alvaro de campos

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LVARO DE CAMPOS

- Campos no tem nem a tranquilidade saudvel de Caeiro nem a indiferena olmpica de Reis: ele sfrego, vido e passional. O que mais pesa nele a sensorialidade, mesmo a sensualidade, o corpo. - Como Pessoa, ele no tolera as verdades definitivas: A razo de haver ser, de haver seres, de haver tudo, / Deve trazer uma loucura maior que os espaos / Entre as almas e entre as estrelas. / 'No, no, a verdade no'. / E nada de concluses: / 'A nica concluso morrer'. - E por ser to preso aos sentidos, ao corpo, natural que nele se manifeste o lado feminino de Pessoa, que Pessoa, por temor, reprime: Os braos de todos os atletas apertaram-me subitamente feminino, E eu s de pensar nisso desmaiei entre msculos supostos Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros, Acenaram no meu corao os lenos de todas as despedidas Todos os chamamentos obscenos de gestos e olhares Batem em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais. Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos, E todos os pederastas - absolutamente todos (sem faltar nenhum) Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma! (Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te, Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim!). - Esse dado talvez faa de lvaro de Campos um heternimo mais perto de Pessoa que os outros, mais perto da pessoa de Pessoa. Mesmo porque, como o cidado Fernando Pessoa - ao contrrio de Caeiro e Ricardo Reis -, lvaro de Campos citadino, urbano, metropolitano, contemporneo das usinas e da luz elctrica: "A dolorosa luz das grandes lmpadas eltricas da fbrica / Tenho febre e escrevo. / Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto. / Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos''. - Por isso, estilisticamente, ele "moderno", "futurista", entusiasmado com as novidades da civilizao industrial. lvaro de Campos guia automvel e faz disso matria de poema. Nem Caeiro nem Reis seriam capazes de semelhante proeza. - "Pode afirmar-se que foi entre si prprio e lvaro de Campos que Pessoa se repartiu, dado que Alberto Caeiro um mestre j falecido e Ricardo Reis um amigo distante; sublinhe-se porm, que lvaro de Campos , directamente, discpulo de Caeiro" (PDE:10f).

- AdC surge "quando sinto um sbito impulso para escrever e no sei o qu" (PDE:205). - O 1. poema "Opirio" uma recriao do ennui de Baudelaire e uma anticipao da nause de Sartre: antes do pio que a minh'alma doente. Sentir a vida convalesce e estila E eu vou buscar ao pio que consla Um Oriente ao oriente do Oriente. [...] Eu acho que no vale a pena ter Ido ao Oriente e visto a India e a China. A terra semelhante e pequenina E ha s uma maneira de viver. Por isso eu tomo pio. um remedio. Sou um convalescente do Momento. Mro no rs-do-cho do pensamento E ver passar a Vida faz-me tedio [...] No posso com a vida, e acho fatais As iras com que s vezes me debrdo [...] Ah quanta alma haver, que ande metida Assim como eu na Linha, e como eu mstica! Quantos sob a casaca carateristica No tero como eu o horrr vida? [...] Volto Europa descontente, e em sortes De vir a ser um poeta sonamblico. Eu sou monarquico mas no catlico E gostava de ser as coisas fortes. (L-AdC:76ss) - Contextualizao do Sensacionismo de Campos (cf. "Ah, olhar em mim uma perverso sexual!", in "Ode Triunfal", L-AdC:8,91), a partir de um texto de Pessoa (A-PIAI:158-168; cf.a. 193-199):

Acontece que a gerao a que pertencemos - [...] - traz consigo uma riqueza de sensao, uma complexidade de emoo, uma tenuidade e intercruzamento de vibrao intelectual, que nenhuma gerao nasceu possuindo. [...] Sobre uma vida social agitada, directamente como intelectualmente pelas complexas consequncias da irrupo para a prtica das ideias da Revoluo Francesa, veio cair todo o complexo e confuso estado social resultante da proliferao sempre crescente das indstrias, do enxamear cada vez mais intenso das actividades comerciais modernas. [...] O aumento das facilidades de transporte, o exagero das possibilidades do conforto e da vantagem, o acrscimo vertiginoso dos meios de diverso e de passatempo - todas essas circunstncias, combinadas, entrepenetradas, agindo quotidianamente, criaram, definiram, um tipo de civilizao em que a emoo, a inteligncia, a vontade, participam da rapidez, da instabilidade e da violncia das manifestaes prpriamente, diriamente tpicas do estado civilizacional. [...] Em cada homem moderno h um neurastnico que tem que trabalhar. A tenso nervosa tornou-se um estado normal na maioria dos includos na marcha das cousas pblicas e sociais. A hiper-excitao passou a ser regra. [...] Perguntou-se que maior razo para a certeza teria a metafsica da cincia do que a metafsica da crena: a resposta foi a atitude pragmatista, a atitude neo-espiritualista, as inmeras formas de atitudes religiosas. [...] De modo que chegmos a uma poca singular, em que nos aparecem todos os caractersticos de uma decadncia, conjugados com todos os caractersticos de uma vida intensa e progressiva. [...] Assim, cada um de ns nasceu doente de toda esta complexidade: Em cada alma giram os volantes de todas as fbricas do mundo, em cada alma passam todos os combios do globo, todas as grandes avenidas de todas as grandes cidades acabam em cada uma das nossas almas. Todas as questes sociais, todas as perturbaes polticas, por pouco que com elas nos preocupemos, entram no nosso organismo psquico, [..] A arte moderna deve portanto: 1) ou cultivar serenamente o sentimento decadente, escrupulizando em todas as cousas que so caractersticas da decadncia - a imitao dos clssicos, a limpidez da linguagem, a cura excessiva da forma, caractersticas da impotncia de criar; 2) ou, fazendo por vibrar com toda a beleza do contemporneo, com toda a onda de mquinas, comrcios, indstrias [...] Assim, a era das mquinas produziu, nos indivduos da Europa, um individualismo excessivo, uma nsia feroz de viver em toda a extenso a vida individual, um abandono correspondente e concomitante, resultante do senso moral, das prises da religio, dos chamados preconceitos que haviam sido a base da vida nos sculos anteriores. [...] - Cf. Ode Triunfal: "Canto, e canto o presente, e tambem o passado e o futuro, / Porque o presente todo o passado e todo o futuro"; "Fraternidade com todas as dinmicas! / Promscua fria de ser parte-agente" (L-AdC:88).

- Dos fragmentos da "Passagem das Horas" (1916, L-AdC:26a-g). Sentir tudo de todas as maneiras, Ter todas as opinies,

Ser sincero contradizendo-se a cada minuto, Desagradar a si-proprio pela plena liberdade de espirito, E amar as cousas como Deus. (26a,161) [...] Eu, que sou mais irmo de uma arvore que de um operario (ibid.). [...] Eu, enfim, que sou um dialogo contnuo, [...] Eu, enfim, literalmente eu, E eu metaphoricamente tambem, Eu, o poeta sensacionista, enviado do Acaso. (ibid.) [...] O individuo que fuma opio, que toma absintho, mas que, enfim, Prefere pensar em fumar opio a fumal-o (162). [...] Eu, aquella cousa em que ests pensando e te marca esse sorriso (ibid.). [...] Orgia intellectual de sentir a vida! (164). [...] Afinal, a melhor maneira de viajar sentir (34,200). [...] Multipliquei-me para me sentir, Para me sentir, precisei sentir tudo, Transbordei, no fiz seno estravasar-me, Despi-me entreguei-me, E ha em cada canto da minha alma um altar a um Deus differente. (26b,166) [...] [...] grande machina universo (168f). [...] Cavalgada pantheista de mim por dentro de todas as cousas (168) [...] No sei se a vida pouco ou de mais para mim. No sei se sinto de mais ou de menos, no sei Se me falta escrupulo espiritual, ponto-de-apoio na intelligencia, Consanguinidade com o mysterio das cousas, choque Aos contactos, sangue sob golpes, estremeo aos ruidos, Ou se ha outra significao para isto mais commoda e feliz. (26c,170ff ) [...]

Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir, E fica sempre, fica sempre, fica sempre, At morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica... Torna-me humano, noite, torna-me fraterno e sollicito. S humanitariamente que se pode viver. [...] S assim, noite, e eu nunca poderei ser assim. (172) [...] E sempre que estou pensando numa cousa, estou pensando noutra. No me subordino seno por atavismo (26d,174; cf.a. 46,210f). [...] Eu sou eu. Que tenho eu com a roupa-cadaver que deixo? Que tem o c com as calas? Ento no teremos ns cuecas por esse infinito fora? O qu, o para alem dos astros nem me dar outra camisa? Bolas, deve haver lojas nas grandes ruas de Deus. (27f,184) [...] Tudo que vimos ns, vivemos s ns o mundo. No temos seno ns dentro e fra de ns" (59,220). [...] Mas eu proprio sou o Universo, Eu proprio sou sujeito e objecto, [...] Totaliso e transcendo, Realiso Deus numa architectura triumphal De arco de Triumpho posto sobre o universo, De arco de triumpho construido Sobre todas as sensaes de todos que sentem E sobre todas as sensaes de todas as sensaes... (28, 191s) [...] Poesia do impeto e do giro Da vertigem e da exploso, Poesia dynamica, sensacionista, silvando Pela minha imaginao fra em torrentes de fogo Em grandes rios de chama, em grandes vulces de lume. (ibid.)

No h critrio da verdade seno no concordar consigo prprio. O universo no concorda

consigo prprio, porque passa. A vida no concorda consigo prpria porque morre. O paradoxo a frmula tpica da Natureza. Por isso toda a verdade tem uma forma [?] paradoxal. (217f) Substitui-te sempre a ti-prprio. Tu no s bastante para ti. S sempre imprevenido [?] por tiprprio. Acontece-te perante ti-prprio. Que as tuas sensaes sejam meros acasos, aventuras que te acontecem. Deves ser um universo sem leis para poderes ser superior. So estes os princpios do sensacionismo. (A-PIAI:218) Faze de tua alma uma metafsica, uma tica e uma esttica. Substitui-te a Deus indecorosamente. a nica atitude realmente religiosa. (Deus est em toda a parte excepto em si-prprio). Faze do teu ser uma religio atesta; das tuas sensaes um rito e um culto. (A-PIAI:218) S no est gasta a poesia das sensaes, porque as sensaes so individuaes e os individuos nunca se repetem. [...] As nossas sensaes individuaes no so as do amor, as do odio, as do (...) porque essasso demasiado semelhantes em todos os homens, e s pode haver variao da expresso d'ellas, pelo qual processo a arte fatalmente se formaliza, se plasticiza em excesso. O que bem nosso nas sensaes, [...], so as sensaes directas, as que no tm caracter social, as veem directamente de vr, ouvir, cheirar, palpar, gostar, e as sensaes de vidas previamente vividas, [...]. A poesia individual. (L-PPC2:405) "O futurismo vem a ser uma fotografia abstracta das coisas. Ora toda a arte, seja como for, antifotogrfica e concreta" (A-PETCL:161)

Abram fallencia nossa vitalidade! Escrevemos versos, cantamos as cousas-fallencias; no as vivemos. Como poder viver todas as vidas e todas as epocas E todas as formas da forma E todos os gestos do gesto? O que fazer versos seno confessar que a vida no basta (L-AdC:24m,153) -Sobre Walt Whitman: "He is the medium of Modern Times" (A-PETCL:290). "lvaro de Campos is excellently defined as a Walt Whitman with a Greek poet inside" (APIAI:142). "A poesia aquela forma da prosa em que o ritmo artificial" (A-PIAI:391f) - Do "Ultimatum": "A Europa quer grandes Poetas, quer grandes Estadistas, quer grandes Generais! [...] Quer o Poeta que busque a Imortalidade ardentemente, e no se importe com a fama, que para as actrizes e para os produtos farmacuticos!" (Ultimatum:120).

"O maior artista ser o que menos se definir, e o que escrever em mais gneros com mais contradices e dissemelhanas. Nenhum artista dever ter s uma personalidade" (Ultimatum:127). "S tem o direito ou o dever de exprimir o que sente, em arte, o indivduo que sente por vrios. [...] O artista cuja arte seja uma Sntese-Soma, e no uma Sntese-Subtraco dos outros de si, como a arte dos actuais" (126). - De Ambiente: "Fingir conhecer-se" sagt Campos in "Ambiente" (A-TCI:264) Nenhuma poca transmite a outra a sua sensibilidade; transmite-lhe apenas a inteligncia que teve dessa sensibilidade. Pela emoo somos ns; pela inteligncia somos alheios. A inteligncia dispersa-nos; por isso atravs do que nos dispersa que nos sobrevivemos. Cada poca entrega s seguintes apenas aquilo que no foi. (A-TCI:263) "Toda a emoo verdadeira mentira na inteligncia, pois no se d nela. Toda a emoo verdadeira tem portanto uma expresso falsa. Exprimir-se dizer o que se no sente" (263f).

- Poemas da ltima fase[711- 81] [MS] 17/12/1927 Perdi a esperana como uma carteira vazia Troou de mim o Destino; fiz figas para o outro lado, E a revolta bem podia ser bordada a missanga por minha av E ser reliquia da sala da casa velha que no tenho. (Jantavamos cedo, num outrora que j me parece de outra incarnao, E depois tomava- se ch nas noutes socegadas que no voltam. Minha infancia, meu passado sem adolescencia, passaram, Fiquei triste, como se a verdade me tivesse sido dita, Mas nunca mais pude sentir verdade nenhuma excepto sentir o passado) _______________________________________________________________ TABACARIA* [Presena, 39, Coimbra, Julho, 1933] 15/1/1928 No sou nada. Nunca serei nada. No posso querer ser nada. parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhes do mundo que ningum sabe quem (E se soubessem quem , o que saberiam?),

Dais para o mistrio de uma rua cruzada constantemente por gente, Para uma rua inacessvel a todos os pensamentos, Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, Com o mistrio das coisas por baixo das pedras e dos sres, Com a morte a pr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, Com o Destino a conduzir a carroa de tudo pela estrada de nada. Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Estou hoje lcido, como se estivesse para morrer, E no tivesse mais irmandade com as coisas Seno uma despedida, tornando-se esta casa e ste lado da rua A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada De dentro da minha cabea, E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida. Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu. Estou hoje dividido entre a lealdade que devo Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, E sensao de que tudo sonho, como coisa real por dentro. Falhei em tudo. Como no fiz propsito nenhum, talvez tudo fsse nada. A aprendizagem que me deram, Desci dela pela janela das traseiras da casa. Fui at ao campo com grandes propsitos, Mas l encontrei s ervas e rvores, E quando havia gente era igual outra. Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei- de pensar? Que sei eu do que serei, eu que no sei o que sou? Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa! E h tantos que pensam ser a mesma coisa que no pode haver tantos! Gnio? Neste momento Cem mil crebros se concebem em sonho gnios como eu, E a histria no marcar, quem sabe?, nem um, Nem haver seno estrume de tantas conquistas futuras. No, no creio em mim. Em todos os manicmios h doidos malucos com tantas certezas!

Eu, que no tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? No, nem em mim... Em quantas mansardas e no-mansardas do mundo No esto nesta hora gnios-para-si- mesmos sonhando? Quantas aspiraes altas e nobres e lcidas Sim, verdadeiramente altas e nobres e lcidas E quem sabe se realizveis, Nunca vero a luz do sol real nem acharo ouvidos de gente? 0 mundo para quem nasce para o conquistar E no para quem sonha que pode conquist-lo, ainda que tenha razo. Tenho sonhado mais que o que Napoleo fz. Tenho apertado ao peito hipottico mais humanidades do que Cristo. Tenho feito filosofias em segrdo que nenhum Kant escreveu. Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda, Ainda que no more nela; Serei sempre o que no nasceu para isso; Serei sempre s o que tinha qualidades; Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao p de uma parede sem porta, E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, E ouviu a voz de Deus num po tapado. Crer em mim? No, nem em nada. Derrame- me a Natureza sbre a cabea ardente 0 seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo, E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou no venha. Escravos cardacos das estrlas, Conquistmos todo o mundo antes de nos levantar da cama; Mas acordmos e le opaco, Levantmo-nos e le alheio, Samos de casa e le a terra inteira, Mais o sistema solar e a Via Lctea e o Indefinido. (Come chocolates, pequena; Come chocolates! Olha que no h mais metafsica no mundo seno chocolates. Olha que as religies tdas no ensinam mais que a confeitaria. Come, pequena suja, come! Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!

Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que de flha de estanho, Deito tudo para o cho, como tenho deitado a vida..) Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei A caligrafia rpida dstes versos, Prtico partido para o Impossvel. Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprso sem lgrimas, Nobre ao menos no gesto largo com que atiro A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas, E fico em casa sem camisa. (Tu, que consolas, que no existes e por isso consolas, Ou deusa grega, concebida como esttua que fsse viva, Ou patrcia romana, impossivelmente nobre e nefasta, Ou princesa de trovadores, gentilssima e colorida, Ou marquesa do sculo dezoito, decotada e longnqua, Ou cocotte clebre do tempo dos nossos pais, Ou no sei qu moderno - no concebo bem o qu Tudo isso, seja o que fr, que sejas, se pode inspirar que inspire! Meu corao um balde despejado. Como os que invocam espritos invocam espritos invoco A mim mesmo e no encontro nada. Chego janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, Vejo os ces que tambm existem, E tudo isto me pesa como uma condenao ao degrdo, E tudo isto estrangeiro, como tudo.) Vivi, estudei, amei, e at cri, E hoje no h mendigo que eu no inveje s por no ser eu. Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira, E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses (Porque possvel fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso); Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo E que rabo para quem do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que no soube, E o que podia fazer de mim no o fiz. 0 domin que vesti era errado. Conheceram- me logo por quem no era e no desmenti, e perdi- me. Quando quis tirar a mscara, Estava pegada cara. Quando a tirei e me vi ao espelho, j tinha envelhecido. Estava bbado, j no sabia vestir o domin que no tinha tirado. Deitei fora a mscara e dormi no vestirio Como um co tolerado pela gerncia Por ser inofensivo E vou escrever esta histria para provar que sou sublime. Essncia musical dos meus versos inteis, Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse, E no ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte, Calcando aos ps a conscincia de estar existindo, Como um tapete em que um bbado tropea Ou um capacho que os ciganos roubaram e no valia nada. Mas o Dono da Tabacaria chegou porta e ficou porta. Olho- o com desconfrto da cabea mal voltada E com o desconfrto da alma mal- entendendo. le morrer e eu morrerei. le deixar a tabuleta, eu deixarei versos. A certa altura morrer a tabuleta tambm, e os versos tambm. Depois de certa altura morrer a rua onde esteve a tabuleta, E a lngua em que foram escritos os versos. Morrer depois o planeta girante em que tudo isto se deu. Em outros satlites de outros sistemas qualquer coisa como gente Continuar fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas, Sempre uma coisa defronte da outra, Sempre uma coisa to intil como a outra, Sempre o impossvel to estpido como o real, Sempre o mistrio do fundo to certo como o sono de mistrio da superfcie, Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?), E a realidade plausvel cai de repente em cima de mim. Semiergo- me enrgico, convencido, humano, E vou tencionar escrever stes versos em que digo o contrrio. Acendo um cigarro ao pensar em escrev-los E saboreio no cigarro a libertao de todos os pensamentos. Sigo o fumo como a uma rota prpria, E gozo, num momento sensitivo e competente, A libertao de tdas as especulaes E a conscincia de que a metafsica uma conseqncia de estar mal disposto. Depois deito- me para trs na cadeira E continuo fumando. Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando. (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira Talvez fsse feliz.) Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou janela. 0 homem saiu da Tabacaria (metendo trco na algibeira das calas?) Ah, conheo- o: o Esteves sem metafsica. (0 Dono da Tabacaria chegou porta.) Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu- me. Acenou- me adeus, gritei-lhe Adeus Esteves!, e o universo Reconstruiu- se-me sem ideal nem esperana, e o Dono da Tabacaria sorriu. * Outro ttulo encarado: MARCHA DA DERROTA, ainda impresso nas provas da Presena _______________________________________________________________ "Dono da Tabacaria" Cruz na porta da tabacaria! Quem morreu? O prprio Alves? Dou Ao diabo o bem-' star que trazia. Desde ontem a cidade mudou. 1930

Quem era? Ora, era quem eu via. Todos os dias o via. Estou Agora sem essa monotonia. Desde ontem a cidade mudou. Ele era o dono da tabacaria. Um ponto de referncia de quem sou. Eu passava ali de noite e de dia. Desde ontem a cidade mudou. Meu corao tem pouca alegria, E isto diz que morte aquilo onde estou. Horror fechado da tabacaria! Desde ontem a cidade mudou. Mas ao menos a ele algum o via, Ele era fixo, eu, o que vou, Se morrer, no falto, e ningum diria: Desde ontem a cidade mudou. _______________________________________________________________ "Grandes so os desertos,..." [69-15] [Dact.], 4-9-30; in L-AdCec:291ff; EC-Adc:227f; Grandes so os desertos, e tudo deserto. No so algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto Que disfaram o solo, o tal solo que tudo. Grandes so os desertos e as almas desertas e grandes Desertas porque no passa por ellas seno ellas mesmas, Grandes porque de alli se v tudo, e tudo morreu. Grandes so os desertos, minha alma! Grandes so os desertos. No tirei bilhete para a vida, Errei a porta do sentimento, No houve vontade ou occasio que eu no perdesse.

Hoje no me resta, em vesperas de viagem, Com a mala aberta esperando a arrumao addiada, Sentado na cadeira em companhia com as camisas que no cabem, Hoje no me resta (parte o incommodo de estar assim sentado) Seno saber isto: Grandes so os desertos, e tudo deserto. Grande a vida, e no vale a pena haver vida. Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar Que com arrumao das mos facticias (e creio que digo bem). Accendo um cigarro para addiar a viagem, Para addiar todas as viagens, Para addiar o universo inteiro. Volta amanh, realidade! Basta por hoje, gentes! Addia-te presente absoluto! Mais vale no ter que ser assim. Comprem chocolates creana a quem succedi por erro, E tirem a taboleta porque amanh infinito. Mas tenho que arrumar a mala, Tenho porfora que arrumar a mala, A mala. No posso levar as camisas na hypothese e a mala na razo. Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala. Mas tambem, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas, A ruminar, como um boi que no chegou a Apis, destino. Tenho que arrumar a mala de ser. Tenho que existir a arrumar malas. A cinza do cigarro cahe sobre a camisa de cima do monte. Olho para o lado, verifico que estou a dormir. Sei s que tenho que arrumar a mala, E que os desertos so grandes e tudo deserto, E qualquer parabola a respeito d'isto, mas d'essa que j me esqueci.

Ergo-me de repente todos os Cesares. Vou definitivamente arrumar a mala. Arre, hei de arrumal-a e fechal-a; Hei de vel-a levar de aqui, Hei de existir independentemente d'ella. Grandes so os desertos e tudo deserto, Salvo erro, naturalmente. Pobre da alma humana com oasis s no deserto ao lado! Mais vale arrumar a mala. Fim. _______________________________________________________________

"Tenho uma grande constipao", 14-3-1931, [69-17r], [typ.], L-AdCec: 297; EC-AdC: 307-308. Tenho uma grande constipao, E toda a gente sabe como as grandes constipaes Alteram todo o systema do universo, Zangam-nos contra a vida, E fazem espirrar at metaphysica. Tenho o dia perdido cheio de me assoar. Doe-me a cabea indistinctamente. Triste condio para um poeta menor! Hoje sou verdadeiramente um poeta menor. O que fui outrora foi um desejo; partiu-se. Adeus para sempre, rainha das fadas! As tuas asas eram de sol, e eu c vou andando. No estarei bem se no me deitar na cama. Nunca estive bem seno deitando-me no universo. Excusez du peu... Que grande constipao physica! Preciso de verdade e de aspirina. _______________________________________________________________ Quasi Arrumar a vida, pr prateleiras na vontade e na aco... Quero fazer isto agora, como sempre quiz, com o mesmo resultado; Mas que bom ter o proposito claro, firme s na clareza, de fazer qualquer coisa! Vou fazer as malas para o Defenitivo, Organizar Alvaro de Campos, E amanh ficar na mesma coisa que antes de hontem - um antes de hontem que sempre... Sorrio do conhecimento anticipado da coisa nenhuma que serei... Sorrio ao menos; sempre alguma coisa o sorrir. Productos romanticos, ns todos...

E se no fossemos productos romanticos, se calhar no seriamos nada. Assim se faz a literatura... Coitadinhos dos Deuses, assim at se faz a vida! Os outros tambem so romanticos, Os outros tambem no realizam nada, e so ricos e pobres, Os outros tambem levam a vida a olhar para as malas a arrumar, Os outros tambem dormem ao lado dos papeis meio compostos, Os outros tambem so eu. Vendedeira da rua cantando o teu prgo como um hymno inconsciente, Rodinha dentada na relojoaria da economia politica, Me, presente ou futura, de mortos no descascar dos Imperios, A tua voz chega-me como uma chamada a parte nenhuma, como o silencio da vida... lho dos papeis que estou pensando em afinal no arrumar Para a janella por onde no vi a vendedeira que ouvi por ella, E o meu sorriso, que ainda no acabara, acaba no meu cerebro em metaphysica. Descri de todos os deuses deante de uma secretaria por arrumar, Fitei de frente todos os destinos pela distraco de ouvir apregoando-se, E o meu comeo um barco velho que apodrece na praia deserta, E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a secretaria e o poema. Como um deus, no arrumei nem a verdade nem a vida. _______________________________________________________________ "Ha tanto tempo que nao sou capaz", 9-8-1934, [711-32r], [Ms.] in: L-AdCec: 331-32; ECAdC: 251-52; Ha tanto tempo que nao sou capaz De escrever um poema extenso!... Ha annos... Perdi a virtude do desenvolvimento rhythmico

Em que a ida e a forma, Numa unidade de corpo com alma, Unanimemente se moviam... Perdi tudo que me fazia consciente De uma certeza qualquer no meu ser... Hoje o que me resta? O sol que est sem que eu o chamasse... O dia que me no custou exforo... Uma brisa, com a festa de uma brisa, Que me do uma consciencia do ar... E o egoismo domstico de no querer mais nada. Mas, ah!, minha Ode Triumphal, O teu movimento rectilineo! Ah, minha Ode Martima, A tua estructura geral em strophe, antistrophe e epodo! E os meus planos, ento, os meus planos Esses que eram as grandes odes! E aquella, a ultima, a suprema, a impossivel! ____________________________________________

"A alma humana porca...", [71-34 u. 35r?], [Ms.], L-AdCec:307; EC-AdC:360, 270-271; A alma human porca como um anus E a vantagem dos caralhos pesa em muitas imaginaes. Meu coraao desgosta-se de tudo com uma nausea do estomago. A Tavola Redonda foi vendida a peso, E a biographia do Rei Arthur, um galante escreveu-a. Mas a sucata da cavallaria ainda reina nessas almas, como um perfil distante. Est frio. Ponho sobre os hombros o capote que me lembra um chale O chale que minha tia me punha aos hombros na infancia. Mas os hombros da minha infancia sumiram-se antes para dentro dos meus hombros. E o meu corao da infancia sumiu-se para dentro do meu corao. Sim, est frio... Est frio em tudo que sou, est frio... Minhas proprias ideas teem frio, como gente velha... E o frio que eu tenho das minhas ideas terem frio mais frio do que ellas. Engelho o capote minha volta... O Universo da gente... a gente... as pessoas todas!... A multiplicidade da humanidade mixturada, Sim, aquilo a que chamam a vida, como se s houvesse outros e estrellas... Sim, a vida... Meus hombros descahem tanto que o capote resvala... Querem comentario melhor? Puxo-me para cima o capote. Ah, parte a cara vida! Levanta-te com estrondo no socego de ti! _______________________________________________________________ "Faze as malas...", 2-5-1933, [711-26r], [Ms.]. in: L-AdCec: 318-319; EC-AdC: 238;

Faze as malas para Parte Nenhuma! Embarca para a universalidade negativa de tudo Com um grande embandeiramento de navios fingidos Dos navios pequenos, multicolores, da infancia! Faze as malas para o Grande Abandono! E no esqueas, entre as escovas e a thesoura, A distancia polychroma do que no se pode obter. Faze as malas definitivamente! Quem s tu aqui, onde existes gregario e inutil E quanto mais util mais inutil E quanto mais verdadeiro mais falso Quem s tu aqui? quem s tu aqui? quem s tu aqui? Embarca, sem malas mesmo, para ti mesmo diverso! Que te a terra habitada seno o que no comtigo? _______________________________________________________________ "Sim, est tudo certo."; 5-3-1935; [63-6]; [Ms.]; [Pessoa-ipse?] L-AdCec: 351; Sim, est tudo certo. Est tudo perfeitamente certo. O peor que est tudo errado. Bem sei que esta casa pintada de cinzento Bem sei qual o numero d'esta casa No sei, mas poderei saber, como est avaliada Nessas oficinas de impostos que existem para isto Bem sei, bem sei... Mas o peor que ha almas l dentro E a Thesouraria de Finanas no conseguiu livrar A visinha do lado de lhe morrer o filho. A Repartio de no sei qu no pode evitar Que o marido da visinha do andar mais acima lhe fugisse com a cunhada... Mas est claro, est tudo certo... E, excepto estar errado, assim mesmo: est certo... _______________________________________________________________

No sei. Falta-me um sentido, um tacto Para a vida, para o amor, para a gloria... Para que serve qualquer historia, Ou qualquer facto? Estou s, s como ninguem ainda esteve, Oco dentro de mim, sem depois nem antes. Parece que passam sem vr-me os instantes, Mas passam sem que o seu passo seja leve. Comeo a lr, mas cana-me o que inda no li. Quero pensar, mas doe-me o que irei concluir. O sonho pesa-me antes de o ter. Sentir tudo uma cousa como qualquer cousa que j vi. No ser nada, ser uma figura de romance, Sem vida, sem morte material, uma ida, Qualquer cousa que nada tornasse util ou feia, Uma sombra num cho irreal, um sonho num transe. ((EC-AdC:382)