Alimentação e Cultura: Caminhos Para o Estudo Da Gastronomia

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Estudo sobre gastronomia e perspectivas culturais. Discussão sobre metodologias de pesquisa.

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    Alimentao e cultura: caminhos para o estudo da Gastronomia.

    Frederico de Oliveira Toscano1

    Resumo

    O presente artigo tem como objetivo apontar caminhos e estratgias para se pensar a alimentao atravs da Histria sob uma perspectiva cultural. Atravs do trabalho de autores que abordam no apenas as relaes do homem com o alimento, mas tambm as formas como a cultura alimentar se move dinamicamente atravs do tempo, pretende-se compreender melhor o papel que a comida, junto com os rituais a ela associados, influencia e sofre influncias, refletindo a complexidade do desenvol-vimento humano.

    Palavras-chave: Histria, Cultura, Alimentao.

    1 Mestrando em Histria - Programa de Ps-graduao em Histria Centro de Filosofia e Cincias Humanas - UFPE - Univ. Federal de Pernam-buco, Campus do Recife, CEP: 50670-901, Recife, Pernambuco - Brasil. Bolsista CNPq. Mestrando UFPE.

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    Abstract

    The present article intends to point out pathways and strategies to think the act of feeding throughout History under a cultural perspective. Through the works of authors who approach not only the relationship between men and their food, but also the ways by which the food culture moves dynamically through time, this paper intends to better comprehend the role that food, along with the rituals associated with it, influences and suffers influences, thus reflecting the complexity of human development.

    Key-words: History, Culture, Food.

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    Alimentao, Cultura, e Identidade

    O arcabuzeiro alemo Hans Staden de Homberg, oriundo da cidade de Hessen, estava em sua segunda viagem ao Novo Mundo. Na primeira, em 1549 havia visitado as costas das capitanias de Pernambuco e da Paraba, tendo deixado a Europa a partir do reino de Portugal, metrpole que, poucas dcadas antes, havia se deparado com uma parte das Amricas de Cristvo Colombo, tomando posse desse territ-rio. Retornou s terras natais e no ano seguinte, zarpando da Espanha, tornou possesso portuguesa abaixo do Equador, dessa vez aportando no Sul do territrio, posteriormente seguindo viagem para a capitania de So Vicente. Era esta a terra que mais tarde originaria o estado de So Paulo e cujas matas fervilhavam de naes indgenas rivais, tais como os Tupiniquins, os Goitacs, os Carajs, os Maracajs, os Guaians e os Tupinambs. Estes ltimos haviam capturado o alemo enquanto este caava pelas matas, decidindo, por fim, levar a presa para sua aldeia. E foi l que Staden conversou com os seus captores, aprendeu parte dos seus costumes e lngua, observou suas tcnicas e artes, registrou o que pde e aguardou a hora de ser morto e devorado pela tribo (STADEN, 2010).

    O sacrifcio, uma forma de entregar aos seres sobrenaturais uma ddiva, pode ser entendido, em sua gnese, como uma ligao entre o ordinrio e o divino, uma forma primitiva de se estabelecer uma comunicao entre homens e deuses. Sua prtica poderia envolver a morte de animais ou de homens, mas a constncia do holo-causto, da morte em oferenda a algo ou algum, tem perpassado diversas civilizaes atravs do tempo, cada qual munida de rituais prprios que regem a relao entre o grupo que deseja o sacrifcio e a vtima. Os costumes que porventura visassem pro-teger a sociedade dos Tupinambs, talvez proscrevendo o ritual do sacrifcio, eviden-temente se aplicavam apenas aos indivduos da tribo. Staden, um prisioneiro branco, jamais poderia tirar vantagem de tais benefcios, mesmo que os indgenas decidissem observar tais prticas. Passou algum tempo trocando de mos entre chefes tribais, sendo por vezes bem tratado, em outras temido, sempre tratado com desconfiana e jamais como um igual. Seu papel era o de iguaria. Ao morrer, o europeu estaria dando algo para a tribo, representada pelo sacrificante, o carrasco que lhe tomaria a vida. E ao final, todos estariam modificados, pois como indica os antroplogos Marcel Mauss e Henry Hubert, o sacrifcio um ato religioso que, mediante a consagrao de uma vtima, modifica o estado da pessoa moral que o efetua ou de certos objetos pelos quais ela se interessa (MAUSS, 2005, p 19).

    O banquete antropofgico, do qual Staden deveria, eventualmente, fazer parte na desafortunada posio de prato principal, j havia sido observado pelo europeu que, ainda que horrorizado pelo espetculo que se apresentava aos seus sentidos, nem por isso deixou de buscar compreend-lo. Interessado nos pormenores do que talvez viesse a ser o seu destino, o arcabuzeiro detalhou a forma como os indgenas escolhiam um carrasco que, munido de uma maa cerimonial, daria o golpe final na nuca do prisioneiro, matando-o imediatamente. Em seguida, seria arrastado pelas mulheres em direo fogueira, tendo toda a sua pele arrancada e l sendo deixa-do, para que finalmente seu corpo fosse separado em quatro pedaos. Estes seriam divididos entre os espectadores, sendo as vsceras reservadas para as mulheres, fervidas e transformadas em uma espcie de mingau, enquanto que s crianas ca-

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    beriam o crebro e a lngua. Aquele que havia executado o prisioneiro era recoberto de grande honra, e era admirado at mesmo por membros de outras aldeias, tambm presentes durante o ritual. Staden, que acabaria por escapar do tenebroso fim que lhe era reservado, viveu para contar a histria dos selvagens canibais que quase o haviam devorado na terra que viria a ser conhecia como Brasil (Idem, 2010).

    Este relato, um dos mais antigos acerca da colnia, nessa poca recm desco-berta pela coroa portuguesa, impressiona tanto pela assustadora riqueza de detalhes proporcionada por seu autor, quanto pela propenso de Staden de buscar entender os comos e porqus dos fatos que havia presenciado. Os Tupinambs, afinal de contas, eram caadores, coletores e possuam at mesmo sua prpria agricultura, ainda que limitada. Alimentavam-se de peixes moquecados, farinha de mandioca e carne de animais diversos, tais como porcos selvagens, capivaras e tatus. Do milho, produziam o cauim, uma bebida sagrada utilizada em rituais (Idem, 2010). Se sua dieta era at certo ponto variada e, em dadas pocas, farta, por que, Staden pode ter se pergunta-do, matam outros homens e comem sua carne? o prprio aventureiro que fornece a resposta, afirmando que

    No fazem isto para saciar sua fome, mas por hos-tilidade e muito dio, e, quando esto guerreando uns contra os outros, gritam cheios de dio: debe mar p, xe remiu ram begu, sobre voc abata-se toda a des-graa, voc ser minha comida (Idem, 2010, p 157).

    E nesse momento que se forma uma diferena crucial, que separa o simples ato de alimentar-se, ou seja, ingerir alimentos para saciar uma necessidade biolgica, do de comer. O primeiro atende aos desmandos do corpo, enquanto o segundo d vazo a um costume profundamente enraizado no esprito de um povo. Em outras palavras, o homem que reveste de significado essa ao, atribuindo valores que orientam as causas, as formas e suas relaes. Compreende-se ento que o ato de comer uma criao humana. Animais se alimentam para providenciar sustento para seu corpo e assegurar sua existncia. J as pessoas ressignificam essa necessidade fisiolgica, cercando-a de simbolismos e fazendo do ato de comer uma ao social, religiosa e, em alguns casos, at mesmo poltica. A antroploga Lilia Schwarcz, ao prefaciar a obra Farinha, feijo e carne-seca: um trip culinrio no Brasil colonial, de autoria de Paula Pinto e Silva, aponta bem esta distino, quando afirma que

    ... em um nvel mais concreto simplesmente comemos temos fome e nos saciamos -, de maneira mais abstrata pro-duzimos valores e sentidos quando pensamos estar lidando apenas com a nossa satisfao e mera sobrevivncia. Tudo isso porque o homem no sobrevive apenas, mas antes in-venta significados para tudo o que faz (Silva, 2005, p 10).

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    Comer se compreende, portanto, como uma inveno, que praticada por uma sociedade em sua totalidade e cuja complexidade independe do seu avano tecno-lgico, adequando-se no apenas s necessidades nutricionais de um grupo, mas principalmente ao conjunto de crenas, prticas e tradies firmemente arraigadas na vivncia de indivduos que so tanto racionais quanto emocionais e que metamorfo-seiam alimentao em ritual. Ritual este que praticado em diferentes nveis de pro-fundidade, porm inescapvel, visto que se atrela a uma necessidade perene. Pode--se viver sem o consolo da religio, a satisfao da intelectualidade, os debates da poltica, a abstrao da arte ou os prazeres do sexo, mas jamais sem o ato de comer e beber. Essa prtica constante, cujas ramificaes extrapolam a esfera da refeio em si, e que se alia a tantas outras que plasmam o comportamento dos sujeitos inseridos nas mais diversas realidades, converge junto a outras criaes para formar aquilo que se convencionou chamar de cultura (RIEOX , 1999).

    Os conceitos de cultura e, especialmente, o de Histria da Cultura, so at certo ponto fugidios e propensos a suscitar debates quanto a sua definio, mas sem dvida partilham de um conceito que Peter Burke deixa bastante claro em sua obra Cultura Popular na Idade Moderna: a cultura fruto de um aprendizado. Conhecimen-tos e tradies so passadas adiante atravs das geraes, repletas das particulari-dades que remetem identidade de um determinado povo (BURKE, 2010). Aprende--se no apenas a falar a lngua ptria, mas tambm, quase que junto ao leite materno que alimenta o ser humano em formao, as noes do que comer, como comer e por que comer. Dessa forma, fortalece-se a noo de unidade em um determinado grupo, seja ele uma tribo, um estado, uma regio ou um pas. Os indgenas que aprisionaram Hans Staden haviam desenvolvido uma identidade prpria, uma criao cultural que atribua significados fortemente identitrios ao ato de devorar a carne dos inimigos derrotados. Ao faz-lo, legitimavam no apenas sua vitria sobre o rival, mas tambm reafirmavam sua cultura e o sentido de unio de sua nao. Banqueteando-se, pare-ciam clamar Sou Tupinamb.

    Essa ideia de cultura atrelada formao de uma identidade, especialmente a cultura alimentar, foi bem observada pelo socilogo pernambucano Gilberto Freyre, ao afirmar que

    O paladar defende no homem a sua personalidade nacio-nal. dentro da personalidade nacional e regional que prende o indivduo de modo to ntimo s arvores, s guas, s igre-jas velhas do lugar onde nasceu, onde brincou menino, onde comeu os primeiros frutos proibidos (FREYRE, 2002, p 64).

    Aprendemos a gostar e as desgostar de certas comidas dentro das idiossincra-sias inerentes nossa cultura. E ao faz-lo, contribumos para a formao de uma identidade coletiva que nos define enquanto povo. Hans Staden, inconformado com um fim desprovido de sentido na barriga de um guerreiro Tupinamb, buscou enten-der as causas de um dos aspectos formadores da cultura dos seus captores. Se por um lado o europeu abominava a prtica, por outro no se furtou a buscar explicar os motivos que levavam os indgenas ao banquete antropofgico. Dessa forma, pode-se

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    pensar no relato de Staden como uma das primeiras discusses da cultura alimentar do Brasil e a sua inquietao lana reflexos que alcanam os dias atuais. O alemo, que por muito pouco escapou de ser devorado, segue sendo canibalizado a cada refeio entendida dentro da perspectiva cultural de um povo e como elemento defi-nidor de um grupo social. Assim que, no Brasil, h quase quinhentos anos se come Staden e se sente a boca o gosto de feijoada, vatap, buchada e cachaa. Porque ao comer, exercita-se no apenas o trato digestivo, mas tambm os msculos culturais, dessa forma desenvolvendo uma ideia de povo e de nao.

    Alimentao e folclore

    No incio da segunda dcada do sculo XX, um jovem Gilberto Freyre caminha-va pelas ruas do Recife, perdido em pensamentos. Tendo chegado de viagens que o fizeram passar por Nova York, Nova Orleans, Munique, Londres, Paris e outras gran-des cidades do mundo, o estudioso andava desgostoso com a ambientao dos cafs que se haviam estabelecido na capital pernambucana. Tudo muito chic. Tudo muito afrancesado. Freyre, que nessa poca j criava textos para o Dirio de Pernambuco, ps-se ento a imaginar, em forma de artigo, qual seria o caf ideal para o Recife. Que, em suas palavras, possusse cor local. Atmosfera. O objetivo, pontificava o jovem escritor, seria fazer com que o turista, chegando de algum pas estrangeiro, fosse capaz de desfrutar dos prazeres de uma mesa e um clima verdadeira e tipica-mente pernambucanos. Entusiasmado, o socilogo entregava-se verborragicamente ao exerccio de inventar tal lugar, que deveria comportar

    ... uns papagaios em gaiolas de lata, cco verde vontade pelo cho no se serve cco verde nos caf do Recife! uma fartura de vinho de jenipapo, folhas de canela aromatizando o ar com seu pungente cheiro tropical. noite, menestris cantado-res! cantando ao violo trovas de desafio; num canto uma dessas pretalhonas vastas e boas, assando castanhas ou fazendo pamo-nha. Ao seu lado, quitutes e doces, ingenuamente enfeitados com flores de papel recortado, anunciando uma culinria e uma con-feitaria que constituem talvez a nica arte que verdadeiramente nos honra. Isso sim, seria uma delcia de caf (Idem, 2009, p 21).

    Freyre encerra o artigo lamentando a hesitao do seu tio, que o acompanhava em visita a uma confeitaria francesa, em pedir um mate ou um caldo de cana. Mais elegante, naqueles tempos, era degustar de um desses gelados de nome extico. Se a descrio do escritor de um caf que exibia papagaios engaiolados e cocos rolando pelo assoalho chega a impressionar pelo regionalismo exacerbado, mais sintomtico ainda perceber que Freyre, na verdade, sente saudades de um lugar que jamais existiu, a no ser talvez em seu corao. Para ele, esse deveria ser o caf pernambu-cano, ainda que inventado, embora admita em certo momento que isso de atmosfera no se improvisa. Em outras palavras, apenas os elementos tpicos locais, de acordo com sua tica, no eram suficientes. Era necessria tambm a vivncia, a tradio. O

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    costume legitimado pelo tempo. Alm, evidentemente, de uma ferrenha indisposio acerca de elementos estrangeiros, especialmente os franceses, que nessa poca se mostravam cada vez mais pronunciados no Recife (REZENDE, 2005).

    Finalmente, o autor introduz um elemento que, mais do que os cantadores e seus violes, escancara sua viso particular do que popular, ao se referir negra quituteira, confortavelmente entregue ao seu papel na sociedade e ao seu ofcio, re-miniscente ainda da poca da escravido. Uma carinhosa e patriarcal imagem que, possivelmente, remete infncia do socilogo. Todas essas caractersticas da cons-truo do caf tipicamente pernambucano de Freyre a defesa de uma forma pura, um sentido no to claro, porm prevalecente, de origem, a ideia de tradio, a opo-sio aos estrangeirismos, uma criao erudita e, possivelmente, elitista do conceito de popular atrelado a elementos de exotismo se unem para formar uma imagem idealizada de um aspecto supostamente frgil da cultura nacional, que deveria ser protegido da mudana e defendido das influncias externas. Um caf, em suma, pro-fundamente folclrico.

    As preocupaes de Freyre remontam, em parte, ao esprito de antiqurio apontado pelo historiador Renato Ortiz, em seu livro Romnticos e Folcloristas, onde o autor discorre acerca das razes da pesquisa folclrica na Europa, a partir do sculo XVI. Originando-se como uma coleta de curiosidades exibida por parte da intelectu-alidade de pases como Frana, Inglaterra e Alemanha, inicialmente se concentrava em uma perspectiva elitista que observava os hbitos, supersties e histrias que faziam parte da vivncia do povo. Essa problemtica noo existia em oposio de elite e era criada e sustentada pela mesma, que enxergava as vidas dos campo-neses sob um vis de exotismo, direcionando sua ateno at mesmo para o que poderia ser considerado bizarro ou estranho para as classes mais elevadas. Ou seja, uma cultura em separado, dona de caractersticas prprias, popular (CHARTIER, 1995). Contudo, somente a partir do sculo XIX que os pesquisadores da cultura do povo passam a usar a denominao folclorista, com clubes de folclore surgindo em diversas cidades europeias. J sob uma perspectiva romntica, o povo passa a ser ressignificados enquanto matriz original da nao, detentor de saberes e fazeres au-tnticos, necessitando ser protegidos das investidas exteriores que buscariam minar o patrimnio cultural da nao (ORTIZ, 2006).

    O tempo passa a ser um inimigo, engolindo cruelmente tradies, que estariam fadadas ao esquecimento no fosse o trabalho rduo dos intelectuais que buscam no entender como a cultura de um povo opera suas mudanas atravs da Histria, mas de fato procuram preservar uma noo construda, romntica, idealizada e imu-tvel de popular. Como afirma Ortiz

    Os folcloristas, no entanto, se assemelham mais aos inte-lectuais de provncia, Gramsci descreve como tradicionais. Reco-nhecendo a radicalidade das mudanas em curso, eles se voltam para uma operao de resgate. Os intelectuais orgnicos cami-nham a favor do tempo histrico, os tradicionais nadam contra a corrente, e procuram armazenar, em seus museus e bibliotecas, a maior quantidade de uma beleza morta (Idem, 2006, p 40).

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    O folclorista , antes de tudo, um saudosista. Amedrontado pela inexorabilidade temporal, busca prender a cultura, cerceando seus movimentos. Procura pelo unicr-nio por sua pureza e exotismo e, ao encontr-lo, cerca-o para que jamais escape, para que nenhum perigo possa vir a abater-se sobre ele, esperando que o mtico animal ali permanea para sempre. Constri um museu de tranquilidade para a fantstica cria-tura, empalhada por toda a eternidade em uma demonstrao atemporal (CERTEAU, 1995).

    Esse pensamento, evidentemente, no ficaria restrito apenas Europa. O Brasil comeou a produzir seus prprios folcloristas, mais notadamente a partir de 1922, quando aconteceu a Semana de Arte Moderna em So Paulo que, com resqucios de Hans Staden entre os dentes, professava uma antropofagia cultural. Os escritores Mario de Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade buscaram coletivizar a cultura, tanto vertical quanto horizontalmente, buscando diminuir a distino entre o saber culto e o popular. A partir de 1935, cursos de formao para folcloristas passaram a ser abertos, incentivando o estudo etnogrfico de manifestaes ditas populares (ABREU, 2003). Assim como fora do pas, o folclore suscitou suas querelas, no ape-nas por sua propenso buscar congelar prticas culturais no tempo e pela sua pro-blemtica definio de popular, mas tambm por sua metodologia incipiente e a falta de um problemtica acerca do objeto estudado, preocupando-se mais em preservar do que em reconstruir. Chamados de intelectuais de provncia, os folcloristas tiveram as portas da Academia fechadas para seus estudos e sua disciplina no chegou a ser reconhecida como uma cincia, ainda que tomasse emprestados conceitos da Antro-pologia e da Etnografia (OLIVEIRA, 2008).

    Gilberto Freyre, que no era um folclorista e escreveu seu Manifesto Regionalis-ta como uma resposta as ideias divulgadas na Semana de Arte Moderna, ainda assim carregava consigo uma viso patriarcalista acerca de diversos aspectos da socieda-de brasileira. Sua nostalgia, principalmente acera de uma alimentao tipicamente pernambucana, evoca imagens de um romantismo protetor, que busca legitimar a tradio alimentar local, ainda que esta seja uma construo idealizada. Esse tradi-cionalismo ecoa fortemente nas palavras do folclorista potiguar Cmara Cascudo, que defendia a ideia de uma

    ... eleio de certos sabores que constituem o alicer-ce de patrimnio seletivo no domnio familiar, de regies intei-ras, unnimes na convico da excelncia nutritiva ou agrad-vel, cimentada atravs dos sculos (CASCUDO, 1983, P 19).

    Essas eleies de sabores, unnimes em regies inteiras, como afirma o autor, levam a um sentido de pertencimento de um alimento, geralmente junto com os ingredientes e tcnicas a ele associados, a uma determinada regio ou localidade. Dessa forma, cria-se uma imagem coletiva de um patrimnio alimentar que precisa ser protegido e que jamais deve abandonar suas caractersticas originais, marchando inclume pela Histria, sendo preparado e consumido exatamente da mesma maneira desde a sua criao, ainda que no seja possvel identificar com preciso de que for-ma ela se deu. A problemtica desse pensamento pode ser sentida ao se buscar com-

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    preender uma preparao culinria de forte apelo regionalista e intimamente ligada cultura de um povo, como o caso do acaraj. A iguaria, tradicionalmente associada Bahia, possui uma reconhecida carga tnica e religiosa, sendo comida dos iorubas da frica Ocidental, sofrendo influncias do falafel rabe, tendo o gro-de-bico sendo substitudo pelo feijo fradinho no Brasil. Frito em leo de dend fervente, tem sua massa aberta e acrescida de recheios variados, tais como vatap, caruru, camaro refogado, pimenta e salada crua. Sua imagem quase indissocivel da baiana que o prepara e vende pelas ruas da cidade, quase sempre coberta da cabea aos ps de trajes tpicos e de forte apelo comercial e turstico (GOSTO, 2009, p 87).

    Uma viso folclorista do acaraj poderia levar a crer que o alimento manteve sua forma, funo e elementos constitutivos atravs do tempo, pouco ou nada mudan-do desde que trazido para o Brasil da frica, na forma de bolinho de fogo, o acar, as-sociado ao verbo comer, ajeum. Contudo, como demonstra o antroplogo baiano Raul Lody, o prato sofreu, ao longo do tempo, diversas modificaes, sendo os recheios e a forma de partir a massa, como um po, incluses tardias remontando poca da segunda guerra mundial e presena de soldados americanos principalmente no nordeste do Brasil que, quando estacionados em Salvador, consumiam seus acarajs como uma espcie de sanduche, um acaraburguer nas palavras de Lody (LODY, 2008). Por outro lado, o acaraj de Pernambuco, que pode ser encontrado em diver-sas vias do Recife, tais como a Dantas Barreto, a Agamenon Magalhes e vrias ruas paralelas Avenida Conde da Boa Vista, conserva caractersticas que o aproximam mais dos encontrados ainda nos dias de hoje em cidades africanas como Lagos e Por-to Novo. Bem menor do que soteropolitano, o acaraj recifense produzido com feijo macassa e frito em leo de soja ou milho mesmo. Trajes e adereos tpicos inexistem e a conotao religiosa raramente lembrada. No h recheios, sendo acompanha-do, quando muito, de pimenta malagueta e algum camaro defumado (CARVALHO, 2010).

    Apresenta-se a uma questo interessante, opondo duas preparaes culin-rias que possuem significados e composies diversos, mas que partilham do mesmo nome e de algumas caractersticas em comum. O acaraj de Salvador, miditico, ge-neroso, enxergado como um patrimnio da cultura baiana, servido entre os paralele-ppedos e o casario colorido do alto do Pelourinho, que sofreu influncias americanas em sua composio, considerado como representativo dentro de uma ideia de pure-za construda atravs das dcadas. J o do Recife, diminuto, discreto, quase tmido, vendido entre os sebos e vendedores de rolete de cana do bairro da Boa Vista ou sombra das palmeiras imperiais da Praa do Derby, possui uma aproximao muito maior com suas origens africanas e assim permanece at os dias de hoje, contudo no costumeiramente reconhecido como tal. Qual seria, ento, o acaraj verdadei-ro? A resposta, de fato, ambos. A compreenso folclorista e estanque de cultura no suficiente para explicar as mudanas ocorridas com a alimentao atravs da Histria.

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    Culturas alimentares

    As preparaes culinrias se ressignificam, sofrem e exercem influncias, trans-formando-se constantemente. Para se compreender tais processos, preciso, antes de tudo, buscar entender as trocas operadas pelas culturas e de quais formas elas se modificam atravs do tempo. A ideia, como j se falou, de uma cultura intocada, espe-cialmente aquela que se convencionou a se referir como popular, como algo recal-cado em um nicho limitado, parte do mainstream, suspenso no tempo e invulnervel s influncias externas perde cada vez mais o seu sentido. Ao contrrio, j possvel pensar em um folclore malevel, que exibe caractersticas regionais marcantes, mas que dialogue com as mudanas que ocorrem no mundo ao seu redor. Essa relao se d, em grande parte, atravs de necessidades comerciais, que empurram o detentor do fazer popular, seja ele arteso, cantor, poeta ou quituteiro, a uma aproximao natural com uma ideia de modernidade. Ao se expandir os horizontes econmicos, abrem-se as portas para trocas culturais que, ao contrrio do que se poderia pensar, no contribuem para a destruio de um bem cultural. Como brilhantemente afirma o pesquisador mexicano Nstor Canclini,

    O que no se pode dizer que a tendncia da moder-nizao simplesmente provocar o desaparecimento das cul-turas tradicionais. O problema no se reduz, ento, a conser-var e resgatar tradies supostamente inalteradas. Trata-se de perguntar como esto se transformando, como interagem com as foras da modernidade (CANCLINI, 1997, p 218).

    O autor segue afirmando que o popular, afinal de contas, no se concentra nos objetos que fabrica, nem deve ser congelado em patrimnios de bens estveis. Essa noo corri a ideia do folclore engessado, aproximando sua visualizao no de um lago de guas mortas, mas sim de um rio, em constante movimento, mas que no dei-xa para trs sua nascente. Como explica Canclini, em vez de uma coleo de objetos ou de costumes objetivados, a tradio pensada como um mecanismo de seleo, e mesmo de inveno, projetado em direo ao passado para legitimar o presente (Idem, 1997, p 219).

    No difcil trazer essa compreenso para o campo da alimentao, uma vez que essa dinamizao acontece todos os dias. A tapioca, por exemplo, alimento de origem indgena, fabricado da massa de mandioca e cuja etnografia parte da palavra tupi mbei, que quer dizer enrolado, considerada patrimnio imaterial da cidade de Olinda. Consumida pelos ndios ensopada junto ao caldo da preparao de peixes e carne de caa, o beiju popularizou-se com o acompanhamento de coco adocica-do atravs das escravas de ganho das senhoras de engenho pernambucanas, que saam pelas ruas da cidade a apregoar seus produtos (SOUTO MAIOR, 2004). A tapioca, bastante popular, continua sendo vendida nos dias de hoje, mas raramente encontrada como um simples beiju dobrado com raspas de coco doce. No Alto da S, um dos pontos tursticos mais visitados da cidade de Olinda, tapiocas so ven-didas com os mais variados recheios e o limite dessa criatividade parece ser apenas

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    a imaginao dos vendedores. Em cardpios de plstico, alguns at mesmo apre-sentando capengas explicaes em ingls, possvel encontrar massas no apenas recheadas com queijo coalho, mas tambm camaro, bacon, catupiry, strogonoff, cho-colate, banana caramelada e at mesmo tapiocas vegetarianas, grvidas de rcula e tomate seco. Continuam sendo tapiocas, mas seu leque de sabores, visando atender as necessidades de um mercado cada vez mais exigente e dinamizado, aumentou consideravelmente.

    A mistura de ingredientes possui reflexos nas inter-relaes culturais, mas anti-gas do que se poderia inicialmente supor. A ideia, evidentemente, vai se encontro ao pensamento folclrico de culturas puras, que estariam sob o risco de perder suas identidades atravs da internacionalizao cultural. Como explica Gruzinsky,

    Mesmo reconhecendo que todas as culturas so hbridas e que as misturas datam das origens da histria do homem, no podemos reduzir o fenmeno formulao de uma nova ideologia nascida da globalizao (GRUZINSKY, 2001, p 41).

    O autor quebra o conceito de um sistema impecvel, que se desestabiliza com a introduo de um elemento estrangeiro. Na verdade, as misturas ou mestiagens es-tariam, de fato, na raiz da ideia de cultura e no como um exotismo distante e desas-sociado de um elemento anterior puro. No existe uma evoluo ou marcha ordenada rumo uma realidade idealizada, e sim uma aceitao de que a cultura formada por elementos imprevistos e aleatrios, que interagem entre si de maneira catica e ines-perada. Esse movimento constante, esse devir enlouquecido, rodopiando atravs do tempo entre paradoxos que no se limitam a um tempo presente, fundindo passado e futuro em um movimento incessante, se recusa a aceitar noes de pureza ou de autenticidade. Assim sendo, o estudo da alimentao sob uma tica cultural deve ser encarado no dentro de limitaes que cerceiem seu movimento, mas inserido nas inmeras possibilidades que se apresentam ao pesquisador (DELEUZE, 2009).

    Estas comeam a ser percebidas com mais clareza no apenas pelo meio aca-dmico, mas tambm pelo poder pblico e mesmo pela populao, formando um triangulo de vrtices claramente desiguais, mas que exibem uma crescente preocu-pao, cada um sua maneira, com os rumos da Gastronomia local. Se por um lado existe um esforo de cunho folclorista para encapsular certas prticas e insumos em um nicho apartado do tempo e das inescapveis mudanas que ele enseja, por outro a cultura alimentar frequentemente se mostra indomvel, uma fera de beleza selva-gem e mutante, incapaz de dobrar-se docilmente ante o cabresto de limitaes artifi-cialmente impostas. longo o tempo da culinria, afirma o socilogo Carlos Alberto Dria, ao referir-se sua construo e sua relao com o ser humano que, afinal, a cria, mas raramente controla (DRIA, 2009, p 13). longo tambm o tempo da cultu-ra, onde a alimentao est inexoravelmente inserida e cujo caminho se estende para um horizonte distante que promete apenas mutabilidade e incerteza. Sero estes os ingredientes primordiais de todos aqueles que se dedicarem ao estudo da Gastrono-mia, um cardpio em constante e imprevisvel transformao. A mesa est posta.

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    Referncias Bibliogrficas

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