81)

Este livro é publicado pelo Programa dePublicações digitais da Pró-reitoria dePós-graduação da UniversidadeEstadual Paulista "Júlio de Mesquitafilho" (UNESP)

Editora afiliada:

Este livro é dedicado ao professorSânzio de Azevedo, em retribuiçãoà sua generosidade com os novospesquisadores, pelo seu amor àscoisas e gentes do Ceará.

Adolpho Caminha no pouco quedeixou, deixou muitíssimo...

(Pápi Jr. 1897. p.3)

Agradecimentos

Este livro, originário de minha tese dedoutorado, foi escrito graças à ajuda demuitas pessoas. Sou imensamente grato atodos e aqui cito os seus nomes comoforma de retribuir o muito que fizeram.

Aos meus pais e família, especialmenteTereza e Thamirys.

A Sânzio de Azevedo, por ter-me dadoacesso a inúmeras fontes utilizadas naescrita da tese original. Suagenerosidade para com os novospesquisadores é imensa, como também oé o seu amor às coisas e gentes doCeará. Assim, não poderia deixar de lheagradecer e dedicar este trabalho.

A Odalice de Castro e Silva, minha

orientadora de Especialização eMestrado na Universidade Federal doCeará (UFC). Sou-lhe grato poracreditar no projeto inicial que deuorigem a este texto e por me receber nomundo das letras.

A Luiz Roberto Velloso Cairo, pelaorientação feita com liberdade para queeu seguisse os meus caminhos.

Aos professores do curso de graduaçãoem História na UFC, pois o que aprendicom eles permanece de algum modoneste meu diálogo com a literatura. Souespecialmente grato a Sebastião RogérioPonte, que me orientou na IniciaçãoCientífica, Meize Regina de LucenaLucas, Eurípedes Funes e Ivone

Cordeiro Barbosa.

Aos professores nos cursos deEspecialização em Investigação literáriae Mestrado em Letras na UFC, pois foicom eles que iniciei o meu diálogo coma literatura. Não poderia deixar de citaros nomes deVera Lúcia Albuquerque deMoraes, Angela Maria Rossas Mota deGutiérrez, José Linhares Filho.

A Álvaro Santos Simões Junior(Unesp/Assis) e Tânia Regina de Luca(Unesp/Assis), que gentilmenteparticiparam das banca de qualificaçãoe defesa da tese, recomendando-memodificações, que muito me foramimportantes.

A Isabel Lustosa (Fundação Casa de RuiBarbosa/Rio de Janeiro) e ao Dr. MarcoAntônio de Moraes (USP/São Paulo),que também gentilmente aceitaramparticipar da banca de defesa. Sou-lhesimensamente grato pela leitura econtribuição valiosa.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras da Faculdade deCiências e Letras de Assis, daUniversidade Estadual Paulista, com osquais estudei durante o doutorado:Maria Lídia Lichtscheidl Maretti,Rosane Gazolla Alves Feitosa, JoãoLuís Cardoso Tápias Ceccanttini. O queaprendi com eles foi imprescindívelpara concluir esta etapa dos meus

estudos.

A Leonardo Mendes (UERJ), pelaamizade, pela publicação de textos,pelas conversas a respeito da obra deAdolfo Caminha, graças à internet.

Nesse percurso não faltou a ajuda dosamigos e amigas de Fortaleza: MiguelLeocádio Araújo Neto e David Krebs,Fernanda Coutinho, Socorro Acioli,Afonsina Moreira, Meize Regina,Socorro Monte, Ruy Ferreira Lima (com"y" né, Ruy?), Roterdam Damasceno,Chico Miranda, Cláudia Régia, Gláuciae Rejane, Neudina Paiva, Carla e IsacFérrer, Lina Luz, amiga das maisqueridas, Veleiro. Aqui, não possodeixar de citar os nomes de amigos e

amigas conhecidos em Assis e SãoPaulo: Telma Maciel, companheiranessa jornada. Com ela dividiincertezas, sonhos e delírios...VivianePereira, Gilmar Tenório Santini (escrevio nome completo, Gilmar, para você nãoficar triste), Jacicarla Souza, Ana MariaDomingues de Oliveira, que mepresenteou com uma edição espanholado Bom-Crioulo, e Carmem Almeida,sempre carinhosas, Anderson Roszik,Roberta e Aline, Ritinha, Luciana Brito,Aparecida, Eliane, Sandra, Chico,Maísa, Gabriela e Elida, Édima e Eli,Amélia e Sandro, Júnior Rebelo, PaulaShafirovitz.

Sou grato aos meus companheiros de

república nos anos em que morei emAssis: Helton Alves Lima, UlissesMoura e Silva, Eric Tiago Minervino(Fofuxo), Luis Felipe (Tupã) e AluísioMartins. Morar com eles foi umaaventura...

Agradeço aos funcionários da Seção dePós-Graduação da FCL de Assis,especialmente a Catarina, Lílian,Lucilene, e Marcos.

Agradeço também aos funcionários dabiblioteca, notadamente ao Auro,sempre atencioso na minha buscaconstante de livros e periódicos.

Não poderia deixar de agradecer aGertrudes Costa Sales, do setor de

microfilmes da Biblioteca PúblicaEstadual Governador Menezes Pimentel,em Fortaleza (CE), pela amizade eatenção. Agradeço igualmente aosfuncionários da Academia Cearense deLetras e Instituto Histórico do Ceará.

Aos cantores e cantoras que ouvidurante a escrita, o que fez que estetrabalho tivesse uma trilha sonora. Aospoetas e prosadores lidos, alguns delesme servido de inspiração.

À cidade de Assis (SP), que merecebeu, e da qual guardo ótimas edeliciosas lembranças... Não poderiadeixar de citar aqui três nomes: Fran,Dona Dita e Maria.

Ao CNPq que, concedendo-me umabolsa de estudos, permitiu que a tesefosse escrita e defendida em tempohábil.

Introdução

O começo de tudo...

Caro leitor,

No ano 2000, iniciamos o processo depesquisa a respeito da obra de AdolfoCaminha. Este livro, originalmenteminha tese de doutorado, é oamadurecimento do processo, uma vezque nos empenhamos para tornar realuma ideia inicial, que, ao longo de seudesenvolvimento, foi tantas vezesmudada, alterada, posta em dúvida e,por alguns momentos, abandonada.Ainda assim, ela foi perseguida e dada à

conclusão, mesmo que, ao longo da suaescrita, as falhas e as fragilidades de suaconstituição e defesa sejam evidentes eimensas. Diante disso, pedimos ao leitorque seja paciente. Chegar a estemomento obrigou-nos à retomada dospassos dados ao longo desse percurso.Desse modo, a presente introdução,além do seu papel ordinário, que é o decolocar o leitor a par daquilo que elepode encontrar no corpo do livro, temtambém o caráter de memória, o queimplica retomar, ao menos em parte, osesforços realizados para alcançar umobjetivo: o estudo do conjunto da obrade um autor brasileiro do século XIX,aquele século que, para Arnold Hauser,pensando a arte e a literatura na

sociedade europeia, em sua Históriasocial da arte e da literatura, teveinício em 1830, ano deflagrador de umamodernidade artística e especificamenteliterária até então não vista. No casobrasileiro, uma modernidadecorrespondente talvez tenha ocorrido apartir da chamada "Geração de 1870" daqual Adolfo Caminha foi um herdeirointelectual.

Seguindo essa lógica deflagrada porHauser, Adolfo Caminha não seria umautor do final do século XIX, mas umautor do seu "início", que, além de sermarcado por uma possível modernidadeartística e intelectual, foi marcadotambém por transformações profundas

na sociedade brasileira como aAbolição da escravatura, em 1888; aProclamação da República, em 1889,ambas mobilizadas e mobilizadoras dosseus pares e deles mesmos, servindo-lhes como possibilidades de encontro oude vitrinas públicas, uma vez que,armados de discursos escritos e orais,esses homens de letras, alguns delestambém homens das armas, como o foraAdolfo Caminha, entravam na arenapolítica contracenando com outros"atores"; na economia do períododestacou-se a entrada crescente do paísno sistema capital de produção comomercado consumidor de bensindustrializados; na literatura deu-se aconsolidação de uma dita era nacional

iniciada pelo romantismo. O realismo eo naturalismo trouxeram para o centroda cena literária brasileira temas erepresentações de sujeitos ainda nãovistos, como o negro, o pobre, oescravo, o homossexual, todos essespresentes na obra de Adolfo Caminha,especialmente em seu Bom-Crioulo. Ummisto de crescimento material ecrescimento intelectual marcou operíodo. A esse respeito afirmouAntonio Candido (2004, p.63-4):

A vida cultural se desenvolveumuito nos decênios de 1860 e1870, caracterizando-se este últimopelo grande progresso material,inclusive o desenvolvimento das

vias férreas e a inauguração, em1874, do cabo telegráficosubmarino, que permitiu aaproximação com a Europa pormeio da notícia imediata. Foramentão fundadas ou reorganizadasescolas de ensino superior, ojornalismo ganhou tonalidade maismoderna e houve notável progressona produção de livros, graças aalgumas casas editoras das quaisressalta a Garnier, que promoveu apublicação em escala apreciável deautores brasileiros do passado e dopresente, sem falar no incrementode obras traduzidas. Além disso,ela editou a boa Revista Popular(1859 – 62), que exprime o

amadurecimento dos pontos devista críticos do Romantismo.

Foi, então, nesse contexto social,político, econômico e cultural queAdolfo Caminha escreveu e teve a suaobra publicada, o que significa dizer quefoi nesse contexto que se deu também asua formação e a construção do seunome de autor. No centro da discussãoque propusemos neste trabalho está afigura do autor, tanto como sujeito comocategoria para os estudos literários. Masuma pergunta se nos mostrou capital:como Adolfo Caminha foi lido ao longoda recepção de sua obra? O quesignifica também perguntar: comoAdolfo Caminha foi lido na sua atuação

como autor? Tentando responder a essasperguntas, vejamos alguns exemplos dafortuna crítica da obra caminhiana.

Alguns leitores da obra deAdolfo Caminha: breverevisão de sua fortunacrítica

A fortuna crítica sobre a obra e sobreAdolfo Caminha é marcada porcaracterísticas e critérios fundamentadosda equação vida+obra. Duas palavrasreverberam em sua fortuna crítica:vingança e imoralidade. Essas palavrassão lançadas sobre os seus dois mais

conhecidos romances: A normalista eBom-Crioulo. Salvo dois artigosescritos por Araripe Júnior, os demaisfazem ressoar aquelas palavrasalicerçando-as na equação vida+obra.Araripe Júnior associou A normalista aum retrato da vida nas capitais dasprovíncias, notadamente as maisacanhadas e afastadas do Rio deJaneiro, como era o caso de Fortaleza,onde se passa o enredo do romance.Assim pronunciou-se Araripe Júnior(1963a, v.III, p.171):

Quem quiser conhecer a cidade deFortaleza e intoxicar-se um poucocom a barbaria semi-civilizada deuma capital provinciana, onde reina

o babismo em todo o seu furor, nãotem mais do que abrir o livro deAdolfo Caminha e entregar-se àleitura de suas páginas sempreocupação de crítico. Reproduzoo que escrevi algures. Enquanto selêem aquelas páginas, vive-se umpouco no Ceará. Os acidentesfísicos estão todos nos seuslugares. As ruas principais dacidade, o Passeio Público, oTrilho, o Pajeú, o Mucuripe,surgem aqui, ali, sugestivos epitorescos. Os aspectosparticulares dos costumescearenses confundem-se a todoinstante com a ação do romance.

Ao afirmar que "Reproduzo o queescrevi algures", Araripe referiu-se aoartigo "O romance brasileiro – ANormalista – Cenas do Ceará, porAdolfo Caminha – 1893". Esse seuartigo é um dos primeiros a tratar doromance de estreia de Adolfo Caminha.Sem que a opinião de Araripe Júniorviesse a desaparecer, a recepção dosromances de Caminha tocou outros sons,fundamentados, sobretudo, nos fatos davida do autor. Um dos primeiros artigosescritos logo após a morte de Caminha,em 1897, traçou relações entre a suavida e a sua obra, esta como sendoresultado de sua personalidade,supostamente, nervosa, inquieta erevoltada. Nele, Pápi Júnior (1897,

p.9.2) afirmou:

porque a alma de AdolphoCaminha era feita dos pesadumbresignotos dos que soffrem sempre,desse mau-humor contumaz dosvisionarios; tinha enfim, toda umaconformação de grande artista,cheia de nevroses rosaceas doBello, e das irresponsabilidadesidiosyncrasicas do temperamento.(grifos nossos)

A união entre os aspectos da vida doautor e a realização de sua obra foi,mais e mais, destacada na sua fortunacrítica. A equação vida+obra, à qual jános referimos, sempre serviu a essepropósito. São diversos os críticos que

se fundamentaram nela para julgar aobra de Adolfo Caminha. Os prefáciosdas edições de A normalista prestam-sebem para essa análise. Segundo os seusautores, A normalista (Cenas doCeará), de 1893, foi escrito com a tintada vingança, cujo alvo seria a sociedadecearense, que não aceitou orelacionamento de Adolfo Caminha comIsabel Jataí de Paula Barros, à época jácasada com um militar do Exército. Essemesmo critério, ou seja, a vingança,serviu, segundo os críticos, para oromance Bom-Crioulo. Nesse, o alvoseria a Marinha, instituição militar daqual Adolfo Caminha fazia parte e delasaiu para viver com a citada Isabel.Nada pior para a Marinha brasileira do

que ser o cenário de um relacionamentoentre dois homens como vemos em Bom-Crioulo. De praça de armas a Marinhase viu praça de amantes do mesmo sexo,o que não era a imagem desejada pelainstituição.

A personalidade supostamente dada àpolêmica e aos infortúnios foi oprincipal julgamento que fizeram deAdolfo Caminha. Segundo os críticos,essas características não deixaram derespingar sobre a obra caminhiana. Osmesmos críticos não economizaram nabusca de dados que confirmassem essatese. Raimundo de Menezes (1950, p.7),que citaremos mais uma vez, foi buscarna infância do autor exemplos que a

confirmassem. Um dos mais"interessantes" reproduzimos a seguir,destacando em itálico palavras quereforçam a confirmação da tese citada.

Era uma criança raquítica e queparecia predestinada a poucosmeses de vida. Antes dos oito anospor duas ou três vêzes às portas damorte. Em uma dessas ocasiõeschegou mesmo a ser feita aencomenda de um caixão para oseu enterro, sendo como eraesperado um desenlace a qualquermomento. (ibidem)

Juízos como esses, feitos comfundamento nos aspectos da vida,repetem-se na fortuna crítica de

Caminha. Foi também nesse tom quetocou a crítica de Frota Pessoa (1902,p.226), que a respeito afirmou em 1902:

Adolpho Caminha foi um dessesseres de destino errado. Elle nãonasceu, nem para o homem que foi,nem para o escriptor que semanifestou. O desencontro da suamissão social e da sua missãointelectual formou todo o seuinfortunio. (grifos nossos)

Citamos os nomes de Pápi Júnior eFrota Pessoa e os designamos comocríticos fundadores de um julgamentoque, recorrentemente, encontramos nafortuna crítica da obra de Adolfo

Caminha durante mais de cem anos. Asegunda edição de A normalista, de1936, traz um prefácio de DécioPacheco Silveira (1936, p.IV), queafirmou:

"A Normalista", comtudo, não éuma obra livre de defeitos. O autorera moço e o romance foi escriptosob a impressão dosacontecimentos que lheperturbaram e estragaram a vida.Está, por isso, impregnada de umpessimismo em que se sente osurdo desígnio de uma desforracontra a sociedade provinciana,que o julgou e condemnou comtanta severidade. (grifos nossos)

Valdemar Cavalcanti (1941, p.158), quetambém se ocupou da obra de AdolfoCaminha, a respeito afirmou:

Tudo o que saiu da penna deAdolpho Caminha tem,necessariamente, a marca de suasdesgraças pessoaes: em sua obradecerto que se reflecte o amargorprofundo do orphão do destino. Deseus romances chega até nós umbafo ácido de dor, de raiva, derepulsa e odio, não em relação adeterminados indivíduos oucostumes, mas talvez a certo meio etempo. Tudo nas paginas queescreveu transpira o desejo devingança do homem falhado e

vencido pelo destino. (grifo nosso)

Não parece ser acaso que o artigo deCavalcanti seja intitulado "O enjeitadoAdolpho Caminha". Já o seu títulorevela a leitura de Cavalcanti, que arespeito do romance A normalistaafirmou:

A Normalista representa umarevolta contra habitos etemperamentos forrados dehypocrisia. Aqui e ali, o romancistacomo que rilha os dentes, enterra asunhas na própria carne, interrompeo fio da história para dizer não. E'uma atitude sem duvida perversa eimpertinente, peculiar, aliás, aosnaturalistas.

E' contra a vida, que elle quertraduzir ao pé da letra e por issomesmo traindo e deformando ooriginal, – é contra a vida queAdolpho Caminha se revolta, aoacompanhar as suas curvascaprichosas e ao focalizar certostrechos menos límpidos dapaisagem humana posta sob seusolhos. Recortando figurasangulosas de gente infeliz econtando a sangue frio as desgraçasalheias, o que elle faz é vingar-sede seu próprio destino. (ibidem,p.158-9)

No prefácio escrito para a terceira

edição do romance A normalista, quefoi publicada em 1950, Raimundo deMenezes (1950, p.6) afirmou: "Paracompreender-lhe a obra, faz-se misterrecompor-lhe a vida". E continuouMenezes:

Trazia consigo, escritos nos temposde Fortaleza, os originais de umromance a que dera o título de "ANormalista", em que procurararetratar com mordacidade oshábitos e costumes da pequeninacapital provinciana. Era umaespécie de revanche contra tudoquanto o tinham feito sofrer. Umaválvula de escapamento para umressentimento recalcado. (ibidem,

p.10, grifos nossos)

Afirmações como essa a propósito doromance em causa se repetirão ao longode sua fortuna crítica. Na quarta ediçãodo romance, Sabóia Ribeiro (1976, p.6)afirmou:

Todos reconheceram certa ligaçãoentre o entrecho do romance e ocaso sentimental do escritor,quando se viu perseguido na capitalcearense, em nome dos seuspundonores. A Normalista seria, nofundo, um revide aos agravos quesofrera. No Ceará, ainda pelaprimeira década e inícios dasegunda, eram citadasnominalmente algumas figuras que

Adolfo Caminha pusera na suaficção e seus correspondentes navida real, umas, vivendo no meiofortalezense, outras no Rio, como o"Presidente Castro", já baixado notúmulo. (grifo nosso)

Como o leitor vê, mesmo passados 83anos da primeira edição, na quartaedição o critério da vingança se repetiu.Ribeiro acrescentou a essa informação ofato de haver na leitura das primeirasdécadas do século XX oestabelecimento de uma ligação entre aspersonagens do romance e a "realidade".Nesse caso, parece válido perguntar: Oque é ficção? O que é realidade? SabóiaRibeiro não se ocupou somente uma vez

da obra de Adolfo Caminha. No livroque escrevera para comemorar ocentenário de nascimento do autor emcausa, em um tópico intitulado de "Ossubterrâneos do escritor", Ribeiro(1967, p.14) afirmou: Um propósitovingador constitui, ao menos parece, oimpulso inicial de seu primeiro romance– A Normalista" (grifo nosso).

Ainda no mesmo livro, porém no tópico"Condicionamentos do romancista",Ribeiro apontou para cincocircunstâncias da vida de Caminha queteriam condicionado a produção de suaobra, mais uma vez a equação vida+obrafoi o critério utilizado para explicar aobra caminhiana. A vingança ou revide

aparece como contexto do quartocondicionamento. A esse respeitolemos:

O quarto, seu drama passado de amorpassado em Fortaleza, onde servia comooficial de Marinha, e em que raptarauma mulher casada. Diante da campanhaque lhe moveram, lá, em nome dopundonor da sua sociedade, AdolfoCaminha foi transferido e, não aceitandoa transferência, teve de deixar a farda,sacrificando a sua carreira. Concebeuentão A Normalista, que é,incontestàvelmente, um revide ao quelhe fizeram. (ibidem, p.15)

A vingança também será considerada omotivador da escrita do Bom-Crioulo,

como também o afirmou Sabóia Ribeiro:

Esse quarto fator se desdobranaturalmente na mágoa que lhe teriaficado de seus superiores, querecusaram suas razões e lheimpuseram uma transferênciareputada por ele, mas do quearbitrária, humilhante. Não se podedesvincular desse fato algumdesabafo já repontado no seu Paisdos YanKees e algum traçocaricatural mais forte existente nasdobras de Bom-Crioulo. É, porexemplo, aquêle Comandanteimplacável da corveta diante doscastigos a marinheiros, a explodir:– Hei de corrigi-los: corja! A

marinhagem embotada assistindo àcena da flagelação, "sem nenhumfrémito, como se fosse areprodução banal de um quadromuito visto". (ibidem, p.15-16,grifo nosso)

Poderíamos aqui arrolar uma listaextensa de textos críticos que voltam abasear-se na vingança, revancha ourevide como critério de julgamento esentença última do romancista AdolfoCaminha, bem como o seu gênio difíciltantas vezes chamado de birrento, comoo fizera, por exemplo, Antonio Sales, umdos seus companheiros de PadariaEspiritual. Essas palavras aparecemcomo palavras-chaves de um modo de

ler a obra de Adolfo Caminha. Ficamoscom esses nomes citados, mas o leitorpode juntar a eles vários dos nomesconstantes na bibliografia sobre o autore sua obra que aparece no final destelivro. Como o leitor também verá noscapítulos que seguem, citaremosdiversas vezes a biografia de AdolfoCaminha escrita por Sânzio de Azevedo,que muito se dedicou ao estudo do autor.O leitor pode estar se perguntando porque praticamente todos os exemplosdados dizem respeito ao romance Anormalista? Porque, como o leitorconstatou, os critérios usados parajulgar A normalista também servirampara julgar o Bom-Crioulo, como já oafirmou Sabóia Ribeiro. No caso do

romance Tentação, a fortuna crítica éescassa. Talvez, por tratar-se de umromance publicado postumamente, elequase não recebeu a atenção doscríticos. O mais que se afirmou a seurespeito é que se trata de uma romancerealista e não de um romance naturalistacomo os anteriores.

Para finalizar essa revisão da fortunacrítica, vale dizer que os julgamentosrealizados são também representativosde um momento e de um tipo de crítica.Trata-se de um modo de ler e decompreender a obra. Não nos cabeconceituá-los como incorretos. Sãojulgamentos válidos para o momento emque ocorreram, levando-se em conta as

ideias circulantes e o modo como aliteratura era compreendida. Nos temposatuais, uma outra leitura da obracaminhiana parece-nos válida. Por issopropusemos a tese do polígrafo.

Adolfo Caminha: um autortenso e intencionado

As histórias da literatura brasileiracategorizaram Adolfo Caminha como umautor contraditório, frágil e menor,talvez marginal se pensado em relaçãoaos grandes nomes do período.Preferimos chamá-lo de um autor tenso.Tenso em relação às transformações quemarcaram aquele "início" do século

XIX, pois, ao mesmo tempo em que eleas louvava e pedia por elas, ele tambémas via com desconfiança,destacadamente no caso da entrada doBrasil no mercado consumidor de bensimportados, que a seu ver ameaçava acultura e os costumes locais, como épossível apreender da leitura de suacoluna intitulada de "Sabbatina", nojornal O Pão, da Padaria Espiritual.

Adolfo Caminha foi tenso também emrelação à encruzilhada estética que foi oséculo XIX, cheia de possibilidades nocampo geral das artes e da literatura emparticular. E por fim, tenso em relação àescrita ficcional e à remuneraçãofinanceira dela advinda. Tensão parece

ser uma das suas principaiscaracterísticas. Tensão entre a vida e aarte, entre o viver e o escrever, entre aescrita e a publicação, entre as letras eos números, entre um suposto heroísmoe uma igualmente suposta vitimização desua personalidade. Foi assim queiniciamos a nossa leitura do conjunto daobra de Adolfo Caminha. Mais do queum polo ou outro, o que nos parece maisimportante é a tensão entre eles, poisAdolfo Caminha não esteve só de umlado ou de outro. Foi da tensão dessespolos que resultou o conjunto da suaobra.

Além de tenso, também o consideramosintencionado, isto é, motivado por uma

intenção, uma missão, como era comumaos seus pares letrados do período.Adolfo Caminha é um crente daliteratura como arte civilizadora. Emseus textos críticos são muitos osexemplos dessa sua crença. Igualmenteintencionada foi a sua participação nomovimento republicano, notadamente noCeará, movimento político que ele fezquestão de representar em seusromances A normalista e Tentação.Tenso e intencionado é um binômio queo leitor pode encontrar no conjunto daobra caminhiana. Esse binômio ajudou-nos a compor aquela que achamos que éa sua maior característica como autor: apoligrafia. Uma poligrafia segundo ascondições sociais e intelectuais de seu

tempo e segundo as suas própriasnecessidades pessoais, incluindo-senelas as financeiras, bem como asnecessidades de seu projeto literário: ade fazer-se um autor profissional. Opossível é sempre a medida nesseprojeto. Ser o polígrafo, no caso deAdolfo Caminha, era ser o autorpossível em seu tempo, o que significadizer também nas circunstâncias que orodeavam. Portanto, estar em toda partepor meio da poligrafia era levar a cabo,ou ao menos tentar levar, esse projeto. Ofim de sua poligrafia nos pareceu seresse. Essa é a tese que aqui defendemos.Mostrando-se consciente do meios que ocercavam, e quando dizemos meiopensamos em sistema ou campo

literário, Adolfo Caminha procurouestar em toda parte, ainda que suasambições pessoais o limitassem a algunscircuitos específicos.

Considerado pela história tradicional daliteratura brasileira como um autornaturalista, Adolfo Caminha morreu detuberculose, a doença que mais vitimouos românticos e serviu à historiografiacomo critério de conceituação dosromânticos. Louvando Émile Zola comoexemplo a seguir, tanto nas letras comona vida, não deixou de reconhecer Cruze Souza como o poeta mais bem acabadodo seu tempo. Em comum com oshomens de letras de sua época, deixou oCeará, a sua província natal, para viver

na capital do Império e, em seguida, acapital da República, que era também acapital da República das Letrasnacionais. Ir ao Rio Janeiro era como ira "Paris em ponto pequeno", como eleafirmou em seu romance Tentação. Se odinheiro não dava para atravessar oAtlântico, que tal desembarcar no Rio?Esse foi o percurso que o dinheiropossibilitou ao nosso autor. Na entãocapital do país, associou-se aossimbolistas, esses tambémmarginalizados. Nela, criticou a poesiaparnasiana e louvou a relação entre aciência e a arte. O homem que buscamosconhecer é o autor Adolfo Caminha e,mais especificamente, o autor na suacondição de polígrafo, como o

definiremos a seguir.

Passo a passo...

Para conhecer esse sujeitomultifacetado, muitos passos foramdados. O primeiro passo do processo depesquisa foi recolher o maior número defontes possível em instituiçõescearenses: Academia Cearense deLetras; Biblioteca Pública EstadualGovernador Menezes Pimentel;Biblioteca Pública Municipal DolorBarreira, Casa de José de Alencar;Instituto Histórico e Geográfico doCeará. Somamos às fontes reunidasnessas instituições as fontes coletadas na

Biblioteca Nacional e na Casa de RuiBarbosa, no Rio de Janeiro. Assim,reunimos fontes de Adolfo Caminha ou aseu respeito e a respeito de sua obra,além de fontes que nos permitirampropor e desenvolver as discussões emcada um dos capítulos deste livro, comoo leitor confirmará adiante. Dito dessemodo, a coleta e catalogação de fontespode parece ao leitor uma etapasimples. Talvez o fosse se não setratasse de obra publicada no séculoXIX. Essa etapa foi uma verdadeiraarqueologia literária, sobretudo pelaspéssimas condições em que as fonteseram encontradas. Some-se a essadificuldade o fato de parte importante doconjunto da obra de Adolfo Caminha

encontrar-se ainda dispersa. O autorsobre quem supostamente já se sabiatudo viria a nos causar surpresas.Nesses nove anos de pesquisa, a coletae a sistematização das fontes foramconstantes e realizadas ao longo doscursos de Especialização emInvestigação Literária (2002) e oMestrado em Letras (2004), ambos naUniversidade Federal do Ceará, ondehavíamos concluído o curso deLicenciatura plena em História (1999).

No curso de Especialização procedemosa um diálogo inicial com as fontesreunidas naquela fase. Em seguida, nocurso de Mestrado, analisamos aatuação de Adolfo Caminha como

crítico literário. Para tal, nos detivemosem seu único volume de crítica literária– Cartas literárias – e sua relação coma ficção caminhiana. Os resultados entãoalcançados foram expressos nadissertação intitulada Cartas literárias:questionamentos e comentários apropósito da contribuição crítica eficcional de Adolfo Caminha, que já noslevava a reunir os indícios para a teseque defendemos agora, ou seja, a deAdolfo Caminha como um polígrafopossível para o sistema literário vigentede um modo geral e para um sistema quelhe foi particular e possível de executarseguindo normas comuns aos homens deletras de seu tempo e normas às quaisele mesmo se impôs, daí falarmos em

um modo particular de proceder eexecutar o conjunto de sua obra. Aoconsiderá-lo como um polígrafopossível, pensamos também nessapossibilidade como forma de existênciao que significa dizer como uma forma deinserção nos sistemas que nem semprelhe foram favoráveis, como o sistemaeconômico, político e social. Em linhasgerais, é essa a tese que aquidefendemos. Neste livro aindavoltaremos à análise de sua atuaçãocomo crítico, pois na dissertação demestrado não nos detivemos no conjuntode seus artigos críticos intitulados de"Crônicas de Arte" nem no prefáciointitulado "Carta", fontes as quais nãotínhamos acesso à época do mestrado.

Desde o princípio, a pesquisa e osresultados alcançados tiveram umcaráter transdisciplinar, oriundo denossa formação acadêmica, ainda quenão fosse reconhecida peloshistoriadores como uma pesquisahistórica propriamente dita, nem pelosestudiosos da literatura como umapesquisa intrinsecamente literária, masjustamente de história nas áreasespecíficas de história social daliteratura, sociologia da literatura ouhistória cultural da literatura. O queparece um problema de definição parauns talvez seja a única virtude destetrabalho: a possibilidade de transitarentre fazeres e colocar-se em um espaçode diálogo. Falta de reconhecimento dos

historiadores e estudiosos da literatura àparte, procuramos formatar a pesquisano diálogo entre essas duas áreas,utilizando para tanto o instrumentalteórico e crítico das áreas citadas ou deáreas correlatas, notadamente aSociologia, uma vez que citamos PierreBourdieu e utilizamos várias de suaspropostas na abordagem do fenômenoliterário. O caráter transdisciplinar datese parece tê-la adequado bem aoPrograma de Pós-Graduação em Letrasda Faculdade de Ciências e Letras deAssis, da Universidade EstadualPaulista (Unesp), onde defendemos atese que deu origem a este livro sob aorientação do Dr. Luiz Roberto VellosoCairo, uma vez que a área de

concentração do programa é Literatura eVida Social. Nesse caso, o diálogo coma História e a Sociologia procuroucontemplar aquilo que o programaintitulou de "Vida Social".

O objeto

Dito isso, o leitor pode estar seperguntando: por que escolhemos a obrade Adolfo Caminha como nosso objetode pesquisa? Instigou-nos o fato deAdolfo Caminha ser, pelo menos noCeará, sua terra natal e nossa também,um autor sobre quem supostamente já sesabe (ou se saberia) tudo. Porém, oexame mais atencioso de sua produção

ou do que preferimos chamar deconjunto da sua obra levou-nos aconsiderar como equivocada aquelaafirmação, seja porque sempre épossível dizer algo, ainda que acontribuição a ser dada seja pequenacom é a nossa, e esse nos parece umprincípio básico da ciência ou doconhecimento cientificamenteorganizado, seja porque percebemos queboa parte das fontes que formam oconjunto de sua obra, notadamente osperiódicos, bem como as primeirasedições de seus livros, pouco haviamsido coletadas, organizadas, analisadase problematizadas à luz de uminstrumental teórico atualizado, tanto naperspectiva dos estudos literários e/ou

históricos como ainda na perspectivatransdisciplinar a qual nos propusemosrealizar. Somese a isso o fato de que naescala maior de valoração do autor, istoé, na escala da literatura brasileira,Adolfo Caminha ser um autorconsiderado menor em relação aos seuspares naturalistas, sempre mostrado, porexemplo, à sombra de Aluísio Azevedo,e aos pares de sua época de um modogeral. A valoração local de sua atuaçãocomo escritor contrasta com a suavaloração nacional e esse contraste érelevante para pensarmos a presença dasliteraturas ditas locais em relação àliteratura dita nacional. O que representaa literatura cearense para a literaturabrasileira? Mas, qual é mesma a

literatura nacional? Essas foram algumasdas perguntas que fizemos ao longo daescrita da tese, mesmo que não astenhamos respondido.

Obviamente, leitor, houve em nossaescolha um aspecto fundamental: o fatode Adolfo Caminha ser cearense comonós. Não acreditamos na neutralidade dapesquisa, mas na capacidade que umobjeto de pesquisa tem de nos afetar, ouseja, de estimular em nós um afetofundamental como um motor deestímulos que nos levou a produzir apesquisa. Haverá para alguns um gravedefeito nesse critério. Mas esse seráapenas mais um defeito entre tantos queos leitores poderão encontrar aqui. A

história de Adolfo Caminha, as suas idase vindas entre Ceará, Rio de Janeiro,Estados Unidos e, definitivamente, Riode Janeiro, onde ele faleceuprecocemente, afetaram-nosprofundamente. Não fosse esse afeto nãoteríamos dedicado todos esses anos aoestudo de sua obra.

As fontes

Como já afirmamos, temos como fontede pesquisa o conjunto da obra deAdolfo Caminha. Em princípio chamou-nos atenção aquela afirmação de PápiJúnior (1897, p.3) que serve de epígrafea este livro: "Adolpho Caminha no

pouco que deixou, deixou muitíssimo".O que seria esse muitíssimo? Comoconhecê-lo? Estaria o crítico sereferindo somente à ficção caminhiana?Foi assim que optamos por analisar oconjunto da obra de Adolfo Caminha.Por conjunto da sua obracompreendemos todas as suasrealizações no campo intelectual.Analisar esse conjunto da obra conferiua este trabalho o caráter de uma leiturapanorâmica. Eleger o conjunto da suaobra como fonte fez que não nosdetivéssemos em um ponto único, fosseesse ponto um romance, um texto críticoou um texto jornalístico. A compreensãode que Adolfo Caminha é um polígrafofez também que não nos detivéssemos

em somente uma de suas faces, mas queelas estivessem em nossa abordagem,sempre que possível, em diálogo. Essefato poderá causar nos leitores um certoestranhamento quanto à metodologia,que muda conforme a nossa necessidadede análise em um e outro capítulo.Leitura de sua obra como uma poligrafiaexigiu-nos um método específico: apolileitura.

Ainda a respeito das fontes, podemosdizer que se trata de fontes impressas,como o leitor verá adiante; no casoespecífico dos livros, eles foramtratados como livros-documentos,1 poisnão somente trabalhamos com romances,contos, poesias, mas sobretudo com

várias edições de um mesmo romance,como foi o caso de A normalista (Cenasdo Ceará), recorrendo, na medida dopossível, às primeiras edições de ummesmo título. Nesse caso, o livro foitratado como documento de si mesmo ecomo documento do seu processo deexistência, incluindo-se nesse processoa análise de seus elementos materiais. Amaterialidade dos livros foi um aspectobastante observado ao longo da escritada tese. Juntem-se a essas fontes afortuna crítica delas. O diálogoestabelecido com as fontes também deuà tese um caráter de revisão dahistoriografia literária brasileira doperíodo em causa e, destacadamente, daobra de Adolfo Caminha. Como já

dissemos, uma das fases maisimportantes e difíceis da pesquisa foi areunião das fontes. Como afirmou CarlaBassanezi Pinski (2005, p.7):"Historiadores trabalham com fontes.Nós nos apropriamos delas por meio deabordagens específicas, métodosdiferentes, técnicas variadas". Portanto,perguntamos: como analisar tantas fontesdiferentes com uma mesmametodologia? Como nos propor aanalisar Adolfo Caminha como umpolígrafo sem experimentar um métodoespecífico para cada face de suapoligrafia? Parte importante do tempode escrita foi usado na tentativa,repetimos, de constituir esse métodomutante: a polileitura. Esperamos ter

conseguido.

Assim, o que o leitor encontrará nocorpo deste texto é uma tentativa dediálogo com as fontes que arrolaremos aseguir. Sobre a natureza objetiva dasfontes utilizadas, podemos dizer que háaquelas que a tradição dos estudosliterários considera (ou considerou)como propriamente literárias – a ficçãoem prosa e poesia – e também aquelasque gravitam (ou gravitavam) em tornodas primeiras, como os jornais, ascartas, a crítica etc. Considerá-las comopropriamente literária ou não dependeráda opinião do leitor. Aqui, todas estãoem cena ou talvez a ficção esteja de fatonos bastidores, pois é de lá que ela

dialoga com as demais fontes e fazeres,como o leitor também verá. Não há nestetexto um capítulo sobre o autor deficção, o que poderia indicar aosleitores que não nos ocupamos dessaface do polígrafo. Mas, como verá oleitor mais atento, a ficção caminhianapercorre todo o livro, mas sempre emdiálogo com os seus outros fazeres.

As realizações intelectuais de AdolfoCaminha, como as consideramos, sãoaqui citadas conforme a data depublicação. São de 1885, por exemplo,os textos críticos "Pseudo-Teatro" e "OIndianismo", os primeiros que ele tevepublicados, daí servir essa data como oinício do recorte temporal que

realizamos. Dados de sua biografiafizeram-nos crer que o autor estava àépoca no Rio de Janeiro, onde viviadesde 1880, pois para lá ele fora levadocom a finalidade de continuar os estudosapós o falecimento de sua mãe. Em1887, Adolfo Caminha teve publicadodois livros Voos incertos (primeiraspáginas) e Judith e Lágrimas de umcrente. No primeiro, reuniu poemasescritos entre os anos de 1885 e 1887.Portanto, ao mesmo tempo que escreveraos seus textos críticos citados, escreveutambém, ou começou a escrever, os seuspoemas. Vemos desse modo o encontrodo crítico com o poeta. Não podemosafirmar, ao certo, se um tipo de texto, oque significa também afirmar um tipo de

fazer, precedeu o outro, ou seja, se ospoemas precederam os artigos ou vice-versa, o que resultaria em uma estreiadiferenciada a partir de cada tipo detexto. Se não o afirmamos é porque nãopudemos consultar a revista da Escolade Marinha na qual vários poemas deVoos incertos (primeiras páginas)foram originalmente publicados.

Esse mesmo livro Voos incertos trazestampado na capa o seu local depublicação e o editor: Rio de Janeiro,Typ. da Escola de Serafim José Alves,localizada no número 83 da rua Sete desetembro, o que nos faz concluir que ostextos críticos também foram publicadosnaquela capital. Segundo Sânzio de

Azevedo, em Adolfo Caminha (Vida eobra), foi também em 1887 que o autorteve o seu conto "A chibata" publicadonas páginas da Gazeta de Notícias, doRio de Janeiro. Portanto, em um únicoano temos Adolfo Caminha realizandocrítica literária, poesia e prosa deficção, destacadamente o conto, que elecultivou ao longo de sua atuação. Setodos os artigos foram publicados emperiódicos, temos também AdolfoCaminha lançando-se na imprensaliterária e na imprensa noticiosa, práticaque ele manteve até o final de sua vida.

Desse fato resultou o encontro doescritor de ficção com o articulista e opoeta. Infelizmente, nos microfilmes

daquele órgão, consultados na FundaçãoBiblioteca Nacional, no Rio de Janeiro,não encontramos o conto citado.Precisamos também atentar para o fatode que a publicação dos artigos narevista da Escola de Marinha inseriuAdolfo Caminha e sua obra no tipo deimprensa que podemos chamar deimprensa institucional pública,notadamente a militar com a qual elemanteve laços mesmo afastadooficialmente da Marinha como veremosno arrolamento dos periódicos que eramrecebidos e comentados n'A NovaRevista. Esse fato, aparentemente menorou sem importância, traz para a análiseda atuação de Adolfo Caminha umapergunta que consideramos capital:

como um homem de Marinha tornou-seum homem de letras? Em desdobramentopoderíamos perguntar: como a suaformação nos bancos escolares militaresresultou na escrita de romances, poemas,contos, crítica literária e artigos dejornal?

Infelizmente, não conseguimosresponder as perguntas que propusemos,uma vez que, entre as fontes arroladas,não constam dados a respeito daformação militar de Adolfo Caminha.Uma possibilidade de levantar algumasrespostas ou hipóteses seria comparar asua formação com a de outros homens deletras de sua época, como Euclides daCunha,Visconde de Taunay e outros, que

também tiveram formação militar. Noentanto, é preciso lembrar que esseshomens de letras foram formados noExército e não na Marinha, ainda quetodos fossem militares, podendo haverna formação dos quadros dessas forçasarmadas alguns pontos em comum. Noentanto, o destino do mar parece ter dealgum modo banhado a obra de AdolfoCaminha. Ainda que aquelas perguntasfiquem sem resposta, achamos por bemfazê-las. Talvez, elas fiquem comosementes para os que virão a seinteressar pela sua obra e por ele.Voltemos, então, ao arrolamento doconjunto da obra.

Em 1888, Adolfo Caminha, então

segundo-tenente da Marinha, foitransferido para o cruzador Paquequer,sediado em Fortaleza. Por motivo dedoença, o jovem marinheiro e entãoautor dos títulos que mencionamosretornava à sua terra natal. O meninosaído do Aracati voltava homem feito àFortaleza.

No jornal O Norte, em 1890, tevepublicado os capítulos de No país dosianques, memórias da viagem que fezaos Estados Unidos. Ainda emFortaleza, em 1891 editou a RevistaModerna, à qual, infelizmente, nãotivemos acesso, mas da qual temosalgumas informações. As suas atuaçõescomo escritor de memória e editor de

periódico literário formam uma outraface da sua atuação como polígrafo. Étambém daquele ano – 1891 – o prefáciointitulado de "Carta" feito para o livroEstrofes, de F. Alves Lima. Oprefaciador apareceu uma única vez, oque dá a essa sua atuação e ao próprioprefácio um caráter que consideramosespecial. Em 1892, editou, juntamentecom R d'Oliveira e Silva, o jornal ODiário, do qual consultamos todos os 59números, graças à generosidade do Dr.Sânzio de Azevedo. Naquele mesmoano, Adolfo Caminha colaborou com ojornal O Pão, órgão oficial da PadariaEspiritual, agremiação de rapazes deLetras e Artes, da qual fez parte desde asua fundação. Nas suas páginas assinou,

com o pseudônimo Felix Guanabarino,as colunas intituladas Sabbatina, umaespécie de crônica de crítica social.Temos então o encontro do editor dejornal noticioso e do articulista naspáginas d'O Pão. A vida o chamou paramais uma viagem. Mais uma vez, e essaseria definitiva, Adolfo Caminha deixouo Ceará para viver no Rio de Janeiro,porto da esperança dos homens de letrasdo seu tempo.

Foi em 1893, na então capital daRepública recentemente proclamada,que Adolfo Caminha teve publicado oseu romance de estreia: A normalista(Cenas do Ceará), que acreditamos tersido, pelo menos em parte, escrito em

Fortaleza, como pudemos constatar nonúmero 3 do jornal O Pão em artigointitulado também de "ANORMALISTA", escrito por LucioJaguar, pseudônimo de Tibúrcio deFreitas. É também daquele ano o inícioda publicação, na Gazeta de Notícias,do Rio de Janeiro, das Cartasliterárias, entre os meses de novembrode 1893 e julho de 1894, quando AdolfoCaminha tem os relatos de sua viagemaos Estados Unidos publicados emlivro. Assim, outro encontro triangularse apresenta na atuação de AdolfoCaminha: o romancista, o memorialista eo crítico literário. Em 1895, AdolfoCaminha teve publicado o seu segundoromance – Bom-crioulo – e as já citadas

Cartas literárias, reunidas naquelaocasião em livro e acrescidas pelopróprio autor de mais dez artigos,retomando também aqueles de 1885 quecitamos no começo, fazendo que esseseu livro seja o resultado de uma décadade trabalho no campo da críticaliterária.

Em 1896, editou A Nova Revista. Noano seguinte, foi publicadopostumamente seu último romance:Tentação, escrito, possivelmente, em1896, o que resulta em outro encontro: odo editor de periódico com oromancista. Juntam-se a esse rol defontes, os contos reunidos pelo Dr.Sânzio de Azevedo em 2002, contos

esses que foram publicados entre 1893 e1895. Os mesmos contos tiveramdiversas publicações após a morte doseu autor. Se atentarmos para a data depublicação dos contos, vemos queenquanto o romancista estava ematuação, o contista também estavadesperto. As múltiplas mãos dopolígrafo parecem não parar defuncionar. A poligrafia como umpossível modo de inserção no sistemaliterário requeria que o autor estivesseem todos os lugares, o que significadizer em diálogo com o maior tipopossível de textos e de seus suportes.

Como podemos constatar, as fontesassim apresentadas evidenciam que as

várias atuações do autor no sistema oucampo literário se davam de formasimultânea. Fizemos questão de destacaros encontros dessas atuações, de pontuaras interações entre fazeres como modode marcar a sua atuação como polígrafo.A essas suas atuações procuramos juntaras atuações políticas, como a suaparticipação no movimento republicano,estabelecendo, desse modo, relações docampo literário com o campo de poder.Unimos também às atuações já citadasas suas preocupações com os direitos doautor, o que, de algum modo, o situa nocampo da política das letras e no campoeconômico, daí analisarmos a suaatuação como um político. Ao longo dotexto procuramos mostrar que essas

atuações simultâneas contribuem entre sipara a constituição do conjunto da obrade Adolfo Caminha e também para aconstrução de seu pensamento apropósito do fazer literário. Foi comesse modo de ler, que chamamos depolileitura, que o texto se diferenciouem relação à fortuna crítica da obra deAdolfo Caminha, que sempre procurouanalisá-lo em seu fazeresseparadamente, sem buscar relaçõesentre eles ou sem analisar os seusfazeres.

O período

O recorte temporal, centrado nos anos

de 1885 a 1897, corroborou a afirmaçãode que o presente texto teve como fonteo conjunto da obra de Adolfo Caminhapublicado entre Fortaleza e o Rio deJaneiro, funcionando aqui como umrecorte espacial, que, se pensado emtermos das relações regionais,significava dizer entre a província e acapital, entre um eixo econômico fraco eum eixo econômico forte, que atraía osnossos homens de letras. Estar no Rio deJaneiro era estar mais próximo docapital circulante. O recorte temporalproposto rompe com o biografismocomo método, uma vez que centra suaanálise na obra do autor e não na suavida. Se assim o fizéssemos, o recortetemporal corresponderia ao tempo de

vida do autor: 1887-1897. O ano de1897 fecha o recorte não somente porcorresponder ao ano da morte de AdolfoCaminha, mas porque marca acirculação de seu último romance,publicado no ano anterior, bem comopor tratar-se do ano de fundação daAcademia Brasileira de Letras,marcando, desse modo, uma nova etapana vida literária brasileira, reforçandoas ações associativas dos homens deletras, mas também os laços dedependência entre a província e acapital do país.

A vida pessoal aqui considerada éaquela que nasce com o processo deescrita. No entanto, o recorte aqui

realizado dialoga com o biografismocomo fonte, como um modo de ler a obrade Adolfo Caminha, pois esse, como jádissemos, constitui, indiscutivelmente,grande parte de sua fortuna crítica. Alémdisso, o biografismo nos parece falarmuito mais da crítica que foi feita à suaobra do que propriamente dessa. PierreBourdieu (2005, p.185) chamou-nosatenção para o uso da biografia comométodo de explicação da obra:

Todavia, o culto romântico dabiografia é parte integrante de umsistema ideológico onde seinserem, por exemplo, a concepçãode "criação" como expressãoirredutível da "pessoa" do artista

ou a utopia, tão estimada porFlaubert, por Renan ou Baudelaire,de um "mandariato intelectual"fundado nos princípios de umaristocratismo da inteligência e deuma representação carismática daprodução e da recepção das obrassimbólicas. Não seria difícilmostrar que são esses os mesmosprincípios que engendram aindahoje a representação que osintelectuais possuem do mundosocial e de sua função neste mundo.Também não surpreende o fato deque a quase totalidade daspesquisas em história da arte eliteratura mantenham com o"criador e com sua criação" a

relação encantada que, desde aépoca romântica, a maioria dos"criadores" tem mantido com sua"criação".

Assim, não deixamos de fazer uso dedados biográficos, apesar de centrarmosa nossa preocupação na obra, como já odissemos, nas condições materiais,sociais e intelectuais que colaborarampara a sua constituição. Mas por dadosbiográficos entendemos não asexperiências particulares, pessoais eíntimas do autor como explicação diretade aspectos de sua obra; interessou-nossaber, por exemplo, o modo como aobra literária foi motivo de suapreocupação; quais relações,

conflituosas ou amigáveis, estabeleceucom seus pares para colocar-se nocampo literário de sua época, uma vezque defendemos a tese de sua atuação depolígrafo como uma forma possível deinserção no sistema literário; comodialogou com editores, críticosliterários, e demais sujeitos envolvidosno campo literário, pois não negamosque há nesse aspecto algo de biográfico,mas procuramos utilizar a biografia deum modo distinto do uso romântico quese fez dela, como afirmou Bourdieu: "éna época romântica apenas que a vidado escritor tornada ela própria umaespécie de obra de arte (por exemplo,Byron) ingressa enquanto tal no âmbitoda literatura" (ibidem). Interessou-nos a

vida do autor como personagem dacrítica e como personagem dascondições materiais e intelectuais de suaépoca.

Enfim, interessou-nos tratar a biografiacomo mais uma entre aquelas forçasatuantes no campo literário, o quesignifica também propor um diálogocom outras áreas do conhecimento. Aolongo da pesquisa, procuramos tornarevidente o diálogo entre literatura ehistória, como afirmamos anteriormente.Por compreendermos como conjunto daobra de Adolfo Caminha a totalidade desuas ações no campo intelectual vigenteà época, a literatura de ficção foi vistapor nós como mais uma possibilidade de

ação, uma vez que, no Brasil do séculoXIX, os autores escreviam sobre maisde um assunto e o faziam em diversossuportes: jornal, revista, livro etc., o quedava origem ao fenômeno da poligrafia.

A poligrafia: conceito efundamentos

Vários autores brasileiros do séculoXIX cultivavam ao mesmo tempopoesia, romance, conto, novela,literatura de informação, e não eramraros os que também se dedicavam àcrítica literária, como o fez AdolfoCaminha. Alguns estrearam na ficção ese notabilizaram na crítica, como o

fizeram Araripe Júnior e JoséVeríssimo. Outros se destacaram nahistoriografia, tendo estreado na crítica,como foi o caso de Capistrano deAbreu. Outros tantos circularam entre osdiversos veículos e suportes deinformação disponíveis à época. Osexemplos seriam inúmeros. Aos homensde letras tudo parecia interessar. Tudopodia ser motivo de escrita. No entanto,é preciso julgar o que era aparência, oque era motivado pelas condições ecircunstâncias de produção da literaturae da cultura letrada do período.

É preciso considerar também que estarem toda parte ao mesmo tempo poderiaassegurar-lhes ganhos financeiros com

os quais sustentariam a si, à família e àprópria literatura. As diversas açõesexecutadas por um único sujeito dãoorigem ao conceito de autor polígrafo,do qual Adolfo Caminha é, como jáafirmamos, um exemplo entre outros.Mas consideramos que no seu casoespecífico a sua caracterização comopolígrafo dá-se também pelo fato deessas diversas escritas produzidas porele manterem entre si alguma relação,que procuramos tornar evidente em cadaum dos capítulos do presente livro.Portanto, os conceitos de autor epoligrafia, que procuramos desenvolverao longo do texto, estão no centro denossa análise e problematização.

A problematização

Como problematização propusemos asseguintes questões: 1 O que faz deAdolfo Caminha um autor polígrafo? 2Como compreendemos e definimos a suapoligrafia? 3 Se era comum aos autorescontemporâneos atuar em mais de umafrente, tratar de mais de um assunto,utilizar mais de um suporte e gêneroliterário, por que, então, deter-se noexame de uma situação definida comohabitual? 4 Como Adolfo Caminharealiza a sua poligrafia? 5 Em que estetrabalho contribui para a leitura da obrade Adolfo Caminha? 6 No casoespecífico da atuação de AdolfoCaminha, a poligrafia está a serviço de

quê? 7 Por que Adolfo Caminha tornou-se um polígrafo?

Adolfo Caminha pelométodo da polileitura

Por tratar-se originalmente de uma tese,nosso objetivo principal foi confirmá-la,e nosso objetivo específico foi procurarresponder ao menos em parte asquestões então propostas. Para cumpriro que propusemos, usamos comometodologia a estruturação do conjuntoda obra de Adolfo Caminha de formaconcomitante, ou seja, alinhando cadatítulo à medida que era publicado, sem,no entanto, agrupá-los, necessariamente,

em conjuntos estanques como poesia,contos, romances, crítica literária,jornalismo. A esse método demos onome de polileitura. Procuramos tornarevidente o fato de que havia umaprodução simultânea de textos dediversos gêneros literários. Essaabordagem fez-nos pensar em umaestrutura dialógica da qual a parte emcomum é o autor. Portanto, investigamosa atuação do autor como político, editor,leitor e crítico literário, destinando paracada um deles um capítulo específico.

Dessa proposta surgiu, então, umapergunta: qual a presença da atuação doficcionista ou por que não há no texto umcapítulo para tratar especificamente do

ficcionista? Como já afirmamos, nestetrabalho, a análise da atuação de AdolfoCaminha como autor de ficção aparecepor trás da atuação dos diversos sujeitosque compuseram a sua figura depolígrafo. Assim, sempre estaremos nosvoltando para a sua obra ficcional, masà medida que as questões suscitadas noscapítulos específicos o exigirem. Esselugar sagrado da ficção abre espaçopara outras atuações e o palco ficcionalvai abrindo as suas cortinas para outrossujeitos. O que faz que a obra ficcionalseja vista e revista por ângulos epropostas diferenciadas, fundamentadano fazer de cada um desses papéis queconstituíram a sua figura como a de umpolígrafo: o político, o editor, o leitor e

o crítico literário. Assim, o AdolfoCaminha como autor de ficção, que jáconhecemos dos títulos de história daliteratura brasileira, está presente notexto à medida que os outros estão. Ele oé à medida que os outros são.

Procuramos montar uma estrutura departes comunicantes que, a nosso ver,intercambia valores e colabora compráticas e saberes. Trata-se de umaabordagem metodológica. Buscamosnovos horizontes interpretativos ealguma inovação possível para a leiturade uma obra constituída há mais de cemanos. Trata-se de tentar olhar com novosolhos o que, supostamente, seria umvelho conhecido nosso. Trata-se de

reeducar o olhar. Até então, falou-se deAdolfo Caminha como romancista,contista, ficcionista, jornalista sem queessas práticas dialogassem. A leituraque se fez de sua obra foi centrada empartes estanques, o que significavacompor um conjunto de partes, deobjetos distintos em sua forma, mesmoque fossem comuns em sua essência.

Assim, a metodologia que propusemos –a polileitura – é exatamente o contráriodo que foi feito até o momento.Interessou-nos ver em que medida umaatividade colaborou com a outra e fezdesse autor um polígrafo, aqui entendidonão somente como aquele que trata devários assuntos, o que nos pareceu

óbvio, mas aquele que vai além e faz otratamento dado aos assuntos e faz elesmesmos dialogarem, realizando práticasdiversas que colaboram entre si aserviço da constituição de sua obra nocampo literário possível de sua época.Para nós, Adolfo Caminha é um autorpossível. Interessou-nos tambémestabelecer as relações entre os camposde poder, econômico, literário epolítico, fazendo costuras internasdesses campos com o campo literáriosem retirar a obra do teatro dasoperações diversas que lhe deramconteúdo e forma. Esses campos tambémforam compreendidos por nós comoforças que interagem na constituição doautor, uma vez que não o entendemos

somente como um escritor. Essasrelações estão embasadas nascontribuições de Pierre Bourdieu comoveremos ao tratar dos fundamentosteóricos.

A teoria

Como fundamentação teórica, serviram-nos as contribuições de AntonioCandido, Roland Barthes, MichelFoucault, Pierre Bourdieu e RogerChartier. De fato, não nos ativemos aseguir um caminho bem delimitado emtermos de conceitos. Não há ao longo dotexto uma filiação conceitual ou teórica.Fomos ao longo da sua escrita nos

valendo de contribuições que nospareciam importantes e que dialogassemcom as fontes tratadas em momentosespecíficos. Assim, o leitor encontraráem cada capítulo nomes e obras com osquais procuramos dialogar. Aindaassim, alguns conceitos nos forambasilares. De Antonio Candido, porexemplo, utilizamos o conceito deliteratura como sistema presente em seulivro Formação da literaturabrasileira. No centro do conceito desistema literário está a divisão propostapor Candido ao considerar em seuestudo somente o que chamou de"momentos decisivos" da formação daliteratura brasileira, distinguindo asmanifestações literárias da literatura

nacional propriamente dita. ParaCandido (2000, v.1, p.23), essa seriadefinida pela existência de um "sistemade obras ligadas por denominadorescomuns, que permitem reconhecer asnotas dominantes de uma fase". Foiassim que nasceu na sua obra o conceitode sistema literário e também se pensouem um momento específico de formaçãoda literatura brasileira, de onde decorreo título de uma de suas obras maisrepresentativas para a área dos estudosliterários. Críticas à parte, essemomento de fundação estaria, segundoCandido, fundamentado emdenominadores comum, que foram porele assim definidos:

além das características internas,(língua, temas, imagens), certoselementos de natureza social epsíquica, embora literariamenteorganizados, que se manifestamhistoricamente e fazem da literaturaaspecto orgânico da civilização.Entre eles se distinguem: aexistência de um conjunto deprodutores literários, mais oumenos conscientes de seu papel; umconjunto de receptores, formandoos diferentes tipos de público, semos quais a obra não vive; ummecanismo transmissor, (de modogeral, uma linguagem, traduzida emestilos), que liga uns aos outros. Oconjunto dos três elementos dá

lugar a um tipo de comunicaçãointer-humana, a literatura, queaparece sob este ângulo comosistema simbólico, por meio doqual as veleidades mais profundasdo indivíduo se transformam emelementos de contacto entre oshomens, e de interpretação dasdiferentes esferas da realidade.(ibidem)

Vale destacar dessa citação de Candidoo fato de não constar entre os aspectosque ele aponta como fundamentais paraa existência da literatura propriamentedita a atuação de inúmeros sujeitos tidoscomo intermediários entre o autor e oleitor, como os editores. Diante desse

fato, ou seja, a ausência dosintermediários no conceito de Candido,nos valemos também da contribuição deRobert Darnton, para quem a escrita deuma nova história da literatura só épossível com a inserção de novosproblemas, novos objetos e novasabordagens, lembrando aqui dacontribuição da Nova História para aconstituição de uma nova historiografialiterária. Entre os pressupostos queresultariam em uma nova história daliteratura estaria a inserção de novossujeitos, exatamente aqueles queDarnton (1990, p.132-45) chamou de"intermediários esquecidos daliteratura", considerando o fato de queeditores, tipógrafos, organizadores e

muitos outros sujeitos não aparecem nashistórias das literaturas nacionais e quesão sujeitos importantes na suaconstituição, notadamente na forma delivro impresso, que é a forma como aslemos. As suas atuações são práticasque os autores geralmente não realizam,o que resulta em uma delegação dopoder de transformar o texto, que osautores produzem, em livro, que nós, osleitores lemos, seja através da compra,do empréstimo, do roubo etc.

Esse mesmo conceito de "personagensintermediários" da literatura é tambémutilizado por Bourdieu em As regras daarte. Para Bourdieu (1996, p.86), osintermediários estão "entre o artístico e

o econômico", ou seja, localizam-seentre a produção do texto, realizada peloautor, e a leitura, realizada pelo leitor,que é, na escala de produção do livro, oseu comprador. Cabe, portanto, nessanova visão da história da literatura, pôrem destaque a figura do editor e dosdemais sujeitos envolvidos no processode produção do texto em livro. RogerChartier (1999b, p.45), a esse respeito,foi claro ao afirmar: "Para 'erigir-secomo autor', escrever não é suficiente; épreciso mais, fazer circular as suaspróprias obras entre o público, por meioda impressão". E continua Chartier: "Osautores não escrevem livros: não, elesescrevem textos que se tornam objetosescritos, manuscritos, gravados,

impressos e, hoje, informatizados"(ibidem). São esses objetos que nósconsumimos. Como, então, nãoconsiderar a atuações dos sujeitos queos produzem?

Desse modo, dialogando com ascontribuições de Darnton, Bourdieu eChartier, tentamos tornar mais complexoo conceito de Candido, como tambémprocuramos estabelecer o diálogo comoutras contribuições. Trata-se, noentanto, de uma tentativa. Com atentativa de atualização do conceito desistema literário, vale destacar que asfontes usadas para a criação do conceitode "personagens intermediárias", sejapor Darnton, seja por Chartier,

destacadamente o primeiro, são fontesdiferentes da realidade brasileira. O queparece uma obviedade, muitas vezesleva a aplicações diretas de umametodologia em um outro conjunto defontes, sobretudo no caso de Bourdieu,que analisa a obra de Flaubert, queestava submetida aos influxos darealidade europeia e também submetida,do ponto de vista da produção, àmecanização e industrialização da arte,ambas oriundas da segunda fase daRevolução Industrial. Assim, a tentativade utilização desses conceitos buscadialogar com as fontes desta pesquisa,porém sem submetê-las à inteireza desua aplicação como camisa de força.

De Barthes (1999, p.161), em seu livroCrítica e verdade, utilizamos o conceitode crítica literária como validade: "Poisse a crítica é apenas umametalinguagem, isto quer dizer que suatarefa não é absolutamente descobrir'verdades' mas somente 'validades'", ouseja, diferentemente do conceito deverdade, cabe à crítica dizer o que éválido em relação ao sistema criadopelo autor e não estabelecer verdadescristalizadas como algumas quepodemos encontrar na fortuna crítica deAdolfo Caminha, além de outrossuportes que motivam uma leituracristalizada de sua obra, como a de serA normalista, seu romance de estreia,um "livro de vingança" ou o seu segundo

romance, Bom-crioulo, um "livroimoral" por ter como personagens doishomens homoeróticos. O que aquichamamos de cristalização, Bartheschamou de verdade em oposição àvalidade. Bourdieu (1996, p.11) chamoude "lugares-comuns conservadores","topos gastos" e "enfadonhos tópicossobre a vida e a arte".

Outro tipo de cristalização da leitura doconjunto de sua obra está presente nofato de Adolfo Caminha ser localizadona história da literatura brasileirasomente como exemplo de um autornaturalista. Suas produções românticas,notadamente os seus dois primeiroslivros, são considerados casos à parte,

exceções dentro da "regra", que é a decapturá-lo na estética naturalista comoforma de ordenar os objetos literários,deixando à parte uma discussão que nosparece importante: o momento daprodução do texto como um constanteentrelaçamento de valores estéticos,destacadamente no final do século XIXno Brasil, quando o romantismo, orealismo, o simbolismo, oparnasianismo e o naturalismoconviveram como estéticas do sistemaliterário, como possibilidades deentrada para o campo da linguagemficcional. Não nos cabe medir em quantoAdolfo Caminha foi romântico, realista,naturalista, simbolista; preocupa-nosperceber como ele dialogou com essas

estéticas e seus valores defensáveis.

Adolfo Caminha, simbolista, porexemplo, pode parecer um absurdopelas inúmeras críticas que fez aosnefelibatas. Mas pode parecer lógico,obviamente em uma lógica interna doseu sistema próprio, para o críticoliterário que viu em Cruz e Souza "oartista mais bem dotado entre os queformam a nova geração brasileira –pergunta indiscreta e ociosa – euindicaria o autor dos Broquéis, omenosprezado e excêntrico aquarelistado Missal" (Caminha, 1999a, p.23).Além disso, que obra literária não ésimbólica? Que obra não traz em si osigno? Obviamente, trata-se, nesse caso

específico, do signo sob condições evalores estéticos, mas ainda assimpodem ser objeto de nossas inquirições.Além de valores estéticos, a produçãodo texto implica também o uso de outrosvalores morais, sociais, éticos,políticos, financeiros, todos elesexperimentados pelo autor. Assim,tomamos a contribuição de Barthestambém para a nossa metodologia, ouseja, o que procuramos afirmar é válidopara o sistema que construímos comomodo de interpretação do conjunto daobra de Adolfo Caminha do qual évalido dizer validades, mas nãoverdades.

De Bourdieu, como já se constatou nas

páginas anteriores, interessou-nosutilizar os conceitos de campo literárioe campo de poder presentes em Asregras da arte e em A economia dastrocas simbólicas. Para Bourdieu, aconstituição do campo literário dá-se natroca de forças com outros campos,notadamente o de poder e o econômico.A sua crítica principal é à autonomia daliteratura, ou melhor, a da defesa daideia de que a arte se faz,essencialmente, pela arte, e nisso residetodo o interesse do seu estudioso. Comprofundidade e ironia, Bourdieu (1996,p.12) questiona: "Por que se faz tantaquestão de conferir à obra de arte – e aoconhecimento que ela reclama – essacondição de exceção?".

Também de Bourdieu trouxemos algunsconceitos para tratar dos benssimbólicos como objetos de mercado,pois, no jogo de força dos campos,sobretudo com a chamada SegundaRevolução Industrial, a produçãoartística e seu produtor passaram adialogar com novos sujeitos: ocapitalista, o empresário, o compradorde bens cujo valor simbólico e culturalpode ser trocado por moeda. No centrodessa discussão estão os direitosautorais, que Adolfo Caminha (1999,p.122) fez questão de reclamar em umde seus textos críticos presente emCartas literárias: "Devia existir umrigoroso tratado literário, em que osdireitos do autor fossem claramente

expressos, uma lei severa e positiva,estabelecendo medidas contra aespeculação, o abuso e a improbidadecomercial dos editores" (grifo nosso).Juntaram-se a esses conceitoscontribuições de inúmeros autores dediversas áreas do conhecimento, masnotadamente da literatura e da história.Todas as contribuições utilizadas foramdevidamente referenciadas.

Algumas considerações apropósito do polígrafo

autor /ô/ s. m. (s XIII cf IVPM) 1aquele que origina, que causa algo;agente "o assistente foi o a. das

polêmicas mudanças estruturais""foste o a. desse infortúnio" 2indivíduo responsável pelainvenção de algo; inventor,descobridor" o a. da bombaatômica" 3 o responsável pelafundação ou instituição de algo "oa. de um espaço cultural" 4"pessoa que produz ou compõeobra literária, artística ou científica4. 1 escritor "foi o primeiro a.português a receber o Nobel deliteratura" 5 p. met. a obra de umautor "só lê autores clássicos" 6. oprimeiro a divulgar uma notícia, umboato etc. 7 JUR aquele quepromove uma ação judicial contraou em face de outrem 8. JUR

indivíduo que pratica um delito. a.de seus dias o pai ou a mãe emrelação aos filhos. a. físico oumaterial JUR pessoa que executa ocrime idealizado por outrem ou co-participa na sua prática. a.intelectual ou moral JUR pessoaque idealiza o crime, masdetermina a outrem que o execute.ETIM. lat. auctor, oris'o queproduz, o que gera, faz nascer,fundador, inventor; ver aug-, f. hist.sXIII outor, sXIV autor, sXIVauctor, sXV author, sXV auttor.

Como é possível constatar no verbete"autor" aqui citado e retirado doDicionário Houaiss da Língua

Portuguesa, a sua grafia tem variadodesde os primeiros registros da palavrano século XIII, quando era grafada comooutor. No século XIV, a grafia foialterada para auctor. No séculoseguinte, assumiu as formas author eauttor. A nosso ver, o que não poderiapassar de mudanças ortográficas é oindício de que o autor é um sujeito e umconceito históricos, ou seja, está emmovimento na história, sendo definido àmedida que passa por processos detransformação. Essa variaçãoortográfica, além de denotar osprocessos de variação da língua, denotatambém a sua inserção variada nocampo da palavra, campo esse que elemesmo ajudou a constituir por meio da

poética e de todos os outros tipos detexto que veio a produzir. Tratandodessa variação ortográfica que tambémsignifica uma variação semântica,afirmou Chartier (2000) a respeito doautor:

D'abord, pour des questionsproprement lexicales. Au XIVesiècle et au début du XVe siècle,trois mots changent de sens danstoutes les langues, mais prenonsl'exemple du français. C'est d'abordle mot: auteur, et je rappelais,mettant mes pas dans le BuenosAires de Borges, qu'il marquaitcette difference, peut-êtreinconsciemment, estre l'auctor,

celui qui fait advenir à l'existenceet qui a poids d'autorité, et l'actor,celui qui fait, qui est, dans lalangue médievale classique, lecontemporain, le compilateur, leglossateur. Le mouvement est uneconquête progressive de l'autoritédes auctores par les actores, etfinalement une utilisationsystématique du terme latin ou dumot français acteur, fin XIVe –XVe siècle et au XVe siècle, pourdésigner à la fois les auteurs de latradition antique ou chrétienne et uncertains nombre d'écrivains emlangue vulgaire. À partir de 1530,le terme moderne d'auteur vient sesubstituer au terme d'acteur, investi

de ce qui appartenait en propreauparavant aux auctoritates. Le motécrivain prend non plus seuleumentle sens de celui qui copie, mais decelui qui compose, et le termeinvention ne définit plus seulementce qui est trouvaille de ce que Dieua crée, mais aussi ce qui estcréation humaine originale.2

Ainda do verbete, destacamos o fato deque o autor como sinônimo de pessoaque produz ou compõe obra literária,artística ou científica" aparece emquarta colocação, sendo antecedido por"aquele que origina, que causa algo;agente"; por "indivíduo responsável pelainvenção de algo; inventor,

descobridor"; seguido de o responsávelpela fundação ou instituição de algo". Éimportante observar que somente apósesses significados, o autor é ligado àprodução de bens culturais, notadamenteos bens literários e, neste sentido, ele éassociado ao escritor: aquele que já nãoproduz bens quaisquer, mas produz aescrita e uma escrita específica: aficcional.

O verbete marca ainda a inserção doautor em outros campos como o jurídico.Nesse, ele pode assumir as vezes de réuou de vítima, ou seja, o autor de umcrime ou o autor de uma ação contraoutrem. Assim, a palavra passa afuncionar em um outro campo semântico,

distinto do literário: aquele que tece afamiliaridade entre o autor e o léxico dopoder: autoria, autoridade, autorizar etc.Esse funcionamento em outro campo nãodeixa de lado as relações com o campoliterário. Portanto, os registros dodicionário nos levam a compreender oautor como um sujeito submetido a umlongo processo de mudanças; a suainserção no campo literário é somentemais uma possibilidade de apresentar-se. Esse pensamento é reforçado com aseguinte afirmação de Febvre & Martin(1992, p.240): "o último ofício ligado àimprensa e que nasceu graças a ela é oofício de autor".

A compreensão histórica do autor tem

uma função: desautomatizar a linguageme o modo como o definimos em relaçãoaos estudos literários. Como já vimos, eainda veremos, o autor não é um sujeitocircunscrito aos estudos literários, nemsomente definido por esses. É semprepreciso reafirmar que a busca pela suahistória constitui uma desnaturalizaçãodo conceito ou mais do que isso: essabusca tornar evidente que o conceito éuma palavra marcada pelascircunstâncias diversas que lhe deramorigem, o que significa dizer: ascircunstâncias diversas que lhe deramsignificação. A história do autor não édada; ela é um dado que buscamoscompreender na relação queestabelecemos com a literatura, relação

essa mediada por outros saberes epráticas que não somente o literário.Portanto, analisar o autor por esseângulo significa uma mudança naperspectiva da percepção ecompreensão dos sujeitos que ocupamas posições extremas do campoliterário: o autor e o leitor.

Apesar de estarem em situações opostas,eles, autor e leitor, colaboram entre si,uma vez que cada leitura de um textopode significar a sua reescrita. O autor,aquele que o uso corriqueiro dalinguagem nos leva a localizar nadianteira da produção do texto foi oúltimo a aparecer na produção do livroimpresso, forma na qual consumimos o

texto. Textos não circulam como tal; elessão conformados em livros, que osautores, na sua maioria, não produzem,como já temos afirmado com base naproposta de Roger Chartier. Nacomplexa rede de conhecimento que deuorigem à imprensa e à industrializaçãoda cultura, outros sujeitos ocupavam olugar da dianteira. Eram eles: o editor,os tipógrafos, os comerciantes de livros.Mas se o autor possui uma história comoafirmamos e como procuramosdemonstrar a partir da exposição eanálise das contribuições de RolandBarthes, Michel Foucault e RogerChartier e também a partir dainvestigação do próprio vocábulo, o quejá nos levou a considerar que ele não foi

único em todos os tempos e em todos oslugares, é preciso, então, esclarecer dequal autor estamos tratando, ou de qualautor nos interessa tratar, evidenciandoas suas práticas em um sistema literárioespecífico, no caso o brasileiro do finaldo século XIX, quando Adolfo Caminhapublicou, entre os anos de 1885 e 1897,portanto mais de uma década deatividades intelectuais, a sua obra.Evidentemente as contribuições teóricasaqui apresentadas dizem respeito àrealidade europeia, o que exige de nósuma constante crítica e conformação doconteúdo ao caso específico já citado.

Nem gentleman-write, nem

hack-writer: o autorprofissional ou o autor-proprietário

O surgimento da imprensa e o contextoda industrialização da cultura impressafez surgir, cada vez mais, o autor quebusca a remuneração integral pelo seutrabalho. Esse é o tipo de autor que maisse aproxima, como veremos a seguir,daquele tipo que Adolfo Caminhareivindicou como ideal. Ele mesmodistante dessa idealização e muito maispróximo da possibilidade. A poligrafiase instaura, portanto, como uma prática,tanto cultural, ou seja, atendendo a umanecessidade social da presença do

letrado em vários âmbitos da vida sociale cultural, bem como uma necessidadedo próprio sujeito que domina a escrita,uma vez que publicar vários tipos detextos em suportes também variados lhedaria a possibilidade de alcançar ummaior rendimento financeiro e, assim,poder viver de seu trabalho comoescritor. Como já vimos, a ideia doautor-proprietário se intensificasobretudo a partir do início do séculoXVIII para o caso europeu, o que serácada vez mais presente com amecanização da produção, até mesmo amecanização da produção de bens dereconhecido valor cultural. Nessecontexto de industrialização, paraFebvre & Martin:

O autor que retira benefício devenda de exemplares de uma obracomposta por ele é um sistema queestá hoje incorporado aoscostumes, mas levou-se muitotempo para concebê-lo e admiti-lo;ele quase não podia ser imaginadoantes do aparecimento da imprensa.É evidente que os manuscritos eramreproduzidos em série peloscopistas, mas como conceber, naIdade Média, que estesremunerassem o autor por um textocujo monopólio não possuíam – eque finalmente todo o mundo tinhao direito de copiar? (ibidem,p.241)

O autor como aqui o enfocamos, e queAdolfo Caminha enfocou em seus textoscríticos, é, portanto, diferente, porexemplo, do gentleman-writer existentena Inglaterra do século XVIII. SegundoRoger Chartier (1999a, p.9), ocavalheiro-escritor, tradução livre parao conceito, era aquele que "escrevia sementrar nas leis do mercado, à distânciados maus-modos dos livreiros-editores,e que preservava assim a suacumplicidade com os leitores". Étambém de Chartier (1999b, p.43) oconceito de gentleman-amateur:

Em sua definição tradicional, oautor vive não da sua pena, masdos seus bens ou dos seus

encargos; ele despreza o impresso,exprimindo a sua "antipatia por ummeio de comunicação que perverteos antigos valores da intimidade eda raridade associados à literaturada corte"; ele prefere o públicoescolhido entre os seus pares, acirculação em manuscrito e adissimulação do nome próprio sobo anonimato da obra.

Para Chartier, esse é o escritor-amador,ou seja, também em tradução livre doconceito, aquele que escreve o texto porum ato de amor à palavra, sem com issodesejar alguma recompensa monetária; asua recompensa é o reconhecimento dosseus pares de classe e de prática. A

escrita funciona, nesse caso, comosímbolo de distinção. Porém, o autorcomo aqui compreendemos está háalguns anos adiante; ele é o homematravessado pela Revolução Industrial.Como alternativa ao gentleman-writer,Robert Darnton apresentou o hack-writer. Segundo ele, esse é "o indivíduoque é forçado a escrever parasobreviver" (in Pallares-Burke, 2000,p.256). Na língua inglesa, a palavrahack tem vários significados. No inglêsbritânico, vai de cavalo de aluguel oucavalo velho de uso geral a carro dealuguel ou táxi. No que diz respeito aocampo literário, hack assume uma noçãoconsiderada pejorativa: "pessoa queexecuta trabalho (literário) de rotina,

rotineiro, mercenário" (NovoMichaellis, 1970, p.477). Esse seriaaquele que Adolfo Caminha (1999,p.27) chamou de escrevinhador: "cujoúnico ideal é o dinheiro ganho num abrire fechar de olhos, o santo dinheiroobtido sem esforço, e mil vezes maisapetecido e útil que um trecho de prosabem trabalhada ou uma bela estrofecristalina".

Como estamos transitando entre o gerale o particular, ou seja, entre o contextoeuropeu e o nacional, temos sempre emmente a figura de Adolfo Caminha e suaposição no contexto brasileiro. Esse nãochegou a nenhuma das opçõesapresentadas antes, pois condenou a

ambos os tipos apresentados. O que aleitura de seus textos críticos nosapresenta é que ele desejou ser umautor-profissional ou um autor-proprietário, porém, como alguns deseus pares, foi também atravessado porum forte sentimento de missão ou deintenção para citar aqui as contribuiçõesde Nicolau Sevcenko (2003) e AntonioCandido (2000). Ao estudo da atuaçãode escritores brasileiros. Essesentimento e prática de empenho estápresente em grande parte dos seus textoscríticos. Para Adolfo Caminha (1999,p.144), a literatura por meio do autortinha, entre outras missões, a de vincularos caracteres nacionais de suaexpressão:

Entendo que nós já podemos, comgalhardia, figurar em qualquercertame intelectual e que temos osalicerces fundamentais de umaliteratura incomparável eoriginalíssima. Falta-nos cousamuito diferente, falta-nos esseimpulso patriótico, esse orgulhonativo, que é uma das principaisqualidades de todo bom poeta, detodo bom escritor.

Adolfo Caminha não chegou a ocupar aposição de autor-profissional, poistrabalhava de início como membro daMarinha, tendo chegado ao posto desegundo-tenente. Mas procurou omáximo possível aproximar-se dessa

condição. Posteriormente, trabalhoucomo praticante da Tesouraria daFazenda, em Fortaleza, e ao mudar-separa o Rio de Janeiro, onde faleceu,trabalhou no Tesouro Nacional, o quenos leva a crer que não dependessetotalmente de sua escrita para viver, umavez que contava com os seusvencimentos de marinheiro e depois defuncionário público de segundo escalão.Esse fato, porém, não significa que osseus proventos lhe fossem suficientespara manter a si, a sua família e aliteratura. O que fazia que as atividadesligadas à escrita, entre elas o jornalismoliterário e de circulação, se mostrassemcomo uma alternativa financeira, omesmo podendo ser dito da publicação

em jornal das suas Cartas literárias,seguidamente publicadas em livro. Umasituação relacionada à Revolta daArmada é exemplo do que aquiafirmamos:

Em setembro desse ano de 1893,correu a Revolta da Armada: oalmirante Custódio de Melo, que jáhavia participado da queda domarechal Deodoro da Fonseca,liderou um movimento contraFloriano Peixoto, apesar de ser seuMinistro da Marinha, e contavacom o apoio de homenscomoWandenkolk e Saldanha daGama. O Arsenal de Guerra foialvo das bombas dos navios

Aquidabã, Javari, Marajó,Trajanoe República.

É então que um oficial da Marinha,Jovino Alves, ex-colega e amigo deAdolfo Caminha, fiel ao Governo,oferece ao escritor o comando deum navio. E é aí que mais uma vezse revela a autenticidade do caráterde Caminha: apesar de ganharcerca de 300 mil réis comofuncionário público, tendo que sedesdobrar no trabalho dejornalista, ele recusa a oferta,"para não apoiar as atrocidadesdos esbirros de Floriano".(Azevedo, 1999, p.86)

O autor como enfocamos, portanto, é

aquele que deseja ser um profissionalremunerado pela sua prática: a escrita.A sua maldição não é a de ter queescrever para sobreviver, mas a deviver para escrever, mesmo que isso nãolhe assegure uma vida cômoda osuficiente para desenvolver de modosatisfatório, ou de modo ideal, segundoa sua compreensão, a sua literatura. Ofato de não conseguir seu intento resultaem um fenômeno importante: aconstituição, por meio de um discursoque aqui chamamos de discursodescontente, de dois perfis: o do autorpossível e o do autor ideal. O autorpossível é aquele que age no sistemaliterário brasileiro da segunda metadedo século XIX. No caso de Adolfo

Caminha, é o autor polígrafo. O autorideal é aquele que está no desejo daação. Além desse fato, o discursodescontente é uma espécie de memóriado processo de produção da literaturabrasileira. Esse descontentamento estápresente nos diversos tipos de texto queo polígrafo produz e faz dialogar noconjunto de sua obra, conformando,desse modo, um conceito de polígrafoque não se fundamenta somente nadiversidade da produção, mas tambémno correlacionamento dessa produção.

Organização do estudo

Organizamos o presente estudo em cinco

capítulos. Cada um deles é formado departes, subdivididas em itens. Não nospreocupamos em uniformizar oscapítulos quanto ao número de páginasnem ao número de itens. Assim, o leitorencontrará capítulos maiores e outrosmenores, com mais e menos partes eitens, uma vez que procuramos,sobretudo, desenvolver a discussãoproposta em cada um deles, sem quetivéssemos a preocupação com asimetria, pois, na natureza do presenteestudo, há o objetivo de entremearfazeres, costurar práticas, atar e desatarnós em nome de novas validades deleitura da obra de Adolfo Caminha.Mais do que colocar-se em um caminhoreto, este texto se propõe a caminhar

pelas curvas, pelos zigue-zagues, pelasdobras, pelos fragmentos, pelas fissurase por movimentos tortuosos, o queprovocou, conscientemente, um certograu de repetição em nome, muitasvezes, da retomada de uma discussão,porém por um ângulo diferente.

Vale considerar também nessa estruturado texto as diversas epígrafes que oleitor encontrará. Não se trata de umrecurso ilustrativo, mas de umapossibilidade de diálogo que muitocontribuiu para que chegássemos ao fim.As epígrafes nas entradas de capítulos,nas partes deles e nos seus itens são dealgum modo norteadoras de umpensamento que o leitor encontrará no

desenvolvimento interno. Algumas delassão contemporâneas de Adolfo Caminha,outras tantas não, são do tempo de quemescreveu esta tese. Esperamos que oleitor não nos julgue anacrônicos, masque entenda que quem escreve semprebusca no outro um incentivo e umdescanso para seguir escrevendo, daítantos versos de músicas e de poemasserem citados, alguns trechos de prosa ede leituras de outras áreas doconhecimentos. Todos nos ajudaram aescrever. Para melhor situar o leitor,traçamos a seguir um breve perfil do queele encontrará em cada um dos capítulosdesta tese, que ficaram assim dispostos.

No Capítulo 1 – "Adolfo Caminha:

condições materiais e intelectuais deprodução da literatura brasileira noséculo XIX" –, foi dividido em duaspartes. Por condições materiais,compreendemos todas as condiçõesculturais, políticas, econômicas esociais que possibilitavam a produçãoda literatura no Brasil. Ainda nascondições materiais analisamos algunsaspectos que consideramos comoimportantes na produção da literatura.Assim, tanto em uma escala maior comoem uma escala mais próxima desse fazerlidamos com elementos como o tempo, oespaço, a materialidade do livro e aprática diária do fazer literário.

Na segunda parte desse capítulo, em que

nos ocupamos das consideraçõesintelectuais, fizemos algumasconsiderações sobre a chamada"Geração de 1870", da qual a geraçãode Adolfo Caminha foi herdeira, e quetanto contribuiu para a vida intelectualdo Ceará no final do século XIX. Comoexemplo de condições intelectuais deprodução da literatura lidamos com aprática associativa comum no Cearánaquele período, pois ainda que partemaior da obra de Adolfo Caminha tenhasido produzida no Rio de Janeiro osseus vínculos com os homens de letrasdo Ceará não cessaram, como constataráo leitor no capítulo em que nosocupamos de sua atuação como editor.Foi assim que procuramos traçar um

perfil histórico da Academia Francesado Ceará, do Clube Literário e daPadaria Espiritual como agremiações e,portanto, práticas associativas quepermitiram a constituição e odesenvolvimento da literatura local.Concluímos esse capítulo voltando paraa leitura de suas epígrafes iniciais, paradiscutir aspectos subjetivos da produçãoda literatura.

No Capítulo 2 – "Adolfo Caminha, oautor-político na República das Letras"– , que está dividido em duas partes,entendemos como política a capacidadedo homem de letras do século XIX deestabelecer relações individuais einstitucionais nos diversos campos com

os quais de algum modo estava ligado.Portanto, não se trata de uma leitura desua atuação político-partidária comopoderia supor o leitor, mas sobretudo asua atuação em uma política interna ereferente aos interesses específicos doshomens de letras.

Consideramos Adolfo Caminha umpolítico, seja porque trouxe para suaobra temas políticos que ocuparam osnossos homens de letras, notadamente aAbolição da escravidão e a República,seja porque ele os viveu também forados limites do texto, tornando-se, porexemplo, partidário do então movimentorepublicano. O que nos fez constituiruma parte específica intitulada de "A

política dentro e fora das Letras". Comoverá o leitor, nessa primeira parteinteressou-nos, destacadamente, aatuação dos chamados intermediários nocampo literário. Na segunda parte,intitulada de "O autor-político e oseditores", procuramos conhecer arelação de Adolfo Caminha com os seuseditores, apontando, desse modo, parauma atuação política interna naRepública das Letras.

O Capítulo 3 – "Adolfo Caminha, autor-editor" – funciona na estrutura da tesecomo uma possibilidade de conhecer oreverso da medalha, isto é, se nocapítulo anterior o leitor pode conhecercomo Adolfo Caminha lidou com os

seus editores, nesse capítulo o leitorconhecerá como o próprio AdolfoCaminha saiu-se na tarefa de editor. Ocapítulo está constituído de três partes.Na primeira nos detivemos na figura doautor-editor, procurando conhecer aatuação desse sujeito ambíguo naliteratura. Na segunda e na terceirapartes, nos detivemos em sua atuaçãoprática, analisando o papel de AdolfoCaminha como editor de O Diário e deA Nova Revista. Por tratar-se deperiódicos diferenciados, publicados emtempos e espaços específicos, achamospor bem analisar cada um deles em umaparte específica, ainda que o nossoobjetivo seja correlacionar as práticas.

No Capítulo 4 – "Adolfo Caminha,autor-leitor" – consideramos a atuação eas relações entre escrita e leitura naobra caminhiana. O capítulo em causafoi dividido em duas partes: a primeira,intitulada "Leitura e escrita na obra deCaminha", e a segunda, intitulada"Adolfo Caminha, autor-leitor de si ouAs cartas não mentem jamais (só quandopreciso)". Na primeira, nosso objetivofoi tentar conhecer parte das leituras deAdolfo Caminha, como quereorganizando a sua obra, daí os itensserem chamados de pacotes, como sefosse possível conhecer os títulos dabiblioteca do autor. Assim, o leitor éconvidado a desempacotar conosco essabiblioteca de Adolfo Caminha. Na

segunda parte, procedemos a um estudocomparativo-analítico das edições emjornal e em livro das Cartas literárias,procurando conhecer o que AdolfoCaminha alterou na passagem de seustextos de um suporte ao outro,destacando as modificações realizadasna passagem de um suporte ao outrocomo claro exemplo da sua atuaçãocomo leitor de si mesmo.

Nesse caso, os leitores podem estranharo fato de considerarmos na formação dafigura do polígrafo o leitor, uma vez queescrita e leitura, geralmente, aparecemdissociadas. Para nós, essas práticas –leitura e escrita –, sobretudo no caso daprodução da literatura, são práticas tão

ligadas, que uma não viveria sem aoutra, daí a nossa necessidade de arrolaros indícios, com base no métodoindiciário proposto por CarloGuinzbourg, das leituras realizadas porAdolfo Caminha e que aindaencontramos em sua obra ficcional.

No Capítulo 5 – "Adolfo Caminha,autor-crítico" – procuramos ler a críticaliterária de Adolfo Caminhanotadamente os seus artigos intituladosde "Crônicas de Arte" e o prefácio"Carta". Após este capítulo, o leitorencontrará a Conclusão seguida dasReferências. Assim, procuramosproceder ao longo do texto.Evidentemente que, no interior desse, o

leitor encontrará assuntos e temas quenão foram anunciados nesta Introdução.Esperamos que a Introdução possa tersuscitado, leitor, a sua curiosidade paraa leituras das páginas que se encontramadiante.

1 A ideia de trabalhar com o conceitolivro-documento foi-nos suscitada pelaleitura do artigo O livro Fonteshistóricas como fonte, de Maria deLourdes Janotti (2005, p.9).

2 "De início, para as questõespropriamente lexicais. No século XIV einício do século XV, três palavrasmudam de sentido em todas as línguas,

mas tomemos o exemplo do francês. Éde início a palavra: autor, e eu lembro,colocando meus passos na Buenos Airesde Borges, que ele marcava estadiferença, talvez inconscientemente,entre o autor, aquele que faz advir aexistência e que tem peso de autoridade,e o ator, aquele que faz, que está, nalíngua medieval clássica, ocontemporâneo, o copilador, oglossador. O movimento é umaconquista compreensiva da autoridadedos autores pelos atores, e finalmenteuma utilização sistemática do termolatino ou da palavra francesa ator, nofim do século XIV-XV e XV, paradesignar ao mesmo autores da tradiçãoantiga ou cristã e um certo número de

escritores de língua vulgar. A partir de1530, o termo moderno de autor vemsubstituir o termo ator, investido dissoque pertencia propriamente aosauctoritates. A palavra escritor tomanão somente o sentido daquele quecopia, mas daquele que compõe e otermo invenção não define mais somenteaquilo que é decifração do que Deuscriou, mas também aquilo que é criaçãohumana original." [tradução nossa].

1 Adolfo Caminha:condições materiais eintelectuais deprodução da literaturabrasileira no final doséculo XIX

Os livros são objetostranscendentes Mas podemosamá-los do amor tátil que votamosao maços de cigarro. (CaetanoVeloso, "Livro")

O amor pela arte, como o amor,mesmo e sobretudo o mais louco,sente-se baseado em seu objeto.

(Bourdieu, As regras da arte)

Os bens culturais possuem,também, uma economia, cujalógica específica tem de ser bemidentificada para escapar aoeconomicismo. Neste sentido,deve-se trabalhar, antes de tudo,para estabelecer as condições emque são produzidos osconsumidores desses bens e seugosto; e, ao mesmo tempo, paradescrever, por um lado, asdiferentes maneiras deapropriação de alguns desses bens

considerados, em determinadomomento, obras de arte e, poroutro lado, as condições sociaisde constituição do modo deprodução, reputado comolegítimo.

(Bourdieu, A distinção: críticasocial do julgamento)

Um livro é uma pequenaengrenagem numa maquinariaexterior muito mais complexa.Escrever é um fluxo entre outros,sem nenhum privilégio em relaçãoaos demais, e que entra emrelações de corrente, contra-corrente, de redemoinho com

outros fluxos, fluxos de merda, deesperma, de fala, de ação, deerotismo, de dinheiro, de política,etc.

(Deleuze, "Carta a um críticosevero". Conversações)

As condições materiais

Um tratado urgente!

Demonstrando que este capítulo trata deuma questão pertinente aos estudos daobra de Adolfo Caminha, leitor,sobretudo a respeito dos seus textoscríticos e da relação desses com os seus

textos ficcionais e também de seus textosjornalísticos, destacamos um excerto noqual Adolfo Caminha (1999, p.122) seposicionou a respeito dos direitos doautor: "Devia existir um rigoroso tratadoliterário, em que os direitos do autorfossem claramente expressos, uma leisevera e positiva, estabelecendomedidas contra a especulação, o abuso ea improbidade comercial dos editores"(grifo nosso).

Antes de prosseguirmos, é precisoesclarecer um fato referente à leiconhecida como Lei Medeiros eAlbuquerque.1 Vejamos o que nos dizHenrique Gandelman (2001, p.34) aesse respeito:

Foi apenas em 1891, com aprimeira Constituição Republicana,que o Brasil editou normaspositivas de direito autoral, comogarantia constitucional, conforme o§ 26 do Art. 72 da ConstituiçãoFederal, nos seguintes termos:"Aos autores de obras literárias eartísticas é garantido o direitoexclusivo de reproduzi-las pelaimprensa ou por qualquer outroprocesso mecânico. Os herdeirosdos autores gozarão desse direitopelo tempo que a lei determinar."Essa lei foi publicada cinco anosapós, sob o no 496, em 1º deagosto de 1896, graças aosesforços de Medeiros e

Albuquerque, que lhe emprestou onome. Todavia, a Lei MedeirosAlbuquerque foi retrógrada, emvários aspectos, em relação aodireito autoral europeu,principalmente porque exigia oregistro da obra como condição desua protegibilidade e conferia suaproteção apenas por 50 anoscontados da primeira publicação...

A Lei Medeiros Albuquerque tevevigência até o advento do CódigoCivil, em janeiro de 1917. Então, odireito autoral brasileiro conseguiualgum progresso estrutural, emborativesse perdido sua autonomialegislativa, porque passou a ser

considerado simplesmente umaespécie de propriedade:"Propriedade Literária, Científica eArtística".

Vemos, portanto, que, apesar de aConstituição da recente República datarde 1891, a lei a respeito dos direitosautorais foi promulgada um ano apósCaminha ter escrito o texto "Editores" etê-lo feito publicar juntamente com osdemais artigos de Cartas literárias, de1895, não chegando ele, portanto, aconhecer a lei citada ou não chegando avê-la em circulação. Dito isso,passamos a algumas reflexões a respeitoda opinião de Adolfo Caminha sobre osdireitos do autor, isto é, a partir de

quando se procurou no Brasil garantirque o autor seja o proprietário de suaobra, pois um dos aspectos fundamentaisna constituição do autor era que elefosse o proprietário de sua obra.

Por aquela citação, vemos que AdolfoCaminha desejou que houvesse umtratado, ou seja, um discurso a propósitodo que também, na sua essência, édiscurso: a obra literária ficcional. Oque nos faz pensar no fato de que umdiscurso se legitima pela existência eprática de um ou de outros discursoscapazes de potencializar o discursoprimeiro, que requer os discursossegundos como seus legitimadores, eque não se expressam de forma

qualquer, pois se trata do discurso quese faz imprimir e que se fez pela escritae por ela pode vir a ser entregue aopúblico, terminando a sua legitimaçãopor ser assegurada pelo leitor e pelaleitura, que também consiste em umdiscurso, seja no caso do leitor comum,seja no caso dos críticos literários quetornam o discurso produzido a respeitode um romance em um outro texto, comouma das formas de mútua colaboraçãoentre leitores e autores.

Em última análise, é esse também opapel e a essência da crítica literária,pelo menos no século XIX: legitimar ounão o discurso literário ficcional com acriação de um outro discurso, que, no

dizer de Roland Barthes (1999, p.157-63), com base na lógica de realizaçãodos discursos e na sua ordenação, seriaum discurso segundo a respeito de umdiscurso primeiro, esse tratando arespeito do mundo, que é o discurso daliteratura. Talvez, seguindo a propostade Barthes, seja mais correto dizer"validar" do que "legitimar" para tratar,aqui, do objetivo central da críticaliterária, sendo esta concebida por elecomo um exemplo de metalinguagem:"Pois, se a crítica é apenas umametalinguagem isto quer dizer que suatarefa não é absolutamente descobrir'verdades' mas somente validades. Em siuma linguagem não é verdadeira oufalsa, ela é válida ou não: válida, isto

é, constituindo um sistema coerente designos" (ibidem, p.163, grifo nosso).

A escrita é o modo pelo qual a culturavem sendo divulgada, nãohegemonicamente, é claro, e, entre ela, aliteratura que, no já citado processo deprodução do conhecimento, adotouaquele tipo de registro como deexcelência. A escrita é também o meioencontrado para fazer distinções, aprimeira delas a distinção entre pré-história e história, seguindo-se a essaprimeira distinção outras de ordemvariada, que, no caso do Brasil, a maisimportante seria a distinção entreaqueles que tiveram ou não acesso àalfabetização ou à educação formal, fato

marcante, sobretudo na atual sociedadeda informação.

No caso específico do tratado requeridopor Adolfo Caminha, como numencontro ou busca de reconhecimentodos seus pares, esse discurso escritoprocura um símile que o legitime, que otorne válido de fato e de direito, semque isso signifique a inexistência daspráticas e dos discursos orais, que tantasvezes motivaram querelas entre autorese demais sujeitos ligados ao sistemaliterário e, mais amplamente, ao campoliterário, tratando, entre outras questões,da remuneração do trabalho do autor,dos meios de assegurar os seus direitos,mas que signifique a legitimação segura,

última e derradeira do seu valor,considerando que essa palavra – valor –tanto pode ser usada com conotaçõeséticas, morais, religiosas e tambémfinanceiras, sendo esse mais umexemplo possível da distinção posta emcampo pelo saber da escrita.

Desse modo, o caráter de valor passados mundos financeiro, moral e éticopara o mundo das letras. O mundo daliteratura ficcional escrita não estádespregado daqueles, uma vez que elestambém validam ou invalidam umdeterminado título, tanto no que dizrespeito ao valor literário para suaentrada na história da literatura, que éuma das instâncias de legitimação do

autor. Portanto, parece-nos lógicopropor o seguinte pensamento: se aleitura, que é a efetivação do escrito, éum valor difundido na sociedade, quemproduz a escrita, que será objeto daleitura, tem o direito ao reconhecimentodo valor daquilo que produz, sobretudona economia de mercado planificada quetransmuta utilidade em valor, chegando,muitas vezes ao nível do fetichismo e daobsolescência. Ou dito de outro modo:se a escrita é um valor para o mundomoderno, como a forma, por excelência,de registro do conhecimento e de umasérie de atividades ligadas à produçãodo capital, como registros de bensmóveis e imóveis, então, é válidoperguntar: qual o valor do trabalho de

quem escreve? Quanto deve receberquem produz a escrita?

A problematização desse fato noscoloca diante de circunstânciaspeculiares para o período em causa, ouseja, o final do século XIX ou o seu"início", destacadamente no Brasil, oque parece estar marcado no trecho dotexto de Adolfo Caminha citadoanteriormente e no qual é precisoperceber a premência que caracteriza oseu discurso e os valores que elecontem. Todos os recursos utilizadosapontam para esse fato: o tempo verbalempregado, ao mesmo tempo em quedenota a decepção, ou seja, o fato dainexistência do discurso requerido,

denota também a vontade de fazê-loexistir, de torná-lo realidade, ou seja,aponta para um futuro, mesmo que esseseja incerto, tanto na produção dorequerido tratado, quanto na suaefetivação. Também o fato dorequerimento evoca alguma coisa depassado, ou seja, as ocorrências em quea discussão a respeito dos direitos doautor já foram trazidas à baila, afinalAdolfo Caminha não foi o primeiro atratar dos direitos do autor, o queocorreu no seu caso e se expressou emalguns de seus textos críticos foi oreconhecimento de modo pragmático dosproblemas e das supostas figuras que ocausavam, segundo Adolfo Caminha, oseditores.

Adolfo Caminha não requer umdocumento qualquer, mas um tratado, ouseja, uma forma escrita e um discursoque tanto se caracteriza pelo seu teor efunção didáticos, como os tratados demedicina, filosofia, artes etc., como porser uma peça que regula as relaçõesentre diferentes países, nos maisdiversos âmbitos, fazendo parte daspráticas diplomáticas, portanto daspráticas oficiais de Estado, entre elas aspráticas das relações comerciaismarcadas por forte teor e tomreguladores.

O tratado que Adolfo Caminha desejavatinha ainda outras características: quefosse positivo, ou seja, que fosse legal,

efetivo e favorável ao autor; que tambémfosse severo, rigoroso, claro e punitivo,como seria uma lei, o que nos indica asua relação com o discurso jurídico e oquanto a questão parecia envolvê-lo,além de demonstrar um claro sentimentode perda diante do desrespeito ao seutrabalho, pois é preciso considerar queuma das características do pensamentode Adolfo Caminha a respeito da arte, euma das características do seu discursocrítico, é que a literatura é uma práticaque deve ser trabalhada e não somenteimaginada. São diversos os exemplos deseu descontentamento com os escritoresque não trabalhavam e gastavam o seutempo na boemia.

Para Adolfo Caminha, a literatura temsuas bases na pesquisa empírica com aconstituição de um método de trabalho,que, por mais de uma vez foi citado emseus textos de crítica. Método esse que éuma proposta do naturalismo de origemfrancesa, sobretudo da experiência deÉmile Zola como podemos ver nestacitação do texto do escritor cearense arespeito do romance Lourdes, o queevidencia que já na sua época haviaalguma discordância a propósito danatureza essencialista e imaginativa dapoiesis:

Quando, há dois anos, correu queZola estava escrevendo uma obracujo assunto era Lourdes, a

primeira idéia foi que o granderomancista abandonara de vez aantiga manière, transigira, afinal,com as suas teorias, e decidira-se aentrar para a Academia Francesacom uma Lourdes bonitinha, feitade papel dourado, muito recortadade vocábulos novos, muito ideal,uma Lourdes mística, sem coisasmundanas, ao gosto dosfalsificadores de sensações, eonde fosse absolutamentedesprezada a parte documentária,a parte histórica, o quadro social!– espécie de apoteose à Virgem eao Milagre. (Caminha, 1999a,p.40)

Vemos que não se trata de um métodoqualquer, pois esse pensamento deAdolfo Caminha a respeito do métodode Émile Zola encontra fundamentos nospróprios textos críticos do autor deGerminal. Tratando, por exemplo, doque chamou de "O senso do real", emtexto homônimo, afirmou Émile Zola(1995, p.23) a propósito da imaginaçãocomo método de trabalho, que é oavesso do método que ele consideravaideal: "O mais belo elogio que se podiafazer a um romancista, outrora, eradizer: 'Ele tem imaginação'. Hoje, esseelogio seria visto quase como umacrítica. É que todas as condições doromance mudaram. A imaginação já nãoé a qualidade mestra do romancista".

Há, portanto, uma inegável preocupaçãocom o trabalho e, com o seu par ideal, averdade ou, em termos mais atualizados,"os efeitos do real", na acepção deRoland Barthes.

A preocupação de Adolfo Caminha como trabalho constante foi tal que, nojornal O Diário, chegou a reproduzir umsuposto cotidiano literário de ÉmileZola, acompanhado de uma dietaalimentar, que, segundo os conselhos deum grande médico francês, ajudariam-noa escrever os seus livros. No itemseguinte veremos essa citada einteressantíssima dieta.

Possivelmente, Adolfo Caminha, na suacondição de membro da Marinha e

posteriormente de servidor público nãoreproduzia esse cotidiano e também adieta, como se constatará a seguir,ambos bem distantes de suas posses. Apublicação de tal artigo nos serve comoexemplo evidente do processo no qualacreditavam os escritores naturalistas,pois não há, ao longo do texto, nenhumcaráter de ironia ou crítica.

Certamente, a sua leitura hoje nosparece uma caricatura do que seria ocomportamento do escritor naturalista.Mas é preciso entender esse texto no seutempo, assim como as ideias que eleapresentou. Essa caricatura talvez fosseproposital para diferenciar osnaturalistas dos autores de outras

estéticas. Apesar da extensão,acreditamos que a reprodução desteartigo, pela sua originalidade, énecessária. Para tal mantivemos aortografia da época.

Comer, comer, é o melhor para poderescrever!

Muito método e muita calma – eiso que, em primeiro lugar, devepresidir ao trabalho artístico.

(Adolfo Caminha, Cartasliterárias)

O método, homem! o método é osegredo da existência!

(Aluísio Azevedo, Casa de Pensão)

Eis aqui a citada dieta seguida porÉmile Zola:

Regimen de vida e de trabalho adoptadopor Victor Hugo e hoje seguido porZola:

Oito horas – Levantar

Oito e meia – A ducha. E' necessarioque a ducha seja aplicada por ummedico – os especialistas são, quasetodos, gentis para com os homens deletras e jornalistas. Será melhor nãoprocurar os que têm por systemaempregarem unicamente a agua fria: ouso exclusivo da agua fria faz mal aos

nervosos, gottosos e rheumaticos. Umaducha temperada de chuveiro sobre ocorpo, mais quente na altura doestomago, e em seguida uma ligeiraaspersão fria, dão, se ordinario,excelentes resultados.

Nove horas – Primeiro almoço: doisovos apenas quentes ou pouco cozidos, ala coque – se a gema tiver muitophosphato, convem maravilhosamenteaos que se entregam aos trabalhosintelectuaes – meia chicara de café, commuito pouco assucar. Quando muito, umcigarro e, se for possivel não fumar,tanto melhor.

Nove e meia – Trabalho de redacção – éesta, parece, a verdadeira occasião para

compor com clareza. Estas tres horas detrabalho regular, que não fatiga, sãosufficiente para vencer-se a mais rudetarefa.

Zola, que faz todos os annos, pelomenos, um grosso volume de 400 a 500paginas, não trabalha mais tempo queesse.

Meia hora – Almoço. O regimen nãodeve cessar de ser severo – um poucomais que o regimen de convalescença –Os alimentos que contenham phosphato:ovos, rins, sôro de peixe, forte, para sertomado logo, são bastanterecomendáveis, quando o estomagoestiver restabelecido. Sempre as carnes

sanguineas e o pão torrado em grelha. Ohabito obriga a não beber durante arefeição. Aqueles a quem o café tornanervosos, farão melhor se tomarem, aofim do almoço, um copo de um vinhotonico ou uma preparação de coca ouphosphato de cal.

Logo depois da refeição é bomconservar-se immovel em uma poltrona,de modo, porém, que o estomago nãofique apertado, nem constrangido. Ficarassim uma meia hora, quase semconversar e lendo um artigo de jornalsem violências, que não critique asnossas obras e não nos cause raiva.Trazer um paletó folgado esuspensorios, burguezmente.

Ao fim desta meia hora, fumar, caso nãoseja possivel dispensar tal vicio [é bomler, a proposito, as publicações daSociedade contra o abuso do fumo]fumar porém, pouco – um terço decharuto, por exemplo. Feito o que, sair –distrahir das occupações.

Se não puder dar um passeio ao campo,andar pelas ruas, observando os quepassam e meditando no que escreverá,na manhã seguinte.

Tomar lição de esgrima e jantar nacidade, se assim aprouver. Ir ao theatro,não abusar, porém, dos bastidores, evoltar para casa sem passar pelo club –a pequena partida que lá se fizesse denada serviria.

Dormir á meia-noite. Não ler na cama.

A este regimen, accrescenta Zola,quando se acha no castello em Médan,uma pequena sesta, sobre o tapete, da 1hora a 1 ½ da tarde.2

Vemos que se trata de um regime, masnão de um regime qualquer. Tratase deuma espécie de "regimen de vida", ouseja, de um modo de ser e de estardiante do mundo e da sociedade. Trata-se de um modo de experimentar a vida,de pô-la em prática de formasupostamente distinta, isto é, constitui-seem mais do que uma prática. Trata-se deum método com o qual se pode

aprender, sendo esse um métodobastante caro aos estudos queinfluenciaram o ideário naturalista. É,enfim, um ser-estar no mundo de formaregrada e contida, sobretudo nautilização do corpo em favor da mente,como que retomando o conceito antigoda mente sã em corpo são, ou, maiscondizente com os tempos que seavizinhavam: mente produtiva em corpoprodutivo. Trata-se de um método emrazão da produção, o que significa umaboa utilização do tempo com o qual sedevia fazer um acordo como veremosadiante.

Esse é um regime bastante detalhado,para o qual contribuem a alimentação, o

corpo e a mente, mas todos a serviçodefinitivo da produção da escrita.Possivelmente, essa preocupação fezque, de todas as estéticas literárias, maisou menos demarcadas, o naturalismofosse a que mais tornou presente o corponos enredos de seus romances, contos,novelas etc. O corpo das personagensnaturalistas, além de estar a serviço deuma ideia, a ideia de que a ciência podeexplicar a realidade e contribuir com aarte, estava a serviço do próprio corpo eda representação desse na literaturabrasileira, porque a pena dessa estéticanão deixou de contar, e até de certomodo exagerar, com a fisiologia, apsicologia e os conhecimentos médicose científicos em geral, como o fez, por

exemplo, Gustave Flaubert na clássicacena da morte de Ema Bovary porenvenenamento ou como o fez tambémJúlio Ribeiro em A carne, com apersonagem Lenita, justificando as suasações como um caso clássico de histeriafeminina.

Não diferente, talvez menos acadêmico,fez Adolfo Caminha nos romances Bom-Crioulo e A normalista, mas sobretudonesse, para ficarmos somente comexemplos de personagens femininas,como na cena em que Maria do Carmofoi abusada sexualmente pelo seupadrinho João da Mata, motivada tantopela desilusão amorosa que tivera comZuza, como pelos supostos apelos

imperativos do corpo, que, segundo onarrador – "Estava justamente emvésperas de ter o incômodo" (Caminha,1998, p.122) – referindo-se àmenstruação, como é possível constatarno final do décimo capítulo do citadoromance. Desse modo, vemos que apreocupação com o corpo extrapola adimensão real, pois ela parte do sujeitoprodutor, que se submete a uma dieta, ese insere, com o mesmo objetivo, nasdimensões ficcional e artística, o que,também, irá resultar num modo deprodução, como demonstra ser, afinal, oobjetivo último deste processo. Apreocupação com o corpo está presenteno romance, sendo uma instânciaimportante para justificar ações, fatos

etc.

Ainda a respeito da citada dieta deÉmile Zola, nota-se, claramente, umapreocupação com a escrita em termos deprodução, ou seja, da otimização do diae das práticas cotidianas formatadas emum calendário ou em um organograma detarefas, que, se seguidos, tornariamprofícuas as ações do escritor. Ométodo de escrita com base naspesquisas de campo, em anotações apartir de observações, como numaespécie de interpretação social, e essasestão ligadas à dieta rigorosa a quedevia se submeter o autor para escrever,seria uma característica marcante donaturalismo, sobretudo do naturalismo

segundo Émile Zola, que adaptou esseregime de Victor Hugo.

Devemos observar também que osconselhos fazem parte do discursomédico; portanto, são de carátercientífico e vale lembrar ainda que umadas principais influências do catecismonaturalista foram as ideias difundidaspelo médico francês Claude Bernard. Opróprio Adolfo Caminha (1999, p.72)referiu-se diretamente à importância dopensamento de Bernard para efeitos daprodução de textos literários ficcionais:"Nada mais desolador, nada maisestúpido que o homem visto através deum tratado de fisiologia, e contudoClaude Bernard era um professor

honesto e sua obra há de ser consultadacom amor enquanto existir a ciência".

São os estudos de Claude Bernard quejustificam o tratamento dado por ÉmileZola aos personagens da série Rougon-Macquart e, também, o tratamento dadoà personagem Maria do Carmo, no casode Adolfo Caminha. Aquilo que a críticaliterária considerava imoral – "Imoralporque reproduz a esterqueria humana,porque descreve magistralmente asfatalidades orgânicas de uma família debêbados e mentecaptos e porque narraos amores incestuosos de um velhosábio que se chama Dr. Pascal?"(ibidem) –, já Adolfo Caminhaconsiderava: "Mas todo esse trabalho é

de um beleza incomparável e de umaverdade esmagadora" (ibidem). O belo,no pensamento caminhiano, estásubmetido à verdade pela supostadenúncia da "realidade".

Verdade, denúncia, trabalho e ciênciasão componentes do ideário naturalistaque Adolfo Caminha absorverá edefenderá, seja em seus textos críticosou em seus textos literários ficcionais,às vezes de forma direta, às vezes nacomposição de suas personagens. Nãopodemos dizer que os citados conselhossaíram da pena de Claude Bernard, arespeito de quem afirmou Alain deLattre (1975, p.31):

En 1855, Claude Bernard succède à

Magendie dans la chaire demédecine experimentale du Collègede France. Très rapidementl'audience et la notoriété de sonenseignement débordent le publicauquel il est normalement destiné.On se presse à ses cours: le comtede Paris, le prince de Galles,l'empereur du Brésil. Des femmesélégantes. Et puis aussi lesGoncourt, Théophile Gautier,Flaubert. Il n'a pas la parole aisée,mais il est intéressant à entendre,disent les Goncourt, et agréable àregarder. Des avant la parution del' Introduction à l'étude de lamédecine expérimentale (1865),donc, ses idées sont dans l'air. On

en parle, on en discute. Ellesexcitent l'imagination. Zola n'y estpas étranger.3

Ainda a respeito dos "Conselhos de umgrande médico", lembramos que mais àfrente eles estarão ligados ao quechamamos de tempo da produção, tempoesse que faz parte do mundo do autorcomo aqui o compreendemos.

O século XIX para além do XX

No Brasil, a adoção de um modo devida europeu, destacadamente francês eburguês, não significava apenas umacontinuidade dos laços de dependênciaeconômica e cultural, mas era também a

suposta expectativa de afastar-se de tudoquanto significasse atraso, aspecto queestava ligado a Portugal, e uma maioraproximação do progresso, quesignificava estar ligado à França ou àInglaterra, e também um afastamento docampo e do modo de vida rural parauma aproximação com a cidade e omodo de vida urbano, fato esse que sóaconteceu, de forma mais forte, a partirda segunda metade do século XX,acompanhado de um crescente projetode industrialização do país:

O Brasil oferecia perspectivasparticularmente atraentes. Tendoconquistado as vantagenseconômicas da Independência sem

prejuízo de sua continuidadepolítica, o país oferecia osrequisitos de estabilidade eprosperidade, somados a umareceptividade excepcional a todosos adornos da cultura francesa. Nofervor de seu nacionalismo recém-descoberto, o Brasil passou aresponsabilizar a herançaportuguesa pelo atraso nacional e aidentificar tudo o que era francêscomo moderno e progressista.Kidder e Fletcher observam comoeram abundantes nas livrarias asobras francesas sobre "ciência,história e [...] filosofia atéia"; ogosto geral pela leitura limitava-seaos "jornais e traduções de

romances franceses": as senhorasbrasileiras liam "a maior parte dasobras de [...] Balzac, Eugène Sue,Dumas père e fils, George Sand...(Hallewell, 2005, p.198)

Com as pesquisas recentes a respeito domercado livreiro, da circulação doslivros entre a metrópole e a colônia eentre as províncias da colônia, dacirculação do livro no Brasil, dosdireitos do autor, do papel dos editoresno desenvolvimento da literaturanacional, das práticas de leitura e deescrita, do design e da história do livrocomo objeto de interesse da indústriacultural, o texto "Editores", de AdolfoCaminha, ao qual fizemos referência,

vem sendo difundido como exemplo deopinião a propósito, sobretudo, doseditores e das suas práticas ao lidaremcom os autores. Osman Lins (1974), porexemplo, colocou-se na linhagem doscríticos que se ocuparam desta questão.Em seu livro Guerra sem testemunhaspor mais de uma vez faz referência aotexto de Adolfo Caminha. Vejamos aprimeira citação direta:

Esse estado já em 1894 irritava ojovem Adolfo Caminha, queescrevia em suas CartasLiterárias, reunidas em volume umano mais tarde, por sinal em ediçãoparticular: Todo editor em nossopais é, por systema, um

"benemérito", um "protector dasletras pátrias", um "incansável".Para manter-se, porém, noagradável papel, tem uma "espéciede minotauro da Arte", como odenominava o romancista de OBom Crioulo [sic], de defender-secontra os prejuízos, editando obraslucrativas, que aceleram aprosperidade da empresa, firmandosempre mais a sua permanência.(ibidem, p.66)4

Na segunda citação ao texto "Editores",Osman Lins se localiza claramente nalinhagem dos críticos que, assim comoAdolfo Caminha, voltaram o seu olharpara a relação do autor e seus editores,

o que em desdobramento, sobretudo noséculo XX, significou também a relaçãoentre literatura e mercado:

Aqui, o escritor, encontrando umatradição que o ajuda bem pouco, ounão ajuda em nada, e sem contar,entre seus predecessores, comexemplos de rebeldia (raríssimosos artigos como o de AdolfoCaminha), ou pelo menos comexemplos que o orientem, que lheofereçam o ponto de partida para aformulação de um comportamentodefinido em face do problema, poisos escritores em geral são muitodiscretos sobre tudo que digarespeito às suas relações com os

editores, não tem apenas de buscarsozinho a sua expressão; é tambémnecessário que improvise, oudescubra ou invente um modo deagir frente àqueles de cujobeneplácito dependerá amultiplicação de seu livro, suaexpansão em busca de leitores.(ibidem, p.74)

Além de Osman Lins, o texto "Editores"é citado por outros nomes deinteressados na questão, como: LaurenceHallewell no já referido O livro noBrasil; por Lajolo & Zilberman (1999 e2001) em A formação da leitura noBrasil e O preço da leitura; por AníbalBragança (1999) em História, leitura e

história da leitura; por Alessandra ElFar (2004) em seu Páginas desensação, o texto de Adolfo Caminha,ao tratar dos editores, destacou a figurado editor Baptiste Louis Garnier,inegavelmente, segundo LaurenceHallewell (2005, p.197), "o maisimportante editor brasileiro do séculoXIX".

Por essa lista, que atravessa o séculoXIX e chega ao século XX, quando oslivros citados foram publicados, vemosque, de algum modo, os problemas coma publicação de livros no Brasil semantêm e, assim, parece que o séculoXIX está para além do XX. Não é ocaso, porém, de dizer que são os

mesmos problemas, mas de algum modoeles persistem, sobretudo no que dizrespeito à remuneração dos autores, oque significa também pensar nascondições materiais de produção daliteratura nacional.

Em acordo com o tempo

Cumulo da malvadeza:Matar.... o tempo(O Pão... da Padaria Espiritual,24 de dezembro de 1892)

Entro num acordo contigoTempo tempo tempo tempo(Caetano Veloso, "Oração aotempo")

O tempo não pára(Cazuza)

Temos nosso próprio tempo(Renato Russo, "Tempo perdido")

O tempo tem revoltas absurdas.(José Miguel Wisnik, "Pérolas aospouco"

Tempo tempo, mano velho,falta um tanto ainda eu seiPra você correr macio.Como zune um novo sedã.(Pato Fu, "Sobre o tempo")

O tempo pirraça.(Vanessa da Mata e Kassin,"Pirraça – Sim")

O tempo parece com um bicho quesempre ronda os artistas. Poetas,ficcionistas, cantores, letristas, pintores,todos parecem em algum momento daconstrução de suas obras ter-se voltadopara o tempo, como é possível constatarnas epígrafes desta seção. Seja noséculo XIX, seja no XX, o tempotornou-se uma preocupação dos artistastambém lhes servindo de inspiração. Daíser o tempo tão material oumaterializado na escrita quanto àprópria escrita. Para alguns, perdertempo é um crime; para outros, é umadádiva. Mas, como já dissemos, o tempopreocupa a todos independentemente deganhá-lo ou não. Assim, nesta seção,ocupamo-nos de tipos de tempo

presentes no processo de escrita, dentrode um tempo que chamaríamos de maior:o tempo histórico.

Foi exatamente nesse contexto deinserção do Brasil no cenário comercialdo Ocidente e na tentativa deimplantação dos rudimentos de umaindústria nacional do livro e doimpresso, contemplando o crescimentodo público leitor, porém não mais nacondição de colônia portuguesa, mesmoassim marcado pela manutenção delaços de dependência cultural eeconômica, que Adolfo Caminhapublicou toda a sua obra ficcional,crítica e jornalística durante mais deuma década de atividade intelectual: de

1885, data dos seus primeiros artigoscríticos, até 1897, quando o escritorfaleceu e teve o seu último romancepublicado postumamente.

Foi nesse período que o autor deu àpublicidade o conjunto de sua obra,período a que denominamos de tempoda publicação, mas foi também entre1885 e 1897 que ele as produziu, ouseja, elaborou a linguagem por meio docódigo da língua portuguesa, dandoorigem aos textos ou discursos, sendoesse tempo o que denominamos detempo da produção ou da elaboração,que corresponde ao emprego derecursos intelectuais, sobretudolinguísticos, na operação do código em

favor de casos específicos de funções dalinguagem como as funções poética,fática e metalinguística.

Esses dois tempos apontadosevidenciam um processo de produçãoespecífico no qual estão inseridossujeitos diversos como o autor, o editoretc. Eles também nos dão a ideia de quehá o emprego do tempo nesse processo,o que torna a discussão presente maissignificativa, sobretudo com aefetivação do capitalismo entre nós parao qual time is money [tempo é dinheiro]e que transforma o conhecimento emuma espécie de "capital intelectual"capaz de gerar produtos e contemplarnecessidades na sociedade crescente da

formação e da informação.

O emprego do tempo de produção, nocaso específico de Adolfo Caminha,pode ser constatado em fontes comocartas e artigos de jornal nos quais oautor dava a conhecer a seus pares queestava produzindo um romance, ou seja,um gênero do discurso ficcional,apontando, para um futuro breve, aconstituição de um tempo de publicaçãoou de um tempo de edição, expressãoesta utilizada por Martine Reid ao tratarda obra de George Sand. A esse respeitoafirmou Reid (2002, p.60):

Três vite un tempo éditorial précisse met en place qui ne connaîtraguère d'exception: le manuscrit est

envoyé à un imprimeur ou à unéditeur dans sa totalité; il paraîtensuite en feuilletons dans unjournal ou une revue pendantplusieurs jours ou semaines; lapublication du texte en volume, unou plusieurs selon la longuer del'ouvrage comme le veut l'habitudedu temps, suit dans un délai bref,généralement inférieur à six mois.5

Se no Brasil do século XIX esse tempoeditorial não será imediatamenteimplementado na prática da escritaficcional, pouco a pouco é possívelconstatar exemplos de sua atuação. Oque evidenciaria a inserção paulatinados nossos autores em uma dinâmica

cada vez crescente, dinâmica essa queestava submetida às condições materiaisde produção e aos interesses diversosdo processo produtor na sua totalidade.No caso específico de Adolfo Caminha,um exemplo seria a passagem do livroNo país dos ianques, publicado em1890 como folhetim nas páginas dojornal O Norte, de Fortaleza, para aedição em volume, com o mesmo títuloem 1894. Outro exemplo é a passagemdos textos de Cartas literárias daedição em jornal para a edição em livro,em 1895. A passagem de um suporte aoutro, de um formato a outro, o quesignifica também de uma materialidade aoutra, evidencia a relação dos autorescom seus editores ou agentes editoriais

que se encarregam do original do texto ede sua edição em periódicos e emlivros.

Os intervalos entre os tempos daprodução e da publicação podem serconferidos nas expressões próprias docomércio livreiro, mantendo-se, dessemodo, a relação entre literatura e as suascondições materiais de produção: "noprelo", "o autor anuncia para breve" etc.Nesse tempo de produção tambémpodemos destacar as marcas deformação do autor, pelas recorrências aregistros de leitura, que muitas vezespassam despercebidos nos textoscríticos. Um exemplo desse tempo deleitura ou de formação se encontra em

uma citação já aqui feita, mas paratermos de maior clareza sobre o queafirmamos, pedimos licença para repeti-la, ao menos em parte: "Quando, hádois anos, ocorreu que Zola estavaescrevendo uma obra cujo assunto eraLourdes..." (Caminha, 1999a, p.40). Amarca do tempo de formação estájustamente na expressão grifada.

Esses anúncios, uma espécie de"propaganda cultural", assemelhando-seao anúncios de produtos os maisdiversos postos à venda, movimentavamtambém os leitores que constituem umoutro tempo: o tempo da recepção daobra, tempo que a colocará, de uma vezpor todas e de fato, no sistema literário

e no sistema comercial. No caso deAdolfo Caminha lemos em O Pão, órgãoda Padaria Espiritual, o seguinte textode 30 de outubro de 1892, assinado pelo"padeiro" Lucio Jaguar, pseudônimo deTibúrcio de Freitas, em que o tempo deprodução é evidenciado. Os recursos epassagens usados para tornar evidente anossa argumentação acham-sedestacados, no texto citado, em itálico:

"A Normalista" será o livro comque em breve, Adolpho Caminhaha de fazer sua estréa no romanceexperimental.

Os seus ocios de empregadopublico teem sido ultimamenteconsagrados todos a esse livro .

Será uma estréa porque "Judith" e"As Lagrimas de um Crente",publicados no Rio de Janeiro,foram apenas uma vaidade dealumno talentoso, que ao concluir oseo curso de "humanidade", achouque devia assignalar a suapassagem pela Escola com algumacousa mais do que uma estudantadaahi qualquer, um livro, uma obrad'arte que em todo o tempo falassede sua cerebração.

Foi, pois, sob este impulso que elleescreveu seu primeiro livro ásvesperas do exame, emquantorecordava os pontos equecidos do

programma. Com a mesma ponta delapis com que ia resolvendo ostheoremas e as equaçõesesquecidas, foi elle, dia a dia,contruindo os ingenuos e simplescapitulos da "Judith".

Era uma vaidade a satisfazer queelle tinha. O livro podia pertencera qualquer escola, isto, neste tempopara elle era cousa muitosecundaria; o que o preoccupavaera que o livro fosse publicadon'aquelles dias, antes que a Armadacontasse mais um tenente.

E foi o que se deu. Antes de umgalão por seu brilho de lantejoulana manga da farda do official, já

ele havia sido ungido com a santaunção da critica que viu no jovemmilitar um talento de eleição quedesabrochava.

O caso agora é outro, porem:Caminha tem, como o poeta que aRevolução matou, a convicção deque elle vale, e precisa assignalar asua passagem, não já pro umaAcademia, mas atravez da nossalitteratura.

"A Normalista", o livro em queelle váe por ora empregando todosos seus recursos de artista viráconfirmar o que deixamos dito.

Elle tem bastante convicção social,

aprendida nos homens e nos livros,para fazer uma criticaconscienciosa da parte de nossasociedade, que elle se propoz aanalisar.

A impressão deixada pela leiturado primeiro capítulo d'ANormalista na Padaria foi a melhorpossivel a favor do talento deAdolpho Caminha. Que eleprossiga, que nós saberemos fazerjustiça. (Jaguar, 1892, p.5, grifosnossos)

Vemos, pelos grifos, que os tempos e aslocuções verbais em sua maioriaapontam para o futuro – será, há de fazer–, além disso o objetivo final da

produção do livro é a estreia deCaminha como autor de romance, o queconsumia todo o seu tempo livre, oucomo afirmou Tibúrcio de Freitas: "osseus ócios de empregado público". Eracom ele que o autor entrava na arenaliterária ficcional, uma que já estrearana crítica. A esses recursos escassos,certamente abdicando do tempo livre,Adolfo Caminha foi tambémempregando os seus recursos artísticos,ou melhor, a sua capacidade de elaborara língua em nome da literatura. É assimque lemos: "'A Normalista', o livro emque elle váe por ora empregando todosos seus recursos de artista viráconfirmar o que deixamos dito". Vemosque administrar o tempo, entre outros

recursos, era uma das condiçõesnecessárias para a produção daliteratura nacional, uma vez que nossosautores não tinham a favor deles todo otempo para trabalharem à vontade,dedicando-se integralmente à produçãode sua obra. Entre outras lutas, aliteratura nacional foi feita contra orelógio, destacadamente no caso deAdolfo Caminha que faleceu aos 30 anosincompletos.

Ainda em O Pão, temos outro registrodesse tempo de produção, porém emreferência ao romance Bom-Crioulo. Nareprodução de uma carta de AdolfoCaminha aos amigos "padeiros", lemos:"Meu Bom-Crioulo está no prelo e deve

apparecer em Dezembro".6 Essestempos, evidenciados em está "no prelo"e "deve apparecer", têm relação direta edependente dos acontecimentos quecircundam o autor, não somente na suacondição de produtor de um tipoespecífico de conhecimento, no caso oliterário ficcional, mas dosacontecimentos sociais, políticos eeconômicos que circundam essaprodução e, consequentemente, a suapublicação, ou seja, a sua recepçãodefinitiva pelo público leitor, o quesignifica dizer a sua entrada de fato nosistema literário como afirmamos,evidenciando, portanto, uma dedicaçãode sua parte à atividade e à prática daescrita, que tem um valor reconhecido

pela sociedade da qual faz parte osujeito que a produz. Esses temposmarcam a efetivação da escrita como umtrabalho, que nem sempre encontra otempo favorável para a sua realizaçãotendo que ser dividido entre outrasobrigações que manteriam o trabalhadore a própria literatura. Assim, era precisofazer um acordo com o tempo.

1890: crise e reestruturação.

A hora e a vez da Domingos deMagalhães & Cia.

O início da década de 1890 foi marcadopelo declínio dos empreendimentos naprodução livreira nacional, ou melhor,pelo declínio da atuação da livraria e

editora Garnier, uma vez que, na décadacitada, além dos acontecimentoshistóricos que marcaram fortemente avida política e econômica do país, deusea morte de Baptiste Louis Garnier(1823-1893), o que resultou no desviodas decisões da empresa do Brasil paraParis e a perda progressiva da Garnierna liderança do mercado e na edição delivros. Assim, aquela década pode serconsiderada, se tivermos em mente queGarnier era o maior editor do país,como um período de entressafra, pois"Por volta do final da década de 1890,conseguira-se finalmente uma novaestabilidade política" (Hallewell, 2005,p.257) e o retorno do crescimento doBrasil, bem como uma retomada do

crescimento da própria Garnier, o quenão se deu somente nas publicações,mas também na própria estrutura físicada sede da livraria, encontrando umaforma de aumentar o simbolismo dopoderio econômico da instituição etambém de reforçar os valores aos quaisela estava ligado:

Determinado a eclipsar Laemmert,Hippolyte encomendou a seusarquitetos parisienses, messieursBellissime e Pedarrieu, umatransformação completa, com aconstrução de magnífico prédio dequatro andares, com umapartamento para o gerente noúltimo. O novo prédio foi

inaugurado com uma festa de galano 19o. dia do novo século, com apresença do cônsul francês, de todaa imprensa do Rio de Janeiro e dosprincipais homens de letras dacidade. Para marcar a ocasião,cada um dos convidados recebeude presente um exemplarautografado de um romance deMachado de Assis,presumivelmente Dom Casmurro,cuja segunda edição aparecera emabril do ano anterior. (ibidem,p.258)

Com a implantação definitiva de umaindústria cultural no Ocidente e, no casodo Brasil, com a industrialização do

país solidificada no século XX, apreocupação das empresas comerciaisse intensificou com a aparência de suasede comercial, evidenciando maisainda o seu poder de capital frente aosconcorrentes. Na expressão deHorkheimer & Adorno (2000, p.169), assedes das empresas comerciais sãoconsideradas "os palácios colossais",que definem não somente o lugar delaspróprias no mundo comercial, porém,cada vez mais, definem o espaço e o usoda cidade à medida que seus interessespor uma determinada área do territóriourbano está em consonância com os seusinteresses financeiros. No caso docomércio de bens culturais, os valoresestéticos e os valores financeiros se

unem, tanto na construção material comona construção simbólica, pois como seconstatou, no caso da citação, naocasião da inauguração da nova sede daGarnier a presença de Machado deAssis e sua obra foi de fundamentalimportância.

Talvez essas atitudes possibilitempensar na existência, já no Brasil dofinal do século XIX, possivelmenteinfluenciado pelas estratégiascomerciais existentes na Europaindustrial, de práticas que seintensificaram na indústria culturalpropriamente estabelecida no paísquando esse mesmo passou por umaonda crescente de industrialização. Com

a renovação da Garnier, procurou-seevidenciar e confirmar de uma vez portodas a excelência dessa casa editora nocomércio e na publicação de livros noBrasil, o que não se deu apenas napublicação de livros, mas na presençafísica da livraria na cartografia dacidade.

Nesse sentido, é válido transcrever umalonga passagem de Páginas desensação, de Alessandra El Far, poiscom essa citação fica clara aimportância da localização e do tipo decomércio que cada livraria e casaeditora realizava não somente no seumercado específico, mas tambémmarcando a cidade com um território

facilmente reconhecido comopertencente a um tipo de produto, deprática e de sujeito a ele relacionados.Antes de fazê-lo, porém, é valido citarque, em As regras da arte, PierreBourdieu propõe uma análise da Parisde A educação sentimental, de Flaubert,que considera a ocupação da cidade,seus espaços específicos, por sujeitosde igual especificidade. Como que numaestrutura triangular estão presentes trêsmundos: o dos negócios, o da arte e dosartistas de sucesso e o dos estudantes.

A respeito dessa estrutura e desseespaço "estruturado e hierarquizado"afirmou Bourdieu (1996, p.59): "que nãoé outra que não a do espaço social de A

educação sentimental" (ibidem, p.56).Leiamos, agora, a citação de El Far(2004, p.28-9):

A localidade das livrarias revelavao que era comercializado.Certamente, uma senhora queentrasse na Garnier ou Laemmertsabia de antemão poder encontrarnessas casas edições bem cuidadas,fosse de autores europeus, fosse deescritores brasileiros celebradospela crítica. Se essa mesmasenhora estivesse procurandopreços mais em conta, ou autorespouco conceituados pelosestudiosos da época, sem dúvida,ela tomaria um outro rumo.

Procuraria sair da rua do Ouvidorvisando perambular por suascercanias, onde visitaria os sebos,os alfarrabistas e os comerciantesde livros populares quecostumavam se estabelecer na"periferia" do requintado comérciode produtos vindos da Europa. Nãoera sem conhecimento de causa queo jornalista Lúcio de Mendonça, aomaldizer o romance de DantasBarreto, chamado MargaridaNobre (1886), afirmava que essetipo de literatura "pífia" destinadaa ir "para o rol das leituras parahomens", só poderia ter "algumsucesso de livraria na rua daUruguaiana ou de S. José". Com os

seus preceitos literários à flor dapele, Lúcio de Mendonça, que anosmais tarde encabeçaria o projeto defundação da Academia Brasileirade Letras (1897), em prol docultivo da língua e da literaturanacionais, mapeava, mesmo que demaneira breve, o comércio livreirorelacionando as ruas com o tipo delivro vendido. (grifos nossos)

Na década de 1890, o único grandeempreendimento da Garnier foiexatamente a publicação dos romancesnaturalistas de Aluísio Azevedo. Porém,se nessa mesma década a Garnier foimarcada por um declínio, deu-se nocenário brasileiro o surgimento de um

empreendimento nacional: a LivrariaModerna, de Domingos de Magalhães eCia., aquela que publicou A normalista,Bom-Crioulo, No país dos ianques eCartas literárias, títulos de autoria deAdolfo Caminha.Vale destacar, fazendouma ponte com a citação anterior, que aDomingos de Magalhães, quando dapublicação de A normalista, em 1893,localizava-se na rua da Quitanda, comopodemos constatar na folha de rosto docitado romance, mais precisamente nosnúmeros 3 e 5 daquela rua da capitalcarioca, como veremos a seguir. Porémantes, é importante considerar que, noBrasil do final do século XIX, nãoexistiam tantas possibilidades de fazer olivro circular. A maioria dos nossos

escritores, na intenção de alcançaremmelhores lucros, buscava conquistar apraça da capital, o que também ostornaria mais conhecidos. Mas ascondições materiais evidenciam-setambém na própria qualidade deimpressão dos livros, o que veremos aseguir, no caso específico das obras deAdolfo Caminha.

A epiderme dos livros

Essa abordagem dos aspectos gráficos emateriais dos livros nos faz retomar aquia leitura já referenciada de RobertoDarnton, que, ao analisar um marca dededo em um dos exemplares daEncyclopedie, de Diderot, pode traçar

algumas informações a respeito deBonnemain, um dos tipógrafos dessaobra capital do Iluminismo, e ainda olevou a afirmar a respeito da análise detodos os elementos do livro impresso:

Ao remontar da marca do dedo atésuas origens, podemos ver as vidasque estavam por trás do maior livrodo Iluminismo. A Encyclopedie foiuma obra intensamente humana,produzida por artesãos comoBonnemain, da mesma maneira quepor filósofos como Diderot. Elamerece ser estudada não só comotexto, mas também como um objetofísico, com falhas e tudo. (Darnton,1990, p.137)

Figura 1-Folha de rosto da primeiraedição do romance A normalista (Cenas

do Ceará). Fonte: Azevedo (1999,p.183).

Desse modo, são muitos os elementosque podem servir ao historiador ou aoestudioso da literatura nacional que seocupe de analisar as obras a partir desua materialidade. A esse respeitotambém se pronunciaram os já citadosRoche & Chartier (1995, p.110), aoanalisarem o título, a ilustração e atipografia, como elementos que servempara a escrita de uma história do livrocompreendida na sua possibilidade maisampla, sobretudo na perspectivainterdisciplinar:

O texto não encerra, pois, de modonenhum, todos os valores do livro,onde várias linguagens estãoinscritas: linguagem da ilustraçãoque se pode decifrar como umconjunto de sinais, porém tambémcomo o suporte pararepresentações ideológicas;linguagem da disposiçãotipográfica, cuja evolução, naépoca moderna, visando a umamais clara organização da leitura,traduz e propicia, à sua maneira, osprogressos de uma nova lógica.(ibidem)

À citação poderíamos juntar uma outra,

também de Chartier, em seu livro Aordem dos livros, que valoriza amaterialidade dos livros, não somentecomo suporte, mas como mantendorelações com o texto, formando nãoapenas duas partes separadas do objeto,mas um objeto que se materializa peloescrito e pelo impresso, compreendendocomo tal o conjunto de signos que oconstituem. Diz-nos Chartier (1999b,p.8):

Manuscritos ou impressos, oslivros são objetos cujas formascomandam, se não a imposição deum sentido ao texto que carregam,ao menos os usos de que podem serinvestidos e as apropriações às

quais são suscetíveis. As obras, osdiscursos, só existem quando setornam realidades físicas, inscritassobre as páginas de um livro,transmitidas por uma voz que lê ounarra, declamadas num palco deteatro. Compreender os princípiosque governam a "ordem dodiscurso" pressupõe decifrar, comtodo o rigor, aqueles outros quefundamentam os processos deprodução, de comunicação e derecepção dos livros (e de outrosobjetos que veiculem o escrito).Mais do que nunca, historiadoresde obras literárias e historiadoresdas práticas culturais têmconsciência dos efeitos produzidos

pelas formas materiais. No casodos livros elas constituem umaordem singular, totalmente distintade outros registros de transmissãotanto de obras canônicas quanto detextos vulgares. Daí, então, aatenção dispensada, mesmo quediscreta, aos dispositivos técnicos,visuais e físicos que organizam aleitura do escrito quando ele setorna um livro.

Desse modo, em nossa proposta deproblematização e análise da relação deAdolfo Caminha com os seus editores,destacaremos alguns elementos damaterialidade dos seus livros,notadamente das primeiras edições

quando ainda vivia o autor. Comoveremos a seguir, as capas ou folhas derosto foram aqui reproduzidas semretirar delas dedicatórias, nomes de seusproprietários, acréscimos deinformações como local e data depublicação e até mesmo riscos erabiscos. Isso se deu não somente poramor à suposta fidelidade da fonte e aum desejo, mesmo que inconsciente, dedizer a verdade, mas pelo fato de queesses elementos, supostamente menosimportantes na economia do texto,contribuem com a leitura e a escrita quefazemos. Esses também são elementosmateriais que resultariam na produçãoda literatura e como tal são aquiinvestigados.

Figura 2 – Folha de rosto de Voosincertos. Fonte: Biblioteca particular de

Sânzio de Azevedo.

O rosto de Judith

Em seu primeiro livro – Voos incertos –é visível a pouca qualidade dos tiposutilizados, a falta de uniformidadedesses, a sobreposição de elementos. Oque também acontece no caso de Judithe Lágrimas de um crente. Na sua folhade rosto, encontramos um anúncio datipografia de Serafim Alves, que chega aconcorrer com o título da obra. Nesseanúncio publicado num clichê emformato de livro aberto lemos em caixaalta: "GRANDE SORTIMENTO DELIVROS PARA ESCOLAS LYCEOS EACADEMIAS 6 RUA DO

SACRAMENTO".

O que nos leva a pensar, por exemplo,que o livro publicado era também umaforma de divulgação do próprio livro ede outros livros e objetos ligados aomundo da escrita, sendo aqueleendereço a indicação de onde elepoderia ser encontrado, e que carregavaem si o texto de um outro autor, umaespécie de texto publicitário, sem umaautoria definida, dando a conhecer aosleitores a existência de outros objetosligados às práticas da leitura e daescrita, e, no presente caso, não de umaleitura ou escrita qualquer, mas depráticas voltadas à formação escolar, oque nos leva a concluir que, mais do que

um clichê tipográfico, essa espécie deanúncio é a marca da presença de umoutro sujeito ou do interesse de outrossujeitos em convivência com o textoassinado, propriedade de um outro, quefoi tomada como seu suporte e difusão.O fato também de trazer o endereço datipografia evidencia a precariedade dassuas práticas de propaganda, que nocaso de casas editoras mais importantes,bem como no caso de livrarias maisestruturadas, eram feitas em anúnciosnos jornais de grande circulação nacapital do país ou nas capitais dasprovíncias.

A folha de rosto funcionando como umaespécie de peça publicitária, tanto do

livro como também de seu editor, podeser constatada pelo menos desde umaumento no grau de qualidade daimpressão e difusão dessa técnica, comopodemos constatar em Os lusíadas, deCamões. A propósito da folha de rosto,ou melhor, da portada afirmou DouglasC. McMurtrie (1982, p.575): "É umaparticularidade notável dos livrosimpressos nos primeiros anos datipografia não terem, quaseinvariavelmente, aquela característicafamiliar das obras modernas – a portada(rosto, frontispício)". Dorothée deBruchard (s. d.) a respeito da folha derosto dos livros, citando StanleyMorison, afirmou: "a história daimpressão é em boa parte a história da

folha de rosto". Ainda a respeito dafolha de rosto afirmou a citada autora:

As primeiras páginas de rostocompletas – onde constam título,nome do autor, ano da edição,dados do impressor – datam dasegunda metade do século XVI. Aantigüidade dava poucaimportância ao título ou nome doautor e, mesmo nas belíssimaspáginas iniciais decoradas que osceltas introduziram nos códicesmedievais a partir do séculoVII,constava apenas a tradicionalfórmula incipit liber – aqui inicia olivro – imediatamente seguida dotexto. (ibidem)

Ao longo da história da impressão, ocolofão, que vinha, e continua vindo, aofinal do livro, com as informações arespeito de sua edição, trazendo o nomedo autor e do editor, foi desvalorizado ea folha de rosto foi cada vez maisutilizada, pois ela é um dos primeiroscontatos do leitor com o livro. Emalguns casos, nela destacam-se o títuloda obra, o nome do seu autor ou do seueditor. Aos poucos, passou-se a utilizarilustrações que concorriam para avalorização do livro. As ilustrações dasfolhas de rosto eram dos mais diversosestilos: gótico, humanista, rococó,barroco, romântico, concorrendo, assim,para o que mais à frente chamou-se dedesign do livro.

A prática e o interesse comerciaisassimilaram muito rápido que a folha derosto e demais recursos poderiam ajudarna difusão do livro e, consequentemente,na sua venda. Atualmente, os recursosutilizados são mais simples e os maisdiversos. Recorre-se a linhas, recursosgeométricos, vinhetas, mas tambémprocura-se retomar, dada aespecificidade do conteúdo do livro, ouso de clichês antigos. O uso deilustrações, no caso das ediçõesbrasileiras, esteve sujeito,evidentemente, aos recursos dereprodução de imagens disponíveis paratal no Brasil.7

No caso do segundo livro de Adolfo

Caminha, a confusão de caracteres etipos é tanta que um dos primeirosregistros na grande imprensa carioca degrande circulação sobre a sua obra,comentou o fato nestes termos:

Publicou o Sr. Adolpho Caminha,em um volume, dous interessantescontos: Judith e Lagrimas de umcrente, que pela critica austeradevem ser recebidos com amagnanimidade que merece oauctor, jovem de 18 annos.

Apezar da muita pieguice que seencontra em qualquer d'essestrabalhos, muito natural em quemfaz as suas primeiras armas naslettras, revelam elles inspiração e

até mesmo um certo cuidado nafórma, uma certa elegância namaneira de dizer, prometteiores detrabalhos de maior valia litteraria.

Não desanime o jovem escriptor econtinue. Merece este conselhoquem nos dá tão boas primicias doseu trabalho.8

Em seu livro Adolfo Caminha (Vida eobra), Sânzio de Azevedo informou que,em 12 de dezembro de 1887, portantoum dia após o do registro feito, ArturAzevedo, sob o pseudônimo de Elói, oherói, em Novidades, também noticiou arecepção do mesmo livro do escritorcearense e o aconselhou que "não

mandasse mais imprimir livros namesma tipografia", uma vez que aqueleestava cheio de gralhas tipográficas. Atipografia em questão era a de SerafimAlves. Se o recado de Artur Azevedofoi para Adolfo Caminha, ele deviamesmo ter sido endereçado ao seueditor. No entanto, essa não é umasituação característica somente dasobras que os jovens escritores faziampublicar as suas expensas. EmanuelAraújo (1986, p.27), tratando daeditoração no Brasil, destacadamente noperíodo que ele nomeou como a segundafase desta prática, afirmou:

Desde meados do século XIX seestabeleceram no Brasil (em

particular no Rio de Janeiro)alguns europeus que fundariamcasas editoras de renome:Laemmert, Villeneuve, Leuzinger,Ogler, Garnier... Contudo, se éverdade que alguns traziamnovidades no concernente àimpressão de livros, poucoacrescentaram à técnica deeditoração. Em princípio do séculoXX as tipografias brasileirasachavam-se tão mal equipadas queas obras de autores como GraçaAranha, Machado de Assis, CoelhoNeto, Aluísio Azevedo, AfrânioPeixoto, Euclides da Cunha emuitos outros eram impressas naFrança (Paris, Poitiers) e em

Portugal (Lisboa, Porto).

Figura 3 – Folha de rosto de Judith.Fonte: Biblioteca particular de Sânzio

de Azevedo.

Vemos por essa citação e pelos demaiselementos aqui apresentados que ascondições materiais com que AdolfoCaminha deparou não eram as maisfavoráveis. As marcas dessa escassez derecursos gráficos estavam por toda partee tocavam sobretudo os escritoresiniciantes, que passavam a circular pelacidade, sobretudo em locais específicos,na busca de se fazerem conhecer. Assim,é preciso também percorrer com elesalguns destes locais.

Um mapa tipográfico da cidade

Tratando a respeito da localização docomércio livreiro no Rio de Janeiro,Alessandra El Far (2004, p.28) foi claraao afirmar: "As livrarias existentes nasruas da Quitanda, Uruguaiana,Gonçalves Dias, Sete de Setembro, S.José, da Assembléia, do Carmo, doRosário, do Ourives, com seus produtose novidades, estimulavam aconcorrência, sempre munidas deestratégias inovadoras para atrair osfregueses". Já a esse respeito é válidoacrescentar que no caso de AdolfoCaminha essa constatação é reforçadanão só pelo seu romance de estreia tersido publicado pela Domingos deMagalhães, como vimos anteriormente,mas também por seus dois primeiros

livros – Voos incertos (primeiraspáginas) e Judith e Lágrimas de umcrente – terem sido ambos publicadospor Serafim Alves, cuja tipografialocalizava-se no número 83 da rua Setede Setembro como é possível constatarna folha de rosto de ambas as obras.

A partir da observação dessas folhas derosto é possível também constatar umfato que demonstra a condição, pelomenos em parte, da profissionalizaçãodo mercado editorial no Brasil do finaldo século XIX. Devemos observar queSerafim Alves não era propriamente umeditor, pelo menos não nos termos emque entendemos hoje essa função e suaatuação no processo de produção do

livro, mas um tipógrafo-editor. Portanto,além de produzir livros, ele produzia,também, outros objetos impressos,sendo a sua atuação destinada a diversossujeitos e suas necessidades, o que nosparece completamente compreensívelpara o período. Esses sujeitos, com seusobjetos e suas práticas, não podem servistos a partir de um modelo ideal. Omodelo atual de editor é apenas mais umna longa série de existência dessafunção, estando, sobretudo hoje, mais doque nunca, submetida a mudanças e atransformações radicais mobilizadaspelo surgimento do suporte virtual.Roger Chartier (1999a, p.53),analisando o caso francês, afirmou:

Se olharmos para trás eobservarmos as figuras de"editores" dos séculos XVI eXVIII, de Plantin a Panckoucke, éclaro que não existe então umaautonomia similar da atividadeeditorial. Primeiro se é livreiro,primeiro se é impressor e, porquese é livreiro ou gráfico, se assumeuma função editorial. Deve-se falarentão, para ser preciso, de"livreiro-editor" ou de "gráfico-editor". O livreiro-editor dosséculos XVI, XVII e XVIII define-se inicialmente pelo seu comércio.

Essas ruas marcaram de tal modo a vidaliterária na capital federal, que Coelho

Neto (1921, p.85), em seu romance Aconquista, cujo enredo se passa porvolta de 1888, um pouco antes daAbolição da escravatura, faz um registroa partir da ideia, desenvolvida tambémno mesmo romance, de que: "As ruas doRio de Janeiro, como as de Paris,segundo Balzac, têm qualidades e vícioshumanos: ha ruas estróinas e ha ruaspacatas, ruas activas e ruas negligentes,ruas devassas e ruas honestas, umascujos nomes andam constantemente emnotas policiaes, outras que são citadasnas descripções elegantes". O mesmofez João do Rio (1997) na crônica ARua, de seu volume A alma encantadoradas ruas. Mas essa cidade tipográfica éuma forma de expressão do que se

convencionou chamar de a Repúblicadas Letras. Seus endereços, suas ruas,becos e vielas são frequentados porsujeitos que, de algum modo, guardamalgo em comum entre si: a literatura.Assim como toda República, essanecessitava de uma capital e, no casobrasileiro, a capital era também acapital do país: o Rio de Janeiro.

Rio de Janeiro, capital da Repúblicadas Letras no Brasil

Amanhã se der o carneiroO carneiroVou m'imbora pro Rio de JaneiroAmanhã se der o carneiroVou m'imbora pro Rio de Janeiro

As coisas vem de láEu mesmo vou buscarE vou voltar em video tapesE revistas supercoloridasPra menina meio distraídaRepetir a minha vozQue Deus salve todos nósE Deus guarde todos vós(Ednardo e Augusto Pontes,"Carneiro")

O trecho da letra da música "Carneiro",de Ednardo e Augusto Pontes, que servede epígrafe para esta seção é umexemplo da permanência do significadodo Rio de Janeiro para aqueles que,oriundos de outras regiões do Brasil,mais especificamente do Nordeste, já

existente como região distinta do Norte,pretendiam dedicar-se à carreiraartística na década de 1970. Não ésomente a letra que confirma esse fato, amelodia também, marcada pelos ritmosde origem nordestina como o baião e oforró, mistura-se aos traços rítmicos dageração que naqueles anos ficouconhecida no cenário musical brasileirocomo "Pessoal do Ceará". Na música,vemos que o Rio de Janeiro era o lugaraonde se ia, afinal, As "coisas vem delá" e de onde se voltava, mas emvideotapes e revistas supercoloridas.

No século XIX, estabelecendo aqui umapossibilidade de comparação, o Rio deJaneiro era o lugar para onde se ia e de

onde se vinha em livros, jornais erevistas. Mudaram os suportes, ascondições técnicas e materiais, mudou opúblico, mas o destino era ainda omesmo: o Rio de Janeiro. Foi para viverna então capital do país que AdolfoCaminha, nos idos anos da década de1890, deixou a capital cearense e a suaAracati natal. Lúcia Miguel Pereira(1988, p.123) afirmou a respeito do Riode Janeiro como destino dos homens deletras no Brasil dos séculos XIX e XX:

O Rio sempre foi, e é, antes umcentro receptor do que criador. Oque complica a situação é que,ainda não tendo a primazia dasiniciativas, é em regra ele que as

consagra e difunde. "A força donúcleo cultural do Rio assenta maisno seu poder de temperar e corrigiras demasias dos outros, do quepropriamente no seu poder decriação... Sem passar pelo filtro dasua crítica e da sua aprovação, asmensagens da província não têmpossibilidade de conquistar oBrasil" (183), notou um gaúcho. Oromântico José de Alencar, onaturalista Aluísio Azevedo e aatual geração de romancistas doNorte tiveram que vir para cá a fimde ganharem prestígio. Nasdiversas tendências que aqui seencontram, congregando-se oucombatendo-se, as dos nortistas e

sobretudo nordestinos, maisextrovertidos, e portanto mais aptosa observar, atuam em geral nosentido realista, ao passo que doCentro e do Sul chegamcontribuições mais marcadas pelainteriorização e pelo idealismo.Comparem-se, hoje, as obras dosnordestinos Rachel de Queiroz,José Lins do Rego e Jorge Amado,com as dos mineiros LúcioCardoso, Cornélio Pena e Ciro dosAnjos, e ver-se-á que se repetem asposições do momento em que ossimbolistas, vindos em regra doSul, lutavam com os naturalistasoriundos quase sempre do Norte.9

O que essa citação de Lúcia MiguelPereira indica é a existência de umatensão entre o centro e as periferias,entre a produção e a divulgação, o quetambém indica o funcionamento de umsistema literário e suas condiçõesmateriais de produção. No casoespecífico do Brasil, durante a primeiradécada da República, o Rio de Janeiroera, segundo José Murilo de Carvalho,"a maior cidade do país". Vejamos oque nos diz Carvalho (1987, p.13) sobrea capital do país naqueles tempos:

O Rio de Janeiro dos primeirosanos da República era a maiorcidade do país, com mais de 500mil habitantes. Capital política e

administrativa, estava emcondições de ser também, pelomenos em tese, o melhor terrenopara o desenvolvimento dacidadania. Desde a independênciae, particularmente, desde o iníciodo Segundo Reinado, quando sedeu a consolidação do governocentral e da economia cafeeira naprovíncia adjacente, a cidadepassou a ser o centro da vidapolítica nacional.

Além de uma psicologia das ruas,emprestando-lhes uma série demetáforas orgânicas, algumas descriçõesdão-nos a ideia de que a cidade eramapeada segundo os seus usos por

determinados sujeitos a partir de suaações cotidianas. No caso dos sujeitosletrados, a capital da República dasLetras seria como a capital dentro dacapital. As ações desses sujeitosconstituem um mapeamento da cidadedas letras, formada também designificantes, significados esignificações cuja origem não é senãooutra: a vida e a memória literária daentão capital do Brasil no final doséculo XIX para onde nossos letradoscorriam na esperança de se fazerempublicar. Obviamente que nem todosencontraram seu lugar à sombra, o quenão deixou, no entanto, de servir àliteratura como uma espécie de fontepara a história da literatura que não foi,

ou seja, da literatura que não encontrouseu lugar no cânone ou no gosto dosleitores.

A capital da República das Letras, nocaso brasileiro, estava longe do perfilideal. No caso específico do romance Aconquista, de Coelho Neto, a cidadeconstituída desse modo não é a cidadereal, mas a cidade vivida, aquela queguarda em detalhes de sua constituiçãofísica traços do vivido, que nada maissão do que uma atribuição simbólica porparte de grupos específicos, levandonosa recorrer a Angel Rama (1985, p.29):

Uma cidade, previamente à suaaparição na realidade, devia existirnuma representação simbólica que

obviamente só podia assegurar ossignos: as palavras, que traduziama vontade de edificá-la naaplicação de normas e,subsidiariamente, os diagramasgráficos, que as desenhavam nosplanos, ainda que, com maisfreqüência, na imagem mental quedesses planos tinham osfundadores, os que podiam sofrercorreções derivadas do lugar os depráticas inexpertas. Pensar acidade competia a essesinstrumentos simbólicos queestavam adquirindo sua prontaautonomia, que os adequaria aindamelhor às funções que lhesreclamava o poder absoluto.

É bem verdade que Angel Rama tratoudas cidades latino-americanas decolonização hispânica, no entanto épossível pensar que, no final do séculoXIX, no Brasil, havia sim a perspectivados intelectuais brasileiros de criar,sobretudo no Rio de Janeiro, uma novacidade, uma capital nacional das letras,uma República das Letras onde osintelectuais teriam o seu trabalhodevidamente reconhecido, sendoexatamente esse reconhecimento a maiorluta, tão importante quanto garantir onome para a posteridade e um sustentodigno.

Se essa cidade não podia ser construídana realidade, ela o foi, ao menos em

parte, na ficção. Ela também estápresente no desejo dos nossosescritores, o que é possível perceber nasentrelinhas do que já chamamos dediscurso do descontentamento. Em Aconquista, o descontentamento, aincerteza, a aventura de viver cada dia,as perdas e as pequenas vitórias dão-nosuma ideia do que se passava entrenossos intelectuais. Mais uma vez épossível pensar em como vivia AdolfoCaminha naquele período. Certamente,as palavras de Coelho Neto (1921), noprefácio de A conquista, intitulado de"Aos da caravana", o que nos dá a ideiade uma grande aventura intelectual, sãotambém aplicadas ao autor de Anormalista, que viveu no Rio de Janeiro

e onde publicou a maioria do seuslivros:

Triste, triste foi a nossa vida postoque de longe em longe, como umraio de sol atravessando nuvenstempestuosas, o riso viessepallidamente á flor dos nossoslábios. Mas chegamos, vencemos...Deus o quiz! E, se ainda nãotomamos de assalto a praça em quevive acastellada a indifferençapublica, já cantamos em torno e, aosom dos nossos hymnos, ruem osmuros abalados, e avistamos, nãolonge, pelas brechas, a cidadeIdeal dos nossos sonhos. (ibidem,grifo nosso)

É essa cidade ideal que parece estarescrita no descontentamento como umprojeto, que, se não se efetiva no real,como já dissemos, pelo menos em partese afirma na representação e nosimbólico. Coelho Neto, por exemplo,no seu já citado romance A conquista,além de nos dar uma ideia do que foi avida intelectual do Rio de Janeiro, queatraia vários escritores, sobretudo oschamados nortistas, como ele, traçouuma espécie de psicologia das ruas,como a rua do Senhor do Passos, a ruada Conceição, a rua Hadock Lobo, a ruaSete de Setembro e a rua do Ouvidor.Sobre a rua Sete de Setembro, afirmou:

A rua Sete de Setembro é uma

deslambida rameira que estropia alingua do paiz e escandaliza amoral; o seu collo tem placas, osseus lábios mostram a devastaçãophagendenica, o seu halitoenvenena. Taes ruas são comoessas flores noctilucas que sódesbotoam á noite e expandem oseu aroma; durante o dia caladas,entorpecidas modorram em flacidoe derreado abandono, bocejando.(ibidem, p.86)

A respeito da rua do Ouvidor, queclassificou de trêfega, lemos:

A rua do Ouvidor é trêfega.Durante o dia toda ella é vida eactividade, faceirice e garbo; é

hilare e gárrula; aqui picante, alémponderosa; sussura um galanteio elogo emitte uma opinião sizuda,discute os figurinos e commenta osactos politicos, analysa o soneto dodia e disseca o ultimo volumephilosophico. Sabe tudo – érepórter, é lanceuse, é corretora, écritica, é revolucionaria. Espalha anoticia, impõe o gosto, eleva ocambio, consagra o poeta, depõe osgovernos, decide as questões ápalavra ou a murro, á tapona ou atiro e, á noite, fatigada esomnolenta, quando as outras maisse agitam, adormece. Ouve-seapenas o rumor constante dosprelos nas offcinas dos jornaes. É a

rua que digere a sua formidavelalimentação diária para, no diaseguinte, pela manhan, espalharpelo paiz inteiro a substancia quecompõe a nutrição do grandecorpo, cada parte para o seudestino. Para o cérebro: as idéasque são incidentes politicos elitterarios e as descobertasscientificas, essas ficam com acasta dos intellectuaes; osentimento para o coração, que é amulher, essa tem o romance e aesmola, o lance dramatico e a obrade misericordia; o movimento dosportos e das gares para o ventre epara os braços do povo que devorae do commercio que abastece e o

residuo que rola, parte para oscemitérios, parte para os presídiosmortos e condemnados. Outros queanalysem a carta completa dacidade, eu fico nesta exposição.(ibidem, p.87-8)

Angel Rama chamou a atenção para osnomes das ruas, e nos casos aquiapresentados, pareceu-nos irônico queas ruas Sete de Setembro, data daIndependência do Brasil, e a rua doOuvidor correspondam, nareapresentação literária, à parte dacidade das letras, que é dependente eesquecida, Diz-nos Rama (1985, p.51):"os nomes das ruas já não pertencem asimples deslocamentos metonímicos,

mas manifestam uma vontade,geralmente honorífica, de recordaracontecimentos ou pessoas eminentes".Na rua Sete de setembro, a literaturanacional era dependente; na do Ouvidor,ela não era escutada. Esse tipo deafirmação era recorrente no tipo dediscurso que aqui chamamos dediscursos descontente. Adolfo Caminha,por exemplo, chamou a rua do Ouvidorde beco do Ouvidor onde, segundo ele,os nossos escritores dissipavam as suasforças na vida mundana.

Mesmo assim, não faltou a AdolfoCaminha a compreensão corrente erecorrente de que, naqueles idos anos dofinal do século XIX no Brasil, o Rio de

Janeiro era o norte da bússola doshomens de letras, o destino, o fim. Emseu artigo crítico, intitulado "Norte eSul", há inúmeras referências a este fato.Vejamos a primeira:

Compreende-se a necessidade quetêm os escritores de vir ao Rio deJaneiro completar a educação doespírito. Este fato é comum anortistas e sulistas, que trazem dosolo natal o que se não adquire emparte alguma: o temperamento, avocação, as tendências naturais.Aqui apenas recebem a educaçãomental definitiva, como uma pedrarara que fosse lapidada numagrande oficina. (Caminha, 1999a,

p.179)

Por essa citação, vemos que o Rio deJaneiro era o lugar aonde o homem deletras-pedra-bruta ia se tornar homem deletras-pedra-lapidada. As condiçõesintelectuais, que no pensamento deCaminha advinham do meio – "trazemdo solo natal o que não se adquire emparte alguma" – seriam polidas emelhoradas pelas condições materiais etambém intelectuais existentes em ummeio supostamente mais desenvolvido.Nesse sentido, a imagem da capital daRepública das Letras se confunde com ade "uma grande oficina" e o homem deletras com a de uma gema preciosa. Essavisão é confirmada por um trecho que

citamos a seguir:

Os filhos do Rio de Janeiro têmuma vantagem sobre o provinciano:é que nascem no meio dacivilização e logo em idadeprecoce, vão adquirindoconhecimentos e maneiras própriasdas grandes capitais e vão-sefamiliarizando, portanto, maisdepressa que aqueles, com osprocessos artísticos dominantes ecom as idéias gerais da época.(ibidem, p.112)

Mais uma vez, Adolfo Caminha recorreuà sua crença na civilização parajustificar a necessidade do homem deletras do seu tempo de ir ao Rio de

Janeiro. No entanto, como em todo ir evir, algo deveria, segundo AdolfoCaminha, permanecer intacto e esse algoera o talento do homem de letrasprovinciano:

O filho da província, por maistalentoso que seja, há deforçosamente completar a suaeducação artística num círculomaior, onde as suas faculdadespossam triunfar em comunicaçãocom as boas obras estrangeiras; otalento, porém, esse conserva-seoriginal e vigoroso, sem perdernenhum dos caracteres que odistinguem da inteligênciameridional. (ibidem, grifo nosso)

Vemos que ir ao Rio de Janeiro eraforçoso, ou seja, estava entre asobrigações do homem de letras. O meioacanhado da província o fazia deixá-lapara viver na capital da república efazer do Rio de Janeiro a capital daRepública das Letras. E em suajustificativa, Caminha ia além:

A educação intelectual é tãonecessária quanto a higiene docorpo. Todos os grande escritorese poetas foram homem de culturasuperior e de orientação literária.

O Rio de Janeiro é o nosso petitParis, o centro da vida nacional,por assim dizer a retorta em que seoperam as dinamizações artísticas;

do norte e do sul correm todos parao meio comum em que seestabelece a verdadeira luta pelaexistência e pela glória. (ibidem)

Por essas citações, vemos o Rio deJaneiro como uma oficina, depois comouma escola de educação artística e porúltimo como uma retorta, ou seja, uminstrumento usado em operaçõesquímicas, que, no caso dosprocedimentos intelectuais, serviriampara as "dinamizações artísticas", o quefaria dos resultados alcançados umaespécie de experimento cujoscomponentes viriam das atividades dohomem de letras da província na entãocapital da República das Letras. Essas

experiências acabaram por compor a suaformação. Essas são imagens criadaspor Adolfo Caminha para esse lugar deexcelência.Vemos que o espaço se uneao tempo e em ambos não hádesperdício de forças e atenção. AdolfoCaminha demonstrou compreender opapel do escritor em tempos deprodução em uma escala nascente deindustrialização dos bens de produção etambém da cultura, ainda que eu seucomeço.

Um breve balanço

De fato, caberá ao leitor julgar se,como creio (por tê-lo eu próprioexperimentado), a análise científica

das condições sociais da produçãoe da recepção da obra de arte,longe de a reduzir ou de a destruir,intensifica a experiência literária:como se verá a propósito deFlaubert, ela parece anular, deinício, a singularidade do 'criador'em proveito das relações quetornam inteligível, apenas paramelhor redescobri-la ao termo dotrabalho de reconstrução do espaçono qual o autor encontra-seenglobado e 'incluído como umponto'. Conhecer como tal esseponto do espaço literário, que étambém um ponto a partir do qualse forma um ponto de vista singularsobre esse espaço, é estar em

condição de compreender e desentir, pela identificação mentalcom uma posição construída, asingularidade dessa posição edaquele que a ocupa, e o esforçoextraordinário que, pelo menos nocaso particular de Flaubert, foinecessário para o fazer existir.(Bourdieu, 1996, p.14-15)

Nessa perspectiva, os estudosliterários podem ampliar seusignificado e contribuição,enquanto reflexão sobre ahistoricidade das obras artísticasindividuais e suas condições deprodução e consumo. E para isso,cabe entender cada texto na

materialidade de sua forma, qualseja, a de um texto convertido emlivro que se oferece tanto paraconsumo, quanto para leitura.

Eis nosso ponto de chegada, que éigualmente ponto de partida parauma Teoria da Literatura que nãose queira nem idealista, porsacralizar o texto, nem caolha, porter dificuldade de enxergar osmeandros da vida literária, que seestendem para além das relaçõeslineares entre autor e obra. (Lajolo& Zilberman, 2001)

Essas citações servem-nos comonorteadoras do que procuramosdesenvolver nesta parte do trabalho:

compulsar elementos materiais quedessem a ideia de como a obra deAdolfo Caminha foi publicada. Não nosprendemos às estatísticas ou aos dadossobre a quantidade de editores, onúmero de periódicos existentes etc.,mas destacamos aqueles elementos que,ligados à obra de Caminha, nospossibilitaram conhecer a capacidade depublicação dos nossos autores,capacidade essa variante e mediada porforças diversas formadoras do nome eda figura do autor, sendo essas tambémvariáveis, sobretudo no caso daquelesmenos consagrados. Entraram em cena,portanto, elementos como o tempo, ométodo de trabalho, as qualidade deimpressão, a constituição de um espaço

propício à circulação e ao consumo delivros, bem como propício à formaçãodos nossos homens de letras segundo oscritérios da época.

Acreditamos que elementosfundamentais foram aqui trabalhados. Oleitor também poderá fazer as suaspróprias buscas e, assim, acrescentar aoconteúdo até então trabalhado outrasvariantes materiais. No entanto, no casodas obras literárias, as condiçõesmateriais não são as únicas com as quaisesses homens votados às letras deveriamlidar. Havia também condiçõesintelectuais que eles deveriammanipular. Essas condições estãoexpressas nas ideias e nos conceitos

correntes à época, nas posiçõesdefendidas não somente na literatura ousobre a literatura, mas na sua relação, ouseja, na relação da literatura com outrossaberes, notadamente os saberescientíficos, com os quais os homens deletras daquele período do século XIXprocuraram lidar. Adolfo Caminha,assim como outros naturalistas, nãodeixou de louvar a relação entre ciênciae arte. Finalizada essa etapa, passamosàs condições intelectuais de produçãoda literatura brasileira de parte doséculo XIX.

As condições intelectuais

Se sintieron libres frente a todoslos poderes; cortejaron todos lospoderes. Se entusiasmaron con lasgrandes revoluciones y, también,fueros sus primeras víctimas. Sonlos intelectuales: uma categoriacuya existencia misma hoy es unproblema.

(Beatriz Sarlo, Escenas de la vidaposmoderna: "Intelectuales, arte yvideo cultura em la Argentina)

El intelectual es un personajebidimensional: sólo existe ysubsiste como tal si, por umaparte, existe y subsiste un mundointlectual autónomo (es decir,independiente de los poderes

religiosos, político, económicos),cujas leyes específicas respeta, ysi, por otra parte la autoridadespecífica que se elabora em esteuniverso a favor de la autonimíaestá compromtida em las luchaspolíticas.

(Bourdieu, "Intelectuales, políticay poder")

Se o problema é antigo, o nome érelativamente recente...

(Norberto Bobbio, "Osintelectuais e o poder: dúvidas eopções dos homens de cultura nasociedade contemporânea")

Sim, não tenho classe social,marginalizado que sou. A classealta me tem como um monstroesquisito, a média comdesconfiança de que eu possadesequilibrá-la, a classe baixanunca vem a mim.

(Clarice Lispector, A hora daestrela)

O modernismo de 1870 ou aprendendosumariamente com os sumários

Quando Adolfo Caminha publicou osseus primeiros textos críticos no Rio deJaneiro, que datam, como já vimos, de1885, fazia quinze anos que se iniciara,no Brasil, uma movimentação de ideias

e uma renovação de pensamento, queJosé Veríssimo, em sua História daliteratura brasileira, publicadapostumamente em 1916, chamou de"modernismo". A propósito de como seimplantou esse modernismo no Brasil,afirmou Veríssimo (1954, p.282):

O movimento de idéias que antesde acabada a primeira metade doséculo XIX se começara operar naEuropa com o positivismocomtista, o transformismodarwinista, o evolucionismospenceriano, o intelectualismo deTaine e Renan e quejandascorrentes de pensamento, que,influindo na literatura, deviam pôr

termo ao domínio exclusivo doRomantismo, só se entrou a sentirno Brasil, pelo menos, vinte anosdepois de verificada a suainfluência ali.

Mesmo tendo iniciado suas armas nasletras, como então se costumava dizer, oque nos faz entender que se lançar nessacarreira não era uma tarefa fácil, muitosanos após o modernismo do século XIX,Adolfo Caminha foi um dos seusherdeiros. As obras publicadasposteriormente à História da literaturabrasileira, de José Veríssimo,referiram-se a esse momento não maiscomo modernismo, mas sim comorealismo e naturalismo ou com outras

denominações mais claras e próximasdas que hoje utilizamos. NelsonWerneck Sodré em sua História daLiteratura brasileira: seusfundamentos econômicos, publicada em1938, chamou de "Reação anti-romântica – a crítica" e "O episódionaturalista".

Lúcia Miguel Pereira, em sua Históriada literatura brasileira: prosa deficção: de 1870 a 1920, utilizou o termo"Pesquisas Psicológicas" para tratar deMachado de Assis e Raul Pompéia, e"naturalismo" no qual localizou AluizioAzevedo, Inglês de Souza e AdolfoCaminha. Alfredo Bosi em sua Históriaconcisa da literatura brasileira, cuja

primeira edição data de 1970, utilizou otermo "realismo" incluindo nele onaturalismo e dele saltando para tratardo simbolismo. Luciana StegagnoPicchio, cuja La letteratura brasiliana,escrita originalmente em italiano epublicada em 1972, teve sua primeiraedição em português publicada em 1997com o título de História da literaturabrasileira, utilizou o termo "realismo"associado ao termo sociabilidade paranomear o capítulo de sua História daliteratura brasileira como: "O SéculoXIX: Sociabilidade e Realismo". JoséAderaldo Castello em A Literaturabrasileira: origens e unidade (1500-1960), cuja primeira edição é de 1999,utilizou a junção das duas escolas ou

estéticas, resultando em realismo-naturalismo.

As ideias expostas por aquelemovimento de renovação que se deu nosidos anos do século XIX, asencontramos também nas páginas doconjunto da obra caminhiana. Como jádissemos, Adolfo Caminha é umexemplo de herdeiro da primeirageração de homens de letras que veiologo após aquela geração chamada de"Geração de 1870". Vale destacar queesse termo foi igualmente usado emPortugal para congregar aqueles autoresque se opuseram ao romantismo emterras lusitanas, entre eles destacava-seEça de Queiroz, cuja obra esteve muito

presente no Brasil do período em causa.Já Afrânio Coutinho (1975, p.181),citando Carlton Hayes, chamou estageração de "geração materialista" aoafirmar:

De modo geral, 1870 marca nomundo uma revolução nas idéias ena vida, que levou os homens parao interêsse e a devoção pelascoisas materiais. Uma geraçãoapossou-se da direção do mundo,possuída daquela fé especial nascoisas materiais. É a geração domaterialismo", como a denominou,em um livro esplêndido, ohistoriador americano CarltonHayes. A revolução ocorreu

primeiro no espírito e nopensamento dos homens e daípassou à sua vida, ao seu mundo eaos seus valôres. Intelectualmente,a elite apaixonou-se do darwinismoe da idéias da evolução, herança doromantismo e, de filosofia, odarwinismo tornou-se quase umareligião; o liberalismo cresceu edeu frutos, nos planos político eeconômico; o mundo e opensamento mecanizaram-se, areligião tradicional recebeu umferoz assalto do livre-pensamento.

Lúcia Miguel Pereira, em sua obra jácitada, chamou a atenção para o fato deque essa reforma do pensamento e da

estética literária chegou atrasada noBrasil em relação à Europa, o que podejustificar o fato de as tais ideias seremencontradas na geração de homens deletras da qual fez parte Adolfo Caminha.Esse mesmo atraso já o diagnosticaraJoséVeríssimo, como o vimos emcitação. Vejamos o que afirmou LúciaMiguel Pereira (1988, p.119):

O atraso com que foi aqui adotadoo realismo é um sintoma doalheamento dos escritores de entãonão só ao mundo, mas às condiçõesdo país. E também da maiorcorrespondência entre o nossofeitio e atitude idealista.

Ao embate das novas idéias e

condições de vida suscitadas peloprogresso científico e industrial doséculo XIX, desde muito caducaraem França, nosso figurino literário,o romantismo que aqui teimava emviver. O Guarani é do mesmo anoda publicação de Mme. Bovary,anteriormente divulgado por umarevista de grande prestígio. Zola jácomeçara a série dos Rougon-Macquart quando Taunay escreveua Inocência. O darwinismo, oevolucionismo, o positivismo, osocialismo que formavam aestrutura do pensamentocontemporâneo, modificando osconceitos filosóficos, literários esociais, levaram mais de vinte anos

para atravessar o Atlântico. "NoRio de Janeiro, só de 1874 emdiante é que, pela primeira vez, osnomes de Darwin e Comte forampronunciados em público, emconferências ou escritos" afirmaSílvio Romero. E já vimos como sóna década de 80 se modifica demodo sensível o nosso panoramaliterário.

Por essa citação, vemos que AdolfoCaminha começou a escrever e ter seustextos publicados exatamente nomomento em que as ditas ideiasrenovadoras encontravam no Brasil oseu ápice: a década de 1880. Ainda aesse respeito afirmou Lúcia Miguel

Pereira:

Entretanto – lembremo-lo mais umavez, – desde 1870, a inquietaçãopolítica, que sucedera à relativaestabilidade dos primeiros trintaanos do reinado de D. Pedro II, eraum reflexo do espírito racionalistada época. Mas enquanto os homensde ação pública se agitavam,redigiam o manifesto republicano,iniciavam a campanhaabolicionista, os romancistas, emsua maioria, continuavam aescrever como se nada mudara adespeito das incertas tendênciasapontadas nos capítulos anteriores."Os livros de certa escola

francesa", verificava com alegriaMachado de Assis, tão infenso aorealismo quanto, mais tarde, fiel àrealidade, "ainda que muito lidosentre nós, não contaminaram aliteratura brasileira, nem sinto nelatendências para adotar as suasdoutrinas, o que já é notávelmérito. As obras de que falo foramaqui bem-vindas e festejadas, masnão se aliaram à família nemtomaram o governo da casa. Osnomes que principalmente seduzema nossa mocidade são os doperíodo romântico; os escritoresque se vão buscar para fazercomparação com os nossos –porque há aqui muito amor a essas

comparações – são ainda aquelescom que o nosso espírito seeducou, osVictor Hugos, osGautiers, os Mussets, os Gozlans,os Nervals". Não via no romancequalquer preocupação política ousocial: "Esta casta de obrasconservase aqui no puro domínioda imaginação, desinteressada dosproblemas do dia e do século,alheia às crises sociais efilosóficas. Seus principaiselementos são, como disse, apintura dos costumes, a luta daspaixões, os quadros da natureza,alguma vez os estudos dossentimentos e dos caracteres".Errada no vaticínio, era entretanto

justa e fiel, no tocante ao presente –1873 – a exposição de Machado.Note-se a sua afirmativa de queeram lidos e festejados os livros acujas tendências se mantinhamrefratários os romancistas; é o casotalvez único, o de uma revoluçãoliterária aceita antes pelo públicodo que pelos escritores. (ibidem,p.120)

Outro aspecto que foi merecedor deespanto e do seu registro na nossahistoriografia literária é o fato dessarenovação não vir do Sul do Brasil, masdo Norte. Como disse a já citadaLuciana Stegagno Picchio, comoveremos mais à frente: "A revolução

vem do Norte". O que nos faz lembrar aspalavras de Tobias Barreto, ele mesmoum dos nortistas que propagandearam asnovas idéias: "São os do norte quevêm!...".

João Alexandre Barbosa (1974, p.27-8)também reforçou essa compreensão deque do Norte do país vinham as novascorrentes de pensamento quemodificariam a compreensão do Brasil,dos fenômenos sociais e da próprialiteratura, como é possível constatar nacitação a seguir:

Não é menos certo, todavia, o fatode que, aqui e ali, em algunsmovimentos provincianos, se iaassistindo ao aparecimento de um

esforço renovador que nos pusesseem dia com a evolução dopensamento europeu e que, aomesmo tempo, adequasse o novomodo de ver o país as formas decriação e reflexão literáriastambém novas. São exemplos aEscola de Recife, de TobiasBarreto e Sílvio Romero, aAcademia Francesa do Ceará, deAraripe Júnior, Rocha Lima eCapistrano de Abreu, entre outros,ou mesmo a obra precursora deInglês de Souza, tendo por cenárioo norte do país.

Se Afrânio Coutinho, citando Hayes,conceituou esta geração como geração

materialista", como vimosanteriormente, João Alexandre Barbosa,em vez de utilizar a conceituação de"Geração de 1870" como forma deaglutinar nomes e suas compreensõesmais díspares, preferiu chamar aquelesnomes envolvidos no processo derenovação mental de "Uma geraçãocontestante", designação que lhe serviude título para um capítulo do seu livro jáaqui referenciado. Considerando afuncionalidade do título do dito capítulopara o desenvolvimento da tese quedefendera, afirmou Barbosa:

Em segundo lugar, a expressão queserve para o intitular tem oobjetivo de funcionar como

definição para o que se temdenominado de "geração de 70",isto é, aquela geração deintelectuais que, nas maisdiferentes regiões do país e porintermédio dos mais diversosmeios de participação, se constituiuo porta-voz daquilo a que o próprioVeríssimo chamaria, mais tarde, de"espírito novo" ou "modernismo"de nossa evolução cultural.(ibidem, p.77)

Ainda que na primeira citação Barbosatenha de certo modo relativizado asações do que chamou de "algunsmovimentos provincianos", ele foi claroao afirmar a propósito da atuação da

Escola do Recife e da AcademiaFrancesa do Ceará:

Por isso mesmo, ao lado da Escolado Recife e da Academia Francesado Ceará, os primeiros núcleosindiscutíveis nesse processo derenovação, devem-se situar nãoapenas a atividade desenvolvidapor um Carlos Kosseritz, no RioGrande do Sul, mas quer os ensaiosiniciais de José Veríssimo, quer ogrupo de ficcionistas, historiadorese etnográfos reunidos em torno daRevista Amazônica, todos elesdecididos à formulação de umanova linguagem crítica. (ibidem,p.78)

Vemos por essa citação que JoãoAlexandre Barbosa estabelece outroseixos possíveis para a compreensãodaquele movimento fomentador de novasideias: o Norte, hoje conhecido porNordeste, o Sul e o norte amazônico oumais diretamente o Pará, onde viviaJosé Veríssimo. Ainda assim, essacompreensão destaca a renovação dageração de 1870 ou da "geraçãocontestante", como a chamou JoãoAlexandre Barbosa, ancorada em maresdo norte. Mas é também de JoãoAlexandre Barbosa (1983, p.21) quedestacamos aqui a compreensão arespeito dos termos moderno emodernismo. A esse respeito, ponderouo crítico:

Uma vez que a noção de períodosliterários não seja utilizada porforça de uma, por assim dizer,paralisia cronológica, levando àscaracterizações setoriais enganosase redutoras, é possível dizer que ochamado Modernismo na LiteraturaBrasileira ainda espera por umaespecificação essencial: em quemedida é possível caracterizá-locomo moderno, vale dizer, comomomento instaurador de umaruptura com relação ao modeloliterário oitocentista. (ibidem)

Barbosa desfazendo-se do que chamoude "paralisia cronológica" expandiu oconceito de moderno ao apontar como

modernos Machado de Assis, Oswaldde Andrade, Mário de Andrade,Graciliano Ramos, Guimarães Rosa eClarice Lispector. Desse ponto de vista,percebemos que é possível aprender,ainda que sumariamente com ossumários, colocá-lo como parteimportante na nossa análise, uma vezque neles, de modo sintético, oconhecimento literário é organizado,indicando, por exemplo, os pressupostosque guiaram a escrita de uma ou de outrahistória da literatura brasileira.

A plasticidade dos termos usados, comomoderno e modernismo, é um exemplode que a história da literatura tambémtem uma história como há também uma

história o modo como a recebemos. Nocaso específico da história dasmudanças ocorridas a partir da chamada"Geração de 1870" foi com admiração eespanto que nossos historiadoresliterários registraram o fato de que asditas mudanças vinham do Norte.

Admiração e espanto

E o clamor ia engrossandoNum retumbar formidandoPelas cidades além...– "Que foi?" as gentes falavamE eles pálidos bradavam:– "São os do norte que vêm!"(Manuel Bandeira, "Osvoluntários do Norte")

Esse trecho do poema "Os voluntáriosdo Norte", de Manuel Bandeira, escritopara marcar a admiração com que foramrecebidos os escritores do chamadoromance de 1930 no Nordeste, é maisum exemplo do espanto e do seu registrocom as inovações vindas do que sechamava e ainda se chama de Norte. Nofluxo e refluxo de ideias, na relaçãoentre permanência e modificação, algode comum parece ter continuidade, o quenão é diferente com a vida intelectual.Espera-se sempre que ideias adiantadasvenham das regiões igualmenteadiantadas do país, adiantadas, é claro,em termos econômicos, uma vez que secreia que a atividade econômicaprepondere ou colabore sobre e com as

demais atividades.

Essa dupla – admiração e espanto –pode ser constatada em vários momentosna história intelectual, cultural e políticabrasileiras, seja no século XX ou emséculos anteriores. Assim, voltemos aosúltimos anos da segunda metade doséculo XIX. Vejamos o que disse LúciaMiguel Pereira (1988, p.120-1),tratando do desinteresse dos escritoressulistas pelas ideias que há muito emvoga na Europa:

A estes, [os escritores que jápontificavam nas letras do Brasil]nem os movimentos nitidamenteintelectuais e nacionais, como osda chamada "Academia Francesa"

do Ceará ou da Escola de Recife,lograram despertar. A ambosanimava o espírito moderno,curiosos das idéias novas queagitavam a Europa; em Fortaleza eem Recife, o racionalismodeslumbrava cenáculos de moços.A "Academia Francesa"influenciada, aliás, pelo surto doRecife, nasceu da questãoreligiosa, tendo os seus membrostomado ardorosamente o partidodos maçons; o nome de seu jornal,Fraternidade, é sintomático. SilvioRomero, do grupo do Recife,assegura que em 1869-1870"compreendeu a extenuação e morteinevitável do romantismo e lançou

os germes de outra fórmula literáriapara a poesia, para o romance, paraa arte em geral". Germes que, nocaso do romance, levaram umtempo excessivo a se desenvolver.

Antonio Candido (1988, p.32) em Ométodo crítico de Sílvio Romeroafirmou a respeito:

Graças à divulgação das novasidéias sobre filosofia e literatura,formou-se no Brasil, no decênio deSetenta [1870], uma geração detendências eminentemente críticas,animada do desejo de esquadrinhara cultura nacional e dar-lheorientação diversa. Um verdadeiromodernismo, como o apelidou José

Veríssimo, cujo foco principal foi acapital de Pernambuco. [...] Parecefora de dúvida que a divulgação dopositivismo, do evolucionismo e dacrítica moderna no Brasil seprocessou, senão a princípio, pelomenos mais intensamente noRecife. Os primeiros trabalhos emque encontramos sinais da novacrítica são os de Sílvio Romero,Celso de Magalhães, Rocha Lima,Capistrano de Abreu e AraripeJúnior, os últimos três pertencendoao grupo que se formou no Ceará,mas tendo os seus componentesestudado antes naquela cidade.

Tratando da difusão das novas ideias a

partir de Pernambuco e considerandoespecificamente da participação doscearenses e da atuação da AcademiaFrancesa do Ceará afirmou Candido:

Parece certo, portanto, ter-seconstituído em Pernambuco oprimeiro ambiente em quecirculavam as idéias novas; oscearenses, antes de formarem o seugrupo passaram pelo Recife naépoca em que começavam omovimento crítico – o que nãoquer dizer que não tenham sedesenvolvido por conta próprianem que hajam sido discípulos deTobias e Sílvio, como este pareciainsinuar. Pudemos ver, no entanto,

que a formação de todos elesseguiu caminho idêntico. (ibidem)

Também Luciana Stegagno Picchio(1997, p.252) afirmou a preponderânciado Norte na divulgação das novasideias. No item "A revolução vem doNorte", lemos:

A verdadeira revolução vem, noentanto, desta vez, do Norte:daquele Ceará onde a chamada"Academia Francesa do Ceará",entre 1872 e 1875, reunira em tornode personalidades como Capistranode Abreu e Araripe Júnior e sob aégide de Taine, Comte e Spencer asaspirações filosófico-intelectuaisda juventude de Fortaleza...

Que a revolução veio do Norte, isto já osabemos pelas citações expostas e peloscomentários que fizemos. No entanto, éimportante destacar aqui, como, emtermos práticos, essa revolução dopensamento se deu, quais contribuiçõesse efetivaram entre o conjunto de ideiaspropostas. No capítulo dedicado aoAdolfo Caminha-leitor veremos pelorepertório de leituras a presença dessasideias. De agora por diante, o presentecapítulo tem o objetivo de dar ao leitoruma ideia das condições intelectuais deprodução da literatura brasileira no finaldo século XIX, ou seja, de demonstrarquais eram as ferramentas, os conceitos,as categorias, os direcionamentos, as

perspectivas de construção do textoficcional no período citado.

A apresentação dessas ideias sejustificam por serem elas o alicerce emque se assentou um pensamento novo naliteratura brasileira de então,destacadamente no caso do naturalismo,que se destacou do realismo pela adesãoàs ideias científicas então vigentes.Furst e Skrine tratando das diferençasentre estas estéticas literárias apontarama tentativa de aplicação "à literatura asdescobertas e métodos da ciência doséculo XIX", chamando esse fato de"afinidade com a ciência" como oprincipal critério de distinção entre asduas estéticas que também comumente

encontramos unidas nos sumários dashistórias da literatura.

Além disso, os citados Furst & Skrine(1971, p.19-20) consideraram que "Osseus pressupostos biológicos efilosóficos separaram-nos dos Realistas,com a sua objectivade imparcial, pois,ao observar a vida, os Naturalistasesperam já encontrar nela um certopadrão". É também sabido que onaturalismo como forma de ver o mundoe estética literária foi fortementemarcado pelas ideias advindas daRevolução Industrial, entre elas está umnovo olhar do homem para si mesmo,olhar esse que procurou diferenciar-sedo olhar romântico. Foi nesse caldeirão

de transformações e permanências, desituações atravessadas por forçasdiversas que o conjunto da obra deAdolfo Caminha foi gestado.

Infelizmente, não podemos aqui traçarum panorama linear e pormenorizado daformação do escritor em causa, que sedeu na então Escola de Marinha na qualfora matriculado em 1882: "'Por avisodo Ministério da Marinha de 1882, foimandado matricular no primeiro ano daEscola de Marinha como praça deaspirante a guarda-marinha', comoconsta na cópia de assentamentosreproduzida por Gastão Penalva"(Azevedo, 1999, p.18-19). Desse seutempo vivido na então escola da Ilha das

Enxadas, que hoje sedia o Centro deInstrução AlmiranteWandenkolk(CIAW), sabemos por Sânzio deAzevedo, já esse por sua vezfundamentado em Gastão Penalva, queAdolfo Caminha estudou aritmética,álgebra, história e geografia, alcançandonessas matérias o grau 6, como se diziaentão; estudou também geometria,desenho linear, português, francês,inglês, ginástica e natação, tendoalcançado, respectivamente, os graus 5,4, 3, 1 e 4. Depois desse período,Adolfo Caminha voltara a Fortaleza em1888 aos 21 anos de idade onde ficouaté 1892. Em dezembro desse anoretornou definitivamente ao Rio deJaneiro onde faleceu em 1897 já não

mais como membro da Marinhabrasileira.

O período que vivera em Fortaleza(1888-1892) pode parecer pouco, noentanto é importante lembrar que AdolfoCaminha faleceu muito jovem, com trintaanos incompletos. Além disso, aqueleperíodo foi marcado no Brasil pelaAbolição dos escravos e Proclamaçãoda república; no Ceará, tratandoespecificamente da literatura e dopensamento locais, destacamos ainstalação do Clube Literário, em 1888,que, segundo Sânzio de Azevedo,congregava "escritores românticos aolado de outros que já seguem a novatendência", leia-se esta nova tendência"

como o realismo; e a instalação daPadaria Espiritual, da qual fez parteAdolfo Caminha com o pseudônimo deFelix Guanabarino.

Já aqui destacamos um fato importantena vida literária do Ceará daqueleperíodo: o forte caráter associativos doshomens de letras cearenses, o hábito dacriação de grupos, agremiações esociedades. Até meados do século XXessa foi uma condição material eintelectual de tudo quanto se produziuem termos de letras no estado. Por essemotivo destacaremos a seguir trêsagremiações importantes: a AcademiaFrancesa do Ceará, o Clube Literário e aPadaria Espiritual.

Achamos por bem tratar do quepoderíamos chamar de berço das novasideias no Ceará – a Academia Francesado Ceará – já aqui referida nas citaçõesanteriores, pois, mesmo que AdolfoCaminha não tenha feito parte dela, umavez que suas atividades se iniciaram em1873 e foram concluídas em 1875,quando o futuro escritor era aindacriança e vivia sob os cuidadosfamiliares em sua Aracati natal. Mesmoassim, quando retornou a Fortaleza noano já citado, Caminha encontrou acidade já de algum modo atravessadapelas ideias que foram difundidas pelosmembros dessa agremiação, ideias essasresponsáveis por um novo pensamentoque se distinguia do modo de ver o

mundo, a sociedade e o homemdistintamente do romantismo.

Une Académie Française au Ceará

Quanta ilusão! quanta força,quanta mocidade!

(Capistrano de Abreu in Crítica eliteratura).

Foi com essas palavras, que nos servemde epígrafe, que o inicialmente críticoliterário e depois historiador JoãoCapistrano de Abreu escreveu a respeitoda Academia Francesa do Ceará, noprefácio à Crítica e literatura, volumeno qual foram reunidos artigos deRaimundo Antônio da Rocha Lima, seu

companheiro de agremiação. Capistranode Abreu (1968, p.82) as escreveu emsetembro de 1878 e Rocha Limafalecera em 28 de julho daquele mesmoano. Sobre a perda do amigo, declarou:"apagou-se a mais fulgurante estrêla doCeará". O prefácio é, portanto, umbalanço daquela época, um escrito desaudade, a memória de um movimentoque se iniciara em 1873 e findou-se em1875, como já o dissemos: a AcademiaFrancesa do Ceará, uma espécie deassociação sem sede, uma vez que assuas reuniões realizavam-se "ora emcasa de Tomás Pompeu, ora de RochaLima" (Azevedo, 1976, p.71).10 Essemesmo o responsável pelo seu nome:

A designação de "AcademiaFrancesa", dizem, nasceu de umgracejo de Rocha Lima, já talveznos últimos tempos da novaagremiação, inspirado ele no fatode todos beberem as novasdoutrinas principalmente na França,ao passo que a chamada Escola doRecife, de Tobias Barreto e SílvioRomero, era francamentegermanófila. (ibidem, p.71)

Aquelas palavras de Capistrano deAbreu marcam bem o que significou aagremiação: eram eles os "modernos",como os designou Celeste Cordeiro(1997). Eram esses "modernos" umageração de jovens formados pela

contestação, postura que marcoufortemente a década de 1870, aquelamesma década que renovara mental eespiritualmente parte significativa doshomens de letras do final do século XIXno Brasil. "Geração de 1870", "Geraçãomaterialista", "Geração contestadora",quanto ao uso do termo "geração", esseparece bem empregado, pois, comoveremos adiante, os membros daagremiação, quando do funcionamentode suas atividades, não passavam dostrinta anos. Uma geração cujoconhecimento teve seus fundamentos emideias francesas então correntes. Arespeito dessas ideias e suas influênciasafirmou Afrânio Coutinho (1975, p.191):

Deve-se à influência francesa apenetração das idéias "modernas"do século XIX no Brasil. Foi largae profunda a influência francesa.Os ideais do século, os princípioslibertinos e sediciosos, a "maniafrancesa", sacudidos pelaRevolução, pelo Iluminismo, pelomovimento crítico da Enciclopédia,traduzidos em doutrinas delibertação filosófica, deracionalismo, de materialismo, deemancipação política e social, nosentido nacionalista, abolicionistae republicano, desde cedo noséculo varriam o país de norte asul. Os canais de circulação dasidéias naquela época funcionavam

eficazmente por tôda a parte, entreêles a maçonaria, instrumentopoderoso e tenaz de propagação eagitação de doutrinas. Era ela queconcorria para favorecer acirculação clandestina de livrosproibidos, "sediciosos", que, adespeito da vigilância dos órgãosde censura, tinham curso peloBrasil inteiro, constituindo ricas efamosas bibliotecas, como a do Pe.Agostinho Gomes, na Bahia, a doCônego Luiz Vieira da Silva, emMariana, como mostrou EduardoFrieiro, em O Diabo na Livrariado Cônego, a respeito do segundo.

Nessa citação de caráter geral, exceto

no caso da Bahia e da cidade mineira deMariana, vemos relações diretas com aAcademia Francesa do Ceará: a ligaçãocom as ideias "modernas", a ligaçãocom a maçonaria, que, no caso cearense,era a responsável pelo jornalFraternidade. Chamou-nos tambématenção o fato de Afrânio Coutinhoinformar a origem dos livros que eramlidos pela nova geração. À época daAcademia Francesa, como informouCeleste Cordeiro (1997, p.88) a partirde dados do ano de 1870, já funcionava,em Fortaleza, a Biblioteca Pública,fundada em 1869. Nela, constavam5.543 volumes, sendo eles assimdistribuídos: 1.152 de literatura, 945 dehistória, 520 de ciências e artes, 255 de

teologia e 250 de direito.

Ainda segundo Celeste Cordeiro,"somente em 1849 foi que Fortalezaconheceu uma espécie de livraria, docomerciante português Manuel Antonioda Rocha Júnior" (ibidem). SegundoAlcantara Nogueira (1978, p.26), nesseestabelecimento os livros ficavam emuma sessão "destinados à venda e aoaluguel". Diante desses fatos, podemosconsiderar que as ideias francesas,presentes em livros, chegavam ao Cearáprovincial via maçonaria, além, é claro,dos homens de letras do período teremas suas bibliotecas particulares.

Para Sânzio de Azevedo (1976, p.70), aAcademia Francesa "representou a

primeira reação ao Romantismo noCeará". Talvez, Azevedo esteja falandoda reação às ideias românticas e não doromantismo como estética literária, poislogo em seguida ele afirmou: "É verdadeque não chegou nem de leve a modificara literatura que aqui [Ceará] se faziaentão, no campo da poesia ou daincipiente prosa de ficção, mas isso nãolhe tira a imensa importância de haversido a difusora das idéias filosóficasfrancesas pela primeira vez em nossoEstado" (ibidem, grifos e acréscimosnossos). As ditas "idéias filosóficasfrancesas", a que se referiu Azevedo,são aquelas mesmas citas por AfrânioCoutinho.

Vemos que a agremiação não duroumuito. Apesar de sua curta duração, elafoi importante para assentar no Ceará asbases de um pensamento novo, que,assim como já afirmamos, marcaria oconjunto da obra de Adolfo Caminha,todo ele escrito entre 1885 e 1896. Se aAcademia Francesa não se notabilizoupor modificar a literatura produzidaentão, ela foi a responsável por levar àcena cearense a discussão das ideias deSpencer, Littré, Haeckel, Darwin,Buckle, Ratzel, Comte, Taine, Vacherot,Renan, Quinet, Burnouf, Lamarck,Buffon, Cuvier, Ritter, Kohl, Peschel,Reclus e tantos outros. A partir da suaatuação, as citações desses nomes forammais frequentes nos trabalhos dos

homens de letras cearenses. A AcademiaFrancesa foi tão importante para o Cearáque Cruz Filho, citado por Sânzio deAzevedo (1976, p.15), chegou a dar oano de 1872, supostamente o ano em quese iniciou a agremiação, segundoGuilherme Studart [Barão de Studart],como "o do alvorecer de nossa[cearense] vida cultural".11

Foram da Academia os seguintes nomes,alguns deles já citados aqui, mas querepetimos para termos uma ideia total dogrupo: Tomás Pompeu de Souza Brasil(1852-1929); Raimundo Antônio daRocha Lima (1855-1878); JoãoCapistrano de Abreu (1853-1927);Tristão de Alencar Araripe Júnior

(1848-1911); João Lopes Ferreira Filho(1854-1928); Xilderico Araripe deFaria (1851-1876).Vemos por essasdatas aqui apresentadas que o termo"Geração de 1870", referindo-se ao anodo aparecimento das ideias novas, étambém designativo de umahomogeneização das idades dosmembros da Academia. Portanto, comoafirmamos anteriormente, o uso docritério de "geração" é coerente, pois,no ano de 1873, todos não passavam dostrinta anos, chegando o mais novo,Rocha Lima, aos dezoito, e AraripeJúnior, o mais velho deles, aos 25 anos.

Como afirmamos, a Academia Francesado Ceará não teve um órgão próprio.

Seus membros valeram-se do jornalFraternidade, da loja maçônicahomônima.Vale destacar que alguns dosprincipais redatores desse jornal erammembros da Academia, com exceção doúltimo a ser citado – Tomás PompeuFilho, Araripe Júnior, João LopesFerreira Filho e João Brígido dosSantos –, segundo o Barão de Studart(1908). A relação com o jornalFraternidade rendeulhes "uma violentapolêmica com o jornal TribunaCatólica" (Azevedo, 1976, p.75). Eramesses os tempos da chamada "questãoreligiosa", o que marcava oanticlericalismo e o laicismo daAcademia. Essas características fizeramDjacir Menezes (1968, p.24) chamar a

Academia como "a brigada pioneira daspelejas que combateram a superstição, aintolerância, o sectarismo".

Esse caráter laico e anticlerical marcoufortemente a atuação da AcademiaFrancesa do Ceará e a fez porta-voz dasideias modernas, que combatiam nãosomente o romantismo, mas quepregavam a crença na ciência comométodo de explicação do mundo, dohomem e dos fenômenos sociais,voltando-se não mais para o passadocomo o fizeram os românticos, mas parao presente, tornando-o objeto de suaobservação e análise mais acuradas. Seo presente não era aquele quedesejavam, então, ele devia ser também

modificado ainda que fosse comrefregas ou ações destinadas à melhoriada educação, que acreditavam ser anorteadora de novos pensamentos. Aesse respeito, afirmou o já citadoAfrânio Coutinho (1975, p.182):

Acreditou [a geração de 1870] noimpulso humanitário, conciliando aeducação da massa e o socialismocom o culto do poder político e daglória militar nacional. As massasemergiram ao plano histórico, deposse dos progressos materiais epolíticos. A ciência, o espírito deobservação e de rigor, forneciamos padrões do pensamento e doestilo de vida, desde que se julgava

que todos os fenômenos eramexplicáveis em têrmos de matéria eenergia, e eram governados por leismatemáticas e mecânicas.

Foi a crença nesse tipo de pensamentoque deve ter dado origem à EscolaPopular, destinada à educação deoperários e alunos pobres. ClóvisBevilacqua (1927) afirmou a esserespeito:

Pelos anos de 1874 e 1875 houve,no Ceará, um movimento espiritualdigno de apreço, que não foimeramente literário, como depois oda Padaria Espiritual, porémigualmente filosófico e religioso[...] As conferências realizadas na

Escola Popular tiveram essafeição, como se vê da sérieultimamente reeditada na Revistada Academia Brasileira de Letras,em que o insigne Capistrano deAbreu assinala características daliteratura brasileira contemporânea.Foram realizadas essasconferências em 1875 e nelasvemos Augusto Comte, Buckle,Taine, Spencer.

Capistrano de Abreu (1968, p.77) nãodeixou de recordar aqueles idos anos daEscola Popular e a seu respeito afirmou:

Grande foi a influência da EscolaPopular não só sôbre as classes a

que se destinava, como sôbre asociedade cearense em geral, porintermédio de conferências alifeitas, em que o ideal moderno eraapregoado por essas pessoasaltamente convencidas de suaexcelência. Maior ainda foi ainfluência da Escola sôbre osespíritos audazes e juvenis, quecongregou, reuniu e fecundou unspelos outros.

Celeste Cordeiro (1997, p.88), arespeito da Escola Popular, afirmou:

A Escola Popular é efetivamenteum símbolo do vigor da vidaintelectual do Ceará na segundametade do século passado [XIX].

Trata-se de uma iniciativa fiel àpreocupação de Comte com aformação intelectual doproletariado: destinada aos pobrese operários, funcionava das seis emeia às dez da noite, commemoráveis palestras de TomásPompeu (a respeito de "SoberaniaPopular"), de Araripe Júnior(sobre o "Papado") e de AmaroCavalcante ("Religião").

Nos anexos da terceira edição de Críticae literatura, de Rocha Lima (1968,p.354-6), vemos um "Relatório sôbre aEscola Popular", cuja fonte foi o jornalFraternidade, número 51, de 11 dedezembro de 1874. São estes os termos:

Inaugurada no dia 31 de maio dêsteano [1874], a Escola Popular deucomêço aos seus trabalhos em 2 dejunho, com a abertura das aulas delíngua nacional, aritmética,geografia, história, francês eprimeiras letras, que foramdistribuídas pelas diversascadeiras do modo seguinte:

Cadeiras...............................................Professsores

língua nacional.....................................Rocha Lima

francês..................................................JoãoLopes

aritmética.............................................Benjamin

geografia e história................................João Lopes

A aula de primeiras letras foidividida nas seguintes classes:

1a classe de leitura e gramática.............. Benjamin

2a classe de leitura e gramática.............. João L. Ferreira

3a classe de leitura e gramática.............. Israel B. Moura

4a classe de leitura e gramática

.............. J. Lino

5a classe de leitura e gramática.............. J. Hermano

O método adotado foi osimultâneo-livre, de que osprofessores mais têm colhidoresultados tão satisfatórios.

Além dêste curso, que constitui otrabalho ordinário da Escola, foiinstalado o curso de conferênciaspúblicas. Durante o ano letivo aescola realizou 8 conferências deque se encarregaram os cidadãos:

Oradores.............................................Teses

Dr.Quintiliano....................................AEscola

Dr. Xilderico.......................................LiberdadeReligiosa

Dr. AmaroCavalcanti..........................Religião

Dr. Araripe Júnior...............................O Papado

Dr. Théberge.......................................Geognoseda Terra [sic]

José Castelões Filho

.............................Educação naFamília

Dr. Borges da Silva..............................A Eletricidade

Dr. PompeuFilho................................SoberanaPopular

A êsses cidadãos beneméritos daciência envio neste momento umasaudação fraternal e um protesto degratidão em nome de meus colegase dos alunos da Escola Popular.

A explicação e constituição doImpério, revistas de jornais eensino moral constituirão uma série

de preleções às quintas-feiras.

A matrícula subiu de 156 alunos e afreqüência que em maio chegouapenas a 67, montava em novembro118 alunos. Eis, meus senhores,etc...12

Vemos por esse relatório de atividadesque a Escola Popular naquele ano de1874 preocupou-se em propagar asideias que eram defendidas por seusmembros, tanto as ideias que diziamrespeito à ciência como aquelas apropósito da educação, como é o caso,por exemplo, da conferência Educaçãona família. Não faltaram tambémconferências em que os acadêmicos se

dedicaram a tratar da religião, como é ocaso de Liberdade Religiosa, Religião eO Papado, essa, como já vimos,pronunciada por Araripe Júnior e daqual destacamos o seguinte trecho:

Faça-se consistir a Religião nasimples evangelização, e por umavez desaparecerá a necessidade deum supremo arbítrio ou tribunal quefabrique dogmas. Desde que ocoração constituir-se o únicointérprete do Evangelho, para quemfoi escrito, longe da viciadainteligência do teólogo, ascontradições desaparecerão e asheresias se exilarão da terra.

Ainda uma vez o digo: Não creio

que Jesus fundasse sua Igreja sôbreoutra pedra que não fôsse o nossocoração.

E se, por uma dessas anomalias quenão têm nome, voltarem asfogueiras, como veio o Syllabus13 ea infalibilidade, as guerrearei demorte.

Quero a âncora da Religião comorepouso, mas nunca como hediondaestagnação. E se me privarem dêsteconsôlo, ou o reduzirem de novo aoinstrumento de infernal astúcia,declaro mil vêzes preferireiperder-me, como Colombo, nosmares tormentosos e desconhecidos

que os teólogos anatematizavam.

Ao menos descobrirei outrosmundos! (Araripe, 1958, p.90)

Vemos, por esse trecho da conferênciapronunciada em 12 de julho de 1874 emFortaleza e publicada no jornalFraternidade nos dias 21 e 31 de julhoe 11 de agosto do mesmo ano, o caráteranticlerical e antidogmático da fala deAraripe Júnior, que era tambémcompartilhado pelos outros membros daAcademia Francesa do Ceará comopodemos atestar tendo como fonte osembates entre os acadêmicos e osantigos, para usar aqui a nomenclaturade Celeste Cordeiro (1997, p.94), que aesse respeito afirmou:

Sua fundação [refere-se ao jornalFraternidade], em 1873, coincidecom o auge da Questão Religiosano Brasil e com a luta intransigenteentre a maçonaria e o clero queincitava a imprensa. Não era órgãoda Academia Francesa, masconstituía a arena das lutasintelectuais dos "acadêmicos",vários dos quais chegaram a setornar maçons apenas pelacondição de combater melhor, aqual o Fraternidade oferecia.

Essa luta contra o pensamentocatólico não se restringiu ao planodoutrinário geral, mas traduziu-se

localmente no ataque religioso queabrigava o clero e o laicatoreligioso no Ceará: a TribunaCatólica.

Quando da fundação da EscolaPopular, houve um embate comgrande repercussão no meioprovinciano. De um lado a TribunaCatólica afirmava tratar-se de uma"Escola d'Impiedade": "Algunsmoços incrédulos instalaram umaEscola Popular nesta cidade, com ofim de inocular no povo rude aimpiedade, no que são auxiliadospelos maçons da Loja FraternidadeCearense".

As tensões entre os dois polos deram-se

em torno de questões como: a laicizaçãoou secularização das ações do Estado, ainstrução, que para os antigos devia serdoméstica e religiosa e para osmodernos devia ser pública, laica,gratuita e obrigatória, como em parte foia Escola Popular. Esse debate sobre ainstrução pública, vamos encontrá-loainda nas páginas do romance Anormalista, como veremos no capítuloseguinte a respeito do autor-leitor, sendopor isso importante tratar aqui dascondições intelectuais de produção daliteratura brasileira no final do séculoXIX. Ainda como uma das tensões entreos dois grupos destacamos a questão dasoberania popular e da divisão dospoderes.

O embate entre os dois grupos –"antigos" e "modernos" –, nacompreensão de Celeste Cordeiro, seintensificou. Essas polêmicas entreconservadores e liberais, acadêmicos ereligiosos, maçonaria e igreja acabarampor chegar a seu ápice com aconferência organizada pelo grupoconservador e ministrada em público nodia 2 de agosto de 1874 pelo Dr.Manoel Soares da Silva Bezerra,14

conferência essa que ficou conhecidacomo a Conferência da Feira Nova,sendo o conferencista ardoroso defensorda Igreja católica. Todo o ano de 1874seria marcado por embates entre os doisgrupos como podemos constatar nestafala de Araripe Júnior citado por Djacir

Menezes (1968, p.48): "questãoreligiosa ia no auge. Organizaram-seconferências contra o clero e essemovimento chegou a operar tão grandeabalo na opinião católica, que umdesembargador não receou dar àFortaleza o nome de Tubigenbrasileira".

O espírito contestador e a marcaanticlerical do grupo, o que nos fazlembrar aqui das designações "geraçãocontestadora" (João AlexandreBarbosa), "geração materialista"(Afrânio Coutinho), "geraçãoafirmativa" (Djacir Menezes) (ibidem,p.64-5),15 bem como todas as tensõesapontadas acima serão as bases para os

movimentos, grupos, sociedades,agremiações literárias que virão após aAcademia Francesa do Ceará, como oClube Literário e a Padaria Espiritual.Essas mesmas ideias e posturas asencontraremos no conjunto da obra deAdolfo Caminha, como veremos nocapítulo a respeito do autor-leitor, noqual examinaremos as relações entre asleituras apresentadas no conjunto daobra e o seu desenvolvimento temático ede outras ordens.

Um clube literário

Como declarou Sânzio de Azevedo, aAcademia Francesa do Ceará foi umareação ao sentimentalismo romântico.

Daí a explicação para o fato de quesomente alguns de seus membrostivessem se dedicado à literaturaficcional, preferindo a filosofia e asreflexões sobre a vida contemporânea.Nos textos que os acadêmicosproduziram não faltaram reflexões sobreas questões de seu tempo, sendo essefato uma das características do realismocomo estética e movimento literário,como o afirmou Afrânio Coutinho (1975,p.187):

O Realismo retrata a vidacontemporânea. Sua preocupação écom homens e mulheres, emoções etemperamentos, sucessos efracassos da vida do momento.

Êsse senso do contemporâneo éessencial ao temperamento realista,do mesmo modo que o romântico sevolta para o passado ou para ofuturo. Êle encara o presente nasminas, nos cortiços, nas cidades,nas fábricas, na política, nosnegócios, nas relações conjugais,etc. Qualquer motivo de conflito dohomem com seu ambiente oucircunstantes é assunto para orealista.

Nessa migração de ideias que viria afundar as bases para o surgimento dorealismo, a Academia Francesa doCeará cumpriu o seu papel. Mas se aAcademia foi uma reação ao

Romantismo, no que diz respeitopropriamente à literatura de ficção, asideias assentadas e difundidas por seusmembros só vingariam na década de1880. Sânzio de Azevedo (1976, p.77),a esse propósito, afirmou: "Nem poderiaser de outra maneira, visto ocientificismo que professavam haverdado a origem à corrente realista, e suaconseqüente exacerbação, o movimentonaturalista". É nesse ponto que oconteúdo aqui apresentado se junta àscitações feitas sobre a "Geração de1870", especialmente quanto àafirmação de Lúcia Miguel Pereira deque as ideias defendidas por aquelageração só viriam florescer de fato nadécada seguinte.

A luta pela Abolição dos escravos foi omovimento que entremeou o fim dasatividades da Academia Francesa doCeará e a criação do Clube Literário,aglutinando vários dos homens de letrascearenses, o que não significa, noentanto, que não existissem outrasagremiações ou grupos literários noperíodo.16 Junto com o Clube Literário,na longa tradição associativa doshomens de letras do Ceará, a estéticarealista na literatura ficcional dava osseus primeiros passos. No entanto, issonão significava que o romantismohouvesse desaparecido de todo. Mais àfrente, com a Padaria Espiritualcomeçava a apontar no panoramaliterário cearense os primeiros trabalhos

simbolistas, como veremos a seguir.

É preciso entender que, no Brasil, esseperíodo – as três últimas décadas doséculo XIX – foi marcado por umaconfluência de estéticas e movimentosliterários. A esse respeito afirmou o jácitado Afrânio Coutinho (1975, p.180):

O século XIX é um campo, onde secruzam e entrecruzam, avançam erecuam, atuam e reagem umas sôbreas outras, ora se prolongando oraapondo-se, diversas correntesestéticas e literárias. E, emboraconstitua um bloco homogêneo ogrupo aqui estudado [Realismo,Naturalismo, Parnasianismo], operíodo é também atravessado pelo

filête romântico-simbolista. Se há,portanto, época que se recusa auma periodização precisa e amostrar nitidez de fronteiras entreos movimentos, é o século XIX.

Ainda segundo Coutinho:

Êsse fenômeno que é geral, noBrasil, torna-se mais corriqueiro,dadas as circunstâncias naturais desua vida na época, e em virtude doatraso com que sempre repercutementre nós os movimentosespirituais, e ainda porque astransformações aqui não serealizam orgânicamente, de dentropara fora, como resultado da

própria evolução da consciêncianacional, mas como reflexo deidéias-fôrcas de origemestrangeira. (ibidem)

Foram esses os fatos que parecem terlevado Afrânio Coutinho a chamar oséculo XIX de "uma grandeencruxilhada" (ibidem). O mesmopodemos dizer no caso da literaturacearense, pois se o realismo despontacom o Clube Literário, os poetas que sededicaram à causa da Abolição eramtodos românticos, a saber: AntônioBezerra, Justiniano de Serpa e AntônioMartins, todos eles classificadostradicionalmente como "poetascondoreiros" (Azevedo, 1976, p.27).

Como românticos também o foramàquele tempo Xilderico de Faria eAraripe Júnior, ambos da AcademiaFrancesa. A respeito da manutenção daestética romântica no Ceará nãopoderíamos deixar de citar o poetaJuvenal Galeno, que surgira com opróprio romantismo cearense aopublicar Prelúdios poéticos, em 1856,apesar de os poemas desse seu primeirolivro ainda conterem traçosneoclássicos.

Da Academia Francesa do Ceará saíraJoão Lopes, o mesmo que vimos comoprofessor de Francês e da segundaclasse de leitura e gramática na EscolaPopular. João Lopes fundou o Clube

Literário, cujas atividades iniciaram1886 e, segundo Dolor Barreira (1986,v.1. p.126), ainda em 1894 estavamativas, pois nas páginas do jornal "aRepública de 4 de outubro de 1894anunciava a reunião, na noite desse dia,da benemérita sociedade, no salão nobredo Clube Cearense". João Lopes já nãomais se encontrava no Ceará, mas noAmazonas, o que também fez arrefeceras atividades da agremiação.

Não foram poucos os seus sócios ecolaboradores: Juvenal Galeno; AntônioBezerra, Antônio Martins e Justiniano deSerpa, os já citados poetas da Abolição;Virgílio Brígido; Oliveira Paiva;Antônio Sales; Rodolfo Teófilo; José

Carlos Júnior; Farias Brito e Xavier deCastro. Diferentemente da AcademiaFrancesa, o Clube Literário teve umórgão próprio: A Quinzena, revistacujos trinta números circularam entrejaneiro de 1887 e junho de 1888. Alémde alguns dos já citados, nelacolaboraram: Abel Garcia; José deBarcelos, José Olímpio; PaulinoNogueira; Martinho Rodrigues; PápiJúnior, Ana Nogueira; FranciscaClotilde, esta com o pseudônimo de JaneDavy.

Segundo Sânzio de Azevedo (1976,p.92), "ao lado das atividadesjornalísticas d'A Quinzena, realizava oClube Literário sessões noturnas,

durante as quais eram postas emdiscussão as mais recentes tendências daliteratura estrangeira ou nacional".Ainda a respeito das atividades doClube, afirmou Azevedo:

Dessa forma, o grêmio contribuiuadmiravelmente para a renovaçãodas letras do Ceará: com oconhecimento do que se passavanos grandes centros é que nossosescritores foram pouco a poucoaderindo à nova corrente, oRealismo. Dir-se-ia haver JoãoLopes trazido da AcademiaFrancesa o costume das leiturascríticas... (ibidem)

Como se verá adiante a propósito da

atuação de Adolfo Caminha como editorde periódicos de circulação e literário,o surgimento d'A Quinzena foi marcadode toda apreensão. A revista, quehospedaria em suas páginas ascontribuições de vários dos escritores eescritoras do final do século no Ceará,também se queixava das condições comque os periódicos unicamente literárioseram recebidos pelo público local. É oque lemos em PRELIMINARES, umaespécie de programa da revista assinadopor João Lopes, publicado nas páginasum e dois do número 1 do periódico,datado de 15 de janeiro de 1887:

Não faltará quem considerearriscado, temerario mesmo, este

empreendimento a que nosabalançamos.

Si na capital do imperio, metropoleda civilisação sul americana, omeio não é propicio ás lettras e aspublicações exclusivamentelitterarias mal podem, a custa tenaze mortificante sacrificio, romper aespessa crosta da indiferençapublica para arrastar uma vidapenosa e ephemera; na provincia,aqui por estes recantos do norte,parece desatino quebrar ahomogeneidade beatificanterotineira da vida provinciana, paraescrever sobre as lettras e artes esciencias.

Se a Academia Francesa do Ceará foimais filosófica do que literária, omesmo não vemos com o ClubeLiterário, ao menos é o que podemosconcluir da análise d'A Quinzena.Quanto à poesia, nos seus trintanúmeros, 22 publicados no primeiro anoe oito no segundo ano, temos 64 poemaspublicados ao todo. No que diz respeitoaos contos, foram publicados 42, assimdistribuídos: 26 no primeiro ano edezesseis no segundo. Alguns deles,como ocorreram nos números vinte e 22do primeiro ano e nos números quatro esete do segundo ano, foram traduções deCatulle Mendès, Paul Arène e FrançoisCoppeé. O número 3 do segundo ano deA Quinzena trouxe também um

"fragmento de um livro", intituladoLazareto, de Rodolfo Teófilo a respeitodo chamado Lazareto da Lagoa Fundoonde eram internados os acometidos devaríola. Vale lembrar que, em 1890,Teófilo teve publicado o seu romance AFome, nitidamente naturalista.

Não somente de ficção viveu AQuinzena. Tão importantes quanto aficção foram os textos críticospublicados em suas páginas. Por sereminúmeros, trataremos aqui somente daanálise daqueles que falam diretamenteaos nossos interesses, como os artigosintitulados "Um romance naturalistaHOSPEDE POR PARDAL MALLET",assinado por Abel Garcia e publicado

nas páginas um e dois do númerodezessete, de 17 de setembro de 1887;"O Naturalismo" e "O que vem a seruma obra naturalista?", ambos assinadospor Gil Bert, pseudônimo de OliveiraPaiva e publicados, respectivamente,nos números um e dois, ambos do anodois, nos dias 15 de janeiro e 31 dejaneiro de 1888. Infelizmente, aqualidade da impressão do artigo deAbel Garcia nos impede de reproduzi-lointegralmente, o que, no entanto, não nosimpede de fazermos algumasconsiderações a respeito do seuconteúdo. Os dois outros artigos, oscitaremos na íntegra uma vez que sãopeças pouco conhecidas do público.

Abel Garcia iniciou o seu artigolouvando uma possível derrocada doque chamou de "formulas romanticas" emais adiante acrescentou:

Mais de um trabalhador, cheio deaudácia e iniciativa, tem-seinsurgido contra a decrepitadictadura sobre o gosto publico,tentando firmar o respeito pelaindependencia intellectual,proclamando a interpretação nova epositiva da natureza, a sinceridadena arte pela manifestaçãoespontanea da emoção pessoal doartista e banindo a imitaçãofavorecida pela ignorancia dogrosso do publico.

E já se vão tornando apreciaveis noBrazil contemporaneo os resultadosd'essa [r]eação ao mesmo tempodestruidora e reconstructora.Semelhante renascimento dasenergias do espirito e do coraçãoaccusa-se nitidamente nas novasintelligencias que, cedodesilludidas de ficções eexperimentando [i]rresistivelnecessidade de verdade movem-separa o estado da realidade nasciencia e na arte.

Vemos que Abel Garcia falou de umaação contra o romantismo, o quepoderíamos chamar também de umaação naturalista. As palavras "audácia",

"iniciativa", "independencia", bem comoa expressão "interpretação nova epositiva da natureza" apontam para ospressupostos que guiavam as narrativasnaturalistas. Ações e pressupostos queGarcia não deixa sem exemplificar, e ofaz dando como exemplo o romance OHóspede, de Pardal Mallet. A respeitodessa obra, afirmou:

Acabamos de recolher mais umdocumento comprobativo daeclosão dessa phase deproductividade entre nós, entrandona apreciação da intrepidaexcursão que o Sr. Pardal Malletfez no terreno mais escabroso daarte nova, – o romance

experimental, que não visa armarao effeito com escenaçõesdeslumbrantes e espetaculosas, masdisseca o coração e o espirito fiel ereflectida de minudenciasd'anatomia d'alma, estuda pelaanalyse e pela synthese os variadosaspectos de uma sociedade e deuma civilisação, a psychologiaintima e a psychologia social.

Foi pois com o maior interesseliterário que lemos o Hospede doSr. Pardal Mallet [...] solicitadocomo eramos pela viva curiosidadede conhecer este arrojadoemprehendimento no campo da artee tendo já tido ocasião de aquilatar

o poder de expressão e talento doautor em artigos dispersos nasfolhas da imprensa diaria eperiodica daquella cidade.

Além disso anunciava o autorfiliado na seita triumphante deZola...

Notemos que Abel Garcia já faz uso dotermo "romance experimental", talvezuma referência à obra Le romanexpérimental, de Émile Zola, publicadoem 1880, o que pode indicar oconhecimento das teorias e críticaszolianas que serviam de fundamentopara os escritores que cultivavam noBrasil o naturalismo. As referências aZola e ao método de produção do

escritor naturalista são recorrentes nesteartigo de Abel Garcia, o que faz dele umexemplo de recepção das ideiasdifundidas a respeito do naturalismo noBrasil e, especialmente, no Ceará, cujavida literária era intensa, apesar dasdificuldades oriundas da chamadagrande seca de 1877/1878, as inúmerasocorrências de epidemias, entre elas avaríola, que foi a mais devastadora.

Talvez, também por esses fatos, oshomens de letras do Ceará, no período,foram se aproximando da ciência,somatório esse que era a fórmula práticado naturalismo. O que não dispensava,no entanto, o caráter artístico no tratocom as palavras. O último parágrafo do

artigo de Abel Garcia é um exemplo doque se pensava do romance naturalista,ou melhor, na opinião do crítico, doromance em via de se tornar naturalista:

Em synthese: si a observação muitavez foi falsa, si o contorno dasfiguras, dos typos, é vago efluctuante, e si a vida não animasempre esquadros, o Hospedeconseguiu infiltrar-nos a esperançade que o Sr. Pardal Mallet, melhororientado pela convivencia com asobras primas do romancecontemporaneo e continuando ainspirar-se no methodo fecundo daobeservação e experiencia, queopulentem o patromonio litterario

brazileiro e ganhem o favorextraordinario do interesse publico.

Esse artigo ainda teve uma espécie decontinuidade, porém não mais escritapor Abel Garcia, mas por José CarlosJúnior, como o veremos adiante. Entreos artigos de Garcia e Júnior forampublicados mais dois. Esses também sãoexemplos do que foi a recepção donaturalismo no Brasil. Talvez marcadospelo calor da hora ou em razão do atrasona importação de objetos e ideias, haviaem todos eles uma certa indefinição doque era de fato o naturalismo. Aquireproduzimos e comentamos os artigosassinados por GIL BERT, os doiscitados artigos que entremeiam os de

Garcia e Júnior. Diferentemente doprimeiro, esses os reproduzimos naíntegra, uma vez que não há problemasnos fac-símiles dos originais que nosimpeçam de fazê-lo. No primeiro lemos:

NATURALISMO

O anno de 1888 recebeu de seuantecessor um acontecimentoauspicioso para a litteraturabrazileira, qual o de poucos diasesgotaram-se três edicções doromance O Homem, de AluizioAzevedo. Isto mostra que o nossopublico se convenceu, por fim, deque o nosso paiz não tem somentecafé e algodão e borracha; que nãodá somente bachareis e conegos;

que não trabalha só para sustentar ofunccionalismo e pagar juros aoestrengeiro; mas que tambémpossue quem faça livro, naeminente expressão da palavra

Com effeito, não se podiacomphreender que uma região tãovasta, original, pujantementevariegada, onde trava-se a luta detantas raças differentes, nãocontinuasse por um progresso deseleção natural, a produzir d'essesindividuos que eternisam pelapalavra a vida das nações.

Tivemos escriptores no tempocolonial. Assistimos ao

convulsionar da revoluçãoromantica. E agora, quando aEuropa inteira reatava o fiotradicional da verdadeira Arte;quando enthronava a legitimadynastia intellectual apesar da vivaguerra dos usurpadores; quando,pelo naturalismo, entravafrancamente nas avançadas daevolução litteraria; que fazia oBrazil, cujos povoadores tão cedonão poderão exhimir-se deacompanhar o movimento europeu?

Lia o que vinha de lá.

Entretanto, si é que aspiramos aograo de nação e de povo, a Europaestaria em todo o seu direito nos

julgando assim a modo de umasenzala, um paiz essencialmenteagricola; pois que era tal o nossodescuido e «falta de caracter» que,possuindo os mais profundos eoperosos talentos, desdenhavamostributar a estes a nossa attenção e onosso obulo.

Ora, o publico brazileiro acabou deprotestar contra a inercia eindifferença de que o acoimavam.E é preciso também que sejamosgratos ao publico.

Mas também, que havia delle fazer,si escriptores brazileiros tinhamabusado? Si escriptores, longe de

apresentarem-se lidadoresfecundos pelo trabalho, como Josede Alencar, mostravam-se fátuos einfusos de talento selvagem einfantilmente bobo; si escriptores,em vez de rebentarem do seio danação, do torbilhão da vida, comoCervantes, Sheakspeare, Stern,Goethe, Hugo, Balzac, Zola,Ramalho Ortigão, sahiam era dasacademias com uma litteratura decaso pensado e uma idéa falsa daspessoas e das coisas da sua terra,enchergando pelos olhos dosestrangeiros e hombreando-seaudaciosamente, do primeiroimpulso, com os grande de lá?

A tudo aquillo deu lugar adesordem implantada pela faseromantica. Hoje, porém, háindicios de orientação. Onaturalismo, no seu rigor deobservação, de experiência,ligando intimamente a idéa com aforma, acatando a Sciencia,subordinando-se de todo á Arte,elevou o trabalho, o bom senso, ogenio e despresou a ociosidade dosparasitas que produzem em escriptocomo uma planta esteril dá umalinda flor infecunda.

E' por tudo isto que nos mostramossummamente satisfeitos com asrepetidas edições d'O Homem,

tomando novo folego paraprosseguir na espinhosa masconsoladora vida litteraria, vida deque a nação precisanecessariamente, e sem a qual bempoderia desengonçar-se estevastissímo territorio.

Mas a litteratura brazileira terácom efeito entrado pelo caminho donaturalismo: E o que vem a ser onaturalismo?

Esta pergunta é difficilima deresponder, e tanto, que no proximonumero dedicaremos um artigoespecial para tentar, si não de todoao menos em parte, dar uma idéa aoleitor.

GIL BERT.

Apesar de já usar o termo "naturalismo",vemos que esse não é bem definido peloarticulista, ou sente ele a dificuldade dedefini-lo em termos claros ecategóricos, pois já apontou para as suascaracterísticas, entre elas o rigor deobservação, o acatamento da ciênciacomo forma de saber e de reconhecer omundo. O artigo inicia louvando apublicação da terceira edição d'OHomem, de Aluizio Azevedo, cujaprimeira edição, como o sabemos, é de1887, portanto uma ano antes do artigoassinado por Gil Bert ser publicado naspáginas d'A Quinzena. O que aponta

para o fato de os membros do ClubeLiterário terem conhecimento daquiloque então se publicava no Brasil.Aluísio Azevedo já tivera publicadoinúmeros romances, entre eles Omulato, que data de 1881. No entanto foiO homem apontado no periódico doClube Literário como exemplo de prosanaturalista.Vejamos, então, o próximoartigo em que Gil Bert promete aosleitores dar um ideia, "si não de todo, aomenos em parte" do era o naturalismo.

O que vem a ser uma obranaturalista?

Os leitores não estranhem apergunta. O Sr. Aluizio Azevedoescreveu no portico d'O Homem

que as pessoas que não tivessemuma idéa claro sobre o naturalismonão lessem o seu livro. Ora, o ditolivro teve e continua a ter sucesso.E' preciso, pois, que a gente seentenda, que cada qual compareçae se pronuncie sem rodeios, semflamancia, sem dialectica.

Antes, pois, de proferir siquer umapalavra acerca d'O Homem, vejamsi temos ideia clara e segura do queé uma obra naturalista. Avisa-seaos leitores que ignoramos siestamos ou não na via certa. Anossa função é simplesmente dardepoimento do que havemossentido, observado e

experimentado.

Primeiro que tudo folheiemos ovolumezinho dos Pensamentossobre a interpretação da natureza,do immortal Diderot; e sigamos agalgar um ponto de vista d'onde seabranja com segurança e semillusões de optica o campo da arte.

Diz o symphatico Diderot:

«As produções da arte serãocommuns, imperfeitas e fracasemquanto não nos propozermos auma imitação mais rigorosa danatureza.»

Mas em que consiste esta imitação

rigorosa da natureza? dizemos nós.Será em copiar factos, pessoas ecoisas?

Citemos ainda um trecho do auctorda Encyclopedia:

«A natureza é tenaz e lenta nas suasoperações. Si é preciso affastarapproximar, unir, dividir, amolgar,condensar, enrijar, liquefazer,dissolver, assimilar, ella prossegueno seu intento pelas mais invisiveisgradações.

«A natureza emprega seculos emformar pedras preciosas; a artepretende contrafazel-os em ummomento.»

A imitação rigorosa da natureza é,portanto, não somente copiar, masproduzir, proceder, crear no rigordas leis naturaes.

Uma obra naturalista é como umfructo completamente sasonado,que presuppõe uma serie dephenomenos perfeitamenterealisados, sem teratologia, seminfluição extranha.

O naturalismo é uma arte vasta,indefinida. Ninguém poderá jactarse de ser naturalista, do mesmomodo que ninguém dirá: – eu sousabio; – porque não se trata deescolas, nem de systemas. Seriauma immodestia.

Os artistas que se apegam depreferencia á imaginação essespodem dizer e obrar o quequizerem porque não têmresponsabilidade. Mas os quepreferem abysmar se durante a vidainteira no seio da Creação e d'ahiprescrutando as infinitas eimmutaveis leis, fazer sentir aosseus similhantes a belleza supremada vedade [sic], na tendenciacontinua do real, para oinattingivel, esse têm o que perder.Quando elles deitam uma obra aomundo são encarados como si ummundo lhes cahisse das mãos,creado, na incomparavel expressão

biblica, á sua imagem esemelhança.

A tendencia universal da Arte é onaturalismo. Mas o artista parapenetrar na natureza tem deatravessar a sociedade que oproduziu.

Quando devo, pois, dizer que umaobra é naturalista?

Cada qual faça como quizer, masprocedo é pelo modo seguinte:

Sem me importar com o molde dolivro, entro na leitura como se meaventurasse a uma excursãominuciosa, a percorrer, por

exemplo, uma floresta que meinteresse até pelos seresinfinitesimos, ou a visitar, nocaracter de policial, uma casa ondese deu um crime que se o culta[sic]. Si canso, volto. Depois,torno.

Faço por ler o livro, guardadas asproporções do tempo, mais oumenos com elle foi escripto.Começo a viver multiplicadamentecom os personagens, e sobretudo, ame apaixonar, com o autor a quemencontro de vez emquanto, pelanatureza que ele pinta. E assim vouindo. E, si depois de lêr a ultimapalavra, meditando sobre aquelles

dias de convivencia impalpavel, eunão soffrer um vacuo nas minhasidéas; si me sentir cheio denatureza e verdade, e fôr direitinhoá concepção do auctor, como pelafresta coada pelo telhado lobrigo odisco do sol, então me curvoperante o auctor do livro, que émais um Deus que creou um novocosmos para a minha intelligencia epara o meu sentimento, e digo queli uma obra naturalista.

GIL BERT.

Nesse segundo artigo, vemos que,mesmo apelando para a sua recepçãopessoal, o seu modo de compreender aobra, já havia no articulista uma certa

compreensão do que seria o naturalismocomo estética literária. Há algumexagero em suas considerações? Sim.Há. No entanto, elas são consideraçõesfeitas ainda no calor da hora, quando aestética aos poucos chegava ao Ceará eao Brasil com o habitual atraso com quechegava os produtos importados no país,fossem esses produtos materiais ouintelectuais. Ainda assim, esses doisartigos são um exemplo de recepção donaturalismo no Ceará; eles são umexemplo da chegada da estéticanaturalista em um momento marcadopela convivência de estéticas as maisdiversas como já comprovamos com aleitura realizada de trechos de AfrânioCoutinho.

Devemos notar que as palavras usadaspor GIL BERT denotam a incerteza doque ele afirma ser o naturalismo. Aomesmo tempo que diz que "Ninguempoderá jactar se de ser naturalista",reconhece em um livro – e expôs seumétodo de reconhecimento – aqueleselementos que o caracterizam como obranaturalista. São contradições da críticafeita ao calor da hora, como já odissemos.

E esses não são os únicos registros queencontramos a respeito do naturalismo,ainda encontramos mais um artigo, queaqui reproduzimos. Além de inúmerascitações a autores naturalistas, em AQuinzena, no seu número seis do ano

dois, de 16 de abril de 1888,encontramos o artigo "Apontamentosesparsos", na verdade uma seção doperiódico, assinado por José CarlosJúnior, em que mais uma vez onaturalismo e as ideias naturalistasforam trazidos à cena. Apesar de serlongo, pois ocupa as páginas um e doisdo periódico, aqui o reproduzimosintegralmente seguido de comentários.

Apontamentos esparsos

No ultimo artigo publicado sob estaepigraphe procurou-se indicar umafalta, que parece notavel, nosensaios de romance naturalistafeitos no Brazil até hoje. Os nossosliteratos que cultivam o

naturalismo, em geral, assimilam asformulas de Zola e dos Goncourt,penetram-se no seu estylo eapressam-se em applical-o aqualquer facto, qualquer thema, oprimeiro que appareça,preoccupados somente em que alitteratura brasileira possúa obrasnaturalistas, ou antes livrosescriptos á imitação de Zola ou dosGoncourt. O que absorve, o quepreocupa o espirito do autor é apersonalidade literaria do mestre.Parece que ao pintar um scenario,ao descrever um movimento, aodesenvolver a acção, o pensamentode escriptor de que se occupa doque a formula, que o mestre

empregaria naquelle caso.

Não é rasoavel entretanto querer-seque o naturalismo inglez, ouallemão, ou turco sejacompletamente vasado nos mesmosmolde [sic] que o francezes [sic];os mais radicais, os maisintransigentes serão forçados aconvir n'isto.

Por maior que seja o grao deperfeição a que chegue o romancenaturalista inglez, há de ter muitacoisa de Georg Eliot, o alemãomuita cousa de Freytag, o russomuita coisa de Gogol, isto é, departicularmente inglez, alemão,russso [sic], máo grado as

influencias reciprocas dessaslitteraturas, mais ou menos intensasconforme a idiosyncrasia de cadaautor.

No Brazil, porem, o naturalismo foiimportado da França, todo feito earmado com todas as peças; é umaplanta exótica, e é isto queconstitue o principal defeito dosnossos romances modernos.

Quando foi publicádo o artigo, aque se refere este em seu começo,acabava de apparecer, no meio deuma nuvem de encomios, OHomem, de Aluizio Azevêdo. Nãoquizemos ainda então occupar-nos

desse livro, aguardando mais calmae seria manifestação da opiniãopublica á respeito. [sic] Em todaparte elle foi acolhido comoverdadeira e perfeita manifestaçãoda escola naturalista. Sejam-nospermittidas agora algumasobservações sobre elle.

O Homem é um romancecosmopolita, universal. Pelo seuthema faz lembrar L'accident de M.Hébert de L. Hennique, ou a Mortede Ivan Iliitcht de Tolstoi,approximando-se porem muito maisdo primeiro, isto é, do romancepuramente physiologico ou antespathologico.

No livro de Tolstói a doença, alesão physica de um orgam éapenas indicada, entrevista, tãoobscuramente quanto a podeentrever o proprio doente, e othema do romance é a morte; essalesão influe no espirito do enfermo,porem indirectamente; é a noção damolestia, a idéa da morte e as qued'ahi nascem que produz aperturbação nos pensamentos, umaconcepção nova do mundo e dascousas, as extravagancias noproceder. O leitor vê pelos olhosdo doente e não pelos do medico.

Em Germinie Lacertaux, dosGoncourt, o mal physico só se

revela pelos seus effeitos,dete[r]minando as acções dapaciente, subjugando a cadainstante a rasão; nada de anatomia,de dissertação physiologica.

E' exactamente o contrario que seda com o discipulo de Zola. Aqui éo medico expondo ex-cathedra aorigem e o desenvolvimento damolestia de Mme. Hébert e essamolestia, embora occupe largaparte do livro, pouca alteração trazás funcções psychicas dopersonagem encarregado desoffrel-a.

No romance brasileiro asperturbações mentaes são resultado

immediato e directo da molestia,são a propria molestia em si, e oestado psychologico da doente,fóra dos acessos, por muito temponão soffre alteração alguma, poremas observações pathologicasoccupam no livro um lugar bastanteamplo.

Mas onde elle se distancia maisdos outros, que citamos, é nesteponto que no de Tolstoi apsychologia morbida é o centro, emtorno do qual circulam episodiosda vida intima e da vida publicados funcionarios russos,observações, estudos palpitantes derealidade, pormenores triviaes,

tornados epicos sob a suaadmiravel penna; o de Goncourtestá, mutatis mutandis, no mesmocaso; no de Hennique, a doença épor sua vez um episodio em umquadro de cóstumes burguezes naFrança; no do Sr. Aluizio porem adoença é tudo, condição e objectodo romance. O Brazil apenas entraalli com os nomes das localidades.Muda-se a scena para Madrid,Baltimore, Buckaresti, Moscou eella será igualmente verdadeira. Ahysteria é de todos os paizes, e asregiões ideaes, onde se desenvolvea parte sonhada da acção, e em queo auctor emprega o seu grandetalento descriptivo, colorindo-as

com as bellezas e riquezasindigenas, por isso mesmoque sãosonhadas, não podem representar anatureza tal qual a nosso ver deveser comprehendida por umescriptor naturalista.

Primeiro expliquemos nos, poisque o auctor só permite a leitura deseu livro a "quem tiver idéas bemclaras e seguras a respeito doNaturalismo".

Por serem exactamente as mesmasdo eminente escriptor, não deixamas nossas idéas de ser firmes eaccentuadas.

Entendemos que a Nature[z]a para

o escriptor naturalista só pode serconsiderada sob um aspecto, é o dainfluencia que exerce sobre ohomem, como uma dasdeterminantes, já do seu caracter,já de tal ou tal acto ou volição, jádeste ou aquelle estado particulardo seu espirito.

O homem está sempre a reflectirem suas determinações, em suasvelleidades, em suas emoções ainfluencia de um objecto de umacousa, muito insignificante asvezes, do que o cerca, do que caedebaixo dos seus sentidos.

Em uma obra naturalista, umaligeira particularidade relativa ao

estado do céo, o vento, um somlonginquo ou proximo, um fundo depaizagem, indicada rapidamente,em uma phrase, no meio do dialogoou da acção, representa um modode ser particular nas idéas ou nasemoções do personagem.

A natureza é sempre um factor...

Aluizio o sabe muito bem; ocasarão sombrio da Tijuca e aatmosphera das igrejas representambem o seu papel no romance, mas anatureza tropical e a vegetação dailha imaginaria nada absolutamenteimportam ao desenvolvimento daacção. Creação é uma phantasia

morbida, producto em vez defactor, ellas só adquiremimportancia nas ultimas paginas doromance, na recordação dolorosadas venturas gozadas em sonho.

Seja-me relevada a ousadia dediscordar do eminente litterato e deseus amigos; a descripçãodaquellas paragens é muitonaturalista para um productodaquella imaginação de moçadoente, e muito refinada pararepresentar as influencias herdadasou recebidas na infancia daprotagonista.

Em summa esse importanteromance apresenta bem

caracterisado o defeito quedissemos existir em todos osensaios naturalistas brasileiros,isto é ser extranho á sociedadepropriamente nacional, não ser umestudo do caracter brasileiro.

E tão longe do auctor do Homemandou a idéa de fazer um quadro decostumes brasileiros que, alem deser absorvida pela pathologia umagrande parte do livro, quasi todosos seus personagens pertencem auma sociedade exotica. A Justina, oLuiz, os outros operarios, fallam,obram, pensam como portuguezes,bem isolados da gente do paiz.

Não deixará por isso de ser umlivro excellente, util a fazer épocana litteratura brasileira; admiramoso talento de Aluizio e entendemosque O Homem deve occupar logarhonroso na galeria dos nossosmelhores romances, mas fazemosvotos para que os novos cultoresdo naturalismo esforcem-se por darum cunho mais acentuado denacionalidade ás suas obras, eexplorem a mina, quasi virgem, dosnossos costumes populares e dointerior.

JOSÉ CARLOS JÚNIOR17

Diferentemente de seus antecessores,

José Carlos Júnior foi mais claro eincisivo em sua crítica, tomando comomote o nacionalismo literário, tema esseque já estava presente na literaturabrasileira pelo menos desde oromantismo, ou mais acentuadamentenele. Era o velho tema da literaturamissionária que o crítico reclamava,pois na sua compreensão faltou aoromance em questão a cor local, que lheseria dada pela natureza. Esse empenho,como o chamou Antonio Candido, foisempre reclamado de nossos escritores:era preciso dizer o Brasil, mostrarlhecomo algo genuíno e não somente umcópia dos produtos que importava. Essaqueixa, quase psicanalítica, também aencontraremos nos textos críticos de

Adolfo Caminha quando ele reclamavadas inúmeras traduções feitas para oteatro ou ainda do fato de importarmosda França todo o nosso repertório deleitura. Nesse sentido, os críticosencontraram no realismo e nonaturalismo, como estéticas e técnicasliterárias, um campo fértil. Ainutilização de ambos pareceu entãoincomodar verdadeiramente a críticaliterária como o expressou José CarlosJúnior. Foi talvez essa percepção de queo realismo e o naturalismo poderiamcom suas técnicas dizer mais do Brasilque críticos como Afrânio Coutinho eFlora Süssekind os conceituassem comoescolas e estéticas recorrentes naliteratura brasileira. É o que veremos,

por exemplo, em Tal Brasil, Qualromance?, de Süssekind, mas tambémno já citado Coutinho (1975, p.195) quea propósito afirmou:

No nosso século, fora e tambémdentro do Brasil, o Realismoconstitui a principal tendência daliteratura, e o uso das técnicasrealistas é uma convençãogeneralizada, seja, nas feições maispuras e moderadas, seja em formascombinadas com os elementostécnicos e temáticos doSimbolismo, do Impressionismo,do Expressionismo, seja sob asmanifestações do Neo-naturalismoou Neo-realismo populista,

socialista e existencialista.

O que o crítico também discutiu é umdos pressupostos então em voga no fazerliterário: o meio. A influência do meiosob a escrita literária ficcional foicrucial na literatura e na crítica literáriaque se produziu à época. O que pode omeio e como pode o escritor representá-lo eram questões que ocupavam asmentes dos escritores e críticosliterários brasileiros. Essa parece umaquestão recorrente para os nossoscríticos literários. José Carlos Júnior foium deles. Também o que está no interiorde sua queixa é a verossimilhança, ouseja, tomando por base os parâmetros daestética naturalista, o que é possível

representar, como representar, eramperguntas que norteavam o seupensamento.

A fórmula ciência+literatura parece terde alguma maneira conformado a escritaficcional, sobretudo quando osescritores naturalistas procuraramseguila à risca. A crença na verdade seapresentou pela representaçãominuciosa dos fatos. Dizer tudo, mostrartudo, até mesmo o mais escondido e oproibido foi a ética do naturalismo,considerada pelos críticos maispuritanos como falta de ética. Some-seaos componentes da fórmula literária donaturalismo a representação dasociedade e a contribuição do

aparecimento da sociologia entãoteremos um amálgama em que nossosescritores fincaram as bases de seusescritos. Nesse sentido, afirmou AfrânioCoutinho: "Assim, o acontecimento maisimportante da história da cultura noséculo XIX foi a convergência dabiologia e da sociologia, que derramoupor tôda a parte, na observação einterpretação da vida, a atitudeevolucionista" (ibidem, p.183).

Por fim, é claro que José Caros Júniorpercebia que aquele era ainda ummomento de afirmação das ideiasnaturalistas destacadamente na dinâmicaliterária brasileira, sempre marcadapelo atraso em entregar no Brasil os

produtos culturais e intelectuais queimportávamos. O teor comparativo doartigo, citando romances de Zola, Gogole dos Goncourt mostra que os escritorescearenses estavam com suas leiturasatualizadas e estabeleciam comparaçõesa partir de temas que definiam comoimportantes para a constituição do fazerliterário à época.

É preciso destacar que os artigos aquiapresentados tiveram como objetivomostrar que aos poucos as ideias queencontraremos no conjunto da obra deAdolfo Caminha estavam sendoassentadas no Ceará. O terrenointelectual estava aos poucos seformando, malgrado as dificuldades.

Quando Adolfo Caminha chegou àFortaleza, mesmo sempre se queixandoda monotonia local, como é possívelperceber nas páginas de sua coluna"Sabbatina", no jornal O Pão, as ideiasditas modernas e renovadoras já eramconhecidas de vários homens e mulheresde letras. Não diríamos de todos e todasou nem todos e todas as cultivavam, poiscomo vimos, o romantismo não deixoude ser empregado como estética e nem orealismo ou o naturalismo pontificousozinho. Nosso objetivo, então, émostrar como a imprensa literária lidavacom essas questões supostamente novaspara a intelectualidade e a vida nacidade.

Agora, porém, é hora de alimentar oespírito, aguardar a chegada de AdolfoCaminha, que, logo ao desembarcar emFortaleza, foi convidado a pôr a mão namassa, arregaçar as mangas e assar OPão, o pão dos padeiros da PadariaEspiritual.

Uma padaria para o espírito

Rua Formosa, moça bela apassear Palmeira verde e uma lua apratear Um olho vivo, vivo, vivo, aprocurar Mais uma idéia pro padeiroamassar.

(Ednardo, "Artigo 26")

"Perguntas-me, entre curioso e tímido,como é que nasceu a Padaria Espiritual.Sei lá. Quem sabe a verdadeira origemdas cousas?" (Caminha, 1999a, p.127)Foi com essas palavras que AdolfoCaminha, de um modo supostamenteincerto, referiu-se ao inicio dasatividades da Padaria Espiritual que sedeu em 30 de maio de 1892. A incertezado nascimento da agremiação dosPadeiros, como eram chamados os seusmembros, continuou no decorrer da falade Adolfo Caminha em artigo que eleescreveu já na volta definitiva ao Rio deJaneiro. O artigo intitulado "PadariaEspiritual" foi publicado junto de

outros, em 1895, enfeixados com o títuloCartas literárias. No citado artigolemos:

O que desde logo te posso irdizendo é o seguinte: Aos tantos demaio de 1892, foram ao escritóriodo Diário, jornal em que eutrabalhava, dois rapazes (lembra-me bem que um deles trazia umpince-nez) convidar-me para fundaruma sociedade literária, cujo nomefosse Padaria Espiritual. (ibidem)

Naquele momento de sua vida, o escritorse encontrava em Fortaleza. Em 1888,mais precisamente em junho daqueleano, segundo informação de Sânzio deAzevedo (1999, p.157), Adolfo

Caminha "Apresenta a patente e, pormotivos de saúde, pede e obtemtransferência para o cruzadorPaquequer, sediado em Fortaleza,Ceará". Se nas duas agremiaçõesanteriormente analisadas – AcademiaFrancesa do Ceará e Clube Literário –Adolfo Caminha estava no Rio deJaneiro completando os seus estudos naMarinha, no caso da Padaria Espiritual,como vemos, foi diferente. Assim,deixemos que ele recorde o seu encontrocom os futuros amigos de agremiação:

Qual o programa? inquiri depois deestranhar o título.

– Isso veremos. A primeira sessão

preparatória realizar-se-á no CaféJava, ali à praça do Ferreira...Você está designado para escreveruma carta a Guerra Junqueiro.

– Como uma carta a GuerraJunqueiro?

– O Sales vai se dirigir a RamalhoOrtigão, o Tibúrcio a Eça deQueiroz, o Lopes

Filho a Antônio Nobre. A vocêcoube-lhe Guerra Junqueiro.

– Mas... expliquem-se!

– Não é nada: uma ousadia, umescândalo, o que quiser! Trate de

fazer a correspondência para serlida amanhã, no forno.

Ri-me embaraçado, com um ar tolo.

– Que devo escrever, então?

– Fale ao Guerra sobre a Padaria ediga-lhe que queremos umexemplar da Morte de D. João,outro da Musa em férias, outro daVelhice [A Velhice do PadreEterno]..., enfim, um exemplar decada obra dele para a nossa futurabiblioteca. Uma cousa assim...(Caminha, 1999a, p.127)

Por esse breve retrospecto já podemosperceber que o recém-chegado Adolfo

Caminha já se dedicava às letras porintermédio da edição de jornais,notadamente O Diário, cujo primeironúmero é de 6 de maio de 1892;portanto, alguns dias antes da instalaçãoda Padaria. Esse fato fez-nos dedicar umcapítulo deste trabalho ao autor-editorde periódicos literário e noticioso,como veremos adiante. Em O Diáriotambém não faltaram referências ao Pão,órgão da Padaria Espiritual. Nessemesmo trecho citado, é possívelperceber já algumas características daPadaria Espiritual, destacadamente a suairreverência. Tratava-se de "umasociedade de rapazes de Lettras e Arte"como constava no artigo primeiro de seuPrograma de Instalação. O objetivo da

agremiação, segundo o já dito programa,era "fornecer pão do espírito aos sociosem particular e aos povos em geral".Mas, quem foram esses sócios? O quesignificava o "pão do espírito"? Por queessa nomenclatura tão diferente:padaria, padeiro, forno, fornada,padeiro-mor para um grêmio deliteratos?

Os seus membros não foram poucos.Uma vez instalada em 1892, a Padariasofreu uma reorganização em 28 desetembro de 1894, quando, segundoSânzio de Azevedo (1976, p.158),"entraram para os seus quadros mais 10sócios". Assim, podemos falar em duasfases da agremiação: a primeira, que vai

de 30 de maio de 1892 a 28 de setembrode 1894; a segunda, que vai dessa datada reorganização até 1898, quando seextinguiu o grêmio. Da primeira faseparticiparam vinte sócios, quantidadeque ordenava o terceiro artigo doPrograma de Instalação: "Fica limitadoem vinte o número de sócios, inclusive aDiretoria, podendo-se, porém, admitirsócios honorários, que se denominarãoPadeiros-livres" (ibidem, p.151).

Como consta no artigo sexto – "osPadeiros terão um nome de guerra único,pelo qual serão tratados e do qualpoderão usar no exercício de suasárduas e humanitárias funções" – todoseles assim o fizeram. Segue a lista dos

nomes daqueles que participaram daprimeira fase com seus respectivosnomes de guerra grafados em itálico:Jovino Guedes, Venceslau Tupiniquim;Antônio Sales, Moacir Jurema; Tibúrciode Freitas, Lúcio Jaguar; UlissesBezerra, Frivolino Catavento; CarlosVítor, Alcindo Bandolim; José de MouraCavalcante, Silvino Batalha; RaimundoTeófilo de Moura, José Marbri; ÁlvaroMartins, Policarpo Estouro; LopesFilho, Anatólio Gerval; TemístoclesMachado, Túlio Guanabara; SabinoBatista, Sátiro Alegrete; José MariaBrígido, Mogar Jandira; HenriqueJorge, Sarazate Mirim; Lívio Barreto,Lucas Bizarro; Luís Sá, Corregio delSarto; JoaquimVitoriano, Paulo

Kandalaskaia; Gastão de Castro, InácioMongubeira; Adolfo Caminha, FélixGuanabarino; José dos Santos, MiguelLince e João Paiva, Marco Agrata.

Após a reorganização, mantendo ohábito dos nomes de guerra, aagremiação passou a contar com maisquatorze sócios, além daqueles jáexistentes, o que de certo modo nãocumpria com a determinação do jácitado artigo terceiro. São eles: Antôniode Castro, Aurélio Sanhaçu; José CarlosJúnior, Bruno Jaci; Rodolfo Teófilo,Marcos Serrano; Almeida Braga, PauloGiordano; Valdemiro Cavalcante, Ivand'Azhoff; Antônio Bezerra, AndréCarnaúba; José de Carvalho, Cariri

Braúna; X. de Castro, Bento Pesqueiro;Eduardo Sabóia, Braz Tubiba; JoséNava, Gil Navarra; Roberto de Alencar,Benjamin Cajuí; Francisco FerreiradoVale, Flávio Boicininga; ArturTeófilo, Lopo de Mendoza e Cabral deAlencar, Abdul Assur.

O uso de pseudônimos já era correntenos órgãos literários do século XIX noCeará. Já em A Quinzena, órgão doClube Literário, encontramos JoséCarlos Júnior assinando, com o mesmonome de guerra que adotou na Padaria –Bruno Jacy –, seis poemas e dois contosao longo dos trinta números doperiódico. Também em A Quinzenaencontramos Oliveira Paiva assinando

como Gil ou GIL BERT. Vale destacarque a Padaria não reuniu apenas homensde letras, mas também um pintor edesenhista: Luis Sá, e dois músicos: osirmãos Henrique Jorge e CarlosVítor.Mas voltemos à recordação deCaminha.Vemos por ela que a sessão deabertura dos trabalhos da Padaria deu-seno Café Java,18 um dos quatro quiosquesque se localizavam na praça do Ferreirae era de propriedade do afamado ManéCoco.

A irreverência que marcou a Padaria jáse deu nessa sua sessão de instalaçãofeita em praça pública. Não menosirreverente foi a atitude dos Padeiros aoescreverem cartas para os autores

portugueses, pedindo-lhes exemplaresde suas obras, com o objetivo, talvez, decumprir o que designava o artigo 24 doseu Programa de Instalação: "Trabalhar-se-á por organizar uma biblioteca,empregando-se para isso todos os meioslícitos e ilícitos" (Azevedo, 1976,p.153). Ou talvez para terem maisacesso ao que se fazia em Portugal. Airreverência continuou na designaçãodos membros, que, assim como jávimos, se chamaram "Padeiros",estendendo-se para os nomes de guerraque escolheram. Alguns foram maiscontidos, relacionando os seuspseudônimos com situações de sua vidapessoal ou profissional, como o foi, porexemplo, Adolfo Caminha, que adotou o

nome de Félix Guanabarino, numareferência à baía da Guanabara e à suaatividade como marinheiro; outros foramalém: como Paulo Kandalaskaia, BrásTubiba, Frivolino Catavento, PolicarpoEstouro, Lucas Bizarro. Esses nãoeconomizaram na extravagância dospseudônimos.

Também não faltaram exemplos devalorização de elementos nacionais,como nomes que se referiam à flora e àfauna brasileiras: Moacir Jurema, InácioMongubeira, Aurélio Sanhaçu; AndréCarnaúba e Cariri Braúna. Esse, talvez,tenha sido o mais radical ao cumprir oque determinava o sexto artigo doPrograma de Instalação – "Será julgada

indigna de publicidade qualquer peçaliterária em que se falar de animais ouplantas estranhas à Fauna e à Florabrasileiras, como: cotovia, olmeiro,rouxinol, carvalho, etc, etc." (ibidem) –trocou nome e sobrenome por elementosnativos: o vocábulo Cariri, que designauma região do sul do Ceará e é tambéma principal família de línguas indígenasdo sertão do Nordeste, e também aBraúna, uma corruptela do vocábuloBaraúna, espécie de árvore nativa. Nãoparece ter sido acaso, então, que JoséCarvalho tenha se dedicado, comoafirmou Sânzio, à coleta de trovaspopulares e ao estudo do folclore(ibidem, p.163). Além de trocar ocarvalho europeu pela baraúna

brasileira.

O mais importante deste uso de nomesde guerra, uns mais jocosos do queoutros, porém, é a abolição do nome defamília. Mesmo sendo os "Padeiros"homens oriundos das camadas simplesda população cearense, pois muitosdeles eram empregados do comércio,como se dizia à época – caixeiros – ouprofessores, o fato de escreverem semseus nomes de batismo significava arenúncia da forte tradição do nome defamília, como não o fizeram a maioriados membros das agremiações que osantecederam.

Vale destacar o fato de que também pelaprimeira vez no Ceará esses homens de

letras passaram a ser reconhecidos poruma profissão braçal ou manual emoposição ao trabalho intelectual querealizavam. Era, assim, uma atitude deconfronto com a lógica estabelecida nalonga tradição associativa dos homensde letras cearenses, todos os seusantecessores adotaram os títulos depoetas, escritores, romancistas, enfim,todos os designativos do trabalhointelectual. Eles não o fizeram, pois sedefiniram como padeiros, mesmo queproduzissem o pão do espírito,encontrando-se em fornadas, comodesignavam as reuniões, que se realizamno forno, a sede da agremiação.

Entre tantas outras, essas foram marcas

da irreverência da Padaria; irreverênciaque não durou muito, uma vez que a suachamada segunda fase (1894-1898), foi,segundo Sânzio de Azevedo, "menosbrincalhona e mais voltada para ostrabalhos de maior fôlego" (ibidem,p.158). Essa segunda fase ficou a cargode dois padeiros-mor: José CarlosJúnior e Rodolfo Teófilo. Ambos foramantecedidos por Jovino Guedes. Assimcomo o Clube Literário, a convivênciade estéticas foi intensa durante aexistência da Padaria Espiritual,valendo portanto para a sua análiseaquelas mesmas palavras de AfrânioCoutinho que considerou o final doséculo XIX como uma encruzilhadaestética.

No interior da Padaria havia padeirossimbolistas, como foi o caso, porexemplo, de Lopes Filho, que em 1893publicou Phantos, um livro de poesiasimbolista, ou seja, no mesmo ano emque Cruz e Souza tinha publicados osseus Missal e Broquéis no Rio deJaneiro, onde também Adolfo Caminha,pela mesma editora que Cruz e Souza, aDomingos de Magalhães, tinhapublicado o seu romance de estreia, Anormalista (Cenas do Ceará) escrito emFortaleza durante o período em que foramembro da Padaria como ele mesmolembrou: Vai para dois anos, meuamigo, que uma forte resolução e umabrisa de prosperidade arrancaram-se aesse poético e delicioso Outeiro, onde,

por umas tardes incomparáveis dedoçura e quietação, pude escrever aspáginas mais verdadeiras e maissinceras do meu primeiro livro...(Caminha, 1999a, p.127).

O que atestou também a escrita d'Anormalista enquanto Adolfo Caminhamorava em Fortaleza foi um artigo deLucio Jaguar ao qual já nos referimos aotratar neste capítulo do que chamamosde "tempo da produção". Se do Rio deJaneiro Caminha trazia na bagagem doislivros – Voos incertos (primeirosversos) e Judith e Lágrimas de umcrente – ambos de 1887 – ele saiu deFortaleza carregando na sua bagagem umlivro muito mais bem acabado, seja no

que diz respeito à narrativa, seja no quediz respeito à construção daspersonagens. Foi de Fortaleza que elepartiu para, logo após chegar ao Rio deJaneiro, lançar-se na crítica literária naspáginas da Gazeta de Notícias,periódicos fluminense de Ferreira deAraújo, como veremos neste trabalho nocapítulo dedicado ao autor-crítico.

É preciso destacar essa passagem deAdolfo Caminha por Fortaleza. É bemverdade que ela já viera do Rio deJaneiro homem feito, tenente da MarinhaImperial Brasilera, educado nas tarefasdo mar e onde também, além daformação militar, já demonstravadedicar-se à literatura. No entanto, foi

após a passagem por Fortaleza que seestruturou o autor de ficção, ao menosde uma ficção bem mais amadurecida doque aquela que ele trazia em suabagagem antes de desembarcar no portodo Ceará. Foi de Fortaleza que eletambém se lançou para a imprensaliterária de maior porte. Editando nacapital cearense o jornal O Diário e aRevista Moderna, pôde, chegando aoRio de Janeiro, trabalhar nas páginas daNova Revista e, assim, atuar comoeditor. O que nos leva a concluir queFortaleza lhe serviu como um grandelaboratório de experiências que fizeramdele um polígrafo, aqui entendido nosentido mais amplo possível, nãosomente como aquele que escreve sobre

diversos assuntos, mas aquele queescreve de forma diversa e cujasdiversas escritas mantêm entre sirelações que ajudam a criar a ideia deuma dinâmica interna de construção dosentido de obra, que não se confundecomo sinônimo de livro, de volume, deobra completa, mas é, mais do que isso,um modo de organizar que se fazperceber pelos seus pontos de contatointernos.

Nas páginas de O Pão, Adolfo Caminhadeteve-se na análise de Fortaleza, na suavida cotidiana, na sua vida literária,queixando-se sempre do pouco caso dapopulação para com os homens deletras, notadamente os Padeiros. Parte

disso já foi aqui trabalhado ao tratarmosdo seu constante descontentamento como comodismo da sociedade cearense deentão e também ao tratarmos do seudescontentamento com o burguês ou coma burguesia entendida segundo oscritérios de sua época.

Mais do que as duas citadasagremiações, a Padaria Espiritualpublicou uma infinidade de textosficcionais: poemas, contos, fragmentosde romances. Não faltou também acrítica literária. Rodolfo Teófilo, porexemplo, escreveu vários artigos sobreo romance A normalista. Antônio Salese Teófilo colocaram-se a respeito dasCartas literárias. O romance Bom-

Crioulo foi anunciado em O Pão. Enfim,até ser desligado definitivamente daPadaria, o que segundo Sânzio deAzevedo com fundamentado eminformação de Leonardo Mota, deu-seem 19 de julho de 1896, desligamentomotivado talvez pelo seu artigo PadariaEspiritual, que data de 1895, como já ovimos, ou pelo artigo, também já visto,publicado na Mala da Europa, emPortugal, até então Caminha manteve-seem contato com a agremiação, mesmo játendo voltado definitivamente ao Rio deJaneiro.

A Padaria manteve-se, no seu períodode funcionamento, como umaencruzilhada de ideias e contatos. Os

registros de sessões e comemorações deoutros grupos são diversos, como oaniversário de Justiniano de Serpa,festejado pelo Centro Literário,agremiação fundada em 1894 pordissidentes da Padaria – TemístoclesMachado e Álvaro Martins, esse, defato, só chegado depois, aos doispoderíamos juntar o nome de JovinoGuedes, no entanto esse mantevese nosdois grupos.19 Assim como oaniversário de Justiniano de Serpa, foisaudado o retorno de João Lopes, aqueleda Academia Francesa do Ceará, aFortaleza, onde, com a família, passavaférias. A esse respeito, em O Pão de 15de janeiro de 1895, lemos: "A Padaria étoda abraços para cingir ao querido

amigo no mais effusivo e fraternalamplexo".

Também não são poucos os anúncios derecebimentos de livros e periódicosliterários e dos mais diversos tipos, bemcomo solicitações de envio de O Pãopara agremiações de diversas cidades eestados brasileiros. Também o ir e virdos Padeiros era sempre notificado naspáginas do periódico, ao qual tambémnão faltavam os registros de nomesconhecidos da literatura de então, comoAfonso Celso e Pardal Malet, esse depassagem pelo Ceará quando do fim deseu exílio no Norte do país.

O que queremos mostrar com o entãoexposto é que uma rede de relações se

estabelecia entre as agremiações,funcionando como uma forma de difusãode ideias e também de obras. LucianaBrito, em sua tese de doutorado,considerou o jornal O Pão como uminstrumento de intervenção na realidadecearense de então. Uma dessasintervenções foi, segundo ela, avalorização do profissional de letras e aformação de um público leitor. LucianaBrito (2008, p.143), a respeito daPadaria e da participação de AdolfoCaminha nela, afirmou:

Para Caminha e os outros padeiros,a literatura não seria uma meraexperiência do devaneio, umaatitude singularmente escapista,

mas um campo possível deredescoberta do humano, através daqual os escritores teriam a missãode regenerar comportamentos evalores daquela época. Cabeafirmar que a idéia do "pão doespírito" teria um papel quasepedagógico de ensinar aos leitoresa não serem tomados pela falsarealização material causada pelafebre de consumir produtosindustrializados.

Apesar de já estar desligado da Padaria,como veremos na análise dos periódicoseditados por Adolfo Caminha,notadamente no caso de A Nova Revista,de 1896, esse não deixou de anunciar

nas páginas do periódico citado oslivros dos colegas cearenses que lheeram enviados, servindo, desse modo, arevista de vitrina da literatura local naentão capital do país, além,evidentemente, de ainda estar tomadopor aquele papel pedagógico do qualtratou Luciana Brito.

É preciso considerar que a convivênciasimultânea dessas agremiações foi omodo encontrado de difundir ideias,expandir o movimento de produção daliteratura, o que não significa, noentanto, que entre elas não houvessedivergências. Nessa dinâmica própriaconfluíam as condições materiais eintelectuais de então. Temos sempre a

compreensão de que as ideias vinham docentro para as periferias literárias dopaís, mas, como vimos, apesar dosdiversos problemas enfrentados, o queuma análise mais descentralizada nosmostra é que o fluxo de ideias percorriao país então dividido entre os do Nortee os do Sul. É evidente que o Rio deJaneiro era a capital da República dasLetras no Brasil do século XIX, e nempodia ser diferente, afinal, na capital doimpério e posteriormente da Repúblicaachavam-se as melhores oportunidadespara o trabalho de nossos homens deletras, sobretudo porque um sistemaliterário mais complexo que ospermitisse viver apenas do trabalho coma palavra era inexistente em outras

cidades do país. Por esse motivo,trabalhamos acima a respeito dosacordos com o tempo, pois, ao dividir-se entre tantos afazeres, o homens deletras sentia que nada era mais materialdo que o tempo.

Voltando ao Rio de Janeiro, AdolfoCaminha conviveu com as ideias quepor lá e pela província também já sedifundiam há muito. A crença emdeterminantes como meio, raça emomento era a tônica de nossa críticaliterária representada pelos três grandescríticos então em voga: Araripe Júnior,Silvio Romero e José Veríssimo. Esseseram ingredientes que, naquele períododo século XIX no Brasil, não podiam

faltar a uma boa massa de pão doespírito, ou seja, a literatura, que muitasvezes voltou-se para si própria, para asua constituição, produzindo umdiscurso, que, aqui chamamos de"discurso do descontente", sinalizandoum mal-estar com as condiçõesmateriais e intelectuais que rodeavam oshomens de letras. É sobre esse discursoque tratamos na seção seguinte.

O discurso do descontente. Os perfisdo autor.

As memórias de produção daliteratura brasileira

– E tenciona viver das letras?

perguntou assombrado. Oestudante encolheu os hombroscom resignação e o outroirrompeu: Pois meu amigo, aceiteos meus pezames. E, inclinandose,rugiu ao ouvido de Anselmo:Cure-se! Não vá para umconvento, vá para um hospício.Cure-se emquanto é tempo. Nestepaiz viçoso a mania das letras éperigosa e fatal! Quem sabesintaxe aqui é como quem temlepra. Cure-se! Isto é um paiz decretinos, de cretinos! convença-se.

(Coelho Neto, A conquista)

A relação entre as condições materiais eintelectuais produziram um fato ligado

diretamente à produção do discursoliterário. O fato de não poder viversomente de sua escrita, recebendo osdividendos que considerariam justos,causava nos autores de um modo geral e,em particular, em Adolfo Caminha aprodução do discurso que chamamos dediscurso do descontente. Ainda que nãotenha sido retirada de um títulocaminhiano, a epígrafe citada é umexemplo do que aqui afirmamos. Trata-se de um discurso marcado, fortemente,por recursos da oralidade: o usoconstante de vocativos, de advérbios, delocuções. Nele, a ironia e a críticacontundentes tomam especial feição naconstituição de personagens que estãofora de um texto pactualmente ficcional

como podemos constatar na citação aseguir, e em especial nos grifos quepusemos:

Dói n'alma e causa desalento oabandono quase completo, aindiferença já tanta vez invocada,com que são vistos no Brasil oshomens de letras, os obreiros dainteligência, os abnegados daArte, para quem a vida consisteprincipalmente no belo e naverdade, fundidos num símboloindissolúvel e eterno; maior pena,porém, é ver a estatística dasnossas produções literárias, asinopse demonstrativa do nossoesforço mental durante trezentos e

sessenta e cinco dias do ano.

Admiram zelosos economistas oestado das nossas finanças ebradam e vociferam contra orelaxamento dos governos... Pobreliteratura nacional! Essa nem aomenos encontra quem lhe chore oabandono pungente.Vive por aí,mísera viúva, perpetuamente emcrepe, num abandono pungente,coberta do desprezo e de ridículo,apupada mesmo pela malandriceaudaciosa e irreverente...(Caminha, 1999a, p.17)

Esse discurso, porém, é também oregistro da condição desfavorável emque vivia o autor. E porque o faz

significa dizer que ele tem em menteuma condição favorável ou que aomenos considerasse como tal, apesar dedenotar que vivia em uma condiçãodesfavorável. Definem-se a partir deledois perfis do autor. No primeiro está arealidade representada por Caminha.Nesse perfil, os autores sãopreguiçosos, bajuladores da imprensa,amantes da flânerie, como podemosconstatar nesta sua afirmação:"Preferimos a suave palestra,descuidada e livre, do beco do Ouvidor,ao penoso trabalho de gabinete,monótono e esfalfante, que produzsábios e loucos, literatos etuberculosos" (ibidem).

Não somente por oposição podemosconstatar em seus textos o que paraAdolfo Caminha seria o perfil ideal.Primeiramente, por oposição aoprimeiro perfil, o autor ideal seria otrabalhador incansável, o operário dasletras recluso em seu gabinete,pesquisando livros e toda a sorte deescritos que lhe pudessem servir defonte. Mas é no próprio texto deCaminha que encontramos o perfil ideal.Portanto, deixemos o autor falar:"Falemos, sim, dos que entram nomaravilhoso templo da Arte com orespeito e a convicção de sacerdotesimpolutos. Diminuidíssimo é o númerodestes. Magra estatística onde se reflete,tal como é, a nossa índole – meio

cabocla, meio ariana – preguiçosa emórbida" (ibidem).

Esse sujeito que escreve o discursodescontente é um sujeito com práticasem estado de tensão entre o presente e odevir, entre as circunstâncias e o desejo.As marcas do discurso oral, aliadas aosrecursos da comparação, darememoração de fatos na tentativa deexplicar as circunstâncias, os seguidosexemplos, a narração pormenorizada deacontecimentos, as citações, as notasexplicativas só são possíveis graças auma característica da escrita: a fixaçãodo pensamento, notadamente aquele quese deseja vincular como memória.Caminha traz à cena o passado e o futuro

que ela deseja, mas, como todo futuro, éainda desconhecido. O uso dessesrecursos demonstra o quanto assegurarao menos as garantias relativas era umanecessidade premente dos autores, oupelo menos de Adolfo Caminha noBrasil do final do século XIX, naquelemomento de mudanças as mais diversas,quando mesmo de forma canhestra opaís passou a fazer parte do comérciointernacional de bens de consumoindustrializados. O autor que entrava nomercado era apenas o consumidor e nãoo produtor de um bem que lhe rendessedinheiro o suficiente sem que precisasserecorrer a outros expedientes e serviços.

Esses relatos da insatisfação, do

sentimento de abandono, da condição depouco caso com que se sentiam tratadosos autores e os homens de letras, estãomuito presentes nas cartas trocadas entrepares ou em autobiografias e memórias.A sua presença também é constante naliteratura nacional; tão constante quantoa escrita de romances, contos, novelasetc. São narrativas de um eu autoralescritas ao mesmo tempo em que sãoescritos os textos ficcionais. Portanto,constituem memórias da produçãoficcional nacional; são memórias dascondições de produção e, notadamente,do produtor. A constância desses relatosfez que eles passassem a conviverdiretamente com o texto literárioficcional. Eles são o exemplo do

diálogo entre as práticas do autor e docrítico, portanto, do polígrafo.

Assim, esses relatos constituem umaforça fundamental, por exemplo, naconstrução de personagens, nasexperiências do narrador, nasobservações feitas ao narratário. Sãofontes pouco exploradas na história daliteratura nacional. Um bom exemplodesse tipo de discurso está em Aconquista e em A capital federal, ambosromances de Coelho Neto, que são aomesmo tempo, na nossa compreensão,literatura e memória de uma geração deescritores que se empenharam paraentrar no campo literário. Nesse sentido,o autor fala de si mesmo, transforma-se

em matéria da sua obra, mas nãodiretamente; ele o faz em estado detensão, de atrito entre a ficção e acrítica, entre o real e o ideal, usando, atémesmo, pseudônimos, em vez de nomes,para as personagens, uma vez que pelopróprio pseudônimo é fácil saber dequem o autor estava tratando. Em Aconquista, por exemplo, Rui Vaz éAluízio Azevedo; Octavio Bivar éOlavo Bilac; Luiz Moraes é Luiz Murat;Paulo Neiva é o cearense Paula Ney eAnselmo Ribas o próprio Coelho Neto,autor do romance. A referência a Josédo Patrocínio é explicita, o que cria umatensão entre o real e a representação nointerior da narrativa romanesca,reforçando o aspecto da memória.

É, pois, entre as tensões do real e doideal, do vivido e do desejado,concernente à prática da escrita e dapublicação de livros, que se estrutura,ao menos em parte, a problemática e aanálise aqui expostas, pois estas tensõesestão no cerne dos escritos de AdolfoCaminha e nos serviram para def ini-locomo um autor tenso na introdução destetrabalho. Nesse sentido, os relatos deCaminha a respeito das condições deescrita dos seus textos são consideradospor nós também como memórias; sãoconsiderados em si e na relação delescom o sujeito que os produziu e ainda narelação com os textos f iccionais, poisnão procuramos neutralizar a forçaespecífica desses relatos. A esse

respeito, afirmou Pascale Casanova(2002, p.23):

Há muito os escritoresdescreveram eles mesmos,parcialmente e de maneira bemdiversa, as dificuldades ligadas àsua posição no universo literário eàs questões específicas que têm deresolver, sobretudo as leisestranhas da economia específicasegundo a qual é governado oespaço literário. Porém, a força dedenegação e de recusa é tão grandenesse universo, que todos os textosabordam com mais ou menosdetalhes essas questões perigosas eatentatórias à ordem literária foram

de imediato neutralizadas. DesdeDu Bellay, muitos foram os quetentaram em suas próprias obrasrevelar a violência e os desafiosverdadeiros que presidiam a suavida e a sua luta específicas deescritores.

Esse caráter memorialístico do textoliterário e do texto crítico parece tersido a causa, por exemplo, para queautores, como o já citado Coelho Neto,fossem esquecidos e quase não figuremna prateleiras das livrarias, ou sejamlembrados por leitores atuais como amesma facilidade que o foram porleitores no passado. Mas nesses autoresesquecidos e realizadores de um

discurso descontente está parteconsiderável da história da literaturabrasileira ou da memória da literaturabrasileira transformada em ficção.Nesse rol de escritores descontentesestá Adolfo Caminha. Os seus textoscríticos passaram mais de cem anos paramerecer uma segunda edição. São fontespouco consideradas para o estudo de suaobra e para o estudo de sua épocaquando o trabalho do escritor no Brasilcomeça a se constituir como ofício, oque significa dizer que ele estavapresente nesse princípio que parece searrastar e não deixa de constituir odiscurso descontente, mesmo com aaparente mudança da situação do autorante as condições de trabalho, o que

faria de seu ofício um entre outros, ouseja, em termos de remuneração,sobretudo na lógica capitalista na qualestamos inseridos, resultaria em ganhosfinanceiros como os demais ofícios.

Tato e transcendência, amor eobjetividade ou um modo de voltar aocomeço.

Para concluir este capítulo, voltamos aoseu começo, mais especificamente àstrês epígrafes que lhe servem de portade entrada. Do trecho da música"Livro", de Caetano Veloso, retiramos aideia que perpassou toda a escrita dopresente capítulo: tato e transcendência,como binômio que significou a relação

entre as condições materiais eintelectuais da literatura brasileira nofinal do século XIX no Brasil. O tatorepresenta, assim, as condiçõesmateriais, a necessidade de objetivar asideias sem as quais ele, o tato, tambémnão se efetiva. Tratar separadamentetato e transcendência só se justifica pelanossa incapacidade de perceber arelação entre ambos, ou melhor, a nossaincapacidade de construir um métodoque os analise de forma mútua, pois é,assim, que eles existem.

Neste capítulo, não compreendemos ascondições como sinônimos dedeterminantes, ideia essa, aliás, vigenteà época em que Adolfo Caminha

produziu o conjunto de sua obra.Compreendemos as condições –materiais e espirituais – comocircunstanciais, que podiam sersuperadas pela existência de um projetopessoal de cada autor. Sendo o séculoXIX uma encruzilhada de estéticas,como o definiu Afrânio Coutinho, não hápor que defender que essas condições,incluindo as condições de cada estética,existissem de modo estanque. Elas seentrecruzam, formam estéticassimbióticas, mutantes, o que dificulta,por exemplo, a nossa capacidade deordenar as coisas, para lembrar, aqui, deMichel Foucault.

De Pierre Bourdieu veio-nos um outro

binômio – amor e objetividade – ou porque não dizer, amor e objeto. Essemesmo objeto que a memória do corponos faz guardar na memória da pele.Binômio esse que também significa asinúmeras relações que se tecem e tecemo campo literário e os demais campos,para usar aqui a nomenclatura deBourdieu. Quanto de amor se colocou naprodução da literatura? Quanto deobjetividade foi recebido? Essas nosparecem que são questões – talvezteóricas – que estão por detrás, doslados, nas terceiras e quartas margens;enfim, dentro do que aqui se procurouapresentar.

De Gilles Deleuze nos veio a ideia do

livro como uma engrenagem namaquinaria que lhe é exterior. O que noslevou, por exemplo, a procurarexemplificar as condições com as quaisa literatura brasileira era produzida noséculo XIX. A ideia de fluxo tambémnos foi cara, pois no permitiu tratar deassuntos diretamente ligados aos mundosdo livro, da escrita e leitura, talvez, deforma indireta, como as coordenadastempo-espaço. A ideia de fluxo nospossibilitou perceber e constituirtambém as relações-possíveis. Nãosomente aquelas que aqui foramexemplificadas ou nomeadas, mastambém se apresentou ao tratarmos daescrita e da vida como uma necessidade.Uma escrita para a vida e uma vida para

a escrita parece ter sido o que nos levoua escrever este capítulo. Assim,voltamos ao começo dele, ao momentoque o iniciamos, capturando ideias deoutros no contínuo exercício de noscolocarmos em diálogo.

1 A respeito de Medeiros eAlbuquerque, afirmou Brito Broca(2005, p.10-12): "Medeiros eAlbuquerque, que foi um dos auxiliaresde Pereira Passos, como diretor daInstrução Pública no Distrito Federal,tendo tomado parte ativa na conspiraçãode que resultou o golpe de 15 denovembro, já havia exercido o mandatona segunda legislatura de 1894. Em

outubro de 1901 foi eleito deputado navaga de Herculano Bandeira,conseguindo reeleger-se em 1904 edepois em 1906, quando permaneceu naCâmara até 1911. Espíritoessencialmente combativo, trocou tirosde revólver com adversários políticos eviu-se, certa vez obrigado a afastar-sedo país para escapar à fúria de inimigosque desejavam eliminá-lo a todo preço,e também para atender aos apelos dochefe de polícia, que não sabia comogarantir-lhe a vida, segundo o próprioescritor nos informa no livro Poralheias terras. Da sua atividade políticadeixou duas leis de grandeimportância: a dos direitos autorais e ada expulsão dos estrangeiros" (grifo

nosso).

2 "Aos que escrevem: Conselhos de umgrande medico francez" (O Diario.Fortaleza, n.30, p.3, 21 jun. 1892).

3 "Em 1855, Claude Bernard, sucedeMagendie na cadeira de MedicinaExperimental no College de France.Muito rapidamente, a audiência de seuscursos e a notoriedade do seu ensinoultrapassam o público ao qual eranormalmente destinado. Assistem osseus cursos: o conde de Paris, opríncipe de Galles, o imperador doBrasil. Mulheres elegantes. E também osGoncourt, Théophille Gautier, Flaubert.Suas palavras não são fáceis, mas é

interessante escutá-lo, dizem osGoncourts, e agradável de ver. Desdeantes da aparição da introdução aoestudo da medicina experimental (1865)suas idéias estão no ar. Fala-se ediscute-se a respeito delas. Elas excitama imaginação. Zola não é estranho aelas" (tradução nossa).

4 A edição das Cartas literárias emlivro não foi particular. Ainda que nãotraga o nome da editora Domingos deMagalhães, sabemos por fontes combase na bibliografia sobre essa obra deCaminha que fora publicada nelamandado fazer na Tipografia Aldina, narua Sete de Setembro, 79. O exemplarque consultamos de sua primeira edição,

apesar de não ter a capa original, traz afolha de guarda um carimbo daDOMINGOS DE MAGALHÃES, assimem caixa alta, e ainda com as seguintesinformações: Livraria Moderna,Lavradio, 126, Rio de Janeiro.

5 "Muito rápido um tempo editorialpreciso se coloca em cena que nãoconhecerá exceção: o manuscrito éenviado a um impressor ou a um editorna sua totalidade, ele [o manuscrito]aparece em seguida em folhetins em umjornal ou em revista durante dias ousemanas; a publicação do texto emvolume, um ou vários segundo a duraçãoda obra como o que o hábito do tempo,seguido de um atraso breve, geralmente

inferior a seis meses" (tradução nossa).

6 Cf. O pão da Padaria Espiritual.Edição Fac-similar, 1 fev. 1895, p. 5(grifos nossos).

7 A esse respeito, consultar Cardoso(2005), do qual destacamos os seguintestextos: "A circulação de imagens noBrasil oitocentista: uma história commarca registrada", de Lívia LazzaroRezende; "Do gráfico ao fotográfico: apresença da fotografia nos impressos",de Joaquim Marçal Ferreira deAndrade; e "O início do design de livrosno Brasil", de Rafael Cardoso.

8 Registro de entradas. Gazeta de

Notícias. Rio de Janeiro, Domingo, 11de dezembro de 1887. [Conservamos aortografia original do texto]

9 O número 183 dessa citação refere-sea: "Viana Moog – Uma interpretaçãoda literatura brasileira, Edição daCasa do Estudante do Brasil, Rio, 1943,p. 67".

10 Djacir Menezes, responsável pelaintrodução e notas da terceira edição deCrítica e literatura, de Rocha Lima, foiainda mais preciso ao tratar destasreuniões em casa do jovem acadêmico edo nome dado à agremiação: "A casa deD. Maria Bezerra, tia de Rocha Lima,era na rua da Misericórdia, n.° 29, onde

viveu e onde se reuniria, em 1875, aAcademia Francesa, como a chamavampor gracejo. 'O certo, porém, – escreveDolor Barreira – é que, a força derepetida, ficou a denominaçãoconsagrada, e com ela passou asociedade ao conhecimento doscontemporâneos e dos pósteros'"

11 A respeito do início das atividades daAcademia Francesa do Ceará afirmouAzevedo (1976, p.71): "Para o Barão deStudart, começaram as atividades dogrêmio no ano de 1872; entretanto, comonada prova haverem se iniciado nesseano as reuniões, preferimos marcar –seguindo assim o historiador JoséAurélio Saraiva Câmara – como data

inaugural do movimento o ano de 1873,em que começou a circular o jornalFraternidade, da Au.: Loj.: Frat.:Cearense, e que serviria de arena decombate dos jovens pensadores.Também desse ano a estrada de AraripeJúnior para o grupo". Afrânio Coutinho(1975, p.192) também deu como datainicial dos trabalhos da Academia o anode 1872: "Expressões dessa ebuliçãoforam a 'Academia Francesa' do Ceará ea 'Escola do Recife'. A primeira viveude 1872 a 1875...".

12 Abaixo do relatório, mas sem jáconstar com aspas lemos: "Quem leu eassinou o relatório, na qualidade sesecretário, foi um dos mais operosos e

constantes amigos de Rocha Lima – JoãoLopes Ferreira Filho" (Lima, 1968,p.356).

13 Trata-se de um anexo da encíclicaQuanta Cura "Condenação e proscriçãodos graves erros do tempo presente", dopapa Pio IX, publicado em 1864 etraduzido para o português por AntônioSecioso Moreira de Sá em 1872, um anoanterior à instalação da AcademiaFrancesa do Ceará. Os ditos "errosgraves do tempo presente" eram:panteísmo, naturalismo e racionalismoabsoluto; racionalismo moderado;indiferentismo, latitudinarismo;socialismo, comunismo, sociedadessecretas, sociedades bíblicas,

sociedades clérico-liberais; erros sobrea Igreja e os seus direitos; erros desociedade civil, tanto considerada em si,como nas suas relações com a Igreja;erros acerca do matrimônio cristão;erros acerca do principado civil dopontífice romano. Fonte: papa Pio IX."Syllabus" Montfort AssociaçãoCultural. Disponível em<http://www.montfort.org.br/index.php?secao=documentos&subsecao=enciclicas&artigo=silabo&lang=braAcesso em: 20 abr. 2008.

14 "O Dr. Manoel Soares da SilvaBezerra nasceu no ano de 1810, emRiacho do Sangue, formou-se pelaAcademia de Olinda em 1836, foideputado provincial por duas

legislaturas, de 40-43 e 70-73, Vice-Presidente da Assembléia (60-63),Presidente da Câmara Municipal deFortaleza (60-63) e governou mesmoalguns dias do ano de 1872. Seuitinerário registra ainda o exercício deoutros postos menores. Recebera ohábito de Cristo e o de S. GregórioMagno conferido por Pio IX, cultivou aliteratura latina, teve 18 filhos, entre osquais o hitoriador notável de AlgumasOrigens do Ceará, Antônio Bezerra.Homem combativo, colaborou no PedroII e na Tribuna Católica. Era, portanto,o adversário austero e digno, sempre nabrecha contra os jovens que arvoravambandeiras lembrando leituras deenciclopedistas e revolucionários

franceses. Não era aquêle 'velho tolo eignorante' como ridicularizava o jornaladversário" (Menezes, 1968, p.367, p.5-67, p.39-40).

15 "Rocha Lima estava entre êstesadolescentes, mas seu gênio precoce lheabrira lugar destacado nas fileiras onde,já formado e com a diferença de poucosanos, figuravamTomás Pompeu Filho eXilderico de Faria. Sua liderança, comojá vimos, começara muito cedo, desde16 anos, quando era um dos diretores daassociação Fênix Estudantil [sic]. Quissubmeter o passado à crítica a fim depreparar o caminho para o futuro; e viuesta preparação como trabalho dopensamento de uma 'geração

afirmativa'" (grifo nosso). O nome daassociação fundada por Rocha Lima em1870 era Fênix Estudantal e nãoEstudantil, como o grafou DjacirMenezes, uma vez que esse adjetivo nãoexistia no século XIX.

16 Dolor Barreira (1986, p.106-14), emsua História da Literatura Cearense,citou, por exemplo, a existência doGabinete Cearense de Leitura instaladoem 1875 "no sobrado n. 92 da então ruaFormosa (hoje Barão do Rio Branco),nesta cidade" e funcionou até 5 de julhode 1886. Ainda segundo Barreira foramos seus fundadores: "o dr. AntónioRodrigues da Silva [presidente],Farmacêutico João da Rocha Moreira,

Fausto Domingues da Silva, JoaquimÁlvaro Garcia, Vicente Alves LinharesFilho, Francisco Perdigão de Oliveira eAntónio Domingues dos Santos Filho".Desse Gabinete fizeram parte "namaioria [...] estudantes de preparatórios:Rocha Lima, Tomás Pompeu, Capistranode Abreu, Araripe Júnior, João Lopes,Xilderico de Faria, Clóvis Bevilacqua,Gil Amora e João Edmundo", comovemos, vários dos nomes da AcademiaFrancesa do Ceará. Assim como aAcademia, "instituiu um curso deconferências públicas, abrindo aulaspara o ensino de línguas e ciências" emais: "por longo tempo, manteve umcurso noturno de instrução primária, quefoi inaugurado por ocasião da sessão

literária com que o Gabinetecomemorou, a 10 de Junho de 1880, otricentenário de Luís de Camões, e queficou sob a direção do secretário domesmo Gabinte". Em uma nota derodapé, Barreira informou que aconferência proferida na inauguração docurso noturno foi de Rocha Lima eintitulava-se A Mulher, que,aparentemente, não é a mesma que seencontra na terceira edição de Crítica eliteratura, ou a é com modificaçõessensíveis. Mas esse também não foi oúnico grêmio em que se reuniram oshomens de letras do Ceará. LeonardoMota (1994, p.27) contabilizou entre aAcademia Francesa do Ceará e o ClubeLiterário treze grêmios, associações e

congêneres, a saber: Gabinete de Leitura(Baturité), de 1875; Instituto Histórico eGeográfico Cearense, de 1877; Gabinetede Leitura (Aracati), de 1879;Associação Literária Uniense (União),de 1879; Gabinete de Leitura (Granja),de 1880; Recreio Instrutivo, de 1881 eGabinete de Leitura (Pereiro), de 1883;Clube Literário Cearense, de 1884;Gabinete de Leitura (Campo Grande), de1884; Sociedade Rocha Lima, de 1884;Grêmio Literário, de 1885; Gabinete deLeitura (Ipu), de 1886.

17 Acréscimos nosso.

18 "O Java data da década de 80 doséculo XIX. Foi demolido pela reforma

da praça [do Ferreira] em 1925" (Ponte,1999, p.150, acréscimo nosso). SegundoOtacílio de Azevedo (1992, p.58), emsua Fortaleza descalça, o Café Java"ocupava o ângulo nordeste da Praça,defronte a Intendência Municipal [comoà época era chamada a prefeitura]. Foi oprimeiro a funcionar, e seu dono era oaracatiense Manuel Pereira dos Santos,o popular Mané Coco, que o ergue porvolta de 1886. Depois o café passou àsmãos de Ovídio Leopoldino da Silva".Ainda segundo Otacílio Azevedo, nestemesmo livro citado, os demais caféseram: Café do Comércio, Café Elegantee Café Iracema. O citado Café Java emA Quinzena tinha anúncio de seusserviços, como podemos constatar no

número 17, do ano 1, datado de 17 desetembro de 1887.

19 O que motivou o surgimento doCentro Literário é indefinido. Asopiniões registradas na historiografialiterária cearense são as mais diversas.Assim, a esse respeito, ler Azevedo(1976, p.171-4).

2 Adolfo Caminha,autor-político naRepública das Letras

Um homem de letrasDizendo idéias Sempre se inflama(J. M. Wisnik,S. Peres, L. Tatit, Gramática)

A política dentro e fora dasletras

O autor-político na República das

Letras

Com fonte na historiografia literáriabrasileira, sabemos da participação deum grande número de nossos homens deletras na política. Alguns chegarammesmo a ocupar cargos públicos comodeputados provinciais. Podemos citarcomo exemplo: Sílvio Romero, CoelhoNeto, Antônio Sales, Faria NevesSobrinho, Artur Orlando, Félix Pacheco,Luís Murat, Alcindo Guanabara, ossenadores Luís Delfino e Rui Barbosa(Broca, 2005, p.119-39). Também,grande foi a participação dos homens deletras em dois movimentos políticos noBrasil do final do século XIX: aAbolição da Escravatura (1888) e a

Proclamação da República (1889).Adolfo Caminha foi um deles. Sobretudono caso da Proclamação da República,que ele fez aparecer em seus livros deficção e em seu livro de viagem aosEstados Unidos.

Em A normalista, a cena final doromance é a chegada, no Ceará, dasprimeiras notícias do golpe militarcontra a Monarquia e início daRepública:

A esse tempo um grandeacontecimento preocupava toda acidade. Liam-se na seçãotelegráfica da Província asprimeiras notícias sobre aproclamação da República

brasileira. Dizia-se que o barão deLadário tinha sido morto a pistolapor um oficial de linha, na praça daAclamação, e que o imperador nãodera uma palavra ao saber dosacontecimentos, em Petrópolis.

O Ceará estremecia a esses boatos.Grupos de militares cruzavam asruas, ouviam-se toques de cornetano batalhão e na Escola Militar.Tratava-se de depor o presidenteda província, um coronel doExército. Os canhões La Hitte, dafortaleza de Nossa Senhora daAssunção, dormiam enfileirados napraça dos Mártires, defronte oPasseio Público, guardados por

alunos de patrona e gola azul.

Ninguém se lembrava deescândalos domésticos nem depequeninos fatos particulares.(Caminha, 1998, p.174)

Também em seu romance Tentação,publicado postumamente, não faltaramcríticas à Monarquia, mas também aomovimento republicano. A personagemEvaristo de Holanda, um republicanoardoroso, ou como ele mesmo sedefinia, um democrata, não deixou, aolongo da narrativa, de bater-se contra osmonarquistas, entre eles o visconde deSanta Quitéria. Não são poucas aspassagens do romance em que odescontentamento da personagem foi

representado. A vida na casa dosFurtado, o casal de amigos que acolheraEvaristo e a sua esposa, passou a ser ummartírio, pois Dona Branca, a esposa deFurtado, era uma monarquista ferrenha ecomadre da princesa Isabel. Umexemplo dessa tensão instalada nointerior da narrativa de Tentação podeser percebido no diálogo quereproduzimos a seguir:

A propósito dos filhos, a mulher[Dona Branca] anunciou o batizadoda Julinha no primeiro domingo dejaneiro. Ia fazer uma festa semcerimônia, entre pessoas daintimidade.

Evaristo recebeu a notícia com um– oh!... de surpresa. – Muito bem!muito bem! Era preciso batizar amenina... Ele, se tivesse filhos,batizava-os ao nascer.

E com ironia:

– Temos, então, a princesa?

– Como, Sr. Evaristo?

– Digo: a princesa há decomparecer à festa...

– Qual o quê! Pensa o senhor que aprincesa anda se exibindo assim?

– Pensei...

– Vai ser a madrinha de minhafilha, por procuração; isso bem...

– E Evaristo, sempre irônico:

– O imperador é o padrinho...

– Não senhor, não senhor... Opadrinho é o Lousada, o velhoLousada. O imperador já é opadrinho do Raul.

– Onde estamos nós metidos,Adelaide! – exclamou o bacharel,arregalando os olhos. – Tudo aquié principesco, minha senhora!

D. Branca compreendeu o debique,mas atalhou risonha:

Tudo aqui não é principesco, nãosenhor! Não queira fazer pouco...

Eu, fazer pouco? Oh, não se lembrede tal coisa! Principesco é umamaneira de dizer.

Ah! o senhor é republicano?Republicano não: democrata.

Pois está muito bem arranjado coma sua democracia! Furtado, queestava lendo o Comércio do Rio,saltou:

– Quem é democrata – o Evaristo?

– Eu, sim...

– Democrata enquanto nãoconheceres bem o Rio de Janeiro..

– Por quê?

– Ora, por quê! Porque o Rio deJaneiro em globo é monarquista equem diz monarquista dizaristocrata.

– Não é razão. Se o Rio de Janeiroem globo (quero dizer o municípioneutro...) é monarquista, eu possobem sair um republicano àsdireitas.

Furtado abriu numa gargalhadaestridente.

– Aonde vens pregar essas teorias,meu caro? Na Corte do Império, eo que é mais, em Botafogo! Ilusõesde academia, rapaz, ilusões deestudante de retórica!

– Não senhor, que o partidorepublicano está ganhando terrenoaqui mesmo, na

– Corte, às barbas d'El-Rei! Fala-se na ida do velho à Europa; ovelho está doido, já não podegovernar, e o resultado é que...

– É estás a dizer tolices... Amonarquia está guardada porsentinelas da força do barão deCotegipe, do visconde de Ouro

Preto, do João Alfredo e deoutros... Cada um desses homens éum obstáculo contra qualquertentativa de assalto às instituições.

Chegou a vez do bacharel rir, masrir com gosto, dando pulinhos nacadeira.

– O Cotegipe! (e ria). O OuroPreto! (tornava a rir). O JoãoAlfredo! No momento psicológicovoam todos, como aves dearribação, para Petrópolis!Desaparecem como por encanto,somem-se na noite do medo...

– É o que pensas. A opinião deles,o povo não permitirá que eles

sejam desacatados.

– O povo! – exclamou Evaristocom voz de trovão. – A que chamastu povo?

– À população do Rio de Janeiro, àpopulação do Brasil – a trezemilhões de almas que adoram oimperador!

– O povo brasileiro não se envolvenisso não, meu Furtado; sefôssemos esperar pelo povo,estávamos bem arranjados...

– E então?

– E então, é que a força armada...

– Basta de política, basta depolítica, Sr. Evaristo. Ó Luís, porfavor, continua a ler teu jornal –interveio Branca, – É favor!(Caminha, 1979, p.22-3)

Vemos por essa cena que a discussão arespeito da política, notadamente doconfronto entre monarquistas erepublicanos, ou democratas comoEvaristo se dizia ser, saiu do âmbito davida privada – o batismo de Julinha, afilha caçula do casal Furtado – paraatingir uma discussão a respeito daatuação do gabinete de então e dopróprio imperador. No romance emcausa, essas discussões serãocrescentes. O embate entre os

antagonistas políticos fazem parte datrama narrativa, construindo a intriganecessária para o andamento doromance.

As opiniões de Evaristo e dos Furtadose alternam. Uma hora o vemosdefendendo a República, outra vemosFurtado defendendo a Monarquia.Evaristo chega mesmo a definir oespaço em que se passava a trama apartir de uma ou de outra forma degoverno. Para ele o Rio de Janeiro idealseria o Rio de Janeiro republicano: "ORio de Janeiro sem o imperador e semos preconceitos da monarquia, o Rio deJaneiro tal qual sonham os bonsrepublicanos, há de ser uma coisa única!

Palavra de honra como eu não desejavaabandonar esta terra, enquanto não visseum homem do povo governando oBrasil!" (ibidem, p.100). E Evaristo vaialém:

Que mas o quê! Para longe desteinferno! para longe destaporqueira! Vive-se melhor, maisbarato e mais honradamente naobscuridade da província, criandogalinhas ou plantando jerimuns.Estou farto de aturar apedantocracia de Botafogo e do Sr.Luís Furtado. Um bacharel emdireito vive em qualquer parte domundo: vou advogar, vou esperar aRepública no sertão! (ibidem,

p.104)

No romance em causa, há um capítulotodo dedicado a uma das viagens doimperador D. Pedro II à Europa. Nessecapítulo, o narrador, e também Evaristo,tecem considerações a respeito dosmembros do movimento republicanocomo lemos abaixo:

E Evaristo, indignado, pôs-se aandar de um lado para o outro dasala, com o panfleto abolicionistana mão. Ultimamente encasquetara-se-lhe, como uma idéia fixa, oprograma republicano: abolir aescravidão e declarar a repúblicabrasileira, o governo do povo pelopovo... Um dos membros do partido

já o convidara para sócio e ele secomprometera a tomar parte ativanas reuniões do clube. Daí a suaindignação contra o Valdevino quetambém apregoava entusiasmopelas idéias liberais de SaldanhaMarinho e Quintino Bocaiúva. Nãolhe saía da cabeça o poeta da Odeà Monarquia! Como é que seexplicava essa pouca-vergonha deum escritor público?

Sentou-se, afinal, e continuou ainterrompida leitura do panfleto.(ibidem, p.90)

Vemos nessa citação que Evaristo étambém especialmente crítico com os

"republicanos", ou seja, com aquelesque transitam indecisamente entre umlado e outro do poder. A personagemparece mesmo não se sentir adequadadentro do contexto em que se situa. Maisparece uma personagem romântica, aodefender suas utopias, vivendo em umacidade naturalista, onde as utopias sãotragadas pelas circunstâncias.Circunstâncias essas que AdolfoCaminha representou, como vimos, emseus romances.

Não se trata aqui de colar a obra à vida,mas de mostrar as relações-possíveisentre um e outro fazer, ou melhor, entreuma e outra prática, seja ela discursivaou política ou porque não falarmos em

uma manifestação simbiótica dediscurso-político ou política discursiva.Como sabemos, no caso dos escritoresnaturalistas ou dos escritores que emmomentos de sua carreira tenham seutilizado dos pressupostos naturalistas,o jogo entre representação e realidadese dá em dimensões bem próximas.Nesse jogo, muitas vezes, o vivido osserviu de fonte para a literatura.

O realismo, mas sobretudo onaturalismo, exigiu de seus cultores umcerto empenho, uma vez que apreocupação excessiva com o presentefazia que buscassem em sua volta asmatérias-primas de suas narrativas, oque não significa, no entanto, que a obra

traduza a vida e vice-versa. O focoexcessivo no "real", ou no que Bartheschamou de "efeitos do real", talvezacabem por desfocar aquela supostacaptação total da realidade quedesejavam os escritores naturalistas. Ovínculo com a ciência foi uma tentativade assegurar este objetivo. No entanto,ele pode ter funcionado também comouma armadilha. O vício nas lentes deaumento proporcionadas pela ciência,lentes essas que foram lançadas sobre arealidade, prendeu a narrativa ficcionalnaturalista em uma cadeia de tipos e defatos que passaram a ser recorrentes,desgastando, assim, a narrativa e aexpectativa dos leitores. A recorrênciado método parece também ter atuado no

desgaste da estética naturalista. Nessesentido afirmou Nelson Werneck Sodré(1992, p.46):

A simples busca de suportescientíficos, destinados a conferirgrandeza ao que não a podia conterem si mesmo, correspondia a umaconfissão de fraqueza: era precisoencontrar, fora da série literária,algo suplementar, que reforçasse,que lhe consolidasse a estrutura,como que lhe constituindo osfundamentos.

Há nessa equação – vida+obra –meandros e entremeios que não serãoatingidos, pois são muitas as forças queatravessam a produção do texto e, em

seguida, do livro, forças essas variáveisem diversos sentidos. No entanto, hásempre alguma força ligandorepresentação e realidade, aquilo quesupostamente existe e aquilo que se querfazer existir. E nesse sentido afirmouNicolau Sevcenko (2003, p.29):

Fora de qualquer dúvida: aliteratura é antes de mais nada umproduto artístico, destinado aagradar e a comover; mas como sepode imaginar uma árvore semraízes, ou como pode a qualidadedos seus frutos não depender dascaracterísticas do solo, da naturezado clima e das condiçõesambientais.

São essas relações-possíveis que nosinteressa mostrar e problematizar paracompor a figura do autor como umpolígrafo. E, assim, as grafamos –relaçõespossíveis – como forma dedefini-las como pontos de contato entreuma e outra prática desempenhada pelopolígrafo. Ainda como o sabemos,Adolfo Caminha também posicionou-secontra a prática da chibata como castigoaplicado em marinheiros; esseposicionamento, segundo conta Sânziode Azevedo (1999, p.22), um dos seusbiógrafos, criou um certo desconfortoentre os membros da Marinha imperial,sobretudo porque Adolfo Caminhaensaiara escrever, em 1885, ummanifesto contrário ao castigo, com a

adesão de alguns de seus colegas defarda, manifesto esse que

seria publicado em um grandejornal, a Gazeta de Notícias.Entretanto, a idéia não seconcretizou porque o Diretor daEscola, tendo sido avisado atempo, mandou chamar o alunorebelde e aplicou-lhe umarepreensão. O caso chegou arepercutir ente alunos e oficiais,falando-se em expulsão, o queafinal terminou não ocorrendo.

Ainda segundo Sânzio de Azevedo,Adolfo Caminha voltou ao tema docastigo da chibata em 1887, porém nãomais com manifestos ou textos

diretamente reivindicativos. Ele o fizeratransformado o vivido em literatura:

"Dois anos depois, ele faria publicar, naGazeta de Notícias, um conto em quehavia a clara condenação do castigo dachibata" (ibidem). Infelizmente, nãoconseguimos encontrar nos microfilmesda Gazeta de Notícias, existentes naBiblioteca Nacional, no Rio de Janeiro,esse conto citado.

A referência ao castigo da chibata, noentanto, foi feita também em seuromance Bom-Crioulo, de 1895,portanto dez anos após aquele primeiroposicionamento, uma vez que parteconsiderável do romance se passa em

ambiente de marinha ou no que onarrador chamou de "pequeno mundoflutuante" (Caminha, 1999b, p.14) noqual a ordem devia ser mantida mesmoque fosse à custa do castigo da chibatacomo o afirmava a personagem guardiãoAgostinho: "– Navio de guerra semchibata é pior que escuna mercante..."(ibidem, p.15). Há nesse ponto umarelação entre o texto reivindicativo e aficção. Se Adolfo Caminha não o pôdefazer nas páginas do jornal, uma vez queainda estava submetido à hierarquia e àdisciplina militares, ele o fez naspáginas de seu romance, escrito quandojá estava fora da Marinha.

Foram, porém, as personagens

Herculano, esse acusado demasturbar-se no navio, Sant'Ana,que denunciara aquele, e com quembrigara, e Bom-Crioulo, oprotagonista do romance, acusadode indisciplina, que receberam ocastigo da chibata, como podemosconstatar na leitura do trecho quecitamos a seguir:

Vinte e cinco..., ordenou ocomandante.

– Tira a camisa? Quis logo saberAgostinho radiante, cheio desatisfação, vergando o junco paraexperimentar-lhe a flexibilidade.

– Não, não: com a camisa...

E solto agora os machos, triste eresignado, Herculano sentiu sobreo dorso a força brutal do primeirogolpe, enquanto uma voz cantava,sonoramente e arrastada:

– Uma!... e sucessivamente: duas!...três!... vinte e cinco!

Herculano já não suportava.Torcia-se todo no bico dos pés,erguendo os braços e encolhendoas pernas, cortado de doresagudíssimas que se espalhavam portodo o corpo, té pelo rosto, comose lhe rasgassem as carnes. A cadagolpe escapava-lhe um gemidosurdo e trêmulo que ninguém ouviasenão ele próprio no desespero de

sua dor.

Toda a gente assistia aquilo sempesar, com a fria indiferença demúmias.

– Corja! Regougou o comandantebrandindo a luva. Não secompenetram de seus deveres, nãorespeitam a autoridade! Hei deensiná-los: ou aprendem ou racho-os! (ibidem, p.16)

Vemos que nessa cena todos os recursossão usados para dar ao leitor oconhecimento do que era o castigo dachibata: os sons cantados da voz queanunciava uma chibatada após a outra, omodo de descrever o corpo. Enfim, tudo

parece colaborar para o mais purodescritivismo, o que de fato marca o tomde denúncia pretendido. Mas essa não éa única cena em que o castigo foirepresentado. No caso da personagemSant'Ana repetem-se os mesmo recursos,então, vejamos a cena em que ocastigado foi Amaro, o Bom-Crioulo.Justamente a cena em que essapersonagem aparece pela primeira vezno romance:

A chibata não lhe fazia mossa; tinhacostas de ferro para resistir comoum Hércules ao pulso do guardiãoAgostinho. Já nem se lembrava donúmero das vezes que apanhara dechibata...

– Uma! Cantou a mesma voz. –Duas!... três!...

Bom crioulo tinha despido acamisa de algodão, e, nu da cinturapra cima, numa riquíssima exibiçãode músculo, os seios muitosalientes, as espáduas negrasreluzentes, um sulco profundo eliso de alto a baixo no dorso, nemsequer gemia, como se estivesse areceber o mais leve dos castigos.

Entretanto já iam cinqüentachibatadas! Ninguém lhe ouvira umgemido, nem percebera umacontorção, um gesto qualquer dedor.Viam-se unicamente naquelecostão negro as marcas do junco,

umas sobre as outras,entrecruzando-se como uma grandeteia de aranha, roxas e latejantes,cortando a pele em todos ossentidos.

De repente, porém, Bom-Criouloteve um estremecimento e soergueuum braço: a chibata vibrava emcheio sobre os rins, empolgando obaixo-ventre. Fora um golpemedonho, arremessado com umaforça extraordinária.

Por sua vez Agostinho estremeceu,mas estremeceu de gozo ao ver,afinal, triunfar a rijeza do seupulso.

Marinheiros e oficiais, numsilêncio concentrado, alongavam oolhar, cheios de interesse, a cadagolpe.

– Cento e cinqüenta! (Caminha,1999b, p.20)

Nessa cena, os recursos se intensificampara dotar o protagonista de algumascaracterísticas do herói: a força, acompleição física, a coragem, acapacidade de superar a dor. Emoposição ao protagonista está a reaçãopassiva dos membros da marinha, todoseles admirados que Amaro suportassetantas chibatadas. O castigo estava entãocolocado em cena. A Marinha imperial,como já dissemos, não recebera bem o

romance e não somente em razão docastigo, mas também pelo fato de que anarrativa estava centrada na relaçãoamorosa e sexual de dois homens, doismarinheiros: Amaro, o já dito Bom-Crioulo, e Aleixo, o grumete. Para umgrupamento onde a chibata era o "únicomeio de se fazer marinheiro" (ibidem,p.15) denunciar o castigo era ir contra amaré da disciplina. Para um grupamentoem que a masturbação em bordo eracrime, o que pensar então dorelacionamento amoroso e sexual entredois homens?

Adolfo Caminha ainda voltaria aoassunto do castigo da chibata. Em 1890,ele teve publicado nas páginas do jornal

O Norte, de Fortaleza, o seu No paísdos ianques, cuja publicação em livrodeu-se em 1894. Nesse livro, em queescreveu suas memórias da viagem quefizera aos Estados Unidos em 1886 abordo do cruzador Almirante Barrosopara participar da Exposição das TrêsAméricas, Adolfo Caminha (1979,p.129-30) opinou a respeito do castigo,que considerava "bárbaro", "revoltante"e "infamante":

A guarnição do Almirante Barroso,disciplinada e obediente comotodas as que serviam sob as ordensdo comandante Saldanha, primavapelo asseio, pela ordem, peladestreza e pela atividade. Não se

lhe pode fazer maior elogio. Cadamarinheiro era como uma máquinapronta sempre ao menor impulso.

A chibata era nesse tempo, comoainda hoje, o terror das guarniçõesda armada. Sempre manifestei-mecontra esse bárbaro castigo queavilta e corrompe em vez decorrigir. Um castigo de chibata é acoisa mais revoltante que já tenhovisto, mormente quando é mandadoaplicar por autoridade desumana,sem noções do legítimo direito quea cada homem assiste, quem querque ele seja, soldado ou pariá.

O meu primeiro passo ao deixar aEscola e envergar a farda de

guarda-marinha foi publicar umprotesto contra essa penainfamante, e fi-lodesassombradamente, convictomesmo de que sobre mim ia cair aodiosidade de meus superiores emgeral apologistas da chibata.

A primeira vez que minha posiçãooficial obrigou-me a assistir [sic]um desses castigos, tive ímpetos debradar com toda a força dospulmões contra semelhante atentadoà natureza humana.

Quem já assistiu a uma dessaspavorosas cenas do eito,magistralmente descritas por Júlio

Ribeiro na sua obra A Carne, podefazer idéia do que seja o castigo dachibata.

Despir-se a meio corpo um pobrehomem, um servidor da pátria, pése mãos algemados, muita vezdepois de três dias de solitária apão e água, e descarregar-lhe sobrea espinha, sobre as espáduas, sobreo peito, sobre o ventre, na caramesmo, em todo o corpo cinqüenta,cem, duzentas chibatadas, empresença de todos os seuscompanheiros, me parece indignoduma geração que se preza, de umasociedade de homens civilizados,de cidadão, de cavalheiros que

ostentam triunfalmente galõesdourados na farda – na farda quesignifica a nobreza, a coragem, opatriotismo e a honra duma nação.

Revoltei-me contra semelhantebarbaridade inquisitorial, comoquem tem consciência de quem estápraticando uma ação justa ehonrosa. Doía-me por um ladopertencer a uma classe nobre portantos títulos, é certo, mas em cujoseio era permitido a chibata e, oque é mais, o seu abuso.

A esse tempo a Gazeta de Notíciasdo Rio de Janeiro publicavasemanalmente um boletim literáriono louvável intuito de estimular os

incipientes das letras. Oferecia-se-me oportunidade para um contomarítimo, cujo assunto fosse achibata.

Escusado é dizer que o meu artigoprovocou o despeito dos culpadosindiretamente feridos no seu amor-próprio. Embora! Fiquei satisfeito,como se tivesse sacudido paralonge um fardo pesadíssimo; e, épreciso dizer, não hesitei emdeclarar-me autor do conto quevinha firmado por meu nome, entãodesconhecido na armada.

Alguns de meus companheirostaxaram-me de imprudente e

"indiscreto". Outros levaram seusconselhos até a minhainexperiência de adolescenteindisciplinado.

Todo o mundo julgou-se comdireito a censurar meuprocedimento: "que roupa sujadeixa-se ficar em casa; que chibataera um castigo imprescindível" eoutros arrazoados sofrivelmentebanais.

Meu consolo é que dentre aquelesque preconizavam os efeitosprodigiosos da chibata noutrostempos, muito concorreram emdemasia para a sua extinção.

Dei parabéns à pátria e àhumanidade.

Devemos atentar aqui para o fato de queé possível estabelecer uma relação entreessa fala publicada originalmente em1890, uma vez que, assim comoafirmamos, No país dos ianques foipublicado primeiramente em jornal, e oromance Bom-Crioulo, de 1895. Emambas as cenas há não somente umposicionamento claro contra o castigoda chibata, como há também o mesmoapelo aos recursos utilizados na ficção.Assim, se estabelece mais uma relaçãoentre os fazeres de Adolfo Caminha oque nos serve de fundamento para a suaconceituação como polígrafo.

Esse, porém, não foi o únicoposicionamento "contra a maré" queAdolfo Caminha tomou enquanto foimarinheiro. Na mesma Escola, maisprecisamente em junho de 1885, ele seinsurgira contra ninguém menos do que oimperador D. Pedro II. Foi na ocasiãoda morte de Victor Hugo como relatouSânzio de Azevedo (1999, p.22):

Ainda como aluno da Escola deMarinha, em junho de 1885 – e não1884, como registraram SabóiaRibeiro e Lúcia Miguel-Pereira –,numa sessão solene em homenagema Victor Hugo, falecido um mêsantes, Adolfo Caminha,representando a Fênix Literária, faz

um discurso na Escola, na presençados colegas, de pessoas dasociedade carioca, do Diretor,Almirante Fortunato Foster Vidal, eaté do Imperador D. Pedro II. Éentão que, ao lamentar odesaparecimento do grande poeta eromancista francês, exclama, acerta altura: "Ah, não poder eleassistir à nossa marcha triunfalpara a Abolição e a República!"

Também No país dos ianques nãofaltaram exemplos do antimonarquismode Caminha, como exemplificamos emduas situações, o que reforça a suaparticipação no movimento republicano.A primeira situação deu-se ao tratar do

embarque, no Almirante Barroso, de D.Augusto, neto do imperador; na segundaao tratar do próprio imperador Pedro II.Vejamos na sequência:

Pela manhã de 27 [de fevereiro] oBarroso sulcava as águas doLamarrão, lento e majestoso,crivado de olhares. O povosaudava-o do cais da Lingüeta.Espalhouse logo que o príncipe D.Augusto, neto do imperador, vinhaa bordo, e toda a gente correu arecebê-lo com essa avidezinstintiva das massas populares. Opovo pernambucano,tradicionalmente inimigo dosimperadores, lembrava-se do

tempo em que o Sr. Pedro deAlcântara dava-se ao luxo devisitar o Norte.

Mais tarde, ao desembarcar a turmade guarda-marinhas, de que faziaparte o príncipe, subiu de ponto acuriosidade pública.

– Oh! o príncipe! – Que é dele? – Éum ruivo? – É aquele barbado?

O pobre moço viu-se em apuros, emudava de cores, e fazia-seescarlate, e vociferava contra aplebe, ocultando-se entre oscolegas, desapontado. Um pretovelho teve a lembrança deajoelhar-se aos pés de S. A. e

suplicar-lhe uma esmola.Aconteceu, porém, que errou o alvoe foi direto a um outro rapaz, louroe rubro, como o príncipe, que seapressou em desfazer o engano.

O imperial senhor achava-seridículo no meio de toda aquelamultidão servil e anônima que oacompanhava, "como se visse neleuma animal selvagem..." (Caminha,1979, p.118-19)

Não falta nessa fala de Adolfo Caminhao tom de ironia. É notável o fato delenão referir-se a Pedro II comoimperador, mas como Sr. Pedro deAlcântara, ou seja, usando o nome civildo monarca, uma vez que, em 1890, data

da publicação em jornal de No país dosianques, o imperador já fora deposto.Vejamos então a segunda situação:

Por diversas vezes a academia dedireito, pelo órgão de seusrepresentantes, exorara a piedadeimperial, mas o imperador nuncaestendeu o seu magnânimo olhar depiedade até os cárceres senão emcertos dias de gala natalícia paraindultar os escolhidos da políticadominante. (ibidem, p.119-20)

Abolição e República: essas foram aslutas que mobilizaram os homens deletras brasileiros naquele final do séculoXIX. As páginas da literatura do

período estão cheias de referências aelas. Adolfo Caminha, já instalado ogoverno provisório republicano noCeará, foi convidado pelos membros doClube Republicano Cearense a discursarem comemoração ao feito que depuseraa monarquia e instaurara o novo regime.Mas, essas eram as lutas política dehomens de letras no reinado de D. PedroII. Era a luta contra a situação políticainstituída em um territórioregulamentado por leis nacionais, pordecretos e partidos políticos, porfronteiras demarcadas a partir deconquistas e acordos. A República dasLetras institui-se de outro modo. Talvezela tenha sido o primeiro lugar virtuallaico, uma vez que ela existe a partir de

uma rede de relações que se estabeleceupara além da fronteiras nacionais, aindaque, sobretudo no caso brasileiro, tenhamuito se ocupado do tema danacionalidade.

No território da República das Letras,que também tinha suas relações com oterritório da política institucional epartidária, pois, como afirmamos antes,muitos dos homens de letras tambémforam homens de política, havia umapreocupação a mais. Essa preocupaçãoexigia dos homens de letras aparticipação deles numa nova luta: a lutapelos direitos autorais. Nesse sentido, aRepública das Letras exigia de seuscidadãos um posicionamento político,

que se expressava em manifestaçõesescritas e orais, fossem elas publicadasem artigos nos jornais, em debates entreos homens de letras e os homens depolítica ou nos livros de ficção. É sobreessa luta e o posicionamento de AdolfoCaminha que trataremos também nestecapítulo. Trata-se de outro movimentoda atuação do político.

O minotauro versus os abnegados

Como dissemos anteriormente, erapreciso demarcar no espaço daRepública das Letras as manifestaçõesfavoráveis aos direitos do autor.Acostumados a lidar com as palavras,os homens de letras passaram também a

se preocupar com os números. Nãofaltaram meios de tornar pública essapreocupação, sendo a própria literaturaum deles. As manifestações tambémganharam as páginas dos jornais, dostextos de crítica literária, das falaspúblicas, dos movimentos e dastribunas. Era preciso demarcar tambémno discurso as partes envolvidas. Erapreciso citá-las, trazer-lhes à cena,mostrá-las, dar-lhes um corpo, um rosto,representá-las onde a linguagem assim oexigia.

Adolfo Caminha foi um dos primeiros amanifestar-se a respeito. É essa suamanifestação que identificamos comopolítica, que aqui não se confunde com a

política partidária, a qual ele mesmo semostrou contrário ou pouco interessado,como podemos constatar em suascríticas à intervenção dos partidospolíticos no jornalismo noticioso ouliterário no final do século XIX. Apolítica é aqui entendida como aexposição pública da fala de um sujeitorepresentando um grupo, o que nãosignifica que houvesse unanimidade emrelação ao seu nome. O grupo queconsideramos que ele representava era odos homens de letras de seu tempo,notadamente aqueles que passaram a seinteressar por garantir os rendimentosfinanceiros advindos com o trabalhointelectual.

Em um dos artigos intitulados "Cartasliterárias", publicados na Gazeta deNotícias do Rio de Janeiro, AdolfoCaminha manifestou-se publicamente aesse respeito. Em seguida, os artigosforam reunidos em livros com o mesmotítulo: Cartas literárias. No artigointitulado "Editores" há como que duaspersonagens que se destacam em relaçãoao tema dos direitos do autor, comopodemos constatar com as citaçõesseguintes. A primeira citação dizrespeito ao editor: "É preciso ter sofridoao menos uma vez a pressão esmagadoradessa espécie de minotauro da Artepara se calcularem os efeitos de suainfluência. Mil vezes a obscuridade, oisolamento inglório, a inação literária!"

(Caminha, 1999a, p.122). A segundacitação trata dos autores:

Dói n'alma e causa desalento oabandono quase completo, aindiferença já tanta vez invocada,com que são vistos no Brasil oshomens de letras, os obreiros dainteligência, os abnegados daArte, para quem a vida consisteprincipalmente no belo e naverdade, fundidos num símboloindissolúvel e eterno... (ibidem,p.17)

Assim, nesta parte do presente capítulo,privilegiamos a relação entre AdolfoCaminha e os editores de sua época.Para tanto, consideramos as suas

definições do que seria o papel doseditores, o que em última instânciasignifica também a possibilidade dedesenvolvimento da literatura, uma vezque aos editores cabia a publicação dostextos ou a transformação destes emlivros.

Por serem os editores sujeitos nemsempre considerados como participantesda constituição direta da literatura,passamos à leitura da opinião de algunshistoriadores a respeito deles.

Os editores segundo os historiadores

Pierre Bourdieu classificou os editorescomo "personagens intermediárias entreo artístico e o econômico". Porém, nessa

classificação não estão apenas oseditores. Esse espaço intermediário ébastante extenso para ter diversosocupantes, não se resumindo, naconcepção de Bourdieu, apenas aomundo do impresso, mas estende-se paraa pintura, o teatro, os órgãos do Estado eseus agentes encarregados de mediar arelação desse com os artistas e, entreeles, os escritores. Vejamos o que dizBourdieu (1996, p.86-7):

É o caso de todas essaspersonagens intermediárias entre oartístico e o econômico que são oseditores, os diretores de galeria ouos diretores de teatro, sem falardos funcionários encarregados do

exercício do mecenato do Estado,com os quais os escritores e osartistas mantêm com freqüência (háexceções como o editorCharpentier) uma relação deenorme violência larvada e àsvezes declarada. Testemunha isso oque Flaubert, que teve ele própriomuitas discussões com seu editor,Lévy, escreve a Ernest Feydeau,que prepara uma biografia deThéophile Gauthier: "Faça sentirbem que ele foi explorado etiranizado por todos os jornais emque escreveu; Girardin, Turgan eDalloz foram carrascos para onosso pobre velho, que choramos[...]. Um homem de gênio, um poeta

que não tem rendas e que não é denenhum partido dado, é forçado,para viver, a escrever jornais; ora,aí está o que lhe aconteceu. Naminha opinião está aí o sentido noqual você deve fazer seu estudo".

Essa citação de Bourdieu é importantepor dois motivos: o primeiro, porlocalizar os editores, mesmo que nacondição de intermediários, no campoliterário, ampliando, assim, a quantidadee a qualidade dos sujeitos que deleparticipam, o que implica a escrita deuma crítica literária e da própriahistória da literatura a partir de novossujeitos, novas práticas e novos objetos,que, efetivamente sempre estiveram

presentes, mas ausentes do ponto devista das abordagens teórica, crítica ehistoriográfica, desses campos doconhecimento literário. O segundomotivo é que, nessa citação, ele pôs emcena um editor que será considerado porAdolfo Caminha como um exemplo, umanecessidade para o Brasil e para osautores brasileiros daquele período:Georges Charpentier.

Robert Darnton (1990, p.132-45), aoanalisar a Société Typographique deNeuchâtel (STN), também classificou oseditores como intermediários, maisprecisamente como "os intermediáriosesquecidos da literatura", poisconsiderou o fato de que os editores não

aparecem nas histórias das literaturasnacionais ou ainda em histórias maisespecíficas da literatura, como ashistória de um gênero ou de um períodoliterário. Nas histórias das literaturasnacionais, nada sabemos sobre eles, noentanto sabemos que eles existem, masexistem, supostamente, bem distantesdos autores e dos textos. Porém, oseditores são sujeitos fundamentais naliteratura escrita, uma vez que ela seexpressa por meio de textos impressosem livros, que, por sua vez, dependem,fundamentalmente, do sujeito editor paraserem publicados.

Assim, chegamos à compreensão deRoger Chartier (1999b, p.45) a respeito

dos editores. Segundo ele, paraconsiderar que os editores tenham defato relevância na história da literatura épreciso partir do seguinte princípio:"Para 'erigir-se como autor', escrevernão é suficiente; é preciso mais, fazercircular as suas obras entre o público,por meio da impressão", sendo aimpressão uma atividade que nãopertence historicamente ao autor, mas aoeditor e aos operários ligados àatividade da impressão de livros eimpressos, daí decorre a suaimportância.

Roger Chartier é claro ao afirmar arespeito do papel dos editores na culturaescrita e na distinção do trabalho desses

e dos autores: "Os autores não escrevemlivros: não, eles escrevem textos que setornam objetos escritos, manuscritos,gravados, impressos, e, hoje,informatizados" (ibidem, p.17). Assim, afigura do editor se mostra importantepara o nosso estudo, pois na larga sériede mediadores ele é um dos que maisativamente interfere no texto, sobretudoporque lhe dá um formato querecebemos e reconhecemos como umobjeto de importante valor cultural: olivro. A esse respeito afirmaramCavallo & Chartier (1998, v.1, p.9):

Contra a representação, elaboradapela própria literatura e retomadapela mais quantitativa das histórias

do livro, segundo a qual o textoexiste em si mesmo, separado dequalquer materialidade, devemoslembrar que não existe texto forado suporte que permite sua leitura(ou da escuta), fora dacircunstância na qual é lido (ououvido). Os autores não escrevemlivros: não, escrevem textos que setornam objetos escritos –manuscritos, gravados, impressose, hoje, informatizados –manejados de diferentes formaspor leitores de carne e osso cujasmaneiras de ler variam de acordocom as épocas, os lugares, osambientes. (grifo nosso)

A análise do campo literário a partir deintermediações entre os sujeitos quedele fazem parte não é uma necessidadesomente dos dias atuais, quando mais emais as fronteiras entre um fazer e outroestão ficando borradas. Esse caminhopareceu-nos uma necessidade para arenovação dos estudos literários. A esserespeito afirmou o já citado Darnton(1990, p.132): "O historiador de hojeprecisa trabalhar com uma concepçãomais ampla de literatura, que leve emconta os homens e as mulheres em todasas atividades que tenham contato com aspalavras". E a propósito das operaçõesa serem realizadas pelo historiador daliteratura que tenha como objetivo umnovo olhar e uma nova escrita,

acrescentou Darnton:

O contato popular com a palavrainclui as mães que cantamversinhos, crianças que recitamversos de pular corda, adolescentesque contam piadas sujas e negrosque trocam insultos rituais ("xingaraos pais"). Os historiadores podempreferir deixar essas pessoas paraos antropólogos. Mas, mesmo querestrinjam a literatura àcomunicação por meio da palavraimpressa, eles poderiam ampliar asua concepção, de modo a incluiralgumas figuras pouco familiares –trapeiros, fabricantes de papel,tipógrafos, carroceiros, livreiros, e

até leitores. A literatura livrescafaz parte de um sistema que produze distribui livros. Mas a maioriadas pessoas que fizeram funcionaresse sistema desapareceu dahistória literária. Os grandeshomens expeliram os homensmédios, os intermediários.Vista daperspectiva dos transmissores daobra, a história literária poderiasurgir a uma nova luz. (ibidem)

Para Darnton, a história da literatura,seja como forma de organização doconhecimento literário ou comodisciplina, não pode ser dissociada daspráticas de leitura, fato já apontado pelaEstética da recepção e as teses

propostas por Hans Robert Jauss. Aofinal do seu capítulo sobre os editores,afirmou Darnton:

Para os franceses do século XVIII,a literatura – ou a República dasLetras, como diriam eles –certamente incluía Voltaire eRousseau. Mas também incluíaPidansant de Mairobert, Moufled'Angerville e uma legião de outrosescritores que desapareceram dahistória literária. Suas obras sealinhavam nas estantes setecentistasao lado de Candide e O contratosocial. Uma lista de sucessoseditoriais do Antigo Regime teriade incluir O ano 2440, Teresa, a

filósofa e inúmeros outros "mauslivros". Até que ponto eram ruins?São de leitura muito agradável hojeem dia. E, mais importante, eleabrem a possibilidade de reler ahistória literária. E, se foremestudados em ligação com osistema de produção e difusão dapalavra impressa, poderão noslevar a repensar nossa idéia sobrea própria literatura. (ibidem)

Analisando a história da literatura apartir das práticas de leitura, Darntonchega a um conceito bastante caro paraos estudos literários: o conceito decânone e o seu processo de formação,que se apresenta também ao longo dos

textos críticos de Adolfo Caminha, poisuma das operações que ele realiza emsuas Cartas literárias é estabelecer umcânone pessoal e particular no qualestão inclusos nomes de autores e títulosde obras praticamente desconhecidos dogrande público de hoje, ou quando muitosão conhecidos por estudiosos ehistoriadores literários especializadosem determinados períodos ou temas denossa história literária. A respeito dosnomes e das obras presentes nashistórias das literaturas nacionaisafirmou Darnton:

Os grandes livros fazem parte deum conjunto canônico de clássicosselecionados retrospectivamente,

ao longo dos anos, pelosprofissionais que se encarregaramda literatura – isto é, pelos críticose professores universitários cujossucessores agora desconstroe-na.Esse tipo de literatura talvez nuncatenha sequer existido fora daimaginação dos profissionais eseus estudantes. (ibidem)

Em entrevista concedida a Maria LúciaGarcia Pallares-Burke (2000, p.256),Darnton foi ainda mais claro na suaconceituação a respeito dos editores edo trabalho desses, pelo menos no quediz respeito aos editores ligados àpublicação da Enciclopédia e à jácitada STN:

E se pensarmos nos editores,devemos lembrar que editar é umnegócio e que é errado supor queos editores publicavam livros emnome da verdade e da beleza.Alguns editores, é claro, tinhamvalores, acreditavam na verdade ena beleza, e eram pessoaseminentes. Mas tinham que fazerseu negócio dar lucro, ao contráriopodiam se arruinar. E no séculoXVIII, em caso de falência, perdia-se tudo: a casa, todos os bens e atéa liberdade, já que havia prisão pordívida. Era um tipo de capitalismomuito bruto e cruel.

Certamente, trata-se, no caso dos

editores citados por Darnton, de umexemplo específico, no entanto aimpressão e a edição de livros nãodeixaram de ser um negócio, tanto paraos editores como para os autores, pois,se Darnton conceituou comointermediários aqueles sujeitos, ele foitambém categórico quanto ao seuconceito de autor, no modo que aqui oentendemos e, assim, voltamos ao que omesmo Darnton chamou de hack-writer.Tratando a propósito do que chamou de"um mito do Iluminismo", isto é, dosuposto desinteresse dos philosophespelo ganho financeiro, além dos ganhosintelectuais e da difusão das Luzes, oque nos faz pensar queVoltaire, Diderot,D'Alambert e Rousseau vivessem

unicamente do alimento do espírito,afirmou Darnton:

Todavia, os intelectuais têm quecomer, e, às vezes, os iluministastinham família para sustentar. Nãoquero denegrir esse empenhogenuinamente idealista, pois oIluminismo é a época em que esseanimal que chamamos deintelectual surgiu. O intelectualcomo tipo engajado, comprometidocom uma causa. O que acontece,então, se não tiverem como pagaras contas? Nem todos osphilosophes seguiam o antigopreceito que lhes recomendava ocelibato. Quando eram aristocratas,

não havia problema porque tinhamuma renda garantida: masRousseau, por exemplo, era filhode um relojoeiro, e Diderot, de umcuteleiro. Não deviam ter secasado, mas o fizeram. Se havia,pois, família a sustentar,intelectuais como eles tinham queganhar dinheiro e, para isso, sedispunham a escrever qualquercoisa. Um dos assuntos que mefascina é o do hack-writer, oindivíduo que é forçado a escreverpara sobreviver. O que estouquerendo dizer é que, ao lado deidealismo, havia uma realidadesocial e econômica na qual osescritores tinham que viver.

(ibidem)

Assim, assumimos em nossa perspectivade trabalho a figura dos editores,sabendo também que além deles outrossujeitos pertencem ao sistema e aocampo literários, bem como aocomércio de livros no Brasil, que, senão aparecem nas histórias da literaturabrasileira, aparecem em textos decrítica, como nos textos de AdolfoCaminha, ou estão presentes de algummodo no aspecto físico dos livros, istoé, na sua materialidade, sendo elescapistas, tipógrafos, diagramadores etc.

Já aqui adiantamos uma prova darelação de Adolfo Caminha com essessujeitos, práticas e objetos considerados

intermediários do campo literário, poisno jornal O Diário, publicado por ele eRaimundo d'Oliveira e Silva, no ano de1892, em Fortaleza, encontramos aseguinte notícia: "Dos Estados Unidosdo Norte recebemos El AvisadorTypographico impresso e publicadopela companhia Kellar Smithes yJordan, de Philadelphia, contendomuitas informações sobre a artetypographica, typos novos, prelos,etc.".1 Essa informação dá-nos a ideiade que Adolfo Caminha tinhaconhecimento a respeito das condiçõestécnicas de produção do livro e deimpressos em geral, portanto ele eraconhecedor das condições de produçãodos impressos no final do século XIX no

Brasil.

Como afirmamos, na lista dasintermediações entre autores e leitoreshá muito mais sujeitos do queimaginamos. Seguimos, então, comexemplos de intermediações quemarcaram a obra de Adolfo Caminha.

As intermediações

Cada época teve os seus sujeitosintermediários, cada época produziupráticas de intermediação entre o autor eo leitor, operando, fundamentalmente, notexto, ao passá-lo do original para omanuscrito ou para o livro impresso quechegaria às mãos dos leitores. Noentanto, os autores, muito mais do que

possamos supor, sempre estiveram a pardas práticas intermediárias de edição deseus escritos. Na Idade Média, porexemplo, Patrícia Michon (2001, p.27-8), analisando uma edição manuscrita deEustache Deschamps, afirmou a respeitodo trabalho dos copistas e de suarelação com a edição princeps:

Aussi chaque nouvelle copies'apparente-t-elle à une nouvelleédition de l'œuvre, revue etcorrigée, abrégée ou augmentée,selon les opportunités. Et le texterédigé par l'auteur, l' «éditionprinceps» en quelque sorte,sombre alors plus ou moins dansl'oubli, nul copiste ne se souciait

de le rechercher, ni même de lementionner. Dès lors, ne rêvetantaucune importance particulièreaux yeux du public et des gens delettres, ce manuscrit originel n'abénéficié d'aucune protection aufil du temps. Il a pu disparaître àun moment indéterminé, êtremutilé, jeté, brûlé, sans que sonsort attire l'attention dequiconque. Il n'est devenu qu'unexemplaire parmi tant d'autres. Etmême s'il a survécu jusqu'à nosjours, il nous est seulementloisible de constater qu'il est l'unedes plus anciennes copies del'œuvre.2

Segundo Patricia Michon, essa situaçãodescrita acima só veio a se modificar apartir do século XIV, ou seja, só a partirde então os autores buscaram maneirasde garantir o futuro de suas obras:

En fait, c'est seulement à partir duXIVe siècle que nous constatonsde réelles préocupations chezcertains auteurs quant au devenirde leur production littéraire. Iln'est pas exclu, assurément, qued'autres, avant eux, aient efféctuéces mêmes demarches, tantmatérielles qu'intelectuelles, maisnous n'en retrouvons aucunetrace. (ibidem).3

Muitas vezes, esses sujeitos se fazempresentes por meio de uma linguagem domundo do livro, que também tem os seuscódigos. Um exemplo são as expressões"Nota do editor", "Nota do organizador"e "Nota do tradutor", pois elas nãocontêm somente informações ouexplicações destinadas ao leitor, massão verdadeiras falas desses sujeitosque se ligam diretamente aos leitores econformam, ou ao menos tentamconformar, uma orientação de leituraque pode ou não ser seguida. Portanto,os sujeitos que supostamente estariamdo lado de fora do texto, de algummodo, se tornam presentes nele, mesmoque essa presença se faça pelasmargens, espaço que nos leva a colocá-

los numa dimensão desprestigiada emrelação ao texto, afinal suas falassupostamente só constituiriam notas, masé preciso percebê-las como um textosobre o texto.

Vale, porém, lembrar também que essessujeitos interferem diretamente nacompreensão dos textos e chegammesmo a interferir na sua constituição,afinal, entre os papéis a seremdesempenhados, ao editor cabe o dediscutir formas mais viáveis de escritatendo em vista que se deseja alcançarum público específico, bastando comoexemplo as "adaptações" na passagemde um suporte ao outro, o que significatambém mudar de gênero, de linguagem,

de discurso. Mas não são somente oseditores os intermediários que atuam nasobras. Vejamos outros exemplos.

Os herdeiros

Além dos editores, os herdeiros tambémpodem ser arrolados como sujeitospertencentes ao mundo do livro e assiminterferir diretamente nos textos e até dedecidir preservá-los ou não, mesmocontra a vontade do autor como o foi,por exemplo, o caso da obra de FranzKafka. A respeito da atuação dosherdeiros na permanência das obras e naconstituição dos textos afirmou AnniePrassoloff (1994, p.58-9):

Des œuvres terminées ou

«toilettées» par des héretiers , onoublie vite qu'elles sont desmontages (Le Requiem de Mozart,Les Paysans de Balzac, ouBouvard et Pécuchet) pour prêterà leurs créateurs principaux desintentions ultimes et solennellesqui devraient revenir, en bonnejustice distrubutive, à Sussmayr,Caroline Commanville, MadameBalzac. De tels ajustementdonnent peut-être l'occasion deréflechir sur la part d'interventionexterne qui entame la religion del'auteur, par des héretiers, maisaussi, du vivant de l'auter, del'editeur, du directeur decollection, qui fréquemment,

donnent au moins au livre lebaptême d'un titre de leur cru,comme l'a montré JeanYvesMollier pour Tocqueville ouRenan.4

Tratando da organização das cartas deÉmile Zola, afirmou José-Luiz Diaz(2007, p.131):

Mas é também o caso de numerosascartas do século XIX, século deouro da correspondência e aindamais da valorização dosautógrafos. Exemplo-tipo, acorrespondência de juventude deZola, cujos manuscritos(roubados!) não puderam ser

utilizados por seus recenteseditores. Ei-los pois obrigados aretomar, sem outro recurso, aedição Fasquelle, feita pelos bonscuidados de Madame AlexandrineZola – a com a sua supervisão. E éfamosa a costumeira pudicícia dasviúvas... Como muito rapidamentese evidencia a quem tem o hábitodesses objetos naturalmenteimpuros que são ascorrespondências, o texto de cartasapaixonantes é visivelmenteexpurgado de tudo o que fazia a suaroupagem propriamente epistolar etambém provavelmente dasrevelações mais ou menoscomprometedoras para os

familiares – a família Zola, mastambém a família Cézanne (ocorrespondente privilegiado).

No caso específico de Adolfo Caminhahá um relato que nos leva ao encontro daatuação de seus herdeiros na conduçãode sua obra e que diz respeito a um livrode contos intitulado de Pequenoscontos. A fonte dessa informação estáem Sabóia Ribeiro (1968, p.86), BritoBroca e Sânzio de Azevedo. SabóiaRibeiro tratando de um livro deCaminha, que para ele não chegou nemmesmo a ser escrito, afirmou:

Pequenos Contos foi encontrado;nós mesmos folheamos o volumedatilografado, que a filha do

escritor conservava para suapublicação em livro, em 1942. Aotodo, quinze contos. Isto foi noescritório de meu saudoso amigoLeão de Vasconcelos, com vistas àpublicação de um dêles na VidaLiterária, que realmente lheestampou o conto Estados d'almanum dos seus números.Posteriormente, os PequenosContos estiveram nas mãos deBrito Broca, que sôbre elesescreveu um estudinho que está emHoras de Leitura, 1957, livro,aliás, composto de artigospublicados na imprensa,anteriormente. Ali, Brito Brocaconfessou ter recebido os contos de

Maurício Caminha de Lacerda, netodo escritor. Tive, aliás,informação, aí por 1963, 1964, deMaurício, que todo o PequenosContos se achava, para edição, naEditôra José Olímpio, mas pudeapurar o absoluto equívoco dessainformação. E é pena.

Vemos por essa citação que osPequenos contos, de Adolfo Caminha,hoje desconhecidos como tal, sofreram aação dos seus herdeiros, queinfelizmente não alcançaram meiosefetivos de publicá-los. Vemos que nacitação, Sabóia Ribeiro chegou a falarem um volume datilografado, ou seja,um volume organizado para a

publicação. Além da perda dos contos,em tese, perdeu-se também algumaintrodução que o autor houvesse feito oualgum prefácio, perdendo-se, portanto,algumas informações que seriamimportantes para a compreensão de pelomenos uma parte do conjunto da obra deAdolfo Caminha, ou seja, os seus contosque por muitos anos ficaram dispersosem publicações de revistas brasileirasespecializadas.

Citado que fora por Sabóia Ribeiro,além de nos informar a respeito dosditos contos, Brito Broca deu uma outrainformação que consideramos relevante:a de que em um dos contos, intitulado de"Vencido", que não figura, infelizmente,

na edição de Contos organizada porSânzio de Azevedo com os contos queconseguiu recolher, tem entre as suaspersonagens um editor. Antes de tratardeste assunto, vejamos o que nos dizBrito Broca (1957b, p.226):

Hoje, graças à gentileza do meuamigo e confrade MaurícioCaminha de Lacerda, neto doromancista cearense, venho de leruma dezena de contos inéditosdêste último. Todos os estudiososde história literária bem sabem dointerêsse com que nos debruçamossôbre inéditos de escritores cujaposição histórica já está mais oumenos definida. A possibilidade de

uma revisão crítica, de umamudança de pers-pectiva, é semprealgo de fascinante. E foi com avolúpia da pesquisa, o anseio dadescoberta que percorri as páginasdactilografadas dêsses contos,alguns dos quais já divulgados emrevistas há muito tempo, sem setornarem por isso menos ignorados.

Vemos por essa citação de Broca oquanto a publicação dos contos seriaimportante para o estudo do conjunto daobra de Adolfo Caminha e para a suacompreensão como autor. Destacamostambém dessa citação o fato de Brocafalar em uma dezena de contos e SabóiaRibeiro falar em quinze contos, o que

pode nos fazer considerar que algunster-se-iam perdido, talvez na busca deseus herdeiros em fazê-los publicar,pois o mesmo Sabóia Ribeiro informouque o volume com os quinze contos quemanuseara não estava na Editora JoséOlympio para um possível publicação.

Sânzio de Azevedo (2002, p.10-11) foiainda mais claro ao tratar do assunto eao referir-se à atuação dos herdeiros deAdolfo Caminha no caso que envolve osPequenos contos:

Quanto ao conto, continuou acultivá-lo, estampando algumasnarrativas na imprensa de Fortalezae do Rio de Janeiro, chegandomesmo a organizar os originais de

um livro que deveria intitular-sePequenos contos.

Gastão Penalva, em nota a umtrabalho sobre o escritor cearense,arrola quinze contos (alguns comdedicatória), ao dizer: "OsPequenos contos teriam osseguintes títulos: Velho testamento,a Ferreira de Araújo; A Mão demármore, a Artur Azevedo;Pesadelo, a Luís Rosa; Minotauro;O exilado, a J. M. Brígido; Flor dovício, A última lição, Estadosd'alma, No convento, O beijo,Elas, O grumete, a Jovino Aires;Joaninha, Amor de fidalgo eVencido."

Brito Broca, que teve nas mãos"uma dezena de contos inéditos" deCaminha, graças ao único neto doescritor, Maurício Caminha [de]Lacerda, revela que percorreu "aspáginas dactilografadas dessescontos, alguns dos quais jádivulgados em revistas há muitotempo', mas confessa: 'embora aleitura não me decepcionasse, nãoconsegui descobrir qualquernovidade de monta para a exegesedo ficcionista". E lamenta, comrazão, não encontrar 'as datas doscontos, indicações que [...],permitindo situá-loscronologicamente na obra deCaminha, poderiam esclarecer o

desenvolvimento da mesma.

[...]

Sim, porque ao leitor queporventura esteja perguntando ondefora parar os originais queestiveram nas mãos de Brito Broca,responderemos que o jornalista econtista Maurício Caminha deLacerda que, ao que tudo indica,pretendia fazer editar os contos doavô, morreu sem concretizar essesonho, e o mais lamentável é quenada parece ter feito para queoutrem o fizesse: Daniel Caminha(primo, em segundo grau, deAdolfo Caminha) e seu sobrinho, oescritor Edmílson Caminha,

buscaram, inúmeras vezes, obtercom o parente cópias, mas, apesardo desejo expresso em carta aEdmílson, isto nunca foi possível,por motivos que ignoramos.5

Também nessa citação de Sânzio deAzevedo, o vemos falar em quinzecontos, em vez de dez somente,chegando mesmo, com base em estudode Gastão Penalva, a citar-lhes osrespectivos títulos. Os motivos para queos Pequenos contos não fossempublicados são, como podemosconstatar nas diversas citações,desconhecidos; no entanto, é clara ainterferência dos herdeiros de Caminha.

Um conto perdido chamado "Vencido"ou um fantasma literário ou uma fontefantasma

Antes de passarmos a tratar de outrasfiguras, que podem com suas açõesinterferir na condução de uma obra, naedição de livros e na produção dopróprio texto, vejamos o que disse BritoBroca (1957b, p.227-8) a respeito doconto Vencido" e da sua personagem queseria um editor:

Difícil seria colocar sob o bafejode qualquer tendência algunscontos, que não passariam desimples esboços para posteriordesenvolvimento. É o que

aconteceu com "O Grumete",quadro da vida de bordo emligeiros traços, e com o "Vencido",que mais se assemelha a umfragmento autobiográfico. AdolfoCaminha nutria um ressentimentoprofundo contra os editôres e nasCartas Literárias (como nacorrespondência com FranPaxeco, em trechos revelados porMaurício Caminha de Lacerdanuma entrevista ao 'Jornal deLetras') atacou-os rudemente.Pretenderia, talvez, pintar numconto ou fazer viver num romanceessa figura para êle odiosa.

É o que imaginamos após a leitura

do "Vencido", em que aparece umeditor declarando ao pobreliterato na miséria, que lheoferece o livro por qualquerpreço, a decisão inabalável de nãoeditar mais literatura. Essa páginanão chega, porém, à configuraçãode um conto, motivo porque, comojá dissemos, julgamos tratar-seantes de ligeira impressãoautobiográfica, base, talvez, parauma narrativa mais ampla. Elembremos, de passagem, que oeditor é um tipo ainda inédito emnossa novelística, e mesmo muitopouco explorado no ficcionismode outras literaturas. Recordo-meapenas tê-lo encontrado num dos

romances de Thomas Wolfe.

Vemos, portanto, que trazer à tona apresente discussão não nos desviou daproblematização e análise das figurasaqui implicadas, ou seja, o autor e oseditores. Infelizmente, "Vencido" não seencontra na edição dos contos de AdolfoCaminha, organizada por Sânzio deAzevedo. Para um conto que haveria dese perder, talvez não houvesse títulomais bem escolhido. Seria o caso dedizer que o título selou o seu destino defonte fantasma. No entanto, podemoscom essa citação de Brito Brocaconstatar também o quanto a figura doseditores mobilizava a atenção de AdolfoCaminha.

Infelizmente, a ausência desse conto nosimpede de maiores discussões arespeito, mas os relatos feitos pelo autorde Horas de leitura nos parecemimportantes, juntamente com os outrosrelatos feitos por Ribeiro e Azevedo.Não podemos afirmar com certeza, mastalvez Broca também esteja certo emmostrar que Adolfo Caminha estavaprestes a trabalhar um outro elementoinovador na literatura brasileira: ainserção do editor como personagem deficção, o que ligaria de modo ainda maisefetivo a crítica de Adolfo Caminha àsua ficção, estabelecendo desse modooutras relações-possíveis, uma vez quena sua atuação como crítico literário elejá se ocupara dos editores. O que

reforça a sua atuação como polígrafo e omodo como conceituamos esse sujeitomúltiplo.

Assim, podemos afirmar que o ensaiodessa ligação já estivesse mesmo sendofeito no texto "Editores", de Cartasliterárias, pois nele são variados osrecursos ficcionais usados pelo escritorcearense no trabalho de composição dafigura do editor, como o senhor F oumesmo do editor Garnier. Devemoslembrar também que Adolfo Caminhacriou as personagens do editorminotauro e do editor sanguessuga comoque constituindo um retrato dapersonagem que ele poderia utilizar emum trabalho de ficção.

Mesmo que o conto citado não tenhasido encontrado e publicado, as citaçõesfeitas aqui dão-nos a ideia de queAdolfo Caminha vinha observando afigura do editor e procurando com elecompor uma narrativa na qual,certamente, estaria em discussão arelação dos editores com os autores.Ainda que seja uma fonte fantasma, umavez que dele temos apenas oscomentários aqui citados, podemosafirmar que se trata de um esgarçamentono tecido da obra, o que demonstra quea ideia de conjunto é também formadapor "ausências" perceptíveis com asquais temos que lidar. O conjunto daobra é feito, portanto, de fissuras, faltas,ausências etc.

Os (des)organizadores de edições e os(des)caminhos do texto de Caminha

Além dos editores e dos herdeiros, épossível também arrolar osorganizadores de edições como aquelessujeitos que podem interferir namaterialidade do livro e do texto. Oromance A normalista parece ter sidoum dos mais mutilados em suas ediçõesao longo de sua história. Sabóia Ribeiro(1967, p.89) já se referira a esse fato,chamando A normalista de "Umromance assassinado".

Para dar exemplo dessa atuação, usamosa quinta edição do romance em causa,que traz notas e introdução de M.

Cavalcanti Proença. De fato, nãopodemos dizer que a organização é deProença, mas, além de inúmeras outrasalterações, a maior delas encontramosnos quarto e quinto capítulos, que foramfundidos em um só, resultando em umadiminuição no número total de capítulos,de 15, na edição princeps, para 14. Naedição conforme o texto original, oquarto capítulo é composto de 192parágrafos ou recuos, como preferimosnomear. Já o mesmo capítulo da quintaedição é formado de 329 parágrafos ourecuos. Além da fusão de capítulos, oorganizador suprimiu linhas, acrescentoupalavras e trechos a fim de dar sentido a(con)fusão que fizera. Vejamos então otexto na versão original e o texto

mutilado e (con)fundido:

João da Mata parou à beira dacalçada afagando a pêra com osdedos magros e compridos,nervoso. Quem morreria?, pensava.E, assim que o préstito passou, foiandando devagar, cabeça baixa,equilibrando-se.

No outro lado da rua, o Romão, onegro Romão que fazia a limpezada cidade, passava muito bêbadofazendo curvas, de calçasarregaçadas até os joelhos, peito àmostra, com um desprezo quasesublime por tudo e por todos,gritando numa voz forte eaguardentada. – Arre corno!... –

Um garoto atirou-lhe uma pedra.

Mas o negro, pendido pra frente,ziguezagueando, tropeçando,encostandose às paredes, torto,baixo, o cabelo carapinha sujo depoeira, pardacento, repetiainstintivamente, alto e bom som, oestribilho que todo o Ceará estavaacostumadoa ouvi-lhe – Arrecorno! – e que repercutia comouma verdade na tristeza calma darua. [FIM DO CAPÍTULO IV]

[INICIO DO CAPÍTULO V]

Um tédio invencível, um desânimoinfinito, foi-se apoderando deMaria do Carmo a ponto de lhe

alterar os hábitos e as feições.Começou a emagrecer, a definhar,enfadando-se por dá cá aquelapalha, maldizendo-se. Tudo acontrariava agora, tinha momentosde completo abandono de simesma, o mais leve transtorno nosseus planos fazia-lhe vontade dechorar, de recolher-se ao seuquarto e desabafar consigo mesma,sem que ninguém visse, num chorosilencioso. Estava-se tornandoinsociável como uma freira, tímidae nervosa como uma histérica. Ia àEscola para não contrariar ospadrinhos, para evitardesconfianças, mas o seu desejo, oseu único desejo era viver só, numa

espécie de deserto, longe de todoruído, longe daquela gente edaquela casa, num lugar onde elapudesse ver o Zuza todos os dias edizer-lhe tudo que quisesse, tudoque lhe viesse à cabeça. O ruídoque se levantou em torno de seunome incomodava-a horrivelmente,como o zumbir de uma vespaenorme que a perseguisseconstantemente. – Que inferno!Todo o mundo metia-se com a suavida, como se fosse uma grandecousa ela casar com o Zuza! Eramelhor que fossem plantar batatas enão estivessem encafifando-a.Havia de casar-se com o Zuza,porque queria, não era da conta de

ninguém, seu coração era livrecomo as andorinhas. Oh!...

Mas menina, quem diz o contrário?,perguntava a Campelinho. Eusempre te aconselhei que o melhorpartido era aceitar o amor doestudante. (Caminha, 1998, p.58-9)

Vejamos a versão da quinta edição:

João da Mata parou à beira dacalçada afagando a pêra com osdedos magros e compridos,nervoso. – Quem morreria?Pensava. – E, assim que o préstitopassou, foi andando devagar,cabeça baixa, equilibrando-se.

Maria do Carmo aborrecia-se como que diziam dela com o Zuza! Eramelhor que fossem plantar batatas enão estivessem encafifando-a.Havia de casar com o Zuza, porquequeria, não era da conta deninguém, seu coração era livrecomo as andorinhas. Oh. (Caminha,s. d. (a), p.45)

Vemos pelos trechos citados queocorreu a supressão de dois longosparágrafos na passagem do quarto para oquinto capítulos. O motivo para tal não osabemos. Até o momento tudo o quedissermos são meras hipóteses, uma vezque poucos se ocuparam desse fato nahistória da recepção do romance e das

suas edições. Suprimiu-se dessapassagem do romance o comportamentoirreverente da personagem Romão, deseu palavreado talvez considerado comode baixo nível pelos (ou para os)leitores da época. O que sabemos é quea supressão foi feita e alterouformalmente o texto. Não pretendemoscom esse exemplo afirmar que a atuaçãodos intermediários é sempre negativa.Sabemos que a ação de muitosconcorreu para estabelecer textos, paratirar obras do esquecimento. Diante doque constatamos, parece-nos válidoperguntar: a quem pertence esse textomodificado? Vale destacar também queessa edição faz parte de uma coleçãochamada "COLEÇÃO PRESTÍGIO",

formada por "Clássicos da literaturaportuguesa – romance, poesia, teatro",como podemos ler nas páginas pós-textuais.

Esse fato, a nosso ver, mostra aimportância da constituição e do estudode arquivos de autores, pois eles podemcontribuir para o estudo prático decategorias importantes para os estudosliterários e suas áreas específicas comoa história da literatura, que não leva emconta a atuação desses sujeitos, porémeles são mais e mais necessários parauma ressignificação da história daliteratura como afirmou Darnton (1990,p.132): "O historiador de hoje precisatrabalhar com uma concepção mais

ampla de literatura, que leve em contaos homens e as mulheres em todas asatividades que tenham contato com aspalavras". E tratando desses homens emulheres, Darnton foi ainda maisafirmativo:

O contato popular com a palavrainclui as mães que cantamversinhos, crianças que recitamversos de pular corda, adolescentesque contam piadas sujas e negrosque trocam insultos rituais ("xingaraos pais"). Os historiadores podempreferir deixar essas pessoas paraos antropólogos. Mas, mesmo querestrinjam a literatura àcomunicação por meio da palavra

impressa, eles poderiam ampliar asua concepção, de modo a incluiralgumas figuras pouco familiares –trapeiros, fabricantes de papel,tipógrafos, carroceiros, livreiros, eaté leitores. A literatura livrescafaz parte de um sistema que produze distribui livros. Mas a maioriadas pessoas que fizeram funcionaresse sistema desapareceu dahistória literária. Os grandeshomens expeliram os homensmédios, os intermediários. Vista daperspectiva dos transmissores daobra, a história literária poderiasurgir a uma nova luz. (ibidem,p.132)

Mesmo que tenhamos um textoestabelecido, essas edições podem serconsideradas como um testemunho dos(des)caminhos que as obras seguiram,são as marcas de uma história doprocesso de produção do qual o livrofaz parte, o que implica ações sobre otexto, ações essas que nem sempre sãodominadas pelos autores. Trazer à cenaesses sujeitos e suas práticas não nosparece um ato que esteja fora dointeresse dos estudos literários; afinal, oque se discute aqui, em essência, é omodo como o texto, e não somente o seusuporte material, é recebido pelosleitores. O que faz que nos perguntemos,por exemplo, a respeito das edições deA normalista, pelo menos nas edições

seguintes a primeira e até os anos 1960,como indicou Sânzio de Azevedo, dequem seria, de fato, o texto lido: o deAdolfo Caminha, cujo nome, apesar dasinterferências, encabeçava o livro, oudos organizadores da edição? Se osestudos literários se resumirem tãosomente ao estudo do texto pelo texto,desprezando os demais aspectos daobra, como então resolver essasquestões que propusemos?

Desse modo, o estudioso do texto quelevasse em consideração tão somente otexto, estaria estudando o texto de quem:de Adolfo Caminha? ou dosorganizadores? Se o texto é marcado poressas supressões, a lógica nos leva a

afirmar, então, que o estudo intrínsecoestaria estudando o texto de um sujeitoque pouco figura nos estudos literários,nas histórias da literatura, ou seja, semdar-se conta desse fato o objetivo finaldo estudo intrínseco estaria sofrendo umengano proposto pela sua próprianatureza, pois estava dedicando-se aestudar o texto a partir da intervenção deum intermediário e não do seu autor, oque, de um certo modo, mas talvez semdar-se conta do fato em si, antecipassequestões que hoje nos preocupam.

Os tradutores e as traições do texto

A normalista não foi o único romance deAdolfo Caminha marcado pelas atuações

de outros sujeitos que não somente o seuautor. No caso do romance Bom-Crioulo, sobretudo no caso de suastraduções, não foi diferente. Ostradutores deram-lhe outros títulos quenão o original, como na edição alemã:Tropische Nächte [Noites tropicais], oque deslocou para o espaçodestacadamente exótico dos trópicos arelação dos dois marinheiros, comopoderia parecer também exótico aosolhos dos leitores alemães o enredo doromance envolvendo dois homens,escrito no Brasil no final do século XIX.

Já a tradução francesa recebeu o títulode Rue de la Miséricorde [Rua daMisericórdia], fato esse que parece

deslocar o foco do protagonista para oespaço, mas dessa vez para o espaçourbano, a nosso ver mais condizente coma trama, valorizando também doissentimentos presentes no enredo: o amore o ciúme extremo, afinal foi naquela ruada capital carioca onde Bom-Crioulo eAmaro viveram o seu caso de amor,pois era lá que se localizava o pequenoquarto que Amaro alugara na pensão deDona Carolina. Mas foi lá também quese deu o fim da trama com a morteviolenta do grumete por seu amante.

Esse título da tradução, aliado aoselementos já citados, coloca em cena umespaço decadente da cidade do Rio deJaneiro, no século XIX. João do Rio

(1997, p.57) ao pintar um quadro nadaanimador dessa artéria urbana afirmou:

A rua da Misericórdia, aocontrário, com as suas hospedariaslôbregas, a miséria, a desgraça dascasas velhas e a cair, os corredoresbafientos, é perpetuamentelamentável. Foi a primeira rua doRio. Dela partimos todos nós, nelapassaram os vice-reis malandros,os gananciosos, os escravos nus, ossenhores em redes; nela vicejou aimundice, nela desabotoou a flor dainfluência jesuítica. Índios batidos,negros presos a ferros, domínioignorante e bestial, o primeirobalbucio da cidade foi um grito de

misericórdia, foi um estertor, umai! tremendo atirado aos céus. Delabrotou a cidade no antigo esplendordo largo do Paço, dela decorreram,como de um corpo que sangra, osbecos humildes e os coalhos desangue, que são as praças,ribeirinhas do mar. Mas, soluço deespancado, primeiro esforço deuma porção de infelizes, elacontinuou pelos séculos aforasempre lamentável, e tão angustiosae franca e verdadeira na sua dorque os patriotas lisonjeiros e osgovernos, ninguém se lembroununca de lhe tirar das esquinasaquela muda prece, aquele grito demendiga velha: – Misericórdia!

O espaço que o título da traduçãofrancesa colocou em evidência,portanto, é bastante condizente comaquele do romance, mas, de fato, nãotraduz bem o seu título original. Atradução de língua inglesa manteve otítulo original, porém acrescentou-lhe oseguinte subtítulo: The Black Man andthe Cabin Boy [O negro e ocamaroteiro], que por sua vez desloca aatenção do leitor não somente paraAmaro, o Bom-Crioulo, mas tambémpara Aleixo, o grumete. Esse subtítuloem inglês acrescentou, diferentementedos dois primeiros citados, o trabalhocomo um valor, pois Aleixo é definidopor sua profissão, enquanto Amarocontinua definido por sua raça. O mesmo

acontece com a tradução em italianointitulada Il Negro [O negro].

Além dos títulos e subtítulos, astraduções têm sido acrescidas deimagens que valorizam a diferença físicaentre os dois homens e demonstramtambém a tensão em seu relacionamentoamoroso, pois Amaro aparece semprecomo uma sombra por detrás de Aleixo,imagem essa também constante nasedições nacionais. Na edição datradução francesa, a imagem da capa éuma fotografia feita por Pierre FatumbiVerger. Nela destaca-se um corpomasculino de torso nu. Uma fotografiaidêntica também serve de ilustraçãopara a capa da tradução espanhola, que

recebeu o título de Buen Criollo, quetambém não traduz a essência do texto,uma vez que em espanhol o vocábulocriollo designa o filho de espanhóisnascido na América. Em nenhuma dasedições das traduções houve, porexemplo, a inserção, fosse no título, nosubtítulo ou nas imagens de capa, dapersonagem Dona Carolina, a CarolaBunda, como que evidenciando otriângulo amoroso do romance, ou seja,Carola continua em seu papel depersonagem secundária.

A respeito da mudança dos títulos desseromance de Caminha afirmou Azevedo(1999, p.117): "Aliás, mudar o títulooriginal de um livro em tradução não é

prática muito recente, mas a nosso verisso desvirtua um pouco o que seria avontade do autor; é como se ThérèseRaquin, de Zola, houvesse tido, numatradução em língua portuguesa, comotítulo, Galeria da Ponte Nova...". Defato, o que acontece com essasmudanças é uma inserção do romancenos variados interesses, seja os doeditor, do tradutor, bem como também ointeresse do público que se quer atingir.

No mundo dos livros sempre cabe maisum

Feitas essas observações, queacreditamos serem pertinentes àproblemática proposta, passamos a

destacar outros sujeitos que também seintegram ao mundo do livro e da suaedição, como trabalhadores ligados aele, ou seja, como personagens, fatotambém que os insere no texto. Essessujeitos igualmente estão presentes emcrônicas, como as de João do Rio em Aalma encantadora das ruas da qual nosvalemos agora para dar exemplo de quesujeitos estamos falando. Na crônica"Pequenas profissões", por exemplo,lemos a respeito dos trapeiros: "ostrapeiros existem desde que nóspossuímos fábricas de papel e fábricasde móveis. Os primeiros apanhamtrapos, todos os trapos encontrados narua, remexem o lixo, arrancam da poeirae do esterco os pedaços de pano, que

serão em pouco alvo papel..." (Rio,1997, p.92). Nesse mesmo conjunto decrônicas do dândi carioca encontramosreferências aos vendedores ambulantesde livro, que ele via pejorativamente,assim como os títulos por eles vendidos:

Os vendedores de livro são umachusma incontável que todas asmanhãs se espalha pela cidade,entra nas casas comerciais, sobeaos morros, percorre os subúrbios,estaciona nos lugares demovimento. Há alguns anos, essesvendedores não passavam de meiadúzia de africanos, empapaçadospreguiçosamente como o JoãoBrandão na praça do Mercado.

Hoje, há de todas as cores, detodos os feitios, desde os velhosmaníacos aos rapazolas indolentese aos propagandistas da fé. Avenda não é franca senão em algunspontos onde exibem os tabuleiroscom as edições falsificadas doMelro de Junqueiro e da Noite nataverna. Os outros batem a cidadeoferecendo as obras. (ibidem,p.136-7)

Como já afirmamos, não temos porobjetivo escrever uma história daliteratura brasileira, ou mesmo umrecorte dela, mas retomá-la numa outraperspectiva parece-nos capital, afinal,no conjunto do presente estudo, há a

preocupação constante de reverafirmações, problematizar pensamentoscristalizados, reler trechos de obrasficcionais, às vezes capítulos e obrasinteiras, bem como obras e pensamentoscríticos. Rever essas figurasintermediárias esquecidas pela históriada literatura em detrimento dos grandesautores e das grandes obras é tambémfundamental, pois eles são exemplosclaros de como o sistema e o campoliterários no Brasil do período em causaera frágil ou talvez em formação, umavez que as suas práticas estavam longede um sistema de excelência, tanto nasua mecanização da produção quanto naprofissionalização da sua distribuição.

Se não há o objetivo de escrever umahistória da literatura brasileira, há,talvez implicitamente, o objetivo dereler a sua memória, o que resulta emressignificar sujeitos e práticas. Se osaspectos apontados por Robert Darntonnão fossem suficientes para justificar aperspectiva de escrita, análise eproblematização do nosso objeto,valemo-nos de afirmações de outrosestudiosos, como é o caso, por exemplo,de Roger Chartier (1999a, p.61-4), que,ao tratar dos editores e da relaçãodesses com os autores e o surgimento daideia ou da invenção dos direitosautorais, afirmou:

Durante muito tempo, a República das

letras, esta comunidade na qual osautores se associam, trocamcorrespondência, manuscritos einformações, não está habituada à idéiade obter uma remuneração direta emtroca do escrito. É no século XVIII queas coisas mudam, mas nãonecessariamente por iniciativa dosautores. São os livreiros-editores que,para defender seus privilégios, seja nosistema corporativo inglês, seja nosistema estatal francês, inventam a idéiade autor-proprietário. O livreiro-editortem interesse nisso, pois se o autor setorna proprietário, o livreiro também setorna, uma vez que o manuscrito lhe foracedido! É este o caminho tortuoso queleva à invenção do direito do autor.

Vemos por essa citação que a relaçãoentre os livreiros-editores e os autoresestá no cerne do debate a respeito dosdireitos autorais. Nela, Chartier não nospossibilita somente chegar a essaconclusão, mas dá-nos o seu conceito arespeito da República das Letras,"mundo" no qual um dos assuntos maisrecorrentes, sobretudo após o séculoXVIII nos países industrializados daEuropa e nos Estados Unidos, tambémapós a figura de Rousseau, como um dosprimeiros a viver de sua pena, foi aremuneração do trabalho literário e oque ele podia significar na vida diária,particular e suas necessidades maiscomezinhas.

É importante também destacar umaafirmação de Robert Darnton (1990,p.132): "Tendo se fartado de teoria, osestudiosos da literatura agora se voltampara a história", ou seja, tendovalorizado em especial os chamadoselementos intrínsecos do texto emdetrimento de qualquer contato dessescom a sua história e com os sujeitosenvolvidos no seu processo, é chegada ahora, por uma necessidade causada pelafalta, muito mais do que pela moda ouemprego de um pensamento, de repor aárvore novamente com as raízes na terra,isto é, de buscar as relações quequalquer texto tem com o espaço-tempode sua própria produção.

Roger Chartier (1999a, p.67) alerta-nospara o movimento contrário, que tambémsurgiu no século XVIII, na tentativa de,como ele mesmo afirmou,"desmaterializar a propriedade" autoral:"Durante o século XVIII, todo umtrabalho foi feito para desmaterializaressa propriedade, para fazer com queela se exercesse não sobre um objeto noqual se encontra um texto, mas sobre opróprio texto, definido de maneiraabstrata pela unidade e identidade desentimentos que aí se exprimem, doestilo que tem, da singularidade quetraduz ou transmite".

Certamente, o desenvolvimento desseprocesso resultou no fato de que o texto

literário impresso, sendo visto comomais uma mercadoria pelos editores edesejado pelos autores como uma formade garantir-lhes o sustento, produziu nosteóricos e críticos literários um outromodo de perceber e, evidentemente, deanalisá-los, pois ao mesmo tempo emque autores nas correspondências entreseus pares evidenciam o desejo de viverunicamente da sua escrita, os críticosdesconsideravam esse fato paraconsiderar apenas o texto fora de seusuporte físico e material.

Talvez, somente após o formalismo ou oestruturalismo e suas aplicações maisradicais, pois nem o primeiro, nem osegundo, pelo menos em tese, deixou de

estabelecer relações com a história, ecom o surgimento dos estudos a respeitoda leitura, muito mais do que da escrita,ou dessa associada àquela, é queocorreu uma mudança de paradigmasque passou a analisar o texto nãosomente na sua textualidade, ou comodiriam René Wellek e Austin Warren, nasua literariedade, para tratar danatureza específica do texto literário,mas também na materialidade do seusuporte que é como ele chega às nossasmãos e passa a sofrer vários tipos deinterferências, como anotações,citações, reinterpretações etc. Uma vezque esses sujeitos intermediários foramexpostos, vejamos como um deles – oseditores – estão presentes na obra de

Adolfo Caminha.

O Minotauro na mitologia do mundodos livros

Nesse processo de escrita levamos emconsideração os aspectos e os elementosextrínsecos e intrínsecos, recorrendo àanálise de ordens diversas como numaconcepção dialética do fato que transitaentre a diacronia e a sincronia, entre adiegese e a hermenêutica. Assim, nãopodemos desconsiderar o fato de queAdolfo Caminha tenha usado, porexemplo, o mito do Minotauro parareferir-se aos editores. Procuramos emnossa escrita analisar todos oselementos que se relacionam com esse

mito. Desse modo, uma breve análise domito em causa pode nos ajudar aentender o seu uso no texto em questão,valendo, portanto, trazer à cena e àrecordação a história do filho dePasífae, mulher do rei Minos, com o seutouro, que fora presente do deusPosêidon:

Para provar aos cretenses quegozava do favor dos deuses, Minospede a Posêidon um sinal. O deusaceita, sob a condição de que otouro que ele fará surgir do mar lheseja oferecido em sacrifício. Mas oanimal é tão belo que Minos decidenão sacrificá-lo. Furioso, Posêidonresolve vingar-se, inspirando à

rainha Pasífae um louco amor pelotouro branco. Morrendo de vontadede unir-se ao animal, a rainha pedeajuda ao engenhoso atenienseDédalo, então refugiado na corte deMinos. O talentoso escultor fabricauma vaca de madeira e couro ondea rainha se esconde, e o tourobranco, confundido pelasaparências, se une a ela. Dessasestranhas núpcias nasce oMinotauro (também chamadoAstérion ou Astérios) cuja partesuperior do corpo é de touro e ainferior de homem. Furioso eenvergonhado, Minos ordena queDédalo construa uma espécie depalácio-prisão para encerrar o

monstro: o labirinto. Todos os anos(um grande ano, correspondente anove anos), eram dados em pastoao Minotauro sete rapazes e setemoças, que Minos impusera comotributo aos atenienses. Certo dia,Teseu se propõe a fazer parte dogrupo dos rapazes; com a ajuda dofio que Ariadne lhe envia, elechega até o touro, mata-o e saivitorioso do labirinto. (Peyrone,2000, p.645)

Há muitas interpretações a respeitodesse ser mitológico. No seu estudodestacam-se geralmente alguns aspectos,como o labirinto, que era a morada domonstro, o sacrifício das sete moças e

dos sete rapazes. Como exemplo daabordagem psicanalítica do mitodestacamos a seguinte citação:

Esse monstro simboliza um estadopsíquico, a dominação perversa deMinos. Mas esse monstro é o filhode Pasífae: isto quer dizer quePasífae está também na origem daperversidade de Minos; elasimboliza um amor culpado, umdesejo injusto, uma dominaçãoindevida, o erro, recalcados eocultados no inconsciente dolabirinto. Os sacrifíciosconsentidos ao monstro sãomentiras e subterfúgios paraapascentá-lo; mas também novas

faltas que se acumulam. O fio deAriadne, que permite a Teseuretornar à luz, representa o auxílioespiritual necessário para vencer omonstro. O mito do Minotaurosimboliza em seu conjunto ocombate espiritual contra orecalque. Mas esse combate nãopode ser vitorioso a não ser graçasàs armas da luz: segundo umalenda, não foi apenas com seu rolode fios que Ariadne permitiu aTeseu voltar das profundezas dolabirinto, onde ele havia abatido oMinotauro com golpes de punhal,mas graças à sua coroa luminosa,com a qual ela iluminou as voltasescuras do palácio. (Chevallier &

Geerbrant, 1991, p.611)

Nessa leitura psicanalítica algunsaspectos chamam a nossa atenção: adominação, os sacrifícios, o sentimentode injustiça e, consequentemente, orecalque, sendo esse atribuído aoinconsciente, representado na históriadas interpretações do mito pelolabirinto. Mas um outro aspecto étambém relevante: a luz ou as armas daluz, que de certo modo serão tambématribuídas ao trabalho dos intelectuais,sobretudo àqueles motivados pela ideiasiluministas do século XVIII. Porém, umaleitura do mito do Minotauro ao longoda história da literatura do Ocidenteremete-nos ao século XIX e traça

paralelos com as questões que são aquitrabalhadas no cerne das relações entreautores, obras, editores e demaissujeitos do mundo dos livros. A esserespeito, lemos:

Nos séculos XIX e XX não foiainda possível ao Minotauro deixarde lado sua figura de monstro. Eleé sobretudo lembrado pelo fato decomer carne humana. Na Françacostuma-se freqüentementeconvocá-lo como espantalho nasdiscussões políticas: para A.Mettement ele é a metáfora dorecrutamento imperial; para J.Simon, representa a devassidão aque se entregam os maus operários;

e para A. Barbier, a sociedadeindustrial que os devora; na penaconjunta de Barthélémy e Méry, elese chama Villèle; na boca de umpersonagem de T. Gauthier, éRobespierre...; com Souvarine, noséculo XX, ele renascerá em Stalin.(Peyrone, 2000, p.647)

O Minotauro e os obreiros são umexemplo claro de sujeitos queparticipavam de frentes antagônicas nadefesa de interesses referentes à ediçãode livros. De um lado, estãorepresentados os editores, do outro, osautores. Assim como nos pareceuimportante trazer à cena o mito grego,pareceu-nos importante também recorrer

à analise do campo semântico, comoexercício de uma prática cara ao estudoda análise de textos, no qual as duaspersonagens – minotauro e obreiros –foram inseridos por Adolfo Caminha.Vemos que o minotauro participa de umcampo semântico negativo, o que fazcrescer a significação de sua figuracomo monstro. A ele estão ligadaspalavras como sofrimento, pressão,opressão, que se traduzem em ações,segundo Adolfo Caminha, contra osautores, o que resulta em um camposemântico muito próximo ao daescravidão: dor, abandono, desalento,indiferença etc. O que não poderia darcomo resultado outra coisa que nãofosse o embate entre as partes; no caso,

os editores e os autores.

Antes de continuarmos, parece-nosválido destacar que a figura doMinotauro é o título de um dos contosescritos por Adolfo Caminha.Destacamos também que esse mesmoconto intitulado com o nome do monstroteve duas outras versões, mas em todosos casos ele serviu para metaforizar umasituação de adultério; portanto, ao longoda formação do conjunto da obraficcional e crítica do escritor cearenseesta figura mitológica sempre teve umvalor considerado social e culturalmentecomo negativo: a traição.

Voltemos agora à discussão anterior.Logo no primeiro parágrafo do texto

"Editores", Adolfo Caminha anuncia oembate existente, segundo ele, entre ominotauro e os obreiros. Na citação quesegue destacamos os vocábulos emitálico como aqueles que compõem ocampo semântico referente aosescritores e em negrito os vocábulosreferentes aos editores:

Incontestavelmente uma das causasque muito influem no ânimo denossos escritores, obrigando-os aorecolhimento, à vida obscura deautores inéditos, a uma espécie deascetismo literário duas vezesprejudicial, roubando-lhes oestímulo e amesquinhando-lhes otalento, é o monopólio, a ganância,

a desenfreada ambição doelemento editor. Não há por aíquem desconheça que o escritorbrasileiro, na maioria dos casos,vive tristemente de um míseroemprego público, sem recursos deoutra espécie, ocultando-se dasociedade para não ser visto comseus trajos de boêmio à força,macambúzio, chorando suasnecessidades, alimentando-se mal,contraindo favores, enquanto nãolhe chega o minguado subsídiocom que vai pagar aos agiotas queo socorrem durante o mês.(Caminha, 1999a, p.119)

Os destaques feitos nos fazem

problematizar os vocábulos obra eofício como participantes dos campossemânticos do trabalho, do poder e dareligião, pois há nos vocábulos quedestacamos em itálico e negrito umforte relação com os primeiros, afinal, oque Adolfo Caminha discute sãoquestões referentes ao trabalho,especificamente ao trabalho dos autores,bem como a sua exploração, segundoele, pelo elemento editor. Vejamos entãoo quadro que segue:

Escritores Editores

Recolhimento Monopólio

Vida obscura

Ascetismo

Vida triste

Mísero empregopúblico

Falta de recurso

Trajes deboêmio à força

Macambúzio

Necessitado

Ganância

Ambiçãodesenfreada

Percebemos que os obreiros dainteligência ou os abnegados da Arte sãodescritos como vítimas; aliás, desde oinício do texto é esse o perfil traçadopor Adolfo Caminha para aquelesescritores preocupados com o seutrabalho, aos quais ele opôs um outrotipo de personagem6 existente, segundoele, no sistema literário:

Não falemos, por Deus, na pragatremenda de poetas e borradores,que nos ameaçam quasequotidianamente, como umverdadeiro castigo do céu:ingênuos até o lirismo pulha eserôdio, eles surgem aos magotes edesaparecem com a mesma

facilidade, sem deixar o mais levetraço de sua passagem vertiginosa.(Caminha, 1999a, p.18)

Também nesse caso, o campo semânticoem que a personagem está inseridareforça o seu caráter pejorativo: praga,ameaça, castigo. Campo semântico nãodiferente, por exemplo, daqueleutilizado pela religião e, nesse caso,pelo texto bíblico em diversosepisódios, destacadamente no VelhoTestamento, no qual o episódio das setepragas contra o faraó do Egito é um dosexemplos de sua utilização. Trata-setambém de elementos representadospelo coletivo: os borradores, queaparecem aos magotes, ou seja, em

grupo, aos montes, em bandosdesordenados, carregados designificações negativas e que secontrapõem aos obreiros, aosabnegados, que apesar de tambémestarem representados pelo coletivo têmas suas ações significadas porvocábulos positivos como arte, belo,verdade, eterno, abnegação, doação. Poressas personagens o confronto entreautores e editores está posto nos textoscríticos de Adolfo Caminha.

Vê-se por essa citação a respeito dosborradores que Adolfo Caminha faziadistinção entre os autorescomprometidos com a literatura-Arte,valorizando o esforço realizado e a

preocupação com o trabalho literário,apesar das dificuldades de ordemprática como a remuneração do trabalhodo escritor. O que estava em jogo era opapel do autor como criador, o seusignificado no sistema literário e osignificado desse no sistema econômico.Esses questionamentos a respeito doautor como criador e da arte comocriação irão se intensificar ao longo detodo o século XX, pois à medida que aindústria cultural avançou, o autorpassou a ser compreendido muito maiscomo um produtor e a arte como umproduto.

Martine Reid (2002, p.73), tratando daliberdade do artista ante a indústria

cultural, no caso específico da obra deGeorge Sand, afirmou:

Face à l'industrie, il s'agit ausside faire valoir une certaineindépendence, vécue d'ailleurscomme une nécessité existencielle:«je deviens monomane à l'endroitde conserver ma liberté d'esprit,écritelle à Hetzel, [...] il faut sedonner toutes les aisesintelectuelles si l'on veut rester unpeu d'artiste.

La liberté qu'elle revendique hautet fort vise en réalité le cœur deson activité littéraire, celle de lacréation.

Tratando da cultura de massa no séculoXX, e nessa abordando o papel do autorcriador, Edgar Morin (1977, p.29)apontou para o seguinte fato: "O'criador', isto é, o autor, criador dasubstância e da forma de sua obra,emergiu tardiamente na história dacultura: é o artista do século XIX. Ele seafirma precisamente no momento em quecomeça a era industrial. Tende a sedesagregar com a introdução dastécnicas industriais na cultura. A criaçãotende a se tornar produção" (grifonosso).

Além do papel do autor como criador,está em jogo também o papel da escrita,pois, como afirmou Octávio Ianni (2001,

p.9): "A história da cultura do mundomoderno é principalmente a que estáescrita". Nesse sentido, parecenoscorreto retomar alguns questionamentosfeitos anteriormente a respeito do valordo trabalho do escritor: qual o valor dotrabalho de quem realiza a escrita?Paralelo a essa pergunta, podemosquestionar o mesmo a respeito dotrabalho de quem mediava epossibilitava que a escrita alcançasse oleitor – o editor: qual o valor dotrabalho de edição de uma obra de arteliterária? Qual deve ser a margem delucro do editor ou da casa editora?

Essas parecem ser perguntas quepermeiam a atividade do escritor e a sua

relação com os editores, uma vez queelas resultam na criação de mecanismoslegais que tentam regulamentar, porexemplo, os chamados direitos do autor,guardando, talvez, o valor da escrita e aescrita como um valor na sociedadecontemporânea, para utilizar aqui apolifonia da palavra valor que vai damoral ao mercado.

O sentido de incerteza da guarda dosdireitos autorais é percebido, sobretudo,na escrita de textos literários ficcionais,uma vez que a arte de um modo geral e aliteratura em particular, sobretudoaquela de caráter considerado aurático,vem interessando cada vez menos aomercado e à indústria cultural ou

interessando somente como um modo derenovar o comércio e a indústria aocontemplar o desejo de algumasparcelas do público receptor nomercado planificado do qual a arte fazparte e a literatura está inserida. Omercado tem pretensões de contemplartodos os desejos, o que significa nãoperder nenhuma moeda.

Os autores e suas preocupações

Já na citação retirada do texto"Editores", encontra-se um exemplo depreocupações das mais comezinhas, oque revela a dimensão humana dosautores. De um modo geral,independentemente da atividade que

exerçam, todos têm necessidades emcomum. Adolfo Caminha mostrou-sepreocupado com a vestimenta, aalimentação, o crédito e a sua aparência,uma vez que ela se mostra indispensávelpara a sua circulação na sociedade, oque significa dizer também a circulaçãode sua obra, pois estar presente era acondição de não ser esquecido, de sefazer lembrar como escritor. As poucasimagens que restaram de Caminhademonstram esse fato. Mostrando-sebem vestido, seja em foto sozinho, comoaquela publicada em A Mala da Europa,de Portugal, em 1896, seja com seuscompanheiros da Padaria Espiritual,Caminha sabia o valor da apresentaçãodo homem de letras.

Esse tipo de preocupação encontra-serepresentado em seu romance Anormalista na construção dapersonagem José Pereira, o redator daProvíncia:

Que diabo! um sujeito inteligente,com ares de fidalgo avarento,redator de um jornal, sempretrazendo a mesmíssimasobrecasaca! E o chapéu? Sempreo mesmo também, um triste chapéude feltro com manchas oleosas! Oh!a respeitável sociedade cearenseexigia primeiro que tudo decênciano trajar, aquilo assim, aquelasobrecasaca sórdida escadalizava-a como se escandaliza uma donzela

diante de uma estátua nua. Pois oSr. José Pereira não podia, semgrandes sacrifícios, comprar umfato novo? Então, que diabo! Nãoaparecesse entre pessoas de certaordem, ficasse em casa, fosse maismodesto. Sim, porque todo homemde talento, na opinião da sociedadecearense, deve acompanhar a modaem todas as suas nuances, em todosos seus requintes, deve ter sempreuma casaca à última moda, umacalça à última moda e um chapéu àúltima moda, conforme osfigurinos, para os "momentossolenes"; deve ser enfim um sujeito"correto" na acepção mais lata dapalavra.

O Sr. José Pereira sabia dar umlaço na gravata, lá isto sabia, etambém não ignorava como secalça uma luva, mas (e isto é quepreocupava a sociedade cearense)o Sr. José Pereira quer fosse a umbaile de primeira ordem, quer fossea uma festa inaugural, quer fosse aoteatro, levava sempre,invariavelmente, a mesmasobrecasaca surrada e o mesmochapéu ruço! Um homem de talentosem gosto é o que não se admite. Asociedade cearense, porém,ignorava que o Sr. José Pereiraera casado, tinha filhos e ganhavaapenas o essencial para o seusustento e o da família, cento e

cinqüenta mil-réis por mês, umaninharia. (Caminha, 1998, p.71,grifos nossos)

Vemos a insistência do narrador emdeixar clara a preocupação da"sociedade cearense", que eletransformou em uma espécie depersonagem. A repetição constante determos e expressões como "à últimamoda" denota o sentido de denúncia eironia com que representou o meio à suavolta. O recurso da repetição parecedemonstrar a afirmação de uma ideiavigente na sociedade, que também erapreciso criticar. Mas pôs em cenatambém um fato com o qual os homensde letras tinham que lidar, pois era

preciso viver e conviver com seuspares. A respeito das roupas no mundodos homens públicos afirmou RichardSennett (1988, p.211):

Um homem poderia ou não poderiaser aquilo que suas roupasproclamavam, mas a proclamaçãoera clara. Através de convenção, aansiedade a respeito de com quemse está falando era menos do que nasituação vitoriana, onde se fazianecessário um processo dedecodificação. A lógica deinvestigação se faz necessáriacomo um meio de fazer contato quepoderia ou não germinar atrás dafachada da aparência. Se, no

entanto, a pessoa não conhecesse asregras que governavam asaparências particulares, se nãosoubesse "ler" um nó de gravata oua existência de uma echarpe usadasobre o coque, ele jamais teria acerteza das deduções que fizessesobre quem ele estaria encontrandonas ruas. A atenção compulsiva aodetalhe, a ansiedade diante dosfatos que outrora chegaram a setornar obsessivos para nós, detantas maneiras, originou-se destaansiedade a respeito do quesimbolizam as aparências.

No número 2 do jornal O Pão, daPadaria Espiritual, de 17 de julho de

1892, lemos um artigo inusitado e quebem exemplifica essas preocupações.Chamou-se o artigo de "As calças".Vejamos:

Parece incrivel, mas é verdade everdade dura de roer: No dia dadistribuição do 1o. numero d'O Pãoum gatuno, aproveitando-se daconfusão que reinava na Padaria,passou os gadanhos num par decalças do nosso collega SatyroAlegrete, um magnifico par decalças de cheviotte, que, por sinalinda não estavam pagas!

Em que paiz estamos nós? Poisrouba-se assim a um pobre rapazque está em vespera de ser pai de

familia o unico par de calçasdecentes que elle possuia?!

Que diz a isto a policia?

O Alegrête, que era tão alegre,como seu nome o indica, anda numatristeza que nos inspira cuidados...

O pobre rapaz ha oito dias não vaia casa da pequena, que já mandou-lhe o seguinte bilhete: Mando-lidisê que estou muito triste porquevocê não quê mais vim aqui. Suacriada – M.

Imaginem como é desesperada asituação do nosso collega.

Para onde vamos com tantodescalabro? Será crivel que fiqueimpune o selerado que a estashoras anda talvez fazendo figuranos chinfrins do Oiteiro, emquantoa victima chora a sua desgraça,mettido numas tristes calçaspardas?

Nós não podemos ficar inertediante deste escandalo e dirigimosao governo este ultimatum: Ouconsigna-se no orçamento verbapara o Alegrête comprar umasclaças novas ou declaramo-nos emfranca e decidida oposição.

Oh! tempora! Oh! mores!

Podemos perceber que o artigo é bem-humorado e um tanto exagerado quanto àsituação de Sátiro Alegrete, pseudônimode Sabino Batista. No entanto, não deixade ser, talvez por isso mesmo, um bomexemplo do quanto os autores e homensde letras tinham preocupações as maisdiversas, com as quais o ganhofinanceiro tinha relação.

Esses meios de divulgação da obra, como uso da presença do autor em recitais,conferências, saraus literomusicais,agremiações e sociedades literáriaseram bem comuns no século XIX. Noséculo XX, esses meios de publicidadeda obra literária não deixaram de serusuais; eles encontram outros modelos,

formas ou formatos mais condizentescom o público atual. É assim que temosas conversas com os autores, asaparições em programas de televisão, asfeiras e festas do livro, as rodas deleitura, as falas em diversos espaçosonde é possível divulgar a obra, sejamos ditos espaços reais ou os ditosespaços virtuais, sobretudo com o usoda internet.

A indústria cultural não deixou de fazeruso desses meios; ao contrário, ela osintensificou, pois como afirmouDieterWellershoff (1970, p.44-8),tratando do que chama de "déformationprofessionelle", ou o que consideroucomo um tipo de ameaça ao autor:

A outra consiste em não lhepermitir ser só escritor, obrigando-o a prestar provas em auditórios eperante microfones e câmeras detelevisão como leitor de seuspróprios textos, auto-interprete emembro de debates literários. Talcomo a utilização dos direitossecundários na rádio, televisão ecinema, se tornou cada vez maisimportante para a editora, tambéma importância deste segundomercado para o escritor que nele sevê obrigado a interpretar a sua obrapor meios acústicos e ópticos. Estemercado não é apenas a fonte dumaparcela considerável dos proveitosdo escritor mas, também e cada vez

mais, o lugar onde ele se tornaconhecido e onde tem de impor osseus livros com a sua presença.

Essa, no entanto, não é somente umaprática existente com a consolidação daindústria cultural como a entendemoshoje. Se atualmente alguns escritores setornaram verdadeiras estrelas, como osartistas do cinema e da televisão, o quefaz que sejam lidos, mas consumidosnão somente em suas obras, comotambém em sua intimidade por umpúblico ávido em saber de sua vidaprivada, de seus amores, do interior desua casa, do modo como produziu tal equal personagem, qual o seu processo deescrita, quem seria a personagem X do

romance Y, quem teria inspiradodeterminada passagem de um conto,todas essas perguntas bem recorrentesnas conversas com autores, se issoacontece, independentemente da escalaem que se realize, dar-se, então, aretomada de um fenômeno típico doséculo XVII: o interesse pela biografianos seus mais diversos recortes, porémtodos permeados pelo interesse na vidado "ser de carne e não no ser de papel",como o descreveu Jean-Claude Bonnet(1985, p.260): "Quant à l'être de chair(et non de papier) qui écrit, il necessera jamais d'entretenir unecuriosité fétichiste qui touche au plussecret de la littérature et de l'écrituredans son vertige énigmatique".7

A seu modo, essa prática já estavapresente no iluminismo, quando oshomens de letras saíram da esferaprivada para ocupar espaços na esferapública, como podemos constatar notexto de Jean-Claude Bonnet:

Paradoxalement, l'image publiquede l'homme de lettres qui serépand alors a un caractère trèsprivé, tant l'o pinion est habitéepar un fantasme fétichiste etn'accepte de donner ses suffragesqu'à travers des formescélébratives qui satifont unedemande générale de présence etqui sont autant de ritesd'authentication. Les

contemporains cèdent à une penteémotive et réclament d'abord destémoignages et un dévoilementdomestique. Aussi, le genre del'éloge abandonnant les ancienscanons de l'exemplarité pour ceuxdu pittoresque montre l'hommedans l'homme célèbre, selon unscénario d eplus en plusbiographique qui prétend accéderaux coulisses, pour y surprendreles identités. [...] Le grand hommeest entouré d'une rumeur quirépand des anecdotes sur sesmoindres faits et gestes,répercutés par lescorrespondances privées oupubliques et la presse. Une

imagerie plate le donneprogressivement à voir à partir dustéréotype de l'éloge et de piècestréâtrales médiocres, de protraitset de buste vulgarisés parl'estampe, et, après sa mort,d'objets pieux et de reliques: voicile bon La Fontaine, le bonFénelon, le bon Montesquieu.(ibidem, p.261)8

A mesma opinião sobre a utilização daimagem do homem de letras, do homemde gênio ou do autor, encontramos notexto de Jean-Benoît Puech (1985,p.280):

L'auteur moderne est né ao XVIII

siècle, quand le champ littéraire,qui s'est institutionnalisé depuisla moitié de XVIIe, s'autonomiseirréversiblement. La demande dupublic est plus importante; lemarché se libère; les resaux desociabilité, cercles de savants etsalons mondains, où se mêlent lesélites bourgeoises eteristicratiques, sont plus ouvertset plus actifs. Les lumièresdisputent à l'Église le monopolesu symbolique; les saints deshagiographies traditionelles sontremplacés par les héros laïques;l'homme de genie est promu«genie» en personne et l'individudevient le lieu vénéré de la

singularité. «En 1780, deux ansaprès la mort de Voltaire et deRousseau, alors que Diderot etd'Alembert sont encore vivants,l'expression «homme de lettres» apris un sens moderme, celui d'unétat dans la société, celui d'unmétier. Mais c'est au XIXe siècleque l' «auteur» atteint sa maturité.Le «mythe du poète» (Abastado) etla «personalisation de l'ecrivain»(Lejeune) attisent la curiositébiographique, préparée par lapublication des écrits fictivementou réelement intimes. La critiquefait de l'auteur une notion nonplus seuleument juridique oumorale, mais littéraire: il devient

le principe de l'explicationesthétique des œuvres.Simultanément prolifèrent deuxtypes de textes biographiques, lestemoignages ou souverains et lesbiographies hétérodiégétiques,auxquels il faut ajouter lesportraits, souvent narrativisés.Les retranscriptions autonomesdes conversation sont rares, maisles reportages vont se développerà la fin du siècle dans la pressepopulaire. Bientôt, l'image et lavie de l'auteur deviendront desmoyens de promouvoir son livre.Même si certains prétendentpréserver l'autonomie de l'œuvreet veulent aider l'auteur à ne

devoir sa gloire qu'à salittérature, de nos jours la plupartdes éditeurs préfèrent le servir aupublic, et c'est celui dont on n'ajamais vu le visage ni entendu lavoix dans les media qui faitexception.9

Recentemente, Habermas (2006, p.5) foiainda mais crítico no que diz respeito àsedução do intelectual pelos meios decomunicação de massa como a internet ea televisão e o seu namoro com acelebridade, palavra que se tornou cadavez mais esvaziada da significaçãoprofunda que carregava:

Não se diga que esse traço não cai

como uma luva na vaidadepatológica dos intelectuais; algunsse deixaram corromper peloconvite do meio à auto-representação, prejudicando assima sua fama, pois o bom nome de umintelectual, se é que ele existe, nãose baseia em primeiro lugar nacelebridade ou notoriedade, masem uma reputação, que o intelectualdeve ter adquirido entre seus paresde profissão, seja como escritor oucomo físico (de qualquer modo, emalguma especialidade), antes depoder fazer um uso público dessesaber ou dessa reputação.

Ao intervir num debate com

argumentos, ele precisa de dirigir aum público não de assistentes ouespectadores, mas de oradores edestinatários potenciais, capazes dediscutir uns com outros. Paraexpressar isso à maneira de umdealtipo" – segundo o sentido deMax Weber –, importa aqui a trocade razões, e não o enfeixamentoencenado de olhares.

No caso de Adolfo Caminha, se oschamados borradores mostravam-secomo concorrentes no mercado,oferecendo sua obra por qualquer preçoou preço algum, apenas pelo simplesprazer de vê-las editadas, foi mesmo noseditores que ele encontrou o maior

obstáculo, concentrando nesses tambémo maior entrave para assegurar osdireitos do autor, como afirma: "Porqueeditores há que não se contentam embaratear o trabalho intelectual: julgam-se uma entidade superior e têm ojeitinho impagável de franzir a testa aoshomens de espírito, encarando-os comorgulho de nababo do alto de suaindependência" (Caminha, 1999a,p.122).

Não seria por acaso que ele os chamoude minotauros, essa mistura de animal ehomem, uma fera difícil, porém nãoimpossível de enfrentar com o objetivode assegurar o valor da escrita, esobretudo da escrita literária ficcional.

Adolfo Caminha, portanto, resumiu nametáfora do minotauro o seu pensamentoa respeito dos editores, como o feztambém com os abnegados e osborradores. Na sua opinião, a atividadeda escrita ficcional e a do trabalhointelectual estavam permeadas porvalores que não eram somente osmonetários, mas ele assumiu,abertamente, a preocupação com esses.

Na opinião de Caminha, justamenteporque o trabalho intelectual é a suamaior preocupação e ocupação, é que oseu produtor devia ser decentementeremunerado e não somente compensadocom a edição da obra produzida, quandomuito recebendo em pagamento alguns

exemplares:

Quando o poeta ou romancistapertence à espécie Felippe Dubois,e não se incomoda muito com essaquestão de brio ou dignidadeliterária, menos mal: tanto lhe fazque o editor lhe ofereça um contode réis ou um níquel por sua obra;viverá do mesmo modo alegre,feliz, cachimbando a suaindiferença pelos cafés, pela rua doOuvidor, pelo jornalismo. Todo oseu interesse é que o livro sejapublicado. (Caminha, 1998, p.119)

A essa atitude, ele opõe umapreocupação sincera com o trabalhointelectual e uma postura do escritor

frente ao tratamento dispensado,segundo ele, em sua época, peloseditores: "Entretanto, se ao contráriodisso, o escritor preza a suaindividualidade, o seu caráter, o seuamor-próprio, nada mais triste, nadamais ridículo que essa esmola dadamisericordiosamente em paga dotrabalho intelectual" (ibidem, p.120).Vê-se, claramente, que as opiniões deAdolfo Caminha estão permeadas devalores morais – brio, dignidade,individualidade, caráter, amor próprio –que, certamente, são repassados para asua compreensão de arte. Na opiniãodele, os valores morais, intelectuais efinanceiros são faces da mesma moeda:o trabalho intelectual realizado com

esmero, o que dá origem a uma artesingular, dignificada moral, estética efinanceiramente. Guardando asingularidade, a partir dos valoresapontados, o escritor demonstrou livrar-se da semelhança ou do trabalhodespreocupadamente realizado com oobjetivo de figurar no campo literáriotendo a obra publicada como únicoretorno.

Há na sua crítica a preocupação e defesaintransigente dos valores éticos daatividade do escritor, mas há também,com a mesma veemência, a defesa dosvalores financeiros, demonstrando,assim, que Adolfo Caminha (1999a,p.123) via na sua atividade intelectual

uma atividade profissional, ou seja, adefesa do pagamento daquele quetrabalha, daquele que opera a escritacomo um valor, valor que corresponde,no mundo do trabalho livre, a um valorfinanceiro, transformado em dinheiro,possibilitando a vida em condições maissatisfatórias, pois ele chegou mesmo aafirmar: "Quem não trabalha não temdireito à vida". E, assim, Caminha se fezum político das letras.

Adolfo Caminha identifica nos editoresos grandes vilões de um sistema que,para ele, visava mais do que o lucrofinanceiro: a exploração do trabalho queconsiderava sublime, uma espécie deescravidão intelectual que só

proporcionava bem-estar para um,exatamente aquele que não produzia otexto, que não elaborava com arte apalavra. Para um intelectual do finalséculo XIX que se opôs à escravidão eaderiu à causa da República parece-nosincompreensível que ele aceitasse talfato em sua atividade literária. Assim, oproblema para assegurar os direitos doautor era, para Adolfo Caminha, oeditor, o minotauro, que também poderiaser compreendido como o sujeito quepossui escravos para a manutenção dasua riqueza.

Talvez, esse modo de compreender oque acontecia fosse simplista, uma vezque esse não era um problema

unicamente brasileiro, mas era efetivo,ou seja, produziu não somente umareflexão a respeito do problema comotambém possibilitou que esta reflexãofizesse parte de um dos livros que ele,ironicamente, entregou ao editor paraser publicado, exatamente as suasCartas literárias. Vale lembrar que otexto "Editores" foi publicado duasvezes: a primeira no jornal Gazeta deNotícias, a segunda no volume Cartasliterárias. Além da boa repercussão daprimeira edição do texto, na segunda oobjetivo de alcançar algum lucrofinanceiro não se deu. O que ficou demais lucrativo mesmo parece ser o fatode Adolfo Caminha trazer à cenaalgumas questões que até então pareciam

fazer parte somente da vida privada dosautores. Essa imagem pejorativa dohomem de negócios ou dos homens quelidam com finanças, sejam elas deorigem privada, sejam de origem estatal,é uma constante na literatura, mas à suaépoca não era tão comum.

O autor-político e oseditores

A face negativa dos editoresatravessa os séculos

No capítulo "O escritor e a máquinaeditorial", de Osman Lins, podemosencontrar uma crítica semelhante, além,

é claro, de citações diretas ao texto"Editores", de Adolfo Caminha, o quenos faz entender que os problemasconstatados pelo escritor cearense apropósito da relação dos autores com omercado editorial também puderam serconstatados no século XX quando oautor de A rainha dos cárceres daGrécia publicou sua obra ficcional. Arespeito da prática do autor assumir asatribuições e encargos do editor,afirmou Lins (1974a, p.68-9):

O escritor que cede às primeirasrecusas e assume aresponsabilidade, atribuída pornorma ao editor, de financiar seulivro, pode haver resolvido com

felicidade [...], inúmerosproblemas estéticos mas falhou aoenfrentar esse problema decomportamento. Criou,principalmente se o livro tende aafirmar-se, mais um precedente aser invocado contra os interessesdos escritores; tornou um poucomais difícil, aos que se batem porretribuição honesta ao trabalhointelectual, objetivar essanecessidade; reforçou o quadroanômalo das práticas editoriaisdominantes.

Figura 4 – Retrato de Adolfo Caminha,em xilogravura de Pastor, publicado em

A Mala da Europa, de Portugal, em1896. Fonte: Azevedo (1999, p.177).

Figura 5 – Fotografia de algunsmembros da Padaria Espiritual na qualaparece Adolfo Caminha de pé no canto

direito. Fonte: Azevedo (1999, p.178).De pé, da esquerda para a direita:

Álvaro Martins, Raimundo Teófilo deMoura, José Maria Brígido e Adolfo

Caminha. Sentados da esquerda para adireita: Sabino Batista, Antônio Sales e

Carlos Vítor.

Nessa relação conflituosa não seria deestranhar que os editores fossemtransformados em feras, como muitosdos homens de negócios. MichellePerrot (1992, p.81) iniciou um doscapítulos de seu livro Os excluídos dahistória propondo a seguinte pergunta:"Como os operários franceses viam osseus patrões?". Entre as respostaspredomina um forte aspecto hostil na

representação dos patrões. Essahostilidade se destaca, sobretudo nofinal do Segundo Império francês,quando já se pode constatar arepresentação dos patrões comoanimais:

"O patrão é o inimigo, é o macaco,do qual não se fala sem medo, jáque dele depende a existência masque não é apreciado, vira objeto depiadas fora da oficina, na certezade que ele mesmo detesta seusoperários e só tenta extrair deles omáximo possível [...] "Meumacaco!", com que desprezo elespronunciam essa palavra enquanto,ao esvaziar uma négresse (uma

garrafa), lembram as exigências deum, a brutalidade do outro! O ódioé profundo..." (ibidem, p.84, grifodo original)

O recurso de representarpejorativamente os patrões comoanimais não é, porém, o único, nemmesmo o mais utilizado. Narepresentação feita pelo operariado, ocomportamento e o corpo dos patrõesnão passam incólumes ao traço forte dedesenhos grotescos. A esse respeitoafirmou Perrot:

O retrato físico do patrão oscilaentre o do aristocrata "com o portearrogante", "o passo leve", o talheereto como o de um cortesão, e o

outro, dominante, do burguêsarqueado, "pançudo e de barrigacheia", "inchado, bochechudo,obeso, estufado de ouro, engordadocom o suco do povo". Esta últimaimagem predomina na iconografia,onde os patrões aparecem enormes,com o charuto na boca, a correntede relógio no colete ressaltandouma barriga que quase desaba.(ibidem, p.89)

Françoise Bayard (1986, p.20), em seutexto "L'image littéraire du financierdans la première moitié du XVIIesiècle", afirmou que os homens denegócios são representados de formapejorativa por romancistas, teatrólogos

e memorialistas, que apesar de estaremsupostamente fora do campo econômicoconhecem muito bem o seu ofício:

Le portrait qui en est alors brosséconstitue le point d'orgue d'unesymphonie plus au moinscacophonique réalisée par desgens de théâtre, des romanciers,des mémorialistes et dessatiriques pendant toute laprimière moitié du XVIIe siècle.Le financier revient constantementsous la plume mais il estdifférement présenté par les uns etles autres. Autour du thèmegénéral de l'horrible et malfaisant«laquais-financie », des variations

multuples démontrent la parfaiteconnaissance de ce métier etl'irresistible ascension sociale quece corps réalise.10

Apresentadas então considerações feitaspelos escritores a respeito dos homensde negócios, vejamos como esses estãorepresentados na obra de AdolfoCaminha.

Um certo senhor F

Dê um chute no patrão Dê um chute no patrãoDê um chute no patrão(Os Mutantes, Senhor F)

Procurando tornar clara a situação que o

afligia, Adolfo Caminha chegou a fazeruso de personagens em seu texto crítico:um narrador, um autor iniciante e umeditor, a quem ele chama de "senhorF...". Nessa citação também utilizaremoso recurso do itálico para o autor e o donegrito para o editor. O queencontramos é a criação de umasituação, que se não foi vivida de fato,foi criada para que o leitor do textocrítico alcançasse a carga dramática dotexto ficcional, apontando assim maisum exemplo de como o manejo dessaslinguagens era intercambiável:

Depois de tudo isso, [o autor]orgulhoso da obra que fez, querpublicá-la e bate à porta do editor.

Este, quando não é um sujeitogrosseiro, sem tino comercial,ricaço, a quem tanto faz obter maisuma edição como não obtê-la,recebe-o amavelmente, com umarzinho de bondosa superioridade,manda-o sentar e passa logo aoassunto.

O discurso é sempre o mesmo: nãohá leitores, além disso o romancenão é do gênero que "o nossopovo" gosta, e tal, e cousa...

– Mas, olhe que é um bom livro,senhor F...; tem estilo, tem arte,vale a pena...

– O amigo engana-se, diz o outro;

nós editores preferimos ao estilo,à arte, um bom enredo, umahistória de sangue cheia demistérios, comovente,arrebatadora! É disto que o povogosta, e nós, a respeito de gostoliterário, só conhecemos o dopovo.

Continua o diálogo: o editorapresenta razões em abono deseus escrúpulos, razões quasesempre falsas, inacreditáveis, e oromancista discreteia sobre arte,faz a crítica de seu próprio livro,di-lo bom, di-lo magnífico,promete responsabilizar-se pelavenda, tudo isso com uma

sinceridade admirável.

Acontece, finalmente, que oescritor se vê na dura obrigação detomar um partido e, neste caso, oudeixa ficar o livro, porque amiséria o ameaça, ou intransigentee altivo, prefere guardá-lo consigoe recolher-se à obscuridade. Emqualquer das hipóteses, é claro quesó ele tem a perder, ele trabalhouum ano inteiro, e às vezes muitomais, ele o artista honesto eincansável. (Caminha, 1999a,p.120-1)

Nesse diálogo, bem como na supostafala de um narrador onisciente, há areprodução direta do confronto entre

propostas diferentes de arte, confrontoque se expande também para acaracterização da figura do editor,descrito com traços e cores fortes. Oconfronto está também no gosto literário,que, segundo o narrador, parece estardividido entre o gosto popular,11 nosentido de senso comum, ou gosto damaioria dos leitores ou ainda o queAdolfo Caminha, no seu texto"Editores", chamou de "o gosto pulha daburguesia", uma vez que o tipo deromance publicado pelo senhor Fvaloriza a intriga, a ação, a comoção, osentimentalismo, o romantismo, osmistérios, o sangue, proposta esta queleva o confronto entre a estética doromantismo e a do naturalismo.

Ao usar o senhor F, vemos mais umexemplo de que na escrita do textocrítico, o autor de textos literáriosficcionais faz uso de seu constantetrabalho com a palavra, elaborandopersonagens, criando falas, dando-lhesrosto, corpo, situações, para, medianteesses recursos, e não somente pelo seudepoimento como escritor, portanto umdos sujeitos do sistema literário,evidenciar o descontentamento com oseditores e, assim, reclamar a existênciade uma lei que organizasse as relaçõesentre esses e os autores.

Vemos, desse modo, que a literatura ouo fazer literário está duplamente aserviço da arte, ela mesma é instrumento

de contestação da situação que oescritor considerava inaceitável. Hátambém o confronto de valores demercado, afinal o autor vai oferecer aoeditor o seu texto, ou seja, a construçãopor ele elaborada usando como recursoo manejo do código por meio da funçãopoética da linguagem. Há nessa citação,portanto, um campo de confrontos, sejameles de discursos, de práticas, devalores intelectuais, morais efinanceiros. Além do campo deconfronto, há uma busca de certezas, amais almejada: a segurança dos direitosautorais por meio de uma lei, ou seja, oque se quer, em última análise, é alegitimação do discurso poético pelodiscurso jurídico, tornando a relação

entre operadores da linguagem, seja elaliterária ficcional, seja jurídica, maispróxima. Mas o que o suposto autorencontrou foi o desmerecimento doobjeto produzido por ele, o que torna asua prática e a sua obra dotadas depouco valor, sendo essa palavra aquientendida nas suas diversassignificações.

O editor, um sanguessuga

A pança de um burguez é oprincípio de seu castigo.

(Satyro Alegrete. O Pão... daPadaria Espiritual, 6.11.1892)

O burguez é como uma boia não

vive nem vegeta – fluctua.

(Satyro Alegrete. O Pão... daPadaria Espiritual, 13.11.1892)

Reconhecendo no editor a figura de umpossível algoz, Adolfo Caminha (1999a,p.121) também o comparou àsanguessuga: "Nenhum símbolo exprimetão bem essa febre de lucro, esse furorde riqueza, que acomete a todo editorbrasileiro, como a sanguessuga, cujopoder absorvente não encontra igual naescala zoológica". Destaca-se, dessacitação, o fato de o editor sercomparado a um elemento do reinoanimal, passando, então, do mundomitológico para o mundo natural. Eainda a respeito da atuação da

"sanguessuga" afirmou Caminha: "Emgrande parte, ele é responsável pelanossa miséria literária, porque seencarrega de perverter o gosto público,editando economicamente baboseiras adez tostões o volume" (ibidem, p.121).Ou seja, a conclusão a que se chega é ade que minotauro ou sanguessuga, oeditor é visto negativamente por AdolfoCaminha.

Representar os patrões, os homens denegócios, enfim, todos os sujeitospertencentes ao campo econômico comos quais os autores tinham que lidar foitambém uma estratégia do operariadoem geral. Um verdadeiro zoológico deferas consideradas escabrosas é

requisitado pela classe operária Apropósito desse tipo de recurso derepresentação, considerando que "todoação se inscreve num modo derepresentação; não existe consciência declasse sem visão de mundo ou culturasem elaboração de uma simbologia",recuperando a fala do operariado embreves recortes, afirmou a já citadaMichelle Perrot (1992, p.89):

Os patrões são "exploradores" quevivem da labuta dos operários,"parasitas" grudados no corpo dosprodutores. Toda uma série determos emprestados ao bestiárioexprime essa idéia: "Piolhos,sanguessugas, ventosas"...;

"animais ferozes" como "hienas,linces, tigres, chacais...", ou ainda"aves de rapina, rapinantes,abutres" e "tubarões". Esses"devoradores" são ávidos, cúpidos,insaciáveis. Como um "vampiro"(sombrias gravuras esboçam umaespécie de Nosferatu...), opatronato suga o sangue do povoaté a medula, até a morte."Senhores dos Monopólios, bastaque vocês passem seus dedosaduncos pela testa para recolhernosso suor e nosso sangue que seesvai do nosso corpo mutilado, eencontrarão ouro suficiente parareunir o dote de suas filhas". Aesse Moloch é preciso entregar seu

tributo de carne fresca. Hidrarenascente, o polvo capitalistaagarra, sufoca.

Nesse bestiário apresentado porMichelle Perrot, não vemos umareferência ao Minotauro. Desse modo, arecorrência a essa figura, meio-homem,meio-animal, filho de um delito, étambém uma qualidade do texto críticode Caminha. Mas nem tudo estavaperdido. Na opinião de AdolfoCaminha, era preciso encontrar umaforma de modificar a situação dosautores, uma delas seria encontrar umeditor ideal, que ele vai encontrar bemdistante do Brasil.

O mundo ideal não é aqui

Nessa relação conflituosa entre autor eeditor, estavam as bases da luta pelaexistência de uma lei que garantisse osdireitos do autor. Lajolo & Zilberman(2001, p.149), ao citar Adolfo Caminha,comentam:

Sucessor de Pardal Mallet foiAdolfo Caminha que, numa de suasCartas literárias, de 1895,denuncia os editores que exploramo trabalho intelectual dos escritorese a conivência destes que, da suaparte, trocam às vezes seus direitospela hipótese de publicarem suaobra e disporem de um espaço no

meio cultural. O autor de Anormalista, na esteira da já citadaMaria Benedita Bormann, emLésbia, de 1890, critica o desdémdos editores e reivindica umalegislação diferente da que resultoudo trabalho dos congressistas.

A lei resultante "do trabalho doscongressistas", a qual Lajolo &Zilberman se referem, dando comoexemplo o descaso dos políticosbrasileiros com os direitos do autor, foidefinitivamente aprovada somente em1898, portanto quatro anos após a suaproposição, em 1894, junto ao Senado.Mesmo assim, em 1898, essa legislaçãocarecia "de regulamentação relativa ao

registro das obras na BibliotecaNacional" (ibidem, p.144).

Como Adolfo Caminha falecera em 1ode janeiro de 1897, ele não viurealizado o seu desejo de que houvesseum tratado que se ocupasse dos direitosdo autor. Só lhe restou, então, desejarum outro tipo de editor, que eleconsiderava ideal, mas que infelizmenteesses modelos ideais estavam na Françaonde Caminha jamais chegou a publicar:

O que eu desejaria encontrar emnosso país, era um editorinteligente e sincero, comoCharpentier, Lemerre, Guillaume,Chardron e tantas outrasnotabilidades no gênero; um editor

que soubesse compreender o seupapel, empregando a maior somade esforços para que triunfasse otalento, a decidida vocaçãoliterária, a Arte, enfim. (Caminha,1999a, p.123)

A partir dessa citação, vemos queAdolfo Caminha tinha como uma dasreferências culturais a França, nãosomente os seus autores, sobretudo osautores naturalistas como Émile Zola, asua literatura, os seus trabalhosartísticos, os seus pensadores, mas atémesmo a prática de seus editores. Masinfelizmente o mundo ideal, com autores,editores, literatura e situação deprodução estavam bem distantes do

Brasil. Enfim, o mundo ideal não eraaqui. Talvez esse mundo ideal nãoestivesse nem mesmo na França. NoBrasil, estava a realidade na qual anossa literatura foi gestada.Evidentemente que é precisocompreender que essa idealização daFrança estava inserida em umaconjuntura bem complexa. De um modo,tinha-se a ideia de que a França, noséculo XIX, era o lugar ideal daintelectualidade e Paris era a capitalmundial da República das Letras. Mas ofato de louvar os editores francesestalvez possa ser explicado pela citaçãoque segue:

Au contraire, les auteurs les plus

lus pouvaient se féliciter del'accueil qui leur était réservédans leur maison d'édition attirée.L'exemple d'Anatole France estpeut-être le plus édifiant, tantl'auteur de L'Envers de l'histoirecontemporaine fit preuve d'uneconfiance ilimitée à l'égard de lafamille Clement-Lévy, Célèbre etriche, il laissait en permanenceles fonds tirés de ses droitsd'auteur chez son éditeur qui, enéchange, réglait ses factures et luiévitait tout contact avec la réalitématérielle. D'autres écrivainsmontraient la même confiance,Alphonse Daudet envers son amiErnest Flammarion, Émile Zola

pour Georges Charpentier,Erckmann-Chatrain et JulesVernepour Pierre-Jules Hetzel, ErnestRenan à l'égard de Calmann Lévy,ce qui interdit toute visionunilatérale des rapports entre lesuns et les autres. D'ailleurs aupôle le plus littéraire du champ,les écrivains choisissent un deleurs pairs comme éditeur, AlfredVallette au Mercure de France, lesfrères Natanson à La Revueblanche ou André Gide à laNouvelle Revue Française, ce quisupprimait une partie des heurtsprévisibles avec ceux que l'ondénommait « mercantis », avec quion refusait tout contact. (Mollier,

2002, p.35)12

Pierre-Jean Dufief, ao tratar da relaçãodos irmãos Goncourt e o editorCharpentier, parece tornar ainda maisclaro o motivo pelo qual AdolfoCaminha pode ter eleito esse editorfrancês como o tipo ideal. Trata-se deum caso claro de idealização do espaçoe do sujeito que o ocupa. Charpentier,segundo Dufief, reuniu em sua empresagrande parte dos nomes que cultivaram aestética naturalista, criando o que foichamado de "auteurs Charpentier" queeram: Zola, Flaubert, Goncourt, Daudet.A respeito da relação do editor francêscom os autores citados afirmou Dufief(2002, p.92):

La relation devient bientôtbeaucoup plus personelle.Charpentier veut avoir avec sesauteurs des liens presquefamiliaux; il demande à Flaubertet à Zola d'être les parains de sesenfants; Edmond, lui, dera leparrain de sa fille Jeanne,baptisée en 1880; dans une lettreà Goncourt du 2 décembre 1879,Flaubert s'irrite contre cesparrainages obligés: «La conduitedes Charpentier forçant auparrainage leurs pauvres auteursme semble monstroueuse d'iniquité». Goncout participe, àpartir de 1876, aux dîners quiréunissent les auteurs

Charpentier; ces rencontresrelancent, exacerbent les rivalitéset déviennent, dans le Journal,l'occasion d'une mise en scèneobsessionelle de Zola, présentécomme un redoutable plagiaiare.Les Charpentier tentent de jouerles médiateurs et de maintenircoûte que coûte la cohésion dugroupe naturaliste de plus en plusdechiré.13

Apesar de dizer em um dos parágrafosde seu texto que não quer estabelecerparalelos entre o Brasil e a França,Adolfo Caminha declara no texto"Editores" que naquele país "a literaturaé uma das mais opulentas do mundo" e

"os escritores vivem de seus livros, desua pena, e chegam mesmo a enriquecer,quando a simpatia pública os protege".Assim, Adolfo Caminha não encontrouna França somente o editor ideal,encontrou também o autor ideal. Paraele, a situação do escritor e da literaturabrasileira era bem diversa do escritor eda literatura francesa. Ao compor umretrato do escritor brasileiro e daliteratura nacional bem distantes doestatuto de uma atividade profissional,afirmou:

Veja-se agora quão diferente é otrabalho da inteligênciamiseravelmente paga neste país demonopólios. O romancista, por

exemplo, o romancista de talento,que não escreve consultando ogosto pulha da burguesia, temnecessidade absoluta de um anointeiro para fazer sua obra, comespecialidade aqui no Brasil, ondea literatura está longe de ser umaprofissão; e ele, que além deromancista é empregado público,dispõe de um tempo relativamenteescasso; observa, estuda, medita,consome, enfim, toda sua atividadeintelectual, toda sua paixão deartista num labor quase incessante,renunciando a prazeres,esquecendo interesses pessoais,fechado, como um asceta, no seutugúrio, no seu gabinete de trabalho

– é um incansável, muita vez umalucinado, que vai, com o seunome, honrar as tradições de suapátria. (Caminha, 1999a, p.120)

Observamos que na opinião de AdolfoCaminha a construção de um perfil idealde autor, formado por traços como otalento, o gosto pessoal, o trabalhofundamentado na pesquisa, como reaçãoao gosto da maioria, que ele parececaracterizar como "o gosto pulha daburguesia", denotando um lado doconfronto aludido anteriormente namaioria das vezes não foi recompensadofinanceiramente. Ao falar da situaçãoreal do escritor de seu tempo, Caminhalamenta que ele não possa viver

unicamente de seu trabalho intelectual,tendo, quando consegue um espaço nocampo econômico ou no de poder, quese dedicar, sobretudo no caso do Brasil,ao trabalho no funcionalismo público oua uma outra atividade que lhe renda umaremuneração fixa com a qual possasuster a si e à sua família.

Na compreensão de Adolfo Caminha arespeito do trabalho do autor, junte-se auma intensa atividade intelectualrealizada pelo escritor o dever de"honrar as tradições de sua pátria",fazendo do autor um sujeito empenhado,tanto do ponto de vista da própriaatividade literária, para a qual ele deveconcorrer com o melhor de seu empenho

e zelo, quanto do ponto de vista darelação da literatura com a sociedade,sobretudo na constituição de umadefinição clara e objetiva de pátria, quese expressa, entre outras possibilidadesartísticas, nas letras nacionais, mesmoque essa pátria não se reconheça nostextos publicados, uma vez que nemtodos os escritores que trabalharam comesse objetivo fizeram ou fazem parte docânone literário nacional, como foi ocaso do próprio Adolfo Caminha.

Talvez esse objetivo seja a manutençãode um valor romântico, como tantosoutros, que se sedimentaram na literaturanacional ao longo dos anos de suarealização, o que não seria diferente

com a literatura naturalista. BernardoRicupero (2004, p.XX) declarou apropósito do objetivo dos nossosescritores românticos em formar a naçãobrasileira a partir de seus textosliterários ficcionais: "O problema dageração romântica é, além do mais,duplo: é político e cultural. O que é,contudo, menos simples é determinaronde começa o cultural e termina opolítico para esses homens, que, a partirde Estados em vias de seremestabelecidos, pretendem forjar nações".A respeito do empenho comocaracterística fundamental da literaturabrasileira, afirmou Antonio Candido(2000): "Este ponto de vista, aliás, équase imposto pelo caráter da nossa

literatura, sobretudo nos momentosestudados; se atentarmos bem, veremosque poucas têm sido tão conscientes dasua função histórica, em sentido amplo".

A literatura ideal

Esse mesmo caráter empenhado tambémfoi abordado por Nicolau Sevcenko(2003), o que lhe serviu para designar aobra e a atuação dos escritoresanalisados por ele como "literaturamilitante", no caso mais especificamentea obra de Lima Barreto e de Euclídes daCunha. São valores morais, éticos eeconômicos que perpassam o fazerintelectual e literário ficcional deAdolfo Caminha, ou melhor dizendo,

perpassam o conjunto da sua obra comoaqui o compreendemos, como sinônimodo conjunto de suas atividadesintelectuais, e esses mesmos valorescompõem um retrato dos sujeitosimplicados no sistema literário,destacadamente os sujeitos aquianalisados: os escritores e os editores.Esses sujeitos são constantementereferidos nos textos críticos de AdolfoCaminha (1999a, p.124) como se podeconstatar na seguinte citação:

Se é verdade que o escritor nãodeve sacrificar o seu idealartístico, produzindo obras defancaria, no intuito exclusivo deauferir vantagens pecuniárias,

transformando a Arte numgrosseiro comércio de livros porencomenda, nivelando-se com opasquineiro irresponsável e semdignidade, cuja única ambição éganhar dinheiro, ou como ovarejista imbecil, todo entregue àfaina de explorar o bolso alheio –não resta dúvida que, por sua vez,o editor deve ser um homeminteligente e honesto,desinteressado até certo ponto, eque saiba distinguir um bom livro,um trabalho original, de uma obrasem valor, manufaturada à ladiable, feita expressamente para atolice humana.

Em mais essa citação veem-se, segundoa opinião de Adolfo Caminha, o perfilideal do escritor e do editor e, emambos, a crítica ao comércio e ao lucrocomo objetivo exclusivo, bem como aoinício de atividades que se tornaramconstantes na indústria cultural noséculo XX: a produção em série e areprodução da arte conforme o gostoconvencional, ou ainda mal executada,conforme se pode constatar com o usoda expressão francesa à la diable, ouseja, feita sem sentido, de maneiradesordenada. Na concepção de algunsfilósofos do século XX, essas açõeseliminam a manutenção de uma condiçãoessencial da obra de arte: a suaoriginalidade ou, para usar aqui um

terno de Walter Benjamin (1983, p.7), ohic et nunc: "À mais perfeitareprodução falta sempre algo: o hic etnunc da obra de arte, a unidade de suapresença no próprio local onde seencontra".

Se o autor, o editor e o meio literárioideais estavam na França, é interessanteconstatar também o fato de que, paraAdolfo Caminha, não era ideal que aFrança estivesse aqui, ou seja, não eraideal que os leitores brasileirosconsumissem somente obras importadasdaquele país, fazendo que o campoliterário nacional não se desenvolvesse.Nesse sentido, vemos o quanto AdolfoCaminha era consciente da situação do

escritor de seu tempo.

A França não é aqui? A França é aqui?

Detesto o Brasil como a umambiente nocivo à expansão domeu espírito. Souhereditariamente europeu, ouantes: francês. Amo a Françacomo um ambiente propício, etc.Tudo muito velho, muito batido,muito Joaquim Nabuco. Agora,como acho indecente continuar aser francês no Brasil, tenho querenunciar à única tradiçãoverdadeiramente respeitável paramim, a tradição francesa. Tenhoque resignar-me a ser indígena

entre os indígenas, sem ilusões.

(Silviano Santiago, Carlos eMário: correspondência entreCarlos Drummond de Andrade eMário de Andrade)

Adolfo Caminha reconheceu o problemade produção da literatura em uma escalamais ampla, ou seja, como consequênciada entrada do Brasil no circuitointernacional das relações comerciaiscom as quais bens de consumo e bensculturais passaram a estar mais presenteno Brasil do final do século XIX e acausar impacto na cultura brasileira,alterando modos de vida e costumes dasociedade nacional. Essa entradatambém trouxe impactos consideráveis

no ofício do escritor e nas suas relaçõescom os vários sujeitos nele implicados.

Esses impactos foram registrados nãosomente por Adolfo Caminha em seustextos críticos e ficcionais, mas tambémpor Coelho Neto em A conquista, osegundo título da trilogia iniciada com Acapital federal e composta ainda porFogo-fátuo. Em A conquista asinúmeras personagens, na sua maioriaintelectuais, lutam contra a escravidão ea monarquia e também reivindicam acriação de leis e instituições quepreservem os direitos do autor.

Um exemplo caro de que AdolfoCaminha reconheceu que o Brasil fazia

parte desse circuito comercial maisconstante de bens de consumo e de bensculturais importados foi o fato de o paísser, por exemplo, o destino de inúmerostítulos franceses que pouco interessaramao público do país de Balzac e Zola e,somente por serem escritos em francês,possuiriam atributos suficientes paracaracterizá-los como exemplo de boaarte literária e por isso seriam adotadospelos leitores brasileiros, que, pela forteinfluência cultural francesa, pareciam jáestar com o gosto literário"estandardizado", para usar aqui umtermo mais empregado à massicultura,consumindo tudo quanto levasse aetiqueta "Produit en France".

Nesse sentido, livros são simplesmenteprodutos que satisfazem as necessidadesdo mercado e a suposta necessidade dosconsumidores, uma vez que essa écriada pelo próprio mercado, muitasvezes com a pretensão de afirmarvalores como educação, etiqueta, bomgosto literário; enfim, com o objetivo deafirmar uma tradição e uma civilizaçãoou civilidade. A respeito dos títulosfranceses trazidos para o Brasil, AdolfoCaminha, em seu texto "Novos evelhos", fez o seguinte comentário,valendo-se de palavras de Émile Zola,que ele, talvez ironicamente, cita emfrancês, mostrando-se, ele mesmo,influenciado por ideias e autoresestrangeiros, no caso um autor

naturalista, como também demonstrandoque o seu público leitor do jornalGazeta de Notícias, do Rio de Janeiro,era conhecedor daquele idioma, nãohavendo, assim, a necessidade detraduzir o trecho citado:

Em tais emergências, que faz aFrança? Manda-nos livros, esgotasuas edições, abusando de nossapreguiça e também de nossa boa fé,para não dizer ingenuidade.

Não há muitos anos, o próprio Zolaescrevia estas palavras, – umaverdade frisante como tudo quantosai de sua pena admirável: – Onm'a conté qu'il y avait, à Paris,certaines maisons dont la

specialité était d'acheter au poidsces soldes d'exemplairesinvendues et de de les expédier emAmérique, dans l'estrême Orient,dans les colonies, jusque chez lessauvages, ou elles s'endécarrassement à de très beauxprix les lecteurs de ces payslointais étant peu difficiles etdevorant tout ce qui vient deFrance.

Eis aí como a França se desentulhados livros inúteis – manda-os parao Brasil, para a Algéria e até paraos selvagens... (Caminha, 1999a,p.18)14

A essa citação junta-se uma outra, naqual Adolfo Caminha evidencia não só aimportação dos livros, mas dos gênerosliterários e do modo de escrever e de,no caso do teatro, de representar.Segundo ele, o gosto pelo teatro francêsimperava nos palcos cariocas. E,apelando para uma cena do seucotidiano de leitor e observador da vidana capital do império, afirmou:

Uma das primeiras cousas que eufaço todos os dias, logo queacordo e me levanto, é correr osolhos sobre os jornais da manhã,principalmente sobre as seçõesteatrais, com essa curiosidadeinfantil de quem dá o cavaco por

um bom espetáculo. – Uma espéciede instinto natural, um pruridoirresistível me leva a esse cantodas folhas diárias donde saiosempre com desgosto.

Nenhuma novidade, nenhuma peçanova de editor brasileiro! Sempreo mesmo menu, as mesmasvariantes! Dumas, Sardou,Feuillet, Echegaray... Sardou,Feuillet, Dumas...

A gente chega a duvidar de que estámesmo no Rio de Janeiro, nacapital do Brasil. Deixa-se cair ojornal da mão, chega-se à janela, evê-se o grande céu brasileirolavado de sol, largo, imenso e belo,

a entornar luz sobre os míserosindígenas da América. (Caminha,1999a, p.165-6)

Ainda nesse mesmo texto, fica claropara o leitor que o gosto estandardizadopelos produtos franceses, além de semostrar em objetos, entre eles os livros,e gêneros literários, estava presente naspráticas dos sujeitos do sistemaliterário, como é o caso dos tradutores.Uma vez que o gosto pelo teatro era,sobretudo, o gosto pelo teatro francês,com recorrentes montagens de Conde deMonte Cristo e de A Dama dasCamélias, os tradutores entravam emcampo, fortalecendo o gostoestabelecido e atuando como agentes de

mediação entre o autor, o público e aobra: "Traduções, traduções e traduções– eis o mot d'ordre, a maldita mania, alesão incurável!" (ibidem, p.166).

A respeito das traduções de textosficcionais realizadas pela Garnier,afirmou Laurence Hallewell (2005,p.217-18):

Seu programa de traduções foi umacréscimo a este trabalho, e muitomais amplo. Os livros francesesconstituíram o número quase totaldas traduções, representadas emsua maior parte, pelos romancistaspopulares: Dumas pai, VictorHugo, Montepin, Octave Feuillet,Arsène Houssaye, Émile Gaboriau

e Júlio Verne, o mais rentável detodos.

Além de Garnier, a editora Laemmerttambém realizou traduções, não somentede títulos franceses, mas também deobras de autores alemães, comoAmorosas paixões do jovem Werther,essa supõe-se traduzida pelo próprioEduardo Laemmert, as Aventuraspasmosas do celebérrimo Barão deMünchhausen, feita pelo professor doColégio Pedro II Carlos Jansen Muller,e tantos outros como também nosinforma o citado e referenciadoHallewell.

Ironicamente, Adolfo Caminha, na

citação de seu texto que fizemosanteriormente, fez uso da expressãofrancesa – mot d'ordre – paracaracterizar a situação do teatro noBrasil, e, por extensão, da literatura e davida cultural que ele descreveu. Porém omais irônico, e talvez contraditório, éque bem antes de morrer, AdolfoCaminha trabalhava em uma tradução doteatro de Balzac, o que talvez só sejustificasse por não se tratar de umescritor romântico como o eram osautores dos títulos citados: "Caminhadeixou inéditos os Pequenos Contos etrabalhava em Ângelo e O Emigrado,que talvez fossem romances, assimcomo na tradução do teatro de Balzac,tendo ainda anunciado o livro Duas

Histórias" (Azevedo, 1999, p.16, grifonosso).

Ainda assim, Caminha estava conscientedo que significava o alargamento dainfluência econômica e cultural daFrança na América, o que é possívelconstatar em seus textos de Cartasliterárias, mas sobretudo na colunaintitulada "Sabbatina" do jornal O Pão,na qual ele defendia os folguedospopulares. Em Tentação, há mais umexemplo de defesa de um estilo de vidamais próximo do estilo defendido pelosromânticos, o que se repete também emalguns dos seus contos, pois naquele seuúltimo romance a personagem Evaristo éum descontente com as afetações da

família de Luís Furtado, sempre pronta afazer bajulações e adulações aos maispoderosos e, especialmente, aosmembros da família imperial. Tratandoespecificamente da Padaria Espiritual,Gleudson Passos Cardoso (2002, p.23-4) afirmou quanto ao pensamento socialdessa agremiação:

a Padaria Espiritual optou porinterpretar a realidade nacional deacordo com a realidade popularque compunha a nação brasileira.Em geral, a Padaria elegera osmodos de vida dos habitantes dossertões e vilarejos comodefinidores do caráter nacional. Naarena de debates intelectuais da

imprensa de Fortaleza, bem comodas principais cidades do Brasil,esse discurso procurou elaboraruma identidade nacional ao seupúblico leitor, naqueles tempos emque intelectuais e políticosbuscavam uma imagem pararepresentar a nação brasileira.

Em sua leitura social, a PadariaEspiritual comportou alguns traçosde teor nacionalista-regionalista(reportando-se à característicastípicas do povo cearense), diantedaqueles tempos de indefiniçãopolítica.

Ainda tratando especificamente do teorda coluna Sabbatina, de O Pão, afirmou

Cardoso:

O que poderá parecerconservadorismo romântico daparte de "Bruno Jaci" e "FélixGuanabarino" (respectivamenteJosé Carlos Júnior e AdolfoCaminha), é uma reflexão sobre oprocesso de aculturação do Cearárealizado com o investimento daspotências imperialistas, a fim deexpandirem as atividades daeconomia industrial-monopolista. EFortaleza, com a criação da estradade ferro Fortaleza-Baturité (1877-79), o Farol do Mucuripe (1872), aPonte dos Ingleses (1906) e asvilas operárias (1912 – 1914), já

conhecia tal realidade. (ibidem,p.27-8)

Robert Howes (2005, p.182), tratandode Cartas literárias e do romance Bom-Crioulo a partir das perspectivas deraça e sexualidade, afirmou a propósitoda consciência de Caminha quanto aoprocesso de influência francês no Brasildo final do século XIX:

Na esfera internacional, a décadade 1890 foi também um período demudanças. Caminha estavaescrevendo no ponto alto doimperialismo e da ascensãocultural da Europa. As CartasLiterárias demonstram que elecompartilhava da admiração da

elite brasileira pela culturafrancesa mas também estavaciente do potencial perigo para oBrasil do expansionismo europeu.Esta ameaça está simbolizada noromance [Bom-crioulo] pelo navioinglês trazendo imigrantesitalianos, o qual rapidamenteultrapassa o lento navio de guerrabrasileiro com sua tripulação denegros e mulatos, e a inspeçãosuperficial do navio feita pelooficial da marinha inglesa parecidocom o rei da Alemanha.

Se a influência da França na vidacultural brasileira é recorrentementeapontada por Adolfo Caminha em seus

textos críticos, ela também ocorria nocotidiano, seja na constituição de umnovo modelo de cidade, como ocorreudurante a Belle Époque, seja também naadoção de posturas e comportamentos.Se a França não era o ideal, foi de láque veio um dos principais editores doBrasil da segunda metade do séculoXIX: Baptiste Louis Garnier.

Baptiste Louis Garnier

Naquele constante movimento deinfluência vindo da França, AdolfoCaminha, ao tratar dos editoresestrangeiros que atuaram no Brasil,preocupou-se em registrar sua opinião arespeito de Baptiste Louis Garnier, aqui

já citado como o mais importante doseditores brasileiros da segunda metadedo século XIX. Nesse registro, AdolfoCaminha reproduziu um suposto diálogodele com um amigo, ao verem, na ruados Ourives, no Rio de Janeiro, "oGarnier, o velho Garnier, o editorGarnier!". Vejamos o que disse AdolfoCaminha (1999a, p.122-3):

Uma ocasião, íamos, eu e umamigo, pela rua dos Ourives,quando esse, estacando, e com avoz misteriosamente sepulcral,chamou a minha atenção para umhomenzinho baixo, meioencarquilhado e senil, mas todaviaforte e bem disposto, que seguia

pela outra calçada.

– Conheces?

– Não; alguma notabilidade?

– Oh, homem! o Garnier, o velhoGarnier, o editor Garnier!

E ajuntou com respeito:

– Uma fortuna! Quase todos osescritores brasileiros, desdeAlencar, têm pago seu tributo ali,ao velho.

E o meu amigo, trocistaincorrigível, entrou a narrarepisódios da vida de

Garnier, alguns dos quais mefizeram rir.

Dias depois o bom velho entregavaa alma a Deus e um belo dote àfamília.

Na reconstituição do diálogo citado,Adolfo Caminha enfatizou somente osaspectos que considerava pejorativos dafigura de Garnier, ressaltados por ele epelo seu amigo ao avistarem "o velho"na rua dos Ourives, destacando os seusaspectos físico e mental – encarquilhadoe senil –, apesar de destacar também,logo em seguida, que o homem estavaforte e bem disposto, talvez por ironia,ou talvez para dizer que ainda teria

força para tirar o quanto pudesse dosautores, como o fizera, com José deAlencar, segundo o suposto amigotrocista de Caminha, esse talvez um dospersonagens de seus textos críticos.

É de causar estranhamento que AdolfoCaminha dissesse não conhecer o editorGarnier. Em sua fala parece haver maisum tom de ironia do que dedesconhecimento propriamente dito,pois apesar de não saber ao certo dequem se tratava, ele conferiu,imediatamente, ao suposto desconhecidoo caráter de "notabilidade". Talvez essedesconhecimento se dê pelo fato de queBaptiste Louis Garnier faleceu em 1o deoutubro de 1893, no ano em que Adolfo

Caminha publicara, pela Domingos deMagalhães, A normalista, o seu romancede estreia. Destaque-se também o fatode que só no final de 1892 AdolfoCaminha retornou ao Rio de Janeiro,após um período de praticamente quatroanos (1888 – 1894) vivendo emFortaleza. Mas o que nos parece maiscompreensível dessa situação é queAdolfo Caminha quisesse mesmomanter-se distante da figura de Garnier aquem ele não via com bons olhos. Doaspecto físico e mental do editor,Caminha e o pretenso amigo, um"trocista incorrigível", passaram àssituações ligadas à vida financeira emoral de Garnier.

Esse olhar negativo para apersonalidade de Baptiste Louis Garnierparece ter preponderado nos registros arespeito da ação dos editores no Brasildo período em causa, pois LaurenceHallewell (2005, p.207), a respeitodesse editor francês registrou:

Muito ao contrário, enquantoPlancher é lembrado por seuespírito e Paula Brito por suanatureza bondosa, o "Bom Ladrão"Garnier adquiriu a reputaçãopóstuma de avarento. Aslembranças de seuscontemporâneos descrevem a figuranada simpática de um homembaixo, gordo, míope, de fala lenta,

de enorme cabeça redonda, queixofugidio, sentado, com uma pena namão, diante de uma escrivaninhaalta, no canto mais afastado de suasombria e poeirenta loja,descolando selos não-carimbadosda correspondência recebida,preservando os envelopes paraserem usados novamente emurmurando para si mesmo: "Ah!pauvre Baptiste, si j'étais richecomme mon frère..."15

Mais uma vez fazemos uso do texto deFrançoise Bayard que, ao tratar daimagem do homem de negócios noséculo XVII na França, destaca arecorrência de aspectos pejorativos,

seja na sua fisionomia, seja na suacompleição física, seja no seu caráter.Comumente, esses homens de negóciossão gordos e baixos, feios, característicaessa que se liga à maldade; tambémcomumente, são representados comoentregues aos vícios, são frequentementeavaros, violentos, cometendo os maisdiversos tipos de crimes. São tambémacusados de viver no luxo de suas casas,no conforto exagerado e rodeados deserviçais sempre prontos a fartar-lhes afome pantagruélica diante de uma mesalauta. Bayard (1986, p.8) vai além:

Ces festins s'accompagnentd'orgies «puisqu'ils y pratiquoientdes impudicitez capables de faire

rougir les ténèbres qui leursservoient de voile». Insolence,avarice, violence, absence demorale, corruption et débauchegénérale font donc des financiers«une maudite engeance», «uneperverse race», «les ordures de laFrance», des «larrons pervers»,«des voleurs publiques», «desmonstres pervers» et de «batarderace» condamnés à l'Enfer...16

Guardadas as devidas proporções elevando-se em consideração o recorteexaminado por Bayard, ainda assim, éinteressante constatar que um olharpejorativo continua traçando um perfiligualmente negativo dos homens de

negócio relacionados ao mundo da artee, em especial, ao campo literário, umavez que Bayard destacou e analisouimagens escritas por romancistas,teatrólogos e memorialistas, ou seja, desujeitos que escrevem a partir de suasexperiências com o mundo dos negócios,mundo que, novamente segundo Bayard,eles não desconheciam: "Le métier definancier est donc parfaitement connudes gens des lettres du XVIIe siècle qui,en bons observateurs, témoignent ausside l'integration et de l'ascensionsociales des ces hommes ou de leurfamille" (ibidem, p.16).17 Essas imagensresultam no que Bayard chamou de"Laquais-financier".

O mais interessante a partir dessesuposto diálogo é que Adolfo Caminha,no momento da escrita do texto, teceuma rede de referências que liga oeditor Garnier ao mundo do impresso, enão de qualquer tipo de impresso, masdo impresso literário ficcional, poisimediatamente ao nome do editor elejunta o nome do já citado José deAlencar. Em outro trecho do mesmotexto, de modo irônico, ele tece relaçõesentre o lucro do trabalho de Garnier edos autores cujas obras foram editadaspor ele: "Os serviços que o velhoGarnier prestou às letras, foramlargamente, abundantementerecompensados. Que o digam Machadode Assis, Aluísio Azevedo... Como já

deixei perceber, vi-o apenas uma vez,de relance, mas duvido, pelo que sei desuas qualidades mercantis, que ele fosseum homem generoso...". Fica clara anecessidade de Caminha de dizer quenunca tivera relação mais estreita comGarnier, ou seja, de que ele ainda nãoseria o editor ideal. As reticências aofinal desse período denotam além deuma suspensão de pensamento, umaespécie de segundo sentido por trás doque afirmava o enunciado.

Tensões e mais tensões

A crítica de Adolfo Caminha, porém, sedirige também à imprensa que, segundoele, não economizava o epíteto de

"benemérito" aos editores. Ao estenderdesse modo a sua crítica ele retoma a jácitada personagem senhor F, aquichamado de editor F:

Todo editor em nosso país é, porsistema, um "benemérito", um"protetor das letras pátrias", um"incansável". A imprensa cobre-ode elogios, mete-o numa roda vivade aplausos, toca o búzio doreclame, transforma-o numaespécie de semideus glorioso,aureolado por um clarão de fofaimortalidade. Por quê? Pelasimples razão de haver editadoqualquer livrinho de versos, quenão lhe custou dinheiro, que não lhe

deu trabalho, e cuja publicação foiautorizada por uma naturalveleidade de poeta bisonho. Eis aío grande serviço que "acaba deprestar à literatura nacional oeditor F..."! (Caminha, 1999a,p.122)

Criticando a imprensa e os editores, aúnica possibilidade seria buscar umperfil ideal em outro lugar. Mais umavez, o lugar escolhido foi a França, e,como vimos anteriormente, o editorideal foi Charpentier. Porém, na citaçãoque se verá a seguir, um novo par detensão aparece, fundamentado nascaracterísticas nacionais ou naquilo quedefiniria, segundo Adolfo Caminha, o

Brasil em sua vida intelectual e literáriade então, vida essa muito próxima, comojá vimos nas palavras de BernardoRicupero, da política pelo menosnaquele período de assentamento dasraízes nacionais que foi o período pós-independência.

A França, e mais precisamente Paris,sempre aparece como modelo, comoesperança ou guiadora e atrativa deolhares e desejos; ela é uma espécie detensão especular na qual os intelectuaisbrasileiros insistem em querer se ver,mesmo que a imagem refletida estivesseborrada. O que, no caso de AdolfoCaminha, se torna mais e maisdramático, pois se torna difícil dizer o

quanto ele defendia e o quanto elerepudiava esse possível encontro com ooutro lado do espelho, como jáconstatamos nas citações feitasanteriormente. Ao mesmo tempo queencontra na França as condições ideaisde produção da literatura, Caminhainsiste em dizer que a França não é aqui.Ainda assim para ele os editoresfranceses eram os ideais:

Isso prova que em França oseditores não encaram somente olado mercantil, financeiro, dacousa.

Selecionam, às vezes com prejuízode seus interesses, protegem otalento, nobilitam-se perante a sua

pátria, são verdadeirosbeneméritos.

Mas a França é um paísessencialmente intelectual,argumenta-se.

É verdade, ia-me esquecendo queestamos no Brasil, onde a profissãode escritor é a mais desgraçada detodas as profissões. O argumentoacordou-me dessa meiga ilusão.Estamos no Brasil... (ibidem)

Como um homem de seu tempo, assimcomo o fizeram também geraçõesanteriores a sua e das quais ele foiherdeiro, como aquela que ficouconhecida na História da literatura

brasileira de José Veríssimo como omodernismo de 1870, geração da qualfizeram parte inúmeros intelectuaiscearenses, entre eles podemos citarCapistrano de Abreu, Araripe Júnior,Rocha Lima, Tomás Pompeu de SouzaBrasil, todos eles com passagem pelaEscola de Direito do Recife, de ondetambém saiu Sílvio Romero, AdolfoCaminha oscilou entre a construção deuma imagem nacional que seidentificava com a França e ao mesmotempo a negava.

Essa, porém, não era a única tensãoexistente. Outra tensão para ele foi a davida na cidade grande, ondesupostamente o mundo apresentaria seus

encantos, suas possibilidades, tendo oescritor cearense, até mesmo, aoportunidade de conhecer Nova York, oque encontramos narrado em seu livroNo país dos ianques. Mas ao mesmotempo em que a cidade era para eledeslumbrante, havia um certoencantamento pelo lugares bucólicos,afastados da civilização". Esse novo parde tensão está presente não somente nosseus textos críticos, mas também nosseus textos ficcionais, com a buscaconstante de um lugar no qual ele mesmoe suas personagens se sentissem a salvodo progresso que batia à porta e pareciaassustá-lo ao mesmo tempo que o atraia.

Talvez esteja nessa tensão a

explicitação de uma existência ocorridaentre duas fortes estéticas literárias: oromantismo e o naturalismo, ambascultivadas por ele, o que o coloca numaespécie de encruzilhada estética,atravessada pelo simbolismo, quecertamente ele já tomara conhecimentoem Fortaleza por intermédio da PadariaEspiritual ao ler o Só, do poetaportuguês Antônio Nobre, que já andavanas mãos dos homens de letras nacapital do Ceará, como afirmouCaminha. Para Sânzio de Azevedo(1996), o simbolismo cearense teverelações diretas com Portugal bem antesde tomar conhecimento do grupoencabeçado no Sul do Brasil por Cruz eSouza, a ponto de, mesmo não havendo

contato entre Norte e Sul, o Brasil teriauma literatura simbolista.

É preciso retomar um fato já aquiapontado: o de que no final do séculoXIX várias cidades do país, entre elasFortaleza, e sobretudo o Rio de Janeiro,passavam por grandes reformulaçõesque atingiram não somente ruas e praças,mas corpos e mentes, reformulaçõesestas que nem sempre foram benéficaspara o conjunto da sociedade,provocando a exclusão dos setores maispobres. Essas supostas tensões internasdo pensamento de Adolfo Caminha sãotensões não somente pessoais,particulares do autor, mas da sociedadeda qual ele fazia parte.

Nesse verdadeiro campo minado, entredúvidas, aflições pessoais, tensõessociais, entre a crença no progresso e atemeridade do que o mundo do bota-abaixo poderia construir de novo é quenossos intelectuais, consideradosmaiores ou menores, se movimentaram,ao ponto de, analisando o períodoconhecido como Belle Époque, quandoessas tensões se intensificaram, NicolauSevcenko (2003) chamá-los de os"mosqueteiros intelectuais" e de"paladinos malogrados". Os primeiroseram encantados com o progresso, ocientificismo, a república; esses eramdescontentes, desiludidos, enfim,malogrados em seus intentos e projetos,entre eles podemos citar: José

Veríssimo, Lopes Trovão, Augusto doAnjos, Farias Brito, Euclides da Cunhae também Adolfo Caminha.

Para muitos, a República foi a vitória doarrivismo, da incompetência, daimbecilidade, da aventura política. Oque resultou em um afastamento dosintelectuais na participação do poder.Nicolau Sevcenko foi categórico aotratar do resultado inesperado que tomouo movimento pela implantação daRepública, sobretudo os seus resultadosnos meios intelectuais:

A imensa transformação social,econômica e cultural que elesajudaram a realizar, atuando comocatalisadores de processos

históricos, tomou um rumoinesperado e contrário às suasexpectativas. Em vez de entrarempara um universo fundado nosvalores da razão e doconhecimento, que premiasse ainteligência e a competência com oprestígio e as posições decomando, viram tudo reduzido aomais volúvel dos valores: o valordo mercado. (ibidem, p.115)

Adolfo Caminha, mesmo sendo umfuncionário público, estava entre esses,ou seja, os malogrados, sobretudo selembrarmos aqui o fato de que ele nãoconcordava, por exemplo, com ogoverno de Floriano Peixoto. Fato este

que Caminha (1999a, p.63-4) afirmouem uma das suas Cartas literárias:

Senhor Redator: – No atualmomento da vida brasileiraparecerá um despropósito ventilarquestões que não digam direta ouindiretamente com a políticamilitante, larga demais,extraordinariamente bojuda paraconter grande número de sectáriosde todos os partidos; e o assuntodesta carta funde-se todo na obraque, sem estardalhaço nemexageradas pretensões, acabo depublicar: a Normalista.

Muito embora. O verdadeiro artistaou homem de letras, vivendo, por

força de sua índole, uma vidapuramente subjetiva de reflexão eestudo, lamenta de si para si, nosilêncio de seu gabinete, as grandescomoções intestinas como esta queo Brasil experimenta há doismeses, sem contudo irromper o fiode suas idéias, nem alterar o seumodus vivendi, imiscuindo-senoutro gênero de especulaçõescontrárias à sua vocação.

Isso não é ser indiferente às doresda pátria – é ser coerente com osseus princípios e subordinado à suaíndole de artista.

Agora mesmo, quando vou traçando

estas linhas, ouço bombardeio,tiros surdos ao longe, mas nem porisso abandono a idéia fixa em meucérebro de continuar a escrever,porque o contrário seria perder omomento psicológico, a ocasiãoprecisa e inadiável, em que oespírito, obedecendo a um impulsonatural e irresistível, forte como oque impele o criminoso para ocrime, reclama imperiosamente atransmissão do pensamento para opapel.

Ninguém tem o poder de pensar, aum certo momento de sua vida, umacoisa diferente daquela queefetivamente pensa. – É o Sr.

Ramalho Ortigão quem o afirma.

E, de fato, como hei de eu daratenção ao bombardeio que lá vaitroando na baía, se o meu espíritoestá completamente absorvido,absolutamente dominado pela idéiade fazer literatura?

Vemos nessa longa citação que umabatalha interna acontecia no espírito deCaminha, mas o que nos parece sertambém fruto do citado malogroexperimentado com a instauração daRepública, afinal, Adolfo Caminhatambém era um dos que sonharam etrabalharam para o fim da Monarquia,tendo sido um dos membros do ClubeRepublicano do Ceará desde o seu

início, como nos informa Sânzio deAzevedo, (1999, p.158) tendo mesmopronunciado um discurso por ocasião dainstalação do governo republicanoprovisório do Estado do Ceará "no diaseguinte ao dia da Proclamação daRepública".

Frota Pessoa (1902, p.219-20), queestiveram presente nos últimosmomentos de Adolfo Caminha e, já em1902, escreva sobre ele, foi feliz aorelembrar a participação de Caminha nomovimento republicano em nosso país:

Nessa occasião deu-se aproclamação da Republica. O seuromance sentimental não o

impedira de contribuir para agrande libertação. Desde os temposde aspirante que se manifestárarepublicano, com as maisavançadas idéas democráticas. NaEscola de Marinha, quando setratou de prestar homenagem aVictor Hugo, elle, orador officialpor commisão dos collegas, exaltouo genio revolucionario do grandemorto, e isto em presença doproprio imperador. E no Cearáfazia parte do Club Republicano,fundado nos ultimos tempos doImperio.

Assim, logo que foi substituído ogoverno do Ceará, os seus

companheiros de propaganda,collocando-se acima dospreconceitos, que haviam banidomoralmente da sociedade odestemido marinheiro, mandarambuscal-o para participar das festasque se realisavam, commemorandoo grande acontecimento, e, sendo-lhe dada a palavra, pronunciou umdiscurso que enthusiasmou oauditório.

Diante de tanto envolvimento com asideias republicanas, como entãoexplicar a indiferença de AdolfoCaminha pelas coisas da pátria, pelarepública com que sonhara?Voltamosnovamente a Frota Pessoa que nos dá

como indício do malogro a rejeição dosseus companheiros de farda e demovimento político pela sua união a umasenhora já casada com um oficial doexército:

Mas nada prevaleceu contra asanha surda dos seusperseguidores. Em principios dedezembro o ministro da Marinhachama-o com toda a urgencia áCapital Federal. Debalde os seussuperiores a bordo do patachointervêm, communicando aogoverno que o official se achava delicença, por molestia; a ordem éirrevogavel, e elle parte de novo.Chegado ao Rio, é mandado

embarcar immediatamente numvaso de guerra que ia zarpar para aEuropa.

Caminha apresentou-se a bordo eao commandante declarouperemptoriamente que não seguia.Conselhos, admoestações,ameaças, tudo foi debalde. Tentouobter uma inspeção quecomprovasse a debilidade da suasaúde; foi-lhe declarado que nãolhe seria concedido nenhumattestado de moléstia, mesmo querealmente se achassem enfermo.Nessa emergencia adoptou umalvitre de philosopho: metteu-se emcasa á espera dos acontecimentos.

O commandante mandou prevenil-ode que o vapor só esperava porelle para levantar ferros e que nãozarparia sem leval-o a bordo. Ellerespondeu pelo portador que nãoiria. Parentes, amigos, camaradas ásua casa procuraram dissuadil-o dolouco proposito. O ministro estavairritadíssimo. Foi então que omarinheiro tomou a resoluçãoextrema: pediu a sua demissão daarmada nacional.

Demoraram-lhe o despacho dorequerimento, protelaram a soluçãodo caso, até que, porfim, tiveramque ceder, e Caminha, livre dascadeias disciplinares, o futuro

amputado, sem dinheiro e nomeadopraticante da thesouraria dafazenda do Caerá, chega á terranatal, jubiloso e feliz, levando ocumprimento do seu compromissoaté o sacrificio. (ibidem, p.220-1)

Nesse excerto do texto de Frota Pessoaestá uma possibilidade de explicaçãofundamentada na relação estreita entrevida e obra, o que resultaria numaleitura cristalizada da ficção de AdolfoCaminha tendo como palavra-chave avingança, ou seja, os seus doisprimeiros romances – A normalista eBomCrioulo – teriam sido escritos paraque ele se vingasse da cidade deFortaleza, que não aceitou a sua união

com Isabel Jataí de Paula Barros, e, osegundo romance, para vingar-se daMarinha. Nesse motivo, ou seja, avingança, unida ao ressentimento,estariam as causas para a desilusão deCaminha com as cousas e gentes darepública recém-instalada.

Pápi Júnior (1897, p.5-6), escritorcarioca radicado no Ceará, econtemporâneo de Adolfo Caminha équem, no entanto, mais nos fala arespeito da participação do autor de Anormalista nas lides do movimentorepublicano na então província do Cearáe quem nos dá uma outra possibilidadede compreender esse afastamento edesinteresse:

Foi num desses assomos de revoltaque o vi, pela primeira vez, em umasessão do Centro Republicano,feita pelo calado da noite, sob asameaças da policia monarchicadominante. Era uma sociedadeutópica, gestada pelo espiritoimmalevolo de doze rapazes, quevisionavam para a Patriaprogredimentos e liberdades.

Havia ali para os profitentes aformula de um juramento solemnecom promessas e sacrificios, – oempenho da honra e o desperdícioda vida. Esse juramento fel-o comtodas as altisonancias do seucaráter já formado pondo em

phrases possuídas a rebeldia desuas ideias, a intimidez com quehavia mais tarde de enveredar, coma sua existencia de sonhador, nomeandro das grandes mentirassociaes, dos preconceitos daburguezia intolerante, da inveja dosnullos e dos dentes aguçadissimosda ignorancia pretenciosa.

A sua profissão de fé não foi aformula de uma adhesão banal eridícula, trazia um bradointensissimo de revolta.

Senhores! (disse ele) A Republicapode ser hoje uma aspiraçãopatriótica, mas, as minhas idéias,sinto que me aproximam muito mais

do campo egualitario dosocialismo.

Se de início o sentimento produzido foide alegria, o que veio a seguir foi adesilusão, de certo modo já aguardadapor quem pretendia mais do governorepublicano. Esses fatos aqui trazidos àtona têm como objetivo mostrar que arelação entre autores, obras e mercadoestá também permeada porcircunstâncias sociais e pessoais, ouseja, que essas categorias,diferentemente de uma abordagemautocentrada, estão vinculadas àsespecificidades do espaço e do tempoque as produziu.

Esse sentimento de malogro de fim deséculo ou uma certa paralisação do paísem todas as suas esferas foi tambémexperimentada pelo mercado, sobretudopelo mercado livreiro que está ligadoaos autores e ao público. Como jáafirmamos, parte considerável dadécada de 1890, portanto da primeiradécada da República, foi caracterizadapela estagnação, pelo sentimento dederrota que também marcou os nossosintelectuais, entre eles vários de nossosescritores. Apesar disso, era precisopublicar, ou seja, entrar em contato comos editores. No caso de Adolfo Caminhao seu primeiro editor foi Serafim Alves.

O primeiro editor o autor nunca

esquece

Voltemos, porém, aos editores. Foi apartir do diálogo de Caminha com o seusuposto amigo trocista, anteriormentecitado, que o autor cearense traçou emseu texto algumas informações a respeitodo seu primeiro editor: o senhor SerafimAlves, que publicara os seus doisprimeiros livros – Voos incertos(primeiras páginas) e Judith eLágrimas de um crente, o primeiro depoemas e o segundo duas novelas, hojevolumes raríssimos e ambosmelifluamente românticos. Aos vinteanos de idade, em 1887, ano em quedera a publicidade esses dois livros,Adolfo Caminha era um jovem membro

da Marinha Imperial Brasileira easpirante a autor, tendo já publicado umdos seus primeiros textos críticos em1885.

Ao comentar a respeito de SerafimAlves, afirmou Adolfo Caminha (1999a,p.123): "Dias depois o bom velho[Baptiste Louis Garnier] entregava aalma a Deus e um belo dote à família.Não chorei, porque... porque não tive amínima vontade, como não choraria pelamorte do Sr. Serafim Alves ou dequalquer outro livreiro da rua de S.José, por mais honesto que ele fosse".Apesar de destacar a honestidade deSerafim Alves, Adolfo Caminha nãoparece considerar que isso fosse um

mérito, mais um valor obrigatório detodas as pessoa, pois logo em seguidaao comentário transcrito antes eleafirmou: "A melhor qualidade, a grandevirtude que exalçava o finado Garnierera ser trabalhador e fazer pela vidahonestamente. Ora, isso não é bastantepara que um homem seja aclamado emereça estátua. Quem não trabalha nãotem direito à vida" (ibidem, p.123). Arespeito de Serafim José Alves,Laurence Hallewell fez o seguinteregistro:

Muito mais importante foi onegócio fundado por Serafim Alvesem 1851, no número 16 da praça D.Pedro II (hoje praça 15 de

Novembro). Como jámencionamos, nos últimos anos doséculo XIX essa casa publicoumais livros no Brasil do quequalquer outra, com exceção daGarnier e da Laemmert. Perto dofinal do século, mudou-se para arua 7 de Setembro nº. 83.18

Infelizmente, os registros de AdolfoCaminha a respeito de Serafim Alvessão escassos. Salvo o fato de ele tersido o seu primeiro editor, nada maisregistrou Adolfo Caminha nesse sentido.Mas diante de tantos exemplos quereforçam a visão pejorativa de AdolfoCaminha a respeito dos editores, valeperguntar: qual a relação de Adolfo

Caminha com aquele que publicou amaior parte de seus títulos?

Domingos de Magalhães

Em seu texto "Editores", AdolfoCaminha não registrou nenhum fato arespeito do editor dos seus romances Anormalista, Bom-Crioulo, de No paísdos ianques, memórias de viagem aosEstados Unidos e Tentação, seu últimoromance, que, segundo Sânzio deAzevedo (1999, p.133), "traz data de1896, mas circulou mesmo a partir doano seguinte". Os três primeiros títulosforam publicados por Domingos deMagalhães e o último pela livrariaLaemmert, o único publicado por uma

casa de editores estrangeiros. Em seutexto "Novos e velhos", Adolfo Caminhafaz o seguinte registro a respeito daspublicações do ano de 1893:

Se quiséssemos fechar hoje obalanço do ano que expira,contaríamos dificilmente meiadúzia de trabalhos dignos defigurarem na bibliografia nacional.Entretanto, este ano a messe foiabundante, registraram-se algumasestréias promissoras, novos einteligentes editores vieram com oseu nobre esforço iniciar umaépoca de entusiasmo, infelizmentepassageiro, de que resultaram deum lado algumas obras notáveis, e

d'outro lado muitas obrinhas demerecimento duvidoso.

Nessa citação, no que diz respeito aoseditores, Adolfo Caminha estava,possivelmente, referindo-se a Domingosde Magalhães, pois esse foi, como jávimos, na década de 1890, no Brasil, agrande estreia no campo editorial, umavez que a editora e livraria Garnierestava em um momento de declínio, oque fez que a Domingos de Magalhães,uma empresa de capital nacional, seestabelecesse na publicação de autorestambém nacionais. No seu início, essanova casa editora também se situavamna região menos prestigiada do que a ruado Ouvidor. Porém, à medida que os

negócios prosperavam, a Domingos deMagalhães se estabeleceu entre as lojaschiques de produtos importados e deluxo da rua do Ouvidor, como é possívelconstatar na capa do romance Bom-Crioulo, evidenciando, desse modo, asua ascensão.

Ainda a respeito de Domingos deMagalhães destacamos o seguinte fato: oeditor procurava entre os novosescritores aqueles cuja obra epersonalidade fossem capazes deproduzir algum escândalo, o que, emtese, mobilizaria o interesse dosleitores. Na introdução da edição quepreparou de Missal e Broquéis, de Cruze Souza, afirmou Ivan Teixeira (1998):

No início dos anos 90 [1890],surgiu [Domingos de] Magalhães eCompanhia. Por imposição domercado, essa editora teve deinvestir em autores inéditos,sobretudo aqueles que, com algumescândalo, garantissem evidênciaao novo empreendimento. Issoexplica o lançamento, em 1893, dedois livros estranhos à literatura deentão: Missal e Broquéis, de Cruze Souza. Lançar um autor negrocinco anos após a Abolição era umirresistível apelo comercial.19

Talvez, à época, o conteúdoconsiderado polêmico de A normalistatenha garantido também a entrada de

Adolfo Caminha no catálogo deDomingos de Magalhães, o que nos levaa acreditar que houvesse um públicoleitor para o que poderíamos chamar deuma "literatura escandalosa" e que oeditor tinha o conhecimento prévio dosanseios dos leitores, restando-lhe,portanto, criar meios para satisfazer asnecessidades do público e as suaspróprias, uma vez que o seu trabalhovisava, sobretudo, o lucro financeiro.

Talvez se os romances de AdolfoCaminha não tivessem a capacidade desuscitar algum escândalo no públicoleitor do final do século XIX eles nãoteriam sido publicados, o que nos fazpensar também no fato de que, não

somente a edição ou impressão, mas asua própria produção, ou seja, oemprego de um tempo de produção dotexto, fosse dependente da necessidadedo público, por mais que o seu autortivesse uma compreensão, senãototalmente contrária, mas ao menoscrítica em relação as imposições do quechamou do "gosto pulha da burguesia".Roger Chartier (1999b, p.35-6), aotratar da reaparição do autor afirmou:

Dependente: ele [o autor] não é omestre do sentido e suas intençõesexpressas na produção do texto nãose impõem necessariamente nempara aqueles que fazem desse textoum livro (livreiros-editores ou

operários da impressão), nem paraaqueles que dele se apropriam paraa leitura. Reprimido: ele sesubmete às múltiplasdeterminações que organizam oespaço social da produçãoliterária, ou que, mais comumente,delimitam as categorias e asexperiências que são as própriasdas matrizes da escrita.

Esse fato nos mostra que aindependência do autor ante o mercado,destacadamente no Brasil do final doséculo XIX, era bastante frágil. Apesarde ter-se mostrado consciente do quepara ele seriam as condições ideais deprodução, Adolfo Caminha não passou

incólume aos interesses do mercado, oque não quer dizer que tenha renunciadoà sua capacidade de crítica. O que essefato nos indica é mais uma tensão entre aliteratura ideal e a literatura possível, eainda entre a vida ideal e a vida real doshomens de letras naquele período.Portanto, se algum escândalo eranecessário, por que não fazê-lo?

Escândalo sim, mas com contrato

O caráter de uma suposta naturezaescandalosa da obra em causa éreforçado pelo fato de que o próprioAdolfo Caminha escreveu uma defesa20

do seu romance A normalista que,segundo ele, era acusado de "imoral",

fato que se repetiu com a publicação deBom-Crioulo, para o qual o autorescreveu um outro texto também dedefesa intitulado de Um livrocondemnado,21 apontando para arecepção controversa de sua obra, quetratava de um assunto tabu para opúblico leitor do período: ohomoerotismo ou, utilizando o conceitovigente da época, o homossexualismo,que pelo sufixo empregado aponta paraa compreensão de uma sexualidadeconsiderada pelos saberes médico ejurídico como doentia. Vemos, pelosmotivos apontados, que a Domingos deMagalhães encontrou em AdolfoCaminha o modelo ideal para a suapolítica de publicação. Se a editora

procurava "escândalos", aquele autor ostinha para oferecer. Mas se a Domingosde Magalhães necessitava deescândalos, que os seus autores tivessemao menos a garantia de seus direitos emcontratos.

Tratando dos contratos da editoraFrancisco Alves, Anibal Bragança(1999) retomou a prática de alguns doseditores brasileiros ainda no século XIXe, entre eles, a atuação de Domingos deMagalhães, chegando até mesmo a citardados referentes aos contratos deAdolfo Caminha com o editor citado:

Desconhecemos as tentativas doautor [Adolfo Caminha] queresultaram infrutíferas, entretanto,

temos os dados referentes aoscontratos dos três livros publicadospor Domingos de Magalhães. Em17 de março de 1893 o autorassinou o contrato para a primeiraedição de A normalista, de milexemplares, que lhe asseguravacem exemplares da obra e mais10% sobre a venda do livro "casoa edição se esgote no praso de trezmeses a contar da data de seuapparecimento"; na cláusula 3a.ficava estabelecido que "O autorAdolpho Caminha compromete-se anão exigir mais exemplares dareferida primeira edição em casoalgum". (ibidem)

Vê-se por essa citação que AníbalBragança lida com fontes específicas: oscontratos entre as partes envolvidas napublicação de obras literáriasficcionais, ou seja, o autor e o editor,que, nesse aspecto, são mediados porum instrumento legal e jurídico,assegurando os direitos e deveres daspartes citadas. Esse instrumento étambém parte de um discurso jurídicoque conforma a relação entre os sujeitosenvolvidos na transação comercial, fatoesse que está ligado pelo novo estatutoda economia de mercado que se inseriuno Brasil à medida que o país passou ainteressar e a fazer parte efetiva doprocesso ocidental de industrializaçãode bens. A respeito do papel do autor

nesse contexto na Europa em via demecanização da produção do impressoafirmou Chartier (1999b, p.44): "A novaeconomia da escrita sugere avisibilidade plena do autor, criadororiginal de uma obra da qual ele podelegitimamente esperar lucro".

Aníbal Bragança (1999, p.460) tambémapresentou dados específicos a respeitoda publicação de No país dos ianques ede Bom-Crioulo. A respeito do primeiroafirmou:

O contrato para a edição de Nopaiz dosYankees, assinado em 15de abril de 1894, estabeleceu que aedição seria de 2 mil exemplares eque o autor receberia a quantia de

Rs 400$000 (quatrocentos milréis), pagos em duas prestaçõesiguais, uma no ato da assinatura eaoutra trinta dias após o "volumeestar à venda"; isso além de 25exemplares, que, pela cláusula 3a.,"não poderão ser vendidos peloautor".

Um outro contrato regeu apublicação do romance Bom-Crioulo:

O contrato para a edição de BomCreoulo previa a tiragem de 5 milexemplares e foi assinado em 15 deoutubro de 1894. O autor recebeuRs 2:000$000 (dois contos de

réis), pagos em três prestações:duas de Rs 500$000 cada e aúltima de Rs 1: 000&000, previstapara pagamento trinta dias depoisde estar à venda o livro. Foi pagaem 30 de dezembro de 1896,véspera da morte do autor, falecidoantes de completar 30 anos.(ibidem)

Comparando os valores pagos a AdolfoCaminha pela edição das obras citadascom os valores pagos a outros autoresque publicaram suas obras também nofinal do século XIX, pela EditoraFrancisco Alves, por exemplo, pode-seconsiderar que o procedimento deDomingos de Magalhães como editor foi

satisfatório, sobretudo no caso de Bom-Crioulo, obra que prometia causarpolêmica, pelo motivo que se indicouanteriormente, e que, apesar desse fato,teve uma tiragem, como informouBragança, de cinco mil exemplares, quepode ser considerada grande para ospadrões da época, o que reforça ahipótese de um "gênero" literárioescandaloso, talvez próximo dos faits-divers, do folhetim etc.

Se comparado ao romance O Atheneu,de Raul Pompéia, publicado em 1896pela Francisco Alves, Adolfo Caminhacom o seu Bom-Crioulo recebeu Rs500$000 (quinhentos réis) a mais, umavez que pelos direitos autorais Pompéia

recebeu, de forma parcelada, Rs1:500$000. Olavo Bilac e Coelho Neto,por exemplo, receberam da editoraFrancisco Alves, em 1896, o valor deRs 2:000$0000 (dois mil réis) pelaedição de A pátria brasileira, o mesmovalor pago pela edição de Bom-Crioulo.Se esses valores parecem favoráveis naRepública das Letras, o mesmo não sepode dizer se comparados aos valoresdo custo de vida no Rio de Janeiro doperíodo, como gastos com aluguel,vestuário, alimentação e bens deconsumo básicos.

Viver custa caro

Lajolo & Zilberman, em Formação da

leitura no Brasil, oferecem dados arespeito do custo de vida do Rio deJaneiro. Pelos dados oferecidos pode-seconcluir que o valor do trabalhointelectual é sempre inferior aos gastoscom bens, serviços e produtos deconsumo já citados. De onde se concluitambém que a luta pelos direitos doautor, travada, na visão de AdolfoCaminha, sobretudo na relação dessecom os editores, é a expressão de umaluta pela sobrevivência, que se podecompreender como uma luta pelaentrada no sistema literário, no campoliterário e, em alguns casos, no campode poder, uma vez que muitos dosescritores brasileiros também ocuparamcargos diversos na estrutura burocrática

estatal, assumindo postos de relevojunto às instituições políticas e àsautoridades, mas também tomandoassento em cargos menores do segundo,terceiro e quarto escalões da vidapolítica e pública nacionais. A respeitodo campo de poder afirmou PierreBourdieu (1996, p.244):

Muitas das práticas e dasrepresentações dos artistas e dosescritores (por exemplo, suaambivalência tanto em relação ao"povo" quanto em relação aos"burgueses") não se deixamexplicar senão por referência aocampo de poder, no interior doqual o próprio campo literário

(etc.) ocupa uma posiçãodominada. O campo de poder é oespaço das relações de força entreagentes ou instituições que têm emcomum possuir o capital necessáriopara ocupar posições dominantesnos diferentes campos (econômicoou cultural, especialmente). Ele é olugar de lutas entre detentores depoderes (ou de espécies de capital)diferentes que, como as lutassimbólicas entre os artistas e os"burgueses" do século XIX, têmpor aposta a transformação ou aconservação do valor relativo dasdiferentes espécies de capital quedetermina, ele próprio, a cadamomento, as forças suscetíveis de

ser lançadas nessas lutas.

Ainda comparando os valores recebidospor Adolfo Caminha com a edição deseu romance Bom-Crioulo e outrasobras publicadas à época e tambémobservando a inserção de alguns dosescritores brasileiros do período, comoos aqui já citados, devemos destacar ofato de que a geração de escritores aqual pertencia Coelho Neto, porexemplo, ainda estava se afirmando nocampo intelectual como é possívelconstatar com a edição do já citadoromance A conquista, de 1899. JoãoPaulo Coelho de Souza Rodrigues(2006, p.68-9) afirmou a esse respeito:

A "conquista" ia tomando forma

conforme vinham, aos poucos, asvitórias, muito embora o sonho deum lugar privilegiado na sociedadeainda não tivesse se concretizadoem 1897 ou 1899 para os antigosboêmios. Daí que Coelho Netoescrevesse na apresentação: "e, seainda não tomamos de assalto apraça em que vive acastelada aindiferença pública, já cantamosem torno, e, ao som dos nossoshinos, ruem os muros abalados, eavistamos, não longe, pelasbrechas, a cidade Ideal dos nossossonhos".

Vemos então que a conquista do sistemaliterário era também tão importante

quanto a conquista do sistema de poder.Adolfo Caminha não viveu muito paraque triunfassem os seus esforços, aocontrário. Assim como muitos de suageração ele não teve a oportunidade quetanto aguardava, fosse o reconhecimentoadvindo do campo literário, fosse oreconhecimento advindo do campo depoder. A morte prematura e as suasprecárias condições de vida são umexemplo do malogro dos seus intentos.Só a permanência de sua obra, ainda quesubmetida à condições adversas,garantiu uma espécie de vitória.

A conquista aos poucos

Apesar de sua situação nada favorável,

o percurso feito por Adolfo Caminhanos leva a crer que, aos poucos, a suaobra seria publicada pelas grandeseditoras em funcionamento no Brasil doséculo XIX e prova disso é a publicaçãode Tentação, seu último romance, que sedeu pela editora Laemmert. Na opiniãode Hallewell, a Laemmert "Foi durantemuito tempo a principal concorrente deB. L. Garnier e, no intervalo de 1893,data da morte de B. L. Garnier, e apassagem do século, quando HippolyteGarnier decidiu revitalizar sua filial doRio, tornou-se a principal casa editorabrasileira".

Se observarmos bem, é justamente nesteperíodo que a Laemmert publica o

romance de Adolfo Caminha, maisprecisamente em 1896, tendo o mesmocirculado apenas em 1897, como jáindicamos, ou seja, em um período emque a casa firmou-se no ramo docomércio de livros no Brasil. Assim,não somente os editores passam por umprocesso de ascensão, apontado, aqui,por exemplo, com a mudança deendereços, como podemos constatar nareprodução das capas dos romances deCaminha. Na capa de Tentação épossível constatar que essa casa editoramantinha, de algum modo, contatos emoutras praças, que não somente o Rio deJaneiro, o que significa também ocrescimento da empresa e,consequentemente, a ampliação do seu

raio de ação e de divulgação das obrasconstantes em seu catálogo, sendotambém um exemplo claro da busca porum maior número de leitores e ocrescimento do mercado editorial noBrasil do final do século XIX.

A chegada na Laemmert foi o indício deque, se continuasse a produzir, AdolfoCaminha poderia ter conquistado aquiloque almejava: as condições ideais deprodução. Aos poucos, oreconhecimento dos seus pares eraconquistado como podemos constata naseguinte afirmação de Sânzio deAzevedo (1999, p.15):

Quinze dias antes de sua morte, emuma das reuniões que antecederam

a instalação da AcademiaBrasileira de Letras, Lúcio deMendonça, um dos seusidealizadores, havia sugerido, entreoutros, o nome de Adolfo Caminhapara ocupar uma de suas cadeiras.Era tarde, porém, e o escritorcearense talvez haja falecido semsaber que seu nome fora lembradopara fazer parte da mais altainstituição literária do país.

Outro fato importante que aponta paraessa conquista aos poucos, ao menos danotoriedade, é que os contos que fariamparte de um livro que o escritorpreparava antes de falecer, intitulado dePequenos contos, que veio a se perder,

seria editado em oficinas parisienses deuma casa editora estrangeira, comoinforma Sânzio de Azevedofundamentado em um artigo publicadono periódico português A Mala daEuropa: "Tem no prelo as seguintesobras; – A Normalista, segunda edição,ilustrada, e Pequenos Contos, a compornas oficinas parisienses, editados pelaCasa Fauchon, do Rio..." (ibidem,p.127).

Infelizmente, a morte prematura, aostrinta anos incompletos, não permitiramque Adolfo Caminha visse esses livrosque estavam no prelo chegarem àslivrarias e às mãos dos leitores. Oscontos, como já dissemos, haveriam de

se perder, para ser somente no ano de2000 reunidos por Sânzio de Azevedoem um volume intitulado Contos; asegunda edição de A normalista só foipublicada muitos anos após a morte doinditoso escritor.

Figura 6 -Capado romance Tentat;:ao(Azevedo, 1999, p.187).

Diante desses fato, parece-nos válidolembrar as palavras da personagemZuza, do romance A normalista, aoqueixar-se das intrigas que sofria emFortaleza: "Concluo o meu curso e sigopara a Europa, é o verdadeiro, oradeus!" (Caminha, 1998, p.136). Enfim, odestino era a Europa, onde a obra deAdolfo Caminha só chegou com astraduções do romance Bom-Crioulo,como apontamos anteriormente.

Arte e artista na visão de AdolfoCaminha

Se Adolfo Caminha estava preocupadocom a situação do autor brasileiro, elenão deixou de pensá-la em uma escalamais ampla, apontando assim para a suapreocupação com o conceito de arte, quegeralmente em seus textos críticos elegrafava com a inicial maiúscula: Arte.No trecho que transcrevemos a seguirpercebemos, claramente, auniversalização da sua compreensão dearte e da condição do autor:

Aqui no Brasil, como na França,como na Alemanha, como naEscandinávia, como em toda parte,a história do artista é sempre amesma história inenarrável, semprea mesma legenda feita de

desesperos, cortada de angústiascruéis, e onde cada página marcaum episódio lutuoso, uma notaemocional, uma fatalidade sombria,um grito de dor, uma blasfêmiarecalcada... É isso que fez o grandeBalzac escrever: – "Fala-se nasvítimas causadas pela guerra, pelasepidemias; mas quem pensa nocampo de batalha das artes, dasciências e das letras, e quantosesforços violentos para aí triunfaramontoam mortos e moribundos?".(Caminha, 1999a, p.26)

De fato, Adolfo Caminha encarava asituação do autor e sua relação com oseditores como se estivesse em um

campo de guerra. Certamente por issonão lhe faltou pensar a respeito do quechamou de "meio intelectual brasileiro",apontando para os sujeitos neleexistentes e para o modo como essessujeitos procuravam se colocar. AdolfoCaminha não deixou de apontar para omodo como os autores utilizavam asmais diversas táticas e estratégias paraconseguir um lugar no campo literário.Dotado de teorias evolucionistas, eleagrupou os escritores em três classesdistintas, a saber:

Quem se colocar diante do "meio"intelectual brasileiro, em frente aopequeno círculo de escritores eartistas que, numa sede voraz de

popularidade e glória, andam amendigar os favores da imprensajornalística, ordinariamente leal aum rigoroso programa econômico ea um modus vivendi pouco literárioe muito burguês, há de reconhecertrês classes notáveis de indivíduosempenhados na luta pelo renome: ados nulos, ou dos felizes, quemarcham triunfalmente navanguarda, coberta de bençãoprotetora de seus ídolos; a grandeclasse dos medíocres, numerosacomo um exército, abençoadatambém, e pouco menos feliz doque aquela, dominando, às vezes,pelo charlatanismo e pela audáciairreverente; e, em terceiro a classe

oprimida, a triste classe obscurados homens de talento, quepreferem a glória definitiva esoberana a glória póstuma,conquistada pelo trabalho demuitos anos, e que outra cousa nãoé senão a admiração quasereligiosa do futuro, ao incensovaporoso da atualidade, àsaclamações momentâneas dopresente. (ibidem, p.25, grifosnossos)

A partir dessa citação, podemosperceber um possível maniqueísmo quemarca a opinião de Adolfo Caminha arespeito dos sujeitos que formam osistema literário e estão implicados na

produção da obra de arte literária. Nãose trata, portanto, de uma luta de todosos autores contra todos os editores emnome dos direitos do autor, mas de umaluta pelos direitos daqueles autores quefazem do trabalho literário uma atuaçãoprofissional e colaboram de formaempenhada, para usar novamente umconceito de Antonio Candido, com asociedade, implementando conceitos eopiniões que em determinado momentolhes parecem caros, e, assim,contribuindo para uma defesa dosvalores estéticos da Arte.

O suposto maniqueísmo da opinião deAdolfo Caminha pode ser assimdesfeito, uma vez que, no âmago da

discussão, estão os conceitos de autor,obra e literatura, sem desconsiderar queesses estão desvinculados dos valoresfinanceiros. Mais do que maniqueísmo,achamos por bem tratar o fato como umconjunto de tensões existentes nosistema literário e mais alargadamenteno campo literário, desfazendo, porexemplo, o entendimento da existênciade um corpo único: o autor, como adenotação de uma coletividade capaz derepresentar todos os sujeitos ligados àprática da escrita literária ficcional,afinal é evidente pela citação feitaanteriormente que Adolfo Caminha nãodefende todos os autores, mas somenteaqueles que considera fazer parte dosseus conceitos a respeito de Arte e, mais

especificamente, de Literatura.

Mais do que maniqueísmo, portanto,procuramos mesmo falar em tensões quese expandem no sistema e se ampliampara os campos literário, social eeconômico. A defesa feita por AdolfoCaminha dos valores financeiros comoretorno prático do trabalho intelectualapresenta-se de modo coerente,levandose em consideração, sobretudo,as distinções e classificações que eleelaborou e que neste capítulo temosprocurado evidenciar.

Ao final de seu texto a respeito doseditores, Adolfo Caminha (1999a,p.125) mais uma vez ocupou-se dosautores, ou melhor, da tensão entre esses

e as "sanguessugas", retomando assimuma das personagens dos seus textoscríticos: "Um conselho, porém, aosmoços de talento: não se deixemdominar pela sanguessuga, reajam contraa mistificadora influência dos editores,porque, ou eles procedem com eqüidaderemunerando a inteligência dos quetrabalham, ou morrem de anemiaprofunda...".

Nesse conselho, vemos que acompreensão de Adolfo Caminha arespeito do papel dos autores e doseditores é a de que ambos fazem partede um mercado, o mercado dos livros, oque, de fato, não parece ser umproblema para o escritor cearense, pois

o que lhe parece aflitivo é o fato desomente uma das partes envolvidas nomercado dos livros ser a únicabeneficiada e a outra explorada. Paraessa realidade mais complexa eranecessária a atuação de um político e,nesse caso, de um político envolvido emum mundo específico: o autor, o autor-político. É esse o cargo que Caminhaocupou ou pretendeu ocupar com suasações e palavras juntos aos diversossujeitos do mundo dos livros. A suaatuação, nesse caso específico, fez-sesentir na sua ficção, na sua crítica.Porém, a realidade, que é sempre maiscomplexa, nos oferece a oportunidadede ver o fato ao menos por dois lados,pois, se até então Adolfo Caminha foi

problematizado e analisado apenascomo autor, agora, faremos o mesmo,leitor, com a sua atuação como editor.

1 Cf. O Diário, ano I, n.59, Fortaleza, 4de agosto de 1892, p.2.

2 "Também cada nova cópia se aparentaa uma nova edição da obra, revista ecorrigida, encurtada e aumentada,segundo as oportunidades. E o textoredigido pelo autor, a 'edição princeps',em tal sorte, permanece mais ou menosno esquecimento, nenhum copista selembrava de mencionála. Nestemomento, ela não tinha nenhumaimportância particular aos olhos do

público e dos letrados, este manuscritooriginal não foi beneficiado pornenhuma proteção ao longo do tempo.Ele podia desaparecer em um momentoindeterminado, ser mutilado, jogado,queimado, sem que seu destinochamasse a atenção de quem quer quefosse. Ele se tornou somente umexemplar entre tantos outros. E mesmose ele sobreviveu até os nossos dias, nosé permitido constatar que ele é somenteuma das antigas cópias da obra"(Tradução nossa).

3 "Efetivamente, é somente a partir doséculo XIV que nós constatamos reaispreocupações de certos autores quantoao futuro de sua produção literária. O

que não exclui, seguramente, que outros,antes deles, tenham efetuado estasmesmas atitudes, tanto materiais quantointelectuais, mas nós não encontramosnenhum traço delas" (Tradução nossa).

4 "Das obras terminadas ou 'retocadas'pelos herdeiros, nos esquecemos rápidoque elas são montagens (Le Réquiem deMozart, Les Paysans de Balzac ouBouvard et Pécuchet) para emprestar aseus criadores principais as intençõesúltimas e solenes que deveriam retornar,em boa justiça distributiva, à Sussmayr,Caroline Commanville, Madame Balzac.Tais ajustamentos dão talvez a ocasiãode refletir sobre a parte da intervençãoexterna que ataca a religião do autor,

pelo herdeiros, mas também, o tempo devida do autor, do editor, do diretor decoleção, que frequentemente, dão aolivro o batismo de um título de seu gostocomo o mostrou Jean-Yves Mollier nocaso de Tocqueville ou Renan"(Tradução nossa).

5 Acréscimo nosso. Vale destacar nestanota que Azevedo reuniu nesse volumeonze contos, a saber: "VelhoTestamento", "A mão de mármore","Minotauro", "O exilado", "A últimalição", "Estados d'alma", "Pesadelo","No convento", "Elas...", "Joaninha" e"Amor de fidalgo". Em um apêndicedesse mesmo volume, Azevedo reuniuainda duas versões daquele conto

intitulado "Minotauro", versões essasencontradas pelo pesquisar Walter Toopna Biblioteca Nacional, no Rio deJaneiro, a primeira versão publicada emO Album e datada de julho de 1893, asegunda datada de 27 de janeiro de 1894e publicada no jornal Gazeta deNotícias. Em pesquisa queempreendemos também na BibliotecaNacional no Rio de Janeiro encontramosum conto de Adolfo Caminha publicadotambém na Gazeta de Notícias, daqueleEstado, datado de 25 de janeiro de1894, cujo título é Pagina esquecida,dedicado a Ferreira de Araújo, que novolume intitulado Contos e organizadopor Azevedo consta com o título de Noconvento.

6 Vale destacar que Adolfo Caminha, emseus textos críticos, faz uso de algunsrecursos próprios dos textos ficcionais,entre ele destaca-se a criação eutilização constante de personagens oude metáforas que resumem algunscomportamentos, situações oupersonalidades da sua época. Nessesentido, podem-se citar, além dosabnegados, dos obreiros, do minotauro edos borradores, "a mísera viúva,perpetuamente em crepe", metáfora coma qual Adolfo Caminha representa asituação miserável em que se encontravaa literatura nacional. Para os borradoresele usaria ainda uma outra personagem:"a malandrice audaciosa e irreverente".Na nossa compreensão, esse recurso se

apresenta como uma das característicasque marcam a crítica de AdolfoCaminha como um exemplo da chamadacrítica dos escritores ou crítica dosautores, fato que também evidencia ofuncionamento de um sistema literáriointerno, uma vez que as experiências doescritor contribuem com o crítico naanálise dos textos como também naanálise da conjuntura social na qualAdolfo Caminha vivia, não sendodiferente com as questões queenvolviam a literatura e o trabalho dosescritores. Em sua obra, crítica literária,ficção e jornalismo se unem, tanto nomodo de operar a linguagem específicaa cada uma dessas modalidades deescrita como na elaboração de uma

reflexão geral da qual os elementosintrínsecos e extrínsecos, no caso,sobretudo, dos textos literáriosficcionais, não estão desassociados.

7 "Quanto ao ser de carne (e não o depapel) que escreve, ele não cessarájamais de entreter uma curiosidadefetichista que toca no mais secreto daliteratura e da escritura em sua vertigemenigmática" (Tradução nossa).

8 "Paradoxalmente, a imagem pública dohomem de letras que se exprime em umcaráter muitoprivado, a opinião éhabitada por um fantasma fetichista e sóaceita dar seus sufrágios através dasformas celebrativas que satisfazem uma

demanda social geral da presença e quesão também ritos de autentificação. Oscontemporâneos cedem a uma inclinaçãoemotiva e reclamam de iníciotestemunhas e uma revelação doméstica.Assim, o gênero do elogio abandonandoos antigos canhões da exemplaridadepor aqueles da pitoresca amostra dohomem no homem celebre, segundo umcenário mais e mais biográfico quepretende fazer chegar nos segredos parasurpreender as identidades. [...] Ogrande homem é rodeado de um rumorque produz anedotas sobre seus mínimosfeitos e gestos, repercutidos peloscorrespondentes privados ou públicos ea imprensa. Uma fabricação de imagensplanas o dão progressivamente a ver e a

partir do estereótipo do elogio e depeças teatrais medíocres, de retratos ede bustos vulgarizados por estampas, e,após sua morte, de objetos piedosos ede relíquias: eis aqui o bom LaFontaine, o bom Fénelon, o bomMontesquieu" (Tradução nossa).

9 "O autor moderno nasceu no séculoXVIII, quando o campo literário, que seinstitucionalizou desde a metade doséculo XVII, se autonomizairreversivelmente. A demanda dopúblico é mais importante, o mercado selibera, as redes de sociabilidade,círculos de sábios e salões mundanos,onde se misturam as elites burguesas earistocráticas, são mais abertos e mais

ativos. As Luzes disputam com a Igrejao monopólio do simbólico; os santos dashagiografias tradicionais são trocadospelos heróis laicos; o homem de gênio épromovido a 'gênio' em pessoa e oindividuo se torna o lugar venerado dasingularidade. 'Em 1780, dois anos apósa morte deVoltaire e de Rousseau, umavez que Diderot e d'Alembert aindaestão vivos,a expressão 'homem deletras' tomou um sentido moderno, o deum estado na sociedade, o de um ofício.Mas é no século XIX que o autor atingea sua maioridade. O 'mito do poeta'(Abastado) e a 'personalização doescritor' (Lejeune) atiçam a curiosidadebiográfica preparada pela publicaçãodos escritos ficticiamente ou realmente

íntimos. A crítica faz do autor umanoção não mais somente jurídica oumoral, mas literária: ele se torna oprincípio da explicação estética dasobras. Simultaneamente proliferam doistipos de textos biográficos, ostestemunhos ou lembranças e asbiografias heterodiegéticas, as quais épreciso acrescentar os retratos, somentenarrativizados. As retranscriçõesautônomas das conversações são raras,mas as reportagens vão se desenvolverno fim do século na imprensa popular.Em pouco tempo, a imagem e a vida doautor se tornaram os meios de promoverseu livro. Mesmo se alguém pretendepreservar a autonomia da obra e queremajudar o autor a dever sua glória

somente a sua literatura, nos nossos diasa maior parte dos editores preferemservi-lo ao público, e este é aquele quejamais se viu o rosto nem escutou a voznas mídias que fazem a exceção"(Tradução nossa).

10 "O retrato que então é esboçado dofinancista constitui a prolongação daduração de uma nota ou de um silênciodeixada a apreciação do executor dasinfonia, mais ou menos como acacofonia dos teatrólogos, romancistas,memorialistas e sátiros durante toda aprimeira metade do século XVII. Ofinancista está constantementerepresentado pelos escritores, mas demodo diferente. Em torno do tema geral

do horrível e do malfeitor 'laquais-financier', variações múltiplasdemonstram o perfeito conhecimentodeste ofício e a irresistível ascensãosocial que este realiza" (Traduçãonossa).

11 O vocábulo "popular", no sentidoempregado por Adolfo Caminha, nãoparece corresponder ao significado depertencente ao povo, nem mesmo comosimples, singelo ou democrático. Parecemuito mais ligado ao sentido de sensocomum, não só pelo que o texto e ocontexto nos leva a concluir, mastambém pelo fato de Adolfo Caminha,nas páginas do jornal O Pão, órgão daPadaria Espiritual, agremiação artística

da qual fez parte em Fortaleza no finaldo século XIX, defendeu a culturapopular dos folguedos natalinos, poiscomo aponta Gleudson Passos Cardoso(2002, p.24-5) em seu PadariaEspiritual: biscoito fino e travoso: "Ébem provável que os sócios da PadariaEspiritual estivessem preocupados coma preservação da diversidade da culturapopular local. Pois, naquele tempo deviolenta imposição da racionalidadetécnico-científica, as manifestaçõespopulares eram reprimidas tanto pelosaparelhos coercitivos como pela estéticadas 'novidades de consumo' vindas coma economia monopolista das potênciasindustriais".

12 "Ao contrário, os autores mais lidospodiam do acolhimento que osreservava as suas editoras. O exemplode Anatole France é possivelmente omais edificante, tanto que o autor deL'Envers de l'histoire contemporainedeu prova de uma confiança ilimitada nafamília Clement-Lévy. Célebre e rico,ele deixava em permanência os fundostirados dos seus direitos de autor comseu editor que, em troca, regulava assuas faturas e lhe evitava todo contatocom a realidade material. Outrosescritores mostravam a mesmaconfiança, Alphonse Daudet em relaçãoa seu amigo Ernest Flammarion, ÉmileZola em relação a GeorgesCharpentier, Erckmann-Chatrain e Jules

Verne em relação a Pierre-Jules Hetzel,Ernest Renan a Calman-Lévy, o queproíbe toda uma visão unilateral dasrelações entre uns e outros. Além doque, no pólo mais literário do campo, osescritores escolhiam um de seus parescomo editor, Alfred Vallette no Mercurede France, os irmãos Natanson à LaRevue blanche ou André Gide naNouvelle Revue Française, o quesuprimia uma parte dos choquesprevisíveis com aqueles que eramdenominados 'os mercantis', com osquais o contato era recusado" (Traduçãonossa; negrito nosso).

13 "A relação se torna logo muito maispessoal. Charpentier quer ter com seus

autores laços quase familiares; ele pedea Flaubert e a Zola para serem ospadrinhos de seus filhos; Edmond, lhedera para padrinho de sua filha Jeanne,batizada em 1880; em uma carta aGoncourt de 2 de dezembro de 1879,Flaubert se irrita contra essesapadrinhamentos obrigados: 'A condutados Charpentiers forçando oapadrinhamento aos seus pobres autoresme parece de uma monstruosainquietude'. Goncourt participa, a partirde 1876, dos jantares que reúnem osautores Charpentier; estes encontros,lança, exacerba as rivalidades e se tornano Journal, a ocasião de uma direção decena obsessiva de Zola, apresentadocomo um redutível plagiário. Os

Charpentiers tentam se fazer demediadores e de manter custe o quecustar a coesão do grupo naturalistamais e mais despedaçado" (Traduçãonossa).

14 "Contaram-me que havia, em Paris,certas casas cuja especialidade eracomprar no peso saldos de exemplarespouco vendidos e de os enviar para aAmérica, para o extremo Oriente, paraas colônias, até para os selvagens, ondeeles os vendem a um belo preço, para osleitores dos países distantes quedevoram tudo o que vem da França"(Tradução nossa).

15 "Ah! pobre Baptiste, se eu fosse rico

como meu irmão..." (Tradução nossa,grifo nosso).

16 "Estes festins se acompanham deorgias 'uma vez que neles praticamimpudicícias capazes de envergonhar astrevas que lhes serviam de véu'.Insolência, avareza, violência, falta demoral, corrupção e deboche geral fazem,então, dos financistas 'uma malditacategoria de pessoas detestáveis', 'umaraça perversa', 'o lixo da França', 'osladrões públicos', 'os monstrosperversos' e a 'raça bastarda',condenados ao Inferno" (Traduçãonossa).

17 "O ofício dos financistas é então

perfeitamente conhecido dos letrados doséculo XVII, que, como bonsobservadores, testemunham também aintegração e a ascensão social desteshomens e de sua família" (Traduçãonossa).

18 Laurence Hallewell no § 73 registrouque na seção portuguesa do Catálogo daLivraria Acadêmica da Casa Garroux,com aproximadamente 7.500 itens, aspublicações da Garnier correspondemquase que à metade, as da editoraLaemmert a pouco mais de um terço,vindo, logo em seguida a casa deSerafim José Alves, com ocorrespondente a 6% do número total.

19 Vale destacar que Cruz e Souza eAdolfo Caminha foram publicados pelaDomingos de Magalhães, que naquelemesmo ano de 1893 colocou na praça oslivros Missal e Broquéis e A normalista(Cenas do Ceará).

20 O texto referido circulouprimeiramente no jornal Gazeta deNotícias com o título de Cartasliterárias I e traz como assinatura deseu autor não o nome de AdolfoCaminha, mas as suas iniciaisinvertidas, portanto, C. A., o que fez quea autoria das citadas cartas parecessemcomo de Capistrano de Abreu ou deConstâncio Alves, que à época tambémcolaboravam com o jornal carioca, fato

o corrido, possivelmente, por tratar-se otexto de uma autodefesa. Essa confusãosó foi desfeita quando Adolfo Caminhareuniu os textos críticos e os publicou,em livro, em 1895.

21 Texto publicado em A Nova Revista,Rio de Janeiro, n.2, fev. 1896.

3 Adolfo Caminha,autor-editor

O autor-editor

Mais uma face (ou máscara?) do autor

Como já vimos, Adolfo Caminha não foiapenas autor. No rol de suas atividadesno campo literário ou, de modo maisamplo, no campo intelectual, a edição dejornais e revistas constitui mais uma desuas faces ou mais uma de suasmáscaras, que, se analisada, enriquece acompreensão do conjunto de sua obra ea sua atuação como homem de letras,

definindo, desse modo, a sua atuaçãocomo polígrafo, pois é sempre válidolembrar que o compreendemos como tal,tanto porque essa parece ser uma práticacomum no seu tempo, como elasignificava também um modo de garantiralgum ganho financeiro, o que eraindispensável para os que deviamsustentar não somente a si e a sua arte,mas também a sua família. Portanto, apoligrafia era uma forma de estar emtodos os lugares da República dasLetras: na ficção, na crítica, nojornalismo. Ela era também um tipo depropaganda possível das obras que osautores produziam e uma forma de teceras inúmeras relações que sustentavam atrama das condições de produção da

literatura nacional no final do séculoXIX.

Antes, porém, apresenta-se-nos umproblema: como podemos conceituar oautor-editor, sujeito, à primeira vista,ambíguo, sobretudo se tomarmos comoreferência o ensino compartimentado daliteratura? Como unir esses sujeitossupostamente tão diferentes? Em buscade uma conceituação, citamos FrançoisBessire (2001, p.7):

Écrivain éditeur: la réunion deces deux mots qui, dans leuracception courante, désignentdeux fonctions bien distinctes,deux mondes très différents – d'uncôté la pensée et l'écriture, de

l'autre la production et la vente,d'un côté le texte et de l'autre lelivre – permet de délimiter defaçon rapide et commode notresujet. L'écrivain est éditeur dèslors qu'il intervient dans ce qu'onpourrait appeler le «champéditorial», c'est-à-dire tout leprocessus qui commence une foisle point final mis au texte ets'achève quand le livre arriveentre les mains du lecteur;l'écrivain est éditeur quand ilprend em charge tout ou partiedes fonctions éditoriales (au sensscientifique comme au senstéchnique), qu'il édite ses propesœuvres ou celles d'autrui:

préparation du texte (choix, ordre,état, etc.), annotation, avantetaprès-texte, choix d'un système d'«énonciation typographique»(caractères, format, mise en page,illustrations, etc.), impression,diffusion. Seul maître du texte,l'écrivain entre dans le champéditorial en concurrence avecd'autres acteurs, variables selonl'époque: le mécène, lecommanditaire, le protecteur, lecenseur, le juge, l'imprimeur, lelibraire, l'éditeur, etc. L'enjeu estpour lui de conserver, contre euxet malgré eux, selon des modalitéshistoriquement variables, lamaîtrise du texte et ses effets:

contrôle du moment de sapublication, de son état, part desbénéfices attendus de l'operation,influence sur sa lecture par lemoyen d'une «poétique du livre».1

Antes de passarmos propriamente atratar do caso de Adolfo Caminha comoautor-editor, parece-nos importantedesenvolver uma breve reflexão a partirda proposta de Bessire, sobre a qualpodemos dizer que a figura do autor-editor coloca em questão a noção quetemos do conceito de autor ou escritor,pois ao longo de seu desenvolvimento,esse conceito consagrou uma figura, umtipo bastante específico; esse tipoviveria em um mundo no qual as

preocupações financeiras não estariampresentes; ele mesmo não saberia ou nãogostaria de lidar com os números. Já nocaso do editor, sua concepção e seunascimento se confundem com omercado, com a venda, o lucro, o ganho.Se partirmos dessa dicotomia, que opõeas letras aos números, ou se partirmosda compreensão de papéis bastantedemarcados, o autor-editor é um serambíguo, uma espécie de anfíbio dasartes, capaz de viver em mundosdiferentes.

Mais importante do que partir dessacompreensão, no entanto, é buscar-lheuma via alternativa, ou seja, é precisopensar sempre que a realidade é mais

complexa do que o nosso propósito desupostamente organizá-la; organizá-ladizemos: limitá-la em estruturasestanques. Se a conceituação estanquede categorias possibilitaria uma melhorcompreensão dos papéis experienciadosno campo literário, partindo da práticado isolamento, ela também proporcionaa quebra das articulações possíveisentre os fazeres; ela torna imóvel o quetão agilmente se movimentava. Sãoessas articulações diversas, portanto,que nos interessa discutir. O que está,então, por detrás dos exemplos aquiapresentados por meio das diversascitações, sejam elas retiradas da obra deAdolfo Caminha, sejam de outrosautores, é a rearticulação dos conceitos

que uma prática que se apresentou comopedagógica nos ensinou. O autor-editorinstitui, desse modo, um incômodo nanossa compreensão desses papéis comoeles nos foram ensinados. Parece-nossempre importante citar as palavras deAndrade Muricy (1973, v.1, p.36) aotratar da relação entre os movimentossimbolista e parnasiano no Brasil: "Nacorrenteza dos fenômenos literários omovimento da vida não permite senãoartificial e efemeramente formarem-secompartimentos estanques: a realidade éfeita de vasos comunicantes". Utilizandoa metáfora orgânica dos vasoscomunicantes, Muricy encontrou o modode demonstrar quão ágeis eintercambiáveis são as relações no

campo literário.

Foi, então, nessa condição demobilidade do autor–editor que AdolfoCaminha participou da edição epublicação, senão de livros, mas deduas revistas e de um jornal, a saber: aRevista Moderna, de 1891, editada emFortaleza; o jornal O Diário, de 1892,também editado naquela capital e suaúltima realização no jornalismoliterário: a Nova Revista, de 1896,publicada no Rio de Janeiro. Portanto,podemos constatar que Adolfo Caminhateve a oportunidade de conhecerativamente o processo de produção deimpressos, fossem esses consideradospor ele como meios de fazer circular as

suas ideias e as ideias dos grupos ou demovimentos literários e políticos aosquais ele estava vinculado, fossem paralhe servir de mais uma fonte de renda,afinal, era preciso manter-se, o que elepretendeu fazer não somente com ojornalismo, mas com os próprios textosde crítica literária enfeixados por elesob o título de Cartas literárias, comoinformou Sabóia Ribeiro (1967, p.10):

Tinha, no mais alto grau, o recatoda sua intimidade e poucas vezesse abria com os outros para contá-la. Na última fase de sua vida – "afamília crescera, vieram os filhos,o ordenado tornava-se insuficientepara os mais urgentes gastos" –

ninguém, dos mais chegados a ele,suspeitava o que estava realmentepassando. "Os martírios dessa faseda sua vida são pungentes". Tiveraa idéia de lançar a Fôlha dosEstados, com vistas a ajudar oorçamento, mas fora obrigado adesistir. "Sem dinheiro nada sefaz", concluira. Pensou que, com apublicação em livro, das Cartasliterárias, do seu próprio bolso,conseguiria um êxito financeiro,pois elas obtiveram indiscutívelsucesso quando saídas na Gazetade Notícias; mas apenas sesacrificaria ainda mais, odinheiro não retornou. Assimentraram os dias de 1896. (grifos

nossos).

Vemos, portanto, que a relação entrecrítica literária, literatura ficcional ejornalismo literário ou jornalismo decirculação era um dos modosencontrados pelo autor para fazer-sepresente no sistema literário e com issogarantir algum lucro financeiro.Vemostambém que Adolfo Caminha pensou empublicar um outro jornal que teria onome de Fôlha dos Estados, mas foimalogrado em sua intenção, justamentepor lhe faltar dinheiro. Essa condiçãonão era diferente de tantos outros de suageração, que, mais e mais, se viramligados aos jornais e revistas, sendoesse fato até mesmo representado em

seus títulos de ficção; daí surgiram umbom número de personagens jornalistas,críticos literários, comentadores deobras, leitores e escritores como o épossível constatar, no caso específicode Adolfo Caminha, no seu romance deestréia: A normalista (Cenas do Ceará),de 1893. Nele, aparecem algumaspersonagens discutindo sobre literaturana redação da Província, um dos jornaisque movimentam a sua trama.

Em 1893, portanto, ano de publicaçãode A normalista, Adolfo Caminha jáestava familiarizado com o mundo dosimpressos jornalísticos, fosse nacondição de colaborador,2 como o foi,por exemplo, no jornal O Pão, da

Padaria Espiritual ou na condição deeditor, como oportunamenteapontaremos. Antes de seguir, é precisoconsiderar que grande parte dos jornaise revistas que circularam no Ceará dofinal do século XIX não contavam comuma grande estrutura. Alguns nãopassaram do primeiro exemplar ou seusnúmeros circularam com grandeirregularidade. Em muitos deles, umaúnica pessoa era responsável por fazertodo o trabalho de produção do jornal, oque significava produzir textos, captarinformações, preparar originais,ficando, a cargo de operáriostipográficos a sua diagramação eimpressão, que nem sempre tinha aqualidade garantida, muito mais pela

condição do maquinário existente noestado, do que pelo trabalho dosgráficos. Assim, boa parte dos jornais edas revistas que circulava naqueles idosanos do século XIX no Ceará e, emespecial, em Fortaleza era organizadapor um homem só.

Uma redação com um homem só

Como estamos acostumados a pensarnos jornais como grandes empresas,sempre à espera de notícias as maisdiversas, chegando de diferentes partesdo mundo, para que assim façam rodaras suas máquinas impressoras, pode-nosser bem difícil imaginar uma redaçãocom um único homem, um homem à

moda de um faz-tudo. No entanto, aleitura de O Diário nos leva a essaconclusão. O modelo de imprensa queconhecemos hoje tem uma história e,pelo menos no Brasil, a sua origem, sedeu com a chegada do século XX.Nelson Werneck Sodré (1999, p.1), naintrodução de sua História da imprensano Brasil, afirmou: "Por muitas razões,fáceis de referir e de demonstrar, ahistória da imprensa é a própria históriado desenvolvimento da sociedadecapitalista". No caso específico doBrasil do final do século XIX, járepublicano, essas mudanças estãosubmetidas às circunstâncias domomento, como também nos faz crerSodré:

A mudança de regime na alterou odesenvolvimento da imprensa. Osgrandes jornais continuaram osmesmos, com mais prestígio e forçaos republicanos, com maiscombatividade os monarquistas.Não surgiram de imediato grandesjornais novos: só em 1891apareceria o Jornal do Brasil.Multiplicaram-se os pequenos, osórgãos de vida efêmera, mas issosempre acontecera e continuaria aacontecer nas fases de agitação,desaparecendo em seguida.(ibidem, p.251)

Esse período, que vai do fim daMonarquia à primeira década da

República, Sodré o chamou de"esboço”, numa espécie de conceituaçãoevolucionista, mas também submetida àscondições econômicas, numa leituratipicamente marxista da produçãocapitalista e das condições de produçãoespecíficas da imprensa. Uma passagemirônica e bem característica desta idéiade "esboço”, ou seja, de algo em estadoainda indefinido é a que transcrevemosabaixo:

As inovações técnicas da imprensaprosseguirão em 1895, já os jornaisdefinindose com estruturaempresarial: aquelas inovações eesta estrutura estão intimamenteligadas. O primeiro prelo Derrey,

italiano, para impressão de 5000exemplares por hora, aparece nesseano; nesse ano aparecem tambémos primeiros clichês obtidos porzincografia, com os gravadoresAntônio Freitas e Antônio JoséGamarra, do Jornal do Brasil. Aprodução do jornal (porque, agora,já pode se falar assim) compreendevárias operações: "Preparadoassim, o jornal vai para as prensas,onde se tira a matriz; e, obtida esta,coloca-se no molde, em que sedespeja o chumbo quente, formandoo bloco de cada página. Pronta estaprimeira parte, a estereotipia, entraa folha nas prodigiosas máquinasrotativas Marinoni, máquinas que,

montadas no fundo do térreo doedifício, ao lado da rua doOuvidor, além de imprimir,contam e dobram, um por um,todos os exemplares que vãosaindo aos milheiros". Mas adistribuição continua sendo feitaem carroças. (ibidem, p.266, grifonosso)

Segundo Sodré, após essa fase viriaaquela que ele intitulou de "Empresa",isto é, o nascimento do que hojeconhecemos como a grande empresajornalística:

A passagem do século, assim,assinala, no Brasil, a transição dapequena à grande imprensa. Os

pequenos jornais, de estruturasimples, as folhas tipográficas,cedem lugar às empresasjornalísticas, com estruturaespecífica, dotadas de equipamentográfico necessário ao exercício desua função. Se é assim afetado oplano de produção, o da circulaçãotambém o é, alterando-se asrelações do jornal com oanunciante, com a política, com osleitores. Essa transição começaraantes do fim do século,naturalmente, quando se esboçara,mas fica bem marcada quando seabre a nova centúria. Estánaturalmente ligada àstransformações do país, em seu

conjunto, e, nele, à ascensãoburguesa, ao avanço das relaçõescapitalistas: a transformação naimprensa é um dos aspectos desseavanço; o jornal será, daí pordiante, empresa capitalista, demaior ou de menor porte. O jornalcomo empreendimento individual,como aventura isolada, desaparece,nas grandes cidades. Será relegadoao interior, onde sobreviverá,como tal, até os nossos dias. Umadas conseqüências imediatas dessatransição é a redução no número deperiódicos. (ibidem, p.274)

Assim como os sujeitos, práticas eobjetos ligados ao mundo do impresso,

essa história não é linear. Influenciadopelas ideias econômicas de uma leiturada sociedade, Sodré a compreende deforma mais complexa, ou seja, levandoem conta a situação interna de um paísque, só no século XIX, diferente doPeru, México e outros países decolonização espanhola, passou aproduzir impressos dos mais diversostipos: "A ascensão burguesa acompanha,necessariamente, o lentodesenvolvimento das relaçõescapitalistas no país e sofre tortuosoprocesso, que nada tem de contínuo eharmonioso" (ibidem, p.276).

No processo crescente detransformações que mudaria o tipo de

economia e um modo de ser e de estar,os jornais não passariam incólumes,pelo contrário. Tania Regina de Luca(2005, p.138), tratando das mudançasocorridas nos periódicos na virada doséculo XIX para o XX, afirmou:

Os jornais diáriosprofissionalizavam-se, sem perdero caráter punitivo e de intervençãona vida pública. Os novos métodosde impressão permitiramexpressivo aumento das tiragens,melhora da qualidade ebarateamento dos exemplares, queatingiam regiões cada vez maisdistantes graças ao avanço dossistemas de transportes, que

agilizavam o processo dedistribuição. Aos imperativosditados pela busca deprodutividade e lucro aliava-se aintenção de oferecer aosconsumidores uma mercadoriaatraente, visualmente aprimorada,capaz de atender aos anseios dacrescente classe média urbana edos novos grupos letrados.

O fato de que um homem só desse contade todo o trabalho da redação era bem ocaso de Adolfo Caminha, pois comovemos nas páginas de O Diário, elerespondia pela cargo de radactor-principal. Já o seu sócio – R. d'Oliveirae Silva – era o seu redactor-

proprietário. Essas informações seencontram não somente no cabeçalho dojornal, mas também nos recibos depagamentos dos impostos e nodocumento de concessão de licença doConselho Municipal de Fortaleza para aimpressão e circulação doperiódico.Também nas colunas do jornala informação a respeito dosresponsáveis e de seus cargos foireproduzida, como que marcando, deforma clara e bem definida para osleitores, a atribuição de cada um dosseus membros, esclarecendo, de ummodo nada sutil, a quem, pelo menos emtese, cabia a propriedade intelectual e aquem cabiam os supostos lucros:

A redacção d'O DIARIO, fazendo-se representar por seus principaesredactores, assignou hoje naIntendencia Municipal, no livrocompetente, o seguinte termo: Osabaixo assignados declaram ser osredactores do jornal O Diario quese publica nesta capital. Fortaleza,16 de Maio de 1892. ADOLPHOCAMINHA – Redactor principal.R. DE OLIVEIRA E SILVA –Redactor proprietario.3

A Adolfo Caminha caberia, portanto, aobrigação de redigir o jornal, detransformar textos recebidos ouredigidos por ele mesmo em artigos enotícias. Era seu o ofício de praticar a

edição do jornal, selecionando aquiloque lhe parecesse interessar aosleitores, o que os motivaria a comprar operiódico.

Os tempos começam a mudar

Ainda não estávamos nos tempo deplanificação das ações de produção dosbens de informação. O fato destacadoaqui dá-nos a ideia de como funcionavao processo de produção do própriojornal. Esse processo está ligado aoresultado final alcançado, seja do pontode vista estético, isto é, da qualidadetipográfica, mesmo que essa sejadelegada a outros, seja do ponto de vistaliterário, uma vez que o jornal se

ocupou, como veremos a seguir, emdivulgar também a literatura ficcionalem poesia e prosa, assim como notíciasdiárias, notas humorísticas, anúnciosdos mais diversos tipos. A imprensa doséculo XX vai tratar de tirar de cenaesse sujeito que fazia tudo e era tãocomum desde os primeiros anos daimprensa no Brasil:

A fatura dos matutinos começou aexigir gama variada decompetências, fruto da divisão dotrabalho e da especialização:repórteres, desenhistas, fotógrafos,articulistas, redatores, críticos,revisores, além dos operáriosencarregados da impressão

propriamente dita. Esses artíficesda imagem e da palavraencontravam na imprensaoportunidades deprofissionalização, conforme jádestacado. (Luca, 2005, p.138)

A relação entre escritores de ficção e ojornalismo era cada vez mais constante ecrescente. Se, de início, essa relação sedava com o objetivo de defender asideias de uma estética literária, porintermédio do órgão de um grupoespecífico, com o passar do tempo ecada vez mais com a entrada do Brasilna rota do comércio e da indústriainternacionais, esse fato foi-semodificando. A esse respeito afirmou

Tania Regina de Luca (2005, p.134):

O caráter doutrinário, a defesaapaixonada de idéias e aintervenção no espaço publicocaracterizaram a imprensabrasileira de grande parte doséculo XIX, que, é bom lembrar,contava com contingente diminutode leitores, tendo em vista asaltíssimas taxas de analfabetismo.Os aspectos comerciais daatividade eram secundários dianteda tarefa de interpor-se nos debatese dar publicidade às propostas, ouseja, divulgá-las e torná-lasconhecidas. A imprensa teve papelrelevante em momentos políticos

decisivos, como a Independência, aabdicação de D. Pedro I, aAbolição e a República.

De fato, a mecanização do processo deprodução, a transformação do jornal emuma empresa como outra qualqueraumentou o número de periódicos emcirculação, mas também aumentou aconcorrência e a competitividade.Aqueles que sabiam ler e escrever, e osfaziam bem, acharam nesse ramo maisuma possibilidade de remuneraçãomenos instável, considerando-se comoexemplo de instabilidade a incerteza davida de autor de literatura de ficção. Foiesse fato que levou muitos dos autoresbrasileiros a colaborarem com os

jornais. Essa relação pareceu tãomarcante à época, que não foram apenasos autores que passaram a circular nosjornais, a viver em suas redações, comose estivessem em casa, como o declarouOlavo Bilac ao substituir Machado deAssis na coluna de crônicas da Gazetade Notícias, do Rio de Janeiro. Osjornais também passaram a fazer parteda literatura. Ambos – texto jornalísticoe texto literário – passaram a conviverde forma mais intensa e articulada.

A literatura nos jornais; os jornais naliteratura

As redações funcionavam, comolivrarias, cafés, confeitarias e bares, de

ponto aglutinador da intelectualidadebrasileira, até mesmo nas capitais maisdistantes do poder como era o caso deFortaleza. Como já afirmamos, osjornais passaram também a se fazerpresentes nas páginas dos romancescomo mais um recurso a ser exploradoem nome da trama narrativa, daformação das personagens ou daformação dos demais elementos daprosa como o tempo, o espaço etc.Valelembrar aqui, como exemplo, o já citadoromance A normalista, de AdolfoCaminha. Nele, lemos a cena que aseguir reproduzimos:

O escritório da Província estavaquase deserto. Apenas o José

Pereira e o estudante [Zuza]conversavam amigavelmente,sentados defronte um do outro àmesa dos redatores, fumando,enquanto lá dentro, nos fundos ondeficavam as oficinas, os tipógrafoscompunham atarefados a matéria dodia.

Seriam duas horas da tarde. Ocalor abafava.

Um rapazinho raquítico, em mangasde camisa, com manchas de tinta norosto e um ar amolentado, veiotrazer as provas do expediente dogoverno.

– Falta matéria?, perguntou o José

Pereira encarando-o: 'Não sabia,não senhor, ia ver'. E saiu voltandoimediatamente: que o jornal estavacompleto.

– Bem, disse o Zuza, levantando-se, vou à casa do Sr. Guedes.Preciso acabar com isso.

– Mas olha, recomendou o redator,não vás fazer asneiras, hein?

– Não, não. A coisa é simples.Addio.

E retirou-se fazendo piruetas com abengala no ar.

É um criançola esse Zuza,

murmurou José Pereira molhando apena.

Imediatamente entrou o Castrinho,outro colaborador da Província,também poeta e amigo particular deJosé Pereira, autor das Floresagrestes, publicadas há dias e quetinham sido muito bem recebidaspela crítica indígena. Vinha trazer aresposta ao crítico do Cearenseque o chamara – plagiador de obrasalheias.

– Então, temos polêmica?,perguntou José Pereira semlevantar a cabeça, revendo asprovas.

– Por que não? Hei de provar aevidência que não preciso plagiar aninguém. Aqui está o primeiroartigo. É de arromba! (Caminha,1998, p.75)

Vemos nessa citação a articulação entrejornal, vida privada e literatura. Naredação da Província, as personagens seencontram para resolver os seus dramas,como o fez Zuza ao tratar do seu namorocom Maria do Carmo noticiado naspáginas da Matraca, outro periódicocitado no romance, uma daquelesjornalecos "immundos" aos quais sereferia Adolfo Caminha, e também comoo fez o Castrinho, ao buscar o revide deseu crítico que o acusara de plagiador

nas páginas do Cearense. Há na cenacitada uma preocupação excessiva emcaracterizar a redação do jornal. Omobiliário, a caracterização daspersonagens, tudo, enfim, quegeralmente se via na redação de umjornal foi usado para dar à cena efeitosde real, para usar aqui o conceito deRoland Barthes. O uso desse tipo derecurso não parece ser em vão. Aindaem A normalista temos mais uma cenaem que esse fato fica bem caracterizado:"Vendedores de jornais esperava aProvíncia, à porta da redação,inquietos, turbulentos, a questionar pordá cá aquela palha, e já se ouvia obarulho do prelo lá dentro, imprimindo afolha governista" (ibidem, p.77).

Não foi, porém, somente AdolfoCaminha que utilizou o cenário do jornalem seu romance citado. Em A conquista,romance de Coelho Neto, encontramosreferências explícitas ao jornal Cidadedo Rio, fundado por José do Patrocínio.É Brito Broca (2005, p.45) quem nos dánotícia do malogro dessa empresa:

A Cidade do Rio, jornal que elefundara e em que fizera a partemais aguda da campanhaabolicionista, de cujas sacadas sehabituara a discursar, já nãointeressava ao público. E tudo vaià matraca. Os redatores recebem,às vezes, algum dinheiro por meiode vales, enquanto o diretor

continua a aumentar-lhes osordenados hipotéticos eimaginários. Em 1900, a folha seacha instalada à rua do Sacramento,8, onde Patrocínio arrendara omaterial de uma empresatipográfica meio arruinada e doispavimentos do prédio. O tristeespetáculo da decadência dohomem reflete-se no jornal. Umdia, os redatores encontram oprédio fechado: por falta depagamento, o proprietário pusera-lhe as trancas na porta. Ninguémsabe onde anda Patrocínio nomomento. A folha está na iminênciade não sair nessa tarde. MasVivaldo Coaracy, um dos redatores

– de quem colho estas informações– consegue de Gaetano Segreto umavelha oficina abandonada, na ruaUruguaiana, tremendo ninho depulgas, onde improvisaram, aostrancos e barrancos, um númeropavorosamente mal impresso daCidade do Rio.

Além de Broca, a personagem AnselmoRibas ocupou-se da Cidade do Rio nacena final do citado romance Aconquista:

Anselmo procurou umas tiras e,afastando velhos ramilhetes, queentulhavam a sua mesa, poz-se aescrever machinalmente. Em baixo,na officina, os compositores

chalravam. Justamente terminava achronica e começava a rubricar onoticiário quando Patrocínioappareceu esbaforido com ochapéu derreado sobre a nuca.Atirou-lhe uma palmada ao hombroe sentou-se á secretaria procurandoalguma coisa nas gavetas.

– Então, José... Que vamos fazeragora?

– Hein? Escrevia, muito inclinado,de costas para o secretario.

– Qual é o teu programma?

– Que programma? Ergueu-se e,sorrindo, estendeu a mão: Dá cá um

cigarro. Perguntas que é o meuprogramma?

– Sim. Conquistaste o teu ideal eagora...?

– Agora?... E, rindo, inclinou-se aohombro do companheiro, dizendo-lhe ao ouvido: Agora vou ali aobanco com esta letra arranjardinheiro. (Coelho Neto, 1921,p.453-4)

Com os exemplos citados, seja no casodo romance de estreia de Caminha ounesse de Coelho Neto, na literatura dofinal do século XIX e início do XX,sobretudo em alguns títulos de forteconteúdo memorialístico, a relação entre

literatura e jornalismo foi estreitamenterepresentada. Os vínculos nesses casossão incontestáveis. As articulações entreum fazer e outro passaram a se fazerpresentes mais e mais. As personagenspassaram a ser leitoras de jornais, aacompanhar os dramas nacionais ou decasos específicos, às vezes a respeito dasua própria vida, pelas páginas dasfolhas da manhã ou da tarde. Já para osautores de literatura de ficção, eespecificamente no caso de AdolfoCaminha, a estratégia para vencer assanguessugas, o minotauro e osborradores era estar, ao mesmo tempo,em vários veículos, cultivando váriosgêneros fossem eles propriamenteliterários ou não.

Os escritores iam de pena na mãoescrevendo do conto à crônica,passando pelo romance, pela poesia,pela crítica, pelas colunas de humor,assinando o que escreviam com opróprio nome, com abreviaturas, compseudônimos, com criptônimos, às vezesinvertendo a ordem das iniciais de seunome, como o fez o autor das Cartasliterárias, na Gazeta de Notícias, aoassiná-las com C. A. em vez de A. C.,causando confusão quanto aoreconhecimento da autoria, comoobservou Tristão de Ataíde. Talvez tudoisso fosse feito tendo em consideraçãoum velho ditado da sabedoria popularque diz: Quem não aparece não élembrado.

Esse modo de fazer-se presente urdiauma malha coesa, como veremos aseguir ao demonstrarmos que entre osjornais O Diário, O Pão, O Operário eO Combate havia, senão uma relaçãoideológica, ao menos uma relação deordem prática, afinal foi das oficinasdestes dois últimos jornais que saiu oórgão dos Padeiros e ao qual se faziamconstantes referências naquele jornal deAdolfo Caminha. Essa rede de malhafina revela também uma rede deafinidades as mais diversas e revelaainda as condições materiais, atecnologia existente na cidade, os meiosde produção e as estratégias dedivulgação do material impresso. Erapreciso mostrar-se, então, que todos

falassem de todos, ou, pelo menosdaqueles com os quais havia pontos emcomum. Os jornais e revistas eramvitrines do mundo das letras.

Os jornais e revistas como vitrines

A participação do Brasil comoconsumidor de bens era cada vez maiorno final do século XIX. Em algumascidades, como Rio de Janeiro eFortaleza, esse período foiposteriormente denominado pelahistoriografia de Belle Époque. Osvapores traziam as novidades da vidaeuropeia para a capital do país e dosEstados. Com a ascensão de São Paulo,vieram os chamados tempos eufóricos,

juntamente com a inicianteindustrialização do país, para fazer ahistória entrar em um movimento maisacelerado, mudando modos de vida,agigantando as cidades, alargando oshorizontes e expectativas, criandoilusões, essas talvez já há muitocirculantes, como a de se estar nacapital do Rio de Janeiro como se essafora Paris, mesmo que, numa adaptaçãolinguística e circunstanciada,considerassem alguns de seus moradorestratar-se de uma Paris "em pontopequeno". Era o que dizia, por exemplo,o narrador do romance Tentação, deAdolfo Caminha (1979, p.10):

Figurava a Corte do Império uma

terra legendária de aventuras e demuito dinheiro, onde, com algumtrabalho, qualquer homenzinhopodia fazer fortuna em poucosanos, ou, quando mais não fosse,galgar posições, eminênciascobiçadas, conquistar nome –celebrizar-se. Devorava os jornaisdo Rio, na biblioteca; lia tudoquanto na grande capital sepublicava em prosa e verso; nãoera estranho ao movimentoliterário, aos saltos-mortais dapolítica, às artes; interessava-se,como republicano, pela saúdedo monarca e pelos escândalosmais ou menos ruidosos da Rua doOuvidor; enfim, o Rio de Janeiro

era, a seus olhos estáticos deprovinciano, a quintessência dacivilização – Paris em pontopequeno.

Desse modo, era preciso aproximar asrealidades diárias da cidade, buscarvitrinas para mostrá-la, o que nãosignificava expor somente o que haviade positivo. Era preciso mostrar o erro,julgá-lo e combatê-lo. Para tal, o meiomais prático parece ter sido odesenvolvimento dos jornais, dasrevistas, dos impressos em geral, unsmais do que os outros, criando assim umsetor industrializado, mecanizado,próximo do poder, fosse ele o poderpolítico, capital ou partidário, ou os três

de uma só vez.

Correspondente a toda ação há umareação, e assim surgiu também umaimprensa minoritária, de carátercombativo, uma imprensa crítica,satírica, sarcástica, que usava dosrecursos do humor para representaraspectos da vida política, social,cultural, entre ela, a vida literária,mesmo que essa opção levasse os seusrepresentantes, ou seja, os pequenosjornais de tiragem ínfima, à morteprematura. Tania Regina de Luca (2005,p.137), tratando da relação entreimprensa e lucros, afirmou:

A partir da segunda metade doséculo XIX, o Império desfrutou de

relativa tranqüilidade política e daprosperidade econômica advindado café. O mundo urbano expandia-se, os trilhos das ferroviasrasgaram as regiões maisprósperas, a navegação a vaporacelerava as trocas, as atividadescomerciais e os serviçoscomeçavam a se diversificar,contexto que a um só tempofavorecia e demandava acirculação de informação. Aliás,seus mecanismos de difusão foramaperfeiçoados com a invenção dotelégrafo e a posterior ligaçãoBrasil-Europa por cabo submarinº.A famosa fórmula "O últimopaquete trouxe a notícia..." foi

substituída pelos rapidíssimosinformes telegráficos.

A já citada aproximação dos autores deliteratura de ficção, fossem poetas ouprosadores, alguns deles tambémligados às lutas políticas, como o fim daescravidão, ideal da vida de José doPatrocínio como vimos no excertodestacado do romance de Coelho Neto,fez que eles tivessem experiênciastambém como editores, conhecendo deperto o mundo das tipografias, doslinotipos. Essa oportunidade nemsempre resultava em experiênciaspositivas, fosse no que diz respeito aoalcance artístico ou ao financeiro; assim,muito jornal ou revista, abertos no

desejo de fazer-se notar, de celebrizar-se e de lucrar economicamente,preenchendo a lacuna deixada pelaliteratura, fechavam as suas portas malpunham o primeiro número na rua.

De sucessos e de malogros, porém, sefez essa história, ao mesmo tempohistória de amor, ao mesmo tempohistória de ódio, mas história.Talvez,por isso mesmo, nem semprereconhecida como tal; afinal, comoafirma Tania Regina de Luca, ao tratarda prática dos historiadores em escrevernão somente a história da imprensa, masa história por meio da imprensa,"Reconhecia-se, portanto, a importânciade tais impressos e não era nova a

preocupação de escrever a História daimprensa, mas relutava-se em mobilizá-los para a escrita da História por meioda imprensa" (ibidem, p.111). Comotoda história, a da relação entreliteratura de ficção e jornalismo noBrasil do século XIX pede um fato, e,nesse caso, o melhor é demonstrar aexperiência de Adolfo Caminha comoeditor.

A experiência de O Diário

Adolfo Caminha editor de O Diário

Entre as atuações de Adolfo Caminhacomo editor destacaremos o seu trabalho

em O Diário e em A Nova Revista. Éimportante observar que O Diário foieditado por Caminha em 1892, portantodois anos antes de ele publicar o seuartigo intitulado "Editores", que é de1894, nas páginas da Gazeta deNotícias, do Rio de Janeiro. No caso deA Nova Revista, trata-se de umapublicação de 1896, exatamente doisanos após a publicação do artigo citado.Assim, podemos constatar não somenteduas experiências de edição, mas duasexperiências em momentos diferentes,ambas, porém, perpassadas por umareflexão do autor a respeito doseditores, o que significa também pensarem uma reflexão a respeito dascondições de produção da literatura e da

vida intelectual brasileiras. Valeressaltar que, enquanto a publicação deO Diário se deu em Fortaleza, a de ANova Revista se deu no Rio de Janeiro,ou seja, na capital do país onde,supostamente, as condições materiaispara que uma publicação literária oucomercial florescesse fossem bemmelhores.

Uma radiografia de O Diário

Nesse jornal, a tensão entre publicarliteratura e alcançar o lucro financeiromostra-se mais forte do que em A NovaRevista. A escolha de O Diário para serobjeto de nossa problematização eanálise deu-se, justamente, por ele se

encontrar no limiar do lucro comercial ea missão de divulgar a literatura a partirda publicação de sonetos, contos etc.Além de, em uma seção específica,divulgar o título das obras que lhe eramenvidas, o que também ocorreu em ANova Revista.

Publicado em Fortaleza, O Diário erauma "Folha da Tarde", cujo primeironúmero data de 16 de maio de 1892. Oseu último número, que é o 59º, data de4 de agosto de 1892, tendo, portanto, asua circulação durado menos de trêsmeses. Constituído de apenas quatropáginas, cada uma com três colunas,resultando no total de 12 colunas, ojornal possuía algumas seções fixas e

outras ditas livres, variando, portanto, oseu conteúdo segundo as circunstâncias.Essa situação produz o desaparecimentode seções e o aparecimento de outras aolongo dos seus 59 números.

Entre as seções fixas destacamos: oexpediente; o "Kalendário", sempreindicando o santo do dia e um fatohistórico relacionado à data; a seção"Balas e Bolas", na qual ainda nosdeteremos; "Bom Dia", seção em que osaniversariantes eram saudados; o"Cambio", dando o valor da moedacorrente; uma dita "Secção Livre" abertaa vários temas com textos na maioriadas vezes assinados por outros que nãoo redator-principal, o que já indica um

outro modo de ganhar dinheiro a partirda publicação de matérias ou notaspagas, o que também parece ocorrercom a citada coluna "Bom Dia"; umacoluna intitulada "Humorismo", comanedotas e piadas bem ao estilo dojornal O Pão, da Padaria Espiritual,além dos anúncios, que eram uma outrafonte de renda; a seção "Editaes", emque eram publicados os editais daThesouraria da Fazenda, repartiçãopública onde Adolfo Caminha trabalhouapós desligar-se da Marinha, o que jáevidencia relações entre fazeres erelações de amizades que seestabelecem em uma longa e densa redede contatos, que se intensifica à medidaque os sistemas sociais se relacionam,

entre eles o sistema de poder,econômico, literário.

Figura 7 – Primeira página do número 1do jornal O Diário Fortaleza, 16 de

maio de 1892. Biblioteca particular deSânzio de Azevedo.

Infelizmente, não sabemos ao certo se ocontato se deu por intermédio deCaminha ou de seu sócio ou ainda deambos, mas o certo é que havia umarelação entre aquela repartição públicae O Diário.

O jornal parecia aberto à diversidade denotícias fossem elas colhidas na própriacidade, quando as havia, ou colhidas emoutros jornais, o que dá a entender queO Diário era redigido e editado a partirda leitura de outros jornais, como

geralmente acontecia com as "folhas datarde", sendo essa uma maneira depreencher lacunas que a vida na pequenacidade não preenchia, mas também erauma estratégia para segurar osassinantes e leitores conquistados echamar a atenção daqueles que estavampor vir. Assim, encontramos nas suaspáginas expressões do tipo: "Lemos n'AProvíncia do Pará" (O Diário, n.1),"Extrahimos do Correio do Cariry" (ODiário, n.2); "Dispertou-nos a attençãoo anuncio inserto na Republica de 17corrente..." (O Diário, n.13); "Diz OTempo, da Capital Federal" (O Diário,n.14); "Extrahimos do Jornal do Brasil,de 11 de maio" (O Diário, n.15); "OJornal Brazil da capital federal,

publicou a seguinte notícia" (O Diário,n.18). É importante destacar esse fato,tanto como estratégia comercial comoforma de diálogo com outros periódicos,notadamente os da capital do país.

A esses exemplos de entrelaçamento deleituras e escrita, poderíamos juntarmuitos outros como as seguidas seçõesintituladas "Tellegramas", cujo subtítuloera: "Serviço especial d'O Diario".Essa seção trazia um noticiário rápido,curto e preciso como o era de esperarpelo vínculo com a tecnologia deinformação então vigente: o telegrama.A respeito dessa seção lemos:

O Diario do Maranhão, a folhamais antiga d'aquelle Estado e um

dos jornaes mais conceituados donorte, acaba de contratar conosco apermuta de notícias telegraphicas.

Correspondente em Maranhão doJornal do Commercio do Rio, onosso colega transmitir-nos-á pelotelegrapho as novidades de maiorvulto, quer da CapitalFederal, querdos Estados do norte, o que será degrandes vantagens para o publicodesta capital e, em particular, paraos nossos assignantes.

Neutros em politica, daremospublicação a todos os telegrammasdo nosso illustre correspondente,satisfazendo assim, plenamente, a

curiosidade publica até agoraobrigada a julgar os fatos portelegrammas de cunho oficial.4

Vemos então, que os redatores de ODiário procuravam mostrar o jornalcomo participante de uma conceituadarede de comunicação, destacandosempre que as informações vindas deoutros jornais, como o que vemos nacitação, seriam "de grandes vantagenspara o público desta capital e emparticular, para os nossos assinantes".Isso evidencia e reforça a estratégia deconservar as assinaturas e conseguiroutras novas. Certamente, essestelegramas com o objetivo de mostrar aoutra face de fatos ocorridos no país

fizeram com que O Diário fosse vistocomo uma folha não tão neutra empolítica ou indicava que o jornalencontrou estratégias para noticiar fatospolíticos.

No expediente eram divulgadas asmodalidades e os valores dasassinaturas. A assinatura semestral, porexemplo, custava para o morador dacapital cearense 5$000 (cinco mil réis)e para o do interior do estado 5$500(cinco mil e quinhentos réis); já para osassinantes de fora do estado, aassinatura era anual e custava 11$000(onze mil réis). Os números avulsoscustavam 40 rs (quarenta réis) e osnúmeros atrasados, chamados de

anteriores, custavam o dobro daqueles,ou seja, 80 rs (oitenta réis). Porém, no12º número, os editores deram aos seusleitores da capital do estado apossibilidade da assinatura portrimestre, o que já denota uma mudançanas estratégias de venda, possivelmenteocasionada pela recepção do periódicoaté então.

De fato, a estratégia de venda não ficourestrita à assinatura. No número dois dojornal encontramos o seguinte anúncio:"Precisa-se de um menino paradistribuir 'O Diario'" (grifo nosso). Seaté aquele número o problema eraapenas de distribuição, o que nos dá aentender que houve um bom número de

assinaturas do periódico de Caminha ed'Oliveira, mais à frente veremos que oproblema era bem outro. Nos números 9,11 e 13 encontramos um outro anúncionos seguintes termos: "Precisamos demeninos para vender 'O Diario'" (grifosnosso). Esse fato denota, como jádissemos, uma mudança na estratégia devenda, uma vez que os meninosvendedores de jornal, também chamadosde gazeteiros, vendiam números avulsos,gritando-os nas ruas aos berros paratranseuntes e moradores. É importantemostrar aqui que esta estratégia devenda e o sujeito que a realizava, ouseja, o gazeteiro, também está presentena ficção de Adolfo Caminha (1998,p.38), mais precisamente em seu

romance A normalista: "O dia seguinteera domingo. Todos em casa doamanuense acordava muito bem-dispostos. Havia missa cantada na Sé.Espocavam foguetes e repicavam sinos.Meninos apregoavam numa voz cantadaa Matraca a 40 réis!".

Se inicialmente O Diário necessitava deapenas um menino, como grifamos, elepassa, logo em seguida, a precisar demeninos, e não somente para a suadistribuição, mas sim para a sua venda,indicando o malogro da estratégia maistradicional, isto é, as assinaturas. Eesses indícios são confirmados noeditorial do último número do periódicointitulado "A verdade no caso", datado

de 4 de agosto de 1892, pois neleencontramos a seguinte afirmação:

este publico, com raras e louváveisexcepções, recusa pagar 3$000reis pela assignatura de um jornalque lhe foi entregue pontualmente,e, o que é mais, este publico, tãocivilisado e tão inteligente, tem acoragem inaudita, o incríveldesplante de pretextar que nósexploramos, quando é certo que atéhoje só temos tido muito trabalho ealgum prejuiso com a empreza queousamos levantar! (itálicos doautor; negritos nossos)

Voltemos, porém, à primeira página do

jornal. Vemos também no expedienteque os redatores pretendiam fazerchegar o jornal às outras praças além dacapital cearense, como deixam entenderas assinaturas. E parecem terconseguido, senão pela forma citada,mas divulgando o periódico queeditavam e as ideias que difundiam,enviando-o a outros órgãos de imprensa,como nos faz pensar a seção "Nós e aimprensa", que dava notícia dorecebimento de O Diário por jornais dascidades do interior cearense comoSobral,Viçosa e a região do Cariri, enas capitais de outros Estados: Manaus,Maceió, Rio de Janeiro, São Luís, alémde ser recebido por jornais de Fortalezacomo O Operário, de cuja tipografia

saíram alguns números de O Pão comoveremos a seguir, A Republica, AVerdade e Silva Jardim.

A leitura atenta nos faz considerar queas pretensões de O Diário eram aindamaiores como podemos constatar aofinal de um dos comentários da seçãointitulada de "OS SETE DIAS –CRHRONIQUETA" no número 7, de 23de maio de 1892:

Indubitavelmente a questão do dia éo apparecimento d'O DIARIO.Modéstia á parte.

O DIARIO veio quebrar amonotonia da vida cearense.

Um jornalsinho alegre, neutro empolitica (e isto é tudo!) noticioso,muitissimo noticioso, interessando-se vivamente por tudo quanto dizrespeito ao commercio e progressodo Ceará, tratando as questões comcriterio e independencia – quemelhor presente podia ter o publicod'esta capital?

E não é tudo; muito breve ODIARIO terá correspondênciaespecial do Rio deJaneiro e até deParis e Lisboa!

Ahi está porque o acontecimento demaior importância na ultimasemana foi O DIARIO, folha datarde a 40 réis. (grifo nosso)

Essas pretensões parecem verdadeirosdevaneios diante de problemas com adistribuição, a venda das assinaturas e aimpressão do jornal, sem falar deproblemas na qualidade gráfica que,somente aos poucos, ia sendo melhoradae ainda assim era deficiente, fosse pelosmeios existentes, possivelmenteprecários, fosse pela falta de recursosfinanceiros para oferecer um material demelhor qualidade ao seu público leitor.Certamente, a pretensão de tercorrespondentes naquelas cidades foiuma estratégia para garantir a fidelidadedos leitores já conquistados e, também,atrair aqueles que estavam porconquistar, usando como recurso o apelo

a tudo que fosse importado, incluindo asnotícias, dando ao público fortalezensea oportunidade de conhecer o que sepassava em cidades de grande porte e devida mais movimentada, pois semprehavia a queixa de que a vida na capitalcearense era monótona.

Logicamente, as cidades escolhidas nãopoderiam ser outras – Rio de Janeiro,Lisboa e Paris. As três cidades eramfortes referências para o Ceará no finaldo século XIX, pois delas vinham asmais diversas novidades trazidas peloúltimo paquete. Os intelectuais, porexemplo, aguardavam os títulos maisrecentes publicados naquelas terras paraonde desejavam ir, sobretudo Paris. Rio

de Janeiro e Paris eram como uma pontepara o sucesso nacional e internacional.Lisboa representava o meio do caminhoou era uma alternativa ante a hegemoniada influência francesa no Brasil do finaldo século XIX, hegemonia essa que seestendeu até pelo menos o final daSegunda Grande Guerra, quando o paísjá passou a viver sob a influência dosEstados Unidos e o seu american way oflife.

A influência cultural do país de Balzac,Flaubert, Zola e outros era tanta, queBrito Broca fala em uma bebida – aparisina – tomada por aquelesbrasileiros egressos de Paris, maisespecificamente por Olavo Bilac, que a

contragosto teve que deixar a Citélumière...

Mas quantos, depois de haverdesfrutado de Paris todas asdelícias e sortilégios,desembarcaram no Cais Pharoux atrautear o último couplet do RatMort! Bilac parte todos os anos,regressando sempre com um desejoúnico: o de partir de novo. Fizera aprimeira viagem em 1891, comocorrespondente da Cidade do Rio.De Paris escreve a Max Fleuiss,aludindo ao Brasil como a umaCafraria Portuguesa, que agenerosidade dos povos persistiaem chamar de país civilizado; para

em outra cata lhe fazer perguntasassim: "Como vai essa terraignóbil?" Acabava de conhecer Eçade Queirós na casa de EduardoPrado, e parecia querer imitá-lo namaneira pela qual o romancistacostumava referir-se a Portugal. Aoregressar dessa viagem, Bilacmostrara-se tão dépaysé noambiente brasileiro, que chegou asugerir a Artur Azevedo essecomentário no Correio do Povo:"O nosso poeta está seriamenteintoxicado" – dizia o cronista,noticiando-lhe o regresso –,"ingeriu pantagruélicas doses de'parisina' a famosa bebida de quefalava Charles Nordier, e agora

não há volta a dar-lhe. Se ficar aquia passear, entre o beco das Canelase a rua da Vala, morre da pior danostalgias, a nostalgia de Paris".(Broca, 2005, p.143-4).

Se no Rio de Janeiro escritores eintelectuais sofriam de tal influência, omesmo podemos afirmar a respeito dosintelectuais e escritores fortalezenses;afinal, pelo menos uma parcela maisabastada dos moradores da capitalcearense vivia, como demonstraSebastião Rogério Ponte (1999, p.206),a sua Belle Époque, importando,diretamente de Paris, o dernier cri doscostumes, da moda, das letras e dasnotícias, pois era preciso regenerar ruas,

corpos e mentes; desse modo esperava-se constituir uma nova ordem social,dando origem a casos semelhantes comoaquele citado a respeito de Olavo Bilac,chegando a situações às vezes hilárias,às vezes trágicas, como aquelas quemarcaram a vida de Bembém daGarapeira e a do poeta José Albano.

O Diário demonstra bem essainfluência, como, mais adiante,constataremos na problematização eanálise dos seus anúncios comerciais.Além de civilizar mentes e corpos, erapreciso civilizar a cidade, suas ruas epraças, dotá-la de equipamentos atéentão inexistentes. Esses equipamentoseram requeridos por um novo modelo de

vida; eles eram tidos como necessidadesfundamentais para a cidade que crescia.Eram produtos e serviços os maisdiversos que países industrializados,como a França e a Inglaterra, estavamprontos para vender fosse porintermédio de casas importadoras, comoa casa Boris Frères, de judeus franceses,ou por implantação de companhias deenergia e transporte público cujo capitalera de origem inglesa.

A esse fato o jornal O Diário nãopassou incólume, como podemosconstatar nos números 56 e 57. Noeditorial do número 56, de 28 de julhode 1892, por exemplo, reclamava-se anecessidade de um teatro para vencer a

monotonia da vida local. Em Anormalista, o narrador pinta cenas damonotonia em que Fortaleza viviamergulhada:

A cidade permanecia na suacostumada quietação provinciana,muito cheia de claridade,bocejando preguiçosamente debraços cruzados, à espera doProgresso. Suava-se por todos osporos e respirava-se a custo,debaixo de uma atmosferaequatorial, acabrunhadora.Estalava a distância, num ritmocadenciado e monótono, o cantoestridente e metálico de umaaraponga, cujo eco repercutia em

todo o âmbito da pequena capitalcearense. (Caminha, 1998, p.77)

Zuza, que morava no Recife, também sequeixava da monotonia da vida local,como podemos constatar nesta cena emque o narrador fala pela personagem:

Uma vidinha estúpida aquela!Pensava o estudante estedendo-sena rede. Morria-se de tédio e calor.Vieram-lhe saudades do Recife.Oh! O Recife, o Prado aosdomingos, os passeios, os belospiqueniques a Caxangá... Lembrou-se da sua última conquista amorosa– a Rosita, uma espanhola comquem estivera seguramente seismeses. Um peixão! Morava na

Madalena. Vira-a uma vez noteatrinho da Nova Hamburgo,sozinha num camarote, muito bemvestida, com um rico leque deplumas, anéis de brilhante,esplêndida: era argentina. (ibidem,p.78)

Essa queixa de monotonia era uma dasmais recorrentes. Assim, a exigência deum teatro e de companhias teatrais serepetia constantemente. Não parece serum acaso que Zuza tivesse conhecidoRosita em um teatro. Assim, o teatro eratambém o espaço de socializaçãoconveniente para os novos tempos. Naspáginas de O Diário reclamava-setambém da ausência de grandes

companhias de artistas na capitalcearense: "Cada vez accentua-se mais anecessidade de um theatro nesta capitalonde a vida ordinariamente é tãomonótona, sem outros atrativos que nãoo Passeio Publico e as sociedadesdramaticas particulares que nãosatisfazem as exigências da sociedadecearense".

Observemos nessa citação que aconstrução do teatro foi apresentadacomo uma necessidade, como o foitambém a presença de grandecompanhias artísticas, numa nítidavontade de inserir a vida culturalcearense numa estrutura que não somenteaquela já conhecida e que não agradava

aos apreciadores da arte teatral, mesmoque isso ocasionasse algum desagradoem determinados setores, como emalguns padeiros da Padaria Espiritual,entre eles o próprio Adolfo Caminha,que, como vimos, contestou o supostoefeito benéfico da importação culturalna cultura cearense e, em especial, nafortalezense. Essa necessidade deconstruir um teatro digno de uma cidadeque se desejava grande e moderna só foicontemplada em 1910; portanto, já naprimeira década do século XX, quandose deu a construção do Teatro José deAlencar existente até hoje na regiãocentral de Fortaleza. Ele mesmo é umexemplo da presença do capital inglêsno Ceará, pois sua estrutura de ferro

fundido era característica dasconstruções que a Inglaterra exportoupara diversos países à época.

No número 57, de 29 de julho de 1892,encontramos um editorial com o título"Civilisemo-nos", que colocou umaoutra necessidade urgente para a capitalcearense "a creação de um asylo demendicidade em condições de abrigar esoccorer a indigencia desvalida quegeme por estas ruas a mendigar o pão decada dia". Essa situação colocava emcena a miséria em todos os palcos dacidade, mostrando que a Belle Époquenão era bela para todos. Esse era umaespécie de teatro que horrorizava asclasses mais abastadas, sobretudo nos

logradouros onde se concentrava essacamada da população muito maispreocupada em concorrer com odinheiro e o gosto para tornar-se, cadavez mais, próxima de um modo de vidadistante, cujo empecilho maior seria atravessia do Atlântico, o que a levariaao prazer de viver em Paris. Como umaviagem não era possível a todos osbolsos, procurava-se reproduzir Paris, àmedida do possível, na taba de Alencar.

Aparentemente, atento aos gostos dasdiversas camadas da sociedade cearenseà época, O Diário dava uma marteladano cravo e outra na ferradura, livrandosedo modelo de vida burguês, masentendendo a necessidade de

equipamentos que movimentariam a vidacultural da cidade, sem esquecer deexpor as tensões existentes em seuterritório. A cidade que se vestiasegundo os modelos franceses, copiadosdas revistas que chegavam nos vaporesque cortavam o país de Norte a Sul,muitos deles com suas chegadas epartidas anunciadas em O Diário, era amesma que deparava com retirantesfamintos, mendigos andrajosos, pedintesde todos os tipos, variolosos ebexiguentos, o que colocava em chequea sua tão desejada Belle Époque. Oquadro que justificava a solicitação deuma asilo de mendicidade foi pintadocom traços e cores fortes:

Todos nós somos testemunhas dasscenas de miseria que diariamentese passam nas ruas da capitalcearense; mal amanhece o diasomos encommodados por vozesfamintas que nos entram em lufadaspela porta a dentro suplicando umesmola. Grande numero demendigos, uns em deploravelestado de nudez, outros arrastando-se a custo, enchem os adros dasegrejas implorando a caridadepublica, perseguindo os devotos,atordoando os ouvidos dos crentes.

Aos domingos, depois da missa,maior é a vozeria á porta dasegrejas. Que isto se observe em

épocha de secca, em consequenciada immigração do centro,compreende-se, mas em temposnormaes significa apenas quenenhuma capital de certa ordempóde dispensar um asylo demendicidade prompto sempre asoccorer a pobreza desamparada.

Adolfo Caminha não viveria tanto paraver ou ter notícias de Fortaleza calçadaem botas francesas. Sua morte prematurao impediu de chegar ao século XX,quando mudanças estruturais de maiormonta marcaram a então pequenacidade, fazendo-a transbordar para alémdaquele quadrilátero inicial que forapalco de seu nascimento e teatro de seus

dramas e comédias. Tratando dessastransformações afirmou SebastiãoRogério Ponte (1999, p.16):

Em Fortaleza, o movimento deremodelação urbana impulsionou-se com o Mercado de Ferro (1897),o "aformoseamento" das principaispraças (1902-3) e a construção dorequintado Teatro José de Alencar(1910). A onda remodeladoraacabou por conferir à zona centralda cidade um harmonioso conjuntourbano, complementada com aedificação de mansões, prédiospúblicos e dois grandes cinemas –em sua maioria, construçõesmarcadas pelo ecletismo

arquitetônico, estilo então em vogano país.

Enquanto isso, a compulsão emsanear a capital e higienizar apopulação aprofundava-se atravésde medidas como a implantação doserviço de abastecimento d'agua[sic] e esgotos (concluído em1924), a vacinação obrigatória, oInstituto de Assistência e Proteçãoà Infância (1913), e inspeçõessanitárias a domicílio. Por outrolado, as tentativas de controlar ocrescente contingente de pobresintensificaram-se com campanhasde erradicação da mendicânciaurbana, novas instituições

assistencialistas, organização depoliciamento específico paraFortaleza, e de colônias penaispara a recuperação da delinqüênciaadulta e infantil pelo trabalho aoar-livre ou em oficinas.

Ainda na sua primeira página, O Diáriotrazia uma espécie de editorial, tratandoao longo da sua existência dos maisvariados assuntos – a abertura dostrabalhos do congresso; a emissão devales na falta de moedas de menor valordestinadas ao troco das compras, osafamados e abominados "cartões"; oserviço doméstico; a saúde pública; onaufrágio do couraçado Solimões; noqual faleceu Alfredo Peixoto, autor de

Memórias de um náufrago; poesias; aeducação doméstica; a vacinação contraa varíola; o desabamento de doisprédios na rua do Carmo, no Rio deJaneiro; a revolução do Mato Grosso; asituação do Brasil sob o governo deFloriano Peixoto; a indústria cearense,destacadamente a indústria de vinho decaju; o imposto do fumo; as finanças doBrasil; o naufrágio do vapor Alcântara;a migração de cearenses para o Estadodo Amazonas e para a capital federal; odesterro de José do Patrocínio; aConstituição; a morte do Dr. MouraBrasil; algumas notícias do júri; anecessidade de um teatro para a capitalcearense e de um asilo de mendicidade,como vimos anteriormente, e por último,

a ocorrência da morte anunciada dopróprio jornal, encerrando, assim, a suacarreira.

O programa de O Diário

O editorial do número 1 era o programade apresentação do periódico, do qualdestacamos o fato de esse já se mostrarconsciente de quão difícil era manter-seem funcionamento, parecendo prever ofuturo malogro:

Nada mais problemático que ofuturo de um jornal de província,como este que ora apresentamos aopublico em formato pequeno, semprograma político, sem odiospartidários nem ambições

inconfessáveis, modesto, nascidono silencio e na obscuridade, etendo como unico objectivopromover o bem estar do povo e oengrandecimento da pátria.

Diferentemente do que se costumaafirmar a respeito da inaptidão dosartistas para os negócios, AdolfoCaminha parecia estar consciente dasdificuldades e dos requisitos paradesenvolver um empreendimentojornalístico em Fortaleza: "A primeiracondição para que um jornal tenha vidalonga e prospera em um meiorelativamente pobre qual o nosso –sabemol-o – é que elle represente osinteresses de qualquer facção politica".

E ao se dizer conhecedor desse fato, vaialém, conceituando a seu modo apolítica e a relação dessa com aimprensa:

Entre nós a política é como umadoença epidêmica – apodera-sesorrateiramente do individuo semque elle aperceba-se de que estasendo contaminado talvez pelomais cruel de todos os vicios;transforma-lhe subitamente o modode pensar e agir, empede-lhe osmovimentos livres e espontâneos,subordina-o ao interesse pessoal eprende-o a uma cadeia impossívelde romper.

O fato de O Diário se dizer neutro em

política foi bastante destacado pelosdemais jornais, como é possívelconstatar na já citada seção "Nós e aimprensa", pois não são poucos osperiódicos que realçam este ponto doseu programa, chegando mesmo areproduzir parte do texto, como o fez,por exemplo, A República: "O novelcampeão [referindo-se ao O Diário]5

promette completa neutralidade empolitica e plena defeza aos interessespúblicos. Desejamos-lhe longaexistência". A esse exemplo podemosjuntar o do jornal O Operário, que, apóssaudar o intento de Caminha ed'Oliveira, afirmou: "Ao collegaenviamos o abraço de camaradagem,desejando-lhe sua prosperidade e

persistência no seu programma para quenão resvale na valla commum".6 Essa"valla commum" era a da defesa deinteresses de partidos políticos.

A pressão política

Antes de continuar com aproblematização e análise desse jornaleditado por Adolfo Caminha, ésignificativo mostrar que essa mesmacrítica à influência do poder políticopartidário fez-se sentir também nosescritores ligados ao Clube Literário,associação fundada em Fortaleza em1886, cujo órgão foi a revista AQuinzena. Esse periódico teve no total30 números, que circularam na capital

cearense entre os meses de janeiro de1887 e junho de 1888. No editorial donúmero 1, datado de 15 de janeiro de1887, lemos: "E, entretanto, é aimprensa partidária quem abre caminhopara os empregos, quem sagrabeneméritos os amigos, quem traz pelarua da amargura os adversário, queminstitue tenentecoroneis e destituedelegados".7

Diante desse fato, ou seja, dapermanência de entraves de todas asordens e de uma ordem específica – apolítica –, parece-nos válido perguntar:então, como se comportariam osredatores de O Diário? O que fariampara driblar a influência do jogo

político que parecia tanto incomodá-lose incomodar aos demais jornais que sepretendiam como livres das taisinfluências políticas?Vejamos o que nosdiz o programa do periódico a esserespeito: "O DIARIO, porem, terábastante energia moral para não deixar-se dominar por interesses individuaes,não afastando-se nunca das boas normasdo jornalismo independente ecriterioso".

Pode parecer estranho que Caminha ed'Oliveira acreditassem na neutralidadepolítica. Mas, certamente, eles estavamtratando da política partidária, o que, decerto modo, nos faz retomar a ideiaapresentada anteriormente de que

Adolfo Caminha era um dos "paladinosmalogrados", ou seja, um dosintelectuais decepcionados com o rumoque tomou o Brasil após o 15 denovembro e a adoção de um tipo derepública bem diferente do quedesejavam as classes letradas domovimento republicano, como nosinformam Nicolau Sevcenko e JoséMurilo de Carvalho. Vemos nessacitação que a situação era fundamentadaem aspectos morais, numa mistura debrio, decoro, ética e tudo o mais queformalizasse o programa.

Contando apenas com essas armas ediante dessas circunstâncias, asalternativas de Caminha e d'Oliveira não

pareciam ser muitas. Restando, porexemplo, apelar para a solidariedadedos jornais que também professassem amesma crença ou dela mais seaproximassem, como que procurandounir-se numa espécie de grupo dejornais não-políticos. Talvez, nãobanalizando aqui um conceito, bemcomo os sujeitos, as práticas e osobjetos que o cercam e o conformam,essa fosse uma característica em comum,ao menos de um grupos específico, doque temos chamado, quaseindiscriminadamente, de intelectuais e,ainda mais precisamente, dosintelectuais cearense à época em queAdolfo Caminha editava O Diário.Ainda a esse propósito, lemos: "Aos

collegas da imprensa cearense nadamais pedimos senão os conselhos daexperiência". O coletivo dos "collegasda imprensa" parece reforçar bem essaideia. Restava também apelar para opovo, usando como recursoscaracterísticas que se supunha ou sedesejava serem de todos: "Dar-nos-emos por felizes si durante a nossapenosa peregrinação no mundo dojornalismo, merecermos a symphatia dopovo cearense, tradicionalmentegeneroso e hospitaleiro". Porém, comolemos anteriormente, a hospitalidadenão foi das melhores e o periódico,como já sabemos, não durou muito. Masa concorrência com os periódicos departidos ou grupos políticos não era a

única.

A concorrência dos "pasquinsimmundos"

Certamente, não foi fácil manter ODiário na praça, pois naquele mesmoano surgiram em Fortaleza doze outrosjornais, alguns de vida efêmera, com umúnico número circulando entre osleitores, alguns desses doze eramvoltados para a sátira ou para a críticapolítica com tom jocoso, com o foi, porexemplo, A Cartola, cujo redatorchamava-se Vago e os responsáveiseram Os Sete Phantasmas. Além de ACartola, que andava fazendo a cabeçados leitores, O Bemtevi distribuía o seu

canto e não diferente do primeiro jornalcitado era também humorístico: "Dizia-se orgam da chicana. Redactores,Mundo, Diabo e Carne" (Studart,1908).8 Se havia dificuldade de todas asordens para fazer imprimir osperiódicos, chega a ser incompreensívelque tantos títulos circulassem porFortaleza naquele período. Para AdolfoCaminha, a leitura desses jornais era oindício de que o público, que elechamara ironicamente de civilizado einteligente, era bem outra coisa:

Este publico, que compra e lêavidamente o Charuto, o Bemtevi etantos pasquins immundos que porahi pullulam, verdadeira affronta

ao decoro social, e que não raroencontramos nas casas de familiade envolta com livros escolares eoutros objetos preciosos; estepublico, que sabe applaudirpalhaços de circos com umenthusiasmo verdadeiramenteridículo; este publico não sabe oufinge ignorar que a imprensa, talqual comprehendemol-a, é uma dasmais nobres missões da qualdepende grande porção defelicidade para a collectividadehumana.

Vale destacar, aqui, que esses jornaisque Adolfo Caminha considerava"immundos" também participaram do

seu romance A normalista, no qual aMatraca ajudou a compor o caráter doCeará Moleque, ao qual Maria doCarmo e Lídia fazemreferência.Vejamos como a Matraca,título por si só significativo desse tipode jornal, se fez presente na trama doromance citado:

O dia seguinte era domingo. Todosem casa do amanuense acordavammuito bem-dispostos. Havia missacantada na Sé. Espocavam foguetese repicavam sinos. Meninosapregoavam numa voz cantada aMatraca a 40 réis! – um jornalecoimundo que falava da vida alheia eque por duas vezes trouxera

sujidades contra João da Mata.Maria do Carmo quis ver o quedizia a Matraca, apesar de opadrinho ter proibidoexpressamente a entrada dopasquim em sua casa. Ali só lheentrava a Província, dissera ele;isso mesmo porque o José Pereiranão exigia pagamento de assinatura.O mais era uma súcia de papéisnojentos que só serviam para... –Maria deu um pulo até a casa daviúva Campelo e aí pôde comprara Matraca. O padrinho estava nobanho. – O namoro do Trilho deFerro!, gritavam os vendedores.Maria teve um palpite. Certoaquilo era com ela. Que felicidade

de o padrinho estar no banho!Pagou o menino, pedindo-lhe peloamor de Deus que não gritasse maiso namoro do Trilho de Ferro.Abriu o jornal ansiosa. Que horror!Havia, com efeito, uma piada sobreela e o Zuza. Mais que depressacorreu a mostrar à Lídia.

– Estás vendo, menina? Lê istoaqui. E apontou com o dedo. Eramuns versos de pé de viola quecontavam o recente namoro deZuza:

A normalista do Trilho ex-irmã de caridadeestá caída pelo filhoe um titular da cidade

O rapazola é galantee usa flor na botoeira D. Juan feito estudante a namorar um freira...Eis por que, caros leitores, eu digo como o Bahia– Falem baixo, minhas flores,Senão... a chubata chia!...(Caminha, 1998, p.38-9, grifonosso)

Vemos por essa citação que AdolfoCaminha, seja no texto de O Diário, sejano romance A normalista, usa o mesmoadjetivo – "immundo" – para qualificarum certo tipo de jornal que foi bempresente na época. Vemos também que ovalor da Matraca era o mesmo de O

Diário: 40 rs (quarenta réis). Naeconomia do romance de estreia deCaminha, essa cena é capital parademonstrar o rumo que o supostonamoro das duas personagens – Mariado Carmo e Zuza – vai tomar. Nessetrecho há também o encontro de duaspráticas de leitura: a leitura em silêncioe a leitura em voz alta, como práticasdistintas, unidas nesta cena para dar-lhecontornos mais reais, utilizando comorecurso a poesia popular das quadrinhasde pé-de-viola, que encontraremostambém no jornal O Diário.

Um Zé Pacato não tão pacato assim oucontrovérsias em volta do nome

Estas quadrinhas podem ser encontradasem uma das já citadas seções fixas de ODiário, intitulada "Balas e Bolas". Elaseram assinadas por um colaborador dojornal, cujo pseudônimo era Zé Pacato eque assim se apresentou no primeironúmero do periódico:

Ora bolas!... Ora balas! Eis-me aqui as cabriolas, Posso agora, sem viral-as, Minhas balas, minhas bolas...

Deu-me agora nas violas, Inventar esta secção,Para balas... para bolas... Carambolas... que me dão!

O meu programma

É este sem mais: Fazer versosQue dem-me fama.

E sendo, leitor assim Quero que a elas leitora Rimando a canção sonora, Bondosa, goste de mim.

E eu fugindo agora della Mais ligeiro do que um gatoHumilde, sem mais aquella Me assigno de

ZÉ PACATO

Esse Zé Pacato assinou também, comopodemos constatar no número 17 de ODiário, de 4 de junho de 1892, um

poema intitulado "A flor do leque",dedicado a M. Carvalho, que nos pareceser de um livro chamado Musgos ealgas, cujo autor ainda nãoidentificamos. Porém, aqui é precisoconsiderar um outro fato. Seanteriormente os editores de O Diáriodesejaram garantir um públicoconquistado e atrair um outro que semostrava interessado por notícias vindasdo Rio de Janeiro, Lisboa e Paris, comouma estratégia de fazer aumentar a rendae garantir os lucros da empresa, emseguida uma outra estratégia foi tomada,qual seja, a de trazer para si aquelepúblico que consumia as mesmasjocosidades dos jornais que AdolfoCaminha considerara como immundos,

afinal a linguagem de Zé Pacato era bemdiferente daquela usada por outroscolaboradores de O Diário,diferenciando-se, logicamente, norecurso formal, isto é, utilizando dequadrinhas populares em vez, porexemplo, dos sonetos que tambémestavam presentes no jornal.

É importante destacar que esse tipo depoesia popular era muito mais presentenos jornais que Adolfo Caminhaconsiderara como immundos, uma vezque se prestavam à sátira, utilizando,entre outros recursos, numa maior esuposta liberdade de escrita e criaçãode imagens, a ironia. Vale destacartambém que o programa de Zé Pacato é

alcançar a fama, fazendo versos queatraíssem a atenção de leitores eleitoras, sendo essas tambémcontempladas, como veremos maisadiante, com uma coluna que lhes eradestinada, assinada não por um homem,mas por uma mulher chamada Iza. Numainversão da regra da etiqueta, deixemospor último a dama e continuemos com oirreverente Zé Pacato.

Foi por intermédio de Zé Pacato que osleitores de O Diário tiveram notícia daabertura dos trabalhos do congressoestadual; o surgimento de agremiaçõesliterárias e de intelectuais; o impostosobre o fumo; a emissão de cartões porfalta de moedas; o surgimento de um

outro café na cidade, fundado pelolendário Mané Coco (Manuel Pereirados Santos),9 patrocinador da instalaçãoda Padaria Espiritual no seu afamadoCafé Java; o naufrágio do navioSolimões; a greve dos condutores debondes; os boatos e as fofocas dacidade; a apresentação musical deHenrique Jorge nos salões do Congressoe a simples notícia de um dia de chuva,o que pode parecer prosaico em outraterra, menos no Ceará, que a época, nãomenos de vinte anos, vivera uma dassecas considerada a maior de todos ostempos: a de 1877/1878 e onde, porcaracterística do "Ceará Moleque",vaiou-se o sol, que teimou em aparecerapós três milagrosos dias de chuva.

Devemos ainda destacar o fatos de queessas mesmas notícias ou informaçõeseram dadas também por outroscolaboradores a partir de um outro tipode discurso, o que reforça a ideia dautilização das quadrinhas como umaforma de atrair um público que seinteressava por um modo e uma formaespecífica de dizer, de noticiar. Essefato constituía, além de uma estratégiade venda, uma forma de leitura e deescrita. Vejamos como foi noticiada, porexemplo, a abertura dos trabalhos noCongresso, ou seja, a então AssembleiaEstadual.Vejamos primeiro um texto queaparece na primeira página de O Diáriointitulado "O Congresso" e, em seguida,o texto de Zé Pacato na seção "Balas e

Bolas":

Começaram os trabalhos doCongresso Cearense.

Actualmente, mais do queemqualquer outra epocha, o Cearáreclama os serviços desta illustrecorporação.

Não é nossa competência aquilatardo valor moral e intelectual decada um dos membros do novoCongresso, alguns dos quaes sãobastante conhecidos do povocearense. Cumpre, porém, a todos,sem execpção, a grande somma deresponsabilidade de que acham-seinvestidos, promovendo, sem medir

sacrifícios, a prosperidade doEstado e o bem estar do povo.

Ha muito que fazer, muito queedificar.

Vão longe os tempos em que osrepresentantes da soberaniapopular, sem curarem effetivamentedos interesses vitaes do paiz,perdiam o tempo em longos eimproficuos debates, transformandoa tribuna parlamentar em baluartede ápodos e discussões pessoaescom graves prejuisos para osnegocios que corriam a revelia.

Precisamos hoje, mais do quenunca, de ações, não de palavras

sem sentido.

O regimen de rethoricadesappareceu com as velhasinstituições.

Os repetidos abalos que o Cearátem soffrido nestes ultimos temposvieram de algum modo affectartodos os ramos da administraçãopublica, produzindo inevitáveisalterações de ordem social.

O novo Congresso tem serioscompromissos a satisfazer.

Urge accudir as necessidades doEstado que ora se reorganisa.

Nada de discussões estéreis, tudoem beneficio do Ceará – este deveser, em summa, o programma dosactuaes legisladores cearenses.10

Agora, leiamos o texto de Zé Pacato:

Abrio-se agora o Congresso... Vamos ter muita fartura, Muita carne e rapadura,Muita farinha e progresso.

E a Patria que os elegeu,Vendo o povo sobre o abysmo,Espera tudo do seuTalento e patriotismo.

Que venham, pois, com urgência, Por estes proximos mezes,

Novos actos, novas lezes, De tão sabia sapiencia!

E nós, ficamos de novo, De lado, para gritar,Quando o Congresso passar:– Olha os eleitos do povo!....11

Vemos pela leitura dos dois textos que oassunto é o mesmo, ou seja, a aberturados trabalhos na Assembleia dedeputados naquele ano de 1892. Noentanto, o tratamento dado ao fato édiferente em ambos os textos. Se noprimeiro texto há uma certa crítica, ela éfeita em um tom mais formal. Já no textode Zé Pacato há até o "desrespeito"gramatical em nome da constituição da

rima, recurso fundamental nesse tipo dediscurso para constituir a inteireza doseu objetivo. Foi assim que o plural delei passou a ser lezes, em vez de leis,para rimar com "mezes", na segundaestrofe.

Além de atrair um outro público, essetipo de discurso era também um modode dizer algo que não se poderia dizerclaramente, o que coloca em discussão asuposta neutralidade política doperiódico de Caminha e d'Oliveira.Além desse exemplo, poderíamos citaroutros, no entanto esse pareceu-nosbastante representativo, não somente porambos os textos estarem no mesmonúmero do jornal, como por tratarem do

mesmo tema, mas porque elesevidenciam simultaneamente umaquestão relacionada à forma do discursoe constitui-se em uma estratégia deconquistar públicos supostamentediferentes. Depois de toda suaexposição, Zé Pacato, talvez por nãoalcançar a fama almejada, desapareceu,com sua graça e verve, no número 13 deO Diário.

"O ponto nos iii"

E quando o citado Zé Pacatodesapareceu, foi a hora de colocar o"Ponto nos iii". Esse foi o título doeditorial do número 14 de O Diário, queora reproduzimos:

Assoalham pessoas sem criterio emá fé que O Diario é um jornalpolitico desfarçado com mascarada neutralidade.

Maldizentes, em toda a parte os hae não em pequeno numero, rasãoporque não extranhamos a calumniacom que se procura envenenar onosso programa intrigando-nos como publico.

Esses que não trepidam emadulterar as boas intenções alheias,indivíduos sem profissão honrosa esem responsabilidade de especiealguma, pobres parias agrilhoadosmiseravelmente ao interessepessoal, só merecem o nosso

despreso.

O Diário nada tem que ver comelles; e se não fosse compromissosolemne que em boa horacontrahimos com os nossos leitorese assignantes, certo não nosdariamos ao trabalho de destruir osembustes que se levantam a nossorespeito.

Porque somos neutros não segue-seque nos abstenhamoscompletamente de affectar questõespoliticas de interesse geral, o queainda não fizemos. Não escolhemosnoticias que possam interessar maisa este ou áquelle partido,

publicamol-as indifferentemente,dando preferencia ás locaes e quedizem respeito ao comercio e ásclasses laboriosas.

Si durante o nosso tirociniohouvermos alguma vez de discutir,em artigo edisctorial, quaesqueractos, quer do governo federal, quedo governo Estadual, fal-o-emosdesassombradamente, apoiados najustiça e no direito.

Longe de nós a linguagem virulentados embusteiros chicanistas.Neutralidade e bom senso – eis anossa divisa.

Não se illudam os alviçareiros

ignorantes.12

Essa utilização é também uma outraproposta de unir o vivido aorepresentado, não por uma fronteiratênue entre a vida pessoal e privada doautor ou pelo filtro de seus sentimentosem relação à vida na província, maspela sua capacidade de observação, deutilização de recursos que estão postosna vida cotidiana, diária, como o fazlembrar também o título do periódicoem causa: O Diário. Se, ao longo de suarecepção, e em especial de sua fortunacrítica, o romance A normalista foiconsiderado peça de vingança pelo fatode a sociedade fortalezense não ter vistocom bons olhos a união do seu autor,

então segundotenente da Marinha, comIsabel Jataí de Paula Barros, entãocasada com Fausto Augusto de PaulaBarros, também militar, vale considerarque o processo de sua formação podeser bem outro, assim como os recursos,entre eles a acuidade da observaçãodesenvolvida por Caminha, a atenção nomundo à sua volta, o aproveitamento docotidiano, dos fatos simples da vidacomezinha e ordinária. Pintar com traçosfortes e cores escuras as cidades não foimérito apenas de Caminha, o fizeram emespecial os autores que cultivaram dealgum modo a estética naturalista, desdeos franceses, passando pelosportugueses, um deles Eça de Queiroz.No Brasil, o fizera Aluísio Azevedo

com a sua São Luís natal em O mulatoou com o Rio de Janeiro adotivo em Ocortiço. Mais do que umavingança,estava presente o sentimento dedesencanto com uma nova estruturasocial, marcadamente urbana, que sedesenhava como excludente.

O fato de haver correlações entre oconteúdo ou a opinião de AdolfoCaminha defendida nas páginas de ODiário e nas páginas do seu romance Anormalista, em relação ao tipo deimprensa que se cultivava em Fortaleza,não pode passar incólume, pois esse fatose nos mostra capital para a tese quedefendemos: a de Adolfo Caminha comoum autor polígrafo, capaz de reunir na

ação de um sujeito supostamente único –o autor – diversas outras ações como aleitura, o jornalismo, a edição, a críticaliterária e, evidentemente, a escrita.

O pão que O Diário de cada dia nos dáhoje ou as relações entre os periódicos

Além dos jornais que Adolfo Caminhaconsiderava immundos, apesar deutilizá-los em sua ficção e alguns dosseus recursos no próprio periódico,datam também de 1892 outros doisimportantes jornais cearenses: ARepublica e O Pão. Esse já é conhecidonosso como órgão da Padaria Espiritual,da qual Adolfo Caminha fora um dosfundadores. Aliás, é preciso que se diga

que foi na redação de O Diário, portantono número 88 da rua Formosa, atual ruaBarão do Rio Branco, em Fortaleza, queAdolfo Caminha foi convidado porAntônio Sales a participar daagremiação dos Padeiros. É o próprioAdolfo quem relata esse acontecimentona carta intitulada "Padaria Espiritual",que ele escrevera a um suposto amigo.No Rio de Janeiro, relembrando comsaudades da terra natal e maisprecisamente do bairro do Outeiro, àépoca afastado da cidade ecaracterizado como uma regiãobucólica, Adolfo Caminha (1999a,p.128) narrou, assim, o nascimento daPadaria:

Perguntas-me, entre curioso etímido, como é que nasceu aPadaria Espiritual. Sei lá! Quemsabe a verdadeira origem dascousas? O que desde logo te possoir dizendo é o seguinte: Aos tantosde maio de 1892, foram aoescritório do Diário, jornal em queeu trabalhava, dois rapazes(lembra-me bem que um delestrazia um pince-nez) convidar-mepara fundar um sociedade literária,cujo nome fosse PadariaEspiritual.

Surgidos, portanto, no mesmo ano etendo laços de afinidade e amizade entreos seus membros, foi inevitável,

também, que em O Diário figurasseinformações e pequenas notas a respeitoda Padaria Espiritual e de O Pão. Nonúmero 14, de 1º de junho de 1892,lemos em O Diário:

Sem as formalidades do estylo,realisou-se ante-hontem, ás 7 horasda noite, no respectivo forno, ainstallação desta phenomenalsociedade de rapazes de lettras.

Phenomenal, dizemos porqueeffectivamente a Padaria espiritual,a julgar pelos estatutos e pela boavontade dos forneiros constitue umphenomeno e dos mais curiososdeste fim de seculo.

Ha muito não assistiamos uma festatão original.

Basta dizer que não houve casaca,nem luvas, nem discursos e nemchá de garfo.

A leitura dos estatutos, primeiraparte do programma, provocougeraes e estrepitosas gargalhadas,sendo para notar o vivo interessedo auditorio pela nova especie dePadaria, que se achava replecta deconvidados.

Segui-se a leitura de cartasdirigidas pelos forneiros MoacyJurema [Antônio Sales] e FelixGuanabarino [Adolfo Caminha] a

Ramalho Ortigão e GuerraJunqueiro, as quaes foram ouvidasao som de palmas sucessivas.

Leram trabalhos litterarios ospadeiros Polycarpo Estouro – umaprimorosa poesia dedicada aAlfredo Peixoto, verdadeira joia desubido valor artistico; LucasBizarro, um espirituoso soneto, eAlcino Bandolim, uma bellapoesia, seguindo-se a parte musical– execução ao piano da walsa Pãoduro, composição do maestroNascimento, pelo professor Sr.Jorge Victor.

Em summa, uma bela festa a queassitiram diversas senhoras e

cavalheiros da nossa melhorsociedade.

Foram destribuidos gratuitamenteos Estatutos impressos da novaassociação.

Agradecendo o convite que nos foienviado, fazemos votos para que osesperançosos padeiros consigam, aforça de vontade e perseverança,aperfeiçoar o gosto litterario entrenós. (acréscimos nossos)

Já em O Diário de 1º de julho de 1892,lemos:

O PÃO – Assim denomina-se onovo periodico cujo primeiro

numero apparecerá nesta capital nopróximo domingo.

O leitor de certo advinhou que setrata da Padaria espiritual.Effetivamente. O Pão será productosemanal dessa impagavelassociação que já vae colhendomagníficos resultados. O Pão éconsequencia do art. XXXV doprograma da Padaria.

Olha O Pão que saia!

Por essa data – 1º de julho – vemos queO Diário anunciou com a antecedênciade nove dias a publicação do primeironúmero de O Pão, que data de 10 dejulho daquele ano, o que também indica

os laços existentes entre os doisperiódicos. Já no dia 9 de julho, ou seja,um dia antes do primeiro O Pão circularem Fortaleza, anunciava O Diário:

O PÃO

Amanhã, instranferivelmente, serápublicado este periodico daPadaria espiritual.

A julgar pelo que se diz á boccapequena, O Pão vae ser umsuccesso como ainda não houveigual entre nós.

Fique, pois, prevenido o publico deque antes de tomar o matinal cafédeve esperar pel'O Pão.

Na seção "Revistinha", que trazia oscomentários a respeito de periódicoslocais e nacionais, em O Diário de 11de julho, portanto, um dia após apublicação do primeiro número de OPão, lemos: "O Pão. Bem escriptinho,sim, senhor. Bôas pilherias,comprehensão nitida da vida moderna,magníficas poesias e tutti quanti... Dizque obedece a sugestões. Melhor p'raelle". No mesmo número encontramosmais uma nota a respeito do lançamentode O Pão:

Recebemos o primeiro numero d' OPão, publicado hontem.

Summario variadissimo: poesias,anedoctas, noticias humoristicas,

chronica.... Contem além disso umacarta de Clovis Bevilacquadirigida á Padaria, e umaapreciação de Arthur Orlandosobre os estatutos da mesma.

Magnífica estréa.

Em uma palavra, O Pão insinua-see promete ser lido todos osdomingos com voracidade.

Parabens e agradecido.

No número 48 de O Diário, novamentena seção "Revistinha", encontramos umapequena, mas significativa, nota arespeito de O Pão: "O Pão – Péssimaimpressão... typografica e magnífica

litteraria, salvo juiso mais competente".Nessa nota, vemos o jogo irônico arespeito da qualidade do jornal, não daqualidade literária, mas da qualidadegráfica. Ironia que se faz presentetambém pelas reticências, como queindicando uma suspensão de pensamentoou opinião ou ainda a suspensão de umaideia diferente daquela pressuposta.

Esse recurso das reticências parasuspender o pensamento é tambémbastante presente no romance Tentação,de Adolfo Caminha, sendo, portanto, umrecurso utilizado tanto nos textosjornalísticos como nos ficcionais, umavez que o objetivo era dizer algo sem autilização de palavras, deixando, desse

modo, uma abertura para a participaçãodo leitor. Porém, os problemastipográficos já eram constatados noprimeiro número no qual lemos:"Pedimos desculpa aos leitores si estenumero d' O Pão não sahe tão nitido,queremos dizer tão bem amassado eassado como desejavamos. No proximonumero introduziremos algumasreformas que tornarão O Pão mais gratoao delicado paladar do publico".13

De fato, observando o número 2 doórgão da Padaria, vemos que aimpressão tipográfica não é boa e nãopodemos afirmar ao certo se esse foi omotivo; no entanto, o jornal parou decircular nessa data para retornar apenas

em 30 de outubro de 1892. Valedestacar também que O Pão eraimpresso na oficina tipográfica de OOperário, jornal que também é referidoem O Diário. Aliás, não somentereferido, mas com o qual os redatores deO Diário pareciam estabelecer relaçõesde aproximação e admiração recíprocas,pois, com base na coluna "Nós naImprensa", que dava conta aos leitoresda recepção de O Diário por outrosjornais, vemos que esse foi saudado comsimpatia por aquele. A respeito desseatraso, podemos ler o seguinte:

Queremos apenas deixar bemaccentuado no espírito do leitorque "O Pão" não sahiu ha mais

tempo por falta absoluta detypographia que o imprimisse,porque a todas que existem nestaterra pediamos que imprimissem"O Pão" e todas respondiam quenão.

Não que houvesse da parte d'ellaso proposito de uma recusa ao nossomodesto e bem intencionado jornal,que só tem pó inimigos a burguezia;mas havia a deficiência de meioscom que satisfazer aoscompromissos já tomados eimprimir "O Pão" – o que tantomonta.14

Mesmo não se tratando de uma

informação a respeito de O Diário, essacitação dá-nos a possibilidade deconhecer as condições materiais deedição e impressão de jornais na capitalcearense naquele ano. Devemosobservar o fato de que O Pão não eraum jornal com grandes recursosgráficos, como ilustrações, que sóviriam a aparecer na revista O CearáIlustrado, de 1894, como informou oBarão de Studart em seu livro já citado.O Pão tem, praticamente, as mesmascaracterísticas de O Diário, sobretudoquando, a partir do seu sétimo númeropassa a um formato maior do que osanteriores, porém mantendo o mesmonúmero de páginas, cada uma com suastrês colunas. Se a história do jornal é

também a história das condiçõestécnicas e intelectuais de sua produção,esse fato citado dá-nos bem a ideia dascondições de sua produção, sobretudoporque os Padeiros não tinham tantosrecursos financeiros para fazer editar eimprimir um jornal de melhor qualidadegráfica.

A concorrência com a imprensapolítica: o jornal A República

Além do jornal da Padaria Espiritual edos jornais que considerou immundos, aempresa de Caminha e d'Oliveiraconcorria também com um outroperiódico: A República, sendo esse denítida feição política como afirmou o

Barão de Studart (1908):

Jornal político, apparecido emFortaleza a 9 de abril [de 1892].Foi o resultado da fusão doLibertador e do Estado do Ceará,organs do Centro Republicano e daUnião Republicana. É diario.Pertence a uma sociedade anonymadenominada Ceará-Libertador,fundada por escriptura de 30 demarço de 1892. Desde seu iniciotem sido encarregado dapublicação do expediente doGoverno.

Seu actual redactor-chefe é o Dr.Antonio de Arruda.

A Sociedade Ceará-Libertador,escreveu a Republica de 8 de julhode 1892, tem por fim restaurar aantiga officina typographica em quese publicava O Libertador, istopara fins de ser publicada ARepublica, orgam do partidofederalista.

Os possuidores do velho material,em sua quase totalidade, entrarampara a nova empreza com o capitalde 4:900$000, que possuíam emtítulos da extincta, representadospelo material existente, parte emestado de aproveitamento, parteimprestável.

Os novos socios subscreveram a

somma de 4: 430$000, pagavel em10 prestações e destinada aoresgate dos antigos títulos nãoliquidados, aopagamento dedividas não prescriptas da extinctaempreza, á acquisição de materialpreciso para restauração daofficina, etc. Encontra-se a listasdas assignaturas na dita Republicade 8 de julho.

Principiou a publicar-se á ruaMajor Facundo, n. 54, depois á ruaSenador Alencar n. 16b, depois árua da Boa Vista ou FlorianoPeixoto n. 55, de onde mudou-separa a rua Major Facundo n. 26 eem novembro de 1904 para a antiga

casa á rua da Boa Vista, ondepermance.

Além do fato de tratar-se de umperiódico político, com os valores aquiapresentados – ao todo 9:200$000 –,vemos que A República podia ser umgrande concorrente de O Diário,destacando-se também o fato de que elajá contava com pelo menos parte domaquinário necessário para a suaimpressão, podendo, portanto, servircomo impressora de outros jornais erevistas, o que era muito comum, pelomenos no Ceará, como podemosconstatar nos Anais escritos pelo Barãode Studart, pois na oficina impressorade jornais são impressos os números de

outros periódicos. O poder políticofazia de A República uma forteconcorrente de O Diário, não somentepelo poder político, mas também pelopoder financeiro; afinal, para se colocaro jornal na rua havia um preço a pagar,fosse dos gastos em maquinários, fossedo material de impressão e da aberturada firma junto aos órgãos específicos.

Quanto custava pôr o jornal na rua?ou para não dizer que não falei denúmero$

A partir dos comprovantes depagamentos de autorizações elicenciamento de impressão e circulaçãode O Diário temos uma ideia do capital

que requeria uma empresa do tipo.Infelizmente não temos informações dosgastos de cada número, mas como jávimos, esses foram maiores que oslucros, motivando, assim, a falência dafirma. Antes de prosseguirmos,transcrevemos o texto dos documentosna ordem em que foram apresentados.As partes manuscritas no original serãodestacadas em itálico. Os trechos oupalavras ilegíveis serão substituídos porreticências dentro de colchetes:

ESTADO DO CEARÁ ConselhoMunicipal da Fortaleza

Faz saber que por despacho destadata foi concedida a Raimundo deOliveira e Silva licença para [...]

com [...] tipographia pertencenteao Sr. Rodrigues Junior, para apublicação do jornal O diario, arua Formosa nº. 88

Pelo que mandou passar o presenteAlvará que terá vigor durante ocorrente anno

Conselho Municipal da Cidade daFortaleza, Capital do Ceará, em 20de Maio de 1892

Imposto ...................... 20$000

Licença....................... 1$000

Emolumento .............. $

RS 21$000

O Presidente

Guilherme Cezar da Rocha

O Secretário

Júlio Cezar da Fonseca [...]

N. 1983

CONSELHO MUNICIPAL DAFORTALEZA

EXERCICIO DE 1892

Recebido de Raimundo deOliveira e Silva

A quantia de Vinte e um mil réis

Proveniente de imposto e licençasobre a tipographia pertencenteao Sr. Rodrigues Junior [...] dojornal O diario, a rua Formosa N.88 [...] ao corrt. anno.

Imposto ............................ 20$000

Licença............................. 1$000

Aluguel ............................ $

Multa .............................. $

Emolumento ..................... $

Deposito .......................... $

Somma ............................. 21$000

Fortaleza, 20 de Maio de 1892

Vicente Lopes de Araújo

Os documentos – ambos oficiais – játrazem a organização do Estado segundoa República proclamada três anos antesda publicação do jornal e dão-nos aideia de que O Diário não era umaaventura, pelo menos não o era no quediz respeito ao seu modo de entrar emcirculação. O modo como os analisamosno diz que o jornal de Caminha ed'Oliveira não era uma empresaclandestina que pretendesse fazervincular ideias contrárias ao sistema degoverno, o que corrobora com a ideia

exposta no seu programa no primeironúmero, ideia essa algumas vezescontestada, como vimos anteriormente.

Se O Diário não era uma aventura, entãocabia aos seus redatores garantir omaior número possível de leitores, noqual também estavam incluídas asleitoras, público ao qual os autores denossa literatura, desde os primeirostítulos de José de Alencar, procuravaconquistar, fosse a partir da presença depersonagens femininas e, em especial,de personagens femininas leitoras, comopodemos encontrar, por exemplo, noromance A normalista, de AdolfoCaminha. Foi assim que, nas páginas deO Diário, entre tantas seções tratando

dos mais diversos assuntos, as mulheresde Fortaleza passaram a contar commais uma voz feminina na imprensalocal, voz essa que viria a se juntar, porexemplo, à de Francisca ClotildeBarbosa Lima, ou simplesmenteFrancisca Clotilde, que já publicava,nas páginas de A Quinzena (1887-1888), órgão do Clube Literário, artigos,contos e poemas.

A participação de uma colaboradora jáestava prevista no citado programa de ODiário no qual lemos: "As senhorasterão também uma secção especial; ásquintas feiras daremos ás leitoras umrecado sobre as ultimas modasfluminenses, uma especie de compte

rendu das mais chics toilettes usadas nacapital brasileira no verão e no inverno,escrito por distincta patricia nossa". Erao caso de se dizer que naquele clube doBolinha uma Luluzinha tinha um lugar.

Uma Luluzinha no clube do Bolinha

Eis que entra em cena Iza, a dita"distinta patrícia", que assinou umaseção intitulada "Cartas Femininas". Aseguir reproduzimos a primeira carta:

Carissimas leitoras.

Esta bella capital, onde a vida é tãoquieta e tão monótona, reclamavahá muito um jornal neutro, nascondições d'O DIARIO, um jornal

moderno que não fosseessencialmente politico, uma folhamais optimista do que pessimista,que a gente podesse ler sem cahirno desagrado desta ou daquellaparte da sociedade filiada a tal ouqual partido politico; alguma cousanova, sem longas estiradasdoutrinarias, para ser lida derelance no bond, no cafe ou nopasseio, sem outro fim que nãodistrahir o espirito das longashoras de trabalho, precisamentequando ele fatigado das lidasquotidianas, precisa receber algoutil e agradavel.

Vejamos. Nós, as senhoras

cearenses, que temosresponsabilidade e que temosdeveres a cumprir, passamos osdias atarefadas, a bordar, a coserou a labutar com os filhos numafaina verdadeiramente enfadonha; emuitas vezes não são somente ascosturas e os filhos que nosconsomem a actividade...

Si somos mães de família, oscuidados da casa bastam por si sópara fatigar-nos o corpo e oespirito conjunctamente, o diainteiro de modo que, á tarde,depois do jantar, sentimo-nos semforça para qualquer empreza sejaella qual for.

– Deita-te e adormecetranquilamente, aconselha o corpo,em quanto o outro, o espíritobrada-nos alto:

– Levanta-te, vae passear, ou vaeler alguma coisa.

Por outro lado são os convites parabailes que nos deixam n'umaduvida terrível.

Afinal, queridas patricias, somosobrigadas a tomar um deliberaçãoqualquer, e (é triste dizel-o)geralmente optamos pela rede,preferimos dormir a ler algum livrobom ou qualquer outro escriptomenos indigesto que os romances

do Sr. Ponson de Terrail. [sic]

Ora, si o nosso meio não fosse tãosaturado de politica, si a sociedadecearense tratasse de cousas maisagradaveis do que a maldictapolitica, que eu detesto de morte,em vez de adormecermos depois deum dia de trabalho continuo,leriamos antes os jornaes da tarde ávaranda de nossa casa, n'um dolcefarniente confortavel falariamosde coisas alegres e desopilantes atéque o somno viesse sorprender-nosem flagrante.

Mas, não senhoras, aqui só se falade politica: almoça-se politica,janta-se politica, ceia-se politica,

adormece-se pensando em politica,e, no dia seguinte, antes do nascerdo sol, já a politica está comnosco,ao nosso lado deitadinha na nossarede.

Que trambolho! Sempre a politica!

E o mais interessante é que assenhoras cearenses tambem fazempolitica. Tal ha quem se diga –maloqueira, tal – cafinfin. Podehaver nada mais ridículo do queisto?

Maloqueira, porque? Porquecafinfin?

Ora, queridas leitoras, é preciso

cuidar d'outra coisa menos sediça.A politica de calçada foi feita parahomens e para homens que não têmmais o que fazer.

Assignemos O DIARIO, leiamol-otodos os dias e demo-lh'o a ver anossos maridos quando voltaremdo trabalho e a nossos filhosquando tornarem da escola.

Ler O DIARIO é sempre mais util eagradavel que falar da vida alheiaou perder tempo com politica.

Bem andaram os redactores destejornal!

A sociedade cearense precisava de

um jornalsinho tal qual O DIARIO,amigo do todos e inimigo dapolitica.

Pena é que seja ainda tão pequenopara comportar tudo quanto eutenha a dizer-vos uma vez porsemana.

Ainda hoje não vos falarei demodas e, é preciso dizer-vos desdejá, não escolherei assumptos paraas minhas pobres cartas.Conversarei sobre tudo quantopossa de algum modo interessar-vos.

Por hoje basta. P. S. Não esqueçamcomprar O DIARIO, o jornal mais

sympathico do Ceará, ia dizendo doBrazil.

Vossa, Iza.15

Não sabemos de fato quem foi Iza; paranós ela foi uma colaboradora de ODiário que dava às suas páginas e à suaredação um toque feminino. Tampoucosabemos se se tratava de umpseudônimo, e, nesse caso,desconhecemos quem estaria por detrásdele. Sabemos que morava emFortaleza, como se verá a seguir aocitarmos um modelo que ela descreve eque o viu em um dos espetáculos deEnerib, um hipnotizador, que seapresentava na capital cearense junto

com sua companhia e que tambémanunciou seus espetáculos realizados noteatro São Luiz na páginas de O Diário.Também sabemos que era solteira – "Siagora não temos responsabilidadeporque somos solteiras, mais tardegrandes será [sic] os nossoscompromissos" – afirmou no artigopublicado em' O Diário de número 50.

Vemos, porém, pelo seu texto que aarticulista desejava falar, especialmente,às mulheres que tivessem condiçãofinanceira para consumir determinadosprodutos, que os reconhecessem com umvalor e, obviamente, que comprassem ojornal no qual, a partir dos seus comptesrendus, poderiam instruir-se e civilizar-

se. Ao citar os romances de Ponson duTerrail, certamente a articulista estavapensando na sua mais famosapersonagem, o Rocambole e sua série deaventuras, que, segundo Marlyse Meyer(1996, p.106) "foram reagrupados sob otítulo geral de Dramas de Paris a partirda reedição de 1865 do romanceinaugural, A herança misteriosa".16 Àleitura de Ponson du Terrail ela opõe aleitura de O Diário.

Destaca-se desse primeiro artigo de Izao fato de repetir alguns aspectos doprograma, como o fato de criticar apolítica como único tema de interessedos periódicos locais, citando o partidodos maloqueiros e o partido dos

cafinfins, dos quais as mulheres dacapital cearense, segundo Iza, diziamfazer parte. Assim como o texto de ZéPacato, diferenciava-se do texto doeditorial, na forma, pois o primeiro eraescrito em quadrinhas popularesenquanto o segundo era escrito em tomformal. O texto de Iza se diferencia dotexto do programa, tanto por assumir-secomo uma voz feminina falando àsmulheres como pelo gênero em que ofaz: a carta, o que pressupõe umalinguagem mais íntima, tratando deassuntos específicos e, supostamente, deinteresse direto das leitoras a quem elase dirigia por meio da correspondência.

Se o projeto era a publicação semanal

das "Cartas femininas", assinadas porIza – sempre às quintas-feiras – isso nãose deu. Infelizmente, não sabemos omotivo do malogro da periodicidade dassuas cartas. No entanto, o fato é que suas"palestras", destacando assim aproximidade de sua escrita e de suarelação com as leitoras, forampublicadas, além do número 4, nosnúmeros 12, de 30 de maio; 37, de 2 dejulho; 50, de 20 de julho; e 59, de 4 deagosto, último número de O Diário. Nonúmero 12, Iza cumpriu a promessa detratar de moda e a forma como o fez foiexatamente mostrando-se contra osmodismos: "Porque Fulana usa vestidodeste ou d'aquelle modo não se segueque eu, por força da moda, também deva

usar igual, absolutamente não". Tratandode aspectos da moda passada, aarticulista não deixa de usar da ironia,vejamos:

Destronadas (ou depostas, comoquiserem) as caudas, vieram osvestidos curtos e apertados comobainhas, rentes com o corpo dacintura até ao meio das canellas emquanto a parte superior – os braçose o collo – dansa folgadamentedentro d'uma especie de balão maisexquisito que elegante.17

Nesse caso, a ironia tem algum aspectopolítico, uma vez que as caudas são,pelo menos ao que nos parece, uma

referência direta à Monarquia, o queainda se torna mais evidente serecuperarmos os significantes –destronadas e depostas – esse,especificamente, grafado em itálico notexto original e colocado também emdestaque pelo uso dos parênteses, comoque indicando um pensamento ou ideiadita nas entrelinhas. O fato deindiretamente tratar de política talveztenha feito que o jornal de Caminha ed'Oliveira tivesse o seu propósitoinicial de mostrar-se neutro em políticacontestado.

O aspecto mais forte, entretanto, das"Cartas femininas", é o seu teor críticocom tendência à educação dos usos e

dos costumes, como é possível constatarno terceiro artigo dessa seção ainda arespeito da moda nos termos do artigoanterior. É assim que lemos: "Asimplicidade, a singeleza, anaturalidade, emfim, é, na toilette comona obra d'arte, a condição sine quanon". Nessa mesma direção continua aarticulista:

Foi-se o tempo dos bibelots e dasfanfrelouches; as fitas e osvidrilhos estão abolidos dosboudoir; modernamente todas astoilettes, quer masculinas, querfemininas, são acabadas pelosmoldes inglezes, isto é, sem essassuperfluidades de enfeites que tanto

afeiam senhoras e cavalheiros.Com effeito, não sei nada maisexquisito e até certo ponto ridículoe intoleravel que um rico vestidode seda ou de velludo coberto defond en comble dessas ninhariasque nada tem de bello nem degracioso: refiro-me aos babados,refolhos, vidrilhos, fitas e outrastantas bugigangas, de que costumamenfeitar-se as senhoras de mãogosto.

A meu ver, quanto menosguarnecido o vestuário, quantomais simples, mais chic e elegante.

Se no trecho destacado anteriormentehavia uma ironia implícita em relação à

queda da Monarquia, já nesse é possívelconstatar uma crítica ao romantismo, quese efetua por meio da moda. Basta paratanto lembrar aqui das laboriosasdescrições que José Alencar fez dasroupas de Aurélia Camargo no romanceSenhora. A riqueza dos detalhesapontava, exatamente, para modelosricamente ornados, do qual sedestacavam pedrarias e babados, fitas erendas, tudo num exagero deexuberância e riqueza utilizado a cadaentrada de Aurélia nos salões da cortecom o forte objetivo de impressionar atodos que a vissem e, em especial, aFernando Seixas.

Essa relação também pode ser feita à

estética literária, sobretudo porque Iza équem o faz ao dizer que a simplicidade,a singeleza e a naturalidade sãocondição indispensável também na obrade arte, categoria na qual podemoslocalizar a arte literária. Aos modelosde babados e pedrarias, Iza deu comoalternativa um outro, que consideravabem mais adequado aos novos tempos:

Ha poucos dias, no teatro S. Luiz,em um dos espetaculos do Enerib,observei com vivo interesse, umasenhora, cuja toilette destacava-sedentre todas as outras por suaoriginalíssima feição. Nada maissimples: vestido de casemiracinzenta, casaco idem, aberto na

frente, deixando sobresahir opeitilho alvíssimo da camisa sobreo qual destacava-se umaesplendida gravata de seda, creioque creme, entrelaçada à ingleza,com um rico broche; colete brancofalso, pregado ao casaco – nadamais.

Ahi está o que é saber uma senhoravestir-se economicamente, comcorrecção e atrahente elegancia.

Ao final dessa carta, Iza ainda fezquestão de reforçar a sua ideia inicial:"O exagero é prejudicial em tudo e portudo; por isto é que destacamos a modatal qual nol-a querem impor certosfigurinos de máo gosto". Mas o alvo de

suas palestras não é somente a moda. Izatambém se preocupa com a instruçãofeminina ao dar notícia às suas leitorasde que no Rio de Janeiro fora fundadauma sociedade de senhoras para criarum instituto de educação para mulheres:

Li num jornal do Rio de Janeiroque trata-se de fundar na Capital daUnião uma sociedade de senhoraspara o fim utilissimo e humanitariode crear institutos beneficentes deeducação do sexo feminino decommum accordo com ascondições especiaes de cadaclasse, a maneira das que existemna Alemanha e n'outros paizesadiantados da Europa.

A partir de então, as queixas de Iza sevoltam para a situação da educação noBrasil à época, em especial, à educaçãoque considerou popular:

É publico e notorio o nosso atrazoem matéria de instrução popular; osgovernos do Brazil nunca deram-seao espinhoso trabalho de curarseriamente deste assumpto,reformando e introduzindomelhoramentos indispensaveis nasescolas e lyceos geralmenteentregues á direcção de homenssem competencia e sempatriotismo.

A maior parte da populaçãobrazileira é analfabeta e isto se

abserva [sic] em grande escala nosexo feminino, cuja ignorancia édigna de lástima.

Antes de prosseguir, é preciso fazer aquia chamada de alguns fatos a respeito doassunto de que tratam essas duascitações. Desde a chamada geração de1870 que aglutinou a AcademiaFrancesa do Ceará, que, segundo Sânziode Azevedo, surgiu "por volta de 1873"e foi extinta em 1875, da qualparticiparam Tomás Pompeu, RochaLima, Capistrano de Abreu, João Lopes,Xilderico de Faria, Araripe Júnior,França Leite, Antônio José de Melo,Antônio Felino Barroso e AmaroCavalcante, a partir da qual se

discutiram as ideias de Comte, Taine,Darwin, Spencer, Buckle, Ratzel,Schopenhauer, Haeckel, Littré,Vacherot, Quinet, Burnouf, Jacoilliot eRenan, que o tema da educação populare da participação feminina na sociedadeestava sendo discutido, como podemosconstatar, por exemplo, nas conferênciasda Escola Popular, criada por iniciativados membros da academia citada para,justamente, levar a instrução ao povo,como consideravam ser papel dosintelectuais.

A esse respeito e também tratando daparticipação de Rocha Lima afirmouCapistrano de Abreu (1968, p.77): "Asdiscussões e estudos não bastavam

todavia à sua atividade: com João Lopese outros companheiros fundou a EscolaPopular, escola noturna destinada aospobres e operários". E aindaacrescentou Capistrano:

Grande foi a influência da EscolaPopular não só sôbre as classes aque se destinava, como sôbre asociedade cearense em geral, porintermédio de conferências alifeitas, em que o ideal moderno eraapregoado por pessoas altamenteconvencidas de sua excelência.Maior ainda foi a influência daEscola sôbre os espíritos audazes ejuvenis, que congregou, reuniu efecundou uns pelos outros. (ibidem,

p.78)

Dessas conferências proferidas porRocha Lima destacamos duas, apropósito do assunto tratado por Izanaquela sua carta. São elas: A Mulher eSenhora, essa a respeito do romance deJosé de Alencar. O que Rocha Limadestaca em ambas é a condição damulher ante a sociedade, de ondedecorre a necessidade de instruí-la.

Ainda sobre a mulher, alguns textosforam dados ao público cearense naspáginas de A Quinzena, órgão do ClubeLiterário, como podemos constatar comos seguintes títulos: "A mulhercearense", de Abel Garcia (publicadonos n.2, de 30 de janeiro de 1887; n.3,

de 15 de fevereiro de 1887; e n.4, de 28de fevereiro do mesmo ano, noperiódico referido); "A mulher nafamília", de Francisca Clotilde B. Lima(publicado nos n.5, de 15 de março; en.6, de 30 de março, também de 1887).

O que mais impressiona desse conjuntode artigos é justamente o fato deFrancisca Clotilde ter uma visão muitomais tradicional a respeito da mulher edo seu papel na sociedade do que AbelGarcia. Entre o tradicionalismo e umacerta vanguarda no pensamento arespeito do que aqui se trata, o maisimportante é que, de algum modo, essetema fazia parte da ordem do dia, aomenos do grupo de intelectuais e

escritores que se uniam em grêmios,associações, sociedades e divulgavamas suas ideias por intermédio deperiódicos dados ao público em geral, oque propiciava a circulação de ideias,mesmo que não fossem absorvidas pelagrande maioria da população local.

Antes de voltar a tratar das "Cartasfemininas", de Iza, é preciso destacartambém que o tema da educaçãofeminina foi abordado por AdolfoCaminha em seu romance de estreia,cujo título é exatamente A normalista,ou seja, a estudante da Escola Normal,cujo modelo de educação laica seopunha ao modelo religioso do Colégioda Imaculada Conceição. Esse é, aliás,

um assunto discutido pelas personagens.Vejamos, por exemplo, o que afirmavamJoão da Mata e sua esposa D. Terezinhaa esse respeito, e sobretudo João daMata, que era leitor da Província, umperiódico que, como já vimos, circulana trama do romance:

Também fora professor, olé! Esabia muito bem o que isso era –"um coito de patifarias". Queria aeducação como nos colégios daEuropa, segundo vira em certopedagogista, onde as meninasdesenvolvem-se física emoralmente como a rapaziada decalças, com uma rapidezadmirável, tornando-se por fim

excelentes mães de família,perfeitas donas de casa, sem aintervenção inquisitorial da Irmã deCaridade. Não compreendia(tacanhez d'espírito embora) comopudesse instruirse na práticaindispensável da vida social umacriatura educada a toques de sineta,no silêncio e na sensaboria de umacasa conventual entre paredessombrias, com quadros alegóricosdas almas do purgatório e daspenas do inferno; com o maislamentável desprezo de todas asprescrições higiênicas, sem ar nemluz, rezando noite e dia – ora pronobis, ora pro nobis. Era daopinião do José Pereira da

Província: Irmãs de Caridadeforam feitas para hospitais. Odiabo é que no Ceará não haviacolégios sérios. A instruçãopública estava reduzida a meiadúzia de conventilhos: umacalamidade pior que a seca. Omenino ou menina saíam da escolasabendo menos que dantes e maisinstruídos em hábitos vergonhosos.As melhores famílias sacudiam asfilhas na Imaculada Conceiçãocomo único recurso para não vê-lascompletamente ignorantes epervertidas. Afinal, para nãocontrariar o Mendonça, que queriaa filha para santa, metera Maria doCarmo no "convento".

D. Terezinha participava dasmesmas idéias do Janjão. Umamenina inteligente como Mariadevia educar-se no Rio de Janeiroou num colégio particular, mas umcolégio onde ela pudesse aprendero "traquejo social". Pode ser que aIrmãs sejam umas mulheresvirtuosíssimas e castas, mas filhasua não punha os pés em colégio defreiras... (Caminha, 1998, p.22)

Devemos destacar dessa citação, alémdo fato de tratar do assunto da educaçãofeminina, que o citado José Pereira, daProvíncia, é uma caricatura de JoãoLopes, um dos membros do ClubeLiterário, associação que fazia publicar

A Quinzena e era também membro daAcademia Francesa. A esse respeitoafirmou Sânzio de Azevedo (1999, p.83-4):

Entre as figuras da vida realsatirizadas no romance, destaca-se,além do Presidente do Ceará naépoca, o jornalista José Pereira,redator da Província. Lembrandoque João Lopes (um doscomponentes principais do ClubeLiterário, como vimos) foi, nadécada de 70 do século XIX, umdos membros da chamadaAcademia Francesa, ao lado deRocha Lima, Capistrano de Abreu,Araripe Júnior e outros, fica mais

do que evidente que José Pereira éele, quando o narrador diz que ojornalista do romance começou ajulgar-se um grande escritor: "Daícerto ar autoritário, certa prosápiaque ele afetava em toda parte,dizendo-se 'contemporâneo deRocha Lima', 'amigo de Capistranode Abreu', certo aprumo pedanteque não condizia com a sua velhasobrecasaca de diagonal cujoestado incomodava deveras a altasociedade cearense".

Além de João Lopes e de Caio Prado,então presidente da província do Ceará,foi caricaturizado em A normalista oprofessor José de Barcelos, à época

diretor da Escola Normal, fato do qualtratou Rodolfo Teófilo na série deartigos que publicou a respeito daqueleromance nas páginas do jornal O Pãonos seus números 19, 20, 21, 22 e 23.

O que pretendemos mostrar com acitação desses fatos é que todo oconjunto da obra de Adolfo Caminhaestá, de algum modo, entrelaçado. Sãoconstantes as relações entre os seusfazeres como vimos aqui. Os assuntos,os temas se cruzam, se encontram,criando uma espécie de unidade diversa.Como afirmamos anteriormente, não nosparece certo dizer que Iza seria umpseudônimo feminino do redator de ODiário, ou seja, de Adolfo Caminha,

pois não temos elementos nemargumentos para tanto. No entanto, éclara a constatação de que havia umintercâmbio de assuntos e depreocupações, pelo menos nesse caso,entre as suas atividades de jornalista ede escritor, seja esse intercâmbio direto,isto é, a mão do jornalista colaborandocom a mão do escritor, seja indireto,isto é, o romancista bebendo na fonte daarticulista, nesse caso a citada Iza.

Se não podemos afirmar que Iza é umpseudônimo de Caminha, podemosafirmar, pelas constataçõesapresentadas, que entre ambos havia uminteresse comum, o que aliás écompreendido, uma vez que Caminha

não a chamaria para colaborar com oseu jornal se os seus interesses fossemdivergentes dos dele, o que se mostraóbvio, no entanto, deve ser amplamenteinvestigado, pois resulta num mododiferenciado de ver o conjunto da obrade Adolfo Caminha o que aqui temosperseguido, pois esse olhar diferenciadocolabora com a sua compreensão comoum autor polígrafo.

Por assim dizer, a presente tese seescreve a partir de uma prática ou de umconjunto de procedimentos que têmvalorizado a análise sistemática,evidenciando a ligação e interseçãoentre os campos, campos do sistemaliterário e campos do saber em geral,

sobretudo a literatura, nas áreas dahistória, historiografia, teoria e críticaliterárias, e a história, nas áreas dateoria e historiografia, história dasideias e do conhecimento, da qual fazemparte a história da literatura e a históriadas artes em geral, historia material, daqual faz parte a história do livro ehistória dos sujeitos e práticas, dasquais fazem parte o autor nas suas maisdiversificadas ações.

É preciso sempre acentuar o fato de queno presente estudo essas áreas seentrelaçam, pois como já afirmamos,não cremos na possibilidade de umaproblematização e análise polarizada emdois extremos, quais sejam, o dos

elementos intrínsecos acima dos ditosextrínsecos, como numa religião daessência da obra de arte acima de todasas suas demais circunstâncias, com umsentido – o estético – dadoprioritariamente sem que a recepção odemande, o exija, o forme, tenhacarência dele e até o estranhe, seja pelaforma ou pelo suposto efeito que produz.A esse respeito afirmou Pierre Bourdieu(1996, p.323-4):

A experiência da obra de arte comoimediatamente dotada de sentido evalor é um efeito do acordo entreas duas faces da mesma instituiçãohistórica, o habitus cultivado e ocampo artístico, que se fundam

mutuamente: sendo dado que a obrade arte só existe enquanto tal, istoé, enquanto objeto simbólicodotado de sentido e de valor, se éapreendida por espectadoresdotados da disposição e dacompetência estéticas que ela exigetacitamente, pode-se dizer que é oolho do esteta que constitui a obrade arte como tal, mas com acondição de lembrar imediatamenteque não o pode fazer senão namedida em que ele próprio é oproduto de uma longa históriacoletiva, ou seja, da invençãoprogressiva do 'conhecedor', eindividual, isto é, de umafreqüentação prolongada da obra

de arte.

Feitas essas considerações de ordemmetodológica, voltemos ao jornal ODiário, pois Iza ainda deseja sedespedir. O seu artigo do número 50 deO Diário foi concluído com a promessade que a articulista voltaria ao assuntoda educação feminina. É bem verdadeque antes ela convidou as mulherescearenses a imitar as fluminenses, quepor sua vez imitavam as alemãs:

As senhoras fluminenses tratam deimitar as allemães, por que nãoimitamol-as, nós as cearenses? Emvez de gastarmos o nosso preciosotempo fundando clubs de dança,tratemos de nossa educação e da

educação de nossa patriciaspobres. Não é em bailes e noPasseio Publico que havemos depreparar o nosso espirito para asluctas da existencia. Si agora nãotemos responsabilidade porquesomos solteiras, mais tarde grandesserão os nosso compromissos.

Em nome das minhas conterraneas,envio um hurrah! Ao bello sexofluminense.

Voltarei ao assumpto.

Como já dissemos e, por ocasião dessacitação reforçamos, o caráter de missãoe de civilização está bem presente nostextos de Iza, bem como em alguns

outros de O Diário, como veremos àfrente. De fato, Iza não voltou ao assuntoda educação feminina, pois no últimonúmero do periódico de Caminha ed'Oliveira ela voltou apenas para sedespedir das suas leitoras, o que indicaque elas não eram poucas ou que erambastante consideradas pelos redatores.Mais uma vez o texto de Iza, assim comoo de Zé Pacato, como vimosanteriormente, procurou reforçar umaideia defendida no programa do jornal,o que se dá de forma bastante particularpara cada texto, seja na sua linguagem,seja na sua forma, porém todossubmetidos ao formato do jornal. Antes,porém, de tratar dessa questão, vejamosa página do editorial do último número

de O Diário, que de certo modo já foidiscutido quando citamos alguns dosseus trechos.

Vemos no editorial intitulado "Averdade no caso" que o principalproblema que levou à paralisação daedição e publicação do jornal O Diário,segundo os seus redatores, estavarelacionado à sua recepção, pois todasas queixas apontam para esse fato. Esseeditorial foi o único assinado por AD.CAMINHA E R. D'OLIVEIRA E SILVAao longo dos 59 números. Como já odissemos, o último artigo assinado porIza reforça a ideia defendida noeditorial. Leiamos o artigo na íntegra.Os trechos grafados em itálico são

destaques nossos, com exceção, é claro,dos títulos de jornais citados ou deexpressões em língua estrangeira.

Queridas leitoras.

Acabo de receber a lamentavelnoticia de que o Diario, osymphatico jornal creado sob tãobons auspícios e que, sem duvida,estava preenchendo uma lacunasensível em nosso jornalismo, vaesuspender a publicação.

Mas isto é incrivel, mas isto dá mácopia do bom gosto do nossopublico!

Porque vae desapparecer o Diario?

É triste dizel-o, e digo-o tocada defundo pesar: O Diario vaesuspender a publicação por falta derecursos financeiros! Tristeverdade esta que enche de pasmo equiçá de indignação a quem seinteressa vivamente pela sortedesta terra. Pois é crível que hajaalguem capaz de recusar o seurecurso material para a manutençãode uma empreza como a do Diarionesta capital que precisa tanto deum jornal neutro em politica, aoalcance de todas as intelligencias ede todas as bolsas? Effetivamenteassim o é. E o que mais admira é atenacidade dos redactores doDiario, rapazes pobres que, sem o

auxilio do nosso publico cujaindifferença é notoria, conseguirammanter durante quase noventalongos dias este jornal, arcandocontra a má vontade de uns e odespeito de outros. Dir-me-hão,talvez, as leitoras: mas só podesustentar jornal quem tem dinheiro;pas d'argent pas de... Journal. Deaccordo, mas esse dinheiro emparte deve resultar do esforço dojornalista que apenas concorre como capital necessario para asdespezas essenciaes. O jornalismoé uma profissão e, como tal, deverender algo. Ninguém que tenhajuízo sujeita-se a trabalhargratiuitamente para o publico, e

neste caso estão os redactores d'O Diario cuja resolução é assazlouvavel uma vez que o publicorecusa-lhes o seu concurso.

Collaboradora do Diario nãoposso deixar de censurar umpublico que prefere ler pasquins aler jornaes serios.

Sabe Deus com quanta difficuldadeluctam A Republica, O Combate eO Operario!

E são orgãos de partidos politicose corporações mais ou menosnumerosas. Em minha ultimaconversa havia eu promettido falar-vos hoje de associações

beneficentes de senhoras; uma vezporém, que o Diario dá hoje seuultimo numero, cumpre-medespedir das leitoras, o que façoagora, pedindo-lhes mil desculpaspela linguagem despida de atavioscom que sempre lhes falei destascolumnas.

Al rivedere! Iza.

Figura 8 – Anúncios do jornal O Diário,n.8, Fortaleza, 18 de maio de 1892.Biblioteca particular de Sânzio de

Azevedo.

Assim, reforçando muito do que foi ditono editorial, juntamente com o últimonúmero de O Diário, Iza e sua seção"Cartas femininas" desapareceram doconjunto de leituras possíveis naFortaleza dos meses de maio a agosto de1892.

Anunciar para faturar

Não sabemos ao certo, por exemplo,quanto os anúncios de casas comerciaise pequenas matérias pagas rendiam ao

jornal, nem se Caminha e d'Oliveiracontraíram grandes dívidas. O fato é queO Diário desapareceu, malogrado quefoi o intento inicial apesar de contarsempre com um bom número deanúncios, sobretudo de casascomerciais, como é possível constatarnas suas páginas.

O primeiro número de O Diário já trazalguns anúncios, o que nos dá a entenderque seus redatores se preocuparam emdivulgá-lo entre os comerciantes dacidade, certamente na esperança de quea adesão daqueles significasse agarantia de lucro, tanto para o jornalcomo para os próprios anunciantes. Essefato também reforça o que dissemos

anteriormente, ou seja, que a empresa deCaminha e d'Oliveira não era umaaventura, uma vez que vincular anúnciosde casas comercias significava tambémcredibilidade junto a determinadossetores da sociedade, entre ele a classede comerciantes, fato que colocou lado alado o mundo das letras e o mundo dosnegócios, bem como os seusrepresentantes, quais sejam, os homensde letras e os homens de dinheiro,unindo letras e números.

Não sabemos qual era a estratégia usadapor Caminha e d'Oliveira para atrair osanúncios para o primeiro número de seujornal; no entanto eles estão lá. Asprimeiras casas comerciais e produtos a

anunciarem em O Diário foram:Mercearia Arruda, Taboado de Acapu eAndiroba, Café Aratanha, Alfaiataria deOlegário A. dos Santos, Charutos PaulaPereira e C, Relojoeiro Gonçalo J. doNascimento, Armazém do Agente Motta.

À medida que o jornal é publicado,indicando que ele teria uma ediçãoregular, não somente os anúncios dessascasas comerciais foram vinculados, masoutras casas aparecem comoanunciantes. Se no primeiro número deO Diário os anúncios ocupavam apenasdois terços da quarta página, nosnúmeros seguintes, até o penúltimo, poiso último não traz anúncios, eles estãopresentes em toda a quarta página e, às

vezes, já a partir da última coluna daterceira página, indicando que osanúncios davam aos proprietários dojornais e das casas comerciaisanunciantes algum retorno financeiro. Ébem verdade que os anunciantes desseprimeiro número são casas comerciaissimples, o que pode ser constatado pelotipo de produtos que oferecem, na suamaioria produtos de consumo diário,como aqueles oferecidos pela MerceariaRossas: açúcar, maisena, arroz,bacalhau, sabão, farinha de trigo,manteiga em barril, pimenta. Os mesmosprodutos poderiam ser comprados na jácitada Mercearia Arruda, um poucomais requintada, pois oferecia queijos,doces, vinhos e conservas "e muitos

outros generos de superior qualidaderecebidos ultimamente", como afirma oseu anúncio.

Somente a partir do número 9, de 25 demaio de 1892, é que surgiram anúnciosde itens importados de fina qualidade,como é possível constatar no anúncio dacasa Torre-Eiffel, cujo nome por si sóindica a influência da França nomercado local e do tipo de produtos quecolocava à disposição do público deFortaleza: camisas inglesas, chapéus desol, fitas, tecidos os mais diversos:cretones, voile, cetim, ligas de seda,perfumaria, sabonetes, pastas inglezaspara dentes, pó de arroz, plumas parachapéus, leques de plumas, lenços de

seda.

A partir do número 31, de 23 de junhode 1892, surgem anúncios maiores egraficamente mais trabalhados, porémnão encontraremos ao longo daexistência do jornal nenhum anúncioilustrado. Aliás, é importante lembrarque nos 59 números de O Diário sóencontraremos uma ilustração: areprodução de um retrato dohipnotizador Enerib e sua companhia, oque demonstra que o jornal também faziaanúncio de eventos de lazer, pois oespetáculo do já citado hipnotizador sedava no Teatro S. Luiz.

No anúncio da Mercearia Luiz Mourapodemos ver que o consumidor

fortalezense poderia encontrar tambémprodutos importados, como é o caso decognac, queijo e licores. Além disso,uma prática se tornou comum em ODiário: a vinculação de um fato emandamento e o anúncio de uma casacomercial, qual seja, a revolução noMato Grosso e o anúncio da casacomercial de Ovídio Leopoldo da Silva,que também se utilizava de quadrinhaspopulares: "O Ovídio é agradável,/Vende o bom, é barateiro/ A todospresta attenção/ Vendo contar odinheiro." A utilização de recursosliterários em razão dos anúncioscomerciais, o que significa também umrelacionamento entre literatura emercado, se intensificou ao ponto de um

anúncio ser escrito como numa estruturaaproximada à estrutura de um conto,como podemos constatar no anúnciointitulado de "Um achado curioso". Opróprio título – "Um achado curioso" –tem algo de ficcional, pois remete o seuleitor à sensação de mistério. E aprópria dimensão do anúncio não pareceser a mais comum, pois, como sabemos,quanto maior o espaço ocupado, maiscaro é o seu valor.

Nessa estrutura aproximada do contopodemos encontrar um narrador, duaspersonagens – os dois burgueses –, que,aliás, são estrangeiros, a criação de umasituação que justifica a ida de ambos àrua das Trincheiras, 19, ou rua Formosa,

135, essa um dos endereços mais nobresda cidade à época, ocupada pelaburguesia que ali mandara construircasarões e mansões, onde, aliás, noromance A normalista, morava apersonagem Zuza, o querido de Mariado Carmo: "Morava na rua Formosa,numa casa assobradada e vistosa comfrontaria de azulejos, varandas, e doisananazes de louça no alto da cimalha, àvelha moda portuguesa" (Caminha,1998, p.44).

Como esse anúncio não encontramosoutro igual em O Diário, o que nãosignifica que fosse uma criação deAdolfo Caminha, afinal não temos dadospara afirmar que o texto fosse de fato

dele; no entanto, a sua estrutura nãoparece ser a mais convencional entre asestruturas dos anúncios comerciaisvinculados em jornais de circulação e,por esse motivo, achamos por bemdestacá-lo. Mas destacamos também ofato de que pontos em comum unem aatuação de Adolfo Caminha como autore editor de um periódico de circulaçãocomercial. Esse fato provocou aconvivência do homem de letras com osnúmeros, com a tarefa árdua e diária decolocar em circulação um periódico.Apesar de difícil, Adolfo Caminha nãoperdeu o interesse em editar periódicos.Após mudar-se definitivamente para oRio de Janeiro, o autor dedicou-senovamente ao jornalismo, mas dessa vez

à experiência junto ao jornalismoliterário com a publicação de A NovaRevista, como veremos a partir daqui.

Figura 9 – Anúncio "Um achadocurioso", publicado no jornal O Diário,

n.35, Fortaleza, 30 de junho de 1892.Biblioteca particular de Sânzio de

Azevedo.

A experiência de A NovaRevista

Adolfo Caminha editor de A NovaRevista: uma radiografia do periódico

Após a publicação de dois romances – Anormalista (1893) e Bom-Crioulo(1895) – e já tendo passado pelaexperiência de redator-principal de ODiário, Adolfo Caminha atuou em A

Nova Revista como seu diretor, arespeito do que nos diz Sânzio deAzevedo (1999, p.121): "Circulou noRio de Janeiro, de janeiro a setembro de1896, A Nova Revista, que tinha comoDiretor Adolfo Caminha e, comoSecretário, Oliveira Gomes (um dos queiriam visitar o escritor em seusmomentos finais). Periódico mensal,teve nove números". É também deSânzio de Azevedo que citamos umtrecho retirado, segundo ele, do artigoque circulara no periódico português AMala da Europa no qual lemosinformações a respeito de A NovaRevista:

Caminha dirige presentemente A

Nova Revista, magníficapublicação literária,excelentemente acolhida no Rio, S.Paulo, Pernambuco, Ceará e Pará.Em Paris fizeram-lhe uma recepçãoentusiástica, fora do uso. N'estarevista, que é editada diretamentepor uma conceituada casatipográfica do Rio, têmcolaborado: Clóvis Bevilácqua,Pilate Gaubast, Xavier deCarvalho, Cruz e Souza,Bernardino Lopes, Duque-Estrada,Colatino Barroso, Oliveira Gomes,Frota Pessoa, Teodoro Magalhães,Francisco Pacheco, Artur Miranda,Alves de Faria, RodriguesCarvalho [sic], etc. (ibidem, p.127)

Vemos nessa citação algumascaracterísticas da revista: a boaacolhida, a boa qualidade de impressãográfica e um bom e conceituado númerode colaboradores, entre eles váriosnomes que à época se destacavam navida nacional como o afamado juristacearense Clóvis Bevilácqua. Alémdessas informações, não sabemos aorigem do capital da empresa, pois,infelizmente, o material que consultamosna Fundação Casa de Ruy Barbosa, noRio de Janeiro, não traz essasinformações, uma vez que os seusexemplares não possuem capas.

A revista, porém, chegou a ser mandadapara fora do Brasil, como podemos

constatar no número 2. Nele foipublicado um soneto intitulado"Épitaphe", de Louis-Pilate de BrinnGaubast. Esse é o mesmo poeta cujonome lemos na citação anterior com aabreviatura Pilate Gaubast. Em umanota, na mesma página de publicação dosoneto citado, lemos:

Figura 10 – Página 1 do primeironúmero de A Nova Revista. Coleção

Plínio Doyle. Casa de Rui Barbosa, Riode Janeiro.

Accedendo ao convite que lhedirigimos para collaborar n'A NovaRevista, LouisPilate de BrinGaubast, um dos novos poetasfrancezes, honrou promptamentecom a remessa de duas bellaspoesias inéditas – Épitaphe eRencontre.Vivamente interessadopela propaganda da literaturabrazileira na Europa, Louis-Pilatede Brinn Gaubast pede-nos quepubliquemos as suas louvadasintenções de tornar conhecidas

naquele continente os nossosproductos litterarios: – Que l'onm'envoie livres (anciens ourecents), revues, journeaux (isolésou ...) documents, notes BIO-BIBLIOGRAPHIQUES, etPHOTOGRAPHIES TOUT sera[...] et utilisé ,en bonne place,dans l'un des innombrablespériodiques – em toutes [...] – quime sont ouverts, et qui ont fait lesuccés de ma campagneportugaise. Ahi fica o appello deum nobre espirito. Já não podemosdizer que lá ninguém se interessapelo Brazil literario. Louis-Pilate éo correspondente em França darevista Arte, de Eugenio de Castro,

– 39, rue Froide, CAEN.18

A citação confirma a recepção darevista na França, onde "fizeram-lheuma recepção entusiástica, fora do uso",destacando-se o fato de o redator danota, certamente Adolfo Caminha,destacar que lá, ou seja, na França – e oitálico é original –, já haver interessepela literatura brasileira. Assim, aleitura dessa citação nos leva a crer queA Nova Revista foi um grande sucesso.Se essas são as informações que nospassam o artigo português de A Mala daEuropa e a própria nota da revista, alémdas possíveis conclusões que possamoster a esse respeito ao analisar o materialconsultado, ao continuarmos a leitura da

biografia de Adolfo Caminha vemos queo caso é bem outro. Diz-nos Azevedo(1999, p.124):

Como ainda observa Plínio Doyle,'A Nova Revista, apesar da boacolaboração [...], não teve granderepercussão na época; a RevistaIlustrada, de Ângelo Agostini,apenas registra o recebimento defascículos, sem qualquercomentário; nas demais revistasconsultadas, nenhhuma referênciaencontramos.

A referência a Plínio Doyle, nesse caso,deu-se porque pertencia à sua coleçãode periódicos os exemplares destaúltima revista editada por Adolfo

Caminha, como nos informa tambémSânzio de Azevedo: "Plínio Doyle, quepossuiu a coleção completa da revista,mas sem as capas..." (ibidem, p.121). Jáaqui é preciso afirmar que as condiçõesdo material como esse se encontra naentidade citada que nos impediu defazermos uma radiografia maisdetalhada da revista como procuramosfazer no caso do jornal O Diário,analisando o valor de seus números, ovalor das assinaturas, os seus anúnciosetc. Por não ter as capas, são sabemosinúmeras informações, como o valor dosexemplares ou se teve ou nãoassinaturas, anúncios etc.

Ainda assim, A Nova Revista é uma

importante fonte para a compreensão daatuação de Adolfo Caminha no campodo jornalismo e, nesse caso, dojornalismo literário, uma vez que,diferentemente de O Diário, no qualcirculavam também matériasinformativas, A Nova Revista foitotalmente dedicada à literatura,certamente como a compreendiam osnosso intelectuais no século XIX, nãofaltando, assim, artigos de outras áreasdo conhecimento, mas que de algummodo mantinham pontos de contato coma literatura de ficção. Em suas páginascircularam contos, capítulos deromances, poesia, teatro – como é ocaso da peça O hóspede, um "drama em5 actos e 6 quadros a propósito do

romance A CASA DE PENSÃO deAluizio Azevedo", cujo autor era F.Pinto de Almeida Júnior –, ensaiosfilosóficos, textos políticos e uma seçãode "Notas bibliographicas", na qual osleitores tinham acesso aos diversostítulos recebidos na redação da revista.Interessa-nos analisar, assim comofizemos com O Diário, o programadesse periódico em causa.

O programa de A Nova Revista ou acrença no novo era uma novidade

Gostava que em sua casa houvesseum pouco de tudo. Não apareciapor aí qualquer novidade,qualquer novo aparelho de bater

ovo, gelar vinho, regar plantasque o Campos não fosse um dosprimeiros a experimentar.

A mulher, às vezes, já se ria,quando ele entrava abraçado a umembrulho.

– Que foi que se inventou?...perguntava com uma pontinha demofa.

O marido não fazia esperar ajustificação do novo aparelho, etal interesse punha em jogo queparecia tratar de uma obraprópria, de cujo sucessodependesse a sua felicidade.

(Aluísio Azevedo, Casa de pensão)

Mesmo não trazendo um título queidentifique o artigo como um programada revista, é fácil constatar que oprimeiro artigo do número 1, de janeirode 1896, de A Nova Revista funcionoucom tal finalidade. Assim, achamos porbem reproduzi-lo aqui:

Nada mais facil do que traçar umprogramma politico ou literario,quando não nos anima um idealrenovador, uma fórmula nova deconquistas na politica ou naliteratura – nada mais dificil do queemprehender uma obrarevolucionaria e altamentecivilisadora, demolindo falsos

principios, idéas falsas, velharíasque repugnam a um cerebro bemorientado e ao senso philosophicode uma geração robustecida peloestudo e pelo pensar proprio. Nósnos achamos no segundo caso aolançar A Nova Revista; no entanto,fazemol-o com desassombradaautonomia intelectual, comverdadeira independencia decaracter, apelando exclusivamentepara o esforço da mocidade, paraos cerebros novos e educados noamor ao trabalho, para os que ahiveem cantando a marselhesa doideal moderno e que hão de,necessariamente, completar acivilização brazileira golpeando o

favoritismo literario, proclamandoa era do trabalho e da intelligencia,creando uma literatura original,uma critica nova, uma arte nova,emfim, que seja o reflexo da vidaque vivemos na larguíssima edeslumbrante zona americana.

A reforma politica, fel-a o 15 deNovembro e consolidou-a ogoverno civil; caíram, como anjosrepudiados, os medalhões doimperio e surgiram novoselementos de vida e propriedadesocial. Por que tambem se não háde acabar de vez com os medalhõesliterarios (aurea mediocritas) queandam a exercer por uma especie

de direito divino, a dictadura dopreconceito e da intoleranciaburguesa sobre os melhoresespiritos desta geração?

É isto o que vamos tentarbriosamente, com a collaboraçãode moços cujo talento é a melhorgarantia d'A Nova Revista e dosnossos intuitos. Se houvessemos deapresentar um programma de vidaintelectual, nenhum outroencontrariamos melhor do que este– Guerra ao convencionalismo emtodas as manifestações dopensamento; logar aos novosespiritos, aos que desejam arenovação literaria do Brazil;

disciplina da mocidade para otriumpho e consagração daSciencia e da Arte.

Uma revista literaria, philosophicae artistica, sem preconceitos, nemorgulhos e falsa ostentação depatriotismo, com um caracteraccentuadamente universal e livre,é obra necessaria, agora que vamosmerecendo a attenção da Europacomo povo civilisado.

Literariamente, o nosso paiz é, semdúvida, o mais prospero daAmérica. Nem os Estados-Unidos,apezar dos seus folkloristas e dosseus Davis e Whitcomb Riley, nemo Chile pódem competir comnosco

em materia de arte escripta, quantomais as outras republicas sul-americanas, inclisive a financeiraArgentina, onde um pedaço de terraalheia preocupa mais os espiritosque um poema nacional ou umacritica do Sr, Garcia Merou. Ojornalismo norte-americano eplatino, muito mais adiantado que aimprensa diaria do Brazil, nãologra, todavia, apontar, emqualquer dessas nações, movimentoliterario que entre nóspresenciamos em toda a zonabrazileira. O que ainda nos falta é adisciplina para o estudo e para asconcepções artisticas; o nossotemperamento, imaginoso e

fecundo, perde-se a maior parte davezes, numa fantasia irriquieta enem sempre admiravel. Taine jádizia na introdução da HISTORIADA LITERATURA INGLEZA que– une œuvre n'est pas um simplejeu d'imagination, le caprice isoléd'une tête chaude, mais une copiedes mœurs environnantes et lesigne d'un état d'esprit – No versoverso admittiriamos a bohemia doespirito em eterno jogo de rimassonoras; o mesmo não succede naprosa – no romance ou no conto,generos que hão de,necessariamente, triumphar, pelaanalyse, sobre os de mais ramosliterarios.

D'essa falta de disciplinaintellectual nascem as produçõesmórbidas, inconscientes e de modoalgum proveitosas à Arte.

Não basta produzir muito, énecessario crear alguma cousaimmortal – poema ou romance emque a humanidade se veja e seadmire como na obras deShakespeare e de Cervantes.

Temos poetas notaveis, excellentesrimadores, cujos versos fluem nummaravilhoso cascatear de gemmassonoras, – poetas que sabem tecerbellas estrofes de amor,concretizando a vida no objetoamado; temos romancistas

igualmente notaveis, ainda que emnumero relativamente pequenos,autores de comedias e operetas;fantasiosos contadores de historiasgalantes, mas o tallento d'elles éabsorvido pela obrigação diaria deescrever para os jornaes, ou, o queé peior, fenece no elogio mutuo,asphixiado pelo incenso dasoblações reciprocas.

A bohemia literaria desappareceucom o Romantismo. A arte de hoje,como a arte do futuro, há de sergrave, mesmo no ridiculo, parasobreviver – grave, digamosestudada e sincera. O seu lugar éentre a philosophia e a sciencia,

com as quaes deve marchar.

Felizmente não vingaram no Brazil,nem no velho mundo, os chamadosdecadistas (a escola da loucura);esgotou-se o vocabulariopedantesco dos incomprehendidos,não tardaram as convenções, e osnovos trocaram as flôres roxas dosymbolismo pelos fructos aeres daverdade.

Já ninguém ousa impunementeevangelisar absurdos e falsascrenças literarias. O momento é omais opportuno para umarenovação. Admiremos a bohemianas deliciosas e queridas paginasde Henri Mûrger e trabalhemos

com verdadeira fé no nosso ideal.19

Do mesmo modo que não traz um título,o artigo também não é assinado; noentanto, pelo fato de Adolfo Caminha tersido o diretor de A Nova Revista,acreditamos que se trate de um artigoseu. As evidências a esse favor tambémsão constatadas pelo conteúdo do texto.Já no primeiro parágrafo, é clara acrença sempre presente no novo – "umideal renovado", "uma fórmula nova" –apontando sempre para as mudanças deum futuro que se pretendia próximo. Acrença no novo está presente logo notítulo do periódico: A Nova Revista.Caminha acreditava no novo quase domesmo modo que acreditava a

personagem Campos, do romance Casade pensão, de Aluísio Azevedo, comoconstatamos na epígrafe desta seção.Evidentemente que se trata a Campos deparódia dessa crença. Mesmo assim, épossível constatar de que o novo e anovidade eram preocupações do final doséculo XIX.

Se a chegada de um novo séculosempre fez sonhar, talvez tenhasido o fim do século XIX o quemelhor concretizou esse tipo deutopia. As exposições universaispassavam a demonstrardidaticamente o progresso e aimaginar o amanhã; osmapeamentos e inventos olhavam

para os impasses do presente, masde esguelha miravam o séculoseguinte; a "sciencia" impunha-secomo forma de redimir incertezas.

Sonhou-se muito na passagem doséculo XIX para o XX. Era esse omomento das realizações, daefetivação de projetos de controledas intempéries naturais. Ainda nãopairava no ar o cheiro da guerra; aidéia do conflito pareciacontrolada pela fantasia doprogresso, e os novos avançostécnicos traziam a confiança de umdomínio absoluto sobre a naturezahumana. (Costa & Schwarcz, 2000,p.11)

Além disso, constatamos também apresença de elementos do discursointelectual e cientificista do períodocomo a crença na civilização, capaz dedemolir "falsos princípios, idéas falsas,velharías", trata-se, nesse caso, dacrença na ciência como novapossibilidade de afirmação de um novoestatuto ou de um estatuto diferente, porexemplo, da religião. Junto à crença nacivilização está o conceito de"verdade", apresentado no artigo peloseu antônimo: o falso. Não nos interessaaqui provar que se trata de um artigo deCaminha; o que nos interessa é mostracomo esse texto está em consonânciacom o pensamento proposto e presenteem sua obra e como alguns elementos do

texto se juntam a outros já citados e nosdão uma ideia do tipo de pensamentoque governou a obra de Caminha.

O lançamento de A Nova Revista foicolocado como um exemplo da ação deelementos supostamente modernizadorese civilizadores: "um cerebro bemorientado e ao senso philosophico deuma geração robusta pelo estudo e pelopensar próprio". Junto à criação dalocomotiva, da ferrovia, do rádio, dotelegrafo, do automóvel, do metrô, dosdirigíveis aéreos, como foi o caso doZeppelin, do avião, da máquina deescrever, da pilha, da eletricidade, docódigo Morse, era preciso inventartambém um discurso que se unisse a

esses inventos duros, discurso esse quejustificasse e propagandeasse essasinvenções como valores a seremseguidos, defendidos e consumidos. Erapreciso, enfim, instaurar uma nova formade ser e de estar bem diferente da que seacreditava até então, ou seja, o novo eraa maior novidade, o que fazia que nemsempre fosse bem recebido: "Todasessas novidades não foram, porém,absorvidas com facilidade. Aocontrário, boa parte dos inventos maisbem-sucedidos foram vítimas dereprovações categóricas" (ibidem,p.19).

O novo sempre esteve presente nosartigos de Adolfo Caminha, como no

artigo "Novos e velhos", publicado noRio de Janeiro em 1893 nas páginas daGazeta de Notícias, bem como o artigo"Musset e os novos", publicado tambémno Rio de Janeiro, em 1895. No casodesses dois artigos citados, o novo erauma referência aos nefelibatas,decadentistas ou simbolistas, com osquais Adolfo Caminha manteverelações, mesmo que em muitas vezes oscriticasse. Assim, nem sempre o signodo novo era sinônimo de uma situaçãocom a qual o autor e críticoconcordasse.

Os signos do novo, nos artigos deAdolfo Caminha, também revelam orompimento com um comportamento que

muitas vezes ele destacou comoimpedimento para desenvolver aliteratura brasileira, como "a suavepalestra, descuidada e livre, do beco doOuvidor", a boêmia, o pouco caso com otrabalho do escritor. Civilização,verdade, trabalho, inteligênciaconcorreram para a criação de uma"literatura original, uma crítica nova,uma arte nova", eram esses os seusdesejos. Parte importante desses valorestambém tem origem nos pensamentosevolucionista e positivista de basescomtianas, spencerianas, hanckeans edarwinianas, que marcava os nossosintelectuais no final do século XIX,sobretudo aqueles de formação militar,como era o caso de Adolfo Caminha.

No segundo parágrafo do artigo, adiscussão proposta passou da situaçãopolítica do país, após o 15 denovembro, para a discussão literária. Oautor do programa requeria o fim do quechamou de "medalhões literários", "queandam a exercer por uma especie dedireito divino, a ditadura do preconceitoe da intolerancia burguesa sobre osmelhores espiritos d'esta geração".Assim, também encontramos nesseartigo uma espécie de personagem: osmedalhões literários como tantos outrosque encontramos nos artigos críticos deAdolfo Caminha.

No parágrafo seguinte constatamos osentimento missionário que regia a

criação e a publicação de A NovaRevista:

Se houvessemos de apresentar umprogramma de vida intelectual,nenhum outro encontrariamosmelhor que este – Guerra aoconvencionalismo em todas asmanifestações do pensamento;logar aos novos espíritos, aos quedesejam a renovação literária doBrazil; disciplina da mocidadepara o triumpho e consagração daSciencia e da Arte.

Assim, A Nova Revista era tambémcolocada na cena literária brasileira deentão como uma necessidade para o paísque supostamente se civilizava: "Uma

revista literaria, philosophica e artistica,sem preconceitos, nem orgulhos e falsaostentação de patriotismo, com umcaracter accentuadamente universal elivre é obra necessaria, agora quevamos merecendo a attenção da Europacomo povo civilisado". Juntamos aessas duas citações uma outra feita porAdolfo Caminha em seu artigo "Novos evelhos" e vemos claramente a relaçãodos conteúdos:

Se a mocidade brasileiracompreendesse nitidamente o papelcivilizador da literatura, aimportância absoluta da obra dearte, com certeza os seus esforçosduplicavam e o nosso país não

seria visto com desdém pelaFrança literária e pelo próprioPortugal, que, incontestavelmente,fulgura ao lado da Espanha e daItália e de outros países notáveisem desenvolvimento intelectual.

E continua Adolfo Caminha (1999a,p.21) apontando para a causa do que eleconsiderou como atraso literáriobrasileiro à época:

A grande causa do atraso a que voume referindo é a vadiagemliterária, o amor à popularidadebarata, a falta de escrúpulo em tudoque respeita as letras; e provadisso é que de todos os gêneros omenos cultivado no Brasil é o

romance, justamente porquedemanda mais esforço, maisconcentração, mais estudo e maiscritério, enquanto por outro ladoabundam poetas e folhetinistas,com especialidade na zonafluminense, poetas e folhetinistasde uma mediocridade lamentável.

Nessas três citações, destacam-se acrença na literatura como parte doprocesso civilizador e a crença naEuropa como fonte de reconhecimentodesse processo pelo qual o Brasilsupostamente estava passando. Sejuntarmos essas três citações àquelasobre o poeta francês Louis-Pilate deBrinn'Gaubast, veremos que uma

unidade de pensamento vai se formando.A crença na civilização foi juntada àcrença no progresso, no futuro, no novo.Essas eram as certezas dos nossosintelectuais, na verdade certezas umtanto incertas como dirão Costa &Schwarz (2000, p.25) ao chamarem operíodo dos anos de 1890 a 1914 de"tempo das certezas":

Afinal, a grande utopia dessavirada talvez tenha sido a"certeza". A certeza das teoriasdeterministas que permitiam prever– como na criminologia italiana deCesare Lombroso – o crime, antesque ele ocorresse. A certeza declassificar o mundo das plantas,

dos animais e dos cometas. Acerteza do controle sobre anatureza: sobre ventos,tempestades, pântanos eredemoinhos. A certeza de prever ofuturo. So faltava mesmo desvendara mente humana, esta sim sujeita a"desequilíbrios e deslizes".

Enganam-se, porém, aqueles queacham que as reflexões eram,assim, profundas. Os debates dodia-a-dia foram bem mais rasteiros.Era preciso determinar se o séculotinha início em 1900 ou em 1901 ouse a passagem do cometa Biela,naqueles anos, levaria ao final domundo ou não. De qualquer

maneira, de forma mais ou menosdireta é possível perceber oideário de uma época que, volta emeia, colocava em evidência asconquistas científicas alcançadaspelo homem, bem como seusefeitos contrários. Mesmo comtantas certezas, há sempre aapreensão diante do que não sepode planejar com certo grau deprecisão. Utopias trazem certezase, também, muitas dúvidas. Omundo que se debruçou sobre oséculo XX mostrou sua face maisidílica e otimista, mas nãoconseguiu esquecer o temor doporvir. Ainda assim, modernidadecombina com avanço e – nesse

caso – progresso. Que se esqueça ocometa ou o inconsciente em nomedos ganhos e da civilização. Eraessa face brilhante do teatro damodernidade que o Brasilpretendia acompanhar, já que nãoera possível tomar a dianteira.

Ao tratar da literatura brasileira àépoca, como que montando umpanorama rápido, lemos no citadoprograma de A Nova Revista:

Temos poetas notaveis, excellentesrimadores, cujos versos fluem nummaravilhoso cascatear de gemmassonoras, poetas que sabem tecerbellas estrophes de amor,concretisando a vida no objecto

amado, temos romancistasigualmente notaveis, ainda que emnumero relativamente pequeno,autores de comedias e operetas:fantasiosos contadores de historiasgalantes; mas o talento d'elles éabsorvido pela obrigação diaria deescrever para os jornaes, ou, o queé peor, fenece no elogio muttuo,asphixiado pelo incenso dasoblações reciprocas.

E o programa da revista parece serainda mais severo ao afirmar: "D'essafalta de disciplina intellectual nascem asproducções mórbidas, inconscientes ede modo algum proveitosas à Arte": Éimportante destacar que valores como

disciplina e consciência foram sempreimportantes para Adolfo Caminha.Assim, os novos tempos requeriamnovos sujeitos para uma nova literatura,muito mais funcional como já haviam semostrado as invenções e os novosobjetos que, aos poucos, invadiam ocotidiano, incluindo o brasileiro.Portanto, era preciso formar um novotipo de escritor para um novo tipo dediscurso; enfim, novos sujeitos, novaspráticas e novos objetos que acordassemcom os supostos novos tempos em que oBrasil pensava em viver. O programa darevista continua pintando esse quadroideal:

A nossa actividade jornalistica é

prodigiosa, mas se formosrigorosamente aquilatar o queproduzimos na critica, no romance,no conto e no verso, nenhuma obrase nos impõe com a grandeza e aforça de um poema cyclico ou deuma creação excepcional.

A bohemia literaria desappareceucom o Romantismo. A arte de hoje,como a arte do futuro, há de sergrave, mesmo no ridiculo, parasobreviver: – grave, digamos,estudada e sincera. O seu logar éentre a philosophia e a sciencia,com as quaes deve marchar.

Para uma nova literatura não poderiahaver outro lugar senão esse que o

programa de A Nova Revista lhereservou e assim o programa foiconcluído: "Já ninguém ousaimpunemente evangelisar absurdos efalsas crenças literarias. O momento é omais opportuno para a renovação.Admiremos a bohemia nas deliciosas equeridas paginas de Henri Mürger etrabalhemos com verdadeira fé no nossoideal". Até então vimos o programacomo um projeto, uma projeção dasvontades dos seus editores; no entanto, épreciso considerar o que de fato serealizou desse projeto.

O programa de fato

Nos nove números de A Nova Revista, o

lugar da literatura foi entre a ciência e afilosofia. O maior número de textospublicados foi de ficção: 18 contos; 19poemas, na sua maioria sonetos; umtexto de teatro: O hóspede. Tratava-sede um drama em cinco atos e seisquadros a propósito do romance Casade pensão, de Aluísio Azevedo; umtrecho do romance O Simas, de PápiJúnior; e um poema em prosa. Forampublicados também 11 ensaios de críticaliterária; um de política; dois defilosofia; um de economia; um dedireito; dois de história; três de histórialiterária; e uma tradução. Dito dessemodo, parece pouco significativo; noentanto, a análise qualitativa do materialpublicado é bem mais importante para o

tipo de análise que desenvolvemos.Destacamos o fato de que, no caso de ANova Revista, Adolfo Caminha teve aoportunidade de transformar manuscritosem textos impressos, o que se configuracomo uma das atividades do editor.

Quanto à poesia, é importante destacarque parte significante do que foipublicado em A Nova Revista é depoemas simbolistas, como no número 1:"Tarde do Egypto", de Rodrigues deCarvalho; "Succube", escrito emfrancês, de Pethion de Villar, que era opoeta baiano Egas Moniz Barreto deAragão;20 no número 2 temos "Angelus",de B. Lopes, em que trechos da oraçãoAveMaria são usados como refrão;

"Réquiem do sol", de Cruz e Souza;"Inverno", de Frota Pessoa; "Épitaphe",do já citado poeta francês Louis Pilatede Brinn' Gaubast. No número 3 temos"Valle de Josaphat", de Alves de Faria;"Consoladora dos aflictos", de FrancoJatuba. No número 4 foram publicadosos sonetos "Morta", de Silveira Netto;"Rencontre", de Louis Pilate deBrinn'Gaubast; "Constantinopla", deRodrigues de Carvalho, dedicado aGuilherme Studart.

Já no número 5 deu-se a publicação dosoneto "Tulipe noire", também emfrancês, do baiano Pethion deVillar; uma"Écloga", ou seja, uma poesia bucólicaem que pastores dialogam, de Carlos

Coelho. No número 6 foram publicados"Branca", de Silveira Netto; "Musaconvalescente", de Julio Cesar da Silva,em que o poeta pinta um quadro funestoda sua musa: Gosto de ver-te assim,Musa, em convalescença:/ Fracos osmembros, mansa a voz, tremula, o rosto/Tão chupado e sem côr, tão magro edescomposto,/ Que inda lembra a feiçãoque lhe imprimiu a doença". Nosnúmeros 7 e 8 foram publicado ossonetos "Visão", de Oscar Rosas, e"Merencória", de João Rego;"Suavíssima", de Xavier de Carvalho;"Succubat", mais um soneto em francêsdo poeta baiano Pethion deVillar. Noúltimo número da revista forampublicados "Alvorada", do cearense

Rodrigues de Carvalho; "A caridade",de Fontoura Xavier; outro poema dePethion de Vilar, mas esse em português,intitulado "A aranha".

Parada para reflexão I

Como vimos, não são poucos os poetassimbolistas que publicaram nas páginasde A Nova Revista. É até possível fazeruma coletânea dos poemas alipublicados. Se a revista teve uma vidaefêmera, será que esses mesmos poemasforam publicados em outros órgãos ouficaram restritos às suas páginas? Aaproximação de Caminha dos chamados"novos" ou "nefelibatas", termo usadopara referir-se aos poetas que hoje

conhecemos como simbolistas, fez surgirum comentário de José Veríssimo. Esse,apesar de sequer citar o nome de AdolfoCaminha ou os títulos de suas obras nasua História da literatura brasileira, de1916, não deixou de estranhar o fatocitado:

O malogrado Sr. Adolfo Caminha,a quem sobrava talento, mas aquem escasseava em grau nãocomum o senso crítico, tinha-sefeito o chefe dos "novos". Porsingular aberração, que é a maiseloqüente prova de quanto acertoasseverando que os "novos" nãocompreendem o movimento quedizem seguir, o Sr. Adolfo Caminha

foi toda a vida um naturalista, istoé, pertenceu à escola contra a qual,como ninguém ignora senão eles,principalmente se fez aquelemovimento. O seu último livroBom-crioulo, publicado quando jáos nossos simbolistas, decadistas,nefelibatas, místicos e quejandosagrupavam-se em torno dele, é feitosegundo os moldes do mais purozolismo. Este fato somente bastapara mostrar o desconcerto que vaientre eles, a incoerência das suasidéias, o indeciso e o inconsistenteda sua estética. (Veríssimo, 1976,p.80)

Ao certo, não há uma explicação para

essa aproximação de Adolfo Caminhados "novos", a não ser o fato de quetodos – eles e os novos – estavamigualmente à margem do sistemaliterário. Sânzio de Azevedo (1990,p.122) tratando do fato afirmou:

Quanto ao fato de Caminha haverespalhado tantas farpas contra osnefelibatas no livro de crítica e noano seguinte estar ombro a ombrocom muitos deles poderia serexplicado pelo processo demarginalização a que eramsubmetidos tanto Adolfo Caminhaquanto os simbolistas, pelos queeles viam como representantes da"literatura oficial".

É certo que, em suas Cartas literárias,Caminha muito criticara os poetas que àépoca eram chamados de "novos","nefelibatas" e "decadistas", os mesmosque hoje conhecemos como simbolistas;mas, tão certo quanto esse fato atestadoinúmeras vezes nas páginas de seu livrocitado, é que Adolfo Caminha (1999a,p.23) soube reconhecer o valor dapoesia de Cruz e Souza quando esse,mais do que a crítica à sua poesia, sofriao preconceito racial:

Se me perguntassem, porém, qual oartista mais bem dotado entre osque formam a nova geraçãobrasileira – pergunta indiscreta eociosa – eu indicaria o autor dos

Broquéis, o menosprezado eexcêntrico aquarelista do Missal,muito embora sobre mim caísse acólera olímpica do Parnaso inteiro.Erro, talvez, de observação e decrítica, mas o certo é que eu vejoem Cruz e Souza um poetaoriginalíssimo, de uma rarasensibilidade estética, sabendocompreender a Arte e respeitá-la,encarando a vida com aindependência de quem só tem umideal – a perfeição artística. (grifonosso)

Em desdobramento, podemos concluirque, para Adolfo Caminha, o que estavaem discussão era o alcance artístico do

poeta e não uma restrita aplicaçãoprogramática da arte. Além desse fato,vale destacar que o simbolismo comomovimento e estética se opôs aosvalores sociais e artísticos advindos doprocesso crescente de industrializaçãodo período. A esse respeito afirmouAlfredo Bosi (1975, p.297):

O irracionalismo literário não écapaz de substituir em forma euniversalidade as crençastradicionais; nem o seu alheamentoda ciência e da técnica vai aoencontro das necessidades dasmassas que ocuparam o cenário daHistória neste século e têmclamado por uma cultura que

promova e interprete os bensadvindos do progresso. Daí oslimites fatais da influência. Noentanto, o irracionalismo dosdecadentes valeu (e poderá aindavaler) como sintoma de algo maisimportante que os seus mitemas: oincômodo hiato entre os sistemaspretensamente "racionais" e"liberais" da sociedadecontemporânea e a efetivaliberdade do homem que asestruturas sócio-econômicas vãolesando na própria essência,reduzindo-o a instrumento demercado e congelando-o em papéiscada vez mais oprimentes. OsSimbolistas – como depois os

vanguardistas surrealistas eexpressionistas – tiveram estafunção relevante: dizer do mal-estar profundo que tem enervado acivilização industrial; e o fato deterem oferecido remédios inúteis,quando não perigosos, porquesecretados pela própria doença,não deve servir para tardiasexcomunhões.

Colocando-se então como oposição aoracionalismo excessivo das crençascientificistas, oriundas no bojo daindustrialização, o simbolismo, de certomodo, encontrou par no pensamento deAdolfo Caminha, pois esse, nas páginasdo já citado jornal O Pão, na sua coluna

"Sabbatina", assinada com opseudônimo Felix Guanabarino, criticoua invasão de hábitos franceses na culturalocal cearense, que desestimulava osfolguedos, que Caminha tanto estimava.Se em alguns momentos Caminhaencantou-se com a civilização e oprogresso, e isso é um fato em seusartigos, em outros momentos ele semostrou consciente de que esse processonão era para todos e que nem todos osseus efeitos eram benéficos:

E o bumba meu boi? e os congos?e os fandangos? e todas essasfestas tradicionaes que o povo seincumbia de crear para gaudio dosrapazes alegres?

...Tudo, tudo vai desapparecendocom o patriotismo nacional. ONatal, como o S. João e como todasas festas de caracter popular – vaidegenerando em festaaristocratica.21

É ainda do jornal dos Padeiros, porém,que vem um interessante exemplo doque, de fato, interessava ao críticoAdolfo Caminha. Vejamos o que nos tema dar O Pão:

Entre as novidades assombrosasd'estes ultimos tempos nenhuma tãooriginal, tão fim de século, como ossonetos materialistas do Snr.Mario Chaves, que a Republica

tem publicado a guisa de papa-fina.Ao que nos parece toda a obra deDarwin e Búchner vai ser traduzidaem versos nephelibatas pelojovem(?) anthropologista.

Aqui para nós: o Snr. MarioChaves faria muito melhor eprestaria ate um serviço relevanteao leitores da "Republica" si, emvez de poesias materialistas,escrevesse alguma cousa mais utile menos indigesta, não só porquepouparia-nos o trabalho de lerpoesia sem arte, como tambémaproveitaria a sua inteligencia,alias aproveitavel; dedicando-se aum estudo serio da origem e

evolução do homem. Sim, porque oSnr. Chaves, discutindo em versosmau feitos, jamais achará a chaveda magna questão. Isso de rimaranthropoide com concoide,terciario com "quaternario,geologico" com cosmologico,afinal de contas é perder tempo epapel ou, como lá diz o outro,malhar em ferro frio.

Concitamos o Snr Mario Chaves aestudar mais e a escrevermenos...puerilidades.22

Nesse trecho de O Pão, vemos mais umavez que, para Adolfo Caminha, o queestava sendo analisado era o trabalho do

poeta com a palavra e não o seu trabalhoem razão de um ou de outro programaestético. Mario Chaves escrevia"poesias materialistas" a partir da obrade Darwin e Buchner, no entanto o faziaà moda dos nefelibatas. Em ambos oscasos, isto é, seja pela fonte, seja pelaforma, o crítico Adolfo Caminha,assinando-se Felix Guanabarino, nãoachou que o trabalho do poeta estivessejustificado. Ou seja, para Caminha nãoimportava se o poeta defendia ou não oevolucionismo de Darwin como uma dascorrentes de pensamento que maismarcaram aqueles anos juntamente comoutras de forte influência cientificista, oque importava era o valor poético.Assim, as relações, aparentemente

contraditórias, de Adolfo Caminha comos novos estampadas nas páginas de ANova Revista podem ser desse modocompreendidas.

Mais do que contradições, parece haverum projeto próprio, com razões,interesses e fundamentos pessoais; há,portanto, uma economia de ideias quenem sempre é utilizada com todacoerência ou usada com uma coerênciainterna cuja lógica é mutável. Éimportante lembrar também que AdolfoCaminha escreveu o conjunto de suaobra no momento em que o romantismo,o realismo, o naturalismo, oparnasianismo e o simbolismo eramestéticas vigentes, senão com toda a

força de seus primeiros dias, como nocaso do romantismo, mas aindacirculantes e mobilizadoras dos leitores,entre eles o próprio Caminha.

A sua obra foi produzida no cruzamentodessas estéticas e deve ser por esse fatoque ele defendeu José de Alencar,Aluísio Azevedo e Cruz e Souza, ouseja, três escritores de estéticas eprogramas literários diferentes. Tambémsabemos que o movimento simbolistabrasileiro não era marcado por umaunidade de fazeres, o que, de fato,nenhum movimento o foi, pois cadamovimento é operado por inúmerospoetas, o que faz que cada um delespossa, mais ou menos, seguir padrão e

programa próprios. A esse respeitoafirmou Alfredo Bosi (1975, p.300):

Há, por outro lado, umadiferenciação temática no interiordo Simbolismo brasileiro: avertente que teve Cruz e Souza pormodelo tendia a transfigurar acondição humana e dar-lhehorizontes transcendentais, capazesde redimir-lhe os duros contrastes;já a que se aproximou deAlphonsus, e preferia Verlaine aBaudelaire, escolheu apenas ascadências elegíacas e fêz da morteobjeto de uma liturgia cheia desombras e sons lamentosos. Quantoaos "crepusculares", distantes de

ambas, prefeririam esboçar brevesquadros de sabor intimista: mas asua contribuição ao versobrasileiro não foi pequena, poisabafaram o pedal das excessivassonoridades a que se haviamacostumado os imitadores de Cruze Souza.

Analisando a poesia de Teófilo Dias, ecitando como exemplo o seu soneto"Ruínas", afirmou Wilson Martins(1996, v.IV, p.32):

O mais curioso é que, graças aoprocesso psicológico que fez doSimbolismo, em grande parte, umarevivescência da escola de 1830, oromantismo retardatário deTeófilo

Dias corresponde, por vezes, a umaclara antecipação da poéticasimbolista.

Aí [no soneto Ruínas] está tudo dofuturo Simbolismo: o vocabulário("coruchéus", "catedrais","déspotas feudais", "viajores"); atemática (castelos, ruínas, idadesdesaparecidas, misticismo); oestilo musical e melódico, maissugestivo do que descritivo, apesardas aparências. Claro não se tratade escola simbolista, mas depoesia simbolista, aliás comumentre os românticos.

Vemos, portanto, que escolas literárias

são diferentes de realizações literárias,que essas podem antecipar recursos queserão sistematizados como pertencentesa um programa estético, a um movimentoou grupo literário. Vemos também aatuação da atividade pessoal do poeta,antecipando efeitos, vocabulário,imagens, estilo.

Aquele desconforto de José Veríssimodiz-nos não somente de Adolfo Caminhae da sua análise crítica, mas, sobretudo,da tradição da crítica literária brasileiraque buscou ao longo de sua história e naprática dos seus fazeres analisar a regrae não a exceção, e ao fazê-lo, não soubeque fim dar à descontinuidade, à fissura,à quebra, à dobra, à rugosidade que

encontrava em seu caminho. Se nãopassou tudo a ferro para assim arrefeceras tensões e continuar escrevendo sobreuma superfície lisa, a crítica literária foibuscando meios de (des)qualificar essassituações, fosse no caso de adesõesintelectuais, fosse no de filiação deobras e autores. Flora Süssekind (1984,p.33-4), analisando a paternidadeautoral, afirmou:

Quando tal obra não corresponde atal escritor e tal escritor, por suavez, a tal tradição literária, não émais a família mas uma culturanacional que se deixa invadir pelainquietação. Uma cultura cujosbaluartes também estão fixos como

a galeria de retratos familiares nomuseu de La Nausée ou os ramosde uma árvore genealógica dosBuddenbrook. Uma literatura temsua tradição equilibrada pela pedradas estátuas de seus "grandes"escritores, pelas prateleiras de suasassépticas bibliotecas, pelafiliação de uns a outros, pelaenumeração de escolas diferentesque se sucedem" logicamente", pelacontinuidade de um conjunto deobras e nomes que, semambigüídades, parecem repetir-senuma trajetória idêntica.

A literatura de um país patriarcal,conservador, racista, misógino, sexista e

homofóbico como o Brasil estava (ouestá?) condenada aos valores da família,do respeito à ordem, ao progresso, àcontinuidade, à unidade, à lógica, nãohavendo, portanto, lugar para ofragmento, a contradição, o incerto, adiversidade, o hiato, a dúvida, a quebra,o rompimento, a fenda. Além disso, aliteratura brasileira de fato e de direitoesteve sempre preocupada com onacional. O seu motivo é o empenho,como a designou Antonio Candido(2006, p.28- 30) – literatura empenhada:"Este ponto de vista, aliás, é quaseimposto pelo caráter da nossa literatura,sobretudo nos momentos estudados; seatentarmos bem, veremos que poucastêm sido tão conscientes de sua função

histórica, em sentido amplo". Tratandoda "renovação literária" a partir dachamada "Geração de 1870" no Brasil,afirmouWilson Martins (1996, p.36):"As letras podiam e deviam concorrerpara instituir o processo permanente domelhor na sociedade civil e política: ointelectual não podia permanecersilencioso, assim como tinha o dever deser progressista e avançado".

Assim, nessa tradição da lógica, umaobra fendida é uma obra mal-acabada; éobjeto cujo feitor não soube lidar com amatéria-prima disponível, no casoespecífico da literatura, a palavra; e nocaso mais específico da literaturabrasileira, a palavra em razão da nação.

A lógica requerida pela tradiçãoliterária brasileira seria o carátermissionário de dizer o que é ou o queseria o Brasil, de conformar o corpo danação, de dar-lhe um rosto. A tradiçãoda crítica literária brasileira não soubelidar com as transgressões dos autores eo resultado dessas em seus textos. Paratal, a crítica literária procurava um qual(e estes tal e qual são para lembrar deFlora Süssekind) que os definissemmesmo que de modo indefinido: "obramenor", "texto circunstancial", "obrabissexta" etc. Süssekind (1984, p.34), aotratar dessa tradição, afirmou:

De pai para filho, de um escritor aoutro, de um período a outro,

espera-se que se repita a tradiçãotransmitida senão hereditária, aomenos literariamente. O texto devereforçar as característicaspreviamente conhecidas de seuautor. Deve, antes de tudo, reforçara própria noção de Autoria. Como,afinal, fazer a estátua de alguémcujo perfil está cheio deambigüidades e rupturas? Deve,por fim, se tornar legível à imageme semelhança de sua próprianacionalidade. Como reconhecerum texto que, ao invés de reforçar aidentidade nacional, produzainquietantes fragmentações? Comochamá-lo? Parricida, bastardo,estéril? (grifo da autora)

É nesse sentido, então, que aaproximação de Adolfo Caminha dos"novos" institui um problema, não paraele somente, mas para aqueles quebuscarem a compreensão de sua obra apartir da ideia de unidade, seja essaunidade formal ou temática, o queresulta em uma compreensão dacategoria autor distante da diversidade.Nessa tradição, o editor deve manter-semascarado, distante do autor de ficção,pois esse fora fichado e rotulado pelacrítica literária como naturalista. A suaatuação de editor dos novos" seria comouma mancha em sua folha corrida deautor, o que o enquadraria comomarginal de si mesmo. O que fazer comessa falha de Caminha? É o que se

perguntaria o crítico tradicional, ou seja,o crítico que buscasse a verdade daobra. Ele talvez a escondesse, relegandoo estudo da sua atuação como editor aum interesse menor dos estudosliterários propriamente ditos, pois essatradição nunca expôs as fraturas danossa literatura, e se as expôs foi paramostrá-la como exemplo de seudesacerto.

Assim, a percepção desse problema e odiálogo com Süssekind reforçaram acompreensão que temos defendido apropósito do autor e da autoria, e, nocaso de Adolfo Caminha, a suaconceituação como polígrafo. Apoligrafia é, então, a reabertura dessa

fenda por onde escapariam os supostos"fantasmas" do autor: o crítico, ojornalista, o editor. Não é por acaso queo estranhamento de José Veríssimo tenhasido tamanho, pois a obsessiva tradiçãoda literatura brasileira de dizer averdade parece não ter sidocontemplada pelo simbolismo. Alémdisso, Veríssimo não via com simpatiaessa estética literária: "José Veríssimo,que não apreciava nem o ideário nem aestética simbolista, chamou à corrente'produto de importação'" (Süssekind,1984, p.298).

Ainda sobre a desvinculação dosimbolismo dos "problemas nacionais",afirmou Bosi (1975, p.301):

O fenômeno histórico doinsulamento no fim do século XIXnão deve causar estranheza. Omovimento, enquanto atitude deespírito, passava ao largo dosmaiores problemas da vidanacional, ao passo que a literaturarealista-parnasiana acompanhoufielmente os modos de pensar,primeiro progressistas, depoisacadêmicos, das gerações quefizeram e viveram a 1a. República.E é instrutivo notar: a expansão dosgrupos simbolistas no começo doséculo correu paralela à doNeoparnasianismo. A novidade deCruz e Souza precisou descer aonível da maneira e academizar-se

para comover a vida literária dealguns centros menores do país epartilhar, modestamente aliás, asorte dos epígonos parnasianos.

Além disso, devemos destacar o fato deque o contato de Adolfo Caminha(1999a, p.131) com o simbolismo já sedera em Fortaleza, quando eleparticipava da Padaria Espiritual. Emsuas Cartas literárias lemos: "O únicovolume do Só, que apareceramisteriosamente na província, andava demão em mão, era lido e relido, eentrava-nos pela alma como um jorro deluz setentrional, como uma onda quentede vida nova. O Só era a nossa bíblia, onosso encanto, o nosso livro sagrado".

Era também da Padaria o poeta LopesFilho, que em 1893, portanto no mesmoano em que Cruz e Souza teve publicadoos seus Broquéis e Missal, deu àpublicidade o seu livro Phantos. Sânziode Azevedo (1976, p.209), a respeito dosimbolismo no Ceará, defende a ideia deque a sua fonte era Portugal e "seminfluência portanto do grupo da FolhaPopular, do Sul do país, ondepontificava Cruz e Souza". Assim, aconvivência de Adolfo Caminha com aestética simbolista já se iniciara emFortaleza.

Retorno adiante: os contos em A NovaRevista

Voltemos, porém, à revista e vejamos oscontos que foram publicados nas suaspáginas, pois eles também são exemplosdesse diálogo de Caminha com ossimbolistas, o que não quer dizer quetodos os contos publicados sejamsimbolistas, bem como seus autores. Nonúmero 1 de A Nova Revista forampublicados os contos "Os zíngaros", deCollatino Barroso; "Poema do amor",uma espécie de poesia em prosa, deFrota Pessoa; "Um Stradivarius", deEvangelista da Silva. No número 2foram publicados Goso secreto", de"Gonzaga Duqu'Estrada, e "Agonias", deNestor Vitor. No número 3, "Via sacra",de Arthur de Miranda; "Bucólica", deJulio Perneta; "Job", de Oliveira Gomes,

e "Pandemônio", de Collatino Barroso.

No número seguinte "Per Tenebras", deFrota Pessoa; "A musa da comedia", deEvangelista da Silva; "Para depois", deRaul Braga; "Visões", de Candido Jucá.O número 5 teve apenas uma publicaçãoem prosa: "Perfil de mulher", de AfonsoCelso. O mesmo aconteceu no número 6com apenas a publicação de "Cinza", deCunha Mendes. Nos números 7 e 8foram publicados: "Diluenciasmusicaes", de Arthur de Miranda;"Oficio fúnebre", de Raul Branco; "Atarde no sertão", de Francisco Pacheco.e "Almas doentes", de AntonioAustregésilo. No último número forampublicados "A cachopa", de F. Carneiro,

e "In Extremis", de Frota Pessoa.

Dos contistas aqui citados, sãosimbolistas: Collatino Barroso, OliveiraGomes e Antônio Austregésilo, todoseles figurando no Panorama domovimento simbolista brasileiro, deAndrade Muricy. Vimos que OliveiraGomes era o secretário de A NovaRevista, informação essa que não constanos dados a seu respeito no citadoPanorama. Sabemos, no entanto, queOliveira Gomes passou por váriosperiódicos antes e após seu trabalho emA Nova Revista, como: a revista Vera-Cruz, órgão da sociedade que fundoucom colegas chamada Os Novos; naGazeta de Notícias, do Rio de Janeiro,

onde Adolfo Caminha publicou as suasCartas literárias, foi responsável pelaorganização e direção do Almanaque. Aatuação de Oliveira Gomes nojornalismo foi intensa, ao ponto deAndrade Muricy (1951, v.2, p.112)afirmar:

A partir de 1906 não mais publicoutrabalhos literários. O jornalismoabsorveu-o quase totalmente. Sófêz exceção para alguma produçãoteatral, como a opereta do tipo dasvienenses, então em maior voga,que fêz representar por volta de1909.

Depois de passar por váriosjornais, entrou definitivamente para

A Notícia, onde foi primeiramentecronista teatral, e por fim redator-chefe, função em que se conservouaté à morte. "O diretor tudo lheconfiava. Fôra-lhe o braço direito,tal o apuro e a atividade quedesenvolvia Oliveira Gomes naorganização das edições dosimpático diário vespertino.Notícias, folhetins, crítica,distribuição da matéria, o que diziarespeito ao bom êxito da fôlha,durante ao menos algum tempo,dependia da dedicação de OliveiraGomes. Moirejava e aniquilava-se».

Vemos por essa citação que Adolfo

Caminha se cercara de um profissionalde reconhecido valor para a edição de ANova Revista. O bom conhecimento deOliveira Gomes a respeito dofuncionamento dos jornais e revistas àépoca foi o que certamente o uniu aAdolfo Caminha naquela que foi a suaúltima empresa no jornalismo literário.

Apesar de não haver uma delimitaçãoformal, uma primeira parte da revistaera dedicada à ficção. Os artigos dasdemais áreas do conhecimento estavamagrupados em uma segunda parte, naqual também estavam os artigos decrítica literária, alguns deles escritospelo próprio Adolfo Caminha, osdemais eram de autores diversos como

veremos na relação a seguir. No número2 deu-se a publicação de "Os mortos",assinado simplesmente por W, em quese comentou sobre os escritores João deDeus, Paul Verlaine e AmbroiseThomas; o artigo "Pompeyo Gerner", deAdherbal de Carvalho, sobre o livroLiteraturas malsanas. No número 3foram publicados "Zola e os novos", deAdherbal de Carvalho; nas seção"Chronica de Arte" desse mesmonúmero foi publicado "Illustrações eIllustradores", de GonzagaDuqu'Estrada. Nos números 7 e 8 lemos"Harpa Nocturna", de Sylvio Romero,sobre romance um homônimo.

Jornalismo, literatura e quem mais

chegar

Também em A Nova Revista forampublicados artigos de diversas áreas doconhecimento, como filosofia, direito,economia, história, história literária. Nonúmero 1, o jurista Clovis Bevilacquateve publicado o seu artigo"Repercussões do pensamentophilosóphico sobre a mentalidadebrazileira", que só foi concluído nonúmero 3. Nesse mesmo número forampublicados: "O velho e novo mundo", deFrancisco Pacheco, mais conhecidocomo Fran Pacheco, que era amigo deCaminha; "As Arcadias", de TheodoroMagalhães, que continuou no número 2.Além da continuidade dos artigos

citados, no número 2 foi publicado "OEvangelho socialista", do já citadoFrancisco Pacheco. No número 3, "Adoutrina Monroe", de A. J. Lamoureux,que, segundo consta em uma nota derodapé, foi traduzido do inglês.

No número 4 foram publicados os"Ensaios Philosophicos", de AntonioAustregesillo, cuja publicação continuouno número 5. Neste mesmo número foipublicado o artigo "FinançasBrazileiras", de Hugo Bussmeyer, queteve continuidade no número 6, no qualtambém lemos "Os Theatros", deOliveira Gomes, que, como vimos pelacitação de Andrade Muricy, fora autorde operetas do tipo vienenses em voga à

sua época. Esse artigo de OliveiraGomes continuou a ser publicado nosnúmeros 7, 8 e 9 de A Nova Revista,"Lingua Portugueza", de FranciscoPacheco. Nos números 7, 8 e 9 tivemospublicado um longo artigo intitulo "Aobra junqueiriana", novamente deFrancisco Pacheco. Ainda nos números7 e 8 tivemos o artigo "O direito depunir", de Theodoro Magalhães, quecontinuou no número 9. Nesse número,além das continuidades dos artigosanteriores, foi publicado o artigo "AGaláxia", de Raul Braga.

Parada para reflexão II

Esse arrolamento de poemas, contos,

artigos dos mais diversos tipos eassuntos, bem como o nome de seusautores serve para demonstrar eproblematizar o quanto a literatura se feze se faz a partir de uma rede de contatos,de uma rede de relações em que aamizade e os interesses os maisdiversos, sejam eles estéticos eeconômicos, ajudam a conformar osistema literário ou, de forma maisampla, o campo literário. Aquilo que ahistória da literatura ou a histórialiterária tendem a tornar homogêneo é,de fato, diverso e, sobretudo,controverso. Fez-se no exercício diáriodas redações de jornais e revistas, nasconversas entre pares, nos embates e nasuniões em torno do que poderia em

comum provocar o interesse de todos: aliteratura. No caso de A Nova Revista,cada nome aqui citado funcionava comoum divulgador.Vemos que, entre essesnomes, alguns são consagrados, comoera o caso de Sylvio Romero e ClóvisBevilacqua. Outros tantos não constamdo restrito grupo dos canônicos; noentanto, são exemplo de que a literaturase faz com o trabalho de inúmerossujeitos, sejam eles os que estão nadianteira dos fatos ou sejam elesepígonos, ou ainda, lembrando aquiRobert Darnton, "os intermediáriosesquecidos da literatura".

Dos nomes citados, muitos só figuramem obras específicas a respeito de

escolas ou estéticas literárias, como é ocaso, por exemplo, do Panorama domovimento simbolista brasileiro, deAndrade Muricy. A obra de muitosdesses escritores, grande parte delestambém polígrafos, o que confirma apoligrafia como uma característica doséculo XIX, mas não somente dele,encontra-se ainda por publicar. Algumasobras ainda esperam por ser recolhidasnos periódicos literários e nosperiódicos noticiosos no Brasil, o quetambém reforça a importância do estudodas fontes hemerográficas para apesquisa em literatura.

Livros e revistas na vitrina

Infelizmente, nos números de A NovaRevista existentes no acervo daFundação Casa de Rui Barbosa nãoconstam as capas, como já temos dito, oque nos impediu, por exemplo, deverificar se essa revista, assim como ojornal O Diário, vinculava algumanúncio comercial. No entanto, nomaterial analisado no caso do periódicocarioca, valorizamos as suas chamadas"Notas Bibliographicas" nas quais estãolistados os títulos recebidos na redaçãode A Nova Revista. No caso do seuprimeiro número, há uma "Synopse domovimento literário no Brazil de 1895",algo como já o fizera Araripe Júnior noseu artigo "Movimento literário do anode 1893".

No caso de A Nova Revista, trata-se dealgo bem mais simples, pois como opróprio título deixou claro, era uma"synopse", que fora organizada em cincotópicos – poesia, conto, romance, críticae obras diversas – seguido de mais umintitulado: Os livros de sciencia,philosophia, politica etc. publicados em1895. Destacamos o fato de a revista darpublicidade a vários livros de poesiapublicados, em 1895, no Ceará, comoTrovas do Norte, de Antônio Sales;Clamydes, de Ulysses Sarmento; Ospescadores da Tahyba, de Alv.[Álvaro] Martins; Cromos, de Xavier deCastro. Dos romances, encontramoscitados: Os brilhantes, de RodolfoTeófilo, e Bom-Crioulo, do próprio

Adolfo Caminha, sem designá-lo comosendo do Ceará, talvez porque o livrofora publicado no Rio de Janeiro.

Trovas do Norte foi o segundo livro depoemas de Antônio Sales, publicadoscinco anos após aquele com que estrearaem 1890: Versos diversos. A propósitodesse, bateu-se com Adolfo Caminha naimprensa do Ceará. Osdesentendimentos, felizmente, não foramsuficientes para impedir que Caminhafosse convidado por Sales para fundarcom ele e outros a Padaria Espiritualcomo também já vimos. Sobre UlyssesTeixeira da Silva Sarmento sabemosapenas que nasceu no Espírito Santo,indo ao Ceará como aluno da Escola

Militar. Em Fortaleza, fez parte doCentro Literário, do qual fora um dosmembros fundadores. Em 1895 o seunome não consta mais na lista de sóciosdo Centro, como constara no anoanterior. Clamydes, diferentemente doque se pode concluir pela leitura de ANova Revista, não é de 1895, mas de1894. A seu respeito afirmou Sânzio deAzevedo (1996, p.175): "PublicouClâmides (1894), livro imperfeito, quenão pode ser qualificado de parnasiano,mas se ressente de forte influênciabilaquiana".

Álvaro Martins, que também fora opadeiro Policarpo Estouro da PadariaEspiritual, desligou-se dela mesmo

tendo sido um de seus fundadores emigrou com Temístocles Machado, seuconfrade de forno, para o CentroLiterário de onde hostilizava aquelegrêmio. No jornal abolicionistaLibertador assinava com o pseudônimode Alvaris. Álvaro Martins, segundoSânzio de Azevedo, militou nojornalismo carioca ao lado de José doPatrocínio. Os ditos Pescadores daTahyba, de 1895, foi o seu livro deestréia. O livro de Xavier de Castro ouX. de Castro, conhecido entre seusamigos Padeiros como Bento Pesqueiro,foi publicado postumamente por esforçoda Padaria Espiritual. Sânzio deAzevedo (1976, p.96-7), a respeito docitado Cromos, afirmou:

situam-se perfeitamente dentrodaquela tendência que PériclesEugênio da Silva Ramos chamou deRealismo Agreste, e que, tendocomo principal representante noBrasil o poeta B. Lopes, teve suaorigem na "influência de GonçalvesCrespo, conjugada a certa linhaingenuamente campesina de nossosromânticos".

Não foram, porém, somente os autorescearenses que constaram nessearrolamento de livros publicadosnaquele ano. Juntaram-se a elescariocas, mineiros, gaúchos, paulistas,paraenses, o que evidencia oconhecimento de livros publicados em

vários estados do país, o que conferiaao periódico um certo caráter nacional edava a Adolfo Caminha o conhecimentodo que se fazia em outras cidades. Épreciso, portanto, estar atento a essefato: a recepção e divulgação de livrosem A Nova Revista fazia que ela fosseuma vitrina do que se produzia ecertamente possibilitava a AdolfoCaminha a leitura de vários dessestítulos, podendo eles também figuraremem sua biblioteca de formação. A partirdo número 2, as "NotasBibliographicas" passaram a serorganizadas em duas seções: "Livros" e"Revistas". No entanto, cada livro eperiódico passou a ser comentado, comonuma espécie do que hoje chamamos de

resenhas, tão comuns atualmente nosjornais de circulação no país.

A citada seção do número 2 de A NovaRevista traz a seguinte nota quanto aoslivros: "Não incluimos nesta secção asobras publicadas em annos anteriores a1896, algumas das quaes nos foramenviadas.Vamos registando aqui oslivros nacionaes e estrangeiros de quetivermos noticia, mas a começar dejaneiro deste ano, sem excluirmos,comtudo, as novas edições". Nessenúmero 2 foram citados os livrosPátria, de Guerra Junqueiro; Amor, deFigueredo Pimentel. De revistas citadas:Arte, os dois primeiros números darevista editada em Coimbra por Eugenio

de Castro. No caso dessa revista deCoimbra temos o retorno à nota arespeito do poeta francês Louis Pilate deBrinn'Gaubast: "O segundo numero trazo retrato de Louis-Pilate deBrinn'Gaubast, o notavel poeta francez(embora nascido na Luiziania...) que noshonrou com a sua collaboração,acompanhado de umas notas bio-bibliographicas do autor de Epithaphe eRencontre".

La Revue Blanche, de primeiro defevereiro de 1896, também foibrevemente comentada, destacando-sede suas páginas uma polêmica entre Zolae Verlaine. Seguem a essa revista oscomentários a respeito de A Bruxa,

revista dirigida por Olavo Bilac e JuliãoMachado. Ao final do comentário, ABruxa foi chamada de "Moderna escintillante". Tiveram também lugar nas"Notas Bibliographicas" os periódicos:Revista Contemporanea, de Recife; AMadrugada, de Lisboa, destacando oscomentários sobre o poeta portuguêsJoão de Deus e informando que aprimeira página do número de janeirodaquele ano era estampada por umretrato de Aluísio Azevedo; A Penna,publicada no Ceará, a respeito da qualafirmou:

A uma força de vontade realmentedigna de applausos devem osredactores d'A Penna a manutenção

deste periodico, em que figuram osnomes conhecidos de ThomazPompeu, Justiniano de Serpa,Alvaro Martins, Rodrigues deCarvalho, Lopes Filho e outros. Énotavel a abundancia de revistasliterarias que surgem edesapparecem na capital cearense;mas A Penna, fazendo excepção áregra e desdenhando daindifferença habitual do burguezpoliticante, que lê as folhas paraver o seu nome nos editaes ou nasfelicitações de anniversario – dáum bello exemplo de tenazrelutancia. (os grifos são do autor)

Não podemos dizer ao certo que o

resenhista era Adolfo Caminha; noentanto, pelo conteúdo dessa citaçãosobre A Penna, vemos que se tratava deum conhecedor do jornalismo literáriocearense. As palavras grifadas,sobretudo a expressão "burguezpoliticante", pertencia ao repertório deexpressões usadas por Adolfo Caminhapara caracterizar os seus desafetos nocampo literário cearense, bem como foiusada várias vezes em O Pão, órgão dosPadeiros contra quem os burgueses deFortaleza se mostravam contrário.Anteriormente, discutimos o significadodo termo burguês usado à época.

Nesse mesmo número de A NovaRevista foram comentadas ainda:

Revista do Instituto Didactico; RevistaAcademica, Revista MarítimaBrasileira e A Palavra. No caso dessastrês publicações, destacamos a segunda,por tratarse de uma revista da Marinha,instituição da qual Adolfo Caminha,como já vimos, fazia parte. Mesmodesligado oficialmente da Marinha,desde 1890, não deixou de divulgar asua revista, o que nos dá algumfundamento para contestar a alegação deque ele escrevera o Bom-Criouloobjetivando apenas vingar-se daquelaforça armada nacional. Se a sua intençãoera essa, então por que continuaranunciando o periódico citado? Quevínculos ele mantinha com a Marinha aponto de lhe serem enviados números do

periódico? Essas são questões quetrazemos à cena, mesmo conscientes deque não as responderemos. Mas, aindaassim, achamos por bem fazê-las.

O número 3 de A Nova Revista teve setede suas páginas dedicadas aoscomentários sobre livros e revistas. Daseção de livros constam: Direito dafamília, de Clóvis Bevilacqua; I Nuovipoeti portughesi, do napolitano AntonioPadula; Petites proses, de GeorgeOudinot, com a indicação de ser deParis; A João de Deus, de JoaquimAraujo, indicando ser de Gênova. Naseção dedicada às revistas foram citadase comentadas: A Questão Social, deSantos, São Paulo; Club Coritibano, de

Curitiba, Paraná; Revista Critica deHistoria y Literatura, de Madri; maisuma vez a Revista Contemporanea, deRecife, foi citada, indicando, com isso,haver uma continuidade no contato entreos dois periódicos; Revista dos Lyceos,do Porto; Les Temps Nouveaux, deParis; Portugal Literário, de Lisboa;Journal des Artistes, de Paris; mais umavez A Bruxa, segundo A Nova Revista,no número 2 "A prosa de Olavo Bilacscintilla no texto d'A Bruxa, tornando-acada vez mais leve. Excusado é dizerque Julião Machado faz diabruras nacritica dos acontecimentos"; novamentea Revista Maritima; O Cenaculo, deCoritiba; La Magazine Internacional,de Paris; Revue Encyclopédique

Larousse, também de Paris.

Dessas revistas destacamos asportuguesas, a espanhola e as francesas,o que parece indicar um conjunto deleituras estrangeiras dos membros de ANova Revista, entre eles AdolfoCaminha.Vários desses periódicos serãonovamente citados em outros números, oque indicava uma continuidade docontato e das leituras. Destacamostambém o fato de O Cenáculo sercitado, pois, como sabemos, tratava-sede uma das revistas dos simbolistas noBrasil.

Diferentemente do número 3, o número 4trouxe poucos comentários nas suas"Notas Bibliographicas". Na seção de

livros comentou apenas Versos dehontem, publicado no Ceará, de autoriade Pedro Moniz, que foi um dosmembros do Centro Literário, chegandoa ser seu secretário. Além desse livro,escreveu: Bíblia do amor, de 1895m e"uma novela realista, 'O estupro', narevista Iracema" (Azevedo, 1976,p.174). Na resenha do livro de Moniz, ocrítico foi implacável:

Que lucrou a literatura nacionalcom a publicação d'este livrinho?Positivamente nada, elle é umexemplo da paralysia mental d'estaépoca, que se recommenda pelodiletantismo ocioso e pelasoffreguidão de glorias. O autor é,

talvez, um rapas de talento, comose usa dizer nas rodas literarias;mas, se isto é verdade, o que nãoduvidamos, que significa estelivro? Uma aberração? Umaanemia? E' o que não sabemosresponder. Conhecemos de PedroMoniz alguma coisa melhor que osseus versos: a sua prosa. Ora,escrever bôa prosa já é um domprecioso, mais precioso queescrever máus versos. Dedique-seá prosa, ao romance, ao conto, áarte sem metro e não searrependerá. Os Versos de hontem,além de defeituosíssimos, não têmespontaneidade, nem exprimemalgo nuevo. A poesia para ser bôa,

há de ser de todos os tempos ounão é poesia, e ninguém é poeta porum capricho da vontade. TrabalhePedro Moniz, dê-nos um livroforte, uma obra menos infantil emais duradoura que os ephemerosVersos de hontem. Julgamol-ocapaz de melhores producções.(grifo do autor)

Essa crítica nos faz pensar que oresenhista de A Nova Revista eraAdolfo Caminha. Quem mais conheciaPedro Moniz? Quem mais escreveriacom tanta veemência? Quem mais seinteressaria por um poeta cearense? Naseção de revistas foram citadas eresenhadas: Revista Critica de Historia

y Literatura, de Madri; RevistaMasónica, de Buenos Aires; RevistaMarítima Brasileira; Les TempsNouveaux, de Paris, da qual o resenhistadestaca o livro L'anarchie et lesartistes, de Antoine Mornas, a respeitodo qual afirmou:

O autor occupa-se dos artistasnovos e debutantes que sereconhecem ignorados ou como talse julgam. Combate a arte pela arteresponsabilisando os editores pelamiseria de alguns escriptoresobrigados a pagar, do seu bolso, aimpressão de suas obras. E' umartigo de propaganda socialista quemerece leitura.

Nesse mesmo número ainda temos:Revista dos Lyceos, do Porto, Portugal eA Bruxa, em seus números de 7 a 10.

Como vemos, os comentários apropósito das revistas estrangeirascontinuaram, o que indica a continuidadedo contato e da sua recepção por partedos membros de A Nova Revista. Essesperiódicos funcionavam, então, comouma ponte entre o conhecimentoproduzido na Europa e sua recepção noBrasil. A respeito dessa ligação entre oBrasil e a França, destacadamente noque diz respeito aos seus autores, livrose a vida intelectual, Clóvis Bevilacquaafirmou no seu artigo publicado naprópria A Nova Revista: e as nossas

symphatias pelos productos intelectuaesfrancezes são uma obsessão de que nãonos curam nem as picardias asperas dogoverno francez, nem o conhecimento deexpansões literárias, scientificas efilosóficas em outros paises, ainda quemais brilhantes".23 A Nova Revistaprocurava balancear essa equação, umavez que colocava em cena não somenteperiódicos franceses, mas tambémperiódicos portugueses, espanhóis eargentino, apontando para uma novapossibilidade de diálogo, novasobretudo no caso do diálogo com aAmérica Latina, representada pelaArgentina.

As "Notas Bibliographicas" do número

5 de A Nova Revista foram iniciadascom os comentários do livro Chromos,de B. Lopes. Nesses comentários, oresenhista não poupou farpas atiradasem Valentim Magalhães, com quemAdolfo Caminha se desentendera porcríticas desse ao seu romanceBomCrioulo, como já vimos na leitura eanálise de seu artigo "Um romancecondemnado". Se os louvores a B.Lopes e à segunda edição dos Chromosforam inúmeros, inúmeras foram tambémas críticas à Valentim Magalhães,críticas à moda do século XIX ou, maisespecificamente, à moda de SílvioRomero em seu Zeverissímaçõesineptas da crítica, com o uso, porexemplo, de epítetos e expressões

esdrúxulas: parasita da literaturanacional, emérito abocanhador dereputações literárias, há-de estourarcomo a rã da fabula, na impotencia de semedir com o verdadeiro talento.

Ainda desses comentários sobre o livroChromos, destacamos o que afirmara oresenhista a propósito da primeira esegunda edições:

Os Chromos, de B. Lopes,grangearam uma estima fóra detoda a norma, sendo, entretanto, umlivrinho de poucas paginas,modestamente impresso e trazendoo nome de um poeta obscuro. Anova edição [a primeira é de 1881]que agora aparece reclamada pelo

successo, tem outro valor maisartistico e desperta maior interesse,por vir augmentada e ter passadopelo cadinho da revisãoescrupulosa do autor; é como sefosse outro livro, desde o trabalhotypographico até a parte inédita Figuras e Festas intimas, semexcluir alguns sonetilhos novos e omagistral soneto de abertura,impresso á tinta encarnada verdadeiro rubi engastado naprimeira pagina dos Chromos.(acréscimo nosso)

Vemos por essa citação que o resenhistaera interessado nos aspectos materiaisda edição dos livros, destacando os

elementos figurativos de cada uma dasedições dos Chromos. A comparaçãodos elementos materiais das duasedições evidencia esse fato. Tratava-se,portanto, de alguém que em sua análiseconsiderava o texto em seu suporte. Aoscomentários do livro de B. Lopesseguiram os comentários do livroVagas, esse também de poemas, deSabino Baptista, que também fora daPadaria Espiritual, onde era conhecidocomo Sátiro Alegrete. Antes das Vagas,teve publicado Flocos, de 1894.Segundo Sânzio de Azevedo (1976,p.160), Foi secretário d' O Pão, e eracasado com a poetisa Ana NogueiraBatista. Colaborou largamente naimprensa fortense, onde já se destacava

mesmo antes da criação da PadariaEspiritual.

Diferentemente do que fizera com osChromos, o resenhista de A NovaRevista não foi nada favorável com asVagas, de Sabino Batista:

Aqui a pena sente-se constrangida.O assumpto é o mesmo versos,mas versos de todos os dias, versosque estamos cansador de lêr emlivro e nos jornaes quotidianos,versos que não impressionam e quenos fazem o effeito de versõesdeturpadas. O livro é pequeno:cento e poucas paginas, ediçãomignone, era natural que tudo ouquasi tudo nelle fosse bom; o

contrário, porém, é o que seobserva: o livrinho é, em geral,pobre, de uma pobrezacommovente. Um invalido, que nosviesse pedir esmola á porta decasa, não commoveria tanto...

Respeitamos os bons sentimentosdo poeta. As suas Vagas teem aconsistencia de floccos que sedesmancham a um sopro.

Seguiram-se aos comentários das Vagas,a crítica a Artigos e chronicas, de Raulde Azevedo, publicado no Pará. Nessecaso, o resenhista também foiimplacável. Mas não era somente aliteratura de ficção que constava na

seção de livros das "NotasBibliographicas". Nesse citado número5 da revista há também a crítica a trêslivros, um a respeito da jurisdiçãoeleitoral, intitulado Catecismomunicipal, de Domingos Jaguaribe,publicado em São Paulo; o outro livro éElementos de finanças, de AmaroCavalcante. Por último temos ARevolução de Cuba.

Na seção de revistas das "NotasBibliographicas" do número 5 de ANova Revista temos: Review ofReviews, de Londres; Journal desArtistes, de Paris; Les Temps Nouveaux,também de Paris; A Arte, do Porto,Portugal; Revista Moderna, de Lisboa;

O Instituto, de Coimbra; Revista dosLyceos, do Porto; Revista Critica deHistoria y Literatura, de Madri; ABruxa; Revista Azul, de São Paulo.Revista da Academia Cearense; LaRevista Litteraria, de Buenos Aires, OCenaculo, de Curitiba; A QuestãoSocial, de Santos, São Paulo; RevistaContemporanea, do Recife,Pernambuco, A Penna e Iracema, ambasdo Ceará.

Vemos pelos títulos citados que oscontatos com periódicos nacionaiscontinuavam e com os estrangeirosaumentavam. O recebimento deles pelarevista de Caminha é um exemplo disso.A constância com que os números eram

comentados, geralmente seguindo apublicação regular, é um exemplo dodiálogo entre os periódicos. Nãopodemos afirmar se A Nova Revista eratambém enviada para aquelas cidades epaíses de origem dos periódicos citadose resenhados nas "NotasBibliographicas", o que é muitoprovável, uma vez que a troca devolumes era uma forma, talvez a maisusual, de divulgação. Os comentáriostambém são formas de dar notícias aosleitores do que se passava no campoliterário, suas lutas internas, a relaçãode outros autores com editores, enfim ojogo de forças que conformam essecampo em lugares e tempos diferentes:

Theotonio Freire publica umanoticia literaria do Hydrophobo, deFarias Neves Sobrinho. Este rapazandou, há mezes, nesta capital [Riode Janeiro] com os originaes doseu romance Morbus, cujapublicação não se realisou por faltade editores, e foi obrigado a voltará provincia inédito, fazendo,naturalmente, pessimo juizo dacivilisação fluminense. E',entretanto, um dos melhorestalentos do norte. O Hydrophobofoi editado em Paris, pela casaHugo & G, do Recife. Qual a razãoporque não o expuzeram á venda noRio de Janeiro?

Assim, A Nova Revista era também olocal de registro das tentativasmalogradas, do que não deu certo emdado momento, do desejo não realizado.Publicar nem sempre foi o resultadofinal ou a entrada definitiva para aRepública das Letras. Podia-se publicare por isso mesmo ser notícia. TheotonioFreire é um exemplo disso queafirmamos. Mas também, ser notícia nãofranqueava ao noticiado a participaçãono mundo das letras.

No plano nacional, por essas revistas oshomens de letras dos Estados do Nortepodiam dar notícias do que faziam aosseus pares do Sul. Assim como osperiódicos comerciais, esses periódicos

literários também serviam de vitrinapara os produtos intelectuais dosdiversos pontos do país, bem como eramvitrinas daquilo que chegava de fora.Por isso, não foram poucas as revistascitadas oriundas do Ceará, dePernambuco e do Pará, mas percebemosclaramente um maior número dasrevistas cearenses, fossem elas revistascientíficas e literárias, como o foram,por exemplo, a Revista da AcademiaCearense e a revista Iracema, órgão dojá citado Centro Literário.

Foi assim que também se viu novamentecitada a revista O Cenáculo, órgão domovimento simbolista curitibano.Fazendo par com o pensamento já

divulgado pelo artigo "Catecismosocialista", os comentários sobre arevista Questão Social, de Santos,apontam para um possíveldirecionamento ou simpatia política deA Nova Revista. Mais uma vez tratou-seem suas páginas do socialismo,enaltecendo os feitos da Comuna deParis e o significado do 1º de maio paraa classe operária.

Pelos títulos até aqui citados, vemos queo repertório de leituras realizadas pelosmembros de A Nova Revista era o maisdiverso. Não podemos afirmar que todosos livros e revistas apresentados tenhamsido resenhados unicamente por AdolfoCaminha; no entanto, há, em alguns

casos, elementos que possibilitam essaassociação. No entanto, esse não é defato o interesse deste estudo. O que nosinteressa, nesse caso específico, éapontar para um conjunto de leituras quefaziam parte das práticas dos membrosde A Nova Revista e como esse conjuntofoi lido e apresentado aos leitores doperiódico carioca dirigido por Caminha.Como veremos no capítulo sobre AdolfoCaminha leitor, as obras que foram lidaspor ele só podem ser conhecidas a partirdo mapeamento de seus livros. Omapeamento até então realizado podeacrescentar títulos à lista de livrospresentes em sua ficção, o queredimensionaria a sua biblioteca e o seurepertório de leituras.

Antes, porém, de concluirmos estaseção, temos ainda alguns números de ANova Revista. Vamos a eles. No número6, as "Notas Bibliographicas" tiveraminício com os comentários sobre oslivros Esquifes, de Dario Velloso, e Aderrubada, de B. Cepellos. A seção delivros trouxe em uma nota de rodapé aseguinte informação: Historia Intima éo titulo de um pequeno romance de JoséBraga, publicado em 1894. Limitamo-nos a registrar o recebimento, deconformidade com o nosso programabibliographico. No caso do livroEsquifes, o resenhista mais uma vez foisevero ao afirmar:

O presente trabalho de Dario

Velloso obedece, desde o titulo, aomot d'ordre nephelibata: poucasidéas originaes e muitas palavrasvazias. O talento debate-se na jaulade ferro do convencionalismo;ouve-se-lhe a palpitação das azasna ancia de subir, de galgar atransparencia do ether, de attingir océo puro, o céo luminoso daverdadeira arte; mas falta-lhe aindependencia, o querer proprio, eelle só consegue chegar a meiocaminho, agarrado á barquinha dosadverbios espectaculosos e dadeclamação gogorica. A interjeiçãoe a reticência eis o recursosalvador, a linha recta para o idealda fórma.

E mais à frente, o resenhista mostrou-seum conhecedor da forma poética aodeparar com redundâncias como:Fluctuando numaIMPONDERABILIDADEINTANGIGEL de Fluido intelligente", eassim afirmou:

Onde a beleza e a originalidade? E'um erro pensar que a fórma em arteé isso alinhar synonimos,interjeições e reticencias. Osmaiores prosadores e os maiorespoetas até hoje conhecidos foramsobrios no estylo e originaes naidéa. Um adjectivo novo, bemempregado, tem sua graça e seduz;mas é preciso que seja bem

empregado, do contrario o effeito étodo negativo, por mais brilho quea palavra ostente isolada. Oproprio Verlaine foi um simples noverso e na prosa, ainda que oqueiram fazer enygmatico eabsurdo. Há muita nevoa nosEsquifes, muita nevoa e muitoartificio. Não sabemos comojustificar taes coisas em umespirito de primeira ordem... Ofuturo nos dirá.

Quanto ao segundo livro – A derrubada–, o resenhista foi menos caustico:

Vinte paginas apenas, contendo ahistoria, em verso, de uma arvoreque resiste ao que nos sertões do

Brazil se chama a queimada (nonorte!) ou a derrubada. Os versosem geral são bons e o o poemetointeressante; o autor, se não éartista de primeira ordem, mostraque sabe admirar a natureza edescrever com as côres daverdade, os seus aspectos. Nãoencontramos n'A derrubadaqualidades excepcionaes; olivrinho agrada, sobretudo, pelobucolismo que elle transpira e pelaharmonia do conjunto. Preferimol-o, no entanto, a muito livro deversos que por ahi passa comoobra d'arte ou coisa que o valha.

A esses dois livros seguiram-se alguns

comentários sobre os documentosinéditos a respeito do levante occorridona ribeira do Jaguaribe no tempo deManoel Francez e do servidor MendesMachado. Trata-se de um episódio dahistória do Ceará. O que nos confirma éo fato de os documentos inéditos teremsido reunidos e publicados porGuilherme Studart, mais conhecido nahistoriografia local como o Barão deStudart. A respeito desses inéditosafirmou o resenhista:

E' mais um subsidio para a históriado Ceará que tanta dedicação temmerecido do autor. GuilhermeStudart vem, com este opusculo,augmentar a sua preciosa colleção

de manuscritos, originaes e cópiassobre aquelle estado, revelandoainda uma vez grande amor aotrabalho e raro interesse pelasexcavações historicas. O objectodo presente volume é a celebre lutaentre as duas tradicionaes familiasque por muito tempo espalharam oterror nos sertões do Ceará osMontes e os Feitosas, no governode Manoel Francez. Após ligeirasynthese dos factos entãoocorridos, apresenta o auctor umaserie de documentosimportantissimos sob o ponto devista historico.

Terminada a seção dos livros,

iniciaram-se os comentários a respeitodas revistas, que, em sua maioria eramas mesmas do número cinco, a começarpor A Bruxa, números de 16 a 20;Review of Reviews; Journal desArtistes; Les Temps Nouveaux; Revistade Crítica de Historia y Literatura; OArcheologo Portuguez; Revista dosLyceos; Revista Masónica; RevistaMaritima Brazileira; O Cenaculo;Revista Academica, Club Coritibano; AQuestão Social; Revista de Educação eEnsino, do Pará; Revista da ComissãoTecnica Militar Consultiva e RevistaSilva Jardim, do Rio Grande do Sul, arespeito da qual lemos:

Essa revista começou a sua

publicação em 1891 no estado doCeará, reaparecendo agora com omesmo programma da phaseinicial, empenhada em cultivar asciencia e a literatura e emdefender a Republica. Tratando-sede moços que fazem as primeirasarmas na politica, visando o puroideal republicano, não podia sermais bem escolhido o titulo.24

Por essa citação, e pela nota que segue,vemos que os periódicos tambémserviam como manutenção de contatospolíticos, independentemente de ondeestivessem os seus membros: no Cearáou no Rio Grande do Sul, era precisodivulgar as ideias que defendiam e se

fazerem mostrar na imprensa da capitalnacional, vitrina maior de exposiçãoonde todos buscavam ocupar o seudevido lugar, fossem em publicações decirculação nacional, fossem emperiódicos específicos, como era o casode A Nova Revista.

As "Notas Bibliographicas" dosnúmeros 7 e 8 abriram com a seção doslivros. Nessa, o resenhista volta acriticar a figura deValentim Magalhães,como leremos a seguir a respeito deCaustico, o livro em questão:

CAUSTICO é um pamphleto dedesesseis paginas em verso, contrao ridicularisado autor da Vida deseu Juca, homem bastante

conhecido nesta Capital e fórad'ella pela admiravel habilidadecom que manipula drogaslitterarias. Firma-o Cunha Mendes,o jovem estreante dos Poemas daCarne. Muito justa a indignação dopoeta azorragando o dorso dos"farcistas da arte", embora isto ostorne ainda mais conhecidos porahi além. Não importa a gloria doshistriões. E' deixal-os fazer rir opovo, comtanto que levem a marcado ferro em brasa, o V. M.estigmatisador . – "Morenoimberbe, magro, espingolado,pescoço longo... lymphatico,franzino, mendigo da selva...coringa..." Nada d'isto define bem,

nada d'isto caracterisa o directorde companhia de seguros feitoclown de imprensa. A marcaindelevel, sim, bota-o p'r'ahi a darsaltos mortaes em publico e raso,que é um gosto... (grifo nosso)

Sabemos que A vida de seu Juca é umlivro deValentim Magalhães publicadoem 1880. A confirmação também de quese tratava de Valentim Magalhães é ainscrição das suas iniciais – VM – nocorpo do texto. Já aqui, tratamos de umacrítica sobre ele. Trata-se de mais umcaso de farpa lançada por AdolfoCaminha contra Valentim Magalhães.Destacamos o fato de o resenhista de ANova Revista chamar Valentim

Magalhaes de "director de companhia deseguros" como também já o fizeraAdolfo Caminha em seu artigo "Umlivro condemnado", publicado nonúmero 2 de A Nova Revista e quenovamente trazemos à cena:"Actualmente a critica no Brasil, oumelhor no Rio de Janeiro, está entregueao director de uma Companhia deseguros de vida".

Nesse caso, temos mais um indício queconfirmaria o nome de Adolfo Caminhacomo sendo o resenhista, talvez não oúnico, do periódico carioca que editounaquele ano de 1896. Assim, a revistatambém era cenário de ataquescaracterísticos da crítica do século XIX,

que, em muitos casos, deixava os limitesdo texto ou do livro para alcançar a vidaparticular e privada dos envolvidos, oque também não raramente resultava nacriação de tipos, personagensesdrúxulos e caricaturas nas folhasdiárias da imprensa nacional e naprópria literatura, como já vimos com apersonagem Valdevino Manhães doromance Tentação, de Adolfo Caminha.Entre uma e outra palavra sobre o textoou livro, tanto na crítica literária comona literatura de ficção, aproveitava-separa disparar uma farpa contra osdesafetos.

De fato, o citado Cáustico tem comotítulo Cáustico cuidadosamente

aplicado ao dorso do conhecidoValentim Magalhães, um opúsculo deautoria de Cunha Mendes, publicado em1896 em São Paulo, como é possívelconstatar no Panorama do movimentosimbolista brasileiro, de AndradeMuricy; no Panorama da Poesiabrasileira de Fernando Góes (1959,v.IV, p.242) e no Dicionário literáriobrasileiro de Raimundo de Menezes(1978, p.433), que informou a respeitodo seu Poemas da carne: "recebeudesabrida crítica de ValentimMagalhães". Talvez essa forma derevide tenha sido a menos dramática,pois nos idos do século XIX os homensde letras no Brasil chegaram a duelar emnome da sua honra, como podemos

contatar com a citação que segue:

Alguns debates entre escritoreschegaram a ser resolvidos comcombates armados. Olavo Bilacduelou com Pardal Mallet, em1889, por questões literárias equase se bateu, a espada, com RaulPompéia. Carlos de Laet foidesafiado ao combate por ValentimMagalhães, que enviou AfonsoCelso como negociador. Laet secomprometeu a esclarecer, emcarta pública, suas observaçõessobre o escritor, tendo sido obtido,sem luta, o que este chamou de"desfecho honroso para ambas aspartes" .

Aos comentários sobre o Cáustico,seguiu-se a resenha das Theses para oprimeiro Congresso PedagogicoParaense, que seria instalado em 1o dejaneiro de 1897. Em seguida, foi a vezde Jerusa, de Collatino Barroso. Aanálise foi feita primeiramente do textoe, em seguida, como era de costume, doautor. Vejamos a primeira:

Não discutimos essa questão deescolas; procuramos, porém, emtoda a obra d'arte o critério,coherencia de idéas, o bom sensoartistico, numa fórma limpida ecommunicativa. O atravancamentode imagens, a profusão exageradade symbolos, alguns dos quaes

indecifraveis, que se observam emJerusa e os Anathemas, uma coisalogo notamos: a diferença absolutade linguagem, não porque o autor,que tanto zelo infundiu naconstrução dos Anathemas, parecenão ter ligado importancia áestructura philologica do poema;isto sem falar no francezismo inutilde certas palavras como rafinar,flambar, guirlandar..., para nãodescer á minudenciasgrammaticaes.

A respeito do autor afirmou oresenhista:

Collatino Barroso é um inconstante,um nevrotico em ultimo gráo,

incapaz de longos esforços na obrad'arte; sente-se a precipitação comque escreve, o delirio que oempolga no momento de transmittiras suas sensações, a vertigem detudo dizer numa phrase, e d'ahi asincorreções de linguagem, o abusoda retorica e a incoheencia dasidéas.

Como vemos, a crítica literária no finaldo século XIX não deixava deconsiderar os supostos defeitos dostextos pelo comportamento de seu autor.A busca pela coerência de ambos – textoe autor – era mediada pelocomportamento, pelo tipo físico, pelascaracterísticas e até doenças do autor, o

que fazia dele uma personagem docrítico. Assim, a crítica nunca erasomente do texto; ela ultrapassava oslimites da linguagem, criando uma outralinguagem, cujo alvo era o autor, masnão o autor, e sim um tipo do autor, umapersonagem autoral, criatura da crítica.Era o que poderíamos chamar derevancha mimética da crítica, umaespécie de efeito colateral da críticaretilínea, definida por caminhos e papéisbem delimitados. Além disso, a críticade um modo geral não via acomplexidade com que era feita aliteratura, exigindo, sempre, coerênciaem uma situação nada coerente. Essa erauma das características da críticabrasileira do final do século XIX,

buscar a coerência em um territórioacidentado.

Encerrada a seção dos livros, aseção de periódicos do número 7 e8 de A Nova Revista iniciou-secomentando a Review of Reviews,de Londres; a RevueEncyclopédique Larousse, deParis; Les Temps Nouveaux,também de Paris; Revista Criticade Historia y Literatura, de Madri;O Archeologo Portugues, deLisboa; Revista dos Lyceos, doPorto; L'Egito Massonico, deAlexandria, Egito, escrita emitaliano; La Revista Literaria,Revista Masónica, La Squadra, de

Buenos Aires; Revista SilvaJardim, do Rio Grande do Sul; OCenaculo, de Curitiba; RevistaAzul, de São Paulo; RevistaAcademica; Sirius; Revista daCommissão Technica MilitarConsultiva; Revista MaritimaBrazileira; Boletim do Club Naval;Revista Mensal da FamiliaAcademica; Tribuna Literaria eCongresso Academico, do Recife;Revista de Educação e Ensino, doPará.

O último número de A Nova Revistatrouxe também a sua seção NotasBibliographicas". Na seção de livrosforam comentados: Poemas da carne, de

Cunha Mendes; Stelos, de TheotonioFreire; Atomos lyricos, de BentoErnesto Júnior; e Contos da minhaterra, de Armando Erse. O primeiroautor já foi aqui citado pelo seuinusitado Cáustico. Dos Poemas dacarne, o resenhista destaca o interessedo poeta pela figura da mulheridealizada no modelo feminino grego, oque parece não o agradar muito, pois aofinal da resenha afirmou:

O objectivo de Cunha Mendes começa eacaba na mulher formosa e sensual.Ingenuo, quando nos diz que "a mulher,unicamente a mulher, possue o vinhoraro que, embriagando-nos, dá oesquecimento aos males e a alegria

enganosa ás almas desenganadas" – osseus versos são o resultado de umtemperamento, de uma predisposiçãonormal a que não lhe é dado fugir.Assim como outros teem a acuidade dosom, da côr, do olphato, elle obedece aoimpulso intimo que o prostra ante abelleza de um corpo de mulher. O idealgrego ainda não desapareceu: vive aindano espirito de poetas e artistas de hoje.

É preciso estar atento a essa críticadirigida a Cunha Mendes, sobretudoquando nos diz que "a mulher,unicamente a mulher, possue o vinhoraro que, embriagando-nos dá oesquecimento dos males e a alegriaenganosa ás almas desenganadas". Do

que estaria falando o crítico? Se não erasomente a mulher, quem mais seria?Hipótese ou insinuação à parte, valelembrar que Adolfo Caminha escreveuum dos primeiros livros em línguaportuguesa a tratar do homoerotismomasculino: Bom-Crioulo. Poderíamospensar como hipótese não somente ohomem, o amor entre homens, mastambém na arte, na poesia, na música etantos outros valores espirituais; noentanto, parece-nos claro o tom eróticoda afirmação do crítico.

O tema da mulher continuou a ser objetode investigação do resenhista quando seocupou do livro Stelos, de TheotonioFreire, a propósito do qual afirmou:

A imaginação do nortista é emgeral apaixonada e ardente; d'ahi oenthusiasmo com que os poetas donorte cantam a mulher e fazemd'ella quasi que o único objectivode seus versos. Deslumbra-os afórma nua das estatuas e a turgidezdos seios virgens espicaça-lhes aconcupiscência e a nervorsidadeartistica. Theotônio Freire é dosque ama a mulher aos contornosdos quadris, na brancura dascarnes, na pureza das linhas, nasubtileza dos gestos e na volupiado olhar.

O resenhista, como lemos, utiliza oconceito de meio, em voga a época, para

tratar da" influência" do Norte sobre ospoetas brasileiros, influência essa que,segundo se cria, atuava sobre aimaginação. No interior dessa análisetambém está uma discussão a propósitodas diferenças entre Norte e Sul naliteratura brasileira, diferenças essasque Adolfo Caminha abordou no seuartigo Norte e Sul" ao tratar do livroMissal, de Cruz e Souza. Para finalizar,o resenhista conclui a respeito do citadolivro:" STELOS é um livro bem feito,mas não é obra de artista. Entre serpoeta e ser artista vae grande differença.De poetas o mundo está cheio; noentanto, são bem raros os artistas".

Não menos implacável foi o resenhista

ao tratar do livro Atomos lyricos. Nessecaso, o resenhista convidou o escritorpara dedicar-se à prosa, e não à poesia:"Porque não tenta escrever prosa, BentoErnesto? Por que não ensaia noutrogenero literario, se é que tem decididavocação para estas coisas de rabiscarpapel?". Depois dessa chamada, oresenhista concluiu: "muito fracas aspoesias de Bento Ernesto Junior. Eolhem que o Brazil já se ufana de terbons poetas". Para o resenhista, maisfeliz foi o português Armando Erse deFigueiredo, autor de Contos da minhaterra, e concluiu a sua leituraafirmando: "Armando Erse tem estylo,espontaneidade e uma compreensãomuito nitida da arte de contar. As

paginas de Irmandinho, com que abre olivro, são disto um bello exemplo".

Esse foi o último livro analisado eresenhado na seção "NotasBibliographicas" de A Nova Revista.Como nos números anteriores, seguiram-se os comentários a respeito dasrevistas. Nesse caso, os títulos citados eresenhados foram: A Bruxa, números 21a 28; La Province Nouvelle, de Auxerre;Journal des Artistes, Les TempsNouveaux, ambas de Paris; OArcheologo Portugues, de Lisboa; LaRevista Literaria e La Squadra, RevistaMasónica, as três de Buenos Aires; OCenaculo, de Curitiba; Revista Azul, deSão Paulo. Nesse caso, encontramos

mais uma crítica a Valentim Magalhães:

Mas, meu Deus! No meio de tudoisso – como pedras falsas emescrinio de ouro e brilhante – umconto para crianças, do advogadoValentim Magalhães, em que há umverso que diz assim: Foi pr'o céudizer adeus á gente! E umasimpressões de theatro, também emverso, que fazem arripiar o cabelode uma estatua! A Revista Azul noproprio meio paulista encontraelementos de vida artistica. Apellarpara nomes que fazem rir peloridiculo que encerram, é negar aexistencia de uma geração nova eadmiravelmente compenetrada dos

seus ideaes. Para museu de mumiasbasta a Revista Brazileira, ogrande armazem de sêccos emolhados da nossa literatura.

Seguiram-se as críticas às revistasSirius; Revista Academica daFaculdade de Direito, do Recife;Revista Maritima Brazileira e porúltimo a Revista da CommissãoTechnica Militar Consultiva.

Concluir para ir adiante

A propósito do arrolamento dos títulosde livros e revistas apresentados em ANova Revista, é preciso dizer que elenão seria de todo útil se dele não fossedestacado o fato que A Nova Revista

como que passava em revista os livros eperiódicos coetâneos. Além desse fato,é preciso também perceber que ao citartítulos nacionais e internacionais, ANova Revista, e talvez possamos dizerAdolfo Caminha, tecia uma rede derelações, o que nos possibilita pensarnum outro circuito de circulação do seunome. Se hoje o desconhecido Louis-Pilate chegou ao Brasil, por que nãopensar que o igualmente desconhecidoAdolfo Caminha tenha chegando àFrança? O arrolamento de títulos enomes de autores guarda em si umamovimentação dos muitos interesses queune e ao seu modo faz dos homens deletras iguais.

Conhecer e fazer-se conhecer eram osmovimentos que estavam no interiordessa intrincada rede de títulos eautores. Era preciso estar presente decorpo, o que significa ir às recepções,tornar-se público, mas era tambémpreciso ir aonde não se podia chegar,daí era preciso fazer presente o nome deautor e os títulos de sua obra. Assim,nomear-se era uma necessidade, o queevidencia que o nome do autor é muitomais uma possibilidade do que umamarca fixa. Se na Gazeta de Notícias,Caminha apresentou-se com C. A, naspáginas de A Nova Revista ele nãoduvidou em se fazer conhecer comoeditor e como crítico, assinando as suas"Chronicas de Arte", que veremos no

capítulo sobre o autor-crítico.

Devemos destacar também que osperiódicos citados não pertencemsomente a grupos de homens de letras,mas a instituições. Assim, a relação seestabelecia não somente entre sujeitos,mas também entre sujeitos e instituições,sobretudo instituições estatais. Semdúvida, foi neste último tipo de relaçãoque se sustentou muito da literaturanacional, uma vez que o emprego comofuncionário público atraia muito dosnossos homens de letras como declarouAntonio Candido (2007, p.15): "Numpaís como o Brasil do século XIX, serfuncionário público era estar perto dos'donos do poder'. Era ser um pouco dono

do poder, de maneira crescente àmedida que se dava a subida na escala –tudo de um modo mais distintivo do quehoje". Vale lembrar que, além de homemde letras, Caminha foi, primeiro, militar,portanto um funcionário do Estado, emseguida trabalhou como praticante daTesouraria da Fazenda, em Fortaleza, eno Rio de Janeiro trabalhou no TesouroNacional.

Assim concluímos este capítulo, em queanalisamos a atuação de AdolfoCaminha como editor de periódicos,compondo, então, mas uma face dopolígrafo. Ainda temos que ir adiante,investigando outras máscaras.

1 "Escritor editor: e reunião destas duaspalavras que, na sua acepção corrente,designam duas funções bem distintas,dois mundos muito diferentes – de umlado o pensamento e a escritura, dooutro a produção e venda, de um lado otexto e do outro o livro – permitedelimitar de maneira rápida e cômodanosso sujeito. O escritor é editor desdeque ele intervém nisto que poderíamoschamar de 'campo editorial', isto é, todoo processo que começa uma vezcolocado o ponto final no texto e acabaquando o livro chega as mãos do leitor;escritor é editor quando ele toma para sitoda ou parte das funções editoriais (nosentido científico e no sentido técnico),quando ele edita suas próprias obras ou

as dos outros: preparação do texto(escolha, ordem, estado etc.), aanotação, antes e após o texto, escolhade um sistema de 'enunciaçãotipográfica' (caracteres, formato,paginação, ilustração etc.), impressão,difusão. Único mestre do texto, oescritor entra no campo editorial emconcorrência com outros atores,variáveis segundo as épocas: o mecenas,o financiador, o protetor, o censor, ojuiz, o impressor, o livreiro, o editor,etc. A aposta é para ele conservar,contra ele e apesar dele, segundomodalidades historicamente variáveis,amestria do texto e seus efeitos: controledo momento de sua publicação, de seuestado, parte dos benefícios alcançados

na operação, influência sobre sua leiturapor meio de uma 'poética do livro'"(Tradição nossa).

2 Adolfo Caminha, assinando-se FelixGuanabarino, seu pseudônimo naPadaria Espiritual, colaborou com OPão na coluna Sabbatina, nos números1, 2, 3 (mas no original numerado como2 novamente), 4 e 5.

3 Cf. O Diário, ano 1, n.1, Fortaleza, 16de maio de 1892, p.2.

4 Cf. O Diário, ano 1, n.19, Fortaleza, 7de junho de 1892, p.1.

5 Cf. O Diário, ano 1, n.3, Fortaleza, 18

de maio de 1892, p.1.

6 Cf. O Diário, ano 1, n.3, Fortaleza, 18de maio de 1892, p.2.

7 Cf. A Quinzena, ano 1, n.1, edição fac-similar, Fortaleza, 15 de janeiro 1887,p.1.

8 Nesse catálogo, o Barão de Studart,presidente do Instituto Histórico doCeará, arrolou 951 periódicos existenteem circulação no Ceará, grande parte emFortaleza, entre os anos de 1824, dequando data o Diario do Governo doCeará, primeiro jornal da entãoprovíncia, e 1908. Grande parte dessesperiódicos está ligada a partidos

políticos, dividindo-se, na sua imensamaioria, entre conservadores e liberais.Porém, outra parte, muitas vezes decirculação efêmera, não indo além daprimeira edição, destacou-se pelocaráter satírico, polêmico e caricato,formando o que mais tarde, na culturacearense, ficou conhecido pelaexpressão Ceará moleque, isto é, omodo às vezes bem-humorado, satírico,sarcástico com que o cearense trataalguns aspectos do cotidiano. Essaexpressão – Ceará moleque – pode serencontrada no romance A normalista, deAdolfo Caminha (1998, p.39), sendoele, possivelmente, o primeiro aincorporá-la como um traço dapersonalidade cearense: "Que se há de

fazer, minha filha? Ninguém está livredestas cousas no Ceará moleque. Nãose pode conversar com um rapaz, porquenão faltam alcoviteiros". Aos poucos, ostextos de caráter político dos jornaisforam dando espaço para as crônicas dodia a dia, as observações da vidacomezinha, sobretudo à medida que acidade de Fortaleza crescia e, aospoucos, entrava num ritmo de vida decidade com pretensão de metrópole,importando objetos e comportamentosmais condizentes com o espírito e ocorpo de cidade grande que a loiradesposada do sol foi tomando. No roldesse tipo de jornal podemos citar: OPeriquito (1846), O Fagote (1852),cuja epígrafe era "quem tem telhados de

vidro não atira pedra nos alheios", OFarol Cearense (1861), que se dizia"joco-serio"; O Tagarella (1865);Careca (1870) e, no ano seguinteCabelludo; O Palhaço e A Urtiga,ambos do mesmo ano, sendo que estetrazia abaixo do título os versinhos:"Não tenhas minha musa medo delles/Vae de rijo esfregando urtiga nelles"; OAbelhudo (1874); Alcoviteiro eMorcego, ambos de 1891 e que tambémtiveram um único número, o último tinhacomo redator Adolpho Fuinha. Idiota(1881), cujos redatores era Piolho eZaranza; O Chocalho (1882); O Trovão(1884), "Dizia-se orgam da pilheria edistração"; Frivolité (1887); O Charuto(1888), "De influência e predilecção

entre os moradores dos subúrbios"; ZéPovinho (1889); O Dado (1890),"Dizia-se orgam dos curiosos"; OMoleque e O Patusco, ambos de 1890,este "Intitulava-se jornal serio-moleque". Tinha por epigrafe: "Ridendocastigat mores"; Pimpão (1891),"Dizia-se orgam do bello sexo, ter aredacção no Ouco do Mundo n. 00 ecomo redator Mané Cornim"; A Vacca,que no expediente dizia: "A Vacca saequando convier"; A Trepação (1893) –"Dizia-se orgam hebdomadáriohumoristico e essencialmente trepador eredigido por Conte, Contista e Contente"–; Morcego (1894), jornal pornográficoe A Giririca. O Diabo (1895), "Dizia-seorgam infernal", Bolacha, do mesmo

ano, cujo redactor era Nero e o gerenteTeseu. Como não poderia deixar de ser:O Macaco (1896), "Dizia-se orgam dosmugangos e jocosidades" e, do mesmoano, O Garoto, "Dizia-se orgam dasmoças e jacobino até a gata miar". É de1897 O Ceará Moleque, "Revistacaricata". Do mesmo ano, Pau de sebo,"Jornalzinho pornographico publicadoem Fortaleza. Dizia-se orgam dasmulheres e de feitura para homens. Foiappreendido pela polícia", e A Sarna,"Dizia-se orgam da coceira", A Troca, AUrtiga, "Dizia-se orgam dasrealidades". Também de 1895 foi OMatuto – "Dizia-se orgam roceiro eimpresso na cidade de Castanhas, ruadas Tapiocas n. 407.000". É de 1898 A

Sogra, que em oposição tinha O Genro;o Peitica, cuja divisa era: "Ou vae, ouquebra ou desprega. Ri-se o sujo domal-lavado e o roto do esfarrapado".

9 A respeito de Mané Coco fazemosquestão de transcrever este trecho deSânzio de Azevedo (1996, p.53):"Numas página de reminiscências,Antônio Sales evoca a figura de ManeCoco, ou Manuel Pereira dos Santos,oriundo do Aracati e fundador do CaféJava, quiosque localizado na Praça doFerreira, no centro de Fortaleza,lembrando que esse homem, inteligentemas sem cultivo, que andava de fraque,com uma grande rosa à lapela, mas semgravata (o que o excluía das festas e

solenidades), tinha como única erudiçãoo saber de cor A morte de D. João, deGuerra Junqueiro, poemas do qual'recitava trechos a proposito de tudo oumesmo sem propo sito nenhum'. Salientao escritor a simpatia do comerciantepelos intelectuais, recordando queigualmente estes o estimavam".

10 Cf. O Diário, ano 1, n.2, Fortaleza, 17de maio de 1892, p.1.

11 Cf. O Diário, ano 1, n.2, Fortaleza, 17de maio de 1892, p.2.

12 Cf. O Diário, ano 1, n.14, Fortaleza,1º de junho de 1892, p.1.

13 Cf. O Pão, ano 1, n.1, Fortaleza, 10de julho de 1892, p.4.

14 Cf. O Pão, ano 1, n.2 [3], Fortaleza,30 de outubro de 1892, p.4. [Trata-se,de fato, do número 3 e não do 2, comovem grafado no jornal.]

15 Cf. O Diário, ano 1, n.4, Fortaleza, 19de maio de 1892, p.1-2.

16 A respeito de Rocambole, citamoseste breve trecho de Marlyse Meyer:"Pierre Alexis Ponson du Terrail,simples pequeno-burguês nascido no sulda França em 8 de julho de 1829,atribuiuse imaginária linhagem que otornava descendente do bravo

cavalheiro Bayard, autorgando a simesmo o título de visconde. Com estudorudimentares, aos 19 anos alistou-se naGuarda Móvel e combateu nas ruas deParis em 1848. Após as jornadas dejunho, apresentou-se para pedir empregono gabinete do diretor de um dosgrandes jornais da época, e que tambémescreveu obra crítica – no sentido amploda palavra – sobre o folhetim, AlfredNettement. Começou a escrever aos 18anos, era já célebre aos 24. Ele mesmonarra as circunstâncias de sua vocação:'No dia em que li esta frase: Qual eraessa mão? Qual era essa cabeça?Continua no próximo número',compreendi que tinha encontrado o meucaminho". (Meyer, 1996, p.106).

17 Cf. O Diário, ano 1, n.12, Fortaleza,30 de maio de 1892, p.2.

18 Cf. A Nova Revista, ano 1, n.2." – Queme enviem livros (antigos ou recentes),revistas, jornais (isolados ou [...]),documentos, notas BIO-BIBLIOGRÁFICAS, e FOTOGRAFIASTUDO será [...] e utilizado, no lugarcerto, em um dos inúmeros periódicos –[...] que me são acessíveis, e nos quaiseu faço com sucesso a minha campanhaportuguesa" (Tradução nossa). Nessascitação o uso das reticências entrecolchetes se deu para marcar palavrasou breves trechos ilegíveis. SobreLouis-Pilate de Brin'Gaubast, sabemosque nasceu em 1865 e faleceu em 1944.

Escreveu inúmeros títulos: Fils adoptifse Sonets insolents, ambos de 1888; Lavaccine du Génie, de 1892, LaTéatrologie de L'Anneu du Nibelung,juntamente com Edmond Barthélemy,publicado por E. Dentu, em 1894; Apropos de M. Mibeau, de 1909. Fundoucom Edourd Dubus, Louis Dumur eGabriel-Albert Aurier a revista LaPléïade. No site da Academia Brasileirade Letras (ABL), destacadamente nasAtas da instituição, constatamos que seunome foi indicado para membrocorrespondente (Acta da sessão de 7 dedezembro de 1897), mas não sendoeleito para tal, como também consta nasnotas referentes à ata citada: "que nuncachegou a ser eleito sócio correspondente

da Academia". Louis Pilate eradivulgador das literaturas brasileira eportuguesa na França. No entanto, seunome ganhou maior destaque junto aseus pares em razão de um escândaloenvolvendo o escritor Alphonse Daudet.Brin'Gaubast, que era preceptor dosenfants Daudets, foi acusado de roubaros manuscritos de Lettres de monmoulin (Cartas do meu moinho). Datemporada que viveu chez Daudets,escreveu um diário que veio a serpublicado com o longo título de:Temoignage sûr Alphonse Daudet.Document sûr l'affair du vol dumanuscrit des Lettres de mon moulin(Testemunho sobre Alphonse Daudet.Documento sobre o caso do roubo do

manuscrito das Cartas do meumoinho), publicado em 1997, em Paris,por Pierre Horay Edition.

19 Cf. A Nova Revista, ano 1, n.1, Rio deJaneiro.

20 Sobre Pethion de Villar, consultarMuricy (1951, v.2, p.49–58).

21 Cf. O Pão da Padaria Espiritual, ano1, n.5, Fortaleza, 24 de dezembro de1892, p.3 (grifos do autor).

22 Cf. O Pão da Padaria Espiritual, ano1, n.5, Fortaleza, 24 de dezembro de1892, p.3-4 (grifos do autor).

23 Cf. A Nova Revista, ano 1, n.1, Rio deJaneiro.

24 Informação idêntica nos deu o Barãode Studart (1908, p.61): "Scientifico,litterario e critico, propriedade daassociação do mesmo nome. Impressoem O Libertador. O primeiro numerosahiu a 15 de novembro. Tendodesapparecido, renasceu em 1896 noRio Grande do Sul, para onde tinhamido muitos dos seus redactores, alumnosda Escola Militar do Ceará".

4 Adolfo Caminha,autor-leitor

Espírito coletivo. – Um bomescritor não tem apenas o seupróprio espírito, mas também oespírito de seus amigos.

(F. Nietzsche, Humano demasiadohumano: um livro para espíritoslivres)

Estou desempacotando a minhabiblioteca. Sim, estou. Os livros,portanto, ainda não estão nasestantes; o suave tédio da ordem

ainda não os envolve. Tampoucoposso passar ao longo de suasfileiras para, na presença deouvintes amigos, revisitá-los.Nada disso vocês têm de temer. Aocontrário, devo pedir-lhes que setransfiram comigo para adesordem de caixotes abertos àforça, para o ar cheio de pó demadeira, para o chão coberto depapéis rasgados, por entre aspilhas de volumes trazidos denovo à luz do dia após umaescuridão de anos justamente, afim de, desde o início,compartilhar comigo um pouco dadisposição de espírito –certamente não elegíaca, mas,

antes, tensa – que estes livrosdesertam no autênticocolecionador.

(W. Benjamin, Desempacotando abiblioteca)

...o último que vi foi as minhasmãos sobre um livro.

(J. Saramago, Ensaio sobre acegueira)

– Que é que você está fazendoaqui, garoto?

– Nada.

– Então, por que está aqui?

– Porque estou.

– Já sabe ler?

– Sei.

– Quantos anos tem?

– Nove.

– Que é que você prefere: umchocolate ou um livro?

– Um livro.

(E. Canetti, Auto-de-fé)

Leitura e escrita na obra de

Caminha

Caro leitor, agora você terá aoportunidade de conhecer um outroleitor: Adolfo Caminha. Assim, aparecemais uma face do polígrafo. Nashistórias da literatura, os autores nãocostumam ser pensados como leitores.Dito de outra forma: nelas, pouco seregistra o diálogo entre as práticas deescrita e leitura concernente ao fazerautoral. Talvez, somente a partir dasteses propostas por Hans Robert Jaus, aleitura tem sido pensada comoparâmetro para a história e a teorialiterárias. Mais recentemente, aspesquisas de Roger Chartier e RobertDarnton também enveredam por esse

caminho, pois trazem para o centro desuas preocupações a leitura e a escritacomo atos culturais, sociais e históricos.

A compreensão de que o autor é umaunidade-criadora parece impedir queestudiosos tradicionais da literaturapensem nele de forma descentralizada.Segundo a compreensão tradicional dosfatos literários, o autor é toda a fonte decriação, não lhe cabendo dialogar comoutras fontes. Nessa compreensão, éunicamente dele que emerge a criação.Essa, por sua vez, se confunde com o atode escrever, que não é pensado em suasrelações com o ato de ler ou mesmo comos demais atos de escrever que resultemem outros textos que não os

considerados como literários ficcionaisainda que produzidos pelo mesmosujeito.

As práticas dos autores, no entanto,mostram-nos que a escrita não se produzsem a leitura. Conclusão óbvia, leitor?Possivelmente. Mas, de fato, poucosabemos o que leram ou leem osescritores, sobretudo se dependermosdas histórias da literatura para sabê-lo.Essas leituras feitas pelos escritores, ouparte delas, são direta ou indiretamenteanunciadas em seus textos. Talvez sejapor esse fato que Alberto Manguel(2006, p.150) considere os escritorescomo uma "subespécie de leitores" aofalar do lugar de onde escrevem:

Os aposentos em que os escritores(essa subespécie de leitores) secercam dos materiais de queprecisam para seu trabalhoadquirirem alguma coisa de animal,à maneira de uma toca ou ninho,tomando as formas de seu corpo eoferecendo um receptáculo paraseus pensamentos. Ali, o escritorpode fazer a cama entre os livros,ser leitor monógamo ou polígamo aseu bel-prazer, selecionar umclássico consagrado ou um novatodesconhecido, deixar argumentospela metade, começar por qualquerpágina aberta ao acaso, passar anoite lendo em voz alta para ouviro eco da própria voz sob o silêncio

amigável da lua tácita", nasfamosas palavras de Virgílio.(grifo nosso)

Os modos de apresentar as leiturasrealizadas pelos autores prévia esimultaneamente ao ato da escrita sãoexemplos da constituição de umaimportante rede de diálogo entre essescidadãos da República das Letras. Sãotambém exemplos de aspectos da vidaprivada dos autores que chegam aopúblico. Talvez, como aspecto da vidade quem escreve, as leituras tenham sidoo que menos interessou aos críticos,sobretudo se compararmos com dados arespeito da vida íntima dos escritores.Sabemos dos amores, das dificuldades

financeiras, das dívidas, e muito disso jáserviu para explicar as obras, mas nemsempre sabemos o que leram os autoresao escreverem os seus textos. Podemosdizer também que todos esses interessespela vida dos autores sãorepresentações do que se faz nosbastidores da escrita, como o é tambéma leitura. E, aqui, quando dizemosrepresentações o fazemos com base noconceito de Roger Chartier (2002,p.27):

Por outro lado, é preciso pensá-la[a definição de história cultural]como análise do trabalho derepresentação, isto é, dasclassificações e das exclusões que

constituem, na sua diferença radicalas configurações sociais econceptuais próprias de um tempoou de um espaço. As estruturas domundo social não são um dadoobjectivo, tal como o não são ascategorias intelectuais epsicológicas: todas elas sãohistoricamente produzidas pelaspráticas articuladas (políticas,sociais, discursivas) que constroemas suas figuras. São estasdemarcações, e os esquemas que asmodelam, que constituem o objectode uma história cultural levada arepensar completamente a relaçãotradicionalmente postulada entre osocial, identificando com um real

bem real, existindo por si próprio,e as representaçõs, supostas comoreflectindo-o ou dele se desviando.

Dito isso, então, lançamos as seguintesperguntas: 1 Quais seriam as fontesdesses registros de leitura? 2 Como elesse apresentam no texto escrito? 3 Comeles, o que é possível compreender doprocesso de criação autoral? Feitasessas perguntas, vamos a algumaspossíveis respostas. Primeiramente,lançamos algumas indicações de quaisseriam as fontes dos registros de leitura.Uma delas seriam as cartas, que,trocadas entre autores ou entre autores eos demais sujeitos que compõem odiverso campo literário, revelam cada

vez mais as leituras que realizavam aopasso que escreviam. Muitas vezes,esses registros estão presentesdiretamente, chegando mesmo a serindicados como leitura ao amigo comquem se corresponde. Assim, as cartas,são fontes importantes para acompreensão de como se faz a literaturapor via da leitura. O autor, esse animalbípede, apoia um pé na leitura, o outrona escrita e, de par em passo, caminha;às vezes, ele salta sobre um pé só; àsvezes, apoia-se em outro. E ascircunstâncias da vida, entre elas asações da história literária tradicional,podem torná-lo manco ou maisradicalmente coxo. São, talvez, osperigos do ofício.

Aos tipos de fontes que são as cartas,podemos juntar os diários, as memórias,as biografias e as autobiografias.Certamente, há nelas muito dos registrosde leituras realizadas pelos autores. Ascitações constituem também uma fontepara o conhecimento da leitura dosautores. Citações diretas com nomes etítulos de obras, trechos de romances,versos de poemas e de tudo o mais quepossa servir à escrita de um texto. Alémdisso, citar e ser citado é também umaforma de solidariedade entre os pares daRepública das Letras. A citação é umaforma de indicação do outro em si. Éigualmente uma forma de crítica que diz,de um outro modo, que não ofundamentado no argumento e expresso

na dissertação, o que se deve ler ou nãoler. As citações fazem parte de umaeconomia da escritura, de umaengenharia que está por detrás da escritaou também dentro dela. Ela é aexpressão de um pensamento do outro,mas que poderia ser também de quem ocita. Há, desse modo, umreconhecimento dos/entre os envolvidos,uma incorporação da fala do outro, daescrita do outro, do pensamento do outroe às vezes do próprio outro quando esseé feito personagem. A leitura aqui épensada como uma força formadora doautor. Uma força que atua externa einternamente à constituição da obra.Uma força externa realizada como formade aprendizagem e uma força interna

quando ela sai da aprendizagem e ganhaas páginas da ficção.

A escolha de citar um trecho emdetrimento de um outro, um autor nolugar de um outro é um ato objetivo,funcional, matemático em alguns casos.O mesmo se pode dizer da escolha depalavras. As citações juntam-se àsepígrafes, aos textos de apresentação, àsnotas prévias, enfim, a todo o conjuntode paratextos, que constituem um textosobre o texto, servindo como forma dereflexão e como textura, ou seja,constituindo uma camada que envolve otexto, que o cerca e o guarnece depensamentos, máximas, expressõesimportantes para a sua compreensão e

para a compreensão do trabalho do autorou ainda como alavanca do momento deescrita, esse momento sempre difícil queé o começar.

Quem escreve sabe o quanto umaepígrafe ajuda, incentiva. Para quemescreve, às vezes, uma epígrafe é comoum primeiro tiro, um primeiro grito, nãomortal ou de dor, é um tiro ou um gritoque faça avançar uma multidão. Porqueum autor é uma multidão. A epígrafe étambém o registro do encontro entre opensamento de quem escreve e lê àmedida que escreve. Em todas essaspossíveis fontes dos registros de leiturahá o que podemos chamar de indícios dediálogo. Elas são talvez a

exemplificação do que Nietzschechamou de "espírito coletivo", comopudemos constatar na epígrafe destecapítulo. As fontes citadas são tambémexemplos das relações entre o "bomescritor" e seus amigos, naqueles termospropostos por Nietzsche.

No caso específico de Adolfo Caminha,porém, em quais fontes podemosconhecê-lo como leitor? As cartas nãoficaram; os diários não ficaram, asmemórias escritas pela sua própria mãotambém não ficaram, a autobiografia nãoficou, não ficaram bilhetes. Não ficaramcadernetas de notas, rascunhos,marginálias etc. Uma fonte importantepara conhecermos as suas leituras seria

a sua biblioteca. Para um escritor, umabiblioteca, por menor e mais pobre queela seja, significa muito. Não se trataapenas de uma biblioteca particular,doméstica, mas do registro daqueleslivros que, mesmo estando em umabiblioteca pública ou na de outroescritor, continua junto de si, na suamemória. Ter os livros de AdolfoCaminha nas mãos, folheá-los, sentir asmarcas deixadas pelo leitor que ele foi,ler alguma marginália, algum papelzinhoentre as páginas, as ditas margináliasapensas, alguma página marcada por umlápis, seria uma oportunidade ímpar.Mas, assim como o seu corpo que seperdera, perdeu-se também essapossibilidade. Sumido o registro de

onde fora sepultado o escritor, pareceque igual destino tiveram os seus livros.Para quem foi considerado maldito, fimmais coerente não poderia haver. Mas amaldição no seu caso é também umapersonagem da crítica que dele seocupou ao longo de mais de cem anos deleitura de sua obra.

Infelizmente, um trabalho desse tipo, ouseja, que lide com a sua biblioteca, nãopode ser realizado, pois não sabemos aocerto se seus livros foram roubados tãologo sua família e amigos saíram parasepultá-lo –" logo após a saída doféretro, ladrões entraram na casa desertapara saqueá-la, pouca coisa encontrandoalém de livros. [...] a família do

escritor, desolada, não se alterou comisso: 'Já havia perdido tudo'" (Azevedo,1999, p.15) – ou se um outro destinolhes foi dado, uma vez que não há emsuas biografias nenhum registro arespeito. E por não o haver é que temosque encontrar uma outra possibilidadede o conhecer como leitor.

É, pois, pelo conjunto do seu trabalhocomo autor que poderemos ter algumconhecimento das leituras de AdolfoCaminha. Talvez o arrolamento de suasleituras nos ajudem a saber como ohomem formado nos bancos escolares damarinha se tornou um autor de ficção eum polígrafo. Diante da perdas citadasanteriormente, só podemos conhecer

Adolfo Caminha como autor-leitor apartir das referências que ele deixou nojá dito conjunto de sua obra. Nestecapítulo, arrolaremos somente os seuslivros de ficção, uma vez que jácomentamos parte de suas leiturasregistradas nas suas Cartas literáriasem nossa dissertação de mestrado.Chamaremos essas referências deindícios de leitura, uma vez que nãotemos prova cabal de que ele tenha lidoaqueles livros que citou em seuspoemas, contos, romances e críticaliterária. Tudo nos levou a crer que sim,que ele os lera, no entanto, como jádissemos, fonte segura não há.

Assim, valemo-nos dos procedimentos

que Carlo Ginzburg (1989, p.143- 79)nomeou como método indiciário1 parabuscar na obra de Caminha os títulosque, supostamente, fizeram parte de suasleituras. O trabalho realizado, comoveremos adiante, assemelha-se algumacoisa ao trabalho do arqueólogo, umavez que precisamos levantar dadosauxiliares, estabelecer relaçõesintratextuais e extratextuais paraconhecermos o funcionamento da leiturano conjunto da escritura caminhiana.Para tal, este capítulo foi dividido emduas parte: a primeira diz respeito aoAdolfo Caminha autor-leitor dos outros,uma vez que os indícios de leitura nosremetem aos livros de outros autoresque ele supostamente lera e que os

utilizou de modo direto e indireto emseus textos; a segunda parte diz respeitoao Adolfo Caminha autor-leitor de si,uma vez que realizamos um estudocomparado das edições das Cartasliterárias editadas em jornal e em livro,como constataremos a seguir, a fim desaber o que o crítico, resguardado pelopseudônimo C. A., afirmou de A. C, ouseja, de Adolfo Caminha, o autor.

É fato que o arrolamento dos ditosindícios de leitura de Adolfo Caminhanos leva a constituir, em princípio, umlista considerável de nomes, de títulosde obras, de trechos de romances, deversos de poemas e de citações indiretasque de algum modo nos remetam a

autores e obras. Custou-nos levantartodo o material necessário e certamentealguns indícios foram pouco explorados.Procuramos também conhecer arecorrência dos indícios, o que nos fazpensar na tessitura de uma rede deleituras ao longo da escrita do conjuntode sua obra. Muito nos preocuparam aspermanências de leituras, atravessandotodo o conjunto investigado. Igualmentenos preocupou o uso específico de cadauma delas, apontando, desse modo, paraum movimento contínuo de mudança nouso do que fora lido, mas também umacontínua permanência por maisredundante que possa parecer aocorrência. Assim, à medida queescrevemos este capítulo, folhas e folhas

foram usadas para constituir essas listas;a elas eram acrescentadas informaçõesdos mais diversos textos, livros,dicionários, enciclopédias em línguanacional e estrangeiras como se podeconstatar nas notas de rodapé.

O que o leitor encontrará a seguir éresultado desse trabalho com as listasprévias. É um texto em que encadeamosos indícios de leitura conforme elesforam aparecendo em cada obra. Talvezesse trabalho de fazer as listas sejaexplicado por aquele amor maior que opequeno Franz Metzger, personagem doromance Auto-de-fé, de Elias Canetti,que neste capítulo também nos serve deepígrafe, tivesse aos livros em vez dos

chocolates. Ainda assim, lembrando dolongo trabalho de fazer as ditas listas, depercorrer os corredores da biblioteca,de procurar os livros em seboseletrônicos e adquiri-los, enfim, deconstruir página a página este capítulo,conservamos para o tópico seguinte umtítulo que lembrasse essa tarefa. Osleitores estão convidados a conhecer aomenos em parte esse percurso.

Uma lista a perder de vista

É preciso dizer, a bem da verdade, quefazer um arrolamento das leituras deAdolfo Caminha a partir de sua ficção jánão é inédito. A lista dos títulos e nomesnão é pequena e já houve quem iniciasse

essa empreitada. Por esse motivo, valebem aqui o registro do trabalho de quemnos antecedeu. Maria Letícia GuedesAlcoforado o fizera em sua tese dedoutorado defendida, em 1982, naUniversidade de São Paulo sob aorientação da professora Leyla Perrone-Moisés. Possivelmente, essa sua teseseja um dos primeiros trabalhosacadêmicos a ocupar-se de AdolfoCaminha como leitor e, salvo engano,um dos primeiros a ocupar-se dele comoautor de ficção nesse nível de instruçãoacadêmica. No entanto, o seuarrolamento foi delimitado à análise dostrês romances, atendendo assim aoobjetivo de sua tese já expresso notítulo: As marcas da França nos

romances de Adolfo Caminha. E quetambém se repete em seu interior comojustificou a autora:

No corpo da tese, limitar-nos-emosà análise dos três romances deCaminha, A normalista, Bom-Crioulo e Tentação, por considerá-los a parte mais representativa desua obra e suficientes parapermitir-nos pôr em destaque otrabalho realizado por aqueleescritor. (Alcoforado, 1982, p.9)

Em nosso estudo, além de procedermoso arrolamento e análise dos indícios deleitura presentes no romances já citados,incluímos os dois primeiros livros deCaminha – Voos incertos (primeiras

páginas) e Judith e Lágrimas de umcrente –, que Maria Letícia traz em suasreferências bibliográficas, e ainda osindícios de leitura presentes no volumeintitulado de Contos. A nossa leitura sediferencia da de Maria Letícia, seja peloinstrumental teórico utilizado, seja pelanatureza mesma do nosso trato com asfontes. Para nós aqueles dois primeiroslivros de Caminha funcionaram para elecomo um laboratório do que maisadiante veio a tornar-se concreto: a suaatuação como ficcionistadestacadamente nos romances Anormalista (Cenas do Ceará) e Bom-Crioulo, que salvo as críticas do calorda hora, sobretudo as de cunhomoralista, garantiram a sua entrada em

diversos títulos da história da literaturanacional.

Ainda que a crítica literária classifiqueVoos incertos (primeiras páginas) eJudith e Lágrimas de um crente comoobras de principiante, como veremos aseguir, achamos por bem incluí-los emnosso arrolamento, pois trata-se delivros raros, de difícil acesso aospesquisadores interessados na obra deAdolfo Caminha e também por essemotivo merecem ser comentados. Outrovalor já presente nesses primeiros livrosestá no fato de que neles encontramosindícios de leitura de obras que serãorecorrentemente citadas nos demaislivros, demonstrando haver, assim, uma

permanência de suas leituras e de umpossível uso diferenciado delas em cadaobra em que eles comparecem. É nessesdois primeiros livros de Caminha quenasce os movimentos de permanência ede modificação que constatamos noconjunto dos seus indícios de leitura eque muito interessou-nos registrar comoforma de discussão e análise de seupapel como autor-leitor.

Quanto ao Adolfo Caminha contista, noapêndice de seu trabalho pioneiro,Maria Letícia já trazia a publicação deum dos seus contos perdidos, aqueleintitulado Minotauro. No entanto,somente em 2002, os contos publicadosesparsamente em diversos periódicos

nacionais, quando ainda vivia e mesmoposteriormente à morte do escritorcearense, foram enfeixados em umvolume com aquele título geral graçasao trabalho do professor Rafael Sânziode Azevedo. No caso específico doconto Minotauro o volume de contos de2002 traz mais duas versões dele, queforam encontradas pelo pesquisadornorte-americanoWalter Toop naBiblioteca Nacional, no Rio de Janeiro,como informa o organizador da referidaedição de 2002. A versão apresentadapor Maria Letícia Guedes Alcoforado éuma dessas duas versões encontradaspor Toop, mais precisamente a de julhode 1893, publicado no periódico OÁlbum, número 27. Assim, o trabalho

realizado por nós também se difere dode Maria Letícia pelo acréscimo dasfontes citadas.

Uma outra diferença é quanto aoarrolamento e análise dos registros deleitura de Adolfo Caminha em funçãodos objetivos de ambas as pesquisa. Nocaso da pesquisa de Maria LetíciaAlcoforado (1982, p.9) o objetivo era"buscar a originalidade do romancistacearense, seu modo pessoal de assimilara cultura e a literatura francesa". Já onosso objetivo é conceituar AdolfoCaminha como um autor polígrafo nofinal do século XIX no Brasil, maisprecisamente entre os anos de 1885 e1897, período em que se deu a produção

e a publicação de sua obra. Para aconstrução desse conceito, no seu caso,estão em problematização e análise asua atuação como editor, crítico literárioe político das letras, ações essas queresultaram em textos escritos.

Também acreditamos que a sua atuaçãocomo leitor concorreu positivamentepara construirmos a conceituação queaqui objetivamos; desse modo, não nosdetivemos somente nas leiturasfrancesas e portuguesas de Caminha,mas também em suas leituras daliteratura ficcional e não-ficcionalbrasileiras. É por esses termos que otrabalho realizado por nós difere-se dotrabalho de Maria Letícia Guedes

Alcoforado sem deixarmos aqui de fazerreferência a ela, mas buscando com eladialogar toda a vez que acharmosnecessário fazê-lo.

A partir de então apresentamos osregistros desses que chamamos deindícios de leitura de Adolfo Caminha.A apresentação dá-se em ordemcronológica de edição dos seus livrosde ficção. O que podemos constatar éque a lista desses indícios aumenta àmedida que a sua ficção se torna maismadura e o autor, apoiado com o pé naleitura, vai dando passos mais segurosna constituição do conjunto de sua obraou ainda quando se faz necessário comoficou constatado nos seus primeiro e

último romances. No entanto, dos doisprimeiros – Voos incertos (primeiraspáginas) e Judith e Lágrimas de umcrente – ao último livro não faltaramregistros desses indícios, mesmo queescassos como se deu no caso doromance Bom-Crioulo.

Vale aqui destacar, quanto ao primeirolivro, que não parece acaso que o seusubtítulo seja "primeiras páginas". Nele,as páginas parecem funcionar comosignificado da incerteza dos primeirostempos. Não há a mesma noção deconcretude de palavras como volume,obra, livro e quetais, são páginasapenas, ainda que encadernadas como opercebia e sentia os seus leitores ao tê-

los diante dos olhos e nas mãos. O termopáginas, nesse caso, funciona como umamarca do tempo de produção do autor,da consciência da (in)maturidade de seutrabalho. É o registro de um lançar-se,ainda que incertamente, na Repúblicadas Letras. Somente com o decorrer deprodução da escrita é que os indícios deleitura, como em A normalista eTentação, se tornam mais presentes. Oque, assim como já afirmamos, nãoacontece no Bom-Crioulo. Os motivosprováveis dessa variação dos indíciosde leitura veremos ao tratar de cada umdos romances.

A reflexão sobre as possíveis fontes dosregistros das leituras dos autores podem

ser relembradas aqui quandocircunstancialmente forem citadas. Já étempo de, assim como fizera WalterBenjamin, desempacotar a biblioteca deAdolfo Caminha, ou melhor, do quepodemos saber dela ou dela inferir. Já étempo de nos transferir, assim comoBenjamin convidara os seus leitores,para a desordem dos pacotes de livros,aqui, desordem de indícios, de traços,de títulos, de nomes, de versos e trechosditos, enfim, de pormenores, de indícios.Tomando como incentivo o convite deBenjamin, de agora em diante, cadatítulo do conjunto da obra de AdolfoCaminha será pensado como um pacotede livros de sua biblioteca, que o leitorestá convidado a abrir conosco.

Primeiro pacote

Este primeiro pacote traz em suaetiqueta o título do primeiro livro deAdolfo Caminha, Voos incertos(Primeiras páginas), de 1887. Portanto,seu livro de estreia e seu único livro depoesias, dedicado à memória de suamãe, Dona Maria Firmina Caminha,falecida em 27 de novembro de 1878,quando ele tinha apenas onze anos deidade. Da morte de sua mãe àpublicação do livro já houvera passadonove anos. Esse livro é, pois,depositário de uma memória: a memóriados anos vividos em companhia dafamília, dos anos de infância na suaAracati natal, na casa da rua Coronel

Alenxanzito, um sobrado com porta eduas janelas no térreo e mais três grandejanelas no andar superior, de fachadarecoberta por azulejos portugueses emtom de azul, com filetes brancos eamarelos. Na fachada, lemos em placahoje bastante gasta: "Nesta casa nasceuAdolfo Caminha em 29 de maio de1867". A casa hoje está em ruínas.

Atualmente, a vila colonial do Aracati éuma cidade turística próxima deFortaleza, não porque ela crescera, masporque a capital cearense foi-seespraiando e as distâncias com o uso doautomóvel foram-se encurtando. Antes,Aracati fora uma cidade de comércio.Era um entreposto comercial em razão

do porto que lá existia e por ondedesaguava parte da carne de sol doCeará. Esse livro de Caminha é tambémdepositário do próprio momento de suapublicação, quando o seu autor contavaentão com dezoito anos. Os poemaspublicados nele foram escritos entre1885 e 1886, o que evidencia um tempode sua produção, apesar de os poemas"Melancolia" e "Ideal" datarem,respectivamente, de 15 e 23 de março de1887, ambos escritos na Ilha Grande, noRio de Janeiro, portanto feitos nomesmo ano de publicação do livro, oque evidencia um encontro entre as datasde produção e edição.

Como já dissemos, o título ganhou um

subtítulo – (primeiras páginas) –,possivelmente por sentir-se o entãopoeta inseguro em mostrar-se ao públicoe entregar-se às apreciações da crítica,amortecendo, desse modo, cobrançasmais ferozes. Trata-se de um livro depoemas românticos. Tão romântico queCaminha somente com eles talvez nãotivesse entrado na Padaria Espiritual,pois em um dos versos do poemaintitulado "No campo" chega mesmo afalar em carvalho e cotovia, palavrasque estavam proibidas no vocabuláriodos Padeiros: "No tronco do carvalho/abandonado, annoso/ desprende acotovia um cantico amoroso". A respeitodo romantismo desse primeiro livro deCaminha afirmou Sânzio de Azevedo

(1999, p.28):

É forçoso admitir que se trata deestréia bastante bisonha: oproblema não se cinge somente aofato de os versos seremextremamente românticos, quandojá circulavam obras parnasianas,como as Sinfonias (1882), deRaimundo Correia, as Meridionais(1884) e os Sonetos e Poemas(1885), de Alberto Oliveira, semse falar nas Canções Românticas(1878), desde (sic) último, nao tãoromânticas, como se sabe. Oproblema é que Adolfo Caminha,cuja verdadeira vocação seria oromance, se nos versos que ainda

haveria de compor, na década de1890, jamais se alçaria à condiçãode poeta apreciável, muito menosnesses poemas de juventude.

Há nesse livro de Caminha duasepígrafes que abrem esses ditos poemasda juventude. Aliás, vale lembrar queCaminha falecera ainda jovem, talveznão para a sua época, em que os homensjá aparentavam ser velhos bastante cedo.Como exemplo desse fato, vale lembraraqui as figuras de José de Alencar e doimperador D. Pedro II. A primeiraepígrafe, em francês, é da escritoraGeorge Sand; a segunda é do escritorportuguês Almeida Garret. Assim,Caminha prenunciava nesse seu primeiro

livro as duas possibilidades de diálogoque viria a ter ao longo de sua carreiracomo escritor: França e Portugal. Asmesmas duas possibilidades de diálogoque esteve presente junto aos membrosda Padaria Espiritual. De Sand lemos:"Si je passe pour fou, si je le deviens,qu'importe! J'aurai vécu dans unssphère idéal, e [sic] je serai peut-êtreplus hereux que tous les sages de laterre".2 De Garret, lemos: "Foi só meucoração que fez meus versos...". Entre aloucura e os devaneios do coração foionde se colocou o poeta iniciante,marcando, assim, a incerteza daqualidade daqueles versos queentregava ao público. E assimdemonstrava aderir à estética romântica.

Mais importante do que dizer que essepoeta ainda não era o Adolfo Caminhaque conheceremos em seus romances éconstatar que o poeta transitara peloromantismo e que os escritoresromânticos, como o já citado José deAlencar, ainda eram referenciados emsuas Cartas literárias, maisprecisamente nos artigos "Novos evelhos" e "À sombra de Molière",aquele de 1893 e este de 1894, quando Anormalista, romance claramentenaturalista, já estava publicado ecirculando entre os leitores. O fato é queAdolfo Caminha viveu o período queAfrânio Coutinho chamou de"encruzilhada literária", como vimosanteriormente. O final do século XIX

caracterizou-se pela confluência deestéticas ao que Adolfo Caminha nãopassou incólume. A poesia romântica, oromance naturalista, a defesa de Cruz eSouza nos seus textos críticos sãoexemplos da experiência de viver entreestéticas literárias.

A escolha de George Sand pode indicartambém o gosto de Adolfo Caminhapelas personalidades controversas epolêmicas. Gosto esse que se foifazendo mais e mais presente em suasleituras como veremos ao tratarmos deautores que ele mesmo os consideroucomo "obscuros". George Sand eraromântica, porém já dotada de interessespelo socialismo mesmo que romântico e

utópico. Ela foi uma das primeirasmulheres a viver de seu trabalho comoescritora, além, é claro, de tecer umaimportante rede de relações entre osgrandes nomes de sua época.3 Essaepígrafe de Sand traz também um certogosto pelo afastamento, pela crítica aosestabelecido, a afeição ao louco comoaquele que está fora da ordem, e porassim o estar se encontra em melhorsituação, criando uma ordem própria.Trata-se de uma leitura romântica daloucura, que equipara o louco ao gênio.Esses gostos parecem também teracompanhado Adolfo Caminha ao longoda escrita de sua obra.

No caso do escritor português, sabemos

que Garrett foi um dos iniciadores doromantismo em seu país com apublicação, em 1825, em Paris, deCamões. Dizemos um dos iniciadores,pois Saraiva & Lopes (1975, p.741)preferem dar a primazia do feito aAlexandre Herculano com A voz doprofeta. Questão de primazia à parte, oque nos interessa é reforçar aaproximação de Adolfo Caminha com aestética romântica, a mesma que ele emalguns momentos fez questão decombater, servindo-lhe até mesmo comoaspecto de formação de personagemcomo o foi, por exemplo, com o JoséPereira no seu romance A normalista.Segundo lemos, essa personagemescrevia "contos femininos em estilo

1830" (Caminha, 1998, p.71) numareferência aqui ao romantismo, valendojustamente lembrar que é de 1836 que ahistoriografia literária brasileira data oinício dessa estética literária com apublicação de Suspiros poéticos esaudades, de Gonçalves de Magalhães.Mesmo criticando a estética romântica,Caminha não deixou de cultivá-la ou delhe reconhecer os seus valores.

Infelizmente, não sabemos ao certo dequais obras são essas duas epígrafes;porém, ainda assim, elas evidenciam aligação de Caminha com a estéticaromântica o que se repete ao longo dasua obra, denotando haver umacoerência entre elas e o conteúdo. No

interior do livro, encontramos um poemaintitulado Margarida, numa referênciadireta a A Dama das Camélias, deAlexandre Dumas Filho. O poema deCaminha, que é formado por três partes,– "Em Pariz", "No Campo" e novamente"Em Pariz" – como se essas fossem trêsatos de uma peça teatral, traz comopersonagens Margarida e Armandocomo numa referência à peça e aoromance no qual encontramosMarguerite Gautier e Armand Duvalcomo protagonistas. Esse poema deCaminha traz uma epígrafe de VictorHugo – "N'insultez jamais une femmequi tombe!"4 – e uma outra de Boileau,essa infelizmente ilegível em razão dapéssima qualidade de impressão do

livro.

Victor Hugo, porém, não figurousomente com uma epígrafe. Seu nome éo título de um poema escrito por ocasiãode sua morte e traz como epígrafe esseverso de Castro Alves: "Mestre domundo! Sol da eternidade!...", que fazparte do poema "Sub Tegmine Fagi", de1867, do livro Espumas flutuantes.Nesse poema de Castro Alves (1960,p.101) lemos: "Irei contigo, pelos ermos– lento – / Cismando, ao pôr do sol, numpensamento/ Do nosso velho Hugo/ –Mestre do mundo! Sol da eternidade!.../Para ter por planêta a humanidade,/Deus num cêrro o fixou" (grifo nosso).Esse é o primeiro indício de leitura da

obra de Castro Alves que encontramosna obra ficcional de Adolfo Caminha enão será o único, como veremos adiante.Voltaremos ainda a esse poema e à suarelação com As bucólicas, deVirgílio aotratarmos neste capítulo dos contos deAdolfo Caminha.

O poema de Caminha remete à ocasiãoem que estando ele discursando diantedo Imperador D. Pedro II na Escola deMarinha, justamente para lembrar damorte daquele poeta francês, lamentouque esse não pudesse ver o Brasiltransformado em uma República. Em"Notas do final do livro" lemos: "Osversos á Victor Hugo foram escriptospor occasião da morte do autor dos

'Miseraveis', ainda sob a dolorosaimpressão do programma queannunciava á capital do Império opassamento do immortal poeta francez"(Caminha, 1887a, p.40). Mas se arecorrência dos autores românticos éexemplo de permanência, há nesse livroexemplos de ruptura ou, pelo menos, doinício dela com a estética citada ou comuma face sua e reconhecimento de que oromantismo teria outros rostos como porexemplo o gótico.

Desse seu primeiro livro vale aindadestacar o seguinte fato: ele já apontariapara uma das características de AdolfoCaminha como autor naturalista: apreocupação com a referencialidade,

sobretudo uma referencialidade trágicacomo encontramos no poema intitulado"A creança suicida", que abaixotranscrevemos:

A creança suicidaPobre creança!... Pobre... Umpensamento impuro apagou-te da mente os sonhosinfantis...Quanta dôr! quanto amor no teusemblante puro ao ver-te só no mundo entregue aoshomens vis!...

E um dia a sociedade, essevampiro enorme,que o sangue chupa ao justo epoupa a tyrannia,

essa ave negra, vio-te, arroxeado einforme,o corpo de creança, a alma... já nãovia!...

Como era triste o quadro! A boccase entreabria como s'inda quizesse um ai! Soltarao mundo.A negra multidão te olhava epareciatocada de pavor e de um odioprofundo!

Via-se em cada rosto um riso deironia, como desafiando os céos e omundo inteiro.

Uma creança loira os labiosentreabriae apontava sorrindo o corpo docaixeiro!... E o corpo, já sem vida, o ventobalouçava! Era como uma lampada sombria,negra, alumiando o povo... A multidãoseismava e ouvia-se distante a voz datontinegra...

Dezembro, 1885.

Mais uma vez na ditas "Notas" lemos arespeito desse poema:

"A creança suicida". Esta poesia

lembra um facto acontecido no Riode Janeiro em fins de 1885 e quemuito horrorisou a Côrte doImpério. A imprensa referio-seunisona a esse acto talvez inocentede uma creança que apenas estravana vida. Eis a carta deixada pelopobresinho:

"Eu vou dizer o que sinto dentro domeu coração. Eu vou fazer umaasneira, conheço que é, mas é porcausa de eu pensar de [...] e demeus irmãos. Eu estou empregadotrabalhando para uns e outros, degraça, e eu sem lenços para assoar,sem botinas para calçar, semdinheiro para o bond. E uma vez

vim a pé da [...] Real Grandeza, emBotafogo, á rua Sete de Setembro n.119. [...] isso... bem pensado, não epara se ter pena e doer o coração?depois de ver meus irmãosdesgraçados, sem ter, coitados,roupa [...] vestirem e sabe Deossem comida para comerem,coitados. E eu lembrando distotudo e mão tendo para socorrer nãotenho coragem de vel-os nesta tristemiseria e por isso mato-me porquenão [...] em mais nada e o maisadeos.

"Lembrança a quem por mimperguntar."

Esta carta foi publicada pelo

Diario de Noticias" de 6 dedezembro.

A creança que tinha 13 annoschamava-se José Alves de Castro.(ibidem)

O aspecto trágico do poema parece terexigido de seu autor uma justificativa,uma explicação. Transformar um fato atéentão impensado – o suicídio de umacriança – em poesia exigiu do poeta umforte amparo na referencialidade, o quefez que ele recorresse aos jornais eainda trouxesse à cena a fala de sua"personagem". Talvez, o fato trágicocarecesse de referencialidade para seraceito como representação. O gosto pelo

trágico, sobretudo ao dar à sociedade aimagem de um vampiro, bem como oambiente e as imagens agourentasparecem se manter ao longo da obra deCaminha, destacadamente em seuromance Bom-Crioulo, cujo primeirocapítulo traz, segundo LeonardoMendes, fortes traços do estilo gótico,que é também um modo derepresentação do romantismo. Aindasegundo Mendes (2000, p.122), o góticoé:

Originário do romance sentimental,o gótico surge das narrativasromânticas de terror. O góticoromântico trata da condiçãoatormentada de uma criatura

suspensa entre os extremos da fé edo ceticismo, da beatitude e dohorror, do ser e do nada, do amor edo ódio. O ser gótico tragicamentedividido revela o rio barrocosubterrâneo que atravessa aprovíncia romântica, unindo ambosna mesma revolta contra a ordemclássica. Ao combinar o terror como horror e o mistério, as narrativasgóticas criam uma atmosfera deapreensão...

Talvez esse poema seja o ápice dotrágico nesse livro de Caminha. Todo olivro é marcado por passagens trágicas,desde a dedicatória à sua mãe jáfalecida, bem como nos poemas

"Tristeza no lar"," Melancolia","Aquelle lenço" e "Convalescente", mastambém respingando nos demaispoemas, uns mais outros menos.Concluímos a abertura desse pacote dabiblioteca de Caminha por dizer que osindícios aqui apresentados nospossibilitara conhecer um pouco deAdolfo Caminha como autor-leitor e,notadamente, o seu diálogo com aliteratura romântica com a qual ashistórias da literatura que registram oseu nome e os títulos da sua obra poucoo identificam ou o fazem a modo deexceção ou de outra rubrica, a nossover, pouco esclarecedora. Esse diálogonão cessa em seu primeiro livro, poisele se estende para o segundo como

veremos ao abrir o segundo pacote desua biblioteca.

Segundo pacote

Este segundo pacote da biblioteca deCaminha traz em sua etiqueta o título deseu segundo livro, Judith e Lágrimas deum crente, de 1887, que, para LucioJaguar, pseudônimo do Padeiro Tibúrciode Freitas:

foram apenas uma vaidade muitobem entendida de alumno talentosoque ao concluir o seu curso de"humanidade", achou que deviaassignalar a sua passagem pelaEscola com alguma cousa mais doque uma estudantada ali qual quer!

um livro, uma obra d'arte que emtodo o tempo falasse de suacerebração.

Foi, pois, sob este impulso que elleescreveu seu primeiro livro ásvesperas do exame, emquantorecordava os pontos esquecidos doprogramma. Com a mesma ponta delapis com que ia resolvendo ostheoremas e as equaçõesesquecidas, foi elle, dia a dia,construindo os ingenuos e simplescapitulos da "Judith".

Era uma vaidade a satisfazer queelle tinha. O livro podia pertencera qualquer escola, isto, neste tempopara ele era cousa muito

secundaria; o que o preocupava eraque o livro fosse publicadon'aquelles dias, antes que a Armadacontasse mais um tenente.5

E foi o que se deu. Antes de umgalão por seu brilho de lantejoulana manga da farda do official, jáelle havia sido ungido com a santaunção da critica que viu no jovemmilitar um talento de eleição quedesabrochava.

Essa citação é, possivelmente, acertidão de nascimento mais completado segundo livro de Caminha, que éformado por dois longos contos. Aextensão do primeiro, com dezessete

capítulos, bem como a sua forma fazemdele mais uma novela do que um contopropriamente dito. Obviamente que atrama narrativa ainda não é tãocomplexa quanto a de A normalista enos romances posteriores a esse. Onúmero de personagem também não étão grande que permita um maior númerode ações. O mesmo também se podedizer do segundo, no entanto esse é umpouco mais curto que o anterior,contando somente quatorze capítulos euma trama narrativa também nãocomplexa. As páginas dos dois contospossuem numeração distintas: oprimeiro vai de 1 a 115; o segundo de 1a 57.Vale destacar também que nooriginal o segundo conto possuiria

somente 53 páginas, o que de fato não seconfirma. Lágrimas de um crente tem defato 57 páginas, uma vez que algunsnúmeros foram trocados ou repetidos.

Do que, porém, trata Judith? A suanarrativa se passa em 1879. Nela, oleitor conhece a história de Judith, aprotagonista, órfã de pai e mãe, que, porinfluência do irmão, Alberto, casou-secom o comendador Soares, bem maisvelho do que ela, o que a desagradatanto quanto o casamento por interesse.Alberto é o que o narrador chamou de"um libertino gasto". Ele se aproveita dariqueza do cunhado e, entre umaembriaguez e outra, jura amor à irmã.Essa, inconformada com a própria

situação e a vida do irmão, queconsidera dissoluta, passa a receber osgalanteios de Edmundo B. como umaexpectativa de, enfim, encontrar ogrande amor. Os galanteios acontecemquando Soares a deixa na companhia doirmão e vai à fazenda a fim de conteruma revolta dos escravos.

Na fazenda, o comendador Soaresrecebe uma carta anônima denunciandoas visitas de Edmundo à Judith, o quefaz que Soares volte à cidade ondechega justamente na hora em que os doisiam fugir. Surpreendido, Edmundo éatingido e Judith é impedida de fugir.Edmundo deixa o Brasil e vai para osEstados Unidos. Judith e Alberto são

aconselhados por Soares a deixar a casadele, que não os queria mal, mas queprecisava manter a sua honra limpa,desfazendo-se da traidora. Alberto, quese arrepende da vida que levava,procura o padre Nogueira, que eraconhecido de sua mãe. Judith e ele vãoviver em companhia do sacerdote.

Esse segundo livro de Adolfo Caminhafoi dedicado ao seu pai, RaimundoFerreira dos Santos Caminha, que àépoca ainda estava vivo, uma vez queveio a falecer em 23 de abril de 1893. Oconto Judith tem como epígrafes estaspalavras de Madame de Staël: "Il'y adans un mariage malhereux une forcede douleur qui depasse toutes les

autres peines de ce monde".6 No centrodesse conto está o tema do casamentoinfeliz, que tanto movimentou osromânticos. Está também a crítica aocasamento entre uma mulher jovem e umhomem bem mais velho, tema esse queencontramos em Senhora, de José deAlencar, que considerou comoindesejada a união de Aurélia com o Sr.Lemos, seu tio e tutor. Para esse temanão poderia haver melhor epígrafe doque essa de Mme de Staël, justamenteela que fornecera " des idées (plus quedes thèmes) aux Romantiques".7

No livro de Caminha não há indicaçãode qual obra de Mme de Staël foiretirada a citada epígrafe; no entanto,

acreditamos que se trate de seus doisromances Delphine e Corrine oul'Italie, o primeiro é de 1802 e osegundo, de 1807. Sobre Delphine,lemos:" L'eloge du divorce que contientDelphine se situe dans le contexte d'unedouloureuse et déjà ancienneopposition de la romancière à lamorale profesée par sa mère".8 Ou seja,houve a preocupação de Caminha emdefinir uma linha de relação entre aepigrafe e o conteúdo direto do conto, jáanunciando para os seus leitores eleitoras o que encontrariam pela frente.

Em Judith, encontramos no terceirocapítulo a personagem do comendadorSoares lendo o Jornal do Commercio,

mais precisamente a "parte Commercial,cambios, etc.". O que já apresenta umarelação entre a literatura e osperiódicos, a mesma relação queconstaremos no conjunto da obra deCaminha e que, de fato, era bem comumentre os homens de letras no Brasil dofinal do século XIX. Na mesma cena emque o comendador lê o jornal citado,uma chamada à porta, enquanto aspersonagens almoçam, os faz pensar quese tratasse do entregador da RevistaIlustrada, o que reforça a relação jácitada, e que se repete ao longo do contouma vez que são nomeados outrosperiódicos como a Gazeta, o Jornal, oPaiz. A literatura e a imprensa decirculação ou propriamente literária

estavam alimentando-se constantemente,valendo-se uma da outra. São exemplosde construções de representações,lembrando aqui o conceito de Chartier,realizadas dentro da própriarepresentação por meio da linguagempoética.

Nas conversas entre Alberto e Judith háreferência às histórias da Carochinha edo afamado João de Calais, uma dasnarrativas tradicionais da literatura orale de cordel que circulava e ainda circulano Brasil, notadamente no Nordeste. Sãogeralmente histórias que se contam emfamília ou entre amigos como podemosconstatar nessa cena de Judith na fala deAlberto: "– Não faz mal. Elle hoje hade

vir outra vez e, então, passaremos anoute ou jogando o ècarté ou contandohistórias, ainda que sejão da Carochinhaou do João de Calais" (ibidem, p.59).Assim como as obras citadas mostram-se como constituidoras de momentos,situações e apontam para fatosvindouros, guiando a leitura, elastambém fazem parte da constituição daspersonagens como é, nesse conto, o casoda personagem Edmundo, o galanteadorque teria seduzido Judith:

Detenhamo-nos a porta do quartode Edmundo, um compartimentobem arejado, fresco, mas, ondereinava a maior desordem. Trouxasde roupa suja por debaixo da cama

entregues aos ratos e ás baratas,calças de todas as côres e feitios,paletós e sobre-casacasmisturavam-se pelos cabides enada faltava alli para que um rapazda tempera do filho do barão de...sahisse elegantemente vestido epenteado á ultima moda. O leitoestava desarranjado como sialguem acabasse de se espojarsobre elle, e a cabeceira o romancede Zola Nana, com as folhasmachucadas que o vento açoitava.(ibidem, p.103)

Por esse indício, ou seja, pela citaçãodo romance de Zola, vemos que AdolfoCaminha já tomara conhecimento da

existência de Nana, publicado em 1880como parte de Les Rougon-Macquart.Não é por acaso que esse romance deZola é citado, pois como sabemos, a suapersonagem é uma cortesã. Assim comoencontraremos em A normalista, onarrador preocupa-se em descrever oespaço mais íntimo em que vive a suapersonagem, ou seja, o quarto. Juntando-se à escolha do romance o ambiente emque o livro se encontrava vemos que asua função na trama narrativa éconformar ainda mais a personalidadede Edmundo. Nana se insere na longalinhagem de cortesãs que talvez tenhasurgido na literatura francesa comManon Lescaut, de 1731, do AbadePrevost, seguida de A Dama das

Camélias, de 1848, de AlexandreDumas Filho, já aqui citada quandotratamos do primeiro livro de Caminha.No Brasil, podemos juntar a elasLucíola, de 1862, de José de Alencar.Melhor leitura parecia não haver para apersonagem Edmundo, ele mesmorepresentado como uma versãomasculina de Nana.

Ainda a respeito dos indícios de leituraque encontramos em Judith estão oslivros do padre Nogueira com quemJudith e seu irmão foram morar apósdeixarem a casa do comendador. A casado sacerdote é assim descrita:

Não havia um canto onde nãoestivesse um relicario, uma imagem

de santo. Entre as duas janellas queabriam para o jardim ficava aestante repleta de obras religiosase livros catholicos. Ahi estavamricamente encadernados a famosa einprescindivel (sic) BibliaSagrada, a vida de Jesus de E.Renan, o Martyr do Golgotha deEscrich entre outras obrasimportantes como as de Homero eVirgilio. (ibidem, p.94)

Vemos que espaço e leitura, nesse caso,se imbricam, compõem o ambiente emque vivia o sacerdote com quem osirmãos, agora distantes da vida fidalga,foram morar. A austeridade e a bondadeque suscita a presença das imagens dos

santos parecem confrontar com oambiente em que viviam Judith eAlberto. Os títulos indicados – A vidade Jesus, de Ernest Renan; O martir dogólgota, de Henrique Perez Escrich; asobras de Homero e Virgílio, que não sãonomeadas – se contrapõem aos títulosanteriormente citados, marcando, dessemodo, uma modificação na vida daspersonagens.

Pelas obras aqui arroladas percebemosque nesses primeiros livros AdolfoCaminha se prepara para escreveraqueles outros mais densos, não somenteem volume de matéria escrita, mas,sobretudo, densos na trama e noselementos principais da narrativa que

ele enriqueceu com referências as maisdiversas das leituras que realizou aolongo de sua formação e de sua atuaçãocomo escritor. O teor romântico doconto parece evidente. E talvez oprimeiro argumento dessa afirmação jáesteja em seu título, onde encontramos osignificante" lágrimas" como forma demarcar o sentimentalismo e a emoção. Aesse respeito afirmaram Rosenfeld &Guinsbourg (1978, p.264-5):

Entre os antecedentes domovimento romântico, também édigna de nota a onda desentimentalismo burguês que seespraia pelo século XVIII. Um tomintensamente emotivo, que

extravasa em especial os romancesingleses de Richardson, Sterne,Goldsmith, invade a literaturaeuropéia. O jovem Goethe, talcomo ele próprio se descreve maistarde em Dichtung und Warheit("Poesia e Verdade"), chora sobreestes romances. E não só ele, poisna mesma obra, que é um grandepanorama da vida intelectual alemãna segunda metade do século XVIII,vê-se como todo mundo oacompanha nesse choro. O pranto égeral. As lágrimas umedecem boaparte da correspondência daquelaépoca. Assim, quando Wieland, opoeta exponencial do rococóalemão, volta à cidade natal, após

dez anos de ausência, e encontra anamorada de sua juventude, os doisestacam à distância de uma dezenade metros um do outro, estremeceme se entreolham longamente;depois, ela dá alguns passos àfrente e ele retrocede, ela abre osbraços, ele se precipita ao seuencontro e cai, ela o levanta, osdois enfim se beijam e choramabundantemente um nos braços dooutro. Mas as lágrimas têm vezoutrossim na França da Ilustração,onde surge a comédie larmoyante,de Destouche e Diderot. Aliás atragédia burguesa, um gênero depeça que começa então a sercultivado, é também extremamente

sentimental. É o caso de Miss SaraSampson, de Lessing, texto escritoem 1755 e que constitui o primeiroêxito do autor. Segundo asdescrições da época, o público secomovia a tal ponto com o crueldestino da pobre moça, raptada,seduzida e envenenada que sedesfazia em lágrimas, horas a fio.Não menos lamentos teráprovocado o romance de Goethe,Os sofrimentos do jovem Werther,uma das mais lídimas expressõesdessa corrente sentimentalista.

Se Judith traz uma epígrafe retirada daobra de Mme de Staël, em Lágrimas deum crente encontramos uma citação da

obra de Victor Hugo: "Oui, tout grandcoeur a droit aux grands infortunes".9Assim como no conto anterior, essacitação já prenuncia o que o leitorencontrará no interior do livro. Mas hánesse conto um outro elemento que odistingue do anterior. Foi possivelmenteem Lágrimas de um crente que, pelaprimeira vez, Adolfo Caminha tenha sedirigido aos seus leitores. Na portada doconto lemos:

Ao leitor

O leitor piedoso que tantas vezestem honrado os hospitaes e casa demizericordia com a sua amavel econsoladora presença, que tem lido

na fronte macilenta de tantosinfelizes historias as mais tristes,não se recusará acompanhar-me áum destes estabelecimentos decaridade, certo de que pouco tem aperder com a visita.

E' um instante, leitor.

N'aquelle compartimento que allivês, á entrada, habita ummoribundo. Entremos semruido.Vêde? Tenue claridadeilumina-lhe o semblantecadaverico. Ouvis? Quasi que nãose lhe percebe a respiração. Pareceresomnar; não acordemol-o.Aquelle corpo quasi sem vidaocculta uma alma de heróe, mas

desses heróes obscuros que passamsem deixar nome na historia.

Queres ler a vida deste martyr,leitor? Vem commigo, approxima-te de vagar, pé ante pé, Estemanuscripto que aqui vês acabeceira do doente contem a suaexistencia inteira. Sejamosindiscretos uma vez na nossa vida.Leia-mos juntos o que dizem estaspaginas escriptas em caracterestremulos, talvez em noites deinsomnia: Lagrimas de um crente.

Além de ser a primeira vez que AdolfoCaminha usa o recurso do narratário,explicitando um diálogo com seu leitor,

que ele considera ser piedoso, esse émais um recurso característico dasnarrativas românticas como podemosconstatar em vários romances de José deAlencar (2003a, p.10), como em Diva:

Um belo dia recebi pelo segurouma carta de Amaral; envolvia umvolumoso manuscrito, e dizia:"Adivinho que estás muitoqueixoso de mim, e não tens razão.Há tempos me escreveste, pedindo-me notícias de minha vida íntima:desde então comecei a resposta,que só agora concluí: é a minhahistória nesta carta. Foste meuconfidente, Paulo, sem o saberes;só a lembrança da tua amizade

bastou muitas vezes para consolar-me, quando eu derramava nestepapel, como se fora o invólucro deteu coração, todo o pranto de minaalma."

O manuscrito é o que lhe envioagora, um retrato ao natural, a que asenhora dará, como ao outro, agraciosa moldura.

P.

Achar um manuscrito ou recebê-lo dealguém, que não sabemos bem ao certode quem se trataria, mas que narrava ahistória de uma personagem, dava aresde verossimilhança aos fatos narrados.Norma Goldstein (2003, p.3), a respeito

de textos trocados entre o narrador e onarratário, afirmou sobre o romanceDiva, de Alencar:

Um bilhete, endereçado "aG. M.",inicia o romance Diva, de José deAlencar. Trata-se de um engenhosoardil cuja função – como a deoutros ingredientes romanescos datrama – é sugerir ao leitor averacidade do relato que se segue,o 'manuscrito' em que o narrador-personagem, Augusto Amaral,conta o desenrolar de seu namorocom a bela Emília Duarte. Destaforma, sentir-se-ia o público daépoca (1864) mais próximo doepisódio vivido pelos heróis do

livro. Deve-se ter presente que aficção romântica destinava-se aleitores que buscavamentretenimento e que visavam aidentificar-se com os apaixonadosda obra; peripécias e lancesimprevistos envolviam o paramoroso, até que fosse superado oobstáculo à sua união.

Ainda nas obras de Alencar, maisprecisamente no romance Lucíola,encontramos o uso do artifício dascartas, que também se estabelece numacorrespondência trocada entra narradore narratário. No centro dessacorrespondência está o romance, que oleitor lê na forma impressa. Em Lucíola,

lemos: "Ao Autor. Reuni as suas cartas efiz um livro. Eis o destino que lhe dou.Novembro de 1861. G. M." (Alencar,2003b, p.11). Em Cinco minutos oartifício não é uma carta, mas atransformação da ficção em história: Éuma história curiosa a que vou lhecontar, minha prima. Mas é uma história,e não um romance" (Alencar, 1959, v.1,p.181). Nesse caso, a palavra históriapode ser substituída pela palavraverdade ou similar como fato.

Como vemos, o artifício usado porCaminha é característico da narrativaromântica, mas, além de servir aosobjetivos e circunstâncias citados antes,esse tipo de artifício funciona como um

desvio ou descolamento entre aquilo quese narra e aquele que narra. Há nointerior desse afastamento uma supostadelegação de escrita, que, pela ausência,traz à cena a atuação de terceiros,mesmo que esses não sejam diretamentenomeados.

Há também nesse fato, e maisprecisamente nessas" Lágrimas de umcrente", a produção de uma aproximaçãoentre o narrador e o leitor por meio depalavras e expressões deconvencimento, procurando fazer oleitor desvendar a história de um heróiobscuro, doente, miserável, recolhido auma casa de misericórdia, de quem sedeve ter pena e comiseração. Por meio

dessas palavras dedicadas ao leitorprocura-se estabelecer com ele umarelação de intimidade. Constrói-se,desse modo, mais uma prática derepresentação. O que o narratário e oleitor, aliás ele é nomeado, lerão é ummanuscrito, e nesse ponto o mundo doimpresso se encontra com o mundo daescrita à mão, ou seja, o encontro de ummeio de produção mecanizado e degrande escala encontra-se com o mundoda palavra grafada na intimidade com osinstrumentos de sua gravação: pena, tintae papel.

Muitas vezes esse recurso é apontado natradição da crítica literária como acriação de uma circunstância de

verdade, como já vimos ao ler a citaçãode Norma Goldstein; no entanto, elejamais é pensado como umarepresentação das circunstâncias e dascondições de produção que, naquelemomento, ainda eram vigentes no Brasilprovocando a coexistência de suportes epráticas de escrita: o impresso e aindústria da impressão, o manuscrito e amanufatura da escrita. Esse manuscritocom o qual o leitor conhecerá a históriado herói obscuro é exatamente o conto"Lágrimas de um crente", que ele já temem mãos no suporte impresso. Então,por que criar essa representação? Porque representar o manuscrito dentro dolivro impresso? O manuscrito é umarepresentação no livro impresso e pelo

qual o leitor pagou, o mesmo que eleguardará em suas estantes; é aquele queo fará companhia em seus momentos delazer. Esse livro impresso tem umformato, as palavras estão gravadas emsuas páginas de forma mecânica, mas,ainda assim, é ao manuscrito que o autorrecorre.

Como representação, o manuscrito étambém uma memória trazida à cena,não somente a memória da vida de umapersonagem, mas podemos dizer tambémque é a memória das condições deprodução da literatura. O manuscritocomo memória dessas condições tende adesaparecer da cena do livro à medidaque, no século XX, a indústria do livro

se desenvolve e se efetua. Se, nessecaso, ou seja, no século XX, omanuscrito é trazido à cena, é para dar anarrativa um certo ar de mistério ou paracontar aquilo que ainda não é públicocomo também vemos nesse casoespecífico do livro de Adolfo Caminha.No século XX, o que vemos é apresença do livro dentro do livro pormeio do recurso do mise en abîme, cujoexemplo clássico na literatura brasileirado período seria o romance SãoBernardo, de Graciliano Ramos.

Voltemos, porém, ao caso do conto"Lágrimas de um crente" e ao séculoXIX. O fato de recorrer ao leitor deforma mais explícita, de chamá-lo a

conhecer o herói da trama narrativa, dedesvendar na companhia do narrador avida desse moribundo e a consequentenarrativa dos fatos é um exemplo daconsciência que aos poucos foiadquirindo o autor a respeito do papelda leitura. O leitor é chamado a ler. Emoutras palavras, o leitor é chamado adesvendar o manuscrito que um outroescrevera, ou seja, a dar ao público aescrita delegada por um outro, mas quese efetiva na sua leitura que denuncia arepresentação de uma escrita nãoexistente porém já configurada em livro:"Este manuscripto que aqui vês acabeceira do doente contem a suaexistencia inteira" e esse "manuscripto"se chama: "Lágrimas de um crente".

Assim, já no início do livro as relaçõesentre escrita e leitura se evidenciam pormeio da representação dessas. Na obrade Adolfo Caminha, essas relações setornam mais constantes à medida que assuas narrativas se fortalecem e, mais emais, o autor vai avançando no sistemaou campo literário, inserindo-se nasvárias atividades que o conformavamnaqueles idos anos do século XIX,sendo a leitura uma delas. Mas o queconta o suposto manuscrito? Quem é,enfim, o herói obscuro, o mártir, omoribundo da narrativa escrita à mão,mas impressa no livro?

O primeiro capítulo é uma espécie dededicatória do conto a um amigo, cujo

nome ficamos conhecendo no sextocapítulo, trata-se de Luiz – O resto tusabes, Luiz" (Caminha, 1887b, p.32) –supostamente aquele mesmo queconvidara o leitor a ler com ele ahistória do mártir esquecido. Nele,lemos: "Escrevo-te do leito, desse lugarsagrado onde o homem nasce ama emorre" (ibidem, p.9). Ao final docapítulo, lemos: "Lerás n'estemanuscripto como no próprio livro deminh'alma. Deos, esse meo pai e pai detodo o mundo, há de permitir que euconclúa esta historia sombria. Quarda-a[sic] como uma reliquia, que sãopáginas da alma de um desgraçado"(ibidem). Assim, vemos que a ideia domanuscrito veio do interior da narrativa,

veio daquele que a "escreveu". Apersonagem chama o livro de "páginas",ainda que acima as chamasse de livro, olivro da sua alma. No entanto, sabemostambém que o autor do livro é AdolfoCaminha. Temos, assim, um autor dolivro e outro do manuscrito, o que faz doresultado final ser uma poligrafia, nessecaso, uma grafia de várias mãos.

"Lágrimas de um crente" conta a históriade Eduardo, o martir, que foraabandonado pelos pais biológicos eadotado por Edwiges T, uma prostituta,que faleceu vitimada pela tuberculose,deixando-o novamente órfão, fazendoque ele abandonasse os estudos demedicina para ser professor aos dezoito

anos, mais precisamente professor dematemática para crianças. Assim, a vidade Eduardo passou a ser mais difícilcom a morte de Edwiges como podemosconcluir da leitura deste trecho sobre asua habitação: "So os meos discipulossabiam que eu morava em um humildecubiculo da cidade, eu, um explicadorde mathematicas" (ibidem, p.35). Mas oideal de Eduardo não era de fato amedicina, era a poesia. No entanto, anecessidade do estômago o fezdedicarse ao ensino:

Preciso é que te diga, meo amigo,eu sempre fui avesso ásmathematicas; era um sacrificiopara mim o fazer um calculo por

mais simples que fosse.

Uma imaginação como a minha nãopode cuidar das cousas positivas.

O Ideal era a minha patriapredilecta.

Mas era preciso voltar o olhar parabaixo.

Desgraçados os poetas si levassema vida inteira a fazer poesia. Paraisso seria preciso que não existisseesse orgão faminto que se chama –estomago. (ibidem, p.34)

Essa personagem é possivelmente aprimeira manifestação do pensamento de

Caminha a respeito do trabalho doescritor, trabalho esse cuja remuneraçãoele defenderá em seu livro Cartasliterárias e como já o vimos emcapítulo específico. Mas continuemoscom a narrativa de "Lágrimas de umcrente". Eduardo estava na época dedescobrir o amor. Indo à casa de um dosseus alunos – o Luizinho –, que logo elecompara ao Raphaël, romance deAlphonse de Lamartine, publicado em1849:" Já leste o 'Raphael' deLamartine? Luizinho e Raphael deviam-se parecer" – citando mais umromântico, ele conhece Lucinda, porquem se apaixona. Entra em cena odinheiro para impedir que os dois seamem. Sempre os cobres a separar os

amantes românticos. O primeiroencontro é também a ocasião doconstrangimento pelo fato de Eduardonão ter como apresentar-sedecentemente vestido em um salão defestas:

A minha cabelleira basta deviacausar riso áquella sociedadeavida de prazeres.

Uma velha sobrecasaca, um chapéoque de cinzento mudara-se emverde, umas calças ainda cheirandoa benzina era o traje elegante comque eu ia me apresentar a familiado Luizinho. Pobre de mim! Dequantos [sic] zombarias seria euvictima essa noite!Todos me olham

espantados como si vissem em mimoutro judeo errante. Muitosevitaram os meos comprimentos[sic] disfarçando a repugnancia.(ibidem, p.40)

Esse drama de Eduardo também oencontramos no José Pereira, editor daProvíncia, no romance A normalista, oque, pode-se dizer, que faz de Eduardoum ensaio para a formação daquelapersonagem mais bem construída noromance de 1893, passados então seisanos. O pai de Lucinda se opôs aonamoro dos dois e Eduardo resolveentão ir à Guerra do Paraguai: "Doussentimentos sublimes palpitavam dentrodo meo coração: o amor da Patria e o

amor de Lucinda" (ibidem, p.47).Sentimentos mais românticos essapersonagem não poderia ter. Voltandoda guerra e indo à casa de sua amada,condecorado, porém sem uma perna,Eduardo não a encontra mais. Lucinda,não tendo como unir-se a ele, entroupara o convento em Santa Tereza, onde,dias depois, ele a escuta cantar no coro.Eduardo retorna ao convento mais umavez, no entanto não escuta mais a voz dafreira, que depois soube haver morrido:"Perguntei si havia morrido alguém. –Sim, disse-me uma irmã. Morreu amenina Lucinda" (ibidem, p.56).

Assim como no primeiro conto, nessenão há muitos indícios de leituras feitas

por Adolfo Caminha, ao menos não o háde forma mais aparente; no entanto,vemos que o autor já realizava leiturasentre o romantismo, representado porRaphaël, de Lamartine, e Nana, de Zola.Se ao mesmo tempo as leiturasromânticas se mostram como exemplosde permanência, a presença do títulonaturalista se mostra como exemplo demudança ou de deslocamento dos seusinteresses estéticos e literários, que, defato, se tornarão mais evidentes nosromances futuros. Surgem dessemovimento outras representações quenão seriam possíveis somente com amanutenção, mas que se apoiam no jogoentre manutenção e mudança que, poucoa pouco, o escritor descobrirá, ou, se já

as conhecia, foi as utilizando.

Terceiro pacote

No paiz dos yakees, de 1890/1894, é onome que lemos na etiqueta do terceiropacote da biblioteca de Caminha. Esseseu livro foi primeiramente publicadono jornal O Norte, de Fortaleza, em1890; somente em 1894 foi publicadoem livro, no Rio de Janeiro, pelaDomingos de Magalhães. De 1887, anoda publicação dos dois primeiros livrosde Caminha, já teriam se passado trêsanos quando o livro em questão foi dadoao público. Adolfo Caminha já haviasido exonerado da Marinha e seencontrava em Fortaleza. Passados esses

três anos, o que lera o escritor? Queindícios de suas leituras encontramos aoabrir mais este pacote de sua biblioteca?

Na verdade, podemos até dizer que asreferências às suas leituras contidasnesse seu livro não correspondem aoperíodo de três anos, uma vez que emNo pais dos ianques temos a narrativade sua viagem de instrução aos EstadosUnidos, viagem essa que ele realizaraentre os dias 19 de fevereiro de 1886 e7 de dezembro do mesmo ano, quandoretornou ao Rio de Janeiro. Esse livrode Caminha traz elementos típicos dodiário, como o ordenamento de fatos apartir do recurso das datas, apesar detambém fazer uso da organização em

capítulos e não em meses comocomumente vemos nos diários. Poraquelas datas percebemos que a viagemantecedeu a publicação dos doisprimeiros livros, que, assim como jávimos, são de 1887. Adolfo Caminhafora aos Estados Unidos a fim departicipar da Exposição Industrial deNova Orleans na qual o cruzadorAlmirante Barroso foi apresentadocomo a mais importante criação daengenharia naval brasileira:

O comandante levava ordem parachegar a Nova Orleans em tempode assistirmos à abertura daexposição internacional americana,onde o Almirante Barroso devia

figurar como legítimo e admirávelproduto da indústria navalbrasileira tão pouco conhecida noestrangeiro. (Caminha, 1979,p.123)

Segundo Adolfo Caminha, o AlmiranteBarroso foi o único produtogenuinamente nacional que chamou aatenção dos americanos, em razão, aindasegundo ele, da participação"insignificante" do Brasil na exposição,o que, na sua opinião, se justificava coma" Indiferença, talvez, simplesindiferença de nossos governos"(ibidem, p.41). Essa indiferençaproduzia pavilhões muito acanhados doBrasil ante outros países como o México

e os Estados Unidos. Esse fato fazia queo Almirante Barroso fosse recebidocom surpresa:" – Como? Pois no Brasiltambém se fabricam navios de guerra?Está muito adiantado o Brasil!" (ibidem,p.40).

No país dos ianques é o registro doencontro de Caminha com os EstadosUnidos, o que, segundo Brito Broca(1957a, p.204), não costumava sercomum entre os nossos homens de letras.Assim, as referências aos EstadosUnidos, sobretudo se comparados àFrança e especialmente a Paris, sãoraras: E o livro que nos dá conta dessaexcursão, No País dos Ianques(Domingos de Magalhães editor, 1894),

constitui um dos primeiros depoimentosde escritor brasileiro sôbre os EstadosUnidos, motivo bastante para nosdespertar interêsse...".

Essas suas memórias de viagem foramsomente publicadas em 1890; assim, operíodo de três anos caberia ao tempode escrita. Segundo consta na introduçãodo livro, ele fora mesmo escrito naqueleano: "Escritas em 1890, as páginas quese vão ler podem não ter a importânciade um estudo completo, mas de algummodo têm seu valor intrínseco"(Caminha, 1979, p.116). Logo nas suasprimeiras páginas, encontramos oindício de que Caminha fora leitor deHippolyte Taine, sobre quem afirmou:

TAINE, o glorioso Taine, oquerido filósofo cuja obraadmirável tem sido uma espécie debússola para os que se iniciam nacomplicada arte da palavra; Taine,o mestre, aconselhava sabiamente,com aquela profundeza de vista ecom aquele raro e superior critériode artista e pensador:

Que chacun dise ce qu'il a vu, etseuleument ce qu'il a vu; lesobservations, pourvu qu'ellessoient personnelles et faites debonne foi sont toujours utiles.

Devo a estas palavras a lembrançade escrever as múltiplasimpressões, os sucessivos

transportes de admiração, de júbiloe tristeza por que passou meuespírito durante meses de viagemnos Estados Unidos. (ibidem,p.115)

Hippolyte Taine foi uma das figuras cujopensamento mais esteve presente noBrasil do final do século XIX. NaFrança, "[il] fut l'un des maîtres àpenser de sa génération et de toute lafin de siècle".10 Já vimos que a presençade Taine fora forte junto aos membrosda Academia Francesa do Ceará e daEscola do Recife. Era de Taine, porexemplo, a ideia de explicar a obra pelomeio em que fora publicada, bem comoa necessidade de aproximar a literatura

dos métodos e modelos científicos daépoca. A propósito de Taine e seu modode analisar a literatura, lemos:

À la fois critique et historien de lalittérature, il voulut créer une critiquetoute scientifique, fonder un théorie surla relation de l'oeuvre et son milieu,élaborer un système permettant derechercher la casualité de l'oeuvre etd'expliquer, logiquement etscientifiquement, grâce à la méthodeinductive, les cas particuliers par lesprincipes généraux. Ces principes,exposés dans De l'intelligence, sont aonombre de trois: la race, le milieu, lemoment, facteurs nécessaires etsuffisants pour rendre compte de

l'apparition des oeuvres littéraires oudes personnalités historiques.11

Esse determinismo de Taine, essaprecisão em dizer somente o que tinhavisto de um modo pretensamenteortodoxo parece em princípio ternorteado a escrita de No país dosianques; no entanto, o que constatamos éque não faltou a essa vontade deverdade a atuação do escritorficcionista, o que fundamenta uma dascaracterísticas ou validades da críticade Adolfo Caminha, qual seja, a suarelação interna com a ficção. Noentanto, ainda quanto ao método deTaine, foi exatamente essa busca pelaverdade que parece tê-lo esvaziado, uma

vez que, mais e mais, a objetividadepassou a ser questionada, sobretudo como aparecimento das vanguardaseuropeias e o surgimento das múltiplaspossibilidades de representação de umamesma cena. Parece mesmo ter sido emTaine, e talvez em outros queacreditavam e difundiam esse método,que Adolfo Caminha fundou as basesdesse seu modo de olhar e narrar aquiloque via, criando, desse modo, registrosde memória que foram, pelaespecificidade de seu fazer,atravessados pela linguagem tipicamenteficcional.

Feito esse registro da leitura de Taine, oprimeiro autor que Caminha citou foi

Gustavo Adolfo, que se encontravapreso na nova penitenciária do Recife.Sobre Gustavo Adolfo, afirmou Caminha(1979, p.119):

Há criminosos de toda espécie, emcujos semblantes retratam-sedelitos tenebrosos. Nada, porém,nos comoveu tanto como a históriado preso Gustavo Adolfo, que, háquase vinte anos, cumpria a terrívelsentença a que fora condenado. Eraum desses sentenciados simpáticosque inspiram compaixão a quem osobserva de perto.

Gustavo Adolfo faz parte de uma galeriade obscuros que Adolfo Caminha cita aolongo do conjunto de sua obra. A um dos

artigos de Cartas literárias ele deuexatamente o título de "Os obscuros". Otratamento que ele deu a essas figuras osconforma entre os miseráveis e osmártires. Os miseráveis e os mártires daliteratura com os quais ele parecia, dealgum modo, assemelhar-se ouidentificarse ou querer-se mostrar comotal em mais um ato de representação dafigura do autor. Sendo assim, o retratoque Caminha pintou de Adolfo nãopodia ser outro. Nesse retrato há algumreconhecimento de um pelo outro, ambosAdolfo:

Gustavo Adolfo parecia-nos umregenerado, tal o aspecto humildede sua fisionomia e o tom

comovente de sua voz. Oisolamento transformara-lhe aalma. A dor tem isto de bom –purifica o espírito, é como umcrisol. Esse infame, essasassassino, Gustavo Adolfo, era ummártir. Aquele semblante abatidopela insônia, aquele rostodescarnado, aqueles olhoscansados de chorar, aqueles lábioslívidos de defunto, cansados derepetir a palavra – perdão,lembravam a figura resignada deum moribundo que nada maisespera senão a eterna liberdade – amorte.

Vimo-lo na casa dos condenados,

entre as quatro paredes de ummiserável cubículo, vestido depreto, barba crescida, macilento,arrependido e só.

Poucos iam incomodá-lo ali,naquela pavorosa solidão, e noentanto ele não odiava ninguém edesejava falar a todos.

Tinha dezenove anos quando afatalidade o arremessou a Fernandode Noronha. A justiça humana ohavia condenado a esta penainfamante – galés perpétuas.(ibidem)

Na tentativa de consolar GustavoAdolfo, Caminha mais uma vez recorreu

a Lamartine: "Console-se, disse eu aodesaventurado moço. E citei Lamartine:–Vivre c'est attendre" (ibidem, p.120).12

Gustavo Adolfo fora encarcerado porassassinar a prostituta por quem seapaixonara e que trazia em suas orelhasum par de brincos que ele, o criminoso,achava que eram de diamante. Tristeengano, eram falsas as joias. SegundoAdolfo Caminha, a cena desse crime ofez lembrar de uma peça deShakespeare:

Ei-lo que se levanta de um ímpeto,pisando devagar, sorrateiramente,tão de leve que dir-se-ia umasombra; ei-lo que se encaminhapara a porta da rua, tateando,

encostando-se às paredes, pé antepé, sem respirar, olhando semprepara trás, para o leito da amante(lembra-me a cena da"Cimbelina", de Shakespeare).(ibidem, p.119)

Essa afirmação coloca-nos diante deuma dúvida. Acreditamos que Caminhareferia-se, possivelmente, à peça OCimbelino, uma daquelas feitas naúltima fase da carreira de Shakespeare.A ela podemos juntar Péricles, Contode Inverno e A tempestade. GustavoAdolfo foi preso por cometerassassinato. O que não impediu queAdolfo Caminha transformasse a vítimaem ré ao afirmar: "A mulher, sempre

essa criatura profundamente sedutora emisteriosa!" (ibidem, p.121). Alémdisso, Caminha também fez uso damáxima corrente entre os juristas daépoca: "Cherchez la femme" (ibidem,p.120),13 máxima essa que encontramos,por exemplo, em A Nova Escola Penal,de Viveiros de Castro, livro esse lido ecriticado por Adolfo Caminha em suasCartas literárias. Citamos Castro(1913, p.199):

A celebre máxima franceza –cherchez la femme – não é apenasuma phrase de espírito, encerrauma enorme verdade, traduz ainfluencia terrivel que a mulherexerce sobre o homem,

principalmente quando este tem umcaracter enfraquecido portendencias hereditarias, recebeuuma educação imperfeita ou viveem um ambiente corrompido.

Gustavo Adolfo, ainda no cárcere, tevepublicado um livro de poemas intituladoRisos e lágrimas, que, segundo Caminha(1979, p.122), era" uma coleção depoesias sentimentais e amorosas quepouco valem pela forma e onde seacham cristalizadas as dores do infelizpoeta, cuja imaginação cantava entrelágrimas". Risos e lágrimas, doparaense Gustavo Adolfo, nascido emBelém em 1850, como consta naEnciclopédia da literatura brasileira, é

de 1882. A esse seu livro seguiram-se:Cantos do desterro, de 1884, e Cançõesdo exílio, de 1891, ambos de poemas(Coutinho & Sousa, 2001, v.1, p.162).

No rol de citações de nomes de autorese títulos de obras, seguiu-se um outroautor não menos obscuro, aliás, citadocomo um exemplo estrangeiro do queseriam os Gustavos Adolfos pelo mundoafora. Trata-se de Imbert-Galloix.14 Aseu respeito não conseguimos muitasinformações. No entanto, AdolfoCaminha o citou ainda uma vez em seuartigo "Os obscuros", de Cartasliterárias.

Obras polêmicas, igualmente naturalista,

parecem ter sido lidas constantementepor Adolfo Caminha, como o foi com oromance A carne, de Júlio Ribeiro, aotratar de cenas de castigos estremadoscomo o era a chibata então em voga naMarinha. Ao citar esse romance deRibeiro, Caminha também faz referênciaà produção de sua própria obra,mencionando o seu conto A chibata, oque lhe fez retomar a sua produção deanos antes da publicação de No país dosianques.

Das possíveis leituras realizadas porCaminha e dos indícios dessas leiturasregistradas no seu livro em questãochamou-nos a atenção o fato de que eleobtivesse informações dos Estados

Unidos por meio da leitura de escritoresfranceses, como Chateaubriand, citandodesse Les Natchez, uma vez que seencontrava no rio Mississipi já próximode chegar a Nova Orleans. DeChateaubriand, Caminha (1979, p.132)citou também Voyage en Amérique:

O pôr-do-sol entre a neblina quecobria os horizontes fazia lembraras páginas de Chateaubriand na suaVoyage en Amérique, páginasesculturais e cheias de comovidanostalgia dos que se vão da pátria...

Quanta verdade nas suntuosasdescrições do poeta! Quanta poesianaquelas paragens desertas da fozdo Mississipi – Saara de neve

estendendo-se a perder de vista noshorizontes sem fim! Que demaravilhas ocultavam-se por trásdaquelas planícies, lá onde o olharnão atingia!

Aproximando-se do dia da partida deNova Orleans, Caminha recorreu maisuma vez a Chateaubriand: "E entantoaproximava-se o dia da partida: íamosembora rumo de norte, levando conoscoa imorredoura lembrança doMeschasebé, 'le roi des fleuves', e daslegendárias terras que Chateaubriandpoetizara nas suas inimitáveis viagens"(ibidem, p.150). Ainda deChateaubriand, referindo-sepossivelmente a um dos seus livros

citados, afirmou Caminha a respeito daFiladélfia:

E eu fiz o resto da viagempensando no assombroso progressodaquela cidade enorme, que aindaem 1791 não era mais que umasimples colônia a respeito da qualChateaubriand exprimia-se destemodo: L'aspect de Philadelphieest froid et monotone... (ibidem,p.170)

Se juntarmos a esses dois títulos deChateaubriand, o Paris en Amérique, deÉdouard Laboulaye, publicado em 1863,em Paris, pela editora Charpentier como pseudônimo de docteur RenéLefebvre, concluiremos que a leitura

feita por Adolfo Caminha, a fim deinformar-se a respeito dos EstadosUnidos, foi de autores franceses emfrancês, não havendo sequer umareferência a autores norte-americanos,ainda que fosse em traduções para oportuguês ou mesmo para o francês.Mesmo que ele dissesse que "admira osEstados Unidos como uma segundapátria, porque ali moravam juntas todasas liberdades e florescemprodigiosamente todas as nobres idéiascivilizadas..." (ibidem, p.132) – as suasleituras eram francesas. A respeito docitado livro de Laboulaye, afirmouCaminha: "Paris en Amérique é um doslivros mais curiosos e originais que eutenho lido sobre os Estados Unidos"

(ibidem, p.161). Como vemos, naformação de leitor de Adolfo Caminha,Paris e a França estavam sempre emfoco.

Se faltam referências à literaturaestadunidense, não são poucas as vezesem que Adolfo Caminha refere-seàquele país como o país das novidadestecnológicas, das descobertas no campoda ciência: "Todos ansiávamos pelachegada ao país maravilhoso dosianques, ao berço da eletricidade, todosqueríamos conhecer de visu o celebradopaís das descobertas engenhosas"(ibidem, p.127). A esse respeitopodemos citar também:

O espírito inventivo dos

americanos revela-se a cada passonas grandes cidades dos EstadosUnidos. Em todos osestabelecimentos, em todos osramos da atividade pública seencontra uma aplicação nova damecânica industrial, um artifício deutilidade pública, econômico ecurioso, uma invenção engenhosa...(ibidem, p.166)

Para conhecer os Estados Unidos,Caminha parece ter se preparadopreviamente, estudando a língua inglesacomo nos leva a concluir na leitura dotrecho que a seguir transcrevemos:

Desde logo entramos, de

combinação, em "sérios" estudosdo idioma inglês praticando unscom os outros, compulsandomanuais de conversação,decorando significados,preparando-nos, enfim, da melhorforma, para retribuir gentilezas,captar amizades, responder a todasas perguntas que nos fossem feitasà queimaroupa. Sim, porque tudoquanto havíamos aprendido teóricae praticamente na Escola, não erabastante. Faltava-nos a facilidade,o traquejo da palavra estrangeira,que havíamos de adquirir à forçade vontade e aplicação assídua.

Alguns oficiais, entre os quais o

comandante, riam-se do nossoapuro, e, de vez em quando,atiravam-nos de surpresa umapergunta em inglês. Quantodisparate, quanta tolice a princípio!O certo é que depois, com o tempo,já nos entendíamos sofrivelmente.Noblesse oblige... (ibidem, p.127)

Mesmo com o objetivo de aprender oinglês, vemos que Caminha acaba porescrever em francês a já clássicaexpressão La noblesse oblige, isto é, anobreza obriga, usada como sinônimo deeducação e gentileza em relação asituações vividas fora do hábito. Portodo o livro há várias expressões emlíngua francesa e em menos volume em

língua inglesa. Ainda a respeito daleitura realizada a fim de melhoraproveitar a viagem encontramos oseguinte relato: "Quanto a mim, o meuprimeiro cuidado foi munir-me de umguia da cidade, espécie de pocket-bookmuito cômodo, registrando indicaçõesúteis de estabelecimento e lugaresprincipais" (ibidem, p.135).

Dessa citação é importante destacar ofato de Caminha citar o formato do guia,um livro de bolso, muito cômodo ecomum em viagens, o que mostra o seucuidado em aproveitar ao máximo otempo livre, ou seja, o período em quenão devia dedicar-se às atividades abordo ou mesmo em terra para conhecer

da melhor forma possível as cidades poronde passava, que, no caso referente aessa citação, era Nova Orleans, poisnessa cidade, segundo ele, "Tínhamostempo bastante [...] para observar oscostumes americanos e fazer um juízomais ou menos aproximado daquele belopovo" (ibidem).

Vale destacar também o fato de Caminhareferir-se ao seu guia em formato debolso, o que explica, ao menos em parte,as inúmeras afirmações, muitas vezesprecisas, a respeito de monumentos,estátuas, ruas, parques, prédios,construções etc. que ele encontrou aolongo da viagem, como ele deixaentrever na ocasião em que se

encontrava, em Nova Orleans, nocruzamento das ruas St. Charles e Canal,diante da Estátua de Clay: "Pareidefronte do monumento e consultei meualcorão, quero dizer meu guia manual"(ibidem, p.136).

Algo aparentemente tão banal e simplesaponta, no entanto, para o fato de queAdolfo Caminha procurava munir-se deinformações as mais diversas e precisasa fim, talvez, de cumprir aquele objetivoprimeiro, com fundamento em Taine, dedizer a verdade do que via. Além disso,o registro da leitura do guia de bolsoindica que Caminha procurou trazer paraa sua narrativa dados concretos sobre arealidade que presenciava, além, é

claro, do registro de suas impressõespessoais a respeito de leituras,situações, pessoas, locais etc.constituindo desse modo maisrepresentações de si e da forma decompreender e ler o espaço em que seencontrava, bem diferente do seu país deorigem ao qual ele sempre recorre,estabelecendo comparações entre oBrasil e os Estados Unidos.

Essa combinação de dados referenciaise impressões pessoais, que encontramosao longo de sua obra, no caso específicode No país dos ianques, Caminhaparecia anotar em um caderno, como nosfaz concluir a citação quetranscrevemos: "Vamos adiante,

consultemos o caderno de notas"(ibidem, p.148). Assim, percebemos,pela combinação de leitura e escrita,que Adolfo Caminha já na viagempensava em publicar o seu No país dosianques, como nos leva também aconcluir a seguinte afirmação: "E defato, esse trabalho, essa difícil tarefademandaria, incontestavelmente, muitomais que uma soma de notas mais oumenos verdadeiras e algum estilo"(ibidem, p.115). Em seguida, Caminhaafirmou: "Os poucos meses que passeinos Estados Unidos apenas meproporcionaram ensejo de admirar,através de um prisma todo pessoal, oprogresso assombroso desseextraordinário país" (ibidem, p.116).

Ainda em francês, encontramos em Nopaís dos ianques uma citação deBoileau, que Caminha faz após observara paisagem, segundo ele, formada decasas simples e similares umas asoutras, onde na sua imaginação viviampessoas simples e a este respeito eleafirmou:

Invejava os simples, os sertanejos,os homens do campo – esses paraquem a vida corre sempre calma,porque seu coração não conheceoutro amor senão o da esposa e odos filhos, esses de quem Boileaudizia: Heureux est le mortel qui dumond ignoré/ Vit content de soimême en un coin retiré... (ibidem,

p.139)15

Essa, portanto, é a segunda vez queencontramos um indício da leitura deBoileau feita por Adolfo Caminha.Infelizmente, a qualidade da impressãodo livro Voos incertos (primeiraspáginas), como já afirmamos, nosimpossibilitou de saber qual trechoCaminha cita do poeta e crítico francês,restando legível apenas o seu nome,porque grafado em maiúsculo:BOILEAU. Ainda assim, vemos pelasduas ocorrências que a leitura deBoileau, ao menos na época, fora umaconstante para Adolfo Caminha. Vemos,por mais esse exemplo, que as leiturasde Caminha em grande parte eram de

origem francesa, o que constatamostambém nos demais títulos de sua obracomo veremos a seguir.

Ainda da França há duas referências:uma indireta, feita a partir da viagem emuma embarcação, segundo AdolfoCaminha, de muito boa qualidade, queconduzira os guardas-marinha, algunsoficiais e o comandante do AlmiranteBarroso a Port-Eads:

Uma excelente embarcação aKeokuk, espécie de pequena cidadeflutuante, muito larga e espaçosa,avantajando-se em dimensões aosvapores da Companhia Brasileira.Três pavimentos: o superior,coberto por um grande toldo, onde

os passageiros podiam fumar àvontade; o do meio formando umsalão-refeitório, ao lado do qualficavam os camarotes e o porão,para mercadorias; rodas à popa,sistema de locomoção que nãoconhecíamos; duas chaminés, emáquina possante. Em semelhantescondições éramos capazes de fazera volta ao mundo em oitentadias... (ibidem, p.146)

Vemos, por essa citação indireta de Letour du monde en quatre-vingts jours(A volta ao mundo em oitenta dias), de1873, do escritor francês Jules Verne,uma relação entre a viagem feita porCaminha na embarcação e a viagem feita

por Phileas Fogg e seu fiel empregadoJean Passepartout a fim de pagar umaaposta que o inglês fizera com seusamigos – a de que daria a volta aomundo em oitenta dias – na sua idadiária ao clube para jogar cartas.Caminha, desse modo, parece encontrar-se com Fogg na sua única aventura forado Brasil.

A outra citação é bem mais complexa.Uma vez que ela liga esse livro deCaminha ao seu livro, já aqui analisado,Voos incertos (Primeiras páginas), poisnesse já vimos a utilização daspersonagens Marguerite Gautier eArmand Duval no poema intituladoMargarida. Em No país dos ianques, as

personagem do romance de DumasFilho, escrito em 1848, são retomadaspor Caminha quando ele narrou ahistória do romance de Manuel, umcompanheiro seu de farda, com EvaSmith, segundo ele, mulher "muitoconhecida nos cafés-concertos de NovaOrleans" (ibidem, p.153): "Amaram-sepor muitos dias, gozaram todas asdelícias imagináveis, ele proibiu-a deandar nos cafés, ela proibiu-o de olharpara outras raparigas, e assimcorresponderam-se de comum acordo,sem que nunca houvesse entre eles amenor desavença" (ibidem).

Eva, que queria viajar com Manuel parao Brasil, foi surpreendida pelo aviso do

seu amado que o navio AlmiranteBarroso suspenderia âncora no diaseguinte. Assim, o casal estaria desfeito.Manuel retornaria ao seu país e Evacontinuaria em Nova Orleans. Alémdessa sua apropriação das personagens,Caminha foi além, uma vez que no livroem causa lemos: "Último ato, e aqui éque está o apropósito" (ibidem, p.154)."Cenário: o Mississipi pardo emurmurejante sob a luz moribunda docrepúsculo", isto é, Adolfo Caminhamonta uma pequena peça para encenar ofim do relacionamento de Eva e Manuelcomo lemos a seguir:

E quando o Barroso desapareceuna primeira curva do rio, ainda

ouvíamos, tomados de uma tristezainfinita, a mesma voz cheia dedesespero, agora abafada peladistância, soluçada e plangente:

– Good-bye, Manuel! Good-bye...

E dizer que a Dama das Caméliasé uma exceção na vida sentimentalnas filhas de Eva!...

O nosso Armando, que aliás nuncapretendeu regenerar ninguém,deixou-se cair numa saudadeprofunda, num longoadormecimento da alma, de que sóacordou no alto-mar, quando já nãose avistava um ponto sequer dacosta americana. (ibidem, p.154-5)

Com essa citação concluímos oarrolamento do que temos chamado deindícios de leitura de Adolfo Caminhaem No país dos ianques. Pelo quepudemos ver, e ainda veremos de formamais detida ao nos concentrarmos naanálise de sua atividade como críticoliterário, a presença do autor de ficçãotambém se faz presente nessa suanarrativa de viagem. Procuramosdestacar os seus indícios de leitura e asrelações possíveis entre eles, sejam asrelações internas, quando relacionamosas suas próprias obras, sejam asrelações externas, isto é, das obras lidascom as obras de Caminha, sobretudoquando esse as utiliza comodemonstramos com o romance de Dumas

Filho. A seguir deteremos a nossaanálise nos indícios de leitura presenteno quarto pacote de sua biblioteca.

Quarto pacote

É noite de vísporaà luz parca do abat-jour na Rua do TrilhoLendo A Normalista.(Sânzio de Azevedo. Lanternas cor de aurora)

A normalista (Cenas do Ceará), de1893, é o título do romance de estreia deAdolfo Caminha. Nesse romance, jáencontramos uma narrativa mais bemconformada, como temos dito ao longodeste capítulo. De fato, o seu autor já

não é aquele dos títulos que oantecederam, ainda que nele seencontrem, como veremos adiante,alguns dos indícios de leituras queverificamos nos títulos já aquianalisados. A normalista (Cenas doCeará), o que conta o seu enredo?

Trata-se da história de Maria do Carmo,afilhada de João Maciel da MataGadelha, mais conhecido como João daMata, e de Dona Terezinha, a DonaTeté, como era chamada pelo marido naintimidade. Maria do Carmo é órfã demãe, que falecera acometida de umasíncope cardíaca. O pai, Bernardino deMendonça, a deixara aos cuidados doscompadres antes de ir tentar a sorte no

Pará, após perder a mulher e os bens naseca de 1877, que ficou conhecida nahistoriografia cearense como a GrandeSeca de 1877-1878 e que muitocontribuiu para o imaginário local arespeito das estiagens e de suasconsequências na vida social local.

Em Fortaleza, Maria do Carmo estudavano Colégio da Imaculada Conceição,instituição católica de freiras francesas,como quisera o seu pai. Só depois eladeixou essa instituição e foi estudar naEscola Normal, que era laica, de ondevem o título do romance: A normalista.Na casa dos padrinhos, na rua do Trilho,Maria do Carmo conhecera o Zuza,estudante de Direito no Recife, por

quem ela se interessou e iniciou umnamorico. Em torno do casal pairava oJoão da Mata já com os seus desejos depossuir a afilhada. A fofoca sobre onamoro de Maria do Carmo e Zuza, bemcomo a interferência do padrinhofizeram que o desejo da normalista decasar-se com o futuro advogado não serealizasse. João da Mata a seduziu etempos depois, abandonada pelo Zuza,que regressava ao Recife a fim decontinuar os estudos e para quem orelacionamento com a normalista nadamais fora do que um passatempo, soubeque estava grávida. Para todos, o filhoera do Zuza. Mas o era do padrinho.

Maria do Carmo deixou a Escola

Normal e foi esperar o nascimento dofilho no bairro do Outeiro, em casa deMestre Cosme e tia Joaquina. Ali, elateve o filho, que faleceu ao cair decabeça no chão tão logo nascera, pordescuido da parteira. Depois de algunsmeses de recuperação do partocomplicado e da morte súbita do filho,Maria do Carmo volta à Escola Normale estava noiva do alferes Coutinho.

Em linhas muito gerais é essa a históriado romance A normalista. A críticaliterária ao longo da história de suarecepção o definiu como o" romance davingança", que teria sido motivada pelofato de que, tendo a sociedadefortalezense visto com maus olhos o

relacionamento de Caminha com IsabelJataí de Paula Barros, à época já casadacom o alferes Fausto Augusto de PaulaBarros, igualmente militar como oescritor, quis vingar-se, fazendo-lhe umromance em que aparecessem as suasmazelas sociais e morais. Está no centrodessa compreensão o binômio vida eobra, que muito explicou a literatura eainda a ideia da literatura ser um reflexoda realidade, uma espécie de superfícieespecular na qual vemos o real ou aindaum fotografia com a qual captura-se arealidade.

Desde os primeiros textos críticos a seurespeito, escrito por quantos seocuparam desse romance, como o foram

por exemplo Pápi Júnior (1897) e FrotaPessoa (1902, p.215-33), até a maisrecente biografia de Caminha(Albuquerque, 2000), todos reforçaramessa sua origem, que, podemos dizer,transformou-se em epíteto, fazendo queo romance pudesse ser subintitulado deo romance da vingança em vez de Anormalista (Cenas do Ceará) como ochamou originalmente o seu autor.

Uma outra leitura, no entanto, é possível,uma vez que as referências à literaturada época são inúmeras, o que faz doromance uma espécie de registro, aindaque ficcional, daquilo que se lia e seescrevia no final do século XIX emFortaleza. Por ora, fiquemos com o que

já foi feito a propósito dos demaislivros do autor: o arrolamento e aanálise dos indícios de leitura queencontramos no conjunto de sua obra e,agora, nesse seu romance de 1893.

A epígrafe de A normalista foi retiradado livro Esplendores e misérias dacortesão, do tomo IX, de A comédiahumana, de Balzac. A última incarnaçãode Vautrin é a quarta parte daquelelivro. Em A normalista lemos: «Une desobligations auquelles ne doit jamaismanquer l'historien des moeurs, c'estde ne point gâter le vrai par lesarrangements en apparencedramatiques, surtout quand le vrais apris la peine de devenir

romanesque».16 Mais uma vez, Caminhatraz à cena a importância da apreensãodo verdadeiro, sentindo-se ouapresentando-se ele mesmo como umhistoriador dos modos, uma vez que averdade dos fatos era a diferençafundamental entre a história e aliteratura.

A leitura de Balzac também parece estarpresente na criação dos tipos queconstam nesse romance de estreia deAdolfo Caminha. São tipos bemconstruídos, alguns ganham ascaracterísticas bem demarcadas, comoJoão Maciel da Mata Gadelha, que,usando a supressão de nome esobrenome, o narrador o transformou em

João da Mata, ou seja, como homemvindo do mato, da selva onde estavam asferas a busca de presas afim de saciar-lhes a fome. Também de Balzac, maspodemos dizer que também de Eça deQueiroz, viera a ideia do subtítulo –(Cenas do Ceará) – que inúmerasedições do romance desconsideram.Como sabemos, A comédia humana foiorganizada em divisões e subdivisões,muitas delas organizadas em cenas,como "Cenas da vida privada", "Cenasda vida provinciana", "Cenas da vidaparisiense" da qual fazem parte o jácitado "A última encarnação deVautrin", Cenas da vida rural".

Esse recurso parece fazer do narrador e

dos leitores assistentes de fatos que sedesenrolam diante deles. Talvez tambémseja por esse motivo que o enredo doromance muitas vezes, seja nafocalização de personagens, seja na dapaisagem, lembre um roteiro para ocinema, ideia essa que ainda não existianaqueles anos. Esse fato é também umexemplo de representação da literaturacomo uma constituição de imagensencadeadas, cena após cena, criandouma narrativa que se desejava vista. DeEça de Queiroz sabemos que o seuromance O primo Basílio tem comosubtítulo "Episódio doméstico", e oromance O crime do padre Amaro temcomo subtítulo (Cenas da vidareligiosa).

O segundo indício de leitura presente emA normalista é uma referência ao livroA imitação de Cristo, publicado noséculo XV e atribuído a Tomás deKempis. É formado de quatro livros.Trata-se de uma obra devocional. Nocontexto do romance de Caminha serviuao narrador para marcar o período emque Maria do Carmo era interna noColégio da Imaculada Conceição:"Quando ia passar o domingo em casa,uma vez ao mês, metia-se para os fundosdo quintal ou pelas camarinhas, muitocalada, muito sonsa, a ler a Imitação..."(Caminha, 1998, p.21). Assim, o livroem causa é usado como um marcador detempo e de comportamento na vida dapersonagem protagonista.

Se Maria do Carmo lia a Imitação,Zuza, o seu pretendente, lia a Gazetajurídica (ibidem, p.23). Não sabemosao certo se se trata de um periódico quede fato existira, ou se se trata de umlivro criado na trama romanesca paracaracterizar a personagem, que, como jávimos no breve resumo do enredo, eraestudante de Direito, servindo tambémpara marcar as diferenças entre Mariado Carmo e Zuza. A formação religiosade Maria do Carmo se iniciara em casa,na companhia dos pais, como nos fazconcluir a leitura deste trecho: "Cresciasem outra educação a não ser a que lhedavam os pais, de modo que, naquelaidade, mal soletrava a Doutrina Cristã",o que só reforça o perfil religioso da

personagem, ao menos nos primeiroscapítulos do romance (ibidem, p.26).

Ainda uma vez, encontramos umapassagem do romance que reforça esteperfil: "Transportava-se, num vôo daimaginação, a Campo Alegre, e via-se,como por um óculo-de-ver-ao-longe, aolado da mamãe, costurando quieta ousoletrando a Cartilha, ou na novena doSenhor do Bonfim, muito limpa, com oseu vestidinho de chita que lhe dera oSr. Vigário" (ibidem, p.28).

A saída de Maria do Carmo também foimarcada pela mudança de suas leituras.Se antes ela lera somente livrosdevocionais, sua entrada na EscolaNormal, de formação laica, foi

acompanhada da leitura de O primoBasílio. A primeira vez que esseromance de Eça de Queiroz é citado nanarrativa romanesca de Caminha foi emuma situação bem diferente do que já sevira a respeito de Maria do Carmo.Vejamos:

Depois que saíra da ImaculadaConceição a vida não lhe era detodo má. Ora estava no piano,ensaiando trechos de música emvoga, ora saía a passear com aLídia Campelo, de quem era muitoamiga de escola, ora liaromances... Ultimamente a Lídiadera-lhe a ler O primo Basílio,recomendando muito cuidado "que

era um livro obsceno": lesseescondido e havia de gostar muito.(ibidem, p.31)

Os indícios de leitura do O primoBasílio, e nesse caso podemos afirmarmesmo que Caminha o lera, continuamnas páginas seguintes. Todos elesenvoltos nesse tom de desconfiança, deleitura censurada e sempre servidocomo forma de marcar a mudança que seoperara na personagem com a sua saídado colégio religioso para a instituiçãolaica. A leitura desse romancequeiroisiano, bem como a dos demais desua lavra causaram verdadeiro alvoroçopor parte de uns, mas tambémverdadeiro entusiasmo por parte de

outros. Adolfo Caminha parece situar-seentre esses. Entre censura e admiração,Eça de Queiroz foi um dos autores maislidos e comentados no Brasil até pelomenos após a guerra de 1914-1918,como o declarou Brito Broca. É tambémdele este comentário que transcrevemosa respeito de O primo Basílio e suarecepção no Brasil:

Eça de Queirós não foi somenteuma grande influência na literaturabrasileira; foi também modaliterária, que se iniciou por voltade 1878, quando se divulgou aquiO primo Basílio – implantando oque os cronistas da épocachamavam de "basilismo" –, até a

guerra de 1914, mais ou menos. Nocomeço do século XX, Eçacontinuava a ser ma obsessão paramuitos intelectuais brasileiros. Epresenciavam-se episódios comoeste: numa partida de Olavo Bilacpara a Europa, os amigos, aoacompanhá-lo a bordo, recitavamversos com alusões aospersonagens do romancistaportuguês. Bilac ia a Portugal e eracomo se fosse encontrar aquelacomparsaria d'Os Maias, d'Oprimo Basílio, d'A relíquia, tidacomo criatura de carne e osso,gente de verdade por todos osleitores e admiradores de Eça. Emmeio dos adeuses em verso,

Goulart de Andrade enviava "umabeijoca bem boa no imortalJohannes da Ega"; outro mandavarecomendações ao conselheiroAcácio, e assim por diante. (Broca,2005, p.174)

No caso do romance de Caminha, Oprimo Basílio também serviu paracomparar o casal Maria do Carmo eZuza ao casal Luísa e Basílio, poisMaria do Carmo quisera fazer-se deLuísa:

Que regalo todas aquelas cenas davida burguesa! Toda aquelacomplicada história do Paraíso!...A primeira entrevista de Basíliocom Luísa causou-lhe uma

sensação estranha, umaextraordinária superexcitaçãonervosa; sentiu como umformigueiro nas pernas, titilaçõesem certas partes do corpo, pruridono bico dos seios púberes; ocoração batia-lhe apressado, umanuvem atravessou-lhe os olhos...Terminou a leitura cansada, comose tivesse acabado de um gozoinfinito... E veiolhe à mente oZuza: se pudesse ter umaentrevista com o Zuza e fazer deLuísa... (Caminha, 1998, p.32,grifo nosso)

De fato, a leitura de O primo Basíliomarca um verdadeiro rito de passagem

na vida da personagem caminhiana,como nos faz concluir o trecho quecitamos a seguir:

Até aquela data só lera romancesde José de Alencar, por umaespécie de bairrismo malentendido, e a Consciência deHeitor Malot publicada emfolhetins na Província. A leitura doPrimo Basílio despertou-lhe uminteresse extraordinário. "Aquilo éque é um romance. A gente pareceque está vendo as cousas, que estásentindo..." (ibidem)

Vemos por essa citação que Maria doCarmo ela leitora apenas de romancesromânticos, aqui representados pelo

nome de José de Alencar, e também defolhetins, no caso do escritor francêsHeitor Malot, que, de fato, se chamavaHector Henri Malot, célebre pelo seuSans famille, de 1878, que conta ahistória comovente do pequeno Remy.Sua estreia no romance se deu em 1859com Les amants, seguido de Les epoux,de 1865, e Les enfants, de 1866, queconstituíram a trilogia Victimesd'amour, bastante lida pelo público.Segundo Maria Letícia GuedesAlcoforado (1982, p.64), esse livro deMallot citado no romance de Caminha,Conscience, fora publicado na Françaem 1888 "e já estava divulgado noBrasil". Ainda segundo Alcoforado,sobre o título de Malot lemos:

"Possivelmente Adolfo Caminha oconhecera mesmo em Fortaleza paraonde se tinha transferido naquele ano".

A esse seu título poderíamos juntaroutros de igual temática fundamentadosem dramas íntimos e enredoscomoventes como Le Docteur Claude,Une bonne affaire, La Belle-Mère, Lesbatailles du mariage, em três volumes eainda uma autobiografia de sua vidaliterária intitulada Roman des mesromans, de 1896. Suas obras sãomarcadas pela abundância de títulos,bem como por um moralismo discreto,utilizando todos os elementos domelodrama como a inverossimilhança desituações, convenção das personagens,

maniqueísmo primário e tom meioheróico, meio lamuriante. Segundolemos no Dictionnaire des littératuresde langue française:

L'oeuvre de Malot s'inscrit doncdans le cadre plus général duroman des moeurs édifiant, dit"roman de la victime", qui connutson apogée sous le second Empire.Le caractère naïf de certaisromans les destinait plusparticulièrement à la lectureenfantine: En famille et Sansfamille ont gardé aujourd'huiencore cette vocation.17

As referências a uma literatura

romântica foi sempre uma constante naobra de Adolfo Caminha, seja para emalguns momento defendê-la, seja paraatacá-la. Assim, temos referência aospoetas Barbosa de Freitas, cearense, eVictor Hugo, francês, esse já o vimosser citado por Caminha em seus livrosanteriormente analisados. Esses são doisindícios da permanência da leitura quefizera Caminha e que estava sendoconstantemente citada em sua obra.Barbosa de Freitas foi um dos poetasromânticos mais importantes daliteratura cearense. Falecido aos 23anos, publicou D. Juan Cacique. Poemabiográfico ou a Epopéia do famosoJoão dos Santos e Helvecíadas, ambosde 1881. Segundo Sânzio de Azevedo

(1976, p.61), deixou inédito o dramaJoaquim de Souza, em três atos, escritoem 1877.

Ao tratarmos de Adolfo Caminha comoautor-editor, vimos que, nas páginas dojornal O Diário, ele anunciara pordiversas vezes a campanha para apublicação do volume intituladoPoesias, de Barbosa de Freitas, a fimde, com o lucro da venda de seusexemplares, dar ao corpo do inditosopoeta um túmulo à sua altura. Dessemodo, percebemos a relação entre osdois fazeres, o ficcional e o jornalístico,ambos com Adolfo Caminha em duasatuações distintas, a de escritor, no casodo romance, e a de editor, no caso do

jornal, porém, ainda assim, essasatividades supostamente distintas seencontram nos fazeres do autor polígrafocomo aqui o procuramos conceituar e seencontram, notadamente, na suaatividade de leitor.

Fiquemos, então, com as situações emque Barbosa de Freitas foi citado noromance A normalista. O poeta apareceem uma conversa entre as personagensJoão da Mata e o Perneta, que, segundolemos, "escrevia versos para o JudeuErrante" (Caminha, 1998, p.55) e "erametido a literato" considerava Barbosade Freitas como o único poeta cearenseverdadeiramente inspirado. E ao assimreferir-se ao poeta o comparou a Victor

Hugo:

Esse [Barbosa de Freitas], sim,cantava o que sentia em versosmagistrais, dignos de V. Hugo.Conhecera-o pessoalmente. Umboêmio! Fazia gosto ouvi-lo! Queeloqüência, que verve, que talento!Sabia de cor muitas poesias dele,mas nenhuma se comparava aoÊxtase, "esse poema de amor", quevalia por todas as poesias deJuvenal Galeno. (ibidem)

O poema" Êxtase" a que se refere apersonagem é este:

Quando às horas silentes da noite, Doce flauta descanta no ar,

Quando as vagas soluçam baixinhoSobre a praia que alveja o luar!...

Solta o vate das cordas da liraMil canções deleitosas, d'amorQue se orvalham nos puros fulgoresDo luar que inebria o cantor...

Sobre as cândidas vestes da brisa Que se imerge no bosque sombrio, Manda o vate canções deleitosas Que se espalham nas ondas do rio.

E as donzelas que escutam de longeSentem gozo, porém de matar!...

E o cantor que soluça seus trenosDe saudade lhes manda umadeus!...

Em presença dos astros quedormem Sob as brumas cerradas dos céus!...

E as donzelas saudosas suspiramPara o lado que foge o cantor...E lhes mandam mil beijos na brisaMil suspiros banhadas de amor

Maranguape, 1876. (Freitas, 2004,p.15)

Nessa citação, dois poetas cearensesforam nomeados: o primeiro foi Barbosade Freitas, boêmio, morto jovem; osegundo, Juvenal Galeno, que, à época,já era o patriarca da poesia do Estado.Sânzio de Azevedo (1976, p.27) afirmoua propósito dos dois poetas aqui

citados:

Podemos assim situar o início donosso [cearense] Romantismo em1856, data da publicação, no Riode Janeiro, dos PrelúdiosPoéticos, de Juvenal Galeno,embora, na opinião de AntônioSales, seus versos aindamostrassem característicasneoclássicas. Depois viriam, alémdas produções regionalistas deGaleno, os poemas byronianos deJoaquim de Sousa e de Barbosa deFreitas magnificados por um soprocondoreiro, além do legítimoCondoreirismo dos chamadosPoetas de Abolição (Antônio

Bezerra, Justiniano de Serpa eAntônio Martins).

Dois tipos de literatura, portanto, aindaque ambos sejam românticos, seconformaram de modo diferentes pelapostura de seus autores na fala dapersonagem de Caminha. Lembremostambém que o poeta francês Victor Hugojá fora citado na análise de livrosanteriores de Adolfo Caminha. O fato deestar presente em A normalista reforça,de certo modo, a permanência doresultado da leitura de sua obra porAdolfo Caminha. Mas não foi essa aúnica vez que Victor Hugo foi citado noromance em causa. Sempre o poeta éretomado com o fim de comparar-se a

ele uma personagem que se lançava nasletras locais como foi o caso doCastrinho, como podemos constatar notrecho a seguir, parte de uma conversadesse com a personagem José Pereira:"Tens talento como um bruto, menino.Olha que quem escreveu isto vale o queescreveu, caramba! Continua, Castrinho,continua, que ainda há de vir a ser umgrande poeta. Desta massa é que sefazem os Byron e os V. Hugo..."(ibidem, p.77).

Vemos pela citação desse trecho doromance que são apresentados comomodelos de poesia os poetas GeorgeGordon Byron, um dos nomes maisimportantes do romantismo inglês, e o

igualmente romântico, porém francês,Victor Hugo. Obviamente que há nessascomparações e modelos uma certaironia, uma vez que o romance de estreiade Adolfo Caminha é marcadamentenaturalista, o que se não o coloca comoopositor do romantismo de modoprogramático, ao menos o expõe a umasituação conflitante entre as diversasestéticas reinantes naquele períodocomo já bem o afirmara AfrânioCoutinho.

Também da galeria dos poetasromânticos encontramos citado em Anormalista o poeta Álvares de Azevedo,a ele fora comparado novamente o jácitado poeta Barbosa de Freitas: "Os

Álvares de Azevedo e os Barbosa deFreitas são gênios que aparecem deséculo em século, como certos cometasno céu da literatura!" (Caminha, 1998,p.56). Antes, Barbosa de Freitas foracomparado a Luís de Camões: "– Pois éisto, continuou o Perneta. O pobreBarbosa de Freiras acabou como ogrande Luís de Camões na enxerga dumhospital, e nisto, penso eu, está a suamaior glória" (ibidem). Em ambos oscasos, vemos que Barbosa de Freitasestá, na economia da narrativa de Anormalista, entre os grandes nomes dapoesia de língua portuguesa. Entre apoesia portuguesa, representada peloseu maior nome, e a poesia brasileira,representada por Álvares de Azevedo.

Jules Verne, que já o encontramos citadoem No país dos ianques, de formaindireta, agora, em A normalista, oencontramos nomeado diretamente emuma situação da vida escolar de Mariado Carmo. A leitura de sua obra forarecomendada às alunas da EscolaNormal pelo professor Berredo, deGeografia:

E continuou a falar com aloquacidade de um sacerdote apregar a moral, explicando a vida ecostumes dos selvagens da NovaZelândia, citando JúlioVerne, cujasobras recomendava às normalistascomo um "precioso tesouro deconhecimentos úteis e agradáveis".

– Lessem Júlio Verne nas horas deócio; era sempre melhor do queperder tempo com leituras semproveito, muitas vezes imprópriasde uma moça de família.

Vá esperando... murmurou a Lídia.

Eu estou certo – dizia o Berredo,convicto – de que as senhoras nãolêem livros obscenos, mas refiro-me a esses romances sentimentaisque as moças geralmente gostam deler, umas historiazinhas fúteis deamores galantes, que nãosignificam absolutamente cousaalguma e só servem de transformaro espírito às incautas... Aposto emcomo quase todas as senhoras

conhecem a Dama das camélias, aLucíola...

Quase todas conheciam.

...Entretanto, rigorosamente, sãopéssimos exemplos...

Tomou um gole d'água econtinuando:

– Nada! As moças devem lersomente o grande JúlioVerne, opropagandista das ciências.Comprem a Viagem ao centro daTerra, Os filhos do capitão Grante tantos outros romances úteis eencontrarão neles alta soma deensinamentos valiosos, de

conhecimento práticos... (ibidem,p.65-6)

Nessa citação, vemos que a leitura deJulesVerne é sobreposta à leitura dosromânticos, cujos exemplos citados sãoLucíola e A Dama das Camélias, que jáencontramos outras vezes nos livros deCaminha, quando ele citara, porexemplo, as leituras de Hector Malot eAlencar, feitas, ambas, por Maria doCarmo. Assim, entre mudança epermanência, vamos tendo uma ideia doque pode ter sido a biblioteca deCaminha; ora os livros românticosconstituem uma personagem, conformama sua presença na narrativa ficcional,ora esses mesmos romances servem para

exemplificar o embate entre estéticasque eram então vigentes naqueleperíodo. Destacamos o fato de essestítulos serem citados em uma cenaescolar, o que evidencia a necessidadede uma nova aprendizagem a partir daleitura. Como bem lembra Sânzio deAzevedo, nas notas que escrevera para a13ª edição de A normalista, em ambosos romances – Lucíola e A Dama dascamélias – a protagonista é umameretriz. Esse fato é também o indíciode que algo estaria por acontecer comalguma das alunas presentes na sala deaula do professor Berredo.

É notório o tom de recomendação ereprovação moral que aqueles romances

podiam suscitar nas suas leitoras. A falaimplícita do narrador onisciente: "Quasetodas conheciam", permeando a relaçãoentre as alunas, o professor e os leitoresdo romance, demonstra que a leituradaqueles títulos citados por Berredo eramais comum do que se imaginava ouainda era tão comum que até o próprioprofessor, dado ao tom de ironia da suafala –" Estou certo – dizia o Berredo,convicto – de que as senhoras não lêemlivros obscenos..." – o sabia. Mas énotória, também, a presença da ciênciacomo nova formadora da educação dasjovens. A leitura de Jules Vernesindicava como que esse novo caminho,essa nova possibilidade: a ciênciagovernaria a formação dos sentidos e do

comportamento, por isso o destaque dafuncionalidade daquelas leituras para avida das personagens. Quanto àpresença de Jules Vernes nas leituras deCaminha, afirmou Maria Letícia GuedesAlcoforado (1982, p.65):" É o espíritoda época que se reflete aí, apreocupação cientifica que dominava oséculo XIX e que se traduz na admiraçãopor aquele escritor".

Aos romances a que chama de obscenosele opõe como alternativa, mas tambémreprovável segundo os seus critérios, osromances que chamou de "história fúteisde amores galantes", talvez referindo-sea um subgrupo de romances quecirculavam com mais espontaneidade

entre as jovens que não aqueles saídosde mãos de autores distinguidos pelovalor artístico alcançado, mas pelalongas tiragens de suas edições. Talvezfosse o caso de lembrar aqui deromances como Elzira, a morta virgem,de Pedro Ribeiro Viana, cuja primeiraedição é de 1883, ou Maria, adesgraçada, de Alfredo Elisiário daSilva. Ambos alcançaram um grandenúmero de edições. Em 1898, Maria, adesgraçada alcançava a oitava edição eera mais um dos sucessos do editorPedro Quaresma da Silva. Eram essesexemplos de "romances de sensações"como os classificou Alessandra El Far(2004).

Talvez o professor Berredo estivessemesmo referindo-se a títulos como Oprimo Basílio que figurava nos jornaiscariocas na seção dita" Leitura parahomens", como encontramos no anúncioda Livraria Cruz Coutinho, publicado naGazeta de Notícias, do Rio de Janeiro,no dia 17 de julho de 1894. Junto comaquele romance de Eça de Queirozencontramos os seguintes títulos: Gotasde amor; Sensuaes; A amante de Jesus;Coccotes e conselheiros; Colleção dabiblioteca picante; A carne, de JúlioRibeiro, que já o vimos citado porCaminha, em No país dos ianques;Thereza Philosopha; Amar, gozar emorrer e tantos outros do tipo.

A construção das personagens deCaminha sempre pareceu exigir de suasleituras. É o caso, por exemplo, do jáaludido José Pereira, comparado com arã de uma das fábulas de La Fontaine:

Cedo José Pereira começou ainchar como a rã de La Fontaine e ajulgar-se, com efeito, um grandeescritor, "um talento" capaz, olá!muitíssimo capaz de fazer asdelícias de qualquer sociedadeinteligente e ilustrada. Daí certo arautoritário, certa prosápia que eleafetava em toda a parte, dizendo-secontemporâneo de Rocha Lima","amigo de Capistrano de Abreu";certo aprumo pedante que não

condizia com a sua velhasobrecasaca de diagonal cujoestado incomodava deveras asociedade cearense. (Caminha,1998, p.71)

A rã a que se refere o narrador doromance A normalista é a da fábula "Arã que quer ser gorda como o boi", deFábulas, de 1668, de La Fontaine.Assim caracterizado, José Pereiraqueria ser mais do que o que era de fato.E, para melhor caracterizá-lo, nãofaltam a própria personagem recorrer aRocha Lima e a Capistrano de Abreu,ambos daquela geração que ficouconhecida como a Geração de 1870 e daqual já no ocupamos.Vale destacar

também o fato de que o narradorcomparar José Pereira a um animal,mais precisamente um anfíbio, deaspecto não agradável. Já a própriapersonagem compara-se a pessoas, masnão a pessoas da ficção como as demaispersonagens, mas a pessoas que existiamde fato, dando, assim, o efeito dareferencialidade para conceituar-secomo escritor e homem de letras domesmo peso que aqueles citados: ohistoriador Capistrano de Abreu e ocrítico literário Raimundo Antônio daRocha Lima. Trata-se de um recurso dealinhamento entre ficção e realidade oude mais uma representação a título decomparação do que existia na realidadecom o que existia na ficção.

Não foram, porém, somente esses oselementos usados para construir apersonagem José Pereira. As suasleituras também são trazidas à cena:

Nesse tempo o redator daProvíncia ainda era calouro empolítica. Dava seu voto e maisnada. A literatura é que o absorvia.Um livro novo era para ele amelhor novidade; caísse embora oministério, rebentasse umarevolução, ele conservava-se a ler,virando páginas, devorando a obracomo um alucinado, defronte doabajur de papelão, no seu modestogabinete de escritor pobre.Conhecia Dumas pai de cor e

salteado; fora o seu primeiro"mestre". Depois entregou-se a lerOs miseráveis, declarando-sehugólatra incondicional em umaapreciação que fizera do grandepoeta. O artigo concluía dessemodo:

"Victor Hugo é o Cristo da legendatransfigurado em profeta moderno.Ele é todo o século. Tudo nele égrande como a natureza. Osmiseráveis são a apoteose de todasas misérias humanas. Victor Hugo,o Mestre, é o Sol da Humanidade.Amemo-lo como a um Deus!"

Vemos que a leitura de José Pereiratransborda para a escrita, e mais uma

vez Victor Hugo foi citado na obra deCaminha. Já o encontramos em Voosincertos (primeiras páginas) a quemCaminha dedicara um poema porocasião de seu falecimento. Essa é,portanto, mais um indício depermanência do conjunto de leituras queparece ter realizado o autor em causa. Oexagero como marca de caracterizaçãoda personagem José Pereira tambémtransbordou da leitura para a escrita. Aconclusão a que chegou em seu artigosobre Victor Hugo e Os miseráveis é umexemplo do que afirmamos.

Ainda como exemplo de indício depermanência de leitura encontramosmais duas referências à obra de Balzac.

A primeira é uma referência indireta,quando numa conversa entre o Zuza e oJosé Pereira, esse o aconselha anamorar a Maria do Carmo sem aintenção de casar, afinal ela era, naspalavras do editor da Província," umapobretona":

– Mas é uma pobretona, filho.Aquilo é para a gente namorar,encher de beijos e – pernas pra quete quero! És muito calouro aindanisso de amores. Aproveita a tuamocidade, deixa-te de pieguismo,menino. A vida é uma comédia,como lá disse o outro... (Caminha,1998, p.74, grifo nosso)

Essa parece-nos ser uma referência

indireta a A comédia humana, deBalzac, nomeada na citação acima como"o outro". Encontraremos Balzac umaoutra vez, logo no parágrafo seguinte aesse, no entanto ele está nomeadodiretamente:

Então o Zuza, acendendo umcigarro, disse que estavaaborrecido de mulheres que seentregam facilmente. EmPernambuco namorara a filha de umbarão e, se não fosse esperto,àquelas horas talvez estaria àsvoltas com o minotauro de quefala Balzac. Era uma raparigaesplêndida, mas tão depravada, tãoimpoluta que acabou fugindo com

um jóquei do Prado Pernambucano,um negro! (ibidem, grifo nosso)

Para Maria Letícia Guedes Alcoforado(1982, p.67), "A obra do escritorfrancês [Balzac] que sugeriu a Caminhaessa comparação é La physiologie dumarriage na qual é analisado oproblema do marido enganado pelamulher". Segundo o Dicionário de mitosliterários, o mito do Minotauro foi aospoucos, nos séculos XIX e XX,assumindo conotações diversas entreelas destaca-se a traição conjugal:

Na França, o registro seria depreferência o da licenciosidadevaudevillesque; criou-se umcurioso verbo "minautorizar" no

sentido de "chifrar", passar paratrás o marido; como se na históriatoda o personagem mais envolvidoe mais importante fosse finalmenteMinos. Dessa maneira, o adultérionão parece inteiramente estranho àmonstruosidade, tendo-se mesmo aimpressão de que sob a capamitológica esconde-se umsentimento mais geral de umaespécie de culpa animal ligada àsexualidade, especialmente àsexualidade feminina. Encontramoseste verbo na pena de Balzac e deBaudelaire. (Brunel, 2000, p.647)

Vemos, assim, que Zuza referia-seclaramente ao fato de ser traído pelas

mulheres que ele chamou de depravadas,aquelas que se entregavam fácil, no seudizer.Vemos que a sua namoradapernambucana era uma mulher rica, filhade barão, o que justificaria a sua escolhapor Maria do Carmo, uma vez que, paraele, era preciso casar, "mas, casar comuma menina ingênua e pobre, porque énas classes pobres que se encontra maisvergonha e menos bandalheira"(Caminha, 1998, p.74). Logo, Zuza foiadvertido pelo José Pereira:

É o que tu pensas, retorquiu ooutro. Hoje não há que fiar emmoças, pobres ou ricas. Todas elassabem mais do que nós outros.Lêem Zola, estudam anatomia

humana e tomam cerveja nos cafés.Então as tais normalistas, benza-asDeus, são verdadeiras doutoras deborla e capelo em negócios denamoros. Sei de uma que foiencontrada pelo professor dehistória natural a debuxar umgrandíssimo falo com todos os seuspetrechos. (ibidem, grifo nosso)

Vemos que, para José Pereira, a leiturade Zola faz parte de sua definição demundo, que também já havia sido citadoem Judith, mais especificamente quandoo narrador se referiu à personagemEdmundo, leitor de Nana, também deÉmile Zola. Em ambos os casos, aleitura conforma as personagens, atuam

na sua criação, que não se dá de todo noprincípio da narrativa, mas no seudesenvolvimento.Vemos, desse modo,que, aos poucos, Zola começa aaparecer na ficção de Caminha, o que jáencontramos em seus artigos de críticaliterária como veremos adiante.

Em A normalista, encontramos maisreferências a poetas, aos principaispoetas do parnasianismo, como o foramOlavo Bilac e Raimundo Correia.Ambos, ao lado de Alberto Oliveira,formaram a tríade de melhores poetasdessa estética literária no Brasil. Maspor que os dois poetas foram citados noromance em causa? Mais uma vez oobjetivo é conformar a personagem

Castrinho, mais um escritor a constar nanarrativa do romance que oraanalisamos: "Um jornal do Sul – OCometa – comparara-o até a OlavoBilac e a Raimundo Correia" (ibidem,p.76).

Assim, são recorrentes as vezes que osescritores da província e da capital sãocomparados. Desse modo, temos oexemplo de como a capital do Império,pois ainda nesse ponto do romance nãohavíamos chegado à República, era ocentro para o qual, de algum modo, sevoltavam os escritores do país e,notadamente nesse caso, os cearenses, amaioria deles insulados na província.Vemos que, no meio dessa citação, há a

referência a um jornal do Sul do paíscomo mais um exemplo de que erapreciso ser reconhecido não somente nolocal, mas na outra região, uma vez quea separação do Brasil em Norte e Sulera bastante recorrente.

Ombreado aos dois parnasianos,Castrinho sentiu-se à vontade paraatacar o seu adversário, que o acusarade plagiador, conceituando-o comocopiador de um poeta romântico,Lamartine, já aqui citado quandoanalisamos o conto "Lágrima de umcrente", em que a personagem cita o seuromance Raphaël. Disse o Castrinho:"Hei de convencer ao zoilo doCearense, por a+b, que ele é quem é o

plagiador, o invejoso, o ignorante, abesta, e eu o poeta, consciencioso emoderno que não se limita a cantarElviras e a copiar Lamartine" (ibidem).Segundo Sânzio de Azevedo, em notasque preparou para a 13ª edição doromance de Caminha, vemos nessacitação uma referência ao livroMeditações poéticas, de Lamartine,publicado em 1820, em que o poetafrancês dirigia os seus versos a umamulher chamada Elvira, daí a referênciaa seu nome.

Com a mesma ideia de conformar oretrato da personagem, tornando-abastante nítida, como era o objetivo donaturalismo a partir do ideal de verdade

que professava, encontramos semelhanterecurso, isto é, o uso de autores eleituras realizadas pelas personagens, nocaso de Zuza. Há nas narrativasficcionais de Adolfo Caminha certaobsessão por descrever o quarto dassuas personagens, como já o vimos, porexemplo, no conto" Lágrimas de umcrente" no caso da personagemEdmundo. É sempre nesses lugares maisprivados das casas onde moram as suaspersonagens que as encontramos lendoou de algum modo convivendo com aliteratura ou figuras a ela relacionadas.Assim também sucedeu com o Zuza,assim sucedeu com Amaro, do Bom-Crioulo, que convivia no seu pequenoquarto nos altos da casa de Dona

Carolina com o retrato do imperador D.Pedro II. Assim também o fora comMaria do Carmo, que no seu pequenoquarto lia às escondidas O primoBasílio.

Fiquemos, porém, por ora, emcompanhia do Zuza e do seus livros eretratos. Na sua cabine à coucher, comodiz o narrador do romance, na casa docoronel Souza Nunes, encontramos:

litografias encaixilhadas de homenscélebres e o retrato de Gambetta napostura habitual em que o grandeorador falava ao povo. Em políticaera o seu ídolo, dizia o estudante, eno auge do entusiasmo colocava-oacima de Mirabeau. Em cima da

mesa números avulsos da RevistaJurídica confundindo-se comjornais ilustrados [...]. Tal o"gabinete" do Zuza, o seu remansode estudante cuidadoso. (ibidem,p.79)

Nessa citação temos duas referência apolíticos franceses. O primeiro é LéonGambetta, que participou de alguns dosacontecimentos da vida política francesana segunda metade do século XIX, entreeles a queda do imperador e a o inícioda III República. O Dicionário críticoda Revolução Francesa o registra aolado de Ferry como um dos fundadoresda citada III República (Furet & Azouf,1989, p.971). O outro político é

Mirabeau, na verdade, o conde HonoréGabriel Riqueti Mirabeau, queinicialmente fora um escritor de obrasconsideradas licenciosas como ErotikaBiblion e Ma conversion, ambas de1782, além de inúmeros volumes decartas. Destacou-se no cenário políticofrancês da época pelo seu talentooratório e sua inteligência política. NoDictionnaire des littératures de languefrançaise lemos a respeito da oratóriade Mirabeau:" Il est généralementadmis qu'il fut le plus grand orateurd'une période riche em talentsoratoires".18 Vemos que são exatamentea capacidade política e a oratória ascaracterísticas que Zuza sobressalta dosdois políticos franceses. Há ainda uma

referência à leitura de um periódico daárea de Direito: a Revista Jurídica, quenão sabemos se de fato existia com essenome ou se fora "criada" para oromance.

Os indícios de leitura de Zuza, porém,não são apenas esses. Ao lado deles,encontramos o jovem estudante deDireito lendo Casa de pensão, romancede Aluísio Azevedo, publicado em 1884e considerado um dos títulos importantesdo naturalismo brasileiro. À leituradesse romance pela personagem Zuzaainda se fará referência em mais duasocasiões. Ainda da personagem Zuza,vale destacar a sua aversão à literaturaportuguesa, mesmo no caso dos

escritores naturalistas ou dos nomesdaqueles que fizeram parte da chamadaGeração de 1870 em Portugal, como deua entender o narrador de A normalista:"O estudante, porém, nunca passara avista sequer num romance de Eça ounuma crítica de Ramalho" (Caminha,1998, p.80). Nesse caso, o narradorparece demonstrar a inconsistência daopinião de Zuza que assim se expressoua respeito da literatura portuguesa:

Preferia um churrasco à baiana aotal Sr. Camilo Castelo Branco, umsujeito inimigo do Brasil, que nãoperdia ocasião de nos ridicularizar.De Portugal, Camõesexclusivamente, isso mesmo isso

mesmo porque o grande épico erauma glória universal". (ibidem)

Encontramos em A normalista maisindícios das leituras que AdolfoCaminha teria feito dos poetasromânticos. De uma só vez, são feitasreferências aos poetas Castro Alves,Casimiro de Abreu e Fagundes Varela.Novamente esses nomes sãomencionados em razão de compor apersonagem do próprio romance deCaminha: o alferes Coutinho, ele mesmoque, como já o sabemos, irá noivar comMaria do Carmo. É o alferes que se diz"pertencer à falange de Castro Alves,Casimiro de Abreu eVarela e tantosoutros astros de primeira grandeza que

brilham no firmamento da poesiabrasileira" (ibidem, p.113). Modéstia àparte, nessa cena o alferes recita de sualavra um poema intitulado Noite denúpcias, cabível para a situação, poisestava na cerimônia de casamento daCampelinho com o Loureiro. Trata-se,portanto, de mais uma personagemescritora.

Assim como a indicação feita peloprofessor Berredo das obras deJulesVerne para as alunas da EscolaNormal significava uma preocupaçãocom a ciência, encontramos em Anormalista mais outros indícios deleitura que reforçam essa ideia. Trata-seda referência a uma obra a respeito do

casamento, para o qual já não bastavammais os valores românticos, mas eranecessária uma formação científica a fimde dar aos nubentes e futuros cônjugesmelhor conhecimento para a procriaçãofilhos saudáveis. Assim, foi citada aobra: Fisiologia do matrimônio, deAugust Debay, e mais precisamente oseu capítulo "Da calipedia ou arte deprocriar filhos", que Lídia Campelo, amelhor amiga de Maria do Carmo, liaem companhia dessa:

Lídia explicou tudominuciosamente: a suspensão dasregras, os antojos, as dores namadre e, finalmente, os primeirosmovimentos do feto no útero.

Depois leram junto a Fisiologia domatrimônio, de Debay, que oLoureiro tivera o cuidado decomprar, especialmente o capítulo– Da calipedia ou arte de procriarfilhos, o mais importante naopinião da esposa do guarda-livros. (ibidem, p.134)

Assim, Maria do Carmo, que tinhaconsigo "a certeza que estava para sermãe" (idem), só desejava que opequeno, menino ou menina, se pareçacom o presidente da província. Ainda noúltimo baile em palácio não tirei osolhos deles" (ibidem). Sabendo que ofilho não era do Zuza e sim de João daMata, a protagonista desejava que o

rebento parecesse com um outro,certamente por ser esse bonito e bemposicionado socialmente como vimos.No caso, o presidente da província era opaulista Dr. Castro, que, segundo Sânziode Azevedo (1999, p.81), "na época emque se desenrola o enredo do romance,era o paulista Caio Prado". Do Dr.Castro, de quem Zuza era amigo íntimo,dizia-se "que também pertencia a umaalta linhagem de fidalgos de São Paulo efora educado na Europa: um rapagãoalegre, amador de cavalos de raça,ilustrado e amigo das mulheres"(Caminha, 1998, p.44).

É preciso também considerar que acitação dessas obras de cunho científico

a respeito da vida conjugal e daformação da família alinhava o romancede Caminha com os pressupostosdefendidos por Émile Zola ao transpordo conhecimento científico para aliteratura, e em especial para o romance,os conceitos e compreensão que naquelaárea passava-se a fazer corrente. Assim,é preciso lembrar aqui do Romanceexperimental, escrito por Zola epublicado em 1880, no qual ele já traziaclara a sua adesão às ideias de ClaudeBernard e a crença na atuação dafisiologia como um elemento importantena constituição dos indivíduos e daspersonagens, atuação essa que, por meioda hereditariedade, era dada como deherança de um a outro da mesma família.

Os casos de exceção eram aqueles emque entravam em cena as interferênciasdo meio e do momento, conceitos quetambém atravessavam a compreensãodos homens de letras naquele final deséculo no Brasil.

A transmissão genealógica docomportamento a encontraremos em umtrecho do romance A normalista,justamente no capítulo em que Zuza éapresentado aos leitores:

"Cada qual com o seu igual",doutrinava o coronel. O que nãoadmitia é que o filho se metessecom gente de laia ruim, que elecoronel, nunca descera de suadignidade para tirar o chapéu ou

apertar a mão de indivíduos quenão tivessem uma posição socialdefinida. Aprendera isso empequeno com o pai, o finadodesembargador Souza Nunes,homem de costumes severos quesabia dar aos filhos uma educaçãoesmerada, quase principesca. OZuza, dizia ele, não era mais do queuma vergôntea digna desse belotronco genealógico dos legítimosSouza Nunes, tão nobres quantorespeitados no Ceará. (ibidem)

Já a expressão "Cada qual com seuigual", pronunciada pelo pai de Zuza,deixa clara a crença na separação declasses por ordenação genealógica,

crença que se torna mais presente naúltima frase do parágrafo em que Zuza éconsiderado uma vergôntea daqueletronco genealógico, isto é, o filho maisjovem, o descendente de menor idade.Não parece ser acaso o uso dessapalavra – vergôntea –, uma vez que elatambém é usada na linguagem dasciências botânicas e da Marinha. Nocaso da primeira, designa o ramo maisfino de uma árvore ou arbusto, oequivalente a broto; no caso da segunda,é a peça de madeira de formato própriopara dela fazerem-se mastros e vergas,ou seja, uma das partes principais dasembarcações sem a qual é impossívelnavegar. Assim, Adolfo Caminha traz doléxico da ciência e da sua própria

experiência de trabalho o vocabulárioespecífico para a situação em cena. Nãoparece ser também acaso que emparágrafos após esse leremos a respeitode Maria do Carmo e, em seguida, arespeito do seu relacionamento com oZuza:

O Zuza era incapaz de semelhantecriancice; um rapaz de certacategoria não se deixa iludir porum simples normalista sem eiranem ramo de figueira, uma raparigasem juízo, filha de pais incógnitos,educada em casa de um amanuensereles. Quem, o Zuza? Pois não viamlogo a monstruosidade do absurdo?Era uma calúnia levantada ao filho.

Que esta! Não faltava mais nadasenão ver o nome do rapaz em letraredonda estampado na Matraca,um jornaleco imundo como umacloaca! (ibidem, p.45)

Assim, não parece ser coincidência queAdolfo Caminha não faça uso de umaforma mais corrente daquele ditado –sem eira nem beira – como, aliás, constana edição do seu romance organizadapor Sabóia Ribeiro, como o afirmouSânzio de Azevedo em nota que fizerana edição que organizou do romance,que vai aparecer nos capítulos VIII eXII, ou seja, trata-se aqui de um usobastante funcional para o sentido queAdolfo Caminha deu à cena em que

ocorre a não aceitação do namoro deZuza e Maria do Carmo por parte docoronel Souza Nunes. Assim, parece-nosque o vocábulo não foi usado ao acaso,o que exige uma acurada atenção dequem se dedique a fazer esse tipo deinvestigação do texto literário.

Podemos afirmar, então, que são dasleituras de Adolfo Caminha e da suaexperiência na Marinha que surgem nãosomente o vocabulário de seusromances, ele também, é claro, pois é omodo próprio da literatura de dizer-se,mas surge das leituras os conceitos queusa, e usar, nesse caso, significaescrever, significa entremear leitura eescrita, ações tão necessárias para o

autor e em especial para o autorpolígrafo como o defendemos; surgemdas suas leituras os conceitos que estãonos seus livros, seja de forma clara,transparente, nomeada, referenciada, eaqui estamos falando mesmo doreferente, essa parte dura da palavra quese encontra grafada na página, essa parteagora lemos, seja de forma trabalhada enesse trabalhar vai toda a sua atuaçãocomo autor, por esse motivo o tratamosaqui como um autor-leitor ou por quenão dizer um leitor-autor.

Também destacamos o fato de que aleitura de títulos como a Fisiologia domatrimônio deu aos autores apossibilidade de instaurar a

representação de um novo modo devida. Como já dissemos, não bastavaamar e casar por amor, como odefendiam os românticos, José deAlencar um deles, quando, por exemplo,encontramos em romances como Lucíolae Senhora a reprovação das uniões porinteresses outros que não o amorromântico ou cortês, também já não erapreciso somente educar os sentimentos,numa alusão nossa à Educaçãosentimental, de Flaubert. Era precisoeducar os corpos, destiná-los a melhorprocriação possível, mas não aqueladitada pelos moldes da religião, maspelos novos moldes da ciência comotambém já se defendera, no romance emcausa, os novos moldes da educação, de

preferência a educação laica à religiosa.

Ainda sobre a presença do livro Afisiologia do matrimônio no romance Anormalista, já vimos que Maria LetíciaGuedes Alcoforado (1982) o dá comosendo não de Debay, mas de Balzac,porém, é ainda Maria Letícia que apontaa solução para talvez esse engano deCaminha ao ter possivelmente trocadoum autor pelo outro. Diz-nos ela:

Entretanto, acreditamos que seriamesmo a uma obra de Debay queele [Caminha] queria referir-se.Médico francês. Auguste Debaytornou-se conhecido por algumasobras de vulgarização, relativas àhigiene, ao magnetismo, etc. Entre

elas está Hygiène du mariage quetambém se adaptaria à situaçãocriada por Caminha. (ibidem, p.66)

Foi também Maria Letícia GuedesAlcoforado que nos deu a certeza de queCaminha conhecia aquele livro deBalzac, e que possivelmente se enganaratrocando os nomes dos autores e obras,dando como fonte dessa sua leitura o seuconto "O Minotauro". Nas três versõesexistentes do conto, às quais aqui jáaludimos rapidamente, é clara essaindicação. As versões que citaremosaqui, na ordem em que foram dispostasno volume intitulado Contos, são asseguintes: 1 Publicada em A Revista doNorte, anoV, n.4, dezembro de1905; 2

Publicada em O Album, Ano 1, n.27,Segunda Série, de julho de 1893,páginas 212-213; 3 Publicada na Gazetade Notícias, de 27 de janeiro de 1894,página 1. Em todas essas versões lemosque A fisiologia do casamento é deBalzac. Também lembramos que, antesde falecer, Caminha estava traduzindo oteatro de Balzac, como deu a entendernas páginas pretextuais da primeiraedição em livro de suas Cartasliterárias nas quais lemos após o rol desuas obras já publicadas o títulosdaquelas que estaria a preparar ouestariam no prelo: "A SEGUIRPequenos contos. O Theatro de Balsac.Duas história".

Os indícios de leitura de obras nãoficcionais, porém de importante valorpara a constituição da trama narrativa,são encontrados no romance Anormalista. Para concluir a aberturadeste pacote da biblioteca de Caminha,citamos os nomes de Herbert Spencer eJohann Heinrich Pestalozzi. O primeirofoi um dos principais nomes doevolucionismo, filosofia que marcoufortemente os homens de letras no Brasildo final do século XIX. Já o segundo,suíço de nascimento, influencioufortemente o ensino criando um métodoque ficou conhecido pelo seusobrenome. São de Pestalozzi osseguintes títulos: As horas noturnas deum ermitão, de 1780; Leonardo e

Gertrudes, de 1781, com o qual saiu doanonimato, e Como Gertrudes ensinasuas crianças, de 1801, no qual expôs oseu método de ensino.

Foram das ideias de Spencer ePestalozzi que a Escola Normal, paraonde Maria do Carmo voltou apósperder o seu filho, se valeu pararenovar-se:

O programa era outro, mais extenso,mais amplo, dividido metodicamente emeducação física, educação intelectual,educação nacional ou cívica, educaçãoreligiosa... pelos moldes de H. Spencere Pestalozzi; o horário das aulas tinhasido alterado, havia uma escola anexade aplicação, estava tudo mudado!

(Caminha, 1998, p.174)

Vemos, desse modo, que mais umapermanência pode ser constatada nessearrolamento dos indícios de leitura deAdolfo Caminha presentes no conjuntode sua obra e, mais especificamente, nocaso do romance em causa: trata-se dasua preocupação em alinhar a sua ficçãoao conteúdo norteador das ideiasnaturalista, ou seja, no centro de suaspreocupações parece estar a relaçãotecida pelos naturalistas entre literaturae ciência, relação essa que melhordiferenciou essa estética literária dasdemais então correntes. A preocupaçãosempre presente com o método, um novomodo de fazer associado a um novo

modo de vida, de ser e de estar pareceatravessar toda a trama narrativa doromance A normalista. Esse novomodelo fora então fundamentado naciência e já não mais somente nosvalores românticos até então vigentes.

Assim, concluímos a abertura de maiseste pacote da biblioteca de Caminha,ou melhor, daquilo que dela é possívelconhecer a partir da recolha dosindícios de leitura que na sua obra elefoi deixando à medida que escrevia.Assim, voltamos a defender a ideia deque na constituição do conceito do autorpolígrafo como aqui o temoscompreendido consideramos também asleituras que Caminha realizou ou

pareceu realizar.

Quinto pacote

Passamos, então, a conhecer o conteúdode mais um pacote da biblioteca deAdolfo Caminha. Este traz na etiqueta otítulo do segundo romance do autor:Bom-Crioulo, de 1895. Achamossempre bom, antes de desatar os fios queenlaçam o conteúdo de cada pacote,sabermos do que se trata, o que nos dizo nome sobre a sua etiqueta deidentificação. Bom-Crioulo narra ahistória de amor entre dois homens. É,portanto, um dos primeiros romances atratar abertamente do homoerotismomasculino na literatura de língua

portuguesa. Antes de sua publicação sóencontramos referência a esse tema emO barão de Lavos, do português AbelBotelho, publicado em 1891. No Brasil,já temos a representação dohomoerotismo feminino nos romances Ocortiço, de Aluísio Azevedo, com ocaso entre Léonie e Pombinha, e em Anormalista, do próprio Adolfo Caminha,em cena na qual a Lídia Campelo ensinaà normalista como Luísa e Basílio,personagens de O primo Basílio,tomavam champagne.

Anterior ao Bom-Crioulo, no entanto, ohomoerotismo encontra precedentes desua representação nos romances Umhomem gasto, do Dr. Ferreira Leal, que

assinou esse seu título com as iniciais L.L, e cuja segunda edição data de 1888, eno romance O Ateneu, de Raul Pompéiapublicado também em 1888. Aspersonagens desse romance de AdolfoCaminha são Amaro, o Bom-Crioulo,protagonista do romance, ex-escravo emembro da marinha imperial; Aleixo, ogrumete catarinense, um tipo de efebo, eDona Carolina, também conhecida comoCarola Bunda, que acaba por formar nodecorrer da narrativa um triânguloamoroso. Os dois homens sãomarinheiros, o que faz que esse romancede Caminha possa ser inserido numalinhagem de romances em que omarinheiro aparece como umapersonagem homossexual. Nessa

linhagem estão Querelle de Brest, deJean Genet; Billy Bud, marinheiro, deHerman Melville, Cais, saudade depedra, de Moacir Costa Lopes.

Sentindo a ausência do amado esentindo-se igualmente traído porqueAleixo foi viver com Dona Carolina,Amaro deixa o hospital e vai em buscada casa da rua da Misericórdia. Láchegando, mata o grumete e assim oromance termina, decretando o destinodo homossexual na literatura: a doença,a prisão ou a morte. Em linhas gerais, éessa a história do romance que fora umescândalo para a época, mas que, desdea década de 1980, vem sendo traduzidopara diversas línguas – inglês, francês,

alemão, espanhol, italiano e turco –graças ao avanço da luta do movimentoLGBTTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais,Travestis, Transexuais e Transgêneros)e ao interesse do mercado editorial deabrir-se para atender públicos leitoresde interesses específicos. Tambémconcorre para esse interesse o fato de oromance trazer como personagem osmarinheiros que se tornaram ícones daarte gay como podemos constatar nostrabalhos de Pierre e Gilles e de Tom daFinlândia.

Não há nesse romance de Caminha,como já o afirmamos, muitos indíciosdas leituras que o seu autor realizouantes ou simultaneamente à sua escrita.

Como afirmamos, são poucos osindícios encontrados no Bom-Crioulo,mas eles são significativos. Assim,passamos a tratar deles. O primeiroindício de leitura é de um título técnico:Tratado elementar de navegaçãoprática, cujo autor é uma personagem doromance em causa: "Era um oficialdistinto, moço, moreno, os olhos vivos einteligentes, grande calculista, jogadorde sueca e autor de um Tratadoelementar de navegação prática"(Caminha, 1999b, p.12). Apesar depesquisarmos, não sabemos se de fatoesse livro existiu. Deve ter sido ele umentre outros do tipo, leitura talvezcomum entre os homens de Marinhaformados nos seus bancos com destino a

navegar. Ainda assim, sem muito a dizersobre o citado livro, o indício de sualeitura e sua presença no romance deCaminha parece-nos ter a função de,assim como já o tivera outros títulos,conformar a personagem com a qual estárelacionado, nesse caso específico, oseu autor.

A esse título segue um igualmentetécnico e referente à vida no mar. Noromance foi chamado apenas de Código:"O comandante, depois de um brevediscurso em que as palavras 'disciplinae ordem' repetiam-se, fez um sinalzinhocom a cabeça e logo o oficial imediato,um louro, de bigode, começou a leiturado Código na parte relativa a castigos

corporais". Trata-se, possivelmente, doconjunto de leis que regulamentavam avida a bordo e a condutas dosmarinheiros. São os dois casos títulosespecíficos, de um saber aplicativo eregulador. Eles são também exemplo dautilização do conhecimento apreendidopor Adolfo Caminha na Marinha na obraficcional.

Quase não há nesse romance de Caminhareferências ou cenas de leitura comohavia nos romances já citados. Osperiódicos também pouco estãopresentes nele. Só encontramos umindício de leitura desse tipo de texto. Aleitora é Dona Carolina: "Quando ogrumete chegou, ela estava na sala de

jantar lendo os anúncios do Jornal doComércio, à luz do gás" (ibidem).Aparentemente, vemos que se trata deuma leitura simples, de anúncios, bemprosaica e útil ao cotidiano de DonaCarolina. Não há em Bom-Crioulo amesma presença que tiveram osperiódicos no romance A normalista, emque páginas e páginas são ocupadas emdescrever as redações, em tratar dosembates literários em um e outro jornalou revista.

Possivelmente, Adolfo Caminha tinha ohabito de ler biografias ou informaçõessobre a vida de algumas personagenshistórias. Um exemplo disso queafirmamos é a citação do nome de Gilles

de Rais, que, no romance BomCrioulo, écomparado ao comandante daembarcação em que servia Amaro. Ocomandante é descrito nestes termos:

O comandante do couraçado, belaestampa de militar fidalgo,irrepreensível e caprichoso, era omesmo, aquele mesmo de quem, nafrase tosca de Bom-Crioulo,"falavam-se coisas".

Uma lenda obscura e vagalevantara-se em torno do seu nome,transformando-o numa espécie deGilles de Rais menos pavoroso queo da crônica, cheio de indiferençapelo sexo feminino, e cujo idealgenésico ele ia rebuscar na própria

adolescência masculina, entre os desua classe.

Calúnia, talvez, insinuações de maugosto. (ibidem, p.68, grifo nosso)

Há da parte do narrador certo exagerona comparação entre o comandante doromance de Caminha e a personagemhistórica Gilles de Rais. Esse viveuentre 1404 e 1440, era francês, militar eesteve em várias guerras, a mais famosadelas a Guerra dos Cem anos,alcançando assim a patente de marechal.Foi um dos primeiros nobres francesesque apoiaram e acreditaram em JoanaD'Arc, por quem parece ter-seapaixonado. Vendo Joana D'Arc ser

levada à prisão e à morte na fogueira,Gilles de Rais passou a viver em seuscastelos, especialmente no Tiffanges,onde entregou-se à grandes festas nasquais teria gastado parte considerávelda fortuna que recebeu de seu casamentocom Catherine de Thouars. Além dasfestas, dedicou-se à alquimia, à magianegra e ao satanismo auxiliado porFrancesco Prelati.

Gilles de Rais assassinou muitascrianças, entre meninas e meninos.Esses, antes da morte, eram violentadossexualmente. Há mesmo referência aseus prazeres sodomitas. Maria LetíciaGuedes Alcoforado, analisando apersonagem de Gilles de Rais e sua

relação com o romance de Caminha,tendo por base o dicionário Larousse duXXe siècle, considerou não havernenhum indício de homossexualidade napersonagem francesa, mas não foi issoque constatamos nas fontes queconsultamos. Gilles de Rais foi acusadoe levado à pena capital pela morte de,estimadamente, 140 vítimas. Talvez pelasodomia e pela agressividade, ocomandante do Bom-Crioulo tenha sidocomparado a De Rais. Vemos que onarrador afirmou que o comandante tinhaindiferença pelo sexo feminino, "e cujoideal genésico ele ia buscar na própriaadolescência masculina, entre os de suaclasse". Foi em Gilles de Rais queCharles Perrault se inspirou para

escrever a história do Barba Azul.19

A única obra de ficção que encontramosreferida diretamente no BomCrioulo éOtelo, de Shakespeare. Já constatamos oindício de leitura de O Cimbelino,registrado como a Cimbelina, tambémde Shakespeare. O tema de Otelo é ociúme. E foi esse o sentimento que o fezser citado no romance de Caminha(1999b). Vejamos:

Era um misto de ódio, de amor e deciúme, o que ele experimentavanesses momentos. Longe de apagar-se o desejo de tornar a possuir ogrumete, esse desejo aumentava emseu coração ferido pelo desprezo

do rapazinho. Aleixo era uma terraperdida que ele devia reconquistarfosse como fosse; ninguém tinha odireito de lhe roubar aquelaamizade, aquele tesouro de gozos,aquela torre de marfim construídapelas suas próprias mãos. Aleixoera seu, pertencia-lhe de direito,como uma coisa inviolável. Daítambém o ódio ao grumete, um ódiosurdo, mastigado, brutal como ascóleras de Otelo...

Aleixo com outro homem! Estaidéia fazia-o enlouquecer deciúme, torturava-o como umsofrimento agudo, como uma chagaviva e dolorosa. (ibidem, p.90,

grifo nosso)

O fim dessa tragédia de Shakespeare jáo sabemos. Otelo mata Desdêmona edepois se mata. Todo esse final não foitransposto para o romance de Caminha,uma vez que Amaro mata Aleixo masnão comete o suicídio. A triangulaçãodatrama de Shakespeare feita por Iago estápresente no romance de Caminha ecorresponde à atuação de DonaCarolina. As pequenas intrigas tambémnão lhe faltam. A leitura da peça dodramaturgo inglês parece ter contribuídopara a construção da sua tramanarrativa. Em ambos, o fim é a morte,como, aliás, tem sido o fim de muitasdas personagens homoeróticas em

literaturas de diversas nacionalidades.

Por fim, encontramos também umareferência a Camões, mas, na verdade,seu nome aparece como o de umaembarcação que leva Bom-Crioulo emfuga do hospital para a cidade jádecidido a vingar-se de seu amante:

A pequena embarcação vinha-sechegando para a ilha, sem toldo,remada por um galego de suíças,meio velho, Trazia à popa, norecosto do paineiro, o dístico –Luís de Camões, por cima de umafigura a óleo que tanto podia ser ado grande épico como a dequalquer outra pessoa barbada, emcuja fronte se houvesse desenhado

uma coroa de louros. Nessa infamegaratuja, o poeta tinha o olhoesquerdo vazado, o que, afinal decontas, não interessava ao negro.

– Quer me levar ao cais?Perguntando Bom-Crioulo aoportuguês.

– É já! Disse o homem atracando.O Luís de Camões não dorme

– Vamos.

– Pode embarcar.

– Upa! (ibidem, p.96-7)

Vemos que a imagem do poeta português

não interessa a Amaro. No entanto,interessou ao narrador, que a descreveucomo uma garatuja, ou seja, tosca emalfeita. Ressaltou também os seuspormenores, como a coroa de louroscom que geralmente Camões foirepresentado em estátuas, estampas etc.,e o erro da reprodução que mostrava oolho cego de Camões como o esquerdo,em vez do direito. Trata-se, portanto, deum narrador atento às figuras de umaliteratura que parece interessar-lhe.Poderíamos dizer que se trata de umnarrador-leitor.

Assim, concluímos a abertura de maiseste pacote da biblioteca de Caminha.Como já havíamos dito, nele não

encontramos muitos indícios de leitura,o que diferencia esse romance dosoutros dois. É bem verdade que, paraescrevê-lo, Caminha valeu-se detrabalhos de criminalistas e estudiososcujos interesses, então, despontavampela sexualidade humana. Passamos,agora, a mais um pacote de suabiblioteca, aquele que traz em suaetiqueta o título de seu último romance.

Sexto pacote

Tentação é o último romance de AdolfoCaminha. Foi publicado em 1896, mascirculou somente em 1897, quando o seuautor já havia falecido, é o que lemosem Adolfo Caminha (Vida e obra), de

Sânzio de Azevedo. Em Tentação temosa história do casal Evaristo e Adelaidede Holanda, moradores de um lugarejochamado Coqueiros. Evaristo éadvogado e ambiciona morar no Rio deJaneiro, a capital do Império, que elechamava de "Paris em ponto pequeno".Com a ajuda do amigo Luís Furtado,casado com Dona Branca, Evaristoconsegue um emprego no BancoIndustrial. O casal deixa Coqueiros evai viver junto dos Holanda emBotafogo, então reduto da burguesia e dafidalguia cariocas. A convivência comtipos bem formados, incluindo o próprioEvaristo, faz que esse, aos poucos, mudede ideia.

Evaristo não suporta o monarquismo dosFurtado, com Dona Branca sempre alouvar a família imperial. As ideiasrepublicanas, ou como diria Evaristo,democráticas, não casam bem com avida naquele bairro carioca, que se opõeferrenhamente à Cidade Nova. O ápicedo conflito dá-se com o piquenique queos casais, acompanhados do visconde deSanta Quitéria, fazem no JardimBotânico. Nesse piquenique, LuizFurtado galanteia Adelaide e beija-lhe amão. O narrador mostra asprevaricações de Dona Branca comoVisconde. O casal Holanda resolveentão deixar a casa dos Furtado:Adelaide porque se sentia mal com oque acontecera entre ela e Furtado;

Evaristo porque mudara totalmente deopinião quanto à vida na capital doImpério. Ao final do romance, nãosabemos ao certo se continuaram no Riode Janeiro ou voltaram para a suaCoqueiros. O destino do casal émarcado de inúmeras interrogações. Oque se sabe de fato é que o beijo deFurtado na mão de Adelaide o animouaté mesmo após a saída do casalHolanda de sua casa.

Tentação é um olhar para a vida no Riode Janeiro. Há pormenores que tornam anarrativa bem mais interessante do queessas linhas gerais que aqui traçamos afim de apenas situar quem não o tenhalido. Muitas outras considerações

podem ter os leitores a respeito desseromance de Caminha que não alcançou amesma repercussão dos dois anteriores.Assim como em A normalista, há nelebem mais preocupações com a vidaintelectual, diferenciando-se, portanto,do Bom-Crioulo. Para os críticosliterários que dele se ocuparam,Tentação é mais uma narrativa ao gostorealista do que propriamente naturalista.Na nossa opinião, há nesse romance umconflito interno que não permite que eleseja enquadrado numa ou noutra escola.

Esse conflito dá-se entre a personagemde Evaristo, um romântico nas ideiasque expressa e no modo como o faz, e oespaço, a cidade do Rio de Janeiro,

então capital do império de D. Pedro II,representada de forma bastantenaturalista. É o espaço no qual se podetentar a sorte, mas também alcançar oazar, o vício, a imoralidade; enfim, é acidade tentação, justificando, ao menosem parte, o título romance, pois outrastentações são apresentadas ao longo doenredo.

Pouco tem atentado a crítica literáriapara esse conflito. A fim de enquadrar oromance totalmente em uma ou em outraescola, achou-se por bem chamá-lo derealista, uma vez que a característicaque o definiria como naturalista não aencontramos nele, isto é, a ligação entreliteratura e ciência. O pouco que

encontramos dessa ligação perde-se nanarrativa como já o considerou Sânziode Azevedo (1999, p.136). Quase nadase encontra nele da crença no poder dafisiologia ou da hereditariedade. Oembate é mais do homem com o meio,esse sim a grande barreira a vencer, sejapara superá-lo, seja para adaptar-se aele. Quando dizemos o meio não nosrestringimos ao espaço físico, mastambém ao meio social em que osconflitos se dão e se acertam.

São conflitos de todas as ordens:estéticos, comportamentais, políticos,ideológicos etc. que marcam esseromance de Caminha. Adelaide quechega acanhada ao Rio de Janeiro com

seus vestidos de provinciana vai aospouco adaptando-se, desejandoapresentar-se à altura das fidalgas queconvivem com os Furtado; no entanto,essa adaptação não se efetiva. Evaristo,que celebrava as vantagens de viver nacapital, muda de opinião e, assim, o Riode Janeiro deixa de ser para ele umapossibilidade de ir a Paris sem sair doBrasil.

O conflito interno que percebemos noromance é, a nosso ver, derivado domomento e das relações que AdolfoCaminha fez das escolas literárias noconjunto de sua obra; pois, como jávimos, o romantismo, por meio dostítulos de obras românticas, não deixou

de figurar em suas leituras como noslevam a concluir os indícios de leituraaté então apontados. Valemo-nos aquitambém do que já afirmara AfrânioCoutinho quanto ao final do século XIXser uma espécie de encruzilhada deestéticas.

Quando Tentação foi publicado, osimbolismo já estava corrente com apublicação de Broquéis e Missal, deCruz e Souza, ambos de 1893, mesmoano de publicação de A normalista, nãocoincidentemente publicado na mesmacidade e na mesma editora. Osparnasianos continuavam parnasianos,assim como os românticos e os realistaso continuaram sendo. Então, feita essa

breve apresentação e dada a nossaopinião a respeito de Tentação,passamos a arrolar os indícios de leituraque nele encontramos.

O primeiro indício diz respeito,exatamente, à imprensa carioca, tanto anoticiosa como a literária. Encontramosuma referência ao jornal Comércio doRio, que na opinião de Furtado era oTimes carioca. Na História da imprensano Brasil, de Nelson Werneck Sodré(1966, p.373), não encontramosreferência a um periódico com essetítulo, mas encontramos referência aojornal Comércio do Brasil, contra oqual o governo tomou severas medida nareação à divulgação de notícias sobre a

Revolta daVacina, em 1904.Encontramos também referência aosjornais Cidade do Rio, de José doPatrocínio, no qual parte importante daintelectualidade boêmia do paísescrevia, chegando mesmo o seuproprietário, em razão dos longosatrasos no pagamento à escassez dedinheiro, estabelecer uma cozinha naredação, e o Jornal do Comércio,adquirido por José Carlos Rodrigues,em 15 de novembro de 1890.

Outra referência é feita à RevistaLiterária, dirigira porValdevinoManhães, na verdade uma caricatura deValentim Magalhães a quem Caminhacriticara abertamente já no ano de 1896

no seu artigo "Um livro condemnado",na tentativa de defender o seu romanceBom-Crioulo da acusação de imoral.Sabemos que Valentim Magalhães foi ofundador da revista A Semana. EmTentação, Caminha (1979, p.18) foialém na sua crítica, transformando esseseu desafeto em uma personagemridicularizada: "Valdevino Manhães,diretor da Revista Literária e autor demuitos livros, de muitíssimas obras,entre os quais o poema heróico-cômicoJuca Pirão, paródia ao 'I-Juca-Pirama',de Gonçalvez Dias".

Trata-se o dito Juca Pirão de umaparódia intitulada A vida de seu Juca,uma paródia de A morte de D. João, de

Guerra Junqueiro, paródia essaqueValentim Magalhães escreveu emcolaboração com seu irmão AntônioHenrique de Magalhães, segundo Sânziode Azevedo. Valentim Magalhães eradado a escrever paródias como nos fazcrer o tópico sobre si na Enciclopédiada literatura brasileira, de AfrânioCoutinho e J. Galante de Sousa. Nelasão arroladas, além dessa, mais duasparódias: A velhice da madre eterna, de1885, paródia de A velhice do PadreEterno, de Guerra Junqueiro, e Ináciado Couto, de 1889, paródia de D. Inêsde Castro, escrita em colaboração comAlfredo de Sousa.

Valdevino Manhães tinha o epíteto de

Dr. Condicional, "porque nunca dizia ascoisas em tom afirmativo: tinha sempreum mas..., talvez..., se..., quandocriticava obras alheias" (ibidem). Outrovezo seu era o de falar de sua viagem àEuropa. Em Lisboa foi recebido pelopoeta João de Deus, cuja poesia émarcada pela simplicidade, pelo carátertanto tradicional quanto conservador.20

A personagem Evaristo de Holanda foiimplacável com o Dr. Condicional esobre ele afirmou: "Se todos os literatosdo Rio de Janeiro fossem como o autordo Juca Pirão, a literatura brasileiratinha de pedir licença à Câmara paraandar de quatro pés – dizia ele aFurtado" (Caminha, 1979, p.18).

Um outro jornal se apresenta na tramado romance. É importante perceber que,mesmo em situações mais comezinhas, aimprensa está presente na narrativa,demonstrando que essa junção entreimprensa e literatura era bem marcadana vivência dos escritores. Para a festado batizado de Julinha, a filha mais novado casal Furtado, cuja madrinha seria aPrincesa Isabel, estavam convidados: ovisconde de Santa Quitéria, o Dr.Condicional, dois amigos de Furtado, oLoiola, tesoureiro do banco, a viúvaTourinho, o Xavier, do Jornal deNotícias e um outro rapaz amigo dacasa.

Nesse romance de Caminha, como em

nenhum dos anteriores, a literatura e asleituras fazem parte dos assuntostratados em conversas diárias, nobatepapo na sala de visitas como essaem que os poetas Luís de Camões eGonçalves Dias foram citados. Trata-sede uma conversa entre o desembargadorLousada, membro do Instituto Histórico,e Valdevino Manhães, que lhe perguntao que tem escrito:

– E V. Exa já apresentou algumtrabalho, Sr. Desembargador?inquiriu, por delicadeza, o poeta.

– Ainda não, meu amigo, ainda não,mas tenho pronta uma refutação aosIrmãos Pinzón do conselheiroLisboa.

– Um refutação?

– Exatamente, umas notas sobre osprimeiros descobridores daAmérica, uns documentosimportantíssimos, que valem toda afortuna dos Rotschilds...

– O visconde de Santa Quitéria, aoouvir falar dos Rotschilds, deitou orabo de olho.

– ... Calcule o senhor que osfenícios, muito antes de Pinzon,numa época remotíssima, andaramno Amazonas...

– No Amazonas, desembargador?

repetiu Manhães com espanto.

– Pois não, no Amazonas... admira-se? Quanto mais se eu lhe disserque os Cananeus andaram naParaíba do Norte! Pois é a puraverdade. Encontrei na biblioteca deSua Majestade um fac-símile deinscrições fenícias descobertasnuma pedra na Paraíba.

– Mas, então, Colombo nãodescobriu a América?

– Não senhor... Colombo nãodescobriu coisa alguma...

– E o desembargador,pausadamente e circunspectamente,

explicou a magna questão do ovode Colombo.

– E o senhor, tem escrito muito?inquiriu depois ao êmulo deGonçalves Dias.

– Oh, muito. V. Exª não imagina! Opior é que no Brasil ainda não háeditores. V. Exa decerto conhece omeu poema...

– Qual deles?

– Eu só escrevi um poema atéhoje...

– Ah!... Como intitulou?

– Então V. Exa não conhece? –insistiu o literato com surpresa.

– Homem, eu, para lhe falar averdade, em matéria de verso, sóconheço os Lusíadas, que tenho emcasa.

Valdevino Manhães deu um jeitinhoao pincenê, verificou que asvioletas estavam na lapela, e, comose acabasse de ouvir uma horrorosablasfêmia, uma heresia medonha,exclamou, fitando os olhos domagistrado:

– Só os Lusíadas?!

– Só os Lusíadas.

Nesse instante aproximava-se umcriado oferecendo sorvetes emconchinhas de porcelana, e um arfrio inundou o ambiente.

– Só os Lusíadas! – repetiu opoeta, estendendo a mão à bandeja.

Parecia-lhe incrível,extraordinário, fora de toda averdade, que um membro doInstituto Histórico do Rio deJaneiro, autor de uma memóriasobre os irmãos Pinzon,desembargador da Relação, nãolesse os poetas do seu país. Eraincrível. Mas o que ele estranhavaocultamente é que o desembargadornão houvesse lido a paródia do I-

Juca-Pirama", que tantos elogiosmerecera da crítica nacional.

O tom de ironia é claro nessa situação.A escrita da contestação da tese de queos irmãos Pinzon teriam chegado àAmérica antes de Colombo e que muitoocupou os historiadores é trazida à cenaa fim de ridicularizar as personagens. Oque é ainda mais alcançado quando odesembargador Louzada acreditava queManhães houvesse escrito mais de umpoema. Uma fala após a outra, como oespanto de Manhães pelo fato de que odesembargador só conhecia de poesiaOs lusíadas, reforça essa idéia. Osgrupos intelectuais, nessa cenarepresentados pelo desembargador, que

era membro do Instituto Histórico, e aliteratura, a crítica literária e ojornalismo, representados por Manhães,são tratados com certo desdém.

Além desse tratamento irônico,desdenhoso até, percebemos apermanência de indícios de leituras queconstatamos anteriormente,destacadamente no caso do poeta Luísde Camões. É importante perceberqueValdevino Manhães parececomparar-se ao poeta português aosentir-se desapontado pelo fato de que odesembargador Louzada não conhecia asua paródia Juca Pirão. Há nessa longapassagem que transcrevemos váriosrecursos usados para conformar as

personagens por meio da leitura e daescrita atribuídas a cada uma delas.Assim, a manutenção de indícios deleitura contrasta também commodificações que das leituras vão sendofeitas à medida que se dão os seus usosem romances, contos etc. Nessemovimento de tensão entre permanênciae modificação é que os indícios deleitura subsistem e apontam para osdiversos usos que o autor-leitor foifazendo dele ao longo da escrita de suaobra.

O próximo indício de leitura queconstatamos dá-se, exatamente, numadas cenas mais importantes do romance,aquela que se passa no piquenique no

Jardim Botânico. Nela, dois poetasromânticos são lembrados. O primeiroindício dá-se com a citação de OEvangelho na selva, cujo título inteiro éAnchieta ou O Evangelho na selva, dopoeta romântico Fagundes Varela,publicado em 1875. Trata-se de umlivro póstumo, como nos faz crer oeditor da primeira edição em nota quefoi conservada na edição das Poesiascompletas de L. N. Fagundes Varela.Esse livro de Fagundes Varela éformado por dez cantos numerados emalgarismos romanos de I a X, desses,seis livros trazem como epígrafeversículos bíblicos dos livros deNúmeros, João, Isaías, Eclesiastes,Jeremias e Joel.21 Vejamos, no romance

de Caminha (1979, p.55), o modo comoessa obra de Varela foi citada nodiálogo que transcrevemos a seguir:

– A Tijuca é mais solene... –observou circunspecto o visconde.– O barulho da cascata é como se agente estivesse num ermoreligioso... no meio de umdeserto... muito longe...

– Oh, então deve ser triste demais...– argumentou o marido deAdelaide.

– Como triste? É encantador! époético!

– Falta aqui o Dr. Condicional para

dizer que lembra o Evangelho naselva... – insinuou o amigo Furtado.

Vemos que, nessa cena, a citação dolivro de Varela aparece cercada de umtom de ironia, uma vez que, ali, nãoocorreria nenhuma situação religiosa,que é o próprio tema do livro em causa,uma vez que nele Varela preocupou-seem contar, como o afirmou Alfredo Bosi(2001, p.118), a vida de Cristo pelaboca do jesuíta Anchieta.

Já a segunda citação, como o dissemos,é de um verso de um poema dito na cenaque transcrevemos a seguir:

Evaristo, no meio de toda aquelapaisagem tropical, de uma riqueza

encantadora, lembrou-se daprovíncia, e, num tom solene emisterioso, recitou descobrindo acabeça e estacando:

Solidão, eu te saúdo! Silêncio dobosque, salve!

Lera isso há muito num clássicoportuguês e nunca um pensamentoalheio lhe fora tão bem empregado!(Caminha, 1979, p.56, grifo nosso)

Na continuação do diálogo entre aspersonagens Furtado e Adelaide,Evaristo declama, se não todo, masparte do poema:

– Vocês é porque não sabem

glorificar a natureza, vocês éporque não lêem os clássicos!replicou o bacharel.

– Mas não te lembras do resto...

– Como não me lembro, se é umadas páginas que nunca hei deesquecer?

E o bacharel, sem receio deescandalizar o aprumo do SantaQuitéria, berrou para o alto, comose falasse às nuvens:

– Solidão, eu te saúdo! Silêncio dobosque, salve! A ti venho, ohnatureza; abre-me o teu seio.Venho depor nele o peso

aborrecido da existência; venhodespir as fadigas da vida!... Oshomens não me deixaram;amparai-me vós, solidões amenas,abrigai-me, oh solidõesdeleitosas...

– Onde queres tu chegar com essadesfruteira, oh Evaristo?interrompeu o outro.

– Quero chegar ao fim da página...(ibidem)

O clássico a que a personagem se refereé o escritor português românticoAlmeida Garrett e os versos citados sãodo poema intitulado "Solidão", o 21º dolivro primeiro de Flores sem fruta, de

1845. Os versos citados por Evaristosão da primeira parte do poema, que éformado de três partes. Transcrevemos aseguir todos os versos da primeiraparte:

Solidão, eu te saúdo! silêncio dosbosques, salve! A ti venho, ónatureza; abreme o teu seio.

Venho depôr n'elle o pêsoabhorrecido da existencia; venhodespir as fadigas da vida.

Quero pensar só commigo; querofalar a sós com o meu coração.

Os homens não me deixam,ampara-me vós, solidões amenas,

abrigae-me, ó solidões deleitosas.

Franqueia-me, ó soledade, othesouro das tuas selvas; abre-me osanctuario das tuas grutas.

Eu perguntarei aos troncos pelasedades que viram correr; e ostroncos me responderão, meneandoas suas ramas: – Ellas passaram.

Eu contatei aos prados os meusamores; e as boninas abrirão ocalix para me dizer... – também nósamâmos. –

Interrogarei os penhascos pelosecos das vozes dos homens; e ospenhascos mudos não ousarão

repetir-me os sons falazes d'essavoz.

Eu direi ás ruinas: – Que é dasmãos que vos construiram, que édas raças que vos habitaram? –

E as ruinas se calarão; mas a pedrade um sepulchro falará por ellas.

A pedra do sepulcro dirá: – Amorte passou, e as suas pègadasficaram impressas no caminho dosseculos –

Solidão, eu te saudo! silencio dosbosques, salve! (Garret, 1971,p.282-3, grifo nosso)

Se compararmos os versos citados porEvaristo com esses que transcrevemos,veremos que a personagem esqueceu dedeclamar um verso, justamente o quetrazemos em destaque na citação.Evaristo mostra-se como um leitor deobras que considerava clássicas. É maisum autor português que arrolamos dentreos indícios de leitura de Caminha. Overso "Solidão, eu te saudo! silenciodos bosques, salve!" é repetido ao finaldas duas outras partes que compõem opoema, funcionando como um refrão.

Segundo Saraiva & Lopes (1975),Flores sem frutas não é totalmente umlivro da estética romântica, mas já trazem si os elementos românticos que

ganhariam mais vivacidade em Folhascaídas. Vejamos o que afirmaram a esserespeito os citados historiadores daliteratura portuguesa:

As Flores sem Fruto e, mais ainda,as Folhas Caídas traduzem estaexperiência. As Flores sem Frutorepresentam uma transição; há aímuita poesia arcádia em metrosvariados, mas também alguns temascomuns às Folhas Caídas, tratadosnum novo estilo, em que oeruditismo arcádio cede o lugar auma coloquialidade valorizada, eem que as formas de modeloclássico são substituídas porestrofes e rimas mais próximas da

simplicidade popular, como aquadra e a redondilha. E há tambémos primeiros rebates do amor-paixão, que será o tema absorventedas Folhas Caídas. (ibidem,p.778)

Mesmo que Flores sem fruto não sejatotalmente romântico, ele é o exemplode mais uma obra aproximada a essaestética literária que encontramos nosindícios de leitura de Caminha, o quenão só nos permite falar em umapermanência de leituras românticasmesmo no último romance de Caminha,quando já houvera passado pelaexperiência de escrever dois romancemarcados pelos pressupostos

naturalistas como o são A normalista eBom-Crioulo. Além de, como veremosem sua atuação como crítico, mostrar-semesmo de modo não ferrenho contrárioaos românticos, sabendo no entantoreconhecer o valor de suas obras comoo fizera com José de Alencar.

O registro de permanência das leiturasromânticas também conforma apersonagem Evaristo como umromântico, reforçando o conflito quecitamos nas páginas anteriores. Vemosque Evaristo faz uma defesa do poema;ele cita versos inteiros, mesmo queesqueça aquele que apontamos, o quenão acontece com as outras personagensdos romances de Caminha. Só

encontramos situação similar na leitura,quase declamativa, que Zuza faz daCasa de pensão no romance Anormalista.

Destacamos também que citar essesversos de Garrett coloca a personagemem uma situação de oposição ante osdemais presentes na cena, pois vemosFurtado chamar a declamação de"desfruteira". Trata-se de uma situaçãoexplícita de reprovação. Tanto a leiturados clássicos como a glorificação danatureza são reprovados, não seencaixando na cidade naturalista.

Dentre os indícios de leitura de Caminharegistrados em suas obras,Victor Hugo épossivelmente o mais recorrente. Em

Tentação o encontramos citado comoamigo de D. Pedro II nestes termos:

E reduzido às míseras proporçõesde inválido, o segundo Alcântara,bisneto da Sra. D. Maria I,universalmente conhecido pelosseus versos ao bom povo ituano epelo seu amor às letras, que naEuropa dava-lhe foros de primeiropoeta do Brasil – o celebradoamigo de V. Hugo e das canjas doTeatro Lírico ia sulcar o Atlânticopara bem do povo e felicidade danação, desse povo que tanto oamava e dessa nação que elegovernava a meio século....(Caminha, 1979, p.56)

Nesse excerto, o poeta francês VictorHugo é citado num conjunto decaracterísticas irônicas a propósito deD. Pedro: a loucura da avó do monarca,sobretudo porque nesse capítulo doromance de Caminha as personagensdiscutem qual seria a doença domonarca e que justificaria a sua viagemà Europa, os versos do imperadorconhecidos em uma escala universalquando nem mesmo o Brasil o era e oforo de primeiro poeta do Brasil. Assim,esse fato se junta aos demais em que aMonarquia é fortemente criticada porEvaristo, que se dizia republicano edemocrata.

Em Tentação, arrolamos mais um

indício de leitura de Caminha. Trata-seda citação do nome do poeta FreitasCamargo, amigo de Valdevino Manhãesna Revista Literária. Infelizmente, comonão pudemos consultar os números darevista editada por Valentim Magalhães,não sabemos se se trata de umacaricatura, como Caminha fizera comValentim Magalhães, ou se se trata deum poeta que de fato existiu. Nashistórias da literatura brasileira nãoencontramos registro a seu respeito.

No rol de autores citados, encontramosmais um nome da literatura portuguesa.Trata-se de Ramalho Ortigão. A citaçãodo autor está relacionada com o nome deValdevino Manhães e o seu

comportamento bajulativo: "– É o quelhes digo – continuou o poeta. – QuandoRamalho Ortigão aqui esteve, no Rio, aprimeira pessoa que correu a beijar-lheos pés, foi ele, o Valdevino" (ibidem,p.72). Entre um traço e outro depermanência e modificação dos usos daleitura, os indícios de contato de AdolfoCaminha com a literatura portuguesa deseu tempo são importantes para acompreensão de sua obra. Asrecorrentes citações de nomes deautores, títulos de obras e personagens éum fato que deve ser levado emconsideração nos estudos literários. Issosó se torna evidente quando analisamoso autor como leitor, daí o nosso esforçoem fazê-lo. O último indício de leitura

encontrado deu-se em um diálogo entreEvaristo e Furtado:

No Largo de São Francisco umgolpe de ar bafejou-os deimproviso, como se saíssem de umtúnel.

– Caramba! – exclamou osecretário. – A Rua do Ouvidor àsquintas é um formigueiro! Nunca vitanta gente!

– Olha daqui... olha daqui! –insistiu o bacharel, voltando-se nomeio do largo, para a mais famosaartéria que regurgitava.

Era um espetáculo curioso. A rua

muito estreita, com seus sobradosde dois a três andares, com os seusarcos de iluminação, com as suasbandeiras, tinha um aspectomovimentado de uma pequenacópia de bulevar em dia de festa.Embaixo a massa negra ecompacta, ondulando como umaprocissão vista de longe, e umsibilar de vozes indistintas como ovago rumor de uma colmeiaalvoroçada.

– Queres que eu te diga o efeito queisso me produz, oh Furtado?

– ?

– Lembra-me o caos, o misterioso,

o incompreensível, a vertigem dosabismos... o grande nada dosheróis que dormem...

– Do vasto pampa no funéreochão! – concluiu o secretárioerguendo o braço numa poseoratória.

E fitando o bacharel:

– Estás apocalíptico, homem! Olha,não vás fazer como no JardimBotânico, onde assassinastebarbaramente, creio que o Garrettou o Alexandre Herculano...

– Pois é o que me parece a tal daRua do Ouvidor, e a comparação se

não é original, tem o mérito deexprimir exatamente o que eu querodizer. (ibidem, p.74-5, grifo nosso)

Esses dois versos que vemos citados notrecho de Tentação que destacamos sãodo poema "Quem dá aos pobres,empresta a Deus", do livro Espumasflutuantes, de Castro Alves (1960,p.81). Na primeira estrofe do poema,lemos:

Eu, que a pobreza de meus pobrescantos Dei aos heróis – aos miseráveisgrandes –, Eu, que sou cego, – mas só peçoluzes...Que sou pequeno, – mas só fito os

Andes...,Das priscas eras, que bem longevão,O grande NADA dos heróis quedormemDo vasto pampa no funéreo chão...

Os versos citados por Evaristo noromance de Caminha são os dois últimosque destacamos. É mais uma referênciaà obra de Castro Alves, pois, como jávimos, Caminha se refere ao poeta logono seu primeiro livro, ao citar os versosdo poema "Sub Tegmine Fagi", do livroEspumas flutuantes.Vemos que, naedição da obra completa de CastroAlves, o nada encontra-se grafado emmaiúsculas – NADA – diferentemente

de como o encontramos no romance deCaminha. Infelizmente, não sabemos sese trata de uma alteração feita nasegunda edição de Tentação ou se jáestava grafado desse modo em suaprimeira edição.

Vemos ainda nesse trecho citado que apersonagem Furtado relembra os versosdeclamados por Evaristo no piqueniquefeito no Jardim Botânico e o faz citandoo nome dos poetas Almeida Garrett eAlexandre Herculano sem definir, noentanto, qual deles seria o autor dosversos do poema "Solidão". Mesmo queassim o faça, vemos que Furtadotambém conhecia aqueles versos, que dealgum modo os identificara e os trouxe à

memória retomando-os numa açãofutura. Esse é também mais um exemplodo convívio da literatura portuguesanaquele final de século XIX no Brasil,convívio que já o vimos desejado entreos membros da Padaria Espiritual, daqual fez parte Adolfo Caminha.

Sétimo pacote

Na etiqueta deste pacote está escritoContos. Já deles nos ocupamos quandocitamos o trabalho de Maria LetíciaGuedes Alcoforado. Antes de falecer,Caminha preparava uma tradução doTheatro de Balzac, um livro intituladoDuas histórias, e outro intituladoPequenos contos. Também já nos

ocupamos desses contos ao tratarmos daatuação dos herdeiros de Caminha noconjunto de sua obra. Vamos, então, aoque deles ainda não afirmamos. As suaspublicações deram-se em diversosperiódicos nacionais quando ainda viviao seu autor e mesmo após a morte dele.Disso trataremos à medida que nosdetivermos em cada um dos contos.

O primeiro deles é intitulado "VelhoTestamento" e foi dedicado a Ferreirade Araújo, o proprietário do jornalcarioca Gazeta de Notícias, do Rio deJaneiro. Conto narrado em primeirapessoa, cujo narrador-personagem é umescritor, que, ao ver o busto de Virgínia,a primeira mulher que ele amara,

lembra-se de um passeio que fizera emsua companhia. Em um flashback, oleitor fica sabendo que os dois foram acavalo a um bosque onde Virginia,tomada pela natureza local, despiu-se,assim como Eva, lembrando o VelhoTestamento, daí o título doconto.Virgínia banhou-se nas águas deum tanque que havia no bosque e quandosaiu dele sentia-se mal.

Desse ponto em diante, o narrador-personagem, vendo que sua amada sópiorava, tentou entretê-la falando do quechamou de "Arte moderna":

Longe ainda de qualquer auxílio,procurei entreter-lhe o espírito,guiando-a para as belezas da Arte

moderna. – Oh, a Arte, ela nãoimaginava o que era a Arte! – Eentrei a falar nos meus artistasprediletos, narrando episódios desua vida íntima, caracterizando-osem síntese, nunca perdendo o tomfamiliar das nossas conversas.

Ela também gostava da Arte, liamuito, admirava os grandes artistascomo Flaubert, como Zola, maspreferia Gautier! o incomparávelGautier, o mestre dos mestres!"

Eram breves as nossas pausas; ela,porém, repetia de vez em quando"que não estava boa, que sentiafebre"...

– Nervoso... Qual doente! Olha, jáleste o último livro dosGoncourts?...

Vemos nesse trecho do conto a citaçãodo nome de vários autores: Flaubert,Zola, Gautier, o que liga essa leitura deVirgínia à imagem que onarradorpersonagem tinha dela aocompará-la à Mademoiselle de Maupin,personagem do romance homônimo deThéophile Gautier: "Ao vê-la nos seustrajes de amazona [...] lembrei-me daencantadora criação de Gautier naMademoiselle de Maupin" (Caminha,2002, p.21). Gautier foi um dos autoresromânticos franceses conhecidos,sobretudo, pela defesa da arte pela arte,

o que ele expressou no prefácio doromance citado antes. Nesse trecho doconto de Caminha, vemos que todos osautores citados são franceses.

De Flaubert aos Goncourts, a leitura dasduas personagens é toda de autoresdaquele país. Não podemos precisar aqual romance dos irmãos Goncourts serefere o narrador-personagem do contode Caminha, se ao Charles Damailly, de1860, ao Germinie Lacerteaux, de1865, se ao Manette Salomon, de 1867ou o Madame Gervaises, de 1869, poisnão há nenhuma possibilidade dedatação do tempo da narrativa. Mas, porsua vez, esse conto surpreende pelo fatode que Caminha pela primeira e única

vez citou um autor norte-americano:Edgar Allan Poe, quando ele não o feznem mesmo em seu livro No país dosianques. E o fez nestes termos: "A noiteestava úmida e sem luz, misteriosa comouma criação de Poe..." (ibidem). Sepensarmos que a publicação desse contofoi de 1895, talvez Caminha jáconhecesse a obra de Poe quando foraaos Estados Unidos. No entanto,Caminha não fez nenhuma referência aele ou de outro escritor daquele país.

O segundo conto é intitulado "A mão demármore", dedicado a Artur Azevedo.Segundo Sânzio de Azevedo, naintrodução que fizera para o volume decontos, ele foi publicado primeiramente

em O Album, em abril de 1893, que erauma publicação do escritor maranhense;foi também publicado em A Revista doNorte, de São Luís do Maranhão, no seunúmero 10, de junho de 1906, e depoisem O Subúrbio, de 3 de agosto de 1910,e finalmente no suplemento "Autores eLivros" número IV, do Correio daManhã, do Rio de Janeiro, em 1943.

"A mão de mármore" conta a história dopoeta Luciano, cuja amante Rosita," umaesplêndida muchacha, umaformosíssima rapariga de vinte e trêsanos, nascida em Buenos Aires,espirituosa, terna e insinuante como umfruto proibido" (ibidem, p.28), faleceutísica. Luciano a fez sepultar vestida em

trajes de Nossa Senhora de Lourdes. Onarrador que também faz as vezes depersonagem, pois é amigo de Luciano,vira sobre a sua mesa de poeta umacaixinha de veludo azul claro. Aoperguntar ao amigo do que se tratava,viu que lá dentro está uma mãoesculpida em mármore. É umareprodução da mão de Rosita, daí otítulo do conto. O extremo ciúme inicialdo poeta e o amor que sentia pelaportenha fizeram-no mandar esculpiraquela peça.

O ciúme de Luciano era tanto que lhecustava muito ouvir o entusiasmo de suaamada até mesmo pelas personagens: oSr. Armand Duval, o Sr. Conde de

Camors ou o Sr. Primo Basílio. Vemosaí que as personagens de A Dama dasCamélias, de Dumas Filho, de O condede Camors, de Octave Feuillet, e Oprimo Basílio, de Eça de Queiroz, sãovistos como" gente", até mesmo foiusado o pronome de tratamento – Senhor– para referir-se a eles. Nesse caso,permanece o diálogo de Caminha com asliteraturas portuguesa e francesa, o que,de fato, prepondera nos seus indícios deleitura.

Já neste capítulo aludimos ao terceiroconto da coletânea em causa. Trata-sede "O Minotauro". Por já termos nosocupado de suas edições, atemo-nos, deagora em diante, no seu enredo e nos

indícios de leitura que neleencontramos. Esse conto narra a históriado casal Cipriano Gouveia e Nicota, quemoravam retirados da cidade do Rio deJaneiro, no bairro do Engenho Novo,pois "Cipriano não gostava de ruídos,detestava os centros populosos, otumulto das ruas: nascera para osilêncio, para o amor discretoextramuros, sub tegmine fagi, para aquietação estagnada dos subúrbios"(ibidem, p.32). Já podemos destacaraqui o retorno a um indício de leituraconstatado anteriormente: tratase dacitação em latim – sub tegmine fagi –traduzido por nós livremente como"debaixo de uma frondosa faia", queencontramos como título do poema de

Castro Alves em que o poeta Vitor Hugoé chamado de "– Mestre do mundo! Solda eternidade!...".

De fato, esta expressão em latim é partede As bucólicas, de Virgílio, e maisespecificamente do verso "Tityre, tupatulae recubans sub tegmine fagi"(Novak & Neri, 1992, p.10).22 Oconteúdo do conto de Caminha liga-se,desse modo, ao poema de Castro Alves(1960, p.100), que se inicia com osseguintes versos: "Amigo! O campo é oninho do poeta.../ Deus fala, quando aturba está quieta", e, por sua vez, liga-seà poesia latina clássica de Virgílio aquem Castro Alves faz referência aocitar como epígrafe parte de um verso:

"Deus nobis haec fecit" (Novak & Neri,1992, p.10),23 também de As bucólicas.Cria-se, desse modo, uma triangulaçãode referências na obra de Caminha: opróprio autor, Castro Alves e Virgílio.Esse fato também aponta para ocruzamento de tempos de escritadiferentes, reunidos pela prática daleitura a favor da escrita. Ainda nesseconto, temos uma referência à leitura doRocambole:

Embirrava solenemente com a ruado Ouvidor, por onde nem sequerpassava ao voltar da repartição,odiava os botequins, revoltava-secontra o dandismo que sacrificabem-estar e fortuna por uma noite

de teatro ou por um fato novo:preferia viver obscuro e tranqüilomais a Nicota em qualquer lugarejofora da cidade, lendosistematicamente o seu romancepredileto nas horas vadias (eraassinante do Rocambole emfascículos), ouvindo tocar piano ouentão cuidando carinhosamente dassuas flores e dos seus canáriosbelgas. (Caminha, 2002, p.32)

Vemos que mais uma vez a referência àleitura de uma obra da literaturafrancesa, pois, como sabemos, e járeferimos neste estudo, o Rocambole ouAs aventuras do Rocambole foi escritopor Posson de Terrail. Mas qual o

drama desse leitor de Terrail? Ciprianopretendia levar uma vida calma,afastada de toda movimentação da corte,sobretudo resguardando a mulher dasgarras de algum minotauro, daí o títulodo romance. No entanto, apareceu LuizBandeira, "um rapagão bem apessoado,que enriquecera nas pagatinas da Bolsa,à força de transações vergonhosas;sujeito metido a amador de cavalos, comfumaças de fidalgo e fama deinteligente", que era seu amigo.

Será esse sujeito, também conhecido porLulu, que trará para a vida do casalalguma possibilidade de traição. Játendo conquistado a mínima confiançade Nicota, que em princípio não

simpatizava com ele, Lulu pediu umbeijo à esposa de Cipriano. O conto éconcluído com Nicota dando o braço aLuiz, sem no entanto haver a certeza datraição ao marido. Esse caminha nafrente deles resignado como um mártir,segurando o lenço em pontas na cabeçapara não se constipar" (ibidem, p.35).

Um diálogo entre Cipriano e Luiz sobreo que fazer com a mulher adúltera trazpara a vida do casal o tema da traição. Énesse debate que vemos novamente oindício da leitura da peça Otelo e dapersonagem homônima de Shakespeare.A esse respeito afirmou Luiz:" – Perdão,eu não quero coisa alguma, o que euquero é provar-te que Otelo, esse

personagem medonho, esse tigreciumento, não existe – é uma mentiradramática, uma ficção shakespeareana e,se quiseres uma exceção na vidaconjugal" (ibidem). Como vimosanteriormente, Otelo, de Shakespeare,fora citado no romance Bom-Crioulo,cuja publicação é de 1895. A primeiraversão desse conto foi publicada em1893, portanto dois anos antes daqueleromance. O que nos permite inferir que,já nesse conto, Caminha projetava apossibilidade de usar o ciúme comotema de ficção.

Há, porém, ainda nesse seu conto umaligação com o seu romance de estreia: Anormalista, pois, como já vimos, é nele

em que encontramos uma referência aolivro Fisiologia do casamento, aliatribuído a August Debay e não aBalzac. Vejamos o que diz a personagemLuiz Bandeira na versão do contopublicada na Gazeta de Notícias de 27de janeiro de 1894, e que traz como datade escrita o dia 7 de abril de1893: "LêBalzac (A Fisiologia do matrimônio) ehás de convencer-te de que ahumanidade se transforma n'um colossalminotauro, espécie de Medusa comcabeças de touro..." (ibidem, p.102). Naversão do mesmo conto publicada com adata de julho de 1893, lemos: "LêBalzac (Fisiologia do matrimônio) econvencer-te-ás de que a humanidade,desde o primeiro pai, tem sido e será

sempre um eterno e colossal minotauro,por isso mesmo que é instintivamentepolígama" (ibidem, p.96). Na versãodesse conto, publicada em dezembro de1905, ano V, número 4 de A Revista doNorte, lemos:

– Lê Balzac, se te queresconvencer, procura a Fisiologia domatrimônio, que dizem ser oresultado de longa experiência, everás que a humanidade, desde oprimeiro pai, tem sido e serásempre um eterno e colossalminotauro, por isso mesmo que éinstintivamente polígama. (ibidem,p.35)

Vemos que, em todas as versões

apresentadas, o autor manteve areferência ao livro de Balzac, apesardas modificações que podemosconstatar. Já a esse livro de Balzacfizemos referência ao tratarmos dosindícios de leitura encontrados noromance A normalista. Mas também jávimos que o começo da escrita desseromance deu-se ainda em Fortaleza,quando o primeiro capítulo fora lido emuma das fornadas da Padaria Espirituale comentado entre os Padeiros comoconsta no número 2 de O Pão, de 30 deoutubro de 1892. A data de 7 abril de1893 chama-nos atenção se comparadoao ano de publicação de A normalista:também 1893. Se Adolfo Caminhaescreveu a primeira versão do conto

antes do romance, cometeu o erro deatribuir a Debay um livro de Balzac, sepublicou o romance antes do conto,procurou corrigir o seu engano, uma vezque ele não se repete nas versõesanteriores de "O Minotauro".

Desse modo, constatamos uma rede deindícios de leitura permeando a obra deCaminha, seja uma rede entre textos deum mesmo gênero ou entre textos degêneros diferentes como é esse o casoentre o conto e o romance. Assim,percebemos a participação ativa daleitura na formação da escritura, o quevai constituindo além de laços entre ostextos a ligação entre ler e escrever emum desenvolvimento contínuo formado

por movimentos de permanência emodificação, pois os mesmos títulos sãomantidos, porém os seus conteúdosusados de forma diferente em ambos oscasos, adaptando a matéria lida àmatéria escrita. Um jogo entre ler eescrever se estabelece no centro da obrade Caminha. Um jogo de objetivos, umjogo de práticas, o que denota uma obraem formação constante. Portanto, bemdiferente de fórmulas prontas comoparecia ser caro aos autores naturalistas.

Para finalizar, destacamos o fato quetrês desses contos foram publicados comtítulos diferentes. "Na coletânea de2002, Trata-se dos contos No convento",publicado, como informa Sânzio de

Azevedo, por R. Magalhães Júnior em Oconto do Norte, de 1959, com o título de"O noviço". No entanto, esse conto forapublicado na Gazeta de Notícias, doRio de Janeiro, no dia 25 de janeiro de1894, com o título de "Páginaesquecida", dedicado a Ferreira deAraújo, que era o proprietário doperiódico. O outro conto publicado,também na Gazeta de Notícias, foi "Osermão", que figura nessa coletânea de2002 com o título de "Joaninha". Noperiódico carioca ele foi publicado nodia 5 de abril de 1894. Por último,temos "Amor de fidalgo" publicado em1905 no número 2 de A Revista doNorte com o título de "Fidalgo". Éimportante atentar para o fato de que as

alterações dos títulos deram-sesobretudo após a morte do seu autor,como vimos, o que caracteriza umaatuação dos sujeitos que já chamamos deintermediários na relação entre a obra eos leitores.

Nos demais contos não encontramosmais nenhum indício de leitura, portantoencerramos aqui o arrolamento queprocedemos, acreditando que aatividade da leitura colabora com aescrita, o que nos dá mais recursos paraconhecer a atuação de Adolfo Caminhacomo um polígrafo. A seguir, iniciamosuma outra etapa dessa coleta deindícios, porém, nela, não nos valemossomente do método indiciário, mas

agregamos a ele alguns recursos dacrítica textual na abordagem dos textosde crítica publicados, primeiramente, naGazeta de Notícias, portanto no suportejornalístico, e, em seguida publicadosjunto de mais dez outros artigos nossuporte livro. Vamos então a essasegunda etapa.

Adolfo Caminha, autor-leitor de si ou as cartas nãomentem jamais (só quandopreciso)

La forme de l'objet écrit engouverne le sens, que le passage à

l'imprimé n'est pas que la simplestransposition d'un manuscrit dansun code conventionnel, mais unesémiologie, que la typographye estune énonciation, et que sespossibilités expressives imposentdes protocoles de lecture.

(Vachon, Le cas Balzac écrivain-éditeur, 2002, p.50)24

Ainsi, s'il y a pour l'ecrivaindiverses façons de penser le livreà partir de l'écrit diverses façonsde penser le livre à partir del'écrit, de se projeter dans le futurde l'imprimé et d'en négocier lesconséquences dans le manuscrit, y

a-t-il de même, pour le critique,plusieurs disciplines á considererpour rendre comte du passage del'un à l'autre. Histoire de l'écrit etdu livre, génétique textuelle,sociocritique, psychanalysepeuvent être convoquées pourtenter de comprendre lesréponses, nécessairementsingulières, données par lesécrivains à ce sujet.

(Reid, George Sand : l'art et lemétier, 2002, p.59)25

Ausência-presença do autor-leitor desi

Se nas histórias das literaturas osautores não costumam ser pensadoscomo leitores de outros autores, éigualmente incomum o fato de elesserem apresentados como leitores de simesmos. Os indícios desse tipo deleitura são algumas vezes registrados emestudos feitos a partir dos pressupostosda crítica genética ou da crítica textual.Para a crítica genética, a matéria-primaé o manuscrito e, mais precisamente, asrasuras encontradas nele, uma vez que oseu objetivo é compreender o processoque deu origem ao texto, daí o uso dotermo genético. No caso dos estudos decrítica textual, que também lidam com omanuscrito, o valor deste parecerelativizado: "O original, no sentido

material do termo, pode ser escrito pelopróprio autor (autógrafo) ou escrito sobo controle direto dele (idiógrafo)"(Paggiari & Perugi, 2004, p.19). Acrítica textual considera também ascópias feitas do manuscrito, sobretudoquanto esse se perdeu: "Quando ooriginal se perdeu, e só temos as cópiasdele, manuscritas ou impressas quesejam, o conjunto das cópias indica-secomo tradição, formada portestemunhos: cada um, de fato,testemunha do original perdido, etransmite uma cópia dele" (ibidem).

Nesse sentido, dialogamos com a críticatextual, considerando que as cópiasimpressas são tradições do texto

manuscrito, uma vez que não temos osseus originais, ou seja, os manuscritosdos textos críticos de Adolfo Caminha.No entanto, temos os artigos impressosno jornal Gazeta de Notícias e naprimeira edição em livro. Interessou-nos, destacadamente, o processo depassagem de um suporte a outro,considerando o que afirmou StéphaneVachon a propósito da forma do objetoescrito governando ao menos em parte oseu sentido. Transpor o texto domanuscrito para o impresso, e napassagem para impressão alterá-lo,parece-nos haver implicaçõesimportantes e como tal merecem serverificadas e problematizadas.

Esse fato nos fez questionar os motivospossíveis das alterações. A nosso ver,foi nessa passagem de um suporte aoutro que Adolfo Caminha alterou osseus textos críticos, colocando-se comoautor-leitor de si mesmo. Além, é claro,de procurar conservar uma edição queele considerava como a correta, a ideal.Adolfo Caminha se apresentou tambémcomo editor dos seus próprios artigos. Otrabalho comparativo entre essasedições trouxe à tona as alteraçõesrealizadas por Caminha. A primeiraalteração está ligada diretamente àcategoria autor, uma vez que, aopublicar os seus textos críticos naquelejornal carioca, Caminha os assinou comas iniciais trocadas, ou seja, C. A. em

vez de A. C como deveria ser. Somentena edição em livro Caminha reconheceua autoria de seus textos assinando olivro Cartas literárias com o seupróprio nome, assim como fizera com osseus livros anteriores. Esse fatoapresenta-se-nos de capital importânciapara o presente estudo. Essa delegaçãode autoria por meio do uso da assinaturainvertida tem ainda mais importânciaquando sabemos que os autógrafos deescritores passaram a valer dinheiro,como lemos a seguir:

Publicaram-se há pouco os preçoscorrentes dos autographos dealguns homens célebres:

Uma carta de Zola, vale ......5

francosUma carta de Dumas filho...4francosUma carta de Ed. Goncourt ...4francosUma carta de Rochefort...... ...4francosUma carta de Ludovic Halevy 2francosUma carta de Jules Claretie.....2francosUma carta de Maupassant........6 a 8francosUma carta de Guizot................8francosUma carta de Jules Fabre ........5francosUma carta de Littré .................5

francosUma carta de Nodier................4francosUma carta de Victor Hugo.......6francosUma carta de Chateaubriand....4francosUma carta de Delavigne...........5francosUma carta de Lamartine.......... 6francosUma carta de Barbeyd'Aurevilly....10 a 12 francosUma carta deBalzac........................10 a 12francosUma carta de Flaubert.....................4 francos

Uma carta de Leconte DeLisle........2 a 3 francos

Os actores e actrizes celebres deFrança tambem estão baratos. Sebem que uma carta de Rachel valha15 ou 20 francos, já por 5 ou 6francos se obtem um bem bomCoquelin senior, e por 3 a 5francos excellentes Théos,Samarys, Graniers, Réjanes,Bartets, Montalands, Galli-Mariets,Du Minits, Krausses e JeannesHadings.

Essa matéria foi publicada na seção"Novidades Artísticas" do jornal Gazetade Notícias, do Rio de Janeiro, no dia24 de novembro de 1893, no mesmo dia

em que Adolfo Caminha teve publicadaa sua "Carta literária II", ou seja, nomesmo dia em que ele delegava aautoria do seu texto a um outro sujeito,ou seja, C. A., supostamente ele leu queo autógrafo de vários homens de letras,muitos deles faziam parte de suasleituras como pudemos constatar naprimeira parte deste capítulo, tinha valormonetário. O autógrafo de Balzac era umdos mais valiosos – 10 a 12 francos –justamente Balzac, cuja obra servira deepígrafe ao romance A normalista(Cenas do Ceará). Das leiturasrealizadas por Caminha vemos nessalista de autógrafos os nomes de Zola,Dumas Fils, Edmond de Goncourt,Maupassant, Victor Hugo, esse inúmeras

vezes citado por ele, Chateaubriand,cujas obras lhe serviram para conheceros Estados Unidos, Lamartine, cujoromance Raphaël fora citado emLágrimas de um crente e, por último,Flaubert. Mas, naquele momento de suaprodução ficcional, delegar a autoriafoi, possivelmente, o menor valor aperder. Para Adolfo Caminha erapreciso, sobretudo, defender a suaficção da acusação que lhe foraimputada: a de romance imoral.

O fato da assinatura invertida pode serjustificada por ser a primeira Cartaliterária uma defesa do seu romance deestreia: A normalista, à época acusadode imoral. Não havendo quem o

defendesse, Adolfo Caminha entrou emcena a favor de si próprio, porém,resguardando-se nas iniciais invertidasde seu nome, o que fez que AlceuAmoroso Lima (1934a) atribuísse essestextos a Constâncio Alves ou aCapistrano de Abreu, que à épocamilitavam na crítica carioca. A primeirahipótese foi desconsiderada:

Facil foi também certificar-me deque não fôra o sr. Constancia [sic]Alves o autor das Cartas. Havia,aliás, na própria abundancia, porvezes superflua, embora nuncaforçada nem espessa, das cronicas,qualquer cousa que não dizia com oestilo elítico e a ironia discreta do

cronista que Rodolpho Dantasrevelara. (ibidem, p.93)

Aliás, era comum a confusão entre ostextos de Constâncio Alves e Capistranode Abreu como podemos constatar notrecho citado a seguir:

Capistrano assignava, por vezes, C.A. Tanto assim que, estando o sr.Constâncio Alves ausente em SãoPaulo, publicou Capistrano, nessamesma época, e com aquelasiniciaes, um artigo sobre Pedro II.E, não desejando, o seu homonimoem iniciaes, desconcertar o diretorde outro jornal, a quem se recusáraa colaborar, de São Paulo,escreveu à redação do jornal, onde

aparecera o artigo de Capistrano,declarando não ser de sua lavra oartigo sob as inciaes C. A. (ibidem,p.93)

Ainda assim, a hipótese da autoria serde Capistrano de Abreu era a mais forte:

Primeiramente, a informação decontemporaneos que atribuiam aCapistrano as referidas Cartas, naépoca, aliás, muito faladas.

O têor das Cartas revelava seremescritas por pessoa do Norte,cearense, homem culto,contemporaneo do movimentonaturalista, e que revelava grandeindependencia e isenção de animo.

Tudo isso ia a calhar emCapistrano. (ibidem, p.94)

Somente a edição em livro das Cartasliterária, em 1895, desfez a dúvida deAlceu Amoroso Lima (1934a, p.96)quanto à autoria daqueles artigospublicados na Gazeta de Notícias: "Aprova indiscutível é que AdolphoCaminha, em 1895, reuniu em umpequeno volume essas cronicas daGazeta e outras anteriores, em diversosjornaes, sobre o proprio titulo que déraàs da Gazeta (Adolpho Caminha –'Cartas Literárias' – Typ. Aldina, Rio,1895)". E Amoroso Lima foi maisadiante em suas considerações, tratandodas alterações que ele constatou na

passagem de um suporte ao outro dosartigos: "É muito curioso, aliás,observar como ele alterou habilmente acronica sobre a Normalista, afim deatenuar o elogio em boca própria"(ibidem). Na opinião de Lima, cumpria-se, desse modo, a hipótese que eleconsiderara a mais improvável: "Vejoagora que a hípotese [sic] maisinverossímil era a verdadeira". Tinharazão Boileau: – 'le vrai n'est pastoujours vraisemblable'" (ibidem).26

Estudo comparado das edições dasCartas literárias

Segundo Alceu Amoroso Lima, AdolfoCaminha alterou a primeira Carta

literária. Partindo dessa afirmação,consideramos que os demais artigostambém foram alterados por ele. Assim,interessou-nos conhecer as alteraçõesrealizadas, o que resultou em um estudocomparativo das edições. O quedemonstramos nas seções seguintes éuma leitura do conjunto das alteraçõesconstatadas em cada uma das cartas. Deum modo geral, elas podem serdivididas quanto ao efeito físico notexto: alterações de supressão ealterações de acréscimo. Há tambémalterações conceituais, ou seja, aquelasque mudam o sentido de afirmações econsiderações feitas pelo crítico. Nemtodas as cartas renderam consideraçõesabundantes, sobretudo no caso daquelas

em que preponderam as alterações deefeito físico. Neste estudo comparativonão deixamos de considerar ascontribuições do método indiciáriocomo o definiu Carlo Ginzburg e de quejá nos valemos na primeira parte dopresente capítulo. Desse modo,consideramos que cada modificaçãoconstatada é um indício da leitura queAdolfo Caminha fizera de seus própriostextos, daí o título desta segunda partedo presente capítulo. Nos comentáriosutilizaremos as siglas EGN para aedição da Gazeta de Notícias e EL paraa edição em livro das Cartas literárias.

"Cartas literárias I"

A primeira Carta literária foi publicadaem três dias – 13, 14 e 15 de novembrode 1893 –, na Gazeta de Notícias, doRio de Janeiro. Logo abaixo das iniciaiscom que assinara as duas primeiraspartes – C. A. – consta a expressão"(continúa)", entre parênteses. Noreferido jornal, as Cartas literáriaseram, via de regra, publicadas naprimeira página, o que já denota a suaimportância, uma vez que essa era umadas páginas mais importantes doperiódico. Das oito ou nove colunas daprimeira página, os textos críticos deAdolfo Caminha ocupavam duas colunasque se iniciavam logo abaixo docabeçalho. No estudo comparado dastrês parte constatamos 88 alterações que

se encaixam naqueles tipos quedefinimos.

É nela, possivelmente, que também estãoas alterações mais importantes. Pois,reconhecida a autoria do texto crítico,Adolfo Caminha, a fim de retirar dele oautoelogio, diminuiu o uso de adjetivos.É como se saísse de cena o crítico paraentrar o autor. Trata-se da passagem deum eu-crítico para um eu-autoral, o quefaz que o artigo tome um aspecto demetalinguagem. As consideraçõesiniciais do artigo levam o seu leitor atomar conhecimento dos anostumultuados do governo do presidenteFloriano Peixoto.

Uma característica dessa passagem de

um suporte ao outro é a preocupaçãocom a palavra, sobretudo na atualizaçãoque fizera da grafia, tornando a línguaportuguesa muito mais próxima do modobrasileiro do que do português.Suprimiu o uso do apóstrofo, das letrasduplas como no caso de gg, ll, mm, pp.,porém mantendo-as em alguns casos.Suprimiu também o uso da ênclise emfavor da próclise na colocação dospronomes. Suprimiu também as letrasmudas como no caso do c em auctor,conjuncto, inedictas, mas a conservou,por exemplo, em redactor e actual. Parteimportante das modificações realizadastem como objetivo corrigir o textopublicado no jornal, garantindo que aversão em livro estivesse melhor do que

a primeira, o que nem sempre seconfirma, talvez não por ação dele, masde diagramadores. Certamente, Caminhaacreditava que o texto, publicado emlivro, não se perdesse tão facilmentecomo seria de esperar no suporte jornal.

Como, porém, já temos afirmado, aprincipal característica desse texto estáno fato de Caminha, resguardado pelasiniciais invertidas de seu nome, poder sedizer. Disso resulta o reencontro entre oautor e o leitor, o leitor de si mesmo,retomando assim a categoria autor daqual aqui temos nos ocupado. Assim,não faltam manifestações de crença nasua capacidade de escrever e,consequentemente, na qualidade de sua

obra. Primeiramente, diz ser AdolfoCaminha "um moço desconhecido" quepublicara "sem estardalhaço nemexageradas pretensões" o seu romancede estreia. Desse modo, Caminha nãosomente se qualifica como um autoriniciante, mas também como um autordespretensioso, fazendo da modéstia umrecurso de convencimento do leitor, umavez que se tratava de uma autodefesa. Éimportante destacar também que foinessa única carta que Adolfo Caminhadirigiu-se diretamente ao redator dojornal usando para isso o vocativo, queele conservou nas duas versões doartigo: Sr. redactor, na primeira, e Sr.Redactor na segunda versão.

Outro fenômeno que constatamos nessacarta é a modificação na grafia depalavras como arte e verdade, queaparecem na edição em livro com asiniciais maiúsculas – Arte e Verdade –em vez de minúsculas como na ediçãoem jornal, o que as torna significativasde uma compreensão que o autor tinha enão registrou na versão em jornal e o fezem livro. Com esse indício podemosconjecturar que, para Adolfo Caminha,essas palavras tinham uma valoraçãoincomum, o que faz delas conceitos comos quais trabalhava ou dos quais partiupara analisar o que lhe interessava epromover juízos de valor. A primeiraocorrência desse fato deu-se para tratarcom ironia da relação entre os

simbolistas e os naturalistas:

Oh! os Novos, os incompreendidos,os nephelibatas, os independentes!Estava desmanchada acarangueijola de Zola, de Flaubert,de Daudet, dos Goncourts... de todaessa velha legião de fanaticos daVerdade. Fóra o Naturalismo comas suas tintas d'après nature, fóra asciencia torturada e falsa doromance realista, fogo nodocumento humano, sombrio edesolador! (Caminha, 1895, p.72,grifo nosso)

Vemos que a palavra Verdade é usadapara referir-se aos naturalistas e a umprocedimento deles no tratamento com

as relações entre a linguagem e arepresentação literária. À crençanaVerdade juntava-se a crença naciência como podemos constatar logoparágrafo seguinte a este: "A sciencianão resolve o problema da vida,proclamava-se" (ibidem). Mais uma vezo tom de ironia de mantém.Vemos, dessemodo, que a alteração realizada porCaminha foi necessária a fim deexpressar a sua crença nos seus critériosde análise. O uso de iniciais maiúsculasem vez de minúsculas reforça a crençaem um sistema de conceitos advindos donaturalismo e do positivismo, queCaminha talvez apreendeu em suaformação militar e desenvolveu em suaatuação como homem de letras.

A segunda ocorrência encontramos oregistro da palavra arte com inicialmaiúscula – Arte –, o mesmo não ocorrecom a palavra verdade. Ainda assim éimportante considerar essa modificaçãopelo conteúdo que veremos no parágrafocitado a seguir:

Essa aristocracia que se pretendecrear na arte, não consultando aintellectualidade da maioria,redunda num monopolio odioso eincoherente. Odioso, porque oartista que se destaca do sentirpopular, da alma dos simples porum zelo calculado e vaidoso, nãoconsegue senão provocar aantipathia geral; incoherente,

porque a verdadeira Arte é aexpressão natural e espontanea daverdade, e desde que o artistasacrifica este principio, soberano eeterno, por amor de ephemerasconquistas, elle contradiz a suaindole e deixa de ser sincero.(ibidem, p.79, grifo nosso)

Encontramos ainda uma outraocorrência:

Precisamos ser mais justos naapreciação dos livros nacionaes. Alitteratura brazileira contapouquissimos cultores do romance,genero difficil na verdade,exigindo, em primeiro ogar, umaperfeita e elevada concepção da

vida e da Arte, qualidade esta quenão é facil encontrar entre osnossos escritores maisapplaudidos. (ibidem, p.87. grifonosso)

Esses dois conceitos presentes na obrade Caminha devem ser considerados nacompreensão de sua atuação crítica, oque faremos no capítulo específico.Constatamos também outro fato: naedição em livro, a linguagem deCaminha é bem menos assertiva do quena edição em jornal, transformandoafirmações em interrogações comoconstatamos nos parágrafos 58o e 81o.Há também uma economia no uso defiguras de linguagem, destacadamente

nas hipérboles como constatamos no 41o

parágrafo. Feitos esses comentários,passamos para o estudo comparativo-analítico da segunda carta.

"Cartas literárias II"

Das doze cartas publicadas em jornal eposteriormente em livro, a segunda foi aque resultou no menor estudocomparativo-analítico. Esse fato sejustifica porque após o 32o parágrafo otexto em jornal está ilegível. Parte dasmodificações encontradas nesse artigoestão presentes também no artigoanterior, o que significa dizer queAdolfo Caminha procurou uniformizaros seus artigos, ainda que em alguns

casos não o tenha conseguido. Napassagem do jornal ao livro, Caminhaacrescentou uma nota de rodapé,esclarecendo que os romances do doutorFerreira Leal aos quais ele se referiameram Supplicio de um homem e Umhomem gasto. Esse fato demonstra ocuidado que teve Adolfo Caminha aotranspor o texto de um suporte ao outro,procurando dirimir dúvidas eventuais.Assim, concluímos a análise dessa carta.

"Cartas literárias III"

Parte das alterações constatadasanteriormente permanecem nessaterceira carta. Entre elas a alteração dearte para Arte a que já referimos. No

segundo parágrafo, por exemplo, AdolfoCaminha procurou deixar claro osnomes de autores, que constavam deforma abreviada como J. Lemaitre, G.Ohnet e passaram a constar como JulesLemaitre e Georges Ohnet. Caminhatambém sofreu a tendência a tornar-semais econômico nas afirmações e menosenfático em seus juízos de valor,sobretudo no que dizer respeito ao usode adjetivos. No 17º parágrafo, apareceuma outra alteração conceitual. Nele,Caminha usa o termo "dynamização daphrase", que na edição em livro aparecegrafada em itálico, transformando otermo em um conceito. Outro fato quevale ser destacado e que já indicava queuma segunda edição dos textos em jornal

sofreria modificações pode serconstatado em um parágrafo ao final dotexto publicado em jornal no qual se lê:

Para que ninguém ande a descobrirverdura em meus conceitos, devorectificar alguns enganos derevisão que escaparam no final dasegunda carta. Assim, em vez de"cantor" do Cortiço, leia-se "auctordo "Cortiço; em vez de as " fontesdejornalismo", escrevi "as portasdo ornalismo".27

Assim, percebemos que Adolfo Caminhaescrevia os artigos e os relia após a suapublicação, justificando, desse modo,tratá-lo como autor-leitor de si mesmo.

A atenção para com o que escrevia semostra nessa breve nota e coloca emcena o trabalho do revisor como maisum dos intermediários do texto.Passamos, então, aos comentários daquarta carta literária.

"Cartas literárias IV"

Essa carta traz alterações tãoimportantes quanto as anteriores.Publicado em jornal no dia 19 dejaneiro de 1894, nela encontramos noterceiro parágrafo mais uma alteraçãoconceitual. Na EL, Adolfo Caminha usao termo "jacobinismo em arte" parareferir-se ao que chamou na EGN de"grey revolucionaria dos que pretendem

arrazar tudo para reconstruir". Comosabemos, os jacobinos ficaramconhecidos como o gruporevolucionário mais radical e atuouentre 1793 e 1794, quando se desfez aSociedade dos Amigos da Constituição,que se reuniam na biblioteca doconvento dos Jacobinos da Rue Saint-Honoré, daí o nome com o qualpassaram à história (Furet & Azouf,1989, p.764-5). Assim, Caminha osutilizou a fim de referir-se aos críticosque considerava como mais radicais eextremistas. Ainda nessa carta,constatamos vários desmembramentosde parágrafos, como o 19o, 20o e 21o.Esses não são somente desmembradoscomo sofrem alteração de acréscimo no

conteúdo. O mesmo vemos em relaçãoao 30o, 31o, 32o, 33o parágrafos emque Caminha insere um trecho do livroem causa como que incentivando a sualeitura.

De todas as alterações constatadas,porém, a mais importante talvez seja aque diz respeito ao fenômeno ligado àquestão do reconhecimento da autoriados textos em que o eu A. C. deu lugarpelos motivos que citamos ao eu C. A. eestá relacionada diretamente àpossibilidade de dizer-se e de fazer usodos adjetivos em causa própria. No 34oparágrafo dessa carta lemos na ediçãoem jornal:"A palavra eu repugna ao bomsenso e produz um feito detestável,

quando sai da bocca ou da penna de umhomem inteligente para elogiar a siproprio. Torna-se ridiculo quemdisesse: – Eu sou um bello talento!Mesmo que fosse um gênio". Já naedição em livro lemos: "O pronome eu,este anthipathico pronome que anda naboca dos vaidosos, repugna ao bomsenso e produz um effeito detestávelquando sae da penna de um homeminteligente para elogiar a si proprio".

Ao retirar dos seus textos críticos,notadamente daquele primeiro, oselogios em boca própria, expressão essausada por Alceu Amoroso Lima,Caminha mostrou-se coerente com o queafirmou nessa carta. Essa coerência a

respeito do fazer literário encarado peloponto de vista de um crítico é umexemplo da consciência que ele tinha dasua atuação em ambas as áreas. Dessemodo, o eu autoral e o eu críticofundidos na figura do autor-crítico foinesse texto trazido à cena do fazerliterário, percebido de um modo maisamplo. Na edição em livro, percebemosque Caminha procura ser maisespecífico quanto à designação dotermo. Ele passou do genérico palavrapara a categoria sintática pronome,repetindo-o uma vez ao designá-lo comoantipático. Passamos, então, à quintacarta.

"Cartas literárias V"

Apesar de 45 alterações constatadas,não encontramos registros significativos.Como se trata da carta em que AdolfoCaminha referiu-se aos editores, ele osnomeou diretamente, tornando claro dequem se ocupava, como constatamos no15º parágrafo. Constatamos também ouso da inicial maiúscula ao referir-se àarte. As abreviaturas de nomes deautores na edição em jornal sãodesfeitas na edição em livro, a fim,certamente, de tornar claro a quem sereferia e a fim, ainda, de restituir o nomeoriginal dos escritores – um exemplodesse fato encontramos no 24ºparágrafo. Ao final do artigo publicadono jornal lê-se: "Rio, março, 1894". Naedição em livro lê-se: "Rio, 1894".

"Cartas literárias VI"

Assim como fizera antes, Caminha reduza adjetivação no seu texto, trocando"magnífico" por "belo", no primeiroparágrafo; o mesmo constatamos no 12ºparágrafo ao trocar" toda a miseriahumana" por "a miseria humana". O 13ºe o 22º parágrafos ganharam notas derodapé, o que denota a preocupação deAdolfo Caminha pelos seus leitores,esclarecendo questões e inserindo dadosque não constavam na edição em jornal.Ao final da EGN, lê-se:" Rio, abril,1894"; na EL lê-se" Rio, 1894".

"Cartas literárias VII"

Na passagem dessa carta do jornal para

o livro, constatamos 45 alterações.Assim como nos artigos anteriores,Caminha é menos afirmativo ou tende arelativizar as suas afirmações, comoconstatamos no primeiro parágrafo emrelação aos Contos fora da moda, deArtur Azevedo. Na edição em jornalreferese ao autor como "é já uma glorialitteraria". Na edição em livro afirmou:"é já o que se chama 'uma glorialitteraria'".Vale destacar o uso dasaspas, o que deu a entender que Caminhafazia uso de uma expressão que não erasua ou cujo uso corrente ele utilizava,trazendo para seu texto o discurso deoutros mesmo que não os identificando.Na EL suas afirmações são mais severase Adolfo Caminha as fez inserindo

trechos que não constavam na EGN. Porexemplo, no segundo parágrafo,aparentemente a fim de melhor compor oretrato que pintou de Artur Azevedo,acrescentou: "ensinando a collocaçãodos pronomes, o emprego daspreposições". Foi assim que, paraAdolfo Caminha, Artur Azevedopareceu um "velho mestre-escola deférula em punho leccionando portuguez erhetorica á mocidade daquelle tempo".

Caminha também inseriu informaçõesem seu artigo na EGN, como títulos deobras, apostos explicativos. De ummodo geral, na EGN foi bem maisirônico com Artur Azevedo, comopudemos constatar no 11º parágrafo.

Esses são os comentários do queachamos mais significativo em termosde alterações que constatamos no artigoem causa. Agora, passamos ao artigoseguinte.

"Cartas literárias VIII"

Nessa carta, as alterações que AdolfoCaminha realizou em grande parte sãoalterações na grafia, que ele procurouem certa medida atualizar, bem comoalterações na pontuação afim de garantiro sentido originalmente desejado. Essefato demonstra a atenção de Caminhapara com a língua portuguesa. Se naEGN o uso da vírgula, por exemplo, nãofoi feito de modo correto, na EL,

Caminha foi mais criterioso comoconstatamos no 16º, 21º e 22ºparágrafos.

"Cartas literárias IX"

Também nessa nona carta literária,Adolfo Caminha reviu o uso da vírgula,como o fizera na carta anterior. Oprimeiro, o oitavo e o 17º parágrafossão exemplos desse fato. De modo geral,as alterações constatadas são desse tipoque destacamos. No final do artigo daEGN, lê-se: "Rio, junho de 1894"; na ELlê-se: "Rio, 1894". Assim, passamos aoscomentários das alterações da próximacarta.

"Cartas literárias X"

Nesse artigo, uma alteração para a EGNdemonstra que Adolfo Caminha refletiua respeito da natureza da literatura. É oque constatamos no segundo parágrafo,em que lemos: "A literaturapropriamente dita é um gênero especialque não vae até ao ecletismophilosophico". Essa afirmação,certamente motivada pelo fato deCaminha analisar o livro A nova escolapenal, do jurista Viveiros de Castro, nãoexistia na EGN. Trata-se de umaalteração conceitual importanteacrescida no momento da passagem deum suporte ao outro, o que significa queessa passagem de suporte foi também ummomento de passar os seus conceitos emrevisão, como o fizera, por exemplo,

como os conceitos de Arte e Verdade,como já destacamos. O "ecletismophilosophico" a que se refere AdolfoCaminha foi motivado por estar eleocupando-se de uma obra jurídica, daítambém o título do seu artigo: "Entreparênteses". O uso da vírgula podetambém ser constatado nas alteraçõesdesse artigo, como no oitavo parágrafo.Na EGN, Caminha também enxertaafirmações que não víamos na EL comoconstatamos no já citado oitavoparágrafo:"Falla com sinceridade e istojá é uma bella recommendação". Se emartigos anteriores Caminha fundiuparágrafos ou os desmembrou, nesseartigo ele inseriu na EGN um parágrafoafim de deter-se mais na natureza do

trabalho dos juristas. Assim, no 11ºparágrafo lemos: "Mas, o Brazil é umpaiz novo e converia desde já irseleccionando o calão nacional paramais facilidade dos futuroscriminalistas". Ao final do artigo naEGN, lê-se:" Rio, junho, 1894"; na ELlê-se: "Rio, 1894". Passamos, então, àpenúltima das doze cartas publicadas emjornal e em livro.

"Cartas literárias XI"

Nessa 11ª carta, Caminha faz o uso daênclise na EL. Também continuagrafando autor em vez de auctor. Elemanteve ainda a grafia Arte comoencontramos na primeira carta e realizou

ainda correções, como a do nome deFlaubert que na EGN constava sem o l.Correções na grafa também sãoconstatadas no 15º parágrafo. Não sãomuitas nem tão significativas asalterações que constatamos, no entantoelas revelam a manutenção de umaatitude de correção do escrito napassagem de um suporte ao outro. Se,como afirmou OBS: No final da EGNlê-se "Rio, julho, 1894"; na EL lê-se"Rio, 1894".

"Cartas literárias XII"

Nessa última carta, as alteraçõesconstatadas repetem muitas das demais.É claro o objetivo de Caminha de tornar

o seu texto melhor, de corrigi-lo, deatualizar a linguagem, de torná-lo maiscompreensível para o seu leitor. Ocorrea manutenção da alteração conceitual emque a palavra arte é grafada commaiúscula, o que denota a manutençãode uma coerência no pensamento deCaminha. Caminha manteve também doprimeiro ao último artigo o uso dapróclise em vez da ênclise, como constana EGN. Na EGN lê-se: "Rio, julho,1894"; na EL lê-se" Rio, 1894".

Algumas considerações

Neste capítulo, procuramos demonstrara atuação de Adolfo Caminha comoautor-leitor e como o diálogo entre

leitura e escrita foi importante naconstituição do polígrafo. O caro leitorconheceu outro companheiro seu deleitura com práticas do século XIX.Desde o princípio, chamamos a atençãopara o fato de que não comumente oautor é percebido como leitor, seja eleleitor de outros autores, ou leitor de sipróprio. Ler a obra de outros e deixarregistros dessas leituras em suas obraspode ser constatado na atuação deautores, o que permite aos estudiosos daliteratura, por exemplo, um estudocomparado de obras. Ler a própria obrae deixar registros – diretos, isto é, notas,autocrítica etc. –, parece-nos incomum.No caso de Adolfo Caminha, trazer àcena os registros indiretos da leitura que

fez de si próprio, o que só foi possívelgraças ao estudo comparado das ediçõesde seus textos críticos em jornal e emlivro, estudo esse realizado com base naconstituição de um arquivo do autor emcausa com várias edições de seus livros,incluindo-se nele as primeiras ediçõesde alguns títulos, considerando comoimportante cada um dos suportes deedição, parece-nos ainda mais incomum.Ler-se e reescrever: esses foram osmovimentos realizados por ele.

As alterações originadas dessesmovimentos permitiu-nos conhecê-losob a máscara de suas iniciaisinvertidas: C. A. Isso permitiu a eledefender seu romance de estreia da

acusação de imoral, mas, também dedizer-se, de elogiar-se, enfim, de criarum autorretrato positivo de sua pessoa.Já com a máscara da autoriareconhecida, vimos que o uso daadjetivação em seus textos, sobretudo afavor de si próprio, decaiu. O que nosfaz questionar: onde está o verdadeiroCaminha? Em C. A. ou em A. C.? Decerto modo, a primazia dos fatos, dosdados e das ocorrências é hábito dacrítica e da história literária que maisparece ter trazido problemas nacompreensão do fenômeno literário doque mesmo uma suposta didática. Assim,achamos por bem afirmar que o AdolfoCaminha válido, para lembrar aqui daproposição de Roland Barthes para o

papel da crítica literária, estaria na suaatuação como polígrafo, do qual o autor-leitor é uma face a ser considerada.Assim, não nos interessa dizer a verdadeou estabelecer a primazia de umaimagem de autor sobre a outra, como jádesejou a crítica, mas propor validadessobre as suas atuações.

Na primeira parte do presente capítulo,buscamos apontar não somente o rol deleituras, supostamente realizadas porAdolfo Caminha, daí usarmos o conceitode indício, bem como a relação dessasleituras com o conteúdo de suas obras.No interior desse diálogo, buscamosdemonstrar um movimento depermanência de leituras, o que nos leva

a considerar um cânone privado.Surpreendentemente, nesse cânone, apresença de obras e autores românticosfoi uma constante, daí considerarmos osmovimentos internos de permanência etambém de mudança no interior daspráticas de leitura de Adolfo Caminha.A recorrência da leitura de alguns títulosevidencia essa permanência, mas, aomesmo tempo, o uso particular das obrase situações específicas evidencia ummovimento de modificação no modocomo compreendia aquela leiturarecorrente e de como a utilizava na suaescrita.

Vimos que Adolfo Caminha realizoualterações dos mais diversos tipos.

Essas alterações parecem apontartambém para uma história dos seustextos, o que significa dizer uma históriada sua escrita e da sua leitura. Nosmovimentos de constituição dessahistória dos seus textos está também oregistro da sua história como autor, quenão deixou de recorrer à leitura e aoutros fazeres que conformassem a suaprática autoral. Assim, no interior dasalterações constatadas estão essesmovimentos, que não se realizaramsomente pela grafia, ou seja, pelo seuregistro físico, mas pela leitura que nãodeixa de ter uma dimensão plástica enão deixa de atuar sobre o escrito. Apassagem do texto de um suporte para ooutro, certamente a fim de dar-lhes uma

versão definitiva, daí as inúmerasalterações que sofreram, permitiu-nospensar em uma história de sua escritura,revelada pelo movimento entrepermanências e modificações.

Todo esse processo revela a construçãoda autoria. Há, de início, uma delegaçãoda autoria para C. A., que, assim comovimos, fez que Alceu Amoroso Limaacreditasse ser Capistrano de Abreu ouConstâncio Alves. Também, comovimos, desfeita a dúvida, a autoria foireconhecida. Mas, em princípio, ela, aautoria, não foi dada. No entanto,Caminha não deixou de reconhecê-la.Vale aqui, portanto, citar AntonioCandido (2005, p.82) ao tratar da

autoria:

De modo geral, à medida quechegamos mais perto do nossotempo, mais agudo se torna oproblema da autoria, mais forte anoção de que é preciso consideraro autor de uma obra, e maisacentuada a reivindicação que elefaz sobre ela. Contribuíramdiretamente para isto odesenvolvimento do individualismoe as teorias que dão papelpreponderante ao artista noprocesso criador, bem como oreconhecimento de uma posição euma função social do escritor.Antes, ele era protegido ou

marginal. No mundo moderno,passou a ser profissional.

Ao editar seus artigos em livro, o quefez Caminha foi essa reivindicação deautoria a que se refere Candido. Paraquem defendeu com veemência osdireitos autorais, abrir mão da autoriadas Cartas pareceria contraditório. Noentanto, é importante perceber queCaminha o fez a fim de defender aquiloque mais o ocupou e o colocou nosistema literário: a sua ficção. Éimportante constatar que, tão logopossível, ele reconheceu a autoria desuas Cartas literárias, fazendo-as editarem livro acrescidas de mais dez artigosque produziu e recolheu ao longo de dez

anos (1885-1895), o que nos faz pensarque Adolfo Caminha tinha o hábito decolecionar seus escritos ou de ao menostê-los guardados ao longo de suaatuação como autor-crítico. Dessemodo, se as Cartas estavam assinadascom as iniciais que provocaram aindefinição autoral citada, com a ediçãode 1895 ficou esclarecido quem fora oseu autor.

O que nos interessou, porém, afirmar foio processo de construção da autoria e dosujeito autor. Como categoria dosestudos literários, e sobretudo comosujeito do processo de construção daliteratura, o autor tem sua história, o quesignifica dizer a respeito dos

movimentos de avanço e de recuo que oconstituíram, uma vez que não se trata deuma categoria estanque. Ler, escrever,desconhecer, delegar, reconhecer, dizer-se, negar-se, esconder-se, defender-sesão ações e forças dessa movimentaçãode constituição da autoria, ao menos nocaso de Adolfo Caminha. A constituiçãodo autor é muito mais complexa do queo ato de escrever. Fazer-se autorrequeria diversas competências paralidar com sujeitos e forças as maisdiversas. Assim, no capítulo seguinte,analisaremos a atuação de AdolfoCaminha como autor-crítico, buscandoevidenciar a sua atuação como críticoliterário, constituindo, desse modo, maisuma face do polígrafo.

1 O método indiciário, chamadooriginalmente de método morelliano,porque criado pelo italiano GiovanniMorelli, tinha como objetivo identificara autoria de obras de arte, notadamentepinturas, segundo Carlo Ginzburg(1989), Morelli dizia: "é preciso não sebasear, como normalmente se faz, emcaracterísticas mais vistosas, portantomais facilmente imitáveis, dos quadros:os olhos erguidos para p céu dospersonagens de Perugino, o sorriso dosde Leonardo, e assim por diante. Pelocontrário é necessário examinar ospormenores mais negligenciáveis, emenos influenciados pelascaracterísticas da escola a que o pintorpertencia: os lóbulos das orelhas, as

unhas, as formas dos dedos das mãos edos pés". Praticavam método parecidocom esse a personagem SherlockHolmes, de Arthur Conan Doyle, eSigmund Freud, o pai da psicanálise.Parece o método indiciário ser práticados detetives e, por isso, junto deSherlock Holmes poderíamos colocar obelga Hercule Poirrot, mesmo que esseseja inteiramente dedutivo e de poucaação, a velhinha inglesa e fofoqueiraMiss Jane Marple e o detetive docoração, Parker Pyne, todos de AgathaCristie; o belga Tintim, dos desenhos emquadrinho de Georges Prosper Remi,mais conhecido como Hergé, e ainda nocaso do romance O nome da rosa, deUmberto Eco, o frade franciscano

Guilherme (William) de Baskerville,assessorado pelo noviço Adso de Melk.

2 "Se eu passo por louco, se eu me tornolouco, que importa! Eu teria vivido emuma esfera ideal e seria talvez mais felizque todos os sábios da terra" (Traduçãonossa).

3 Cf. Le Robert des grands écrivains dela langue française (2000, p.1252-9).Dictionnaire Encyclopédique de laLittérature Française (1999, p.938-9).Ambrière (1990, p.435-41).

4 "Não insulteis jamais uma mulher quecai!" (Tradução nossa).

5 Cf. Jaguar, A Normalista. In: O Pão daPadaria Espiritual (1892, p.5).

6 "Há em um casamento infeliz um dortão forte que ultrapassa as outras penasdeste mundo" (Tradução nossa).

7" idéias (mais que temas) aosRomânticos" (Tradução nossa),Ambrière (1990, p.40).

8 "O elogio do divórcio contido emDelphine se situa no contexto de umadolorosa e já antiga oposição daromancista à moral professada por suamãe" (Tradução nossa). Ambrière(1990, p.43).

9 "Sim, todo grande coração tem direitoaos grandes infortúnios" (Traduçãonossa).

10 "ele foi um dos mestres nopensamento de sua geração e do todo ofim de século." (Tradução nossa).Ambrière (1990, p.428).

11 "Quanto à crítica e à história daliteratura, ele [Taine] queria criar umacrítica totalmente científica, fundar umateoria sobre a relação da obra com o seumeio, elaborar um sistema per mitindopesquisar a causalidade da obra e deexplicar, logicamente e cientificamente,graças ao método indutivo, os casosparticulares pelos princípios gerais.

Estes princípios, expostos em Del'intelligence, são em número de três: araça, o meio, o momento, fatoresnecessários e suficientes para dar contada aparição da obras literárias ou daspersonalidades históricas" (Traduçãonossa). Ambrière (1990, p.429).

12 "Viver é esperar" (Tradução nossa).

13 "Procure a mulher" (Tradução nossa).

14 "Nasceu em 22.1.1807 em Genebra(Suíça) e faleceu em 27.10.1828 emParis (França). Publicou em 1826Méditations lyriques. Mal acolhido emsua cidade natal, onde deu conferênciassobre os escritores franceses célebres

do momento, Galloix estabeleceu-se emParis onde, doente e sem recursos,morreu após conhecer o poetaVictorHugo. Este lhe consagrara emLittérature et philosophie mêlées, de1834, páginas onde ele faz o seuprotótipo de artista romântico. Apublicação de suas Poésies (Genebra,1834) deu a Galloix uma discreta porémdurável consagração póstuma" Fonte:http://www.hls-dhs-dss.ch/textes/f/F15942.php (Consultadoem 5 jun. 2008, tradução nossa).

15 "Feliz é o mortal que do mundoignorado/ Vive contente de si mesmo emum canto retirado..." (Tradução nossa).

16 "Uma das obrigações as quais jamaisdeve faltar ao historiador dos modos énão corromper o verdadeiro pelosarranjos aparentemente dramáticos,sobretudo quando o verdadeiros corre orisco de se tornar romanesco" (Traduçãonossa).

17 Cf. Dictionnaire des littératures delangue française (1994, p.1477)." Aobra de Malot se inscreve no quadromais geral do romance de modosedificantes, dito 'romance da vítima',que conheceu o seu apogeu no segundoImpério. A característica ingênua decertos romances os destinava maisparticularmente à leitura infantil: Enfamille e Sans famille guardara ainda

hoje esta vocação" (Tradução nossa).

18 Cf. Dictionnaire des littératures delangue française (1994, p.1621).

19 Sobre Gilles de Rais, consultamos oDictionnaire encyclopédique d'histoire(1978, v.2, p.3773); Le petit Robert desnoms propres (1996, p.1718). Vertambém Cébrian (2006), que conta nummisto de história e jornalismo a históriade Gilles de Rais.

20 Sobre o poeta português João deDeus, ver Saraiva & Lopes (1975,p.1009-11).

21 A edição consultada foi Varela (1957,

v.3).

22 A tradução dos trechos de Asbucólicas, de Virgílio, presentes nestelivro, são de Zélia de Almeida Cardoso."Títiro, reclinado sob a copa defrondosa faia".

23 O verso inteiro é: "O Meliboee, deusnobis haec otia fecit:" cuja tradução é:"Melibeu, foi um deus que me propôsum ócio tal".

24 "A forma do objeto escrito governa oseu sentido, que a passagem ao impressonão é somente uma simples transposiçãodo manuscrito em um códigoconvencional, mas uma semiologia, que

q tipografia é uma enunciação, e quesuas possibilidades expressivas impõemprotocolos de leitura" (Tradução nossa).

25 "Assim, se há para o escritor diversasformas de pensar o livro a partir doescrito, há também para o crítico váriasdisciplinas a considerar para dar contada passagem de um a outro. História doescrito, história do livro, genéticatextual, sociocrítica, psicanálise podemser convocadas para tentar compreenderas respostas necessariamente singulares,dadas pelo escritor a este respeito"(Tradução nossa).

26 "O verdadeiro não é sempreverossímil" (Tradução nossa).

27 Cf. Gazeta de Notícias, Rio deJaneiro, n.18, p.1, 18 de janeiro de1894.

5 Adolfo Caminha,autor-crítico

A retomada do crítico

No capítulo anterior, vimos AdolfoCaminha como leitor: um leitor-autor, oque significa que sua leitura foi feitatambém com o intuito da escrita. Nessecaso, há relações entre uma e outraprática, um e outro movimento, um eoutra força. Leitura e escritas eramforças formadoras desse sujeitomultifacetado que chamamos depolígrafo. Compreendemos que leitura eescrita eram forças do homem de letras

para a entrada no campo literário e nosdemais campos com os quaisestabeleceu relações. Ler e escrever, serlido e ser escrito são movimentos queformam e conformam o autor. Sãomovimentos que o colocam diante dosseus leitores. Adolfo Caminhadesempenhou ainda a atividade decrítico, que é também um leitor, poispara fazer crítica é precisoprimeiramente ler. Fazer-se crítico éfazer-se leitor, primeiramente. Nocampo da crítica literária, a leitura érealizada em razão da escrita. Aoarrolarmos os possíveis títulos dabiblioteca do escritor, demos ao nossoleitor a oportunidade de conhecer aspráticas de um homem de letras do

século XIX. Agora é chegada a hora deconhecer Caminha como críticoliterário, o que quer dizer um leitorjudicativo.

Em nossa dissertação de mestrado,detivemo-nos no estudo da críticaliterária produzida por Adolfo Caminhae da relação dessa crítica com a suaficção, notadamente os seus artigos dolivro Cartas literárias e seu romance Anormalista. Também no mestradoapontávamos para a atuação de AdolfoCaminha como polígrafo, ainda que nãoutilizássemos esse conceito, mas jáprocurávamos tecer as relações entre osdois fazeres, ou seja, entre a crítica e aficção caminhiana. Até um determinado

momento da escrita deste estudo,pretendíamos retomar parte do queproduzimos na dissertação. No entanto,com o desenvolvimento da escrita,achamos por bem dar início a uma novaetapa dos estudos sobre a atuação críticade Caminha, sem retomar o conteúdo dadissertação e abrindo caminho para oconhecimento de alguns dos seus artigospouco divulgados e conhecidos dopúblico que se interesse pela sua obra.

Na referida dissertação, chegamos acinco novas validades da críticacaminhiana. São elas: 1 As Cartasliterárias no "entre-lugar" da obra deAdolfo Caminha e da literaturabrasileira; 2 As Cartas literárias e o

sistema literário ou a literatura comosistema; 3 As Cartas literárias comocrítica-aprendizagem ou autocrítica; 4As Cartas literárias comodiscurso/prática pertencente à críticados escritores; 5 As Cartas literáriascomo crítica estética. Partindo doconceito barthesiano de que à crítica nãocabe dizer verdades, mas somente"validades" a respeito da obra,concluímos que a atuação de AdolfoCaminha intercambiava saberes epráticas que ele desenvolveu ao longoda constituição de sua obra. Foi esseintercâmbio entre a crítica e a ficçãocaminhiana que nos ajudou a percebê-locomo um autor polígrafo, tese quedefendemos agora. Em razão do número

já alentado de páginas do presenteestudo, achamos por bem centrarmosnossas observações e nossoscomentários nos artigos críticos escritospor Adolfo Caminha e intitulados"Crônicas de Arte", bem como nosdemais artigos que, mesmo sem essetítulo, constam, assim como aqueles. emA Nova Revista. Incluímos tambémnesse rol o prefácio intitulado de"Carta", escrito para o livro Estrofes, deF. Alves Lima. Trata-se de textos poucoconhecidos e estudados do autor emcausa. Com exceção do livro AdolfoCaminha (vida e obra), de Sânzio deAzevedo, muitas vezes aqui citado ereferenciado, quase não encontramosopiniões a respeito deles.

Talvez, o difícil acesso seja uma dasjustificativas para essedesconhecimento. As "Crônicas de Arte"foram publicadas em A Nova Revista,periódico literário editado por Caminhano Rio de Janeiro e do qual já nosocupamos neste estudo. Como sabemos,esse periódico encontra-se na Casa deRui Barbosa no Rio de Janeiro, onde osconsultamos. Infelizmente, a atuação deAdolfo Caminha como colaborador deperiódicos literários ainda é poucoconhecida, daí também a importância deincluir neste estudo uma leitura dosperiódicos com os quais ele colaborou.No caso do prefácio, o acesso talvezseja ainda mais difícil. Só tivemos apossibilidade de conhecê-lo graças ao

professor Sânzio de Azevedo, que nodeu acesso a uma cópia, essa járecebida do pesquisador inglês WalterToop. Infelizmente, não encontramos emnenhuma biblioteca, pública ouparticular, um exemplar do livroEstrofes. A respeito desse livro e de seuautor, afirmou Sânzio de Azevedo(1999, p.49):

Quanto ao autor prefaciado, apesar depouco havermos transcrito do que foidito sobre a sua poesia, sempreinformaremos que F. Alves Lima, quenasceu no Piauí em 1869 e veio afalecer em Fortaleza em 1958,publicaria diversos livros de Direito,mas nunca mais voltaria à poesia. Já as

Estrofes são um livro tão poucoconhecido que nem é sequer citado porDolor Barreira em sua História daLiteratura Cearense, nem por MárioLinhares, em sua História Literária doCeará.

Dada a dificuldade de acesso aosartigos e ao prefácio, e respondendo auma exigência quanto ao estudo defontes raras ou pouco conhecidas,preferimos incluí-los, integralmenteneste capítulo de nosso estudo.

Adolfo Caminha, o autor-crítico-cronista de arte

Ao longo deste estudo, temos perseguidoas relações do autor com outros fazeres,

constituindo pares de sujeitos e deatuações. Cada um desses pares temocupado o centro de um capítuloespecífico. Assim, temos visto oautorpolítico, o autor-editor, o autor-leitor, para, desse modo, constituir a suaface como polígrafo. Com o par queapresentamos neste capítulo – o autor-crítico – procuramos reforçar o conceitoutilizado. No caso específico dos artigosde "Crônicas de Arte", esse parperseguido recebe a contribuição de umoutro sujeito e de um outro fazer, ouseja, o cronista e a crônica. Daformação de um par, esses artigosevoluíram para uma triangulação, comoé também possível perceber nas Cartasliterárias. Portanto, não é por acaso que

Adolfo Caminha mudou o título dessesseus artigos críticos. Antes, a suaatividade crítica recebera a contribuiçãodo termo "carta", ainda que não setratasse, as conhecidas Cartasliterárias, de cartas propriamente ditas.Como exemplificamos em nossadissertação, esse fato contribuiu paraque as Cartas literárias fossemrecebidas como exemplo de críticaimpressionista, e não como exemplo doque hoje conhecemos como crítica dosautores.

Parece haver na atuação de AdolfoCaminha a formação de várias figurasgeométricas como que simbolizandoesquemas ou percursos diversos dentro

de sua obra. Há nela, ou seja, na obracaminhiana, uma movimentaçãoconstante de fazeres, que resulta emformas e em desenhos que evoluem àmedida que são estabelecidascorrelações pelos seus leitores. Umolhar mais amplo para o dito conjuntoda obra que ele produziu vaidesvendando essas figuras e essesmovimentos e fazendo que o seu leitorolhe para ele como um polígrafo. Nasditas "Crônicas de Arte", AdolfoCaminha parecia movimentar a suacrítica já não somente para a obra dearte literária. Um bom exemplo dessanova direção dada à sua atuação comocrítico é o fato de que na primeiracrônica ele se dedicou à obra do pintor

Oscar Pereira da Silva. Pela primeiravez Adolfo Caminha desviou o foco desua atenção para análise de uma outraexpressão artística, sem que possamosdizer que a pintura já não estivessepresente em suas obras. A adesão dotermo "crônica" ao título dos artigosparece querer marcar no tempo essamudança. Daquele ponto em diante,Adolfo Caminha ampliaria a sua atuaçãocomo crítico, sentindo-se, talvez,capacitado para alçar voos em outrasdireções. Talvez ele também estivessepretendendo diversificar o seu públicoleitor, mas o fato é que uma mudança seanunciou no rumo de sua obra. Vejamos,então, primeiramente o artigo, cujaortografia original será conservada:

CHRONICA DE ARTE

Oscar Pereira da Silva, pintorbrasileiro que se achava emestudos na Europa, reuniu os seustrabalhos e abriu exposição naEscola de Bellas-Artes. Toda a vezque, no Brazil, um pintor, semesperar pelas formalidadesacadêmicas e antes da eraconvencional, mostra ao publico asproduções em que se occupoudurante um ou dois annos, opublico que só acredita nasreclames officiaes, encolhe oshombros e passa ao largo, muitoconvencido de que não deve perdertempo vendo quadros. E, se o

pintor, prefere a obscuridade doseu atelier a uma exposição que lhenão traz proveito algum, morredesconhecido, a ouvir de longe, dasua janella que dá para a rua, oeterno coro: "– Não temos pintores,não temos arte, somos um povo deimbecis!" – Os que assim gritamsão exactamente os que não queremter o trabalho de ir á Escola deBellas-Artes para ver quadros.

No emtanto, Oscar Pereira da Silvaé um artista seguro e ali estão, paraproval-o, trinta e três producçõessuas, algumas das quaes muitodignas, muitissimo dignas defigurar em qualquer galeria

estrangeira. Dizemos estrangeira,porque, sem essa etiqueta,nenhuma obra artística é admiradano Brasil com verdadeiro interesse.

A crítica tem preguiça de sedemorar nos quadros que nãoformem exposição colletiva de fimde anno – Salon, como dizem osnossos mestres, os franceses;limita-se a annunciar, em duaspalavrinhas encomiásticas, aabertura da exposição, e... maisnada!

Pereira da Silva está expondo nodeserto.

Maior concurrencia e maiores

reclames vimos em Outubro doanno passado á exposiçãohespanhola da rua do Theatro. Arazão é simplissima: o hespanhol éhespanhol e Pereira da Silva ébrazileiro. Somos contra oexagerado nativismo de algunspseudo-republicanos que nãocomprehendem o Brazil sem oindio ou sem a rede e o jequitibá;mas fechar os olhos ao que é nosso,ao que está debaixo das nossasvistas, unicamente porque as coisasnão são etiquetadas em Paris, noHavre, em Hamburgo ou naSiberia, é um desproposito e umainjustiça.

A arte é universal, – de accôrdo;mas o Brazil também faz parte doUniverso e já tem um logar entre asnações cultas.

Mais feliz que Pereira da Silva,Belmiro de Almeida grangeou, oanno passado, em exposiçãoparticular, um credito soffrivel, queo recommendou á Exposição geralde 1895. Antes d'elle Castagnettoexhibiu grande numero de marinhasfeitas com aquella delicadeza detintas, que é sua nota individualcomo pintor, mas Castagnetto veiuprecedido de necessária reclame,que faltou a Pereira da Silva.

Os quadros deste artista não são

para se desprezar, como até agoratem feito o nosso "respeitável"publico. O monge, por exemplo, éum trabalho estudado e quaseperfeito: não é obra de incipiente,nem se parece com as pochades daSra. Diana Cid, a adorada autorado Em détresse. Tudo no quadro dePereira da Silva mostraaperfeiçoamento. O desenho, comespecialidade, attinge a retrataçãomecanica, para não dizer areproducção photographica. Nota-se-lhe alguma frieza, talvez, umcerto e exagerado amor á execução;mas isto que é senão uma qualidadehoje predominante na obra d'arte? –A Fórma! – exclama os poetas. – A

Fórma! – bradam os prosadores.Não é muito que os pintores dêemcopo á fórma com sacrifício deidéa.

No Christo Morto se observa amesma impassibilidade do artistacuidadoso e comsigo mesmoexigente. Nenhuma linha de mais,nenhuma linha de menos: toda acorreção no traço.

Ainda outros exemplos d'essa comoindifferença pela alma humanateriamos no Cantor ambulante e noPetit rentier (ambos etiquetados: –Paris, Campos Elyseos) sendo queo primeiro é simplesmente obra demestre. Um pobre e velho trovador

das ruas, um desses mendigos queesmolam cantando ou que cantampara ganhar pão de cada dia, estásentado, afinando um violão, todomaltrapilho a acariciar-lhe ascordas. Não sei porque esse quadrolembrou-nos o bonito conto deBernardo Pindella – A guitarra deBraz – , essa guitarra "gemendodolentemente do fundo dopassado..." no dizer de Eça deQueiroz. Tão suggestivo é um comoo outro, apezar da physionomiaglacial do cantor, de Pereira daSilva. O instrumento que o velhoempunha, conchegando ao peito, éo que se pode desejar de fiel, debem acabado, na perspectiva e no

detalhe.

Interpretando os versos de Dante,no canto XXVIII do Purgatorio, aoencontrar Matilda, o jovem pintorbrazileiro quis mostrar que não selimitava a estudos do natural,dando uma bonita fantasia em queas côres têm a vivacidade e abelleza que o assumpto requer

...Elle allait, choisissant

des fleurs, celles dont toute sa

route était émaillée.

O poeta, ao dar com os olhos nadivinal creatura que o seu coração

adorava, junta as mãos num êxtaseapaixonado. O regaço d'ella estácheio de flores e a natureza toda emderredor traja branco, azul e roza,como na primavera...

São muitos os perfis de mulherestudados pelo expositor: Nobanho, A corrente d'agua,Tocadora de bandolim, A leitura,Estudo de dorso, etc. No emtanto,preferimol-o nos quadroshistoricos como o Brutuscondemnando seus filhos á mortee a Maldição do rei Roberto.

Naquelle há uma admiraveldistribuição de tintas, quer noambiente, quer nos vestuarios, e o

desenho é, como em todos osquadros do autor, irreprehensivel;no segundo, a mesma fielinterpretação histórica e o mesmocolorido.

Oscar Pereira da Silva aproveitoumuito na Europa; fez-se mestre comos mestres e póde hoje hombrear-se com os nossos melhorespintores.

Janeiro, 1896.

ADOLPHO CAMINHA

Oscar Pereira da Silva nasceu em 1867no Rio de Janeiro e faleceu em SãoPaulo em 1939. Ficou mais conhecido

pelos seus quadros em que representoufatos da história brasileira como:"Desembarque de Pedro Álvares Cabralem Porto Seguro", "Fundação de SãoPaulo", "Bandeirantes a caminho deMinas". Não raro, eles aparecem comoilustração de livros didáticos dehistória. A sua formação acadêmicaencontrou na história, e em um modoespecífico de tratá-la, uma grande fonte.Pintar com todos os detalhes e fazê-lodo modo mais "real" possível era o quePereira da Silva perseguia. A formaçãoacadêmica e a execução de quadros noestilo figurativo, fugindo do processo demodernização pelo qual passou a pinturabrasileira após 1922, fizeram que a suaobra fosse vista com preconceito pelos

que o sucederam. Além dos temashistóricos, Pereira da Silva pintoumarinhas, paisagens, temas orientais,religiosos e do cotidiano. Destacam-setambém na sua obra os murais pintadosno Teatro Municipal de São Paulo: "OTeatro na Grécia Antiga", "A Dança" e"A Música", além de painéis para asigrejas da Consolação e da BelaVista,também em São Paulo. Ruth SprungTarassantchi (2006, p.17) afirmou arespeito de Oscar Pereira da Silva:

Ao estudar os pintores paisagistasem São Paulo na virada do séculoXIX – XX, um dos artistas quemais me chamou a atenção foiOscar Pereira da Silva pela

multiplicidade dos temas por eleabordados. Senti que seria umainjustiça a seu talento serrecordado exclusivamente por umatemática, a pintura histórica quandoabordou todas as existentes em seutempo. Reconhecer em qual delastenha se sobressaído é tarefa quedepende do julgamento de cada umde nós. Mas é então que nos vem amemória a famosa frase deDaumier, muito apreciada pelosartistas do século XIX: "il faut êtrede son temps".

Não parece ter sido acaso que AdolfoCaminha tenha achado em Oscar Pereirada Silva um pintor tão estimado. A

estética figurativa parecia servir muitobem às necessidades do realismo e donaturalismo, do qual Adolfo Caminha foium dos cultores, como é possívelconstatar, notadamente, em seusromances A normalista e Bom-Crioulo.No seu artigo, Caminha continuoureclamando do público acostumadosomente a receber aquilo que era oficial,ou melhor, estabelecido. Vale destacarque à época Pereira da Silva era umestudante de pintura, que acabava dechegar de Paris, onde estudara com LéonBonnat e Léon Gerôme.

Caminha (1999, p.18), nesse seu artigocrítico, mais uma vez se ocupou daobscuridade como sinônimo de

recolhimento, aquele mesmorecolhimento que ele reclamava dosseus pares no artigo "Novos e velhos",das suas Cartas literárias: "Preferimosa suave palestra, descuidada e livre, dobeco do Ouvidor, ao penoso trabalho degabinete, monótono, esfalfante, queproduz sábios e loucos, literatos etuberculosos". Adolfo Caminha foitambém um crítico do público,destacadamente daqueles que nãoqueriam "ver quadros", expressão queele repete e grava em itálico. Ao tratarda exposição de Oscar Pereira da Silva,foi de parte do sistema de arte que eletratou. Pintor, quadros, público e críticaestão presentes nesta sua crônica dearte. Sobre Oscar Pereira da Silva, ele

afirmou: "é um artista seguro", e comoprova dessa segurança deu comoexemplo os 33 quadros que o artistaexpôs. A respeito da crítica que Pereirada Silva recebeu, afirmou: "A criticatem preguiça de se demorar no exame dequadros que não formem exposiçãocollectiva de fim de anno – Salon, comodizem os nossos mestres, os francezes,limita-se a annunciar, em duaspalavrinhas encomiásticas, a abertura daexposição, e... mais nada!".

Antes de tratar da crítica, numa relaçãoentre essa e os leitores, Adolfo Caminhadiagnosticou um fato que já oencontramos em suas Cartas literárias:a força da influência estrangeira,

notadamente europeia, sobre a artenacional:

No emtanto, Oscar Pereira da Silvaé um artista seguro e ali estão, paraproval-o, trinta e tres producçõessuas, algumas das quaes muitodignas, muitissimo dignas defigurar em qualquer galeriaestrangeira. Dizemos estrangeira,porque, sem essa etiqueta,nenhuma obra artística é admiradano Brazil com verdadeiro interesse.

A consciência de que um sistemaestrangeiro de arte preponderava sobreum sistema nacional ainda poucoestruturado é presente no conjunto dosartigos críticos de Adolfo Caminha e

não foi diferente nessa crônica. NasCartas literárias, mais especificamentena carta "Pseudo-Teatro", AdolfoCaminha (1999, p.165) reclamar apresença maciça do teatro europeu noRio de Janeiro, sobretudo de peças doteatro francês:

Uma das primeiras cousas que eufaço todos os dias, logo que acordoe me levanto, é correr os olhossobre os jornais da manhã,principalmente sobre as seçõesteatrais, com essa curiosidadeinfantil de quem dá o cavaco porum bom espetáculo. – Uma espéciede instinto natural, um pruridoirresistível me leva a esse canto

das folhas diárias donde sempresaio com desgosto.

Nenhuma novidade, nenhuma peçanova de escritor brasileiro! Sempreo mesmo menu, as mesmasvariantes! Dumas, Sardou, Feuillet,Echegaray... Sardou, Feuillet,Dumas...

A gente chega a duvidar de que estámesmo no Rio de Janeiro, nacapital do Brasil.

Mais adiante, afirmou: "Traduções,traduções, traduções – eis o motd'ordre, a maldita mania, a lesãoincurável!" (ibidem, p.166). Assimcomo essas, há outras passagens dos

artigos de Cartas literárias queevidenciam essa consciência edescontentamento de Adolfo Caminhacom a presença e a influência francesana cultura e nas artes brasileiras. Valedestacar que o artigo "PseudoTeatro" éde 1885, uns dos primeiros artigosescritos por Adolfo Caminha. Já a"Crônica de Arte" em causa é de 1896,ou seja, escrita onze anos após aqueleprimeiro artigo. Vemos, então, amanutenção de uma característica dostempos de Adolfo Caminha: a força doproduto importado ante o produtonacional, e, nesse caso, quando dizemosproduto, dizemos também cultura, arte,literatura, teatro etc.

Nessa breve discussão proposta porAdolfo Caminha está também presente otema do nativismo, que ele tratou,especificamente, no artigo "Nativismoou cosmopolitismo?", de suas Cartasliterárias. A existência da artebrasileira ante uma dita arte universalparece ter sempre ocupado a suaatenção. Nesse ponto, remetemos osleitores ao capítulo sobre o autor-político. Com as "Crônicas de Arte", oautor-político parecia deixar de ocupar-se somente da literatura para ampliarseus interesses por outras manifestaçõesartísticas. Parece-nos claro o tompolítico que Adolfo Caminha deu a esseseu artigo. Vemos, por exemplo, otrecho a seguir:

Maior concurrencia e maioresreclames vimos em Outubro doanno passado á exposiçãohespanhola da rua do Theatro. Arazão é simplíssima: o hespanhol éhespanhol e Pereira da Silva ébrazileiro. Somos contra oexagerado nativismo de algunspseudo-republicanos que nãocomprehendem o Brazil sem oindio e sem a rêde e o jequitibá;mas fechar os olhos ao que é nosso,qo que está debaixo de nossasvistas, unicamente porque as coisasnão são etiquetadas em Paris, noHavre, em Hamburgo ou naSiberia, é um desproposito e umainjustiça.

A arte é universal, – de accôrdo;mas o Brazil também faz parte doUniverso e já tem um lugar entre asnações cultas.

Nesse segundo parágrafo, o texto deAdolfo Caminha parece marcado por umotimismo que não lhe era comum. Nãoencontramos nas Cartas literáriasafirmações idênticas. Talvez Caminha otenha feito pelo teor claramente defensorda obra de Pereira da Silva: "Osquadros deste artista não são para sedesprezar, como até agora tem feito onosso 'respeitavel' publico". Críticas aopúblico, críticas à crítica, o queencontramos nessa crônica de Caminha éuma leitura de parte do sistema de arte

vigente. Dividido entre o desejo de umaarte nacional e de um público para essaarte, Adolfo Caminha era consciente daexistência da influência estrangeira,europeia e francesa como é possívelconstatar em suas opiniões ao longo dasua obra. Ainda que defendesse a artenacional representada pela obra dePereira da Silva, Caminha não deixou dereconhecer a mestria da arte europeia:"Oscar Pereira da Silva aproveitoumuito a Europa; fez-se mestre com osmestres e póde hoje hombrear com osnossos melhores pintores". De um modogeral, é esse o teor da primeira"Chronica de Arte" escrita por AdolfoCaminha nessa que prometia ser umasegunda fase de sua atuação como

crítico. Vejamos a segunda crônica:

CHRONICA DE ARTE

Vão longe os tempos em queBordallo Pinheiro e ÂngeloAgostini electrisavam a populaçãofluminense á ponta de lápis,reproduzindo, na caricatura, anossa vida política, os nossoscostumes, o nosso modo de existirsob todos os aspectos.

Acabaram brigando, os doisartistas, ridicularisando-semutuamente, vaiandose um ao outrocomo dois meninos de escola. Equanto mais trabalhava o lápis, emprejuizo de Ângelo ou de Bordallo,

quanto mais o publico – nessetempo não havia sebastianista, nemjacobinos – ... o publico sedivertia. Começaram rindo dopublico, o publico acabou rindod'elles a bom rir. A Revista e OBezouro formam duas preciosascolleções nos annaes da caricatura.Depois, Bordallo foi tomar conta,se nos não enganamos, de umafabrica de faianças em Caldas daRainha, lá no seu Portugal, eÂngelo Agostini continuou no Riode Janeiro, a dar golpes noscostumes... Ninguém esquece o que´ebom, por isso ha de ser semprelembrada aquella phase única deboa pilheria no jornalismo

illustrado do Brazil.

O proprio imperador como gostavade se ver em papos de tucano,coroa na cabeça, desenhado porAngelo Agostini.

Quantas vezes terá elle dito aosseus camaristas: – Esse Angelo...esse Angelo é um demonio desatyra!

A colleção da Revista Illustradaem sua primeira phase é umverdadeiro repositório de bôaspilherias e explendidas caricaturas.E deixem-nos falar com franqueza,mesmo porque o tempo é um eternodestruidor: o D. Quixote não tem a

graça fina o chiste delicioso davelha Revista Illustrada. Fala deassumpto? Não. Agora, mais doque no tempo da monarchia, haassumpto para romance, parapoema, para quadros a óleo... paracaricaturas. Falta de liberdade?Também não: os ultimos númerosdo D. Quixote (aliás os melhores)provam que sempre ha algumaliberdade na crítica dosacontecimentos. A verdade é que ogenero apotheóse tem sidopreferido pelo desenhista do D.Quixote. Apotheóse aos heroes daArmação, apotheóse a Saldanha daGama, apotheóse a FlorianoPeixoto, apotheóse á revolução de

Cuba, apotheóse ao bispo deTrípoli, apotheóse ao Dr. ColomboLeoni..

O publico, em vez de rir, extasia-sena contemplação dos bellosquadros allegoricos engendradospela fantasia de Angelo eapplaude-o do mesmo modo. Mas asociedade actual e a nossa vidaactual estão a reclamar o lápis deum caricaturista espirituoso eimpiedoso.

Ainda nos lembramos d'aquelleesplendido capitulo de RamalhoOrtigão n'A Farpas, a propósito daqueda do Antonio Maria, deRaphael Bordalo. O escriptor

lamenta, cheio de desgosto, a morted'esses "folhetos semanaes, que,durante seis annos, sem interrupçãode uma semana, tiveram emconstante evidencia perante opublico, umas vezesenthusiasmado, outras vezessuspenso, outras cansado de umaresistente vitalidade, a veiainexhaurivel e a fecundidademaravilhosa do traço satyrico deRaphael Bordallo Pinheiro' Comonão lamentar a falta do riso, daalegria, do bom humor, dajovialidade que cura as doenças doespírito e as mazelas sociaes?Como não lamentar a ausencia deum artista da força de Bordallo,

que vê mais através de ummonóculo do que os sabios atravésdas lunetas astronomicas? Vê ereproduz o que observa,desopilando, afugentandomelancolias, provocandogargalhadas, corregindo a golpesde sarcasmo, fazendo o mundo rirde si proprio, como uma creançadiante de espelho.

Incontestavelmente é uma grandearte a caricatura! Quem póderesistir a uma pagina do Puch ou aum trecho symbolico de Garvani?Ah! Os Garvani e os Daumier nãosão comuns, e, neste particular, oBrazil não é mais feliz que as

outras terras. Creio que não haexemplo de um caricaturistabrazileiro, mas um caricaturista quesoubesse ou que saiba dar áphysionomia humana todas asmodalidades de que ella é capaz,exagerado ou transformando oolhar, o gosto, o perfil, um vesoqualquer, uma linha caracteristica.Elles não têm vindo de fora, comoRaphael Bordallo, Angelo Agostinie, não ha muito tempo, JuliãoMachado, que se distingue por umamaneira subtil de desenhar ao jeitodos artistas francezes de LaCaricature, deixando campo aocolorido sem o qual o effeito não écompleto. Já o conheciamos, antes

d'elle se popularizar com a NoticiaIllustrada, com A Cigarra, e agoracom A Bruxa. Vimol-o illustrandoO Paiz das Uvas, de Fialho deAlmeida, e o que nos despertou aattenção foi a meticulosidade quevae até um signalsinho do rosto, atéa folha de uma arvore, até a sombraexacta de um vulto que caminha aoluar. Mão firme e traço delicado –é o que logo se deprehende nodesenhista d'A Bruxa.

Sem collocar em plano superior aode alguns números d'A Cigarra, aparte artistica do novohebdomadario, cujo numero inicialtemos á vista, constitue documento

para um juízo sobre o notavezdesenhista portuguez.

A primera estampa é allegorica.

A Bruxa, em attitude de reente deorchestra, lapis e penna, em vez debatuta, faz sair das chammas doinferno a multidão de vicios: aLuxuria, a Avareza, a Gula, a Ira, aInveja... Em torno d'ella riemdiabinhos de cara burlesca,emquanto outros ateiam as chamas:são estes os collaboradores daBruxa na sua obra mysteriosa deenfeitiçar a humanidade. A nitidezda impressão corresponde á nitidezdo desenho, resultando uma bellapagina de caricaturas a côres.

Transparece ahi a qualidade que jáapontámos em Julião: a minuciadelicada e completa, o zelo comque reproduz ou inventa pequeninostraços, ás vezes indispensaveispara um segundo effeito cômico:um dente que falta ao diabo que seagacha para ver o incendio doPeccado; mais uma ruga á inveja eá avareza... Uma paginaacintillante de fino espírito.Vêmdepois as bruxarias da semana: aquestão das casas que não correm orisco de se caboroar, cinconumeros igualmente espirituosos ede uma sobriedade ingleza. Já naEsterilisação o artista muda degenero: o crayon impõe-se com as

suas nuanças, com as suasperspectivas. A concepção é quenos pareceu vulgar ahi. De umartista como Julião Machado, é deesperar sempre uma surpreza, umaoriginalidade.

A ultima pagina é dedicada áPatria, de Guerra Junqueiro. ZéPovinho (creação de BordalloPinheiro) lê o poema que tantascontrovérsias acaba de levantar noBrazil. Numa trouxa de roupa, ZéPovinho, emigrado do Aterro,juntou o Pimpão, jornaleco deLisboa, e operetas bregeiras.Quereria o artista collocar nomesmo nível do Pimpão a Patria

de Junqueiro? Mau gosto e mápilheria, entretanto realisada comespírito... sem graça. A caricaturado poeta rubro de cólera,apopletico, iluminado pelos raiosdo genio, de vergasta em punhoesmagando um pygmeu era o queJulião Machado devia terdesenhado. Um artista não desce aridicularisar outro artista queridicularisasse um individuoqualquer da raça dos que não têmespirito sequer para descompor ainsultar... enfim, são modos de vêras coisas....

O texto é intercalado de vinhetas:diabinhos que dão saltos mortaes,

olhos phosphorescentes de bichano,yaras, e uma serie microscopicasde finas allusões.

E' este o nosso juízo e nãoadmiramos se A Bruxa vivessemenos tempo que A Cigarra,porque, infelizmente, ainda nãosoou a hora do bom gosto nacional.

AD. C.

Já é bastante conhecida a força do traçocaricatural de Bordalo Pinheiro. Em Asbarbas do Imperador, de Lilia MoritzSchwarz, por exemplo, temos uma provadesse fato. Pinheiro não poupou oimperador Pedro II, sobretudo quandode suas viagens à Europa. O tema dessa

crônica de Adolfo Caminha é acaricatura. Vemos que sua críticacontinuava em direção à análise deoutras artes. Ao longo da crônica, ocrítico fez um apanhado da situação dacaricatura naquele ano, o que nos leva aentender que Adolfo Caminhaacompanhava com atenção a presença dacaricatura nos periódicos brasileiros.Assim, não é por acaso que ele começoucitando o nome de Bordalo Pinheiro,colando o nome do caricaturista comoum marco dessa arte no Brasil. Éimportante observar nessa crônica ovalor que Adolfo Caminha deu àcaricatura.

Na revista, o texto da crônica ocupa

duas páginas e meia, o que nos fazpensar no papel da caricatura na suaobra. Não temos conhecimento queAdolfo Caminha tenha desenhado ouilustrado alguma obra própria ou deoutro autor. Mas podemos encontrar emseus romances o uso de recursoscaricaturais, como o exagero de traços,notadamente os negativos, com oobjetivo de conformar física epsicologicamente uma personagem. Aquio admirador da caricatura encontrou-secom o escritor de ficção. Assim, maisum par se formou na obra de AdolfoCaminha. Admirar a caricatura étambém um modo de ler, de ler imagens,como afirmou Alberto Manguel. Aqui aleitura da caricatura estaria atuando

como uma força na formação doescritor. Acompanhar a pintura e acaricatura também parece ter atendido àestética naturalista. Sobretudo acaricatura, cuja principal característicaé expor os traços físicos marcantes deuma pessoa ou personagem. Assim, maisencontros e figuras vão conformando opolígrafo Adolfo Caminha.

Desse modo, na sua obra podemos citarcomo exemplo as personagens João daMata e José Pereira do romance Anormalista. Já no romance Tentação,temos as personagensValdevinoManhães, também conhecido como Dr.Condicional, e o visconde de SantaQuitéria. Vejamos cada uma das

personagens. João da Mata chamava-se,originalmente, João Maciel da MataGadelha. No processo de conformaçãoda personagem, os cortes feitos no nomeservem como um indicativo do que seriaa sua personalidade. Fisicamente, Joãoda Mata foi assim descrito:

João da Mata era um sujeitoesgrouvinhado, esguio e alto, carãomagro e tísico, com uma corhepática denunciando vícios desangue, pouco cabelo, óculosescuros através dos quais buliamdois olhos miúdos e vesgos. Usavapêra e bigode ralo caindo sobre osbeiços tesos como fios de arame; atesta ampla confundia-se com a

meia calva reluzente. Falavadepressa, com um sotaqueabemolado, gesticulandobruscamente, e, quando ria, punhaem evidência a medonha dentuçapostiça. (Caminha, 1998, p.17)

Vemos por esse retrato que apersonagem é desenhada com traços ecores fortes. Talvez as características dacaricatura servissem bem ao textonaturalista, sobretudo ao processo deconformação das personagens. Assimcomo o caricaturista, o escritornaturalista ressaltou os traços queconsiderava mais fortes para dotar apersonagem de característicasfisicamente marcantes e que denotassem

também a sua personalidade. Ainda queo texto dessa crônica seja de 1896 e oromance A normalista seja de 1893,vemos que Adolfo Caminha se mostravaatento à caricatura, pois abriu o artigodizendo: "Vão longe os tempos em queBordallo Pinheiro e Angelo Agostinielectrisavam a população fluminense áponta de lapis, reproduzindo, nacaricatura, os nossos costumes...".Assim, podemos considerar, ao menosem parte, que, além do processo deconstrução da personagem segundo aestética naturalista, Caminha pode terusado como motivação os recursos dacaricatura.

A personagem José Pereira também

parece ter passado por este processo.Vejamos a sua descrição:

Esse José Pereira fisicamente dir-se-ia irmão gêmeo do Berredo daEscola Normal. Alto, cheio decorpo, trigueiro, a mesma barbaespessa e negra cobrindo quasetodo o rosto, os mesmíssimosolhinhos vivos e concupiscentes.Dele é que se dizia que forasurpreendido em flagrante adultériocom a mulher do juiz municipal noPasseio Público, um escândalo quepor muitos dias serviu de pasto aboticários e bodegueiros.

Começara a vida pública noCorreio, como carteiro, e agora aí

estava feito redator da Província,em cujo caráter tornou-segeralmente admirado por seusfolhetins alambicados, que opúblico digeria à guisa de pastilhasde Detan. Aos sábados publicavano rodapé do jornal fantasiasliterárias, contos femininos emestilo 1830, histórias dissolutasque eram lidas com avidez, mesmocom certa gula pelo mulherioelegante e pela burguesiasentimental e piegas. (ibidem, p.71-2)

Descrição física aliada à personalidadee à literatura formou a personagem. Esseparece ser o desenho caricatural traçado

pelo narrador do romance A normalista.O desenho da personagem acaba porservir à crítica dentro do romance e seestabelecendo como um exemplo demetalinguagem. Desse modo, o exemploda personagem José Pereira se integraao diálogo entre crítica e ficção na obrade Adolfo Caminha.

No caso do romance Tentação, acaricatura aparece de forma mais clara.Sânzio de Azevedo (1999, p.135), aotratar desse romance, afirmou:

Tal como fizera n'A Normalista,Caminha expõe ao ridículo pelomenos um desafeto. Um dospersonagens secundários deTentação éValdevino Manhães,

mas enquanto no primeiro romancea sátira a João Lopes éligeiramente velada pelo nome JoséPereira, apesar de surgir claraatravés das reminiscências dojornalista, no último romance aintenção do autor foi fazer com quetodos vissem noValdevinoManhães a caricatura de ValentimMagalhães. Além da semelhançados nomes, o personagem deTentação é diretor da RevistaLiterária e autor de muitíssimasobras, entre as quais o poemaherói-cômico Juca Pirão, paródiaao "I-Juca-Pirama", de GonçalvesDias.

Isto prontamente nos faz lembrarque o escritor fluminense eradiretor d'A Semana, e que, emparceria com o irmão, AntônioHenrique de Magalhães, publicou AVida de Seu Juca, paródia d'AMorte de D. João, de GuerraJunqueiro.

Sendo assim, o recurso da caricatura noromance não é nenhuma novidade.Novidade é o fato de aqui relacionarmosa presença da caricatura no romancecom o texto da "Crônica de Arte". Trata-se, portanto, de mais uma relaçãopossível de estabelecer no conjunto daobra de Adolfo Caminha, o que reforçauma das validades que apontamos a

respeito da sua atuação crítica: asCartas literárias como crítica-aprendizagem. Ainda que essa validadetenha sido pensada para o primeiroconjunto de críticas produzidas porAdolfo Caminha, ela parece ser bemaplicada às crônicas. Vale destacar aquique tanto o romance quanto o textocrítico foram produzidos no mesmo ano:1896. Então, dito isso, vejamos acaricatura de Valentim Magalhães napersonagem Valdevino Manhães:

Quanto a jornalistas e poetas,conhecia-os quase todos; um porum, desde o redator-chefe doComércio do Rio ("O Timesbrasileiro", na opinião de Furtado),

até o Valdevino Manhães, diretorda Revista Literária e autor demuitos livros, de muitíssimasobras, entre as quais o poemaherói-cômico Juca Pirão, paródiaao "I-Juca-Pirama", de GonçalvesDias.

Evaristo já os conhecia também –de longe uns, outros maisfamiliarmente. O ValdevinoManhães, ou o 'Dr. Condicional',estava no número destes; fora-lheapresentado uma noite, no jardimdo Teatro Sant'Ana. Baixo,pequenino, metidinho a crítico, umbigodinho quase imperceptível,sempre de lunetas – era conhecido

por Dr. Condicional, porque nuncadizia as coisas em tom afirmativo:tinha sempre um mas..., umtalvez..., um se..., quando criticavaobras alheias. Ninguém para eleera escritor feito, nem mesmo osconsagrados; todos haviam de sergrandes poetas, grandesromancistas, grandes homens..., secontinuassem a estudar. Outramania deValdevino Manhães erafalar na sua viagem à Europa. – Oh,em Lisboa merecera os maioreselogios, as mais belas referênciasde quanto jornalista sabe terçar apena (terçar a pena era uma desuas frases prediletas). (Caminha,1979, p.18)

Pela citação, vemos que apersonagemValdevino Manhães édescrita nos seus aspectos físicos e depersonalidade. Como vemos, não é feitaa descrição física de toda a personagem,mas de partes do corpo, decaracterísticas físicas ou de objetos,como o bigodinho dito como "quaseimperceptível", as lunetas, que sempreusava. Devemos também destacar o fatode a caricatura estar a serviço dametalinguagem, ou seja, uma crítica éfeita à crítica por meio de Manhães. Alinguagem da personagem é um exemplodesse fato. O hábito de condicionar assuas afirmações levaria a personagem auma crítica hesitante, receosa, temerosa.Vale destacar também que o desafeto de

Adolfo Caminha por Magalhães pareceter vindo de uma crítica que esseescrevera a respeito do Bom-Crioulo.Adolfo Caminha (1896) ocupara-se derebater a acusação de imoral querecebera esse seu romance por meio deum artigo que foi publicado também emA Nova Revista com o titulo de "Umlivro condemnado", que tem início comeste parágrafo:

Actualmente a critica no Brazil, oumelhor, no Rio de Janeiro, estáentregue ao director de umaCompanhia de seguros de vida e aochefe de um estabelecimentonacional de instrucção, – oprimeiro formado em direito

economico e administrativo, ooutro doutorado em pedagogia.D'ahi, d'essa curiosa amalgama, asentença que condemnou áexecração publica o meu romance –BOM CRIOULO.

Há nesse parágrafo uma referênciadireta a Valentim Magalhães quandoCaminha fala de "um director de umaCompanhia de seguros de vida", pois,como sabemos, Magalhães fundou umacompanhia de seguros durante oEncilhamento, ocorrido durante ogoverno do Marechal Deodoro daFonseca (1889-1891). Muitosenriqueceram graças à políticaemissionista adotada por Rui Barbosa

sem a preocupação do lastro-ouro com oobjetivo de desenvolver aindustrialização do país. É a esse fatoque Adolfo Caminha fez referência emseu artigo. Como vemos, a figura deValentim Magalhães não aparecesomente na ficção caminhiana. Ela é umexemplo desse diálogo entre crítica eficção que se apresenta como uma dasfaces desse polígrafo brasileiro do finaldo século XIX. A caricatura, nessediálogo, é um elemento adicional, que,na nossa compreensão, deve serconsiderado.

De um modo geral, essa crônicaapresenta-nos um Adolfo Caminhabastante atento à caricatura. Como pode

conferir o leitor, ele chega mesmo aafirmar: "Incontestavelmente é umagrande arte a caricatura!". É tambémpossível estabelecer relações dealgumas afirmações dele nessa crônicacom alguns artigos das Cartasliterárias. Como exemplo, podemoscitar dois casos. O primeiro é quandoCaminha lamentou não haver umcaricaturista originariamente brasileiro,uma vez que os três caricaturistascitados por ele – Rafael BordaloPinheiro, Angelo Agostini e JuliãoMachado – são todos estrangeiros.Lamento idêntico, porém no caso daausência do editor, o encontramos nasCartas literárias, destacadamente noartigo "Editores", no qual Caminha

lamentava não haver no Brasil um editorcomo Charpentier.

Uma outra possibilidade de estabelecerrelações entre as Cartas literárias e as"Crônicas de Arte" está no fato deCaminha citar nestas um livro do qualele se ocupara naquelas: O país dasuvas, de Fialho de Almeida. Nas cartas,ele dedicara todo um artigo a esse livro,e nas crônicas ele retorna a citá-lo,porém focando sua análise nasilustrações e o faz destacando o traço dodesenho de Julião Machado e, mais doque o traço, os detalhes, ameticulosidade do desenho e o fato depor tudo em cena. Isso nos faz lembrardo seu artigo "Émile Zola", publicado

nas Cartas literárias. Nesse artigo,Adolfo Caminha destacou o fato de naviagem de Émile Zola a Lourdes ter oescritor francês tudo visto, tudo anotado.Uma espécie de metodologia naturalistafoi mais de uma vez louvada por AdolfoCaminha (1999, p.33) como podemosver nas seguintes citações: "Zola narratudo escrupulosamente,implacavelmente, sem ocultar umachaga, um embuste, uma hipocrisia, umefeito de sol, ou, no meio de tudo isso,uma cena brejeira, observada de relanceentre um abrir e fechar de porta". Emmais uma citação, lemos:

Zola não quis ser incompleto,esquecendo um episodiozinho de

ménage, uma indiscriçãozinhamuito natural e muito lógica, vindano momento oportuno exatamentequando se tratava de conciliar ahigiene com a desordemirremediável de um aquartelamentoprovisório. (ibidem, p.34)

Ao final da crônica, encontramos aindauma crítica de Adolfo Caminha aotratamento dado pela revista A Bruxa aopoema "A pátria", de Guerra Junqueiro,publicado em 1896. Nessa crítica,encontramos também uma consideraçãode Caminha a respeito do fazer crítico:"Um artista não desce a ridicularisaroutro artista como se ridicularisasse umindividuo qualquer da raça dos que não

têm espirito sequer para descompor einsultar... Enfim, são modos de vêr ascoisas...". Nesse caso, vemos queAdolfo Caminha tratou do procedimentodo crítico-artista com um outro artista, oque evidenciava um pensamento jáatento a uma crítica interna daRepública das Letras a que hojechamamos de crítica dos escritores.Assim, encerramos as considerações apropósito dessa "Crônica de Arte".

O autor-crítico teatral

Ainda que não tenha o título de "Crônicade Arte", no número 6 de A NovaRevista, de julho de 1896, encontramosmais um artigo assinado por Adolfo

Caminha, intitulado "Giovani Emanuel"[sic]. Trata-se de um artigo a respeitodo ator italiano Giovanni Emanuel.Leiamos o texto:

GIOVANI EMANUEL

Não somos muito pela artedramatica; o theatro póde ser, emthese, uma bella escóla de moral,um excellente processo paraequilibrar naturezas rudes,organizações impetuosas, almasque trazem do berço o instinctoferoz da perversidade e que vêemno drama ou na comedia exemplosadmiraveis de perfeição humana,altos prodigios de amor e devirtude que não aprenderam na

doutrina christã, nem á sombra deum ente querido e bom, nem naspaginas deste livro desolador eprofundo que se chamalaconicamente – a vida; não somosmuito pelo theatro. Como simplesdiversão, e neste caso exigimos aboa musica, admittimol-o; comoarte – raríssimas vezes otoleramos. Preferimos meditar otheatro de Molière, de Racine oude qualquer outro escriptor, emcasa, longe de todo o artificioscenico, bebendo, palavra porpalavra, toda a philosophia real dodrama ou da comedia, saboreando-lhe o estilo, a belleza da fórma e afinura dos conceitos. O theatro

representado deixa de ser obra deum só autor e perde, cento porcento, da sua originalidade,transformando-se numa especie demiscellanea feita ás pressas ealinhavada ao jeito de cada actor.Quantas vezes o propriodramaturgo desconhece a sua obrae é obrigado, por um egoísmonatural, a aceitar aplausos que lhenão pertencem, porque sãoarrancados exclusivamente por umafalsa interpretação de actor hábilnos traquejos do palco? Se atransformação é para melhor –ainda bem: o escriptor enconlhe-seno seu fauteuil de espectador edeixa correr a peça á vontade dos

interpretes; mas, se lhe deturpam opensamento, a intenção, a phrase,os melhores dittos – eil-otempestuoso, assistindo a uma feirade saltimbancos que o tornamridículo aos olhos do publico e aseus proprios olhos. Tudo écovencional no theatro: a voz e omovimento dos personagens, omeio em que elles se agitam comosimples declamadores banaes, oentreacto, a hora nocturna doespectaculo, os mil defeitos daadaptação – tudo: emquanto que aobra escripta é sempre o original; oauctor nos transmite directamenteas suas idéas, o seu modo de ver oshomens e as coisas e ninguem lhe

sacrifica as bellezas, nem lheavulta os defeitos.

Toleramos a arte dramática, arepresentação theatral, quando oartista é um Giovani Emanuel, umErmetti Novelli, uma SarahBernhardt ou uma Duse-Checchi,dotado de excepcional podercommunicativo e de extraordinariointensidade nervosa, capaz deinterpretar os múltiplos aspectos danatureza humana com a precisanaturalidade, sem se coser ásconvenções do theatro, sem seamoldar ao gosto das platéias, nema interesses de ordem menosartística, dando larga expansão ao

seu genio, sem calcular effeitos,como se estivesse agindo no meiosocial, fora da complicadaengrenagem dos bastidores. A vastaobra de Shakespeare reclama deseus interpretes um conhecimentoprofundo do coração humano, oestudo das paixões e doscaracteres, grande preparointellectual e absolutaindependencia no modo de traduzil-a e de agir em scena. D'outra fórmanão se comprehende o artistadramatico e o theatro reduz-se auma escola de declamação e depantomimeiros ociosos ou melhor –á arte de divertir o publico.

Giovani Emanuel é dos raros quevivem no palco a vida dospersonagens que representam; agrande qualidade que tanto o elevana tragédia shakespereana,vivelando-a com o proprioShakespeare é o amor, á natureza, áverdade, até nos maisinsignificantes detalhes. Aexpressão humana não temsegredos para elle; a alegria e ador, a satisfação e o desespero, acolera, o ciume – todos osmovimentos da alma encontram nasua voz e na sua physionomia otermo correspondente e unico capazde exprimir qualquer d'aquellesestados psycologicos. O olhar do

espectador não o deixa um instante,preso ao trabalho minuncioso dogrande artista, sentindo com ele asexplosões de Othelo, as duvidas deHamlet e toda a formidaveltragedia do Rei Lear, ondeEmanuel cresce, cresce até attingiro gráo maximo da perfeição na artede representar. Assimcomprehende-se o theatro comoobra de arte; d'outro modo elle éum passatempo, qualquer coisadivertida como um livro deanedoctas ou um romance deBouvier. A defeza de Otheloperante o doge, o monologo deHamlet e aquella scena final do ReiLear junto á filha morta –

deixaram-nos perpleos até agra eem 1886, quando pela primeira vezEmanuel trouxe ao Rio de Janeiro,sem reclamos alamoda, os fulgoresdo seu genio. Hoje, como hontem, oartista revelouse excepcional,irreprehensivl. Elle não se limita adecorar Shakespeare no italiano:aprehende-he o pensamento,analysa-lhe a obra como critico,estuda as aberrações de Hamletatravez do prisma scientifico,disseca a natureza selvagem domouro em Othelo e dá-nos atragédia moderna, sem adeclamação clássica econvencional do theatro antigo – éum revolucionário; antes d'elle

nenhum artista ousou introduzir anaturalidade na arte dramatica,libertando o theatro dos velhosmoldes, elevando-o á altura da arteséria em que nem tudo éimaginação e pechisbeque.

Dizem que abandonou a carreira deadvogado para se dedicar aotheatro; a vocação roubou-o a umgenero de vida talvez maisproveitoso e menos incommodoque o de actor obrigado a percorrermundo; este facto, a ser verdade,comprova o nosso juizo de queEmanuel ama sobretudo a Arte, agrande Arte, cujo maiorrepresentante é Shakespeare, o

divino Shakespeare que elleprocura interpretar fielmente aosmenores detalhes, como um sabiotodo empenhado em descobrirnovas contellações, novas estrellasno vasto descampado do céu.

Estamos de pleno accôrdo com oschronistas do dia: o genio deEmanuel é refractario á comedia,mesmo á alta comedia, e por peçoalgum iriamos vêl-o representar oSr. Director ou Tartufo. A obra deMolière não tem a grandeza da deShakspeare (sic) e o Emanuel doTartufo seria a negação da arte eda verdade. Elle nasceu paraglorificar ainda mais o divino

poeta; fora de Shakspeare, que é aexpressão mais que perfeita daarte, o seu trabalhonecessariamente há de se parecermuito com uma opereta de Wagner,si Wagner tivesse descido aescrever operetas. Todo omaravilhosos genio de Emanuelrevela-se na tragedia; ahi ninguemo excede, porque é impossível iralém do sublime. Como discutir aiterpretação que elle dá aos seuspapeis, se essa interpretação é aunica verdadeira – a mais logica ea mais humana? No Hamlet, nasidiossincrasias do principe daDinamarca? Mas o Hamlet deEmanuel é o Hamlet de Shakspeare,

indecifravel na sua melancolia enos seus estos de vingança e deloucura, ironico e cruel, resignadoe impetuoso, como Othelo e o ReiLear. Em todas as creaçõesshakspereanas andam juntos o odio,o amor e a duvida: tal é o homemnatural. Abandonae, porém,considerações philosophicas eadmirae o trabalho artistico deEmanuel; se, após uma unicarepresentação (uma unica) não ojulgardes acima de toda a critica, éque o vosso coração está fechadoao sentimento da arte e qualqueremotividade superior. Ide á operacomica, ide ás truanices bregeirasda rua do Espirito Santo, mas

poupae o vosso rico dinheiro nãotornando ás soirées do grandeEmanuel. O vosso mal é incurável.

ADOLPHO CAMINHA

"Giovani Emanuel" é um exemplo decomo o naturalismo literário marcou acrítica e o pensamento de AdolfoCaminha. Trata-se esse ator de um dosque procuraram empregar o naturalismonos palcos, seguindo os pressupostos deÉmile Zola descritos em seu Onaturalismo no teatro, de 1881.Emanuel notabilizou-se como intérpretede Shakespeare. Infelizmente, não temosmuitas informações a respeito de suasvindas ao Brasil. Esse artigo deCaminha é um exemplo da recepção das

interpretações deste ator no país.Praticamente em toda a primeira páginado artigo, Adolfo Caminha tratou arespeito do teatro. É interessanteobservar como Caminha valorizava otexto teatral e não a interpretação dosautores. A intensa vontade de verdade eoriginalidade parece ser um exemplodos pressupostos que norteavam aleitura naturalista do mundo e da arte.Inúmeras vezes encontramos AdolfoCaminha ocupando-se com a verdadecomo critério de observação e escritaem suas Cartas literárias. Nos seusartigos de A nova revista, sobretudonesse, não foi diferente. A verdade,nesse caso, tem como sinônimo afidelidade ao texto escrito pelo

dramaturgo.

Chamou-nos a atenção também o fato de,repetidamente, Adolfo Caminha (1999,p.165) afirmar que "Não somos muitopela arte dramática", bem diferentedaquilo que ele afirmou em seu artigo"Pseudo-Teatro":

Uma das primeiras cousas que eufaço todos os dias, logo que acordoe me levanto, é correr os olhossobre os jornais da manhã,principalmente sobre as seçõesteatrais, com essa curiosidadeinfantil de quem dá o cavaco porum bom espetáculo. – Uma espéciede instinto natural, um pruridoirresistível me leva a esse canto

das folhas diárias donde saiosempre com desgosto.

Nenhuma novidade, nenhuma peçanova de escritor brasileiro! Sempreo mesmo menu, as mesmasvariantes! Dumas, Sardou, Feuillet,Echegaray... Sardou, Feuillet,Dumas...

Diante desse fato, o que pensar? Umestudo que buscasse uma linearidade depensamento na obra de Adolfo Caminhaencontraria nessas passagens de seusartigos críticos um problema. Mas épreciso aqui retomar a defesa de que épossível aprender mais sobre os autorescom as suas contradições, quebras,

rupturas, fendas, do que com alinearidade de suas afirmações. No tipode crítica que Adolfo Caminha produziu,a que chamamos de crítica dosescritores, é preciso considerar queparte do que é dito aparece, fortemente,como um recurso de fundamentaçãodaquilo que se quer exprimir oudefender. Dizer que "Não somos muitopela arte teatral" e dizer também quecorria, diariamente, as colunas dosjornais em busca de uma peça parecetambém estar a serviço doconvencimento dos leitores.Independentemente da opinião deAdolfo Caminha a respeito do teatro, oque esse seu artigo representa é mais deuma das suas faces como crítico, agora,

voltando-se para o teatro. Como vimosem uma de suas "Crônicas de Arte",Adolfo Caminha já se dedicara à análiseda pintura e, mais especificamente, àobra de Oscar Pereira da Silva.

Esse artigo sobre Giovani Emanuel esobre o teatro, se unido ao artigo"Pseudo-Teatro", dá-nos a ideia de, aospoucos, Adolfo Caminha ir dedicando-se à análise de manifestações artísticasdiversas, dirigindo-se para umapolivalência que ajuda a caracterizá-locomo um polígrafo, uma vez que essapoligrafia é também formada por umacapacidade múltipla de leitura, queinclui também a leitura de imagens, nocaso da pintura, e a leitura de

apresentações cênicas, no caso o teatro.Adolfo Caminha parece aos poucos irganhando terreno. Mas, ao mesmotempo, associando-se aos simbolistasem a sua A Nova Revista, ia sendo maise mais marginalizado. Porém, mais doque fazê-lo de vítima, vale lembrartambém que seu último romance foipublicado pela Laemmert, à época amaior editora nacional, após a queda daGarnier. Mas ocupar-se da literatura, dapintura, do teatro era também um modode fazer-se presente em diversoscírculos, de conquistar possíveisleitores e, assim, conseguir algumrendimento financeiro. Feitas essasconsiderações, passamos a mais um dosartigos de Caminha presentes em A Nova

Revista.

A volta do autor-político

No número 9 de A nova revista, desetembro de 1896, Adolfo Caminha tevepublicado mais um de seus artigoscríticos. Trata-se de "Contre ce temps",título do livro de Luiz Lumet. Antes,leiamos o citado artigo.

CONTRE CE TEMPS

Que bom que me fez a leitura d'estaobra! Encontrei nella o que hamuito não via em escriptosnacionaes e estrangeiros: o caracteraltivo de um homem que pensa, anobresa máscula do talento em

revólta contra o seu tempo, avirilidade intelectual de umescriptor ainda novo e járenunciando ás gloriasinhas dojornalismo e da literatura entreamigos. Contre ce temps é livropara se meditar e exprime o idealda geração que ha de succeder aosactuaes ditadores politicos eliterarios, cujo amolecimentocerebral mais a mais se accentúaem ridiculas producções abaixo demediocres. Encarando, sob variosaspectos o mundo que o rodeia.Luiz Lumet, o edificante auctord'esta obra, mesquinha no numerode paginas e grande nas verdadesque encerra, desdobra aos nossos

olhos o mappa negro das injustiçassociaes, com a rubra indignação dohomem de bem que assiste aotripudio do vicio e damalandragem, do favoritismo e danullidade, e a cada pagina sentimoscom elle a mizeria do operario, oabandono do artista rebaixadoporque tem talento e porquetrabalha, sentimos com elle todosos males que afflingem as classespobres, emquanto as classesabastadas nem sequer pensam emmelhorar a sorte dos infelizes, ecom elle sentimos os prodromos dagreve geral que determinaráviolentamente a transformaçãosocial.

Que bem que me fez a leitura d'estaobra! Prefacia-a o esculptor JeanBaffier, que termina com estaspalavras cheias de sinceridade e deamor: – Coragem, moços, libertae-vos das ridicularias enervantesd'este fim de século, preparae ocoração para a luta suberba que faos grandes caracteres e nobilita ogenio humano.

Em seguida, o autor diz algumasverdades, á guisa de prefacio, ecausa-nos admiração a franquezarude com que se exprime antes daobra – A minhas illusões sobre omundo das letras e das artes (dizelle) cedo se dissipáram. A

realidade brutalisou as chimerasque eu havia acariciado eapareceu-me, então, a hediondezdas cobiças furiosas: o jornalinstrumento de oppressão, fonte detráficos inconfessaveis e osjornalistas cúmplices, ouinconscientes do seu papelnefasto... E por ahi adiante, vae oescriptor pondo á mostra e zurzindoconvictamente a epidermeinsensivel dos camaleões de todasas classes e derruindo dogmaspoliticos e literarios a golpes deverdades. Nunca uma obra seadaptou com tal geito [sic] aonosso meio, e isto não é paraestranhar, quando a vida brazileira,

digamos a vida fluminense nadamais é senão um reflexo do savoir-vivre das nações européas quegovernam o mundo civilizado e omundo barbaro á força depreconceitos e bala de artilheria.Quaes os victoriosos de hoje, comona politica, no jornalismo, como naarte? Os endinheirados, osbonvivents, os epicuristas do ouroe do brodio, cujo patriotismoninguem sabe onde reside e cujasideas teem o colorido falso e avolubilidade intangivel de bolhasde sabão. Ha, em literatura, umgrupo que se quer impor, uma meiadúzia de operarios do belo que nãoaceita a arte como querem pregar

os dominadores de ventre obeso?Fogo nelles! abaixo a ousadia dosnovos! porque em primeiro lugar osque sabem levar esta vida rindo,emquanto o povo chora, bebendo onéctar das altas posições, emquantoo artista trabalha scilenciosamentea ultima phrase de um livro ou oultimo verso de um poema. Há umfunccionalismo que se debate namiseria, de roupa esburacada eolhos tresnoitados? Dimunúam-selhes os movimentos, arranque-se-lhe a aba do fraque velho e seboso:a riquesa do pobre é o trabalho malremunerado ou gratuito. Haoperarios de ambos os sexos queentram para o trabalho das fabricas

como rebanhos phenomenaes atoque de sineta antes de nascer osol? O parlamento nada tem quevêr com isso. Quem os mandatrabalhar? A mulher e os filhos?Pois que trabalhem, que morramtysicos; a mulher e os fihos que searranjem depois.

E' esta a philosophia pratica emodrna dos potentados dojornalismo e da politica. Elles nãopensam na sorte dos infelizes, nemquerem saber como vive ocavoqueiro exposto ao sol desdeque o sol nasce até que se esconde.Haja dinheiro, haja bom dividendo,augmentem os lucros e chore quem

for tôlo, que a dignidade humanaestá na rasão inversa do ouroaccumulado e ganho sabe comoDeus como...

O primeiro capitulo de Louis Lumeté sobre um banquete que elle dizter assistido por ocasião dobacharelamento do filho de umfazendeiro. Estavam presentes o Sr.Maurel, juir no Tribunal civil e efornecedor de aguarelas ao museuda sub-prefeitura, o Sr. Vagand,médico e vice-presidente daAcademia do Centro, o Sr. Billot,deputado, membro da Ligacancioneira e de outras instituiçõesmais ou menas [sic] botocudas, o

Sr. cura d'Argy, laureado noCongresso dos Antiquarios, oprofessor de retorica dalocalidade, e o filho, tenente deartilharia – um representante decada classe social. Sentaram-setodos á mesa e não é difícilimaginar o apetite do Sr. curad'Argy e dos outros convivas. A'hora dos brindes, tomou a palavrao delegado da Igreja e, como setivesse no pulpito, disse, entreoutras coisas, que ao ministro deDeus a existencia e ampla, facil,que os dons abundam e que a ellese curvam todas as fontes.

Falou o soldado, o tenente: – Que

seria o padre sem a força militar?Nada como os galões, uma medalhade honra, uma gran-cruz! Eaconselhou ao bacharelando quefosse estudar para soldado.

Ergueu-se o parlamentarista,philantropo e advogado: – Meussenhores, não bastam a Religiãonem o Exercito para conservar aordem necessária ao progresso dahumanidade. Meditae sobre o papeldo legislador. O legislador faz a leipara a executardes. Em primeirologar os eleitos do povo.

E aconselhou ao jovem bacharelque se exercitasse na politica.

O juiz, porém, tomou a palavra: – Eonde estamos nós? A lei sem o juizé letra morta, nós somos os esteiosda sociedade.

E indicou a magistratura ao filho dofazendeiro.

Diz então Louis Lumet que nãofalou tambem, porque ninguem oacreditaria, mas se lhe coubesse apalavra naquelle momento era paraaconselhar ao bacharel em letrasque ficasse na fazenda com seuspaes, com a gente de seus paes, quese dedicasse á lavoura, ao plantio;porque a essência da vida está nocampo e no trabalho da terra, nocultivo dos legumes e das arvores

fructiferas, emquanto na Religião,no Patriotismo e nas leis só hahypocrisia e mentira, e o exercitodeforma criminosamente o homem.

Neste capitulo anda o espirito deTolstoi abençoado o aldeião, ocamponez e a vida livre depreconceitos e convenções,renunciando a todas as grandesaspara trabalhar com os pequenos epara amar os simples. No campo aomenos tem-se liberdade, respira-seá farta, o oxygenio é puro etonificante e o trabalho não dóecomo uma injustiça; a verdadeirareligião do camponez é a natureza,a familia e o amor ao proximo,

coisas que já não existem quasi nassociedades modernas. Egoismo ehypocrisia – é o que se vê; cadaindividuo trabalha para illudir ooutro e para o explorar. As guerrascivis e internacionaes pouco apouco vão enrijando os corações etornando-os insensiveis á desgraçaalheia. A propria caridade se fazpor interesse e por vangloria, nãoimpulso natural ou sentimento decompaixão. A politica é uma escolade cinismo que arrasta os maispuros caracteres e especulações visem detrimento da patria e doindividuo. A religião é um embuste.A arte... oh, esta então, de graveque era passou a bêbeda e grotesca

e os poucos que ainda seconservam fieis á única nobrezareal – á nobresa do espirito, sãorepudiados e expulsos do logar quelhes compete na vida. De sciencianão falemos: et ont toute science ilfaut sentir, il faut aimer, etadmirer como na belle phrase deLumet; a sciencia é privilegio dospedagogos.

Outro capitulo admiravel deContre ce temps é o que serelaciona directamente com asartes. Ahi a indignação do escriptornão tem limites. As exposições depintura representam o gosto dacritica profissional, encarregada de

fazer a escolha dos quadros – Ooperario honesto, apaixonado porsua arte e que aborrece a reclameinsolente como com a almaangustiada, porque, depois de sesubmetter á decisão de juizes, sofreainda a diferença do publico e osataques da critica, quando a suaindividualidade se eleva acima danorma.

E não é isto que vemos entre nós?Tudo quanto não estiver de acordocom a regra – em pintura ou em arteescripta – não é consideradoobjecto de admiração. O artista noBrazil há de, por força, curvar-seao juízo d'aquelles que, em matéria

de arte, preferem uma oleographiade bazar a uma tela caprichosa deautor desconhecido, uma anecdotade jornal, indecorosa e pulha, auma phrase ousada de escriptorindependente, como se a arte nãotivesse a sua evolução, o seudesdobramento natural através dasidades.

Houve um tempo, continúa Lumet,em que não havia salões, nemcríticos; nesse tempo construiram-se cathedraes, fizeram-se trabalhosmaravilhosos em madeira e metal,a ourivesaria cinzelava primores,tecia-se ouro e seda. Isto quersimplesmente dizer que o papel da

crítica é nullo e que a obra d'artepara triunphar não precisa do favorou da odiosidade os críticos. Aobra hoje atacada é vencedoraamanhã, mau grado o despeito e ainveja dos impotentes, quando trazo cunho da verdadeira arte. Quevalem noticias de jornaes efolhetins de baixo preço literário,se o tempo engole tudo, com umacrueldade ironica, poupandocarinhosamente o trabalho dosgrandes sonhadores que sesacrificam por um idealnobilitador? Que valem ódios,pequeninas [...] jantares no Globo econferencias no Pedagogium, setudo isso morre sem deixar

vestígio, como flores de um dia? Aobra d'arte resiste, como o bronze,a todas as intempéries; a criticadesaparece e ella augmenta devalor de seculo em seculo, aosolhos d ecada geração, fogo eternoa brilhar no nevoeiro do tempo – AArte é tudo (escreveu Eça deQueiroz) tudo o resto é nada. Sóum livro é capaz de fazer aeternidade de um povo. Leonidasou Péricles não bastariam paraque a velha Grécia ainda vivesse,nova e radiosa, nos nossosespíritos: foi-lhe preciso terAristófanes e Eschylo. Tudo éephemero e ouco nas Sociedades –sobretudo o que nellas mais nos

deslumbra. Nada mais verdadeiroe consolador. Jornalistas, políticos,altos funccionarios, chefes deEstado, banqueiros, milionarios –tudo vae de roldão na onda doesquecimento: só o artista, o artistadigno d'esse nome, viveeternamente na memoria dasnações.

E berram contra o socialismo econtra a anarchia os poderosos, osendinheirados, que nuncaexperimentaram o mais leve golpede adversidade; querem asdistincções, as honrarias, osprivilegios, o monopolio, aescravisação do operariado o

enthesouramento da fortunaadquirida sem trabalho, entre umabaixa e uma alta de cambio, ouiludindo a boa fé dos governos e dopovo, do povo principalmente, queé a fonte de todas as riquezas. E'natural, muitissimo natural, porqueo socialismo quer exatamente ocontrario e o [...] do individuo peloindividuo. – L'homme qui rouledans um char ne sera jamais l'amide l'homme qui marche a pied!Como já dizia o poeta do MahâBaratah. O nivelamento dasclasses é um perigo calamitosopara a sociedade, argumenta obanqueiro F, quando o únicoameaçado e ele, o felizardo, que

nunca penetrou na choupana de umpobre, nem nunca assistiu ásamarguras da [sic] uma família nodesespero da fome; o únicoameaçado é elle, que vive derendimentos e gasta em joias esedas e carruagens o que faria obem estar de centenas demizeraveis. A anarchia não é odesrespeito, a desordem, omorticinio e o roubo, é um estadosocial de cooperação mútua, emque não há governo e o individuo éobrigado pelo individuo a praticaro bem, a moralisar os seus actos deacordo [...] uma sociedade em quenão ha pobres nem ricos e em quetodos são irmãos, com os mesmos

deveres e os mesmos direitos unsperante os outros. Elisée Reclus, nodiscurso que proferiu em 1894 naloja maçônica dos AmisPhilantropes, de Bruxellas, e quefez imprimir com o tituloL'Anarchie, explica a velha origemda palavra, o ideal a que ellacorresponde, e prophetisa otriumpho da moral anarchista quepara elle é a que melhor traduz aconcepção moderna da justiça e dabondade.

Que venha, portanto, a nova formade existencia comum. Basta deopressão, de governo official, dearte a retalho e de hypocrisia.

ADOLPHO CAMINHA

Infelizmente, não encontramosinformações a respeito de Louis Lumet ede seu livro Contre ce temps, cujaleitura tanta admiração causou emAdolfo Caminha ao ponto dele iniciarseu artigo com a seguinte afirmação:"Que bem que me fez a leitura d'estaobra!", repetindo-a mais uma vez. Aindaque nada saibamos a respeito do autorfrancês é possível fazer algumasinferências a seu respeito. A primeiradelas é que, talvez, se tratasse de maisum dos "obscuros" como tantos queatraíram a atenção de Adolfo Caminha.Quanto ao livro, é o próprio AdolfoCaminha que nos dá os indícios de que

se tratasse de uma obra poucovalorizada ao afirmar que era"mesquinha no número de páginas".Assim, obscurantismo e simplicidade naedição parecem ter chamado a atençãode Adolfo Caminha para a obra e o seuautor. Mas o que parece mesmo terprendido a atenção do autor de Anormalista foi o fato de Lumetcorresponder a um perfil de homem deletras que Caminha começara a criar nassuas Cartas literárias. Caráter altivo,nobreza máscula, talento, revolta,virilidade intelectual, renúncia: essassão as características do verdadeirohomem de letras na concepção deCaminha, características essas que eleencontrou no jovem Lumet.

Assim como Adolfo Caminha, Lumetparece ter-se colocado como umdenunciador do que ele consideravacomo sendo injustiças cometidas contraos homens de letras de seu tempo. Umdesfile de personagens ocorre nesseartigo de Adolfo Caminha, como ele já ofizera em suas Cartas literárias,notadamente em "Novos e velhos". Emprincípio, somos levados a pensar queAdolfo Caminha estabelecera umbinômio vencidos/vencedores. Mas àmedida que nos aprofundamos em seutexto, vemos que há nele uma tensão, queperpassa a obra de Caminha,notadamente a sua crítica, entre osvariados sujeitos formadores do sistemaou do campo literário. No artigo, Adolfo

Caminha retomou uma dascaracterísticas de sua crítica: o fato deela ser realizada por um autor de ficção.Um exemplo disso é a retomada dapresença de personagens. O primeirodeles, o autor idealizado, quecomparece ao lado dos sonhadores; emoposição aos endinheirados, os bomvivants, os epicuristas do ouro e dobrodio.

Nesse artigo, assim como em outros dasCartas literárias, encontramos umexemplo de Adolfo Caminha como umautor-político, colocando-se contra asinjustiças que ele e alguns dos homensde letras de seu tempo sofriam. Talvezseja por esse motivo que o tema do

socialismo apareça nesse artigo. Nacoluna "Sabbatina", do jornal O Pão,Caminha e os Padeiros fazem críticasaos burgueses. A respeito desse assuntojá tratamos em item específico desteestudo. Não sabemos o nível deenvolvimento de Adolfo Caminha com osocialismo – e é preciso observar que apalavra não aparece em seu artigografada com a inicial maiúscula – nemse esse envolvimento era amadurecidodo ponto de vista político, uma vez queo socialismo, na segunda metade doséculo XIX no Brasil, é entendido comomais uma alternativa, assim como aRepública, ao status quo vigente. Trata-se, muito mais, de uma possibilidade deluta pela igualdade social do que um

sistema econômico e político que seconfrontasse com o capitalismo. Umamistura de anarquia e socialismo éencontrada em "Contre ce temps", o quelhe dá um tempero, ao mesmo tempo queindica uma certa indeterminação ouconfusão conceitual. Ainda assim, esseseu artigo se destaca pelo vigor políticocom que ele se colocou.

A volta do autor-crítico de si mesmo

No número 2 de A Nova Revista, defevereiro de 1896, foi publicado oartigo "Um livro condemnado" assinadopor Adolfo Caminha. Antes dasconsiderações a respeito dele, façamosa sua leitura:

UM LIVRO CONDEMNADO

Actualmente a critica no Brasil, oumelhor no Rio de Janeiro, estáentregue ao diretor de umaCompanhia de seguros de vida e aochefe de um estabelecimentonacional de instrucção, – oprimeiro formado em direitoeconomico e administrativo, eoutro doutorado em pedagogia.D'ahi, dessa curiosa amalgama, asentença que condemnou áexecração publica o meu romance –BOM-CRIOULO. Foi umverdadeiro escândalo o actoinquisitorial da critica, talvez omaior escândalo do anno passado.

Não houve quem não quisesse lêr aobra mais calumniada de quantasde tem escripto neste paiz. OBOM-CRIOULO vendeu-se á guisade cartilha de infancia, com grandesurpresa para o auctor, queacreditava no poderio da criticaeducadora.

Em nome do Padre, do Filho e doEspirito Santo, eu bemdigo odesespero, a dolorosa agoniad'aquelles que, após vinte annos detrabalho e de aspiração, volvemmelancolicamente os olhos para opassado e não encontram, na sendaque trilharam, obra que osrecomende ao futuro – uma pagina

sequer, um periodo cantante, umverso burilado... uma idéa nova!Bemdigo, em nome de Jesus, o seuodio mesquinho no talentorevolucionario dos estreiantes dehoje... A elles – os torturados pelasenilidade intellectual – não basta aminha compaixão, a minha penaenorme...

Vem de muito longe essa guerra áverdade na arte. Inda nãi saiu dosprelos obra natralista que não fossetaxada de immoral, desde que ogrande Balsac atirou á circulação oseu rimeiro livre de analyse.

A Physiologie du marriage é umdesrespeito á família, um códice de

instrucções obscenas, por issomesmo que retrata a vida humanacomo ella é, não passa de umabrande obra immoral.

Flaubert o tão citado o tão poucolido Flaubert, esteve á porta dostribunaes porque escreveu MadameBovary, um attentado á moral, umlivro dissolvente, e estudou aLuxuria num santo!

Zola, esse monstro de genio, nãofreqüenta a aristocracia porqueteve a loucura genial de levar aocabo os Rougon – vinte volumesimmoraes – descarnando umasociedade inteira!

Huysmans, fazendo o Là bas,historiando os vicios incríveis daIdade Média, resuscitando a missanegra, commetteu uma acçãoindigna...

Maupassant, reproduzindo amoresadúlteros nesse livro magistral deBel-Ami, offendeu a moral cristã.

Eça de Queiroz, confundindoironicamente uma relíquia santacom um objecto asqueroso, aomesmo tempo que descreve aPaixão do Senhor, e trazendo apublico o crime de um sacerdote daIgreja, profanou como um judeu...

Enfim, todos os grandes

escriptores, todos os grandesartistas da palavra, rebegaram amoral, chafurdaram na crápula,tornaram-se despresiveis eindignos da consideração publica.

Isso é o que pretende a critica doAlto Amazonas, a ignorância dosque não enxergam além doconvencionalismo de salão, muitavez porque se reconhecem na obrado artista e se julgam denunciadospublicamente; d'ahi o odio contraque teve a inaudita coragem de osestudar na pessoa de um primoBazilio ou de um AristidesSaccard...

Que é, afinal de contas, o BOM-

CRIOULO?

Nada mais que um caso de inversãosexual estudo por Krafft-Ebbin, emMoll, em Tardie, e nos livros demedicina legal. Um marinheirorudo, de origem escrava, semeducação, nem principio algum desociabilidade, num momento fatalobedece ás tendenciashomosexuaes de seu organismo epratíca uma acção torpe: é umdegenerado nato, um irresponsávelpelas baixezas que commete atéassassinar o amigo, a victima deseus instinctos. Em torno d'elle seespraia o romance, logicamenteencadeado, de accôrdo com as

observações da sciencia e com aanalyse provável do autor, que, nocaracter de official de marinha, viuos episodios accidentaes quedescreve a bordo.

Comprehende-se tambem que,estudando um meio segregado dasociedade e naturalmente baixo,como esse em que vivemmarinheiros de proa, não era lícitoempregar a technologiaconvencional de um meiocivilisado, Bom-Crioulo fala ocalão de bordo.

Procure a critica os Attents auxmoeurs, de Amboise Tardieu,professor de medicinal legal na

faculdade de Paris, e ahi, nessaspaginas, encontrará os signaescaracterísticos de Bom-Crioulo ede Aleixo (De la péderastie et dela sodomie); procure ainda aextraordinária obra de Moll – Lesperversions de l'instint genital – everá porque razão o autor de BOM-CRIOULO não pôde deixar de serfiel nas suas descripções em todo oseu trabalho.

A julgar como certos imbecis, –que os personagens de um romancedevem reflectir o caracter do autordo romance, Flaubert, Zola e Eçade Queiroz praticariam incestos eadulterios monstruosos.

Quanto a ser novo em literatura oassumpto do BOM-CRIOULO, éainda uma affirmação ingenua oumentirosa da crítica educadora. NoBrazil foi elle tratado pelo Sr.Ferreira Leal no romance Umhomem gasto, com a differença deter o escriptor arrancado o seupersonagem á aristocracia dePetrópolis.

Abel Botelho deu O Barão deLavos, quinhentas e tantas paginasde psychopathia sexual, e aindamerece o respeito e a admiração dasociedade em que vive, porque lá,em Portugal, ha um criterio firmeno julgamento da obra d'arte.

Agora, por que esses escrúpulos,essa fingida repugnancia da critica?

O naturalismo é a propria vidainterpretada pela arte; e, sendo oromance o romance a fórma maisnatural da arte claro está que só éimmoral quando não apresentacaracteres da obra artistica. Ora,andou-se a escrever que o BOM-CRIOULO "tem paginasexcellentes, vigor de expressão,estylo claro...", mas que o thema ébaixamente repugnante. Logo,trata-se de uma obra em que só othema é mau. Em arte, porém, nãohá themas maus, todos os asumptos,até os mais baixamente

repugnantes, como o que inspiroua Huysmans o Lás bas, sãooptimos, desde que o escriptorsaiba revestil-os de uma fórmaesthetica. E' o meu caso, dil-o acritica, sem o querer, elogiando afórma do livro e condemnando othema.

Qual é mais pernicioso: o BOM-CRIOULO, em que se estuda econdemna o homosexualismo, ouessas paginas que ahi andampregando, em tom philosophico, adissolução da família, oconcubinato, o amor livre e toda aespecie de immoralidade social?

Está bem visto que é BOM-

CRIOULO não é obra para se darde premio nas escolas. Escreverpara educandas é uma coisa eescrever para espiritosemancipados é outra coisa.

Se a critica, ingenua e pudibunda,lançasse o olhar sobre o volume deTardieu, que eu tenho na minhaestante com umas gravurashorríveis e competentementenumeradas, representando lesdesordres que produit lapéderastie passive ou la sodomie...não sei que gestos de náusea faria,cobrindo o rosto com a mão emleque...

E o autor do BOM-CRIOULO nãodesceu ao exame medico legal deAleixo, porque então começaria aimmoralidade da obra. Portanto, foiverdadeiro e leal como romancistaque não quer, a pretexto deerudição, armar no effeitoescandaloso.

A critica (?) desejava que elleescrevesse 'um livro travesso,alegre, patusco, contando scenas dealcova ou de bordel (textuaes) ounoivados entre as hervas á lei dobom Deus'!... Mas como, em vezd'isso, apresentou uma obraestudada, um livro bemintencionado e verdadeiro, uma

nalyse da vida, os criticos,mordidos na sua impotencia derodapéistas, fizeram de D. Quixotee juraram das cabo do escriptorque, ousadamente, preferiu oescabroso thema do BOM-CRIOULO ás taes scenas dealcova e de bordel.

Tudo porque a critica literaria noRio de Janeiro está entregue aodirector de uma Companhia deseguros e ao chefe de umestabelecimento nacional deinstrucção...

Quando acabará a dymanstia dosLa Palisse?

A grande verdade é que, emquantoo Brazil for literariamentegovernado por homens que emoutro qualquer paiz nenhuma acçãoteriam sobre os espiritos, dominaráa literatura de bric-à-brac e ofertilismo Sr. Xavier de Montépinarrancará lagrimas á criticanacional.

ADOLPHO CAMINHA

Pouco sabemos da recepção do Bom-Crioulo à época de seu lançamento. Asinformações dadas pela sua fortunacrítica fazem-nos crer que a publicaçãodo romance tenha causado grandepolêmica, sobretudo no ambiente daMarinha. Ainda que não seja o pioneiro

nas literaturas brasileira e portuguesa atratar do tema do homoerotismo, Bom-Crioulo se destaca na nossa histórialiterária por tratar do tema abertamente.O seu antecessor, ou seja, o romanceUm homem gasto, de Ferreira Leal, épouco conhecido do público geral eigualmente dos especialistas emliteratura LGBTT1 além de tratar dotema superficialmente. Dele não hásequer uma única referência ou citaçãonas histórias da literatura brasileira.

Mais de uma vez nos ocupamos desseartigo de Adolfo Caminha, que retomoua autodefesa, como já o fizera com seuromance A normalista. A acusaçãocontinuou a mesma: "immoral". Nesse

caso, com uma agravante: tratar de umtema considerado por si só "baixamenterepugnante" para os padrões da época eque assim se manteve, como quesito dejulgamento crítico, até pelo menos adécada de 1960 quando CavalcantiProença (1971) afirmou: "Nãoaconselho a ninguém, portanto, a leituradesse romance". Proença estava tratandodo tema do homoerotismo. Portanto,parte importante da história da recepçãodo Bom-Crioulo é exemplo da históriada censura à literatura no Brasil.

Ainda a respeito do conteúdo desseartigo de Adolfo Caminha, já analisamosa relação entre a sua ficção e o recursoda caricatura, notadamente no caso da

personagem Valdevino Manhães,apontado por nós e pela fortuna críticado romance Tentação como a caricaturado crítico literário Valentim Magalhães.No próprio artigo, Adolfo Caminhareferiu-se a Valentim Magalhães aodizer que a crítica no Rio de Janeiroestava entregue ao diretor de umacompanhia de seguros. Sobre esse fato,já nos detivemos em seção anterior.Vemos que Adolfo Caminha tambémexpandiu a sua crítica para JoséVeríssimo, ao dizer que a crítica cariocaestava entregue também ao "chefe de umestabelecimento de ensino".

Em "Um livro condemnado", AdolfoCaminha fez um apanhado dos registros

de tratamento do homoerotismo comotema dos estudos da ciência e daliteratura, combinação essa bem cara aoprocesso de escrita do naturalismo, quesempre procurou apoiar-se na ciênciacomo recurso para a composiçãoficcional. Além de defender o seuromance da acusação de "immoral", foi,de fato, o próprio Adolfo Caminha quese defendeu. Para tal, ele chamou em seuauxílio as experiências de Flaubert,Zola, Maupassant, Huysmans, Eça deQueiroz ao afirmar: "A julgar comocertos imbecis, – que os personagens deum romance devem reflectir o caracterdo autor do romance, Flaubert, Zola,Eça de Queiroz, praticaram incestos eadulterios monstruosos". Adolfo

Caminha alegou também não ser oprimeiro a tratar do homoerotismo,citando, além de Ferreira Leal, AbelBotelho e o seu O barão de Lavos. Oautor de Bom-Crioulo parece terprocurado constituir em torno de si e deseu romance uma espécie de armaduraque lhes servisse de defesa e de refúgio.

Graças à constituição dessa armadura,ficamos sabendo que Adolfo Caminhaera leitor de títulos científicos que àépoca se ocupavam do que hojechamamos de sexualidade. É então queaparecem os nomes de AmbroiseTardieu, Albert Moll e Richard vonKrafft-Ebing, o que demonstra queCaminha estava se preparando para

escrever a respeito do homoerotismo econformar as suas personagens. Além, éclaro, para demonstrar que Caminhaestava atualizado com os estudosrealizados na Europa, uma vez que atradução de Les perversions del'instinct genital, data de 1893;portanto, dois anos antes da publicaçãodo romance em causa. Apesar de terescrito o Bom-Crioulo, Caminha não secolocou de forma favorável aohomoerotismo, como, aliás, não poderiadeixar de ser, chegando mesmo aafirmar: "Qual é mais pernicioso: oBOM-CRIOULO, em que se estuda econdemna o homossexualismo, ou essaspaginas que ahi andam pregando, em tomphilosophico, a dissolução da família, o

concubinato, o amor livre e toda especiede immoralidade social?".

Leitor de teses científicas sobre asexualidade, autor de romancepolêmico, crítico literário e o crítico desi mesmo, Caminha parece ter com o seuBomCrioulo feito a tentativa maisarriscada de se lançar na literaturabrasileira. O tema, apesar de alinhá-locom o conhecimento produzido, noexterior, sobre a sexualidade humana esendo, por esse motivo, bastante caro aonaturalismo, não lhe abriria tantasportas, apesar de Tentação, seu últimoromance, ter sido publicado pela editoraLaemmert, à época uma das maisimportantes do país juntamente com a

Garnier. Assim, esse artigo aponta parauma tensão que acompanha a obra deAdolfo Caminha: o fato de ele procurarse estabelecer no campo literário aomesmo tempo que algumas de suas açõese opiniões pareciam afastá-lo dessapossibilidade. Ao tentar defender-se edefender o seu romance, Caminhaparecia sentir o risco que a sua obracorria e, nesse caso, dizer obra significatodo o conjunto, uma vez que a acusaçãode "immoral" se repetia, o que poderiamarcá-la fortemente. Destacamostambém que, nesse caso, AdolfoCaminha não abriu mão da autoria doseu artigo, assinando-o, como não ofizera no do caso do artigo escrito paraa defesa do seu romance A normalista.

Terminado os comentários a respeitodesse artigo, passemos ao únicoprefácio escrito por Caminha.

O autor-crítico-prefaciador

Assim como os demais artigos aquitrabalhados, esse prefácio é igualmenteraro. Pouco se escreveu a seu respeito,daí a dificuldade de estabelecer umdiálogo com a sua fortuna crítica, essaquase inexistente. Trata-se de umprefácio em forma de carta, o que nospermite expandir a poligrafia de AdolfoCaminha, agregando à crítica a carta. Defato, esse prefácio antecede parte dostextos das Cartas literárias, uma vezque fora escrito em 1891 e aquelas em

1895 na versão em livro. Ainda antes deescrever as "Cartas literárias" comoforam publicadas no jornal Gazeta deNotícias, do Rio de Janeiro, Caminhafoi um prefaciador. Esse prefácio só nãoantecedeu os artigos de 1885. Quanto aolivro prefaciado – Estrofes, de F. AlvesLima, publicado naquele ano pelaTipografia Universal de Cunha e Ferro,em Fortaleza – não tivemos acesso a ele.Faltou-nos, então, na análise desseprefácio, conhecer o objeto prefaciado.Assim como fizemos com os demaisartigos, reproduzimos aqui o prefáciointegralmente:

Carta2

(IX:) Meu caro A. Lima.

Nestes tempos fenomenais derequintado mercantilismo, em quedia a dia acentua-se essa tendênciageral para as especulações deordem exclusivamente utilitária epositiva; nestes tempos em que oespírito humano já não se prende,senão por vínculos muito tênues, aovelho metafisismo germânico, semproveito real para a causa dahumanidade; hoje que o"apriorismo" não exprime outracousa mais do que um momentohistórico da evolução filosófica, eque todos os fenômenos mecânicose psicológicos estão subordinados

diretamente à observação e àexperiência; parece temeridadeatirar aos quatro ventos do destinoum simples, bem que inofensivo,livro de versos, e, o que é mais, deversos líricos sentimentais,mormente se o poeta não é bastanteconhecido na aristocracia dasletras.

Hoje, quiçá como em tempo algum,a humanidade parece empenhada nacompleta realização do aforismoinglês – "o tempo é dinheiro", queequivale ao pensamento de Voltaire– "O fim do homem é a ação".

(X:) Porisso, meu amigo, jáninguém se atreve a cometimentos

que não tragam imediata utilidade àcoletividade social.

A ciência, num arremessograndioso, divorciou-se dos velhospreceitos teológicos e metafísicos,enveredando resolutamente nolargo caminho aberto pelo espíritogenial do criador da FilosofiaPositivista, não obstante as sábiascontrovérsias de H. Spencer e S.Mill.

A arte, por sua vez, teve queobedecer à corrente impetuosa dosnovos ideais aliando-se à ciência eseguindo-lhe as pegadas.

Ciência e Arte deram-se as mãos, e

aí vão juntas, como duas irmãsgêmeas, a joeirar no espíritohumano idéias verdadeiramenteúteis e civilizadoras.

Nestas condições, repito, parecearriscando publicar um livro deversos que não satisfaça, ao menosem parte, às exigências do neo-criticismo tão escrupuloso nos seusprocessos de análise experimental.

Sobre o futuro da poesia muito setem aventado neste assombrosofinal de século; o certo, porém, éque os críticos são quase unânimesem vaticinar seu desaparecimento,talvez por julgarem-se objeto desimples adorno das faculdades

subjetivas; alguns, entretanto,querem que ela, como todas asartes, hade, fatalmente, correrparelha com a ciência.

Em vista disso já não causaestranheza a interessante variedadede escolas que nestes últimostempos têm afluído, à laia de"poesia científica" ou "realista",ainda que à primeira vista pareçaabsurdo tentar reformar o que porsua natureza afigura-se imutável eeterno como o amor ou a gravitaçãouniversal.

Neste ponto tomo a liberdade desubscrever as criteriosas (XI:)

palavras do meu ilustrado amigoDr. Farias Brito:

"É certo que toda a poesia digna demerecer esse nome deve sercientífica; isto, porém, no sentidode que não pode deixar de sofrer ainfluência do estado intelectual daépoca em que foi produzida."

Exatamente.

Vão longe os tempos em que ossacerdotes da poesia, verdadeirosadivinhos confiados apenas na"inspiração", espécie de revelaçãodivina, recolhiam-se, à maneira dosdruidas gauleses, ao adito dasflorestas seculares para vaticinar

os sucessos e o futuro dos povos.

O poeta de hoje tem outra missãomuito diferente, mais nobre, maiselevada e consentânea com oespírito do século. Isto não quersignificar que ela tenha a liberdadede discutir em linguagem rítmica osmais transcendentes problemassociológicos e filosóficos,analisando, comparando ededuzindo com a calma fria eimpassível de um sábio.

Isso seria, nem mais nem menos,confundir ciência com poesia.

Caminhem juntas, embora, elas têmfins diferentes ainda que não

diametralmente opostos.

Uma investiga e analisa, partindodo simples para o complexo,estabelecendo leis e tirandocorolários, outra apenas sintetiza –eis a distância que as separa.

E não se diga que uma não temmais razão de ser em vista dosprogressos assombrosos da outra.

Como todos os ramos da atividadeintelectual, a poesia tendenecessariamente a evoluir, e,portanto, a desenvolver-se, aaperfeiçoar-se, nunca adesaparecer, porque é tãocivilizadora, tão útil como a

estatuária, como a arquitetura,como a filosofia, como a própria(XII:) ciência. Seu destino não ésomente consolar a humanidade nostranses aflitivos, senão tambémacrisolar os costumesestigmatizando o vício, como aMorte de D. João, de G. Junqueiro(poesia socialista), dignificar oamor, como nos eternos sonetos dePetrarca (poesia lírica), eglorificar o heroísmo dos povos,como nas epopéias típicas deHomero e Camões (poesia épica).

Posso estar em erro, mas éconvicção minha que a poesia haderepresentar, talvez em futuro não

muito remoto, papel tão salientecomo o que representou na infânciada humanidade, quando era apenasportadora de dogmas e mistérios,sendo, como é, seu fim hoje muitomais nobre e elevado do queoutrora.

Não me refiro á poesia decadente,eivada de pessimismo e descrença,dos derradeiros abenceragens doromantismo, tão nociva ao espíritoda mocidade.

Essa, por sua própria naturezamórbida e doentia, desaparecerácom o tempo ou passará a serjulgada pelos médicos em vez doscríticos.

Quando ouso dizer que a poesianão desaparecerá, eu me reporto àpoesia, tal qual eu a compreendo –a sã poesia, a poesia máscula,sincera, profunda e humana.

Antes de tudo e para ser sincera,ela deve ser a expressão em versoda verdade filosófica ou científica.

A verdade é tudo na Arte como naCiência.

"O gênio, disse Feuchtersleben, ogênio é a verdade. O que constitui aoriginalidade do talento é a arte denos interrogarmos a nós mesmo /s/em vez de consultar livros."

Porisso mesmo, meu caro poeta, éque eu aborreço essa poesiaamaneirada e "artificiosa" que aíanda com o nome singular de"parnasiana" e que prima (XIII:)pela "toilette", quer dizer, sacrificaa "intuição" e a "verdade",qualidades essenciais do bompoeta, pelo requintado aticismo daforma.

– A Forma, a Forma é tudo na Arte!exclamam os idolatras da novadeusa.

Muito bem; não há criminá-lo porisso. O culto da forma deve sersagrado para o artista digno destenome.

Mas, se a questão reduz-se tãosomente a esse amontoado deadjetivos sonoros, verdadeiros"mots sucrés", que não traduzem averdade; se tudo reduz-se a medirversos a compasso, então, meuamigo, em que pese à minhaestética, serei o primeiro areconhecer que a poesia morrerá deesterilidade e inanição, para maiorglória da escultura.

Conciliar as duas cousas – idéia earte – de modo a produzir efeitossurpreendentes, eis, a meu ver, emque consiste a verdadeira poesia.

Evidentemente é absurdo querer

adaptar a esta arte por excelênciasubjetiva, os mesmos processosmorfológicos das artes plásticas.

Desde o momento em que o poetaconseguir, sob a forma que não sejaum cárcere para o pensamento,comunicar-nos o seu modo deconceber o Universo, para queexigir dele esse culto da formalevado a quintessência, que outracousa não é senão a "arte"subordinada ao "artifício"?

Nenhum dos poetascontemporâneos é, na minhaopinião, mais original, maissincero e, ao mesmo tempo, maisprofundamente humano do que

Antero de Quental.

Entretanto ninguém se atreverá adizê-lo "impecável burilador" ou"parnasiano".

Quental sintetiza, como nenhumoutro moderno, (XIV:) uma época,um período histórico cheio denuanças sombrias, de dúvidas edesalento.

A verdade, pois, na essência e naforma, eis, numa palavra, a Arte.Nada de afetação, nada deeufemismo, nada de "artifício".

Agora, meu amigo, deixa que eu tediga francamente, sinceramente, o

que eu penso das tuas Estrofes.

Nada me encanta mais nestas 80páginas do que o lirismoespontâneo e natural que soubestederramar nelas.

É verdade que há aí muitosentimentalismo, próprio talvez dequem, como tu, é muito moço ainda.

Esse lirismo, por vezes pueril,traduz claro o teu temperamento.

Tuas poesias têm, porém, oinestimável valor da sinceridade.Essa nota melancólica, essatonalidade dolente e sombria quetranspira das Estrofes deriva da tua

natureza contemplativa; por issomesmo não podem merecer censuracrítica.

Não fizeste mais do que obedeceraos impulsos de teu gênio.

Consola-te com o que disse a esterespeito Sílvio Romero, ohistoriador da literatura brasileira:

"A crítica não deve ser mesquinhae exigir de um temperamento maisdo que aquilo que ele pode dar. Umpoeta, só por ser triste ou seralegre, não merece censura, se atristeza ou a alegria for sincera."

És um triste, que diabo! ninguém

pode proibir que o sejas.

Se a vida humana fosse um eternoparaíso não haveria cousa maismonótona.

Sabes comunicar teus sentimentossob uma forma singela, sempedanteria, sem afetação, numalinguagem (XV:) sonora, correta ebela, e isto é muito para quemestréia.

A par de versos pueris, ingênuosmesmo, destacam-se no teu livropoesias enérgicas, fortes, varonis eartisticamente trabalhadas, comoaquela esplêndida "Ode àNatureza" onde há versos desta

jaez:

Quando, porém, nas rochascolossais,com os átomos sentado,fito os profundos vórticesfataise, entre as montanhas ínvias, oenrugadotouro feroz, as vértebrasabrindo,nos abismos fataisrepercutindo... medonhos elos de pavorsagradovão minh'alma à dos átomosunido!

os sonetos "Daphnis e Chloè" (um

primor bocagiano). "No Itapahi","Manhã de Agosto", "Rêverie" eoutros que acentuam bem o teutalento poético.

Concluindo estas linhas, meu caroAlves Lima, aconselho-te que nãoreceies pubicar as Estrofes.

Como livro de estréia elas valemmuito.

Creio que posso dizer sem ironia,parafraseando Molière: "Vous êtesdigne d'entrer... entrez donc!...

Teu

Adolfo Caminha

Fortaleza, setembro de 1891.

Esse prefácio é marcado abertamentepela crítica às circunstânciasintelectuais e material do tempo em queele foi escrito. Obviamente, que émarcado também, ou sobretudo, por umleitura particular de Adolfo Caminha. Seligado a outras afirmações realizadaspelo crítico, nele vemos exemplificada atensão que caracterizou a obra deAdolfo Caminha. No prefácio, a críticaao mercantilismo parece contraditóriacom aquela defesa que Adolfo Caminha(1999, p.27) fez dos ganhos financeirosdo trabalho do autor, mas, aqui, ou seja,no prefácio, o que vemos é a crítica aos"escrevinhadores", como encontramos

também em seu artigo "Protetorado deMidas":

Muita vez um escritor de talentoreconhecido, um predestinado, quesabe amar a Arte sobre todas ascoisas, vive no ostracismo e namiséria, sofrendo horrores, porquelhe estão interditas as portas daimprensa, essas mesmas portas quese abrem largamente para recebertoda a casta de escrevinhadores,cujo único ideal é o dinheiro ganhonum abrir e fechar de olhos, o santodinheiro obtido sem esforço, e milvezes mais apetecido e útil que umtrecho de prosa trabalhada ou umabela estrofe cristalina.

"Protetorado de Midas" foi escrito em1894, portanto, três anos após apublicação do livro Estrofes e dopróprio prefácio. Vemos, então, umexemplo de permanência da opinião deAdolfo Caminha a respeito daremuneração do trabalho intelectual. Adefesa que ele fez não foi para todos,mas para aqueles cujo trabalhointelectual atendia as suas exigênciasmorais, éticas, estéticas. O críticosempre pareceu premido pelascircunstâncias. Há, como já dissemos naintrodução deste estudo, uma constantetensão na obra de Adolfo Caminha e nãoseria diferente com a sua crítica. Se paraa crítica ele trouxe elementos da ficção,o que a caracteriza também como um

exemplo da crítica dos escritores, eletrouxe também a tensão no qual seinseriu e sobre a qual refletiu, umexemplo dela está na tensão esta noprimeiro parágrafo do prefácio em queAdolfo Caminha debate a respeito dautilidade da poesia em tempos, segundoele, de mercantilismo e utilitarismo.

Como não poderia deixar de ser, AdolfoCaminha foi tocado pela filosofiapositivista de Auguste Comte, quecontribuiu imensamente para a formaçãoda opinião e mentalidade de nossoshomens de letras no século XIX. Outratensão que parece ter acompanhadoAdolfo Caminha na sua obra é a relaçãoentre arte e ciência, que se apresentou

nesse seu único prefácio, certamentetrazida da sua crença no positivismo enos demais sistemas filosóficos quecriados no período e que circulavam ese apresentavam, de algum modo, naobra dos nossos homens de letras. Essessistemas filosóficos eram matéria deestudo de militares, como o foi AdolfoCaminha.

Ainda que tenha sido marcado pelocientificismo, Adolfo Caminha nãoperdeu a capacidade do julgamentoestético acima do julgamento utilitárioda obra de arte literária. Foi,certamente, essa capacidade quefundamentou o julgamento de Estrofes ea assertiva final do juiz: "Concluindo

estas linhas, meu caro Alves, aconselho-te que não receies publicar as Estrofes".Como um exemplo da crítica dosescritores, esse prefácio de AdolfoCaminha é marcado por uma outracaracterística: o fato de ser uma carta deum amigo para um outro amigo, o quenão invalida a opinião do crítico. Oprefácio, além de servir como crítica econselho, serviu como uma mãoestendida apoiando a entrada de F.Alves Lima para o campo ou arenaliterária. Aceitar o prefácio, que emprincípio era uma carta, ou seja, umtexto escrito e circulante em um sistemadiscursivo íntimo, e publicá-losignificava muito para autor eprefaciador. Para esse, que é o sujeito

que colocamos em causa, significava oreconhecimento de um dos seus pares.Aliás, o diálogo entre os pares marcou otrabalho de alguns críticos do período ese intensificou no século XX, semcomprometer a atividade crítica dosescritores. Com esse prefácio,esperamos ter redimensionado a atuaçãodo polígrafo, apresentando mais uma desuas faces. Trata-se de um artigo críticodiferente dos demais, uma vez que ele édirigido diretamente a um sujeito e comum objetivo claro. O título "Carta"atende, portanto, aos elementos básicosdesse tipo de texto, que saiu dadimensão pessoal da relação dos amigose ganha o espaço público com apublicação de Estrofes.

Com a análise desses artigos, temos apossibilidade de redimensionar aatuação de Adolfo Caminha comocrítico. Aquele que a princípio mostrou-se somente como crítico de literaturaveio, em seguida, mostrar-se comocrítico de arte. Adolfo Caminha pareciademonstrar uma ampliação de suasatividades no campo artístico. A suaconvivência com outras artes já erapossível de constatar em seus romances,sobretudo em A normalista, em que elese valeu da pintura e da música paraajudar a compor as suas personagens esituações em que muitas vezes atuoucomo crítico literário, como pudemosconstatar na análise que fizemos para aescrita de nossa dissertação de

mestrado. Também já na PadariaEspiritual, Adolfo Caminha mostrava-seinteressado pelas artes em geral,sobretudo porque a Padaria não erasomente uma agremiação de letras, masde "rapazes de Letras e Artes", comoconsta de seu programa, havia espaço naagremiação para a música e o desenho.Assim, um conjunto de experiênciaspessoais e de práticas artísticascolaborou para compor a sua obra e, nanossa leitura, a sua atuação como umpolígrafo. Tratar de outras artessignifica também circular em outrossistemas artísticos, o que significa novaspossibilidades de contato e de entradaem outras arenas.

Ainda que seu temperamento tenha sidodifícil, como tantas vezes registrou acrítica, o que o levaria ainda mais paraas margens do campo literário, seu nomefoi sugerido para compor a AcademiaBrasileira de Letras, fundada,justamente, no ano de sua morte:

Quinze dias antes de sua morte, emuma das reuniões que antecederama instalação da AcademiaBrasileira de Letras, Lúcio deMendonça, um dos seusidealizadores, havia sugerido, entreoutros, o nome de Adolfo Caminhapara ocupar uma de suas cadeiras.Era tarde, porém, e o escritorcearense talvez haja falecido sem

saber que seu nome fora lembradopara fazer parte da mais altainstituição literária do País.(Azevedo, 1999, p.15)

Daqui, voltamos à introdução desteestudo, quando afirmamos que AdolfoCaminha era um autor tenso. Aqui,apresenta-se mais uma tensão: oesquecimento e o reconhecimento. Amorte prematura, a pobreza,acompanhado de alguma credibilidade,uma vez que ter o nome cogitado para aAcademia Brasileira de Letras indicavaalgum reconhecimento de sua atuaçãocomo autor. Entre essas tensões está apoligrafia, ela mesma se constituindocomo uma tensão, uma vez que se realiza

somente com a atuação de um sujeitomúltiplo: o polígrafo.

1 A sigla indica a nova configuração"Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,Transexuais e Transgêneros", emsubstituição à anterior GLBT. (N. E.)

2 Os números IX, X, XI, XII, XIII, XIV eXV correspondem à numeração daspáginas do prefácio no livro Estrofes,segundo Sânzio de Azevedo, que orecebeu datilografado do pesquisadoringlês Walter Toop. Agradeço aoprofessor Sânzio de Azevedo a cópiadesse prefácio.

Conclusão: AdolfoCaminha, autor-polígrafo

Jesus perguntou-lhe: Qual é o seunome? Ele respondeu: Legião!(Porque eram muitos os demôniosque nele se ocultavam).

(Lucas 8, 30)

Multipliquei-me, para me sentir,Para me sentir, precisei ser tudo,Transbordei, não fiz senãoextravasar-me, Despi-me,entreguei-me,

E há em cada canto da minhaalma um altar a um deus diferente.

(Fernando Pessoa, "Passagem dashoras")

Nos cinco capítulos que antecedem estaconclusão, procuramos reunir dados eargumentações que confirmassem anossa tese, qual seja: a de que AdolfoCaminha foi um polígrafo na literaturabrasileira do século XIX, no período de1885 a 1897, constituindo-se como umautor segundo as circunstânciasmateriais e intelectuais que o rodeavam.Esse período corresponde aos temposde produção e de publicação doconjunto de sua obra como o definimosna introdução deste estudo. O objetivo

de Adolfo Caminha era constituir oconjunto da sua obra e colocar-se o maispróximo possível do que, para a suaépoca, seria um autor profissional, queele, de fato, não chegou a ser. AdolfoCaminha não viveu somente de suaescrita; a sua renda vinha do trabalhocomo funcionário público e era dessemodo que ele e muitos dos seus paresdas letras garantiam a vida.

Claramente, porém, Adolfo Caminhatinha ideia do que seria e de comoseriam as atitudes do autor profissional,de como esse se colocava no campoliterário de sua época, uma vez que eletratou, de forma pioneira, dos direitosdo autor, em seus artigos críticos. Foi

nesses artigos que o seu desejo ganhoumaterialidade. Se Adolfo Caminha nãoviveu dos ganhos de sua atividadeintelectual, havia a intenção de viverexclusivamente dela, por isso colocou-se contrariamente aos autores quechamou de boêmios. Esses, segundoAdolfo Caminha, não entendiam aliteratura como um trabalho. Entrequeixas e desejos, entre o presentepossível e o futuro imaginado, entreviver e escrever, entre as armas e aletras, Adolfo Caminha constituiu noconjunto de sua obra um pensamentointerno que o motivava a produzir,juntamente com outros pares de tensõesque foram cultivados ao longo de suavida. Esses pares, aliás, estão

espalhados por tudo quanto produziu oautor em causa.

Em nossa leitura, a poligrafia foi omodo possível, encontrado por AdolfoCaminha, para fazer parte de um sistemaou campo literário no período citado.Foi ainda o modo encontrado para queele passasse de escritor a autor, pois oque define o autor não é somente o atode escrever. Ser autor é algo definidopor um conjunto de forças existentes emsua volta. Ganhar o público e ganhar avida com o que produzia pareciam serpreocupações que movimentavamAdolfo Caminha. Para um homem deletras, no Brasil do século XIX, estar emdiversos "lugares" era a possibilidade

de desenvolver a sua obra e tambémconseguir algum ganho financeiro,afinal, era preciso manter-se, manter afamília e manter a escrita que resultavana sua obra e na sua passagem deescritor e autor. Da poligrafia, assimcompreendida, surge também umaextensa rede de contatos com editores,jornalistas, críticos, gráficos, leitores,outros autores, fossem eles seus amigosou inimigos. Nomes de autores e detítulos citados ao longo do conjunto desua obra são indícios desse fato. Nãosão simples citações, são indícios, pararetomar aqui o método indiciário deCarlo Ginzbourg, de que o autor não sefaz sozinho.

O autor é como a andorinha do ditadopopular ou o galo da poesia de JoãoCabral de Melo Neto. Na cena da mortede Adolfo Caminha, descrita por Sânziode Azevedo em seu Adolfo Caminha(Vida e obra), estavam presentes FrotaPessoa, Nestor Vítor, Cruz e Souza eOliveira Gomes. Isso não nos parece ummero fato. Mas demonstra o quantofazer-se autor requer, além da escrita detextos, a participação em uma rede quenão contempla somente a escrita, masoutros fazeres e saberes, entre eles o deestabelecer-se como sujeito nos camposliterário, social, cultural, artístico epolítico de sua época. Compreendemosque esses campos se conectam, o quesignifica dizer que não acreditamos que

arte se estabelece sozinha, e nessacrença está incluída a literatura. Há, porcerto, os que advogarão ao contrário...

No caso de Adolfo Caminha parece-nosimportante perguntar: Por que em suas"Crônicas de Arte" ele ocupou-se dapintura? Por que em seu romance Anormalista as personagens cantamalgumas músicas? Por que discutemsobre literatura? Por que fazem críticaliterária? Haverá quem diga que se trataapenas de uma forma de constituir aspersonagens ou de dar sabor dereferencialidade aos seus textos, o que,aliás, é uma característica donaturalismo literário. A necessidade dapresença do referente tem sido a

resposta mais constante para essasperguntas. Quem ler A normalista, porexemplo, encontrará referências àcidade de Fortaleza no século XIX: arua do Trilho; o Passeio Público; oColégio da Imaculada Conceição; aEscola Normal, o bairro do Benfica etc.

Essa resposta é coerente com a estéticado naturalismo, sobretudo se o críticoconsiderar que Caminha foiessencialmente um naturalista. Mas, seconsiderarmos que ele foi também umromântico e um realista, cremos que énecessário ir além. E se considerarmosa sua poligrafia, é preciso dar passosmais largos. Na nossa opinião, essesnomes e obras são exemplos de uma

cultura da escrita, da produção daescrita, que se efetiva sendo atravessadapor forças diversas, incluindo-se nelas aforça de escrever-se. Não raro há na suaobra e, notadamente, na sua críticaliterária uma escrita de si, uma escritasobre a escrita corrente em seu tempo, oque revela o caráter memorialísticodaquilo que Adolfo Caminha produziu.Para fazer-ser autor no Brasil do séculoXIX era preciso também escrever-se.Falar de si no que produzia, falar dascondições de produção e aqui voltamosmais uma vez ao item sobre o discursodo descontente. Parece-nos que foram aspráticas geradoras desse discurso omotor que impulsionava a colocaçãopolítica do autor. Política, é claro, como

aqui apresentamos a respeito de AdolfoCaminha. Essas práticas não somente orodeavam, elas estavam nele e em suaobra. O que nos faz, mesmo naconclusão do estudo, refletir equestionar: que tipo de campo literárioproduzia esse perfil de autor? E mais:que tipo de campo literário necessitavaque esse autor permanecesse como tal?

Ser um político dentro e fora das letras,ser um editor, ser um leitor sãoexemplos dessas forças e da vontade deatuar no campo literário. Estar em todosos lugares para estar em um único lugar– a literatura – parecia ser, senão aúnica, a possibilidade mais viável paraAdolfo Caminha. A cultura da escrita a

qual nos referimos exigia dos homens deletras a interação com outros fazeres,que eram também portas abertas para ainteração com outras artes e o contatocom outros atores. Atuar na relação comesses outros campos era garantir tambémoutros públicos. Além disso, areferencialidade já citada estabeleciaum sentimento de reconhecimento entreleitores e obras, incluindo-se entre essesleitores os homens de letras do seutempo.

Aqueles homens de letras presentes nacena de morte de Adolfo Caminha emalgum momento também compareceramna sua obra. Se esse fato sempre foi lidodentro da equação vida+obra, cremos

que ele pode ser lido dentro de umaoutra equação. Justamente aquela quebusca conhecer a história do processode escrita. Ainda que seja reconhecidacomo uma prática acessória ou exterioraos estudos literários propriamenteditos, investigar a literatura com essasferramentas nos parece válido,lembrando aqui da proposta de RolandBarthes para a atuação do críticoliterário: a de dizer validades e nãoverdades. Trata-se de ver com olhosnovos para um objeto supostamenteconhecido, pois, como afirmou Bourdieu(2008, p.10): "O 'olho' é um produto dahistória reproduzido pela educação".Educar o olhar para ler de outrosmodos, por outros ângulos, ver o que

não foi visto e o que já foi visto tambémpode parecer ambicioso, mas é umaproposta que o leitor pode realizar ounão.

A poligrafia expõe a dimensão humanado autor sem fazer relações diretas eexplicativas entre a sua vida pessoal eíntima e a sua obra, o que, comumente,encontramos na fortuna crítica da obracaminhiana como pudemos ler naintrodução deste estudo. Vale aquitambém pensar em que tipo de campoliterário insistia nesse perfil de autor. Apoligrafia explica a obra, mas o faz deum outro modo que não aqueleconstituído pela equação vida+obra.Nela, a vida analisada foi a do autor, do

sujeito que escreveu e se colocou pormeio de seus textos na sociedade de suaépoca, compreendido também como umsujeito e uma categoria dos estudosliterários historicamente constituídos econdicionados às circunstânciasmateriais e intelectuais de seu tempo.Como um polígrafo, compreendemosque o conjunto da obra de AdolfoCaminha foi construído em doismovimentos: um movimento horizontalou extensivo, que se apresentou, porexemplo, nos gêneros literáriosficcionais que ele cultivou: o romance eo conto; nas práticas que resultaram emlinguagens como a ficção e ametalinguagem, o que fez dele, porexemplo, um autor-crítico. No

jornalismo noticioso e literário. Noprefácio. Esse movimento horizontaltambém se expressou nos diversosobjetos impressos que resultaram daescrita de Adolfo Caminha e dapublicação de sua obra. Publicaçãonesse caso significa também dar aoescrito uma forma com a qual os leitoresentram em contato com aquele ato inicialde escrever.

Se esse movimento estende,horizontalmente, a obra de AdolfoCaminha, o movimento vertical ouintensivo aprofunda os seus fazeres,criando intertextualidades, pontos deencontro, fronteiras, superfícies deaproximação, que não se dão somente no

campo ficcional, mas também emcampos da referencialidade, como ojornalismo, seja o noticioso, seja oliterário. Foi graças ao método queutilizamos – a polileitura – que pudemosperceber esses movimentos, que sãoformados por binômios e portriangulações e por outras relações, que,se transformadas em figuras geométricasnos ajudam a perceber as suasocorrências. Durante a escrita desteestudo, procuramos evidenciar essasfiguras. Essas foram formas encontradaspara constituir uma outra possibilidadede leitura, ou, como propôs RolandBarthes, uma outra "validade" de leiturada obra de Adolfo Caminha. Tentamosvê-la por dentro, na sua constituição.

Assim, a obra deixa de ser explicadasimplesmente pela vingança, comoocorreu com os seus romances Anormalista e Bom-Crioulo.Compreendemos que essas explicaçõessão próprias de um tempo, de ummétodo e de um modo de compreender aliteratura. São registros da recepção daobra, o que significa dizer do papel deseus leitores, muito mais do que ossupostos fatos que motivaram AdolfoCaminha a construí-la. Mais do que nosperguntar pela intenção do autor,parece-nos importante perguntar pelaintenção do leitor.

Na constituição da tese ocupou-nos aconstrução de um método que rompesse

com essa leitura, que chamamos decrítica fundadora. O método encontradofoi a polileitura. Buscar compreenderesses movimentos da constituição daobra caminhiana foi um dos desafios daescrita do trabalho, uma vez quefocalizamos o nosso objeto pela suasdimensões externa e interna. Na nossaleitura, foi sobretudo aquele movimentovertical, citado anteriormente, quepossibilitou a criação de um conceito depolígrafo que se fundamentou nãosomente nos diversos fazeres, oumelhor, nas diversas escritas que elepraticou, como nos parece acontecercom outros homens de letras de seutempo, mas no diálogo dessas escritas,na contribuição de umas com as outras,

no intercâmbio de matéria entre elas.Assim, a poligrafia, que pode ser umfenômeno encontrado em outros autoresdo mesmo período, encontrou na obra deAdolfo Caminha algumasespecificidades, uma vez que nem todosos autores cultivaram os mesmosgêneros ou realizaram as mesmaspráticas que ele. Ainda que o fizessemeram motivados por outros interesses eo faziam de modo diferenciado, uma vezque nenhum autor se sabe ou se coloca,premeditadamente, como um polígrafo.Buscando as especificidades de suaatuação como polígrafo, consideramosos seus fazeres e não as categoriasencontradas comumente na fortunacrítica de sua obra. Focalizamos o

político, o editor, o leitor e o críticoliterário. Mesmo que sejam categoriasestanques, são categorias novas naanálise de sua obra.

A atuação de Adolfo Caminha comopolítico não foi partidária. Trata-se deuma atuação política possível para umhomem de letras. Essa sua preocupaçãoserviu-lhe como matéria de crítica e deficção. Os fatos históricos dos quaisparticipou, notadamente a Proclamaçãoda República, estão presentes na suaficção e na sua crítica, no caso dessa, osprimeiros anos do governo de FlorianoPeixoto. Também consideramos a suaatuação como o editor, notadamente dojornal O Diário e de uma revista

intitulada de A Nova Revista, na qualAdolfo Caminha não somente publicouvários de seus textos críticos, como tevea oportunidade de experimentar aatuação de editor, que ele tanto criticouem um de seus artigos de críticaliterária.

No capítulo sobre o autor-editor,conhecemos as circunstâncias e asexperiências de Adolfo Caminha nessefazer. Nele, Adolfo Caminha teve aoportunidade de conviver com as letrase os números, uma vez que, na direçãode O Diário, ele e seu sócio, R.d'Oliveira e Silva, esperavam alcançaralgum lucro financeiro. Como jásabemos, a empresa faliu alguns meses

após a publicação do primeiro númerodo periódico. Independentemente domalogro, Adolfo Caminha teve aoportunidade de ser um editor,experiência que se repetiu em A NovaRevista, que era um periódico apenasliterário. Nesse caso, destacamos o fatodo periódico ter servido a AdolfoCaminha como suporte para apublicação de outros textos críticos. EmA Nova Revista, ele teve também aoportunidade de publicar contos epoemas de autores simbolistas, o que, nahistória de sua fortuna crítica, parecedestoar com o julgamento que foicomumente feito. Esse fato tambémexpôs as contradições do autor, ou,como preferimos dizer, as suas tensões,

demonstrando que Adolfo Caminha nãopassou incólume à encruzilhada literáriado momento em que teve a sua obrapublicada.

Associado aos simbolistas, AdolfoCaminha parecia movimentar-se aindamais para as margens do campoliterário. No entanto, essa movimentaçãopode ser compreendida também como aspossibilidades oferecidas, o quereforça, ainda mais, o fato dele ser,como polígrafo, o autor possível em seutempo. Escrever dentro daspossibilidades ou apesar dasimpossibilidades, é esse o grandemovimento vivido por Adolfo Caminha.Ao fazermos o arrolamento dos

periódicos que foram comentados em ANova Revista, pudemos constatar umarede de relações estabelecidas nocampo das letras, relações essas queremetem os leitores novamente para ocampo político e, consequentemente,para o conhecimento de Adolfo Caminhacomo um autor-político nos termos aquiexpostos. Essas relações são o exemplode que o autor não se fazia somente pelasua capacidade de escrita. Um capítuloevoca o outro e a estrutura dialógicadeste estudo se mostra como numcontínuo movimento de ação e reação,de fluxo e refluxo, lembrando aquidaquelas palavras de Gilles Deleuze apropósito do livro, que nos servem deepígrafe no Capítulo 1.

Se nas histórias da literatura nacional osautores não costumam ser pensadoscomo editores, e esses nem sequeraparecem nas suas páginas, o mesmoacontece com o autor como um leitor.Inserimos a prática da leitura naconstituição do polígrafo porcompreendermos que o autor-escritornão se faz sem o autorleitor. Pesquisasatuais a respeito da história do leitor eda leitura fundamentam essa perspectivade tratamento do autor. O arrolamentodos indícios de leituras de Caminha nospermitiu compreender um pouco mais oseu processo de escrita. Procuramosnesse arrolamento e nos comentáriosrealizados perceber as permanências eas modificações dos indícios de leitura

de Adolfo Caminha. Para um autor que ahistória da literatura e a crítica literárialocalizou sobretudo entre os naturalistas,as recorrentes leituras românticasparecem desfazer essa localização tãoexclusiva. Nesse sentido, as leituras deAdolfo Caminha parecem corresponderà sua escrita, uma vez que os seus doisprimeiros livros são românticos. Oarrolamento dos indícios de leitura deAdolfo Caminha nos ajuda a responderas questões a respeito de sua formação.A leitura, o gosto pessoal, a "culturalivre", nos termos criados por PierreBourdieu (2008, p.9), parecemcomplementar a sua formação nosbancos escolares da Marinha e explicar,ao menos em parte, como um marinheiro

de formação se tornou um autor. Aformação do leitor preencheu a lacunada formação do estudante.

Por último, nos detivemos na atuação deAdolfo Caminha como um autor-crítico.Já em nossa dissertação de mestrado nosdetivemos na relação da sua crítica coma sua ficção, notadamente nos seuslivros Cartas literária e A normalista.Para que pudéssemos conhecer mais asua atuação como crítico, faltava-nos aanálise e problematização de algunstextos que não faziam parte das jácitadas Cartas literárias. Foi esseconjunto ausente que incluímos noestudo. Nele pudemos constatar odesenvolvimento da crítica caminhiana

para além daqueles dez anos deprodução crítica que resultou em um dostítulos do conjunto da obra caminhiana,o que nos deu a compreensão de queAdolfo Caminha continuaria a dedicar àatividade de crítico, movimentando-seem outras direções, dirigido por outrasforças.

Com as "Crônicas de Arte", o críticodeixou de dedicar-se somente àliteratura e vimos entre esses seusartigos um dedicado à pintura,notadamente ao trabalho do pintor OscarPereira da Silva. Adolfo Caminhaapresentou-se não somente como umobservador da literatura de seu tempo,mas das artes em geral. Esse fato

exemplificou para nós a sua intenção deentrar em contato com outros fazeresartísticos, o que significava entrar emoutras arenas, mas também ter outraspossibilidades de contato e, assim,continuar tentando constituir o conjuntode sua obra num sistema ou campoliterário que lhe era possível.

Existir nesse campo de possibilidadesexigia do autor o esforço de ser muitosao mesmo tempo, uma espécie de autor-legião, como se apresentara o demôniono episódio bíblico do possesso e dosporcos. Era preciso uma legião desujeitos e de seus fazeres para constituirum sujeito: o autor. Talvez, premido poralgumas circunstâncias, tendo que

defender-se dos seus críticos, como ofoi Valentim Magalhães, AdolfoCaminha foi dando à sua obra outrosrumos ao incluir nela outros fazeres.Tratava-se, talvez, de abrir janelasquando portas estavam sendo fechadas.Ver pelas janelas o que não via pelaportas, escrever olhando através delas,mediado por espaços menores, tudo issoparece ter exigido de seu olhar um focopara aquilo que estava mais próximo,para a dimensão mais vizinha de si.Adolfo Caminha tematizou a cidade, avida urbana e se o interior e a vida ruralaparecem em sua obra é somente pelomodo de dizer o que a cidade não é. Umcontínuo esforço de fazer-se, decolocar-se, de impor-se foi exigindo de

Adolfo Caminha uma capacidade demultiplicar-se por meio da sua escritaou, como aqui defendemos, das suasescritas, constituindo-se, desse modo, apoligrafia, que, na nossa opinião,constitui a principal característica desua obra.

Nesse movimento contínuo em busca daconstituição, notadamente no movimentovertical de que nos ocupamos, épossível constatar uma estética doaproveitamento, que se origina dassuperfícies de contato entre uma e outraescrita da sua poligrafia. É essa estéticaque configura um movimento interno daobra, uma costura por dentro, que não semostra de forma contínua, como uma

linha reta, mas uma linha feita delacunas, de junções, de sobreposições.Foi essa linha que procuramosperseguir. Pensar o conjunto da obra deAdolfo Caminha dentro dessesmovimentos, dentro dessas linhas parecedar a ele uma nova dimensão, retirandoo autor e o próprio conjunto de sua obrade recortes limitados e limitadores.

Procuramos nesse exercício, que foi aescrita do estudo, imaginar uma estruturaem constante movimento. Não negamosque muitas vezes imaginamos AdolfoCaminha (1999, p.18) trabalhando,talvez sentado em sua escrivaninha, no"penoso trabalho de gabinete, monótonoe esfalfante, que produz sábios e loucos,

literatos e tuberculosos", como elemesmo escrevera em "Novos e velhos",dando-nos uma imagem do trabalho doshomens de letras, ainda que idealizada.

A imagem que nos ficou do autor, noentanto, não foi a imagem ideal, comoessa que ele constituiu. O polígrafo nãoé esse ideal. Se o ideal de AdolfoCaminha era um autor estático, preso aoseu gabinete, ele mesmo foi um autor emmovimento. Indo e vindo pelas ruas doRio de Janeiro, pelas ruas de Fortaleza,indo e vindo entre o Rio e a capitalcearense, indo e vindo do trabalho paracasa, de casa para os encontros com osoutros homens de letras com os quaisconvivia, mesmo que esses não fossem

muitos, marginalizados ou não dosistema literário. Um autor emmovimento, participando deles, fazendo-os e sendo feito por eles. Esse parece-nos que foi Adolfo Caminha.

Ainda que ele tenha condenado "a suavepalestra, descuidada e livre, no beco doOuvidor" (ibidem), a sua obra nãoparece ter sido constituída na inércia.Imaginamos um autor dividido entre acasa, o trabalho como servidor público,os jornais, que eram as salas deencontro dos homens de letras do séculoXIX, os encontros políticos... Imaginaressa movimentação foi essencial para aescrita do trabalho e buscar umadinâmica que ajudasse também a

constituir o método utilizado. Na escritadeste estudo, trabalhamos com noçõesde tensão, de força, de figuras parademonstrar este movimento. O mesmoesperamos ter feito com as relaçõesentre fazeres.

Não sabemos, leitor, se conseguimosdar-lhe essa impressão. Se de um certomodo isso dá-nos o sentimento de falhadiante da empreitada a que nospropusemos e, por favor, desculpe-nospor esse fato; por outro lado nos anima,porque não pretendemos impor-lhe umaleitura assim tão certa, uma imagem tãobem construída que não possa vir a serquestionada. Outros estudiosos deAdolfo Caminha virão, como virão

também outros leitores, e essa nossaleitura sucumbira. Mas, somente assim,ela cumprirá o seu papel. Este trabalho,leitor, também foi escrito emmovimento, entre São Paulo, Rio deJaneiro, Assis, Fortaleza e Aracati. Essemovimento também se deu na busca dasfontes, nos arquivos e nas bibliotecaspúblicas e particulares ondepesquisamos. Não queremos com estaconclusão colocar um ponto final nadiscussão e sermos imperativamenteafirmativos a respeito de AdolfoCaminha e de sua obra. Que o leitor, quenos acompanhou até então, tenha tambéma oportunidade de imaginar outrasestruturas, outros movimentos, outrasimagens, fazendo o seu exercício de

leitura e de escrita, seja com AdolfoCaminha, seja com o autor de seuinteresse... Despedimo-nos por aqui,leitor. Agradecemos a leitura e aatenção que nos foi dispensada.

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1 Os periódico editados por AdolfoCaminha – O diário e A nova revista –analisados neste livro encontram-sereferenciados no tópico "Periódicos".