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 E ITORI L O  Estatuto Científico  d a  Epidemilogia The scientific  statute  of  epidemiology S e  é que a  metáfora posicionai  d a s  assembléias d a  Revolução Francesa ainda  te m alguma  valia,  a Epidemiologia encontra-se atualmente, na  feliz  e x- pressão  d e  Jaime  Breilh 1 ,  sob o  fogo cruzado  da  epidemiologia  social ,  pela esquerda,  e da  epidemiologia  clínica ,  pela direita.  Por um  lado, observa-se  u m a  proposta  d e  constituição  de uma  nova epidemiologia  a  partir  de uma  perspectiva hipercrítica (Laurell 1 1 , 1985),  que  aparentemente aponta para  a  negação  d e  todo  u m  processo  históri- co de  organização  de um  campo  d e  conhecimento d e  reconhecida eficácia técnica.  P o r  outro lado,  o r- questra-se  u m  poderoso  movimento ideológico  de questionamento da validade científica de qualquer investigação epidemiológica  que não se  apresente claramente como projeto de conhecimento  fundado n o s  sujeitos  individuais 2 ,8 .  Nessa situação,  a  questão da  cientificidade  da  epidemiologia (sem adjetivos) mostra-se crucial para  o  processo  de  maturação his- tórica  e  institucional  d a  disciplina,  com a  reavaliação (o u  des-construção)  d as  suas bases conceituais  e metodológicas. A  primeira geração de epidemiologistas parecia não ter  dúvidas  sobre  o  estatuto científico  da  nova disciplina. Wade Hampton  Frost 5 ,  primeiro profes- sor de  epidemiologia  d a  Universidade Johns Hopkins, escreveu  em  1927  que a  epidemiologia  é essencialmente uma ciência  indutiva,  preocupada não meramente  em  descrever  a  distribuição  de  doenças, porém sobretudo  e m compreendê-la  a  partir  de uma filosofia  consistente . Outros autores desse  período, como  Stallybrass 2 1 ,  autor do primeiro  livro-texto  d e epidemiologia,  e  Major  Greenwood 7 ,  primeiro pro- fessor  de epidemiologia da Universidade de Lon- dres,  também reconheciam claramente  a epidemiologia  como  u m a  ciência. Dentro  d o  campo  de  saúde pública, anota-se duas iniciativas  sistemáticas  n o  sentido  d e  estabelecer  o estatuto  científico da epidemiologia. A primeira ocorreu  em  1942,  em  resposta  a um  editorial  d o American Journal  o f  Public  Health 2 5 ,  e o  segundo, em  1962,  sob a  forma  de um  debate  que se  seguiu  à publicação de um texto-chave de Milton Terris 2 3 , naquela revista.  D e  acordo  c o m  Lilienfeld 1 2 ,  um dos poucos  elementos de  consenso alcançados  em  ambas oportunidades  era que a  epidemiologia  é uma  dis- ciplina  científica . O  manual metodológico pioneiro  do  campo epidemiológico, escrito  p o r  MacMahon  e  col. 13 ,  n o final  da década  de 50,  abre  com a  seguinte  afirmati- va: epidemiologia  é  largamente reconhecida como a  ciência básica  d a  medicina preventiva . Esta  n o - ção de que a Epidemiologia se constitui em ciência básica para  a  saúde pública, medicina preventiva  ou medicina comunitária, já havia sido proposta anteri- ormente  p o r  Morris,  n o  clássico mapeamento  d o campo epidemiológico denominado  Os  Usos  da Epidemiologia 1 6 . Até hoje  Terris 24 ,  insigne repre- sentante  do pensamento sanitarista tradicional, de- fende  a  posição  de que a  epidemiologia  é a  ciência fundamental  da saúde pública, verdadeira base téc- nica  do  planejamento, administração  e implementação de medidas preventivas. Durante  as  décadas  de 60 e 70, em  paralelo  a u m notável  desenvolvimento  de técnicas de coleta e análise  de dados  epidemiológicos 2 3 ,  o debate conceitual sobre a  cientificidade  d a  disciplina fo i virtualmente  reprimido.  A  idéia  de que a epidemiologia  é uma  variante  d a  ecologia  médica o u  apenas  um  ramo  d a  ecologia  humana  será  talvez a  única  contribuição teórica dessa  fase.  A  posição de que a  epidemiologia  se  contitui  em um  segmen- to de uma  ciência mais geral (Stallones 20 ,  1971),  o u ainda  que se  trata essencialmente  de uma  disciplina empírica sem maiores demandas teóricas, resultou n a  crença  de que a  epidemiologia  não é uma  ciên- cia. Lilienfeld 1 2  propôs  q u e  seria melhor tomar  a epidemiologia como uma abordagem conceituai u m  modo  de  pensar e u m  método  d e  raciocínio . Fox e col. 4  afirmam que, pelo fato de não se consti- tuir  em um  corpo  d e  conhecimentos (que  se  pode interpretar  como  o  possuir  u m  objeto particular),  a  epidemiologia  te m  sido considerada  u m  método e não uma  ciência independente . Para Kleinbaum  e col. 1 0 ,  a epidemiologia é simultaneamente uma sín- tese de conhecimentos oriundos de diversas disci- plinas  d a  saúde ,  u m  ramo aplicado  da  ciência e  disciplina (no sentido de uma  metodologia aplicável  a qualquer pesquisa em saúde). Tais afirmações contraditórias  e  quase incoeren- tes são sintomáticas da confusão epistemológica predominante  nesse  campo, derivada  d a  estagnação (o u  mesmo retrocesso) observada  n o  desenvolvi- mento conceitual da epidemiologia moderna. A pro- posta  de uma certa epidemiologia  clínica 3,8,9,18  c o- meçou  a  infiltrar-se  po r  essa  brecha,  as  vezes defen- dendo  o uso da  epidemiologia como  u m a  mera fer-

Almeida Filho 1991 Epidemiologia

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epidemiologia

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  • EDITORIAL

    O Estatuto Cientfico da EpidemilogiaThe scientific statute of epidemiology

    Se que a metfora posicionai das assembliasda Revoluo Francesa ainda tem alguma valia, aEpidemiologia encontra-se atualmente, na feliz ex-presso de Jaime Breilh1, sob o fogo cruzado da"epidemiologia social", pela esquerda, e da"epidemiologia clnica", pela direita. Por um lado,observa-se uma proposta de constituio de uma"nova" epidemiologia a partir de uma perspectivahipercrtica (Laurell11, 1985), que aparentementeaponta para a negao de todo um processo histri-co de organizao de um campo de conhecimentode reconhecida eficcia tcnica. Por outro lado, or-questra-se um poderoso movimento ideolgico dequestionamento da validade cientfica de qualquerinvestigao epidemiolgica que no se apresenteclaramente como projeto de conhecimento fundadonos sujeitos individuais2,8. Nessa situao, a questoda cientificidade da epidemiologia (sem adjetivos)mostra-se crucial para o processo de maturao his-trica e institucional da disciplina, com a reavaliao(ou des-construo) das suas bases conceituais emetodolgicas.

    A primeira gerao de epidemiologistas pareciano ter dvidas sobre o estatuto cientfico da novadisciplina. Wade Hampton Frost5, primeiro profes-sor de epidemiologia da Universidade JohnsHopkins, escreveu em 1927 que "a epidemiologia essencialmente uma cincia indutiva, preocupada nomeramente em descrever a distribuio de doenas,porm sobretudo em compreend-la a partir de umafilosofia consistente". Outros autores desse perodo,como Stallybrass21, autor do primeiro livro-texto deepidemiologia, e Major Greenwood7, primeiro pro-fessor de epidemiologia da Universidade de Lon-dres, tambm reconheciam claramente aepidemiologia como uma cincia.

    Dentro do campo de sade pblica, anota-se duasiniciativas sistemticas no sentido de estabelecer oestatuto cientfico da epidemiologia. A primeiraocorreu em 1942, em resposta a um editorial doAmerican Journal of Public Health25, e o "segundo,em 1962, sob a forma de um debate que se seguiu publicao de um texto-chave de Milton Terris23,naquela revista. De acordo com Lilienfeld12, um dospoucos elementos de consenso alcanados em ambasoportunidades era que "a epidemiologia uma dis-ciplina cientfica".

    O manual metodolgico pioneiro do campoepidemiolgico, escrito por MacMahon e col.13, no

    final da dcada de 50, abre com a seguinte afirmati-va: "epidemiologia largamente reconhecida comoa cincia bsica da medicina preventiva". Esta no-o de que a Epidemiologia se constitui em cinciabsica para a sade pblica, medicina preventiva oumedicina comunitria, j havia sido proposta anteri-ormente por Morris, no clssico mapeamento docampo epidemiolgico denominado "Os Usos daEpidemiologia"16. At hoje Terris24, insigne repre-sentante do pensamento sanitarista tradicional, de-fende a posio de que a epidemiologia a cinciafundamental da sade pblica, verdadeira base tc-nica do planejamento, adminis t rao eimplementao de medidas preventivas.

    Durante as dcadas de 60 e 70, em paralelo a umnotvel desenvolvimento de tcnicas de coleta eanlise de dados epidemiolgicos23, o debateconceitual sobre a cientificidade da disciplina foiv i r tua lmen te repr imido . A idia de que aepidemiologia uma variante da "ecologia mdica"ou apenas um ramo da ecologia humana ser talveza nica contribuio terica dessa fase. A posiode que a epidemiologia se contitui em um "segmen-to de uma cincia mais geral" (Stallones20, 1971), ouainda que se trata essencialmente de uma disciplinaemprica sem maiores demandas tericas, resultouna crena de que a epidemiologia no uma cin-cia.

    Lilienfeld12 props que seria melhor tomar aepidemiologia como uma "abordagem conceituai"um "modo de pensar" e um "mtodo de raciocnio".Fox e col.4 afirmam que, pelo fato de no se consti-tuir em um corpo de conhecimentos (que se podeinterpretar como no possuir um objeto particular),"a epidemiologia tem sido considerada um mtodoe no uma cincia independente". Para Kleinbaum ecol.10, a epidemiologia simultaneamente "uma sn-tese de conhecimentos oriundos de diversas disci-plinas da sade", "um ramo aplicado da cincia" euma "disciplina" (no sentido de uma "metodologia"aplicvel a qualquer pesquisa em sade).

    Tais afirmaes contraditrias e quase incoeren-tes so sintomticas da confuso epistemolgicapredominante nesse campo, derivada da estagnao(ou mesmo retrocesso) observada no desenvolvi-mento conceitual da epidemiologia moderna. A pro-posta de uma certa "epidemiologia clnica"3,8,9,18 co-meou a infiltrar-se por essa brecha, as vezes defen-dendo o uso da epidemiologia como uma mera fer-

  • ramenta para a pesquisa clnica, para logo reduzir, adisciplina ao status mais baixo de uma "abordagememprica", "uma tcnica de resoluo de proble-mas"19.

    Mais recentemente, esboa-se uma crescente re-sistncia a tal processo de depreciao. Rothman17concede que a Epidemiologia um "embrio" entreas cincias (o que, apesar de no parecer, denotauma perspectiva promissora). Susser22, por outrolado, tem reconhecido o carter particular daepidemiologia como uma cincia populacional, quese baseia "nas cincias sociais para uma compreen-so da estrutura e da dinmica sociais (...), na mate-mtica para noes estatsticas de probabilidade,inferncia e estimao (...), e sobre as cincias bio-lgicas para o conhecimento do substrato orgnicohumano onde as manifestaes observadas acharoexpresso individual".

    Miettinen14 registrou na primeira verso (1981)do seu controverso livro que a epidemiologia pode-ria ser definida como "a cincia da ocorrncia dedoena". Entretanto, esse mesmo autor posterior-mente afirmou que "a epidemiologia no coerentecomo uma cincia mas apenas como (...) um agre-gado de princpios para o estudo da ocorrncia dedoena e estados ou eventos correlatos"15. O impor-tante que, para situar-se dessa maneira, Miettinenemprega como mtodo a rigorosa identificao doobjeto de conhecimento da epidemiologia, questofundamental para levantar o problema dacientificidade da disciplina. O mesmo mtodo, po-rm alcanando concluso oposta, encontra-se emGoldberg6, que escreveu: "o verdadeiro problemaaqui posto (...) a definio do objeto de estudo. Aespecificidade de uma cincia antes de tudo devi-da ao seu objeto".

    Esta portanto a questo mais fundamental daepidemiologia no presente momento, verdadeiroimpasse que poder, caso no resolvido, implicaruma barreira intransponvel para o seu prprio de-senvolvimento enquanto campo cientfico autno-mo. Perspectivas epistemolgicas mais modernasreconhecem o esgotamento dos modelos formais dedelimitao de campos cientficos, indicando o pa-pel fundamental dos paradigmas e seus processoshistricos, macro e micro sociais, na construoinstitucional das cincias atravs da prtica, tcnicae teoria. Nesse momento crucial, no se deve pou-par esforos no sentido da conquista do paradigma,com a construo do objeto epidemiolgico tantopro-positivamente quanto na prtica cotidiana deproduo de conhecimento. A demarcao de umcampo prprio de aplicao ser ento uma conse-qncia histrica (e no meramente lgica) desse

    processo de maturao de uma disciplina que, desdeas suas razes, reafirma a fora dos processos soci-ais na determinao da sade coletiva.

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    So Paulo, outubro de 1991.Naomar de Almeida Filho

    Editor Associado da Revista de Sade PblicaDepartamento de Medicina Preventiva

    Universidade Federal da Bahia