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Anais do III Seminário de História · Anais do III Seminário de História Política: Campos da História Política ORGANIZAÇÃO GERAL Prof. Dnd. João Júlio Gomes dos Santos

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Anais do III Seminário de História Política:

Campos da História Política

ORGANIZAÇÃO GERAL

Prof. Dnd. João Júlio Gomes dos Santos Júnior (PUCRS e UFSM)Profa. Dra. Júlia Silveira Matos (FURG)

Prof. Esp. Marcelo França de Oliveira (FURG)

COMISSÃO ORGANIZADORA

Prof. Dr. Diorge Alceno Konrad – Professor Adjunto da UFSMProfa. Dra. Maria Medianeira Padoin – Professora Associada da UFSM

Acad. Alessandro de Almeida PereiraAcad. Matheus Luís da Silva

Acad. Leonardo MaiaAcad. Leandro Rosa de Oliveira

Promoção

GT de HisTória PolíTica da aNPUH-rs

ProGrama de Pós-GradUação em HisTória da UNiversidade Federal do rio GraNde

deParTameNTo de HisTória da UNiversidade Federal de saNTa maria

ProGrama de Pós-GradUação em HisTória da UNiversidade Federal de saNTa maria

Rio Grande2012

© GT História Política - ANPUH-RS

2012

Capa: Marcelo França de OliveiraDiagramação e formatação eletrônica: Marcelo França de Oliveira

Todas as informações e revisão dos textos publicados são de inteira responsabilidade dos autores.

Catalogação na Fonte: Rosana Portugal T. de Moraes

M425s MaTos, Júlia silveira, saNTos JR, João Júlio dos santos, oLIVEIRa, Marcelo França de (orgs).

anais do III seminário de História Política: campos da História Política – Rio Grande: Pluscom Editora, 2012.

IsBN: 978-85-62983-14-6v. 1287 p.1. história, política, pesquisa

CDU 94(81).082/.083

Apresentação

O Grupo de Traballho de História Política da ANPUH/RS, em uma parceria com UFSM, apresenta o “III Seminário de História Política: Campos da História Política”. Esse encontro tem por objetivo divulgar e incentivar

pesquisas produzidas no Rio Grande do Sul na área de história política. Ao debater determinadas temáticas, também tem a intenção de colaborar com a renovação dos estudos e mostrar as diferentes abordagens existente nesse campo de atuação do historiador.

A História Política continua com uma forte produção historiógrafica mesmo com todas as suspeitas inerentes a essa linha de pesquisa. Esse campo de atuação do historiador foi visto com certo receio em função das suas abordagens e métodos. Essa desconfiança está ligada às diversas críticas que a História Política Tradicional sofreu no último século. Dentre essas críticas, está sua preocupação em contar a História dos vencedores, dos heróis, dos fatos e das batalhas. Críticas que envolviam o seu método de contar a História a partir do ponto de vista do Estado-nação, exaltar suas origens e projetar seu futuro glorioso, ser factual e privilegiar as análises do particular .

Essa visão acerca da História Política Tradicional se deu principalmente em função da crítica provinda do movimento de renovação francês conhecido como a Escola dos Annales. Esse movimento pensava a necessidade de redimensionar as abordagens históricas passando a se preocupar em contar a História daqueles que foram desprestigiados pela História Política Tradicional. A História “vista de baixo”, procurava recuperar as atividades que eram realizadas por coletividades, e que envolviam tanto as relações sociais em suas mais diversas dimensões como também o trabalho, as trocas e os avanços tecnológicos.

Dessa forma, a ênfase nas pesquisas centrou-se nos estudos sobre a sociedade e a economia. A história quantitativa ganhou espaço, e tudo aquilo que pudesse ser “contado” era bem visto, no sentido de trazer um respaldo mais científico à História . Nesse contexto se fundamentou o predomínio de estudos: do coletivo sobre o individual; da longa duração em detrimento do tempo curto, que era incapaz de dar uma explicação sobre as estruturas sociais; das diferentes realidades de trabalho; dos meandros da produção; das relações de trocas; tudo em detrimento daquilo que foi produzido anteriormente, que ganhava a

alcunha de “tradicional” .

Essa crítica fez com que as temáticas que procurassem historicizar as relações políticas, ou relações entre Estados, fossem logo identificadas como “tradicionais”, “reacionárias” e “conservadoras” justamente por privilegiar a História das classes dominantes. Essa visão a priori proporcionou certa desconfiança nessa linha de pesquisa. No entanto, Para Jacques Julliard, a História Política nunca desapareceu, e “não se ganharia nada em continuar a confundir as insuficiências de um método com os objetos a que se aplica” . Portanto, a aproximação da História com outros campos do conhecimento, dentre eles a sociologia, a ciência política, o direito público, a lingüística, etc., proporcionou alterações metodológicas que alteraram a própria significação do que é o político.

Para Pierre Rosanvallon, o político não seria apenas uma “instância” ou “domínio” entre outros da realidade, mas sim “o lugar em que se articulam o social e sua representação” . E para o historiador se “comunicar lingüisticamente com a realidade passada”, como bem lembra Reinhart Koselleck, os “conceitos históricos” são uma maneira de resignificar o evento estruturando-o a partir das inter-relações das temporalidades históricas . A partir dessa resignificação do político, sua compreensão dialética entre eventos e estruturas, e essa aproximação com outras ciências, novos objetos foram descortinados.

Portanto, os atuais trabalhos sobre História Política são acompanhados de uma densa reflexão teórica e metodológica que os distancia daquela velha compreesão de História Política Tradicional. Já é tempo de aprofundar essa discussão e possibilitar que o público acadêmico de Santa Maria tenha contato com as excelentes trabalhos que atualmente são publicados na área de História Política.

os orGaNizadores

Sumário

Programação

08Conferências, palestras e painéis

10Comunicações orais

67Resumos de pôsteres

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Programação10/05 8h - Credenciamento

9h – Conferência de Abertura: Profa. Dra. Júlia Silveira Mattos (FURG)

10h – Coffee break

10h30min- Conferência: Um balanço dos 5 anos do “Núcleo de História Política e das Instituições Militares” da UFSM. Prof. Dr. André Átila Fertig (UFSM)

14h - 18h – Comunicações Científicas

19h – Mesa Redonda: “política, ideias e trajetórias”Prof. Dr. José Iran Ribeiro (UFSM)Prof. Dnd. Lauro Manzoni Bidinoto (UFRGS) Coordenadora e debatedora: Profa. Dra. Maria Medianeira Padoin (UFSM)

11/059h – Painel: “Jovens pesquisadores” Prof. Dnd. Fabian Filatow (PUCRS) Prof. Dnd. Ricardo Oliveira da Silva (UFRGS) Prof. Dnd. Eduardo Rouston (PUCRS)

Coordenador e debatedor: Prof. Dnd. João Júlio Gomes dos Santos Júnior (PUCRS e UFSM)

14h - 18h– Comunicações Científicas

19h – Mesa redonda: “Fascismo: ideias e políticas”. Prof. Dnd. Fábio Chang de Almeida (UFRGS) Prof. Dr. Carlos Henrique Armani (UFSM) Coordenador e debatedor: Profa. Dra. Júlia Mattos (FURG)

Conferências, palestras e

painéis

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“O Povo Contra a Tirania”: o discurso federalista acerca da Brigada Militar na República Velha Gaúcha 1

edUardo roUsToN JUNior 2

Resumo

O presente trabalho está inserido em um projeto mais amplo, vinculado a nossa pesquisa desenvolvida no curso de mestrado, cujo tema principal era analisar a atuação política federalista na Assembleia dos Representantes do Rio Grande do Sul entre os anos de 1913 e 1924. Para esta apresentação escolhemos enfocar uma das temáticas identificadas no discurso parlamentar federalista: a crítica às arbitrariedades da Brigada Militar do Estado. Em linhas gerais, esta era acusada pelos deputados da oposição de espalhar o ódio e o terror por toda parte, sendo o governo de Borges de Medeiros destacado como a encarnação de uma tirania opressiva, cruel e desligada da opinião pública. Na contestação ao caráter repressivo da força militar, aparecerão também, no âmbito da crítica oposicionista, as denúncias com relação ao peso significativo que a manutenção da Brigada Militar dispunha no orçamento do Estado, assunto este freqüentemente relacionado a outro tema bastante caro ao positivismo castilhista: o ensino público. Nesse sentido, nos propomos aqui apresentar as ideias políticas que fundamentaram os discursos parlamentares federalistas no que tange às questões militares, recuperando, a partir disso, os principais debates que marcaram a vida do parlamento gaúcho no contexto histórico em foco.

Palavras-chave: Partido Federalista, Brigada Militar, Parlamento.

Resumen

Este trabajo se incluye en un proyecto más amplio, vinculado a nuestra investigación desarrollada en la carrera de maestría, cuyo tema principal era analizar la actuación política federalista en la Assembleia dos Representantes do Rio Grande do Sul entre los años de 1913 y 1924. Para esta ponencia elegimos centrarnos en una de las temáticas identificadas en el discurso parlamentario federalista: la crítica a las arbitrariedades de la Brigada Militar del Estado. En líneas generales, los diputados de la oposición la acusaban de esparcir el odio y el terror por toda parte, siendo el gobierno de Borges de Medeiros apuntado como la encarnación de una tiranía opresiva, cruel y alejada de la opinión pública. En la oposición al carácter represivo de la fuerza militar, aparecerán también, en el entorno de la crítica oposicionista, las denuncias con respecto al peso significativo que el mantenimiento de la Brigada Militar disponía en el presupuesto del Estado, tema que era frecuentemente relacionado a otro asunto bastante caro al positivismo castilhista: la enseñanza pública. En ese sentido, nos proponemos a presentar las ideas políticas que fundamentaron los discursos parlamentarios federalistas

1 Este artigo é uma versão resumida e revista de parte da nossa dissertação de mestrado. Em função da amplitude do tema tivemos que realizar uma discussão geral, sem resgatar, de maneira mais específica, o embasamento empírico do tema que nos leva a estas conclusões, o que deixaria este artigo demasiadamente extenso.

2 Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Orientado pelo Prof. Dr. Luciano Aronne de Abreu. Bolsista do CNPq. E-mail: [email protected]

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en lo que respecta a las cuestiones militares, recuperando, a partir de ello, los principales debates que marcaron la vida del parlamento gaúcho3 en dicho contexto.

Palabras clave: Partido Federalista, Brigada Militar, Parlamento.

Considerações iniciais1.

Nosso foco aqui consiste em apresentar as críticas produzidas pelos deputados federalistas4 na Assembleia dos Representantes a respeito da Brigada Militar, força estadual de repressão ligada ao governo republicano de Borges de Medeiros, sistematizando-as em torno de duas grandes questões, quais sejam: as arbitrariedades cometidas por esta força policial e as vultuosas dotações orçamentárias por ela recebida do governo. No primeiro caso, em linhas gerais, a Brigada era acusada pela oposição de espalhar o terror por toda parte, varejando casas, ameaçando e encarando cidadãos do bem, sendo o governo republicano de Borges de Medeiros destacado como a mais viva manifestação da “orgia, do descaso e da prepotência”, para com a opinião popular. O castilhismo 5 era, desta forma, representado sempre como a encarnação de uma tirania opressiva, cruel e desligada da opinião pública, afeita não à liberdade, mas à “República do ódio”.

No segundo, sobre os recursos destinados à Brigada Militar, eram recorrentes nos discursos federalistas as comparações entre as vultuosas dotações à segurança e a verba destinada ao ensino público, uma vez que os representantes maragatos, constantemente, reivindicavam, em seus pronunciamentos, a criação de novas escolas e melhores salários ao professorado gaúcho. Consideravam os recursos destinados à Brigada, uma verba “improdutiva”, “inútil”, tamanha a “precariedade” em que se encontrava a instrução pública no Rio Grande do Sul. Vejamos, então, de que maneira estas duas questões eram referidas e articuladas nos discursos oposicionistas.

3 N.T.: El vocablo “gaúcho” designa lo relativo a la provincia brasileña de “Rio Grande do Sul”.

4 Fundado pelo liberal Gaspar Silveira Martins, o Partido Federalista nascerá em março de 1892, no Congresso de Bagé. O novo partido gasparista, com seu ideário de inspiração parlamentarista e defensor de uma República unitária, entrará, a partir de 1893, em radical oposição com a ordem política republicana castilhista, fundada na Carta Constitucional de 14 de julho de 1891. No que se refere à representação política estadual, desde 1891 até 1913, a oposição federalista não conseguiu eleger um único representante à Assembleia dos Representantes, sendo esta maciçamente integrada por deputados perrepistas. Em 1913, o quadro político parlamentar começa a se modificar, pois, neste ano, o partido maragato conquistará sua primeira vaga na Câmara estadual com a eleição do alegretense Jorge Pinto.

5 Referência ao nome do principal líder e também articulador intelectual do republicanismo gaúcho – Júlio de Castilhos. Nossa concepção de castilhismo é fundamentada no historiador colombiano Ricardo Vélez Rodríguez, que o definiu como o modelo político inspirado em Comte, mas reelaborado pessoalmente por Júlio de Castilhos, principalmente na defesa que este fazia da importância do papel do Estado na sociedade. Além de ser a versão gaúcha do positivismo comtiano, tal matriz ideológica teve certa longevidade ao influenciar inclusive o projeto político de Getúlio Vargas após 1930.

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Autoritarismo político e o regime da “rolha” no Rio Grande do 2. Sul castilhista

Um dos principais mecanismos de sustentação do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) 6 no governo do Estado era sua organização policial, composta pela corporação militar congregada na Brigada e pelas polícias “judicial” e “administrativa”, sem mencionar a Guarda Nacional e os Corpos Provisórios, a chamada Guarda Civil, os quais podiam ser convocados com apoio dos coronéis 7 sempre que a estabilidade institucional fosse colocada em cheque. 8 O Rio Grande do Sul possuía um dos maiores contingentes armados na corporação militar estadual, que chegou a reunir 3.200 homens, constituindo-se, sem dúvida, numa garantia especial contra possíveis ameaças de insurreição da oposição, contra intervenções federais e mesmo contra a insubordinação de coronéis recalcitrantes. A Constituição Estadual de 14 de julho de 1891, também conhecida como “Constituição Castilhista” 9, estabelecia a superposição das polícias: enquanto a chamada “administrativa” era custeada pelos municípios e comandada por subintendentes, a “polícia judiciária” compunha-se, nos municípios, dos delegados e subdelegados, estando submetida ao secretário do Interior e Justiça, à chefatura de polícia, e às quatro subchefaturas regionais, as quais podiam dispor dos regimentos brigadianos, embora eles não estivessem sob seu comando direto.

A Brigada Militar, por sua vez, registrava alto grau de fidelidade ao Palácio, bastando para isso mencionar que sobre ela vigorava o Código Penal da Armada, o qual, esgrimido pela comandância, sempre indicada pelo Presidente do Estado, cominava sentenças,

6 Com a proclamação da República em 1889, subiu ao poder estadual um novo partido, o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) que adotou uma forma de governo autoritária e fortemente centralizada na figura do chefe político, esvaziando por completo o legislativo e tornando o judiciário um mero braço daquele mesmo poder. A execução do projeto político republicano contou, ao longo de toda a República Velha gaúcha, com um aparato de controle coercitivo policial representado pela Brigada Militar e um arcabouço constitucional amparado na “ditadura republicana” da doutrina positivista de Augusto Comte. É importante ressaltar também que a subida dos republicanos ao poder significou, pelo menos durante os anos iniciais da República, um total afastamento político dos membros do Partido Liberal, considerado o mais influente do estado durante os tempos imperiais, chefiado por Gaspar Silveira Martins, sendo o esteio da maior parte do contingente político que viria a formar o Partido Federalista.

7 Além de sustentados pelo Exército e pela Brigada Militar, os republicanos buscaram apoio nos coronéis, homens de confiança nos municípios, capazes de garantir o apoio ao Presidente, mesmo nos momentos mais graves. Os coronéis, nas revoluções, comandavam as tropas legalistas “voluntaristas” locais e tinham amplos poderes frente a seus comandados. Segundo Pedro Fonseca (1983, p. 197), nos municípios o coronelismo era quase o símbolo do próprio Estado.

8 De acordo com Loiva Félix (1987, p. 125), os primeiros corpos provisórios foram criados em número de 18, em dezembro de 1892, e instalados quase todos na região fronteiriça, em redutos oposicionistas: Santa Vitória do Palmar, Jaguarão, Cacimbinhas (Pedras Altas), Piratini, Dom Pedrito, Livramento, Quaray, São Borja, São Luís, Cacequi, Caçapava e Herval. Eram em geral comandados por oficiais da Guarda Nacional e utilizavam armamento oficial.

9 Mesmo sendo constituída uma comissão, integrada por Ramiro Barcellos, Assis Brasil e Júlio de Castilhos, com o encargo de elaborar o projeto de Constituição do Estado, o único autor do projeto constitucional foi, de fato, Júlio de Castilhos, já que os dois primeiros recusaram-se a assinar o texto esquivando-se de qualquer responsabilidade na sua elaboração. Para maiores informações sobre esta divergência ver: TRINDADE, Hélgio. Aspectos Políticos do Sistema Partidário Rio-Grandense (1882-1937). In: GONZAGA, S; DACANAL, J. H (orgs.). Rio Grande do Sul: economia e política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979, p. 137-139.

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incluindo castigos corporais e a pena de morte, que apenas podiam ser apeladas ao mesmo presidente. Conforme enfatiza Joseph Love (1975, p. 115), a Brigada constituía-se em um verdadeiro exército estadual, tão bem equipada quanto seu correspondente federal, e comandada por um oficial de carreira, afastado do exército por licença. O PRR tinha nesta instituição, certamente, sua força bélica básica.

Esse conjunto de forças ajudou a manter o PRR no poder por quase quarenta anos: a polícia estadual e judiciária, a polícia municipal (Guarda Municipal), controlada pelo subchefe de polícia, a Guarda Cívica (Brigada Militar) e os Corpos Provisórios. Wenceslau Escobar, importe liderança federalista estando sempre na linha de frente da oposição ao castilhismo – borgismo, em suas obras nomeou uma série de crimes impunes, resultantes da violência que permeava a sociedade gaúcha, apontando o nome de 134 pessoas assassinadas até 1893: “No Rosário o assassinato do jovem jornalista Milo Neto, do Bolívar em Itaqui, de Inocêncio Garcia, da cidade de Júlio de Castilhos, de Benjamin Torres em São Borja e do Dr. Pena, em Bagé, na sua maioria, por funcionários ou delegados de Borges de Medeiros” (ESCOBAR, 1924, p. 125).

Sendo a Força Pública o elemento coercitivo por excelência usado pelo Partido Republicano, era o alvo constante da palavra oposicionista na arena política da Assembleia Estadual. É significativo recuperarmos aqui o debate travado entre federalistas e republicanos no expediente da 32ª sessão, em novembro de 1917. A questão central na discussão giraria em torno das acusações proferidas pelo federalista José Alves Valença quanto ao caráter repressor do sistema policial da capital gaúcha (Porto Alegre). O protesto levantado pelo deputado da oposição tinha como foco de ataque um edital publicado pelo chefe de polícia da cidade, que, evocando disposições do código penal da República, proibia taxativamente os ajuntamentos de mais de três pessoas:

Se as nossas liberdades, os nossos direitos, amplamente assegurados nos nossos códigos, dependem de uma vontade despótica de uma autoridade atrabiliária, onde pairam as conquistas que em nossa civilização vem, gradativamente, fazendo a cultura social? Esse edital, sr. presidente, é um atentado ao direito, é um atentado à justiça, é um atentado à liberdade, é um atentado às disposições claras, positivas, insofismáveis, da Constituição. E como se cumpriu esse edital, que assumiu as proporções de um ‘ukase moscovita’? (VALENÇA, 1917, p. 115)

Segundo o representante oposicionista, toda a sorte de violências se praticava contra quem ousasse desafiar a grei republicana, vista por ele, como uma fonte de arbitrariedades contra a liberdade de opinião, de expressão. São freqüentes as referências à conduta autoritária da polícia no Estado. Em discurso pronunciado na mesma sessão, Valença ainda traria à tona um episódio envolvendo uma manifestação de estudantes contra o Presidente do Estado, Borges de Medeiros, ocorrida no centro da capital gaúcha:

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Aqui bem perto desta casa (...) vinham os estudantes em bando pacífico, alegre e humorístico, ou quais outro crime não cometiam mais que trazer à boca uma rolha, como símbolo do silêncio que lhes fora imposto, percorrendo esta rua (Bragança) para, em seguida, voltarem à dos Andradas e dissolverem-se, quando, de inopino, caiu-lhes em cima um piquete de cavalaria da Brigada Militar intimando-os a retirarem as rolhas da boca e a se dissolverem, sob pena de o fazerem à bala, reproduzindo assim o piquete presidencial – oh irrisão! – aquela mesma frase, com tanta altivez e sobranceria proferida pelo marechal de ferro em repulsa da dignidade nacional ultrajada – à bala! Foi essa frase memorável – à bala – proferida pelo grande Floriano (...) que serviu, em grotesca paródia, de intimação para os recalcitrantes se desfazerem das rolhas que traziam à boca. (...) Mas não ficou nisso a arbitrariedade da polícia; a seguir-se, a patas de cavalo e a golpes de espada, foi dissolvida a pacífica manifestação. (...) Não contentes com esse inominável atentado, apeiaram-se alguns e, quais feros ‘capitães de mato’, tentaram invadir diversas casas na sanha criminosa de perseguir os moços, já dispersos uns e foragidos outros. (...) (VALENÇA, 1917, p. 115).

É muito provável que os manifestantes estivessem se referindo ao “regime da rolha” imposto pela ditadura castilhista – borgista, que, por sua vez, determinava severa vigilância sobre os funcionários públicos, impedidos de se manifestarem politicamente. Dirigindo-se ao deputado republicano Flores da Cunha, Valença desabafa, em tom de protesto: “onde estão as nossas prerrogativas, a nossa liberdade de ação; eu pergunto à v. ex. se, cidadãos livres, em uma pátria livre, estamos sujeitos às intimações grosseiras de qualquer soldado?” (Idem, p. 115). Em seguida, o representante maragato se diz vítima da própria arbitrariedade policial. O incidente é narrado em detalhes pelo orador e o tom da crítica torna-se mais duro:

Com esta disposição firme eu me achava, pacatamente (...) à rua dos Andradas, quando recebi a grosseira intimação daquela praça. Retorqui-lhe, mais ou menos, nos seguintes termos: ‘Cidadão pacato e ordeiro, nenhum inconveniente poderá provir de minha permanência aqui e, por isso, não circularei’. Respondia eu assim à intimação dessa praça, quando o capitão Galant, comandante da escolta presidencial, ordenou-lhe que seguisse na sua ‘gloriosa’ missão e, em seguida, (...) pediu-me que colaborasse com ele, auxiliando-o na manutenção da ordem pública. Prometi-lh‘o e adiantei mais que, momentos antes, a um grupo de rapazes tinha aconselhado a conveniência e o dever de manterem-se na atitude da máxima correção, da máxima ordem, respeitando a força pública, embora reputasse ilegais as ordens emanadas da chefatura de polícia. Nesse ínterim fui surpreendido pela voz de um major da Brigada, que mais tarde soube chamar-se João Cândido Machado, que, não ouvindo o assunto de nossa conversação, grita, do meio da rua, em tom solene: Sr. capitão, não converse; prenda. (Ibidem, p. 116).

É interessante destacar neste pronunciamento a justificativa dada pelo comandante da escolta na repressão à manifestação: a lógica referente à questão dos “interesses da ordem pública”. Cabe lembrar aqui que sob essa justificativa, ações discricionárias

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foram tomadas pelo governo republicano, ao longo de toda a República Velha gaúcha, apresentando-se para consolidar a ordem em nome do bem-estar público. Ou seja, justificava-se a manutenção da ordem pressupondo-se que isto fosse garantia para os direitos. Neste sentido, uma organização ou uma simples manifestação “pacífica” de estudantes que porventura pudesse fazer oposição ao governo do PRR era considerada perturbadora da ordem e, portanto, seria perseguida. É importante deixar bem claro, no entanto, que o orador, apesar de vinculado a um grupo político oposicionista, não condenava, em seu discurso, a preservação da ordem em si, mas os excessos e abusos cometidos em nome dela pelas autoridades governamentais. O fato é que a ordem foi condição fundamental da política castilhista sul-rio-grandense no decorrer do período republicano. Como aponta Norberto Bobbio, a ordem é palavra de fundamentação para regimes autoritários a ponto de ampará-los ideologicamente:

Não existe coerência plena de significado entre o Autoritarismo a nível de ideologia e o Autoritarismo a nível de regime político. A estrutura mais íntima do pensamento autoritário acha correspondência não em qualquer sistema autoritário e sim no tipo puro de regime autoritário conservador ou de ordem. Neste sentido, o pensamento autoritário não se limita a defender uma organização hierárquica da sociedade política, mas faz desta organização o princípio político exclusivo para alcançar a ordem, que considera como bem supremo. Sem um ordenamento rigidamente hierárquico, a sociedade vai fatalmente ao encontro do caos e da degradação. (BOBBIO, 1995, p. 95).

De volta ao cenário parlamentar, e depois de violenta troca de apartes entre os representantes Alves Valença e Flores da Cunha, a sessão teve que ser suspensa pelo presidente da Casa, Barreto Vianna, sendo reaberta minutos depois, com nova investida oposicionista. A tônica do debate continuaria sendo a mesma: denúncias com relação à violação do direito às liberdades públicas e às “violências antipatrióticas da polícia”. Nesse ínterim, seguindo a mesma linha de raciocínio, questionava o deputado federalista:

Como despertar o civismo de um povo, se este, como estímulo, é varrido a patas de cavalo e fustigado a golpes de chicote, nas ruas da capital, quando reunidos em comícios pacíficos? E quem, sr. presidente, foi mais duramente sacrificada aos vãos terrores do chefe de polícia? Foi precisamente a mocidade, foi a juventude de nossa terra, foi o que de melhor tem a nação para os sacrifícios do amanhã. (...) (VALENÇA, 1917, p. 118).

Às críticas empenhadas pela oposição federalista sobre as arbitrariedades da Brigada Militar, refutava a maioria republicana afirmando que “todos os assuntos trazidos para este recinto pelo representante da oposição escapam da nossa alçada, estão fora das atribuições da Assembleia dos Representantes, importando, portanto, numa vitória da

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minoria (...)”. (ALMEIDA, 1917, p. 119). O argumento sustentado pelos parlamentares situacionistas, encabeçados pelo santa-mariense Pelágio de Almeida, era o de que, ao apresentar tais denúncias, a bancada federalista estaria rasgando o princípio básico do regimento interno que previa apenas a discussão orçamentária, motivo pelo qual também desencadeou ferrenha oposição do grupo maragato. Não é demais lembrar que, de acordo com a Constituição Rio-Grandense de 1891, a função básica da Assembleia dos Representantes 10, de fato, restringia-se ao voto orçamentário. Mas, como estamos percebendo, a presença dos deputados do Partido Federalista, ao contrário do que se previa, tornara o debate político mais vivo, excedendo em muito a temática puramente orçamentária. O trecho abaixo ilustra como as posições estavam diametralmente opostas e o descontentamento de Gaspar Saldanha, líder da minoria federalista, no tocante ao fato sucedido com seu colega de oposição:

O Sr. Pelágio de Almeida – (...) já em aparte foi explicado e dito que era impossível... O Sr. Valença – Muito possível. O Sr. Pelágio de Almeida – ... que um oficial superior da Brigada Militar, compenetrado das responsabilidades do momento, perturbasse a tranqüila e serena palestra do nosso colega da minoria com o capital Galant. O Sr. Valença – Apelo para o capitão Galant. O Sr. Pelágio de Almeida – Com certeza ele ignorava a sua qualidade de deputado. O Sr. G. Saldanha – Mesmo que não fosse deputado, mesmo que se tratasse de um simples cidadão, sem função oficial, esse oficial não devia cometer essa grosseria, esse atentado brutal, porque a Constituição garante, em toda plenitude, o direito de locomoção. (Anais da Assembleia dos Representantes, 32ª Sessão, 03 de novembro de 1917, p. 120).

A crítica federalista ao autoritarismo da força militar rio-grandense também se deu no contexto político das eleições de 1922, quando do confronto Assis Brasil (oposição) versus Borges de Medeiros (situação), pela sucessão estadual. Exemplo disso é o discurso proferido por Gaspar Saldanha em sessão de dezembro de 1922. Nele, Saldanha protesta contra o gesto autoritário empregado pelo subintendente do 2° distrito, Carlos Caruz, de proibir a realização de um comício em prol da candidatura oposicionista de Assis Brasil, comício esse que ocorreria numa das praças públicas de Alegrete, no interior do estado. Nesse sentido, esgrimia: “os fatos que enlutaram a parte sã e honesta da sociedade de Alegrete tiveram a sua fonte certa (...) no ato de exorbitância, num gesto intempestivo de força do subintendente do 2° distrito proibindo a realização de um comício em favor da candidatura do eminente brasileiro dr. Assis Brasil”. (SALDANHA, 1922, p.

10 Competia-lhe também criar, aumentar ou suprimir tributos; autorizar o Presidente a contrair empréstimos; fazer a apuração da eleição do Presidente do Estado e fixar-lhe o subsídio. A decretação e a promulgação das leis tocava ao Executivo. A limitação função da Assembleia seria motivo de críticas ao longo da República Velha, inclusive no próprio momento de sua instalação, questão que será desenvolvida mais adiante.

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168). Na censura imposta pelo subintendente, outra opção não restou aos partidários, que estariam organizando o comício, senão recuar e abdicar do direito constitucional “da livre manifestação do pensamento”, ocasionando, de acordo com o representante maragato, “uma forte depressão moral no espírito do eleitorado”. (SALDANHA, 1922, p. 168). Na mesma sessão, Alves Valença, que, diferentemente de Saldanha, desde sempre se manteve conectado com a propaganda assisista, denominada por ele próprio de “cruzada redentora”, intervém e fala sobre as ameaças que vinha recebendo contra a sua pessoa, motivo pelo qual o levaria, a partir de então, a andar sempre na posse de uma arma. Segundo Valença, essas ameaças provavelmente estariam ligadas a sua postura irreconciliável na defesa ferrenha que ele fazia do assisismo. A respeito disso, salientava:

Mas, sr. presidente, não sei apenas os avisos que tenho tido de que, contra mim, se premedita um atentado. E eu não afasto de mim (...) toda a responsabilidade, desde seu início até hoje, da minha atitude assumida no movimento libertador do Rio Grande! Assumo-a inteira e completa. Mas, sr. presidente, deixar-me inerme abater? Jamais. Um desses avisos que me foi feito por negociante caracterizado desta praça, fato que testemunhei com o proprietário do hotel Guaíba, onde resido, da seguinte forma, dizendo: ‘na rua guardar-me-ei, ao sr. compete evitar a entrada aqui de facínoras’. E essa figura ilustre e esse varão preclaro, o coronel Vasco Alves, que agora foi tão covardemente assassinado, dissera em Santa Maria a dois amigos nossos – que não me deixasse só quando por ali passasse. (...). (VALENÇA, 1922, p. 171).

E concluía sua oração, indagando: “E é nesta atmosfera de animosidades, de ameaças, de conluios que eu hei de andar desarmado?”. (Idem, p. 171).

Não podemos esquecer que os protestos contra a arbitrariedade da polícia estadual não se restringiu exclusivamente a uma iniciativa dos deputados federalistas. A oposição parlamentar ao regime republicano ganharia mais um adepto a partir de 1921: o dissidente castilhista, Antônio Monteiro. Com seu ingresso às hostes oposicionistas, naquele ano, aumentava para quatro o número de deputados estaduais da oposição 11. Mesmo não ingressando nas fileiras do federalismo, Monteiro lançar-se-ia na corrente contestatória das oposições gaúchas ao autoritarismo borgista, apresentando, em sessão de dezembro de 1922, forte denúncia contra a arbitrariedade da Brigada Militar de Santana do Livramento. O quadro de “barbárie absoluta” relatado pelos parlamentares maragatos, em 1917, também se faria presente no interior do Estado, conforme destaca o referido representante. A vítima da ação policial, desta vez, teria sido o republicano Laudelino Neto, que, em correspondência dirigida a José Alves Valença, criticava veementemente a postura autoritária do auxiliar de polícia Hipólito Vieira, mais conhecido, na localidade, como “Dentinho de Ouro”. Segundo Monteiro, Neto se via constantemente perseguido, 11 Além dos reeleitos Gaspar Saldanha e José Alves Valença, o Partido Federalista também contaria com um terceiro representante, o advogado passo-fundense, Arthur Caetano da Silva.

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recebendo até ameaças de morte, por parte das autoridades públicas daquele município como resultado do voto dado por ele ao candidato da oposição, Assis Brasil, durante o pleito presidencial estadual de 25 de novembro de 1922. Nesse bojo, esgrimia que:

E nós não sabemos onde vamos parar se justamente quem devia efetivar as medidas de garantia é quem as desrespeita sempre flagrantemente. E isto não sucede só em Santana; é em quase todo o Rio Grande do Sul. (Lendo): ‘Há pouco tempo fui preso traicoeiramente pelo auxiliar da polícia Hipólito Vieira (...) sem haver eu cometido falta alguma, sob o pretexto de desarmar-me, não sendo encontradas armas em meu poder’. E porque, meus senhores, se persegue um homem como Laudelino Neto, que, desde os seus 16 anos, vem prestando serviços inestimáveis ao partido hoje dirigido pelo dr. Borges de Medeiros? Somente porque ele, como nós outros, alimenta a convicção de que o Rio Grande precisa de um pouco de liberdade. E nós não temos para quem apelar, embora se diga e se repita nesta casa que o Rio Grande é a terra das liberdades e que a sua polícia é a garantia de tudo e de todos; eu nego esta afirmação e lavro aqui nesta casa o nosso veemente protesto contra a vingança exercida sobre Laudelino Neto, atualmente ameaçado em sua liberdade e até em sua vida. (MONTEIRO, 1922, p. 211).

Este relato chama atenção para a dificuldade do autoritarismo do Estado em impor um modelo total de submissão, mesmo no interior de sua própria grei partidária. A ebulição de dissidências no coração do castilhismo – borgismo em alguns municípios do interior, como em Livramento, por exemplo, é prova disso.

Intervencionismo e Ensino Público3.

As críticas da oposição, no que toca a este tema da Brigada, também se concentraram em outro ponto específico: a contestação ao peso significativo que a manutenção da Brigada Militar dispunha no orçamento do Estado. Este assunto, bastante recorrente em todos os debates, aparece, freqüentemente, conectado com uma outra questão, aliás, bastante cara ao positivismo: a educação 12. Estes dois temas constantemente aparecem juntos, sem que, entretanto, tenham um nexo interno. A ligação decorria do fato que a oposição

12 É pertinente registrar que a instrução pública era uma das principais áreas de intervenção do Estado no Rio Grande do Sul, consumindo grandes somas de recursos orçamentários. Günter Axt (2011) salienta que além da melhoria geral no padrão de vida da população, o investimento em educação era uma ferramenta privilegiada de doutrinação política, e criava, ainda, um exército de novos eleitores, desde que a alfabetização constituía um requisito para o sufrágio, projetando o Estado em escala política nacional. Nesse sentido, “a educação era, portanto, estratégica para a sustentação política e inserção nacional da elite dirigente gaúcha”. O magistério, com suas centenas de postos, era um misto de função pública e negócio privado. Com parcos recursos para obras, o estado remunerava muitos professores para darem aulas em suas próprias casas, os quais, com freqüência, quando eram construídos prédios para as escolas, resistiam em transferir suas classes àquelas dependências. O professorado dividia-se em concursados e substitutos. Os primeiros tinham mais garantias, mas nem por isso eram menos dependentes da rede de compromissos, pois o próprio resultado do concurso no qual tomaram parte certamente havia sido manipulado. Além disso, havia uma grande distância entre a aprovação e a nomeação, cuja efetivação também apenas se alcançava por interferência política. Da mesma forma, o acesso a gratificações, vantagens e boas colocações (devido a fatores como distâncias, instalações ou quantidade de alunos, as classes poderiam ser mais ou menos disputadas pelos professores) dependia do poder de inserção do mestre na rede de compromissos. Sobre esta questão, ver: AXT, Günter. Gênese do Estado Moderno no Rio Grande do Sul 1889-1929. Porto Alegre: Paiol, 2011, p. 133-4-5.

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sempre comparava, nos debates, a verba destinada à educação com a proposta para a corporação militar. Para os federalistas, a ditadura republicana se amparava no uso da força, já que não tinha o apoio do conjunto da sociedade e, deliberadamente, abandonava a educação, com salários baixos para os professores, poucas escolas, principalmente as rurais. A crítica maior ainda era destinada à licença, que permitia o desempenho de atividades profissionais sem a posse do diploma.

No âmbito da discussão sobre o projeto que orçava a despesa extraordinária e especial do Estado para 1920, Gaspar Saldanha, referindo-se ao aumento de recursos destinados à segurança pública, precisaria seu ponto de vista, destacando ser aquela uma verba improdutiva, desnecessária, inútil, visto que, em documentos oficiais e até mesmo em jornais situacionistas como “A Federação”, dizia-se que a ordem pública no Estado continuava inalterável. Não havia motivos reais, portanto, de acordo com o representante federalista, que justificassem a atitude do governo estadual que continuava “esbanjando prodigamente os dinheiros públicos com a manutenção da Brigada Militar”. (SALDANHA, 1919, p. 143-4). Em contrapartida, baixos eram os gastos governamentais no que se referia à educação, se comparados com as vultuosas dotações à segurança, o que agravava ainda mais a realidade social do país, onde a cifra do analfabetismo ainda era enorme, dizia Saldanha. À este quadro apontado pelo orador, somava-se outro problema: os parcos recursos à justiça. Neste sentido, desfechava:

O projeto que acompanha o parecer não visou sequer os superiores aspectos que dizem respeito com as seguranças de ordem moral de um povo e que, certo, engrenam em matéria de administração, como os serviços da distribuição da justiça e da difusa da instrução pública. Para este o orçamento para o exercício vindouro apresenta a insignificante cifra de 4 mil contos. Entretanto, para a manutenção da Brigada Militar, aparece uma verba superior à da instrução em 708:000$000, verba improdutiva, que, em caso algum, deveria ser superior à primeira. (...). (SALDANHA, 1920, p. 151-2).

Em seguida, fazendo uma alusão à importância do ensino obrigatório, disparava: “Seria de maior justiça que maior, muito maior fosse a verba destinada à instrução pública. Ao glosar e condenar a malfadada orientação materialista que empolga o mundo esqueceu a comissão de orçamento do magnífico preceito de ouro do cristianismo de que ‘nem só do pão vive o home.’” (SALDANHA, 1920, p. 152). A questão da obrigatoriedade do ensino era vista por ele como crucial para o desenvolvimento do sistema educacional rio-grandense. Nesse ínterim, Saldanha completava seu raciocínio, salientando que “assim como hoje deve ser obrigatória a profilaxia para evitar a invasão de epidemias, assim também se deve arejar os espíritos, ministrando-lhes os necessários conhecimentos indispensáveis aos próprios indivíduos e, em conseqüência, à sociedade”. (SALDANHA, 1922, p. 222). A respeito da licença, explicitava Saldanha:

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A licença profissional é também aqui um cano e o charlatão, o intrujão, pode exercer qualquer profissão; podendo ser médico, advogado, farmacêutico, etc., quando bem entender, prejudicando a saúde, os bens dos habitantes. É desnecessária prova prévia da idoneidade científica para o exercício destas delicadas profissões. (SALDANHA, 1921, p. 205).

O argumento republicano, explanado por Getúlio Vargas, para a manutenção do efetivo militar era a situação de fronteira do Estado.

Entende o ilustre deputado que o governo do Rio Grande, descurando da instrução, gasta uma grande parte da sua renda com a manutenção da, no seu dizer, inútil Brigada Militar; esquecendo-se, no entanto, que essa ‘formidável’ Brigada tem o efetivo de dois mil e poucos homens, ao passo que São Paulo tem um exército de oito mil. E acrescenta: a Brigada ‘é uma garantia de ordem e de segurança públicas’ e, frente a qualquer movimento ‘subversivo ela estaria apta a reprimi-lo, mantendo a lei’. Além da circunstância de fronteira, há ainda no estado a presença da oposição: ‘S. Ex., em seus discursos, tem atirado sobre nós a ameaça velada de uma revolução...’. (VARGAS, 1919, p. 130-1)

Notamos novamente aqui a existência da prerrogativa da manutenção da ordem na confecção do discurso castilhista, bem como a necessidade incansável de associar os opositores federalistas aos inimigos e perturbadores da ordem social, responsáveis pela “desordem” e pela “anarquia” no Estado. Às argüições produzidas por Vargas, replicava a oposição sustentando que tal comparação com a força policial de São Paulo era injusta, visto que a “verba consignada no orçamento daquele Estado é de 24 mil contos quando a nossa é de menos da quinta parte (Há apartes de vários deputados, aos quais responde o orador)”. (SALDANHA, 1921, p. 205).

Quanto ao ensino, a visão republicana é claramente positivista, enfatizando o ensino fundamental, principalmente o primário (público) e deixando o superior para a iniciativa particular. O governo investe no ensino “prático e utilitário” para um Estado com as características do Rio Grande do Sul. Cumpre lembrar aqui que são criados vários institutos: como o Instituto Parobé, para o ensino técnico-profissional; Instituto Eletro-técnico, Instituto Borges de Medeiros para o ensino de agronomia e veterinária; Escola industrial; Estações de Agricultura e Criação; Patronato agrícola, entre outros. Quanto à licença, seu objetivo era democrático, na interpretação republicana, pois permitia ao indivíduo fugir da ditadura do diploma imposta pela universidade. Apesar de defender a necessidade do ensino público, Vargas não aparece como defensor da licença, deixando a seus colegas essa missão e evitando, ao que parece, o assunto.

As críticas de Gaspar Saldanha estendiam-se também à falta de escolas rurais no Estado, o que obrigava as populações do campo, especialmente, as de menor poder aquisitivo, a se deslocarem até os centros urbanos, em demanda de escolas para seus

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filhos. No seu entender, isto acarretava sérios problemas como, por exemplo, o “abandono dos campos” e o conseqüente e “desnecessário” acréscimo da população urbana. Seu discurso, dizia ele, fundamentava-se em dados concretos, reais, uma vez que era de conhecimento geral a existência de uma população de mais de onze mil habitantes situada na então colônia de Sobradinho, “cujos menores, por falta de escola”, estavam privados de educação. Diante de um “cenário tão sintomático”, como este, acrescentava: “Não é somente esse forte núcleo de população rural que está privado de ensino. São inúmeros os casos dessa natureza”. Em seguida, reiterava sua velha contestação quanto às verbas destinadas aos quadros militares:

(...) Eu opinaria que fosse antes suprimida a verba destinada a 20 subchefias de polícia, verdadeira desnecessidade, verdadeira superfetação na organização policial do Estado, (...) sendo desnecessário acrescer com cerca de 350 contos de reis o orçamento da despesa do Estado. (...) Seria bem melhor que esta quantia tentadora fosse invertida no custeio de escolas rurais. (SALDANHA, 1924, p. 207).

Sobre a justiça, a argumentação federalista seguia a mesma linha de pensamento. Acrescentava apenas o fato de haver uma disparidade entre o baixo número de funcionários no aparelho judiciário e o exagerado acúmulo de serviço forense.

Considerações finais4.

Feitas tais considerações, podemos afirmar que a organização policial foi uma parte importante do conjunto de medidas responsáveis pela estruturação do Estado republicano no Rio Grande do Sul. O republicanismo gaúcho teve na força policial, de caráter autoritário, uma base de sustentação, sem a qual dificilmente sobreviveria. Tanto o castilhismo como o borgismo buscaram apoio na Brigada Militar, que é aumentada em número e bem aparelhada. O fortalecimento das forças armadas estaduais era fator de segurança contra as intervenções federais e medida de precaução ante à oposição, que por duas vezes recorreu ao enfrentamento armado. Neste quadro, aparece a discussão em torno das despesas governamentais para a manutenção dos quadros militares estaduais, questão esta que abriria espaço para a divergência de opiniões entre maragatos e republicanos. Se, de um lado, os federalistas empenhavam-se em criticar o peso significativo que a manutenção da Brigada dispunha no orçamento do Estado, julgando ser esta uma verba improdutiva e inútil, propondo, por conseguinte, maiores investimentos na área da educação e justiça, de outro, contra-atacavam os republicanos justificando a alta dotação orçamentária destinada à Brigada em função da situação de fronteira do Estado sulino, tomando a questão da Brigada como uma garantia de ordem e

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de segurança públicas. Este discurso de manutenção da ordem serviu para a repressão e afastamento de outros setores podados das esferas das decisões políticas, dentre eles, os federalistas. Na mesma linha, constantes foram as denuncias oposicionistas no tocante à ausência de liberdade sob o governo Borges, trazendo à tona uma série de abusos perpetrados por autoridades ligadas ao castilhismo contra eleitores e/ou simpatizantes do oposicionismo. A oposição se investiu também do seu papel de crítica aos parcos recursos destinados ao ensino público e à justiça, assunto freqüentemente relacionado às vultuosas dotações à segurança. Para os representantes maragatos, a ditadura castilhista – borgista se amparava no uso da força, já que não tinha o apoio integral da sociedade gaúcha, abandonando a educação, com baixos salários aos professores, poucas escolas, especialmente as rurais.

Fontes

Anais da Assembleia dos Representantes do Rio Grande do Sul, de 1917 a 1924, Arquivo da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, DAC.

Referências Bibliográficas

AXT, Günter. Gênese do Estado Moderno no Rio Grande do Sul 1889-1929. Porto Alegre: Paiol, 2011.

BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Brasília: Ed. UNB, 1995.

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FÉLIX, Loiva Otero. Coronelismo, borgismo e cooptação política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.

FONSECA, Pedro Cezar Dutra. RS: economia & conflitos políticos na República Velha. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.

LOVE, Joseph. O regionalismo gaúcho e as origens da revolução de 1930. São Paulo: Perspectiva, 1975.

TRINDADE, Hélgio. Aspectos Políticos do Sistema Partidário Rio-Grandense (1882-1937). In: GONZAGA, S; DACANAL, J. H (orgs.). Rio Grande do Sul: economia e política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979.

VÉLEZ RODRÍGUEZ, Ricardo. Castilhismo: uma filosofia da República. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2010.

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Sagrado versus Heresia no movimento dos Monges Barbudos

Fabian Filatow1

Resumo:

O trabalho tem por objetivo apresentar algumas reflexões sobre os Monges Barbudos. Movimento sócio-religioso que ocorreu no município de Soledade, interior do Rio Grande do Sul. Composto por camponeses da região que se identificaram sob os preceitos religiosos do dito santo monge João Maria, que segundo a crença, teria percorrido o município no ano de 1935 dando início ao grupo religioso. Na semana santa de 1938, no mês de abril, reunidos junto à capela de Santa Catarina, no então sexto distrito de Soledade, os fieis aguardavam o retorno do salvador e do dito santo monge. A presença de muitas pessoas nesta localidade teria sido o motivo para um grande pânico, fato que contribuiu para a repressão imposta a eles pela Brigada Militar. Pesquisar seus componentes e sua religiosidade foi o caminho percorrido no curso de mestrado no qual buscamos compreender a estrutura cultural e religiosa deste movimento ainda pouco pesquisado.

Palavras-Chave: Monges Barbudos – Soledade – Rio Grande do Sul – Cultura – Religiosidade.

Resumen:

Este trabajo tiene como objetivo presentar algunas reflexiones sobre los Monjes Barbudos. Grupo socio-religioso que se produjo en el municipio de Soledade, Rio Grande do Sul, compuesto por los campesinos de la región que se identificaron bajo los preceptos religiosos de ese santo monje João Maria, que según la creencia, ha viajado por la ciudad en 1935 empezando el grupo religioso. En la semana santa, en abril de 1938, se reunieron en la capilla de Santa Catarina, entonces el sexto distrito de Soledade, los miembros de este grupo esperaban el regreso del salvador y dicho santo monje. La presencia de muchas personas en la ciudad podría haber sido una gran razón para el pánico, lo que contribuyó para la represión impuesta a ellos por la Brigada Militar. Investigar sus componentes y su religión fue el camino seguido en la maestría en que tratamos de comprender la estructura cultural y religiosa de este movimiento todavía poco conocido.

Palabras claves: Monges Barbudos – Soledade – Rio Grande do Sul – Cultura – Religiosidad.

Introdução: 1.

A proposta do trabalho é apresentar alguns resultados obtidos com a pesquisa

1 Mestre em História (UFRGS). Doutorando em História (PUCRS). E-mail: [email protected]

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desenvolvida no mestrado em história, a qual teve como objeto o movimento dos Monges Barbudos. Nosso principal objetivo naquele estudo foi obter informações e documentação sobre o movimento sócio-religioso do qual pouco se conhecia. Dúvidas sobre a composição, formação, estrutura cultural e religiosa, os motivos para o conflito e repressão, estiveram entre as principais questões norteadoras da dissertação. Acreditamos que a conclusão da dissertação contribuiu para esclarecermos alguns destes questionamentos, ao mesmo tempo em que promoveu novas interrogações e possibilidades interpretativas que ainda promovem pesquisas.

Enfim, apresentaremos a formação e organização do movimento, o aspecto sagrado que identificou o grupo religioso e as motivações que contribuíram para a repressão militar imposta ao movimento.

Iniciamos por informar algumas referências sobre a origem e formação do movimento dos Monges Barbudos. Na sequência, analisaremos a estrutura do sagrado e, por fim, vamos expor algumas interpretações sobre os possíveis motivos que contribuíram para a repressão efetuada pela Brigada Militar.

2. Movimento dos Monges Barbudos: origem e formação.

No ano de 1935 teria passado por Soledade um monge profetizando o início de uma nova religião. O santo monge, como ficou conhecido na região, teria pernoitado na casa de André Ferreira França. Segundo consta, André Ferreira França era analfabeto e pertencia a uma família de algumas posses. Segundo relatos, teria abandonado tudo a fim de seguir os ensinamentos do monge. Tornou-se um dos líderes dos Monges Barbudos, aceitando a missão que lhe foi confiada pelo santo monge.

Segundo Valdemar Cirilo Verdi,

(...) Em troca da hospitalidade, o andarilho ensinou-lhe a arte e o segredo das ervas medicinais. Ter-lhe-ia também ensinado outras utilidades da natureza, chamando a atenção para a nobreza do sol, dos rios, da lua, das matas... Alertou sobre os males do fumo plantado por colonos e guardado dentro de casa para secar. Tendo permanecido breve temporada, ao final das lições e ensinamentos, o andarilho apresentou-se como João Maria, ou o santo monge João Maria, (...), assegurou que Deca França havia sido escolhido para uma missão divina. Deveria escolher uns amigos para fundar uma seita de eleitos. (VERDI, 1987, p. 93.)

A residência de André Ferreira França teria se tornado um local de reuniões

religiosas, atraindo um número considerável de pessoas. Pessoas que começaram a frequentar as reuniões organizadas por André Ferreira França. Nestes encontros religiosos os participantes rezavam e aprendiam sobre as qualidades curativas e benéficas das ervas, conhecimento que, segundo a crença, teriam sido adquiridos diretamente do santo monge. Prática que deu notoriedade a André França, tornando-o indesejado entre

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os não adeptos da nova religião, atraindo a desconfiança daqueles que não aceitavam a crença por ele liderada, gerando conflitos e perseguição a André França.

Segundo Júlio Ricardo Quevedo, os Barbudos eram “(...) colonos, como os outros da região, com uma religiosidade latente.”2 Segundo esta informação, temos que os sujeitos que compuseram o grupo religioso foi composto por moradores. Sendo assim, sua expressão religiosa pode ser concebida como uma cultura regional.

O conflito envolvendo os Monges Barbudos teve seu momento mais trágico e violento no dia 14 de abril de 1938, uma sexta-feira santa, na localidade de Bela Vista, que na época pertencia ao sexto distrito de Soledade3. Neste distrito havia a capela dedicada a Santa Catarina, local que, segundo a crença, aconteceria o retorno do salvador e do santo monge.

Com a reunião de uma considerável multidão na localidade, ocorreu o confronto entre os membros dos Monges Barbudos e os soldados da Brigada Militar. O destacamento da Brigada Militar contou com o apoio de moradores locais contrários ao movimento. O saldo deste trágico acontecimento ficou marcado por prisões, mortes e pessoas feridas. Esteve à frente do grupo religioso ou segundo líder do movimento Anastácio Desidério Fiúza, que foi baleado no confronto, ferimento que o levou à morte no dia seguinte, 15 de abril. (VERDI, 1987, p. 98). Pouco tempo depois, também André França, que devido às perseguições, não esteve presente em Bela Vista, acabou sendo morto num novo confronto com soldados da Brigada Militar. Após estes acontecimentos os membros do movimento ficaram impedidos de se reunirem e praticarem sua religiosidade.

3. Monges Barbudos e as representações do Sagrado

Inserida na crença dos Monges Barbudos havia a espera da vinda do salvador, personagem não nomeado, mas João Maria estaria ao seu lado. Como apresentado acima, este retorno estava marcado para a semana santa de 1938. Teria sido esta a motivação que aglutinou uma multidão na localidade de Bela Vista.

Ainda segundo a crença do movimento, a vinda do salvador aconteceria um reordenamento da realidade, ou seja, os que pertenciam e tinham aceitado os ensinamentos da religião tornar-se-iam donos de todas as coisas na Terra e seriam salvos, destino contrário era esperado para os incrédulos.

Outra característica da religiosidade deste movimento era a presença das santas. Estas não eram imagens ou iconografias, estavam entre eles. Santa Catarina estaria viva na pessoa de Andreza Gonçalves e Santa Teresinha estaria presente em Idarsina da Costa (VERDI, 1987, p. 101-105).

2 CAMPOS, Sonia Siqueira et al. Segredo: História e Tradicionalidade. Porto Alegre: IGTF, 1990, p. 17.

3 Atualmente este localidade pertence ao município de Segredo.

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Segundo consta, eram ambas jovens e belas, e tinham em 1935, respectivamente, 18 e 15 anos. Eram veneradas como santas, tendo destaque na vida religiosa do movimento. Sofreram perseguições e violências, estando entre os presos de 1938.

Assim sendo, para compreender os Monges Barbudos é fundamental analisar a expressão religiosa que identificou o grupo de camponeses que se reuniu no interior do município de Soledade. Pois a expressão religiosa pode ser concebida como uma das maneiras pelas quais podemos identificar as contestações e as reivindicações do movimento. Pela via religiosa tentaram romper com a ordem vigente, vislumbrando outra realidade.

Segundo Roger Chartier representações “são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam” (CHARTIER, 1990, p. 17). Assim sendo, devemos compreender as representações do sagrado no âmbito do movimento religioso. Faz-se necessário relacionar o signo visível e o seu referente por ele significado (CHARTIER, 1990, p. 21). Estaremos assim, aplicando o conceito de representação no sentido de representar algo ausente, ou seja, algo que está no lugar de.

A legenda João Maria (ou santo monge) não está restrita à Soledade, relaciona-se com outros movimentos, como os Monges de Pinheirinho (1902, Encantado-RS) e a Guerra do Contestado (1912-1916), para ficarmos restritos ao século XX.

As primeiras informações a respeito do monge nos remetem ao século XIX em Sorocaba, São Paulo (FACHEL, 1995, p. 15.). Com as feiras realizadas em Sorocaba, acreditamos que os tropeiros (FILATOW, 2002) tenham contribuído para a disseminação do conhecimento deste personagem pelo sul do Brasil.

O monge permaneceu pouco tempo em Sorocaba. Retirando-se de São Paulo, foi reaparecer em Santa Maria da Boca do Monte (RS). Teria vivido também na região do Campestre (RS), num morro onde construiu uma capela e, próximo dali, havia uma fonte também tida como milagrosa. Segundo Fachel, inúmeras pessoas o procuraram, fato que alarmou as autoridades, resultando na sua expulsão do Rio Grande do Sul. Teria sido preso na Ilha do Arvoredo em Santa Catarina. Após esse episódio, teria reaparecido numa gruta no município da Lapa, no Paraná, atraindo igualmente a atenção de centenas de pobres e sofredores que buscavam cura e esperança.

As incertezas a respeito de seu desaparecimento contribuem para a construção do mito, ou seja, não havendo clareza sobre sua morte, está aberto o caminho para o surgimento de lendas e profecias que envolvem sua figura.

3.1 Santo Monge e a natureza

As práticas dos monges precisam ser compreendidas no horizonte da religião do povo (BRANDÃO, 1985), na medida em que eles reconhecem e valorizam o modo e as

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práticas de vida das pessoas do campo. A pedagogia dos monges adentra a cultura dos caboclos e desenvolve as ações e as pregações a partir dessa. Duglas Monteiro expõe a função do monge na autonomia religiosa do povo:

(...) Ao contrário do padre, esses estranhos se deixavam assimilar. Conquanto vivessem uma vida apertada e cultivassem hábitos mais ou menos ascéticos, passavam a fazer parte integrante da vida social sertaneja, como se fossem uma florescência natural da religião católica rústica. (MONTEIRO, 1974, p. 81)

O monge conquistou sua posição porque legitimava e dava sentido às práticas religiosas, bem como às visões de mundo dos caboclos. Movia-se com destreza junto as suas necessidades, quando havia doença, prescrevia receitas com plantas e ervas, conhecidas pela população na lida diária com a terra, bem como orações e ritos que operavam “verdadeiros” milagres. Enfim, os monges, valorizavam a tradição da cultura cabocla, tanto para a transmissão quanto para a sobrevivência dessas narrativas.

A recepção dos ensinamentos do monge passa por essas interpretações das práticas com dimensões simbólicas, como os rituais de batismo e de curas que eram realizadas junto às fontes sagradas, que, segundo a crença, foram criadas pelo próprio monge. Tais fontes tornam o espaço sagrado, contribuindo para a permanência do monge. Desempenham um papel de memória. A atribuição de caráter sagrado a estes lugares mantém a memória do santo viva na comunidade, na região.

Verdi nos apresentou o relato de Sebastião Firmino Nunes, morador de Soledade, no qual podemos perceber a presença desta memória do sagrado e o significado das Fontes de Cura:

(...) o padre santo fez nascer a fonte. (...) O monge parou para descansar. Plantou uma cruz de madeira aí mesmo. Olha, tem ainda o sinal. (...). Quando sentiu sede, não tendo água, levantou a mão e disse: ‘Esse lugar é abençoado; dará água para eu tomar; o doente será curado e vai as almas salvar’. Todos que se virem perdidos ou perseguidos se salvam com esta água. Daí estourou a vertente, brotou água pura. (VERDI, 1987, p. 205-206).

As fontes – espaço do sagrado – estão no lugar do monge e legitimam sua existência e seu poder taumaturgo, o representam em sua ausência. Este espaço sagrado se torna uma forma de expressar o sentimento religioso. Os lugares sagrados foram identificados com a natureza, e ao se identificar com a natureza o monge se identificou com as pessoas que viviam dela.

Podemos indicar que a figura do monge e o corpus sagrado (rezas, crenças e lugares sagrados) propiciaram reunir uma parcela da comunidade - os Monges Barbudos -, gerando uma identidade através da fé e da religião dos caboclos. Para compreendê-los se faz necessário analisar as representações do sagrado.

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3.2 cultura e Santidade

As contribuições da nova história cultural possibilitaram a ampliação da pesquisa sobre o movimento dos Monges Barbudos. Destacamos o estudo das representações que contribuíram para compreendermos as concepções culturais e religiosas do grupo religioso. As representações do sagrado não podem ser percebidas como ilusões ou erros, mas como partes constituintes da cultura religiosa dos Monges Barbudos.

Segundo Geertz, cultura é “[...] um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida.” (GEERTZ, 1978, p. 103). As representações do sagrado estavam relacionadas com a realidade social dos Monges Barbudos. Dessa maneira, os Monges Barbudos expressaram sua cultura também por meio da religiosidade.

Outro ponto que queremos destacar se refere às curas. Compreender as curas processadas por ervas e rituais, não é conjugar o movimento como desprovido de racionalidade, visto que a cura por vias mágicas não era uma novidade, pelo contrário, no Rio Grande do Sul existia de longa tradição de práticas de curandeirismo e magia como medicina alternativa, somente nos de 1940 que a medicina se constituiu como forma científica de curar. (WEBER, 1999).

Segundo Rudolf Otto, a santidade é uma qualidade “que adquirem certas pessoas, coisas, lugares, animais, ações e acontecimento em virtude de seu contato com um poder misterioso, sobrenatural” (OTTO, 1985). O autor ressalta o caráter ambíguo do conceito santoral, que significa, ao mesmo tempo, uma ruptura e uma ligação. Para o autor, a santidade implica, por um lado, um rompimento com os elementos profanos do mundo, e, por outro, o estabelecimento de elos com o divino (OTTO, 1985).

Ser santo está condicionado a ser visto e tratado como tal. “Só se pode ser santo em função dos outros e pelos outros” (Pierre DELLOZ, apud VAUCHEZ, 1987, p. 290), ou seja, na medida, e da maneira, em que se é aceito e reconhecido e tratado como santo, por outras pessoas. Michel de Certeau reforçou essa idéia ao ressaltar que um santo deve ser entendido no contexto – da época, grupo e/ou instituição – em que é cultuado, pois para ele, ser santo significa, essencialmente, “gozar da reputação ou odor de santidade”. (CERTEAU, 1982, p. 266 e ss.).

Ainda segundo Certeau,

(...) uma inaceitabilidade da ordem estabelecida, a justo título sob a forma do milagre. Ali, numa linguagem necessariamente estranha à análise das relações sócio-esconômicas, podia-se sustentar a esperança que o vencido da história – (...) – possa, na ‘pessoa do santo’ humilhado erguer-se graças aos golpes deferidos pelo céu contra os adversários. (CERTEAU, 1994, p. 77)

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As escassas informações referentes à vida e existência real dos ditos santos populares contribuem para o ser santo, acreditamos ser esta uma explicação para a legenda João Maria ou santo monge.

Ser santo se gerou pelo fato do monge se identificar com a natureza, identificando-se com as pessoas que viviam dela naquela localidade. Seus ditos milagres possibilitavam realizar e prover suas necessidades imediatas. Aceito como santo permaneceu “presente” através dos lugares do sagrado, as fontes d’água, tidas como possuidoras de poderes curativos, tornaram-se lugares de peregrinações religiosas, de representação do sagrado.

4. Repressão aos Monges barbudos

Na realização da pesquisa de mestrado lidamos com uma realidade complicada, a escassez de fontes documentais escritas sobre os Monges Barbudos. Optamos por analisar as fontes documentais produzidas pela força policial que teve participação na repressão ao movimento de Soledade. Nesta análise buscamos compreender os possíveis motivos que levaram ou contribuíram para a ação policial contra os camponeses.

Nosso intuito compreender as representações existentes nestes documentos policiais e como estes poderiam oferecer informações sobre os Monges Barbudos, informações estas que não faziam parte dos objetivos quando da formulação destes documentos, elaborados no calor da hora, no contexto da repressão ao grupo religioso, ou foram redigidos na sequência dos mesmos no cumprimento da formalidade em dar ciência aos seus oficiais superiores, apresentando a estes os resultados da missão executada no interior de Soledade.

A versão policial dos acontecimentos ocorridos na Semana Santa de 1938 ficou registrada no relatório que foi apresentado ao Comandante Geral da Brigada Militar, pelo major José Rodrigues da Silva. O referido documento apresentou as ações militares aplicadas no combate ao surto de “fanatismo religioso” praticado por elementos que se tornaram conhecidos por Monges Barbudos.

Segundo o relatório temos que

O número de adeptos proporções alarmantes e Tasso [Anastácio Fiúza] determinou uma reunião e marcha para o lugar denominado Bella Vista, onde existe uma igreja de que é padroeira Santa Catarina. Essa reunião efetuou no dia 12 de abril deste ano e a chave da igreja foi obtida mediante ameaças ao encarregado daquele templo. Tendo a população de Bella Vista, alarmada, pedido socorro às autoridades de Sobradinho, o delegado de polícia, Sr. Antônio Pedro Pontes, para lá se dirigiu acompanhado de praças do destacamento daquela cidade. Surpreendidos com a força os fanáticos fizeram alguns disparos de armas curtas e a força também fez uso de suas armas, ferindo o chefe Tasso que veio a falecer logo depois. Foram presos também 10 fanáticos que foram remetidos para Cachoeira e mais tarde postos em liberdade. Morto Anastácio Fiuza e

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apesar de batidos em Bella Vista, os fanáticos conduziram o cadáver para o lugar denominado “Rincão dos Bernabés”, no 5º Distrito de Soledade e ali o conservaram insepulto durante quatro dias, isto é, até o dia 17 de abril, na estulta crença de que o morto ressuscitasse. Em torno desse prolongado velório reuniram-se para mais de 500 pessoas. De tal reunião e desobediência as regras da lei foram avisadas as autoridades de Soledade, que fizeram seguir imediatamente para o local uma força do destacamento da Brigada. A força, ao aproximar-se daquele enorme aglomerado de povo, foi recebida com tiros, fazendo também uso de suas armas, resultando a morte do fanático Benjamin Garcia e ferimento no soldado Oswaldo dos Santos e no fanático Marcolino Alves da Costa. A força efetuou a prisão de 104 fanáticos, entre os quais figurava Maria Candida Ferreira de Camargo, a Santa Catarina4. [sic]

Na citação podemos identificar a localização geográfica do conflito e da ação dos Monges Barbudos. Podemos ter uma noção numérica sobre a multidão que se dirigiu para a localidade. Podemos igualmente conhecer os resultados da ação militar.

Chamamos a atenção para a descrição feita no relatório sobre a presença das santas. Informação de fundamental importância para a compreensão da composição sócio-religiosa do movimento dos Monges Barbudos como salientado acima.

Partindo-se da informação, é possível construir uma narrativa explicativa sobre a importância das santas no movimento religioso. Foi possível descobrir que os Monges Barbudos eram devotos das santas, Santa Catarina e Santa Teresinha. Temos assim uma aproximação entre a crença popular da figura de João Maria, o dito santo monge e as santas do credo católico. Podemos indicar que ocorreu uma combinação entre crenças do cristianismo oficial e da religiosidade popular, na expressão religiosa dos Monges Barbudos.

Partindo da concepção de que o historiador também produz narrativas a partir de outras narrativas, buscamos apresentar uma possível interpretação dos vestígios e indícios existentes sobre os Monges Barbudos, neste sentido os documentos policiais contribuíram positivamente para a melhor reconstrução sobre os acontecimentos que envolveram o movimento sócio-religioso.

Das narrativas produzidas pelos policiais podemos identificar algumas referências sobre hábitos, costumes e sobre os ensinamentos dos Monges Barbudos.

A este respeito, destacamos a explicação apresentada pelo 2º Tenente Arlindo Rosa. No documento foi possível identificar uma concepção preconceituosa frente aos nacionais que habitavam a região. Compreendendo por nacionais os caboclos da região. Ainda segundo o referido relatório, os comportamentos descritos como “exóticos” e frutos de “idéias subversivas”, partiam da condição cultural, ou seja, o fato de serem caboclos favoreceu a proliferação destas ideias, segundo o tenente Arlindo Rosa. Após dez dias de diligência pelo sertão íngreme do sexto distrito, relatou o 2º Tenente:

4 Relatório apresentado ao Sr. Comandante Geral da Brigada Militar pelo major José Rodrigues da Silva - Porto Alegre, 12 de julho de 1938.

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Como me é dado a observar, a maior parte do pessoal que habitam nos lugares acima mencionados são descendentes do nosso caboclo indolente, pouco gostam de trabalhar, de maneiras que, a miséria começou a bater-lhe a porta da casa, então, por meio de uma seita religiosa tendo como padroeira a Santa Catarina, procuram a se reunirem e se auxiliarem mutuamente. Os mais espertos então começaram a fazer a propaganda da religião, dizendo que, quem não pertencesse aquela religião muito em breve morreria e seus bens seriam repartidos com o pessoal da seita, aconselham também andarem desarmados, respeitar as autoridades, apanharem e não brigarem, não beberem, trabalharem pouco, não trabalharem sábados e nem domingo e purificarem o sangue, tomando Caroba, erva de mato e outras5.

O documento policial evidenciou que os Monges Barbudos não afrontavam as autoridades, nem a moral e nem fizeram uso de armas. Outro ponto relevante para a compreensão dos Monges Barbudos era a relação destes com a natureza através do uso das ervas.

Noutros trecho do documento policial, ficamos interessados na utilização semântica. A adjetivação e expressões utilizadas para descrever os Monges Barbudos. Talvez esta possa contribuir para explicar a preocupação ou possibilidade de serem os membros da nova religiosidade adeptos do comunismo.

No primeiro relatório – em ordem cronológica de produção – é possível perceber alguns dados que contribuem para a compreensão do possível motivo do uso da força policial e da ideia das quais estavam imbuídos os soldados que compuseram as tropas que se deslocaram à Soledade. Vejamos,

Consoante vossa determinação telegráfica [reportando-se ao Comandante Geral da Brigada], fiz sair daqui, na madrugada do dia 19 do corrente [março de 1938], um contingente composto de vinte praças sob o comando do 2º tenente Arlindo Rosa, com destino ao 6º Distrito deste município [Soledade] a fim de reconhecer e dispersar uma reunião de fanáticos que constava existir e que estavam empregando idéias subversivas6.

Da citação feita, destacamos duas informações: a primeira está associada ao conhecimento sobre a existência dos Monges Barbudos. Fica evidenciado que os Monges Barbudos já eram de conhecimento da Brigada Militar antes da convocação para a repressão. A segunda, está relacionada com a semântica. A utilização de expressões “reunião de fanáticos e idéias subversivas” certamente contribuiu para uma identificação com grupos dissidentes, como por exemplo, os comunistas.

O documento mencionado, quando associado a outras informações oriundas de diferentes fontes, como as fontes orais transcritas nas obras que abordaram os Monges 5 Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul, Destacamento do 3º Regimento de Cavalaria. Relatório enviado ao Comandante Geral da Brigada Militar. Soledade, 30 de março de 1938, assinado pelo 1º Tenente Comandante do Destacamento Januário Dutra, p. 2 e 3.

6 Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul, Destacamento do 3º Regimento de Cavalaria. Relatório enviado ao Comandante Geral da Brigada Militar. Soledade, 30 de março de 1938, assinado pelo 1º Tenente Comandante do Destacamento Januário Dutra, p. 1.

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Barbudos, nos possibilita a construção da hipótese explicativa a qual apresenta a força policial da Brigada Militar, designada a combater o grupo composto por fanáticos e seguidores de ideias subversivas, imbuída da crença de que estaria combatendo um possível grupo comunista ou, talvez um possível grupo de oposição novo regime do Estado Novo, recentemente instaurado em 10 de novembro de 1937.

Corroborando com a possibilidade da hipótese formulada, temos em o trecho do documento a possibilidade de perceber que a Brigada Militar esteve na busca de agentes de ideias exóticas entre os membros dos Monges Barbudos.

(...) no dia 22 de março, foi remetido pelo tenente Arlino, um grupo de oito fanáticos que haviam se apresentado a ele (...). Interroguei demoradamente cada um deles, verifiquei minuciosamente todos os documentos e demais papéis que possuíam, não tendo encontrado tanto nas declarações como nos papéis nada de importância, que indicasse a pregação de idéias exóticas7.

Segundo o documento, a ideia de existirem entre os participantes do grupo religioso, agentes disseminadores de ideias exóticas – acredito que poderíamos ler comunistas/opositores políticos – não se confirmou. Entre os sujeitos que foram presos nada foi encontrado que pudesse servir de prova para a suspeita. Destacamos que esta informação consta do dia 22 de março de 1938, período que antecedeu o conflito da semana santa. Tal constatação realizada pela polícia não foi suficiente para evitar o conflito que se sucedeu no sexto distrito.

De posse dos indícios e vestígios extraídos da documentação policial aqui analisada, torna-se cada vez mais difícil compartilhar de ideias que associam os Monges Barbudos como sendo um grupo violento ou que atentassem contra a moral, contra a Igreja oficial ou que oferecessem algum perigo potencial à ordem política recentemente instaurada.

Ainda no documento, foi possível obter informações sobre a imigração ocorrida em Soledade.

Os colonos de origem estrangeira e os que não querem fazer parte da religião e que habitam naquelas paragens, vendo a união dos monges como são conhecidos e crescerem dia a dia os adeptos, estão ficando alarmados e começam a fazer os mais desencontrados comentários. Conforme estou informado, os fanáticos se reúnem sábados e domingos nas igrejas a rezarem completamente desarmados e depois dispersam-se e cada um vai para a suas casas8.

Percebemos que ocorreu um conflito cultural entre estrangeiros e nacionais (Kujawa, 2001). Podemos inferir que a cultura expressa através da religiosidade dos

7 Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul, Destacamento do 3º Regimento de Cavalaria. Relatório enviado ao Sr. Comandante Geral da Brigada Militar. Soledade, 30 de março de 1938, assinado pelo 1º Tenente Comandante do Destacamento Januário Dutra, p. 1.

8 Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul, Destacamento do 3º Regimento de Cavalaria. Relatório enviado ao Sr. Comandante Geral da Brigada Militar. Soledade, 30 de março de 1938, assinado pelo 1º Tenente Comandante do Destacamento Januário Dutra, p. 3.

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monges, grupo social composto pelos caboclos da localidade, não foi compreendida, não foi aceita.

Partindo do exposto, podemos concluir que no Brasil da década de 1930 estava em vigência um processo de modernização do estado nacional. Modernização esta que não poderia conviver com atrasos e expressões culturais regionalizadas. Ao se reportarem aos Monges Barbudos como fanáticos e fazendo distinção entre estrangeiro e nacionais, expresso na figura do caboclo, “nacionais não são dados ao trabalho, é o nosso caboclo indolente”, sendo este grupo religioso fruto da ignorância e da “esperteza de alguns”, estariam construindo uma legitimação para a repressão desta expressão da cultura popular.

Segundo o Tenente Januário, no final do relatório, tomando por base os fatos apurados, declarou incerteza frente aos Monges Barbudos: “Sr. Coronel, apesar de não ter encontrado, não posso negar ou afirmar a inexistência de algum núcleo disfarçado, para inocular, aos poucos, idéias exóticas aos moradores da referida região”9. Talvez esta dúvida tenha sido a motivação para a repressão imposta ao grupo religioso. Talvez tenhamos que ir além da questão cultural e religiosa para compreender os motivos que tenham contribuído para a repressão que se abateu sobre este grupo de camponeses do município de Soledade.

5. Fontes

- Relatório apresentado ao Comandante Geral da Brigada Militar pelo Major José Rodrigues da Silva, sobre os acontecimentos ocorridos nos municípios de Soledade e Sobradinho, com surto de fanatismo religioso praticado por elementos que se tornaram conhecidos por “monges barbudos”, 12 de julho de 1938. (APERS)

- Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul, Destacamento do 3º Regimento de Cavalaria. Relatório enviado ao Comandante Geral da Brigada Militar. Soledade, 30 de março de 1938, assinado pelo 1º Tenente Comandante do Destacamento Januário Dutra. (APERS)

6. Referências bibliográficas

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9 Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul, Destacamento do 3º Regimento de Cavalaria. Relatório enviado ao Sr. Comandante Geral da Brigada Militar. Soledade, 30 de março de 1938, assinado pelo 1º Tenente Comandante do Destacamento Januário Dutra, p. 3.

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WITTER, Nikelen Acosta. Dizem que foi feitiço: As práticas de cura no sul do Brasil (1845-1880). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.

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A HISTÓRIA NOS LIVROS DIDÁTICOS: O PAPEL DAS POLÍTICAS GOVERNAMENTAIS NA

PRODUÇÃO E VEICULAÇÃO DO SABER HISTÓRICO

Júlia silveira maTos1

Resumo: A trajetória das políticas voltadas para a avaliação, regulação e distribuição dos livros didáticos no Brasil foi marcada por três momentos específicos da história nacional. O primeiro ainda no século XIX, com a criação da Comissão de Instrução Pública, responsável por elaborar projetos de lei que, de acordo com Souza, visassem “a melhor organização pedagógica para a escola primária” (SOUZA, 2000: 10), a qual apesar do curso tempo de existência, cerca de seis meses, se propunha a ser instrumento de promoção dos fundamentos da nacionalidade brasileira através da educação; um segundo momento já no século XX, marcado pela criação de três comissões, como apontou Tânia Regina de Luca, a Comissão Nacional do Livro Infantil (1936); a Comissão Nacional do Ensino Primário (1938) e a Comissão Nacional do Livro Didático (1938), criadas na gestão do Ministro Gustavo Capanema em meio a implantação do Estado Novo no Brasil e por fim, o terceiro momento com a criação em 1985, já no final do Governo Militar, do Programa Nacional do Livro Didático, o chamado PNLD. Dessa forma, no presente texto analisaremos o papel histórico desses dois órgãos no processo de seleção e distribuição dos livros didáticos para as escolas públicas no Brasil.

Palavras-chave: Livro Didático – Políticas educacionais – ensino de História

Resumé: La trajectoire des politiques pour l’évaluation, la réglementation et la distribution de manuels scolaires au Brésil a été marquée par trois moments précis de l’histoire nationale. Le premier dans le dix-neuvième siècle avec la création de la Commission sur l’éducation publique, chargée de préparer les projets de loi qui, selon Souza, visaient à «mieux organiser l’école d’enseignement primaire» (Souza, 2000: 10), qui Bien que le cours du temps de l’existence, environ six mois, a été conçu pour être un instrument pour la promotion des principes fondamentaux de la nationalité brésilienne à travers l’éducation, une seconde fois au XXe siècle, marquée par la création de trois comités, comme indiqué par Tania Regina Luca, national pour les enfants du livre (1936), le National Primary Education Commission (1938) et le Manuel national (1938), créé dans la gestion de l’Capanema ministre par l’application de l’Estado Novo au Brésil et enfin le troisième fois avec la création en 1985, à la fin du gouvernement militaire, le Programme nationale de manuels scolaires, a appelé la BDNM. Ainsi, dans ce texte, nous analyserons le rôle historique de ces deux organes dans le processus de sélection et de distribution des manuels scolaires pour les écoles publiques au Brésil.

Mot-cles: Manuel - Politiques éducatives - Enseignement de l’histoire

A ampla distribuição de livros didáticos tanto no ensino fundamental quanto médio é garantida por uma política governamental de educação que atualmente se efetiva no Brasil pelo Programa Nacional do Livro Didático. Entretanto, a trajetória das políticas voltadas para a avaliação, regulação e distribuição dos livros didáticos no Brasil foi

1 Professora de História da Universidade Federal do Rio Grande – FURG, doutora em História pela PUCRS.

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marcada por três momentos específicos da história nacional. O primeiro ainda no século XIX, com a criação da Comissão de Instrução Pública, responsável por elaborar projetos de lei que, de acordo com Souza, visassem “a melhor organização pedagógica para a escola primária” (SOUZA, 2000: 10), a qual apesar do curso tempo de existência, cerca de seis meses, se propunha a ser instrumento de promoção dos fundamentos da nacionalidade brasileira através da educação; um segundo momento já no século XX, marcado pela criação de três comissões, como apontou Tânia Regina de Luca, a Comissão Nacional do Livro Infantil (1936); a Comissão Nacional do Ensino Primário (1938) e a Comissão Nacional do Livro Didático (1938), criadas na gestão do Ministro Gustavo Capanema em meio a implantação do Estado Novo no Brasil e por fim, o terceiro momento com a criação em 1985, já no final do Governo Militar, do Programa Nacional do Livro Didático, o chamado PNLD.

Dentre os três momentos apontados, o que nos interessa em nossa análise é, justamente, o processo de transição das políticas de avaliação, regulação e distribuição dos livros didáticos entre a Comissão Nacional do Livro Didático e o PNLD. Isso porque, ambos os órgãos atuaram e atuam através do estabelecimento de diretrizes para a própria elaboração dos livros didáticos e influíram e ainda influem, no caso do PNLD, nas formas como o conhecimento das disciplinas escolares são apresentados. Ainda e principalmente porque tanto a Comissão Nacional quanto o PNLD através da função avaliativa e reguladora determinaram e determinam quais manuais escolares poderão ser distribuídos e, assim, utilizados pelas instituições de ensino públicas. Nessas duas situações vemos a presença do governo e de suas políticas não apenas das diretrizes educacionais, mas no próprio processo de ensino-aprendizagem exercido dentro das salas de aula. Por mais que, conforme discorreu, Kazumi Munakata (2009), os professores ainda sejam capazes de ministrar ótimas aulas a partir de péssimos livros, o livro didático é seu principal recurso em sala e, portanto, muitas vezes um limitador de suas ações educativas e reflexivas. Nesse sentido, afirmou Munakata;

O próprio PNLD lamenta que os professores adotam sistematicamente os livros mal avaliados (…) simplesmente ignoram o Guia de Livros Didáticos, não por acharem difíceis as resenhas – como avaliou um documento do PNLD, e sim porque preferem fazer suas escolhas ‘ com o livro na mão’” (MUNAKATA, 2009: 144).

A questão que se abre a partir da afirmação de que seria “lamentável” professores escolherem para utilização em suas salas de aula livros “mal” avaliados é: Para quem esses livros foram mal avaliados? Por mais que saibamos que o PNLD possui uma comissão de especialistas nas áreas de ensino que atuam diretamente na avaliação dos manuais escolares inscritos no edital em vigor, também é necessário considerarmos que os docentes no Brasil possuem realidades diferentes em suas salas de aula, como: especificidades regionais, dificuldades locais de estrutura e recursos, públicos específicos

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e outras tantas diversidades, as quais os avaliadores muitas vezes desconhecem e não preveem em suas tabelas avaliativas. Sendo assim, a má avaliação de alguns manuais não representa diretamente que os mesmos não apresentam possibilidades de “boa” utilização em diferentes realidades. Além desse ponto, ainda podemos considerar que mesmo dentro de um espaço reflexivo de liberdade intelectual dos professores que optam por ignorar as indicações do guia, como apontou a autora, ainda assim, no universo editorial dos livros didáticos, as diretrizes instituídas pelo PNLD influem na elaboração desses livros, sejam eles os melhores avaliados ou não. Dessa forma, no presente texto analisaremos o papel histórico desses dois órgãos no processo de seleção e distribuição dos livros didáticos para as escolas públicas no Brasil.

1.1 O ensino de História e a Comissão Nacional do Livro Didático

Dentro do processo de criação de um órgão responsável pela regulação, avaliação e autorização de livros didáticos, podemos inferir que o ensino de História fora um alvo, pois é nele que encontramos um espaço relativamente amplo de possibilidades de crítica social e política. Dessa forma, quando analisamos o papel da criação da Comissão Nacional do Livro Didático em 1938, buscamos perceber como essa instituição atuou como limitadora e reguladora dos conteúdos veiculados nos livros didáticos, especificamente os de História e, dessa forma, contribuiu para uma profunda mudança no mercado editorial brasileiro de livros didáticos.

De acordo com Tania Regina de Luca, cabia a essa comissão o papel de executar “... à análise dos materiais didáticos submetidos pelos autores e editores, elaborar uma relação oficial para servir de orientação à escolha dos professores de escolas públicas ou privadas, além de estimular e orientar a produção de livros didáticos (...)” (LUCA, 2009:167). Entre suas funções não encontramos a produção dos manuais escolares, mas, como demonstrou a autora, seu papel era centrado na regulação e autorização dos livros que poderiam ou não ser utilizados nas escolas públicas. Assim, apesar de não instituir um manual único para todas as escolas, a comissão acabou constituindo um conjunto de diretrizes que orientavam a produção dos livros didáticos. Isso porque se um autor e editora queriam ter seu produto autorizado, precisavam seguir as orientações e diretrizes propostas pela comissão. Afinal, segundo Luca, a comissão “... limitava o universo de opções, na medida em que a seleção deveria ser feita a partir da lista oficial, sob a responsabilidade de especialistas nomeados pela a tarefa pelo presidente da República”(LUCA, 2009: 167). Essa lista oficial continha as indicações dos livros aprovados para utilização nas escolas públicas e consequentemente que não apresentassem qualquer crítica ao regime político vigente no país. Ainda de acordo com a autora, a Comissão Nacional do Livro Didático, tinha a preocupação de “... centralizar

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as decisões, conduzir uma política unificada para todo o país e intervir na produção, com a delimitação de diretrizes gerais que puniam qualquer crítica ao regime político em vigor e ao chefe da nação (...)”(LUCA, 2009:167). Esse último caráter da comissão evidenciado pela autora, revela a face da censura aos conteúdos apresentados nos manuais escolares avaliados, exercida pela comissão. Entretanto, não apenas revela o processo de censura dos manuais didáticos, como também os instrumentos utilizados ainda no governo Vargas que paulatinamente serviram para uniformizar a produção dos livros didáticos e ainda mais, ofertaram as diretrizes para a constituição de um padrão para a apresentação dos manuais escolares. Esse padrão constituído dentro de um processo histórico relativamente longo se materializou na própria divisão dos conteúdos de história, foco do presente estudo, de forma quadripartite, a qual não tem sido discutida no âmbito da produção dos livros didáticos nos debates do ensino de História de forma enfática ou problematizadora.

Nessa perspectiva, precisamos inferir que a criação dessa comissão foi acompanhada de reformas de ensino como as implementadas por Francisco Campos e Gustavo Capanema entre os anos de 1931 e 1942. Nessas, vemos o modelo quadripartite do ensino de História “francês” reafirmado no Brasil. Como discorreu Selva Guimarães Fonseca, a História era dividida entre conhecimentos de História Universal e do Brasil “... dividida em duas séries, o primeiro conjunto compreendendo a História do Brasil até a Independência e o segundo compreendendo a História do Brasil do 1 Reinado até aquele momento, o Estado Novo”(FONSECA, 2010:49). A adoção desse modelo de ensino de História pela política educacional, defendida dentro dos ministérios de Campos e Capanema, demonstra a intensão de regulação dos conteúdos ensinados nas escolas nacionais, não apenas para organização, mas com uma função política definida. Segundo Jean Chesneaux (1976), a organização e divisão dos conteúdos de História na perspectiva quadripartite no final do século XIX e primeira metade do XX, apresenta uma função político-ideológica bem fundamentada. Em direção ao afirmado pelo autor, Fonseca explicou que nos conteúdos de História se evidencia:

No caso da Idade Antiga, destaca-se a antiguidade greco-romana e seus valores culturais como base da cultura burguesa europeia. No período medieval, salienta-se a Idade Média cristã, exaltando os valores da civilização cristã. O período moderno, (...), representa a pretensão da burguesia de completar a história, controlando, em nome da modernidade, o futuro da humanidade. A Idade Contemporânea apresenta o domínio do Ocidente sobre o mundo, através da elaboração de um quadro coerente e global do mundo. Nos séculos XIX e XX, os países industrializados, “civilizados”, tornam-se os “guias naturais da história africana, asiática ou americana” (FONSECA, 2010:50).

Em uma perspectiva europeia, ainda centrada na ideologia civilizatória defendida no processo de neocolonialismo do século XIX, o ensino de História colocava os colonizadores europeus em um papel de destaque no processo de desenvolvimento do

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Brasil enquanto parte do continente americano e principalmente, em industrialização nas primeiras décadas do século XX. Em um contexto pós Primeira Guerra Mundial esse tipo de ensino de história justificava e legitimava a o papel dos países vencedores enquanto civilizadores. Esse modelo de ensino da história influenciou toda a produção não apenas nas salas de aula, mas também nas pesquisas. De acordo com Fonseca, a partir do ano de 1939, as teses defendidas na Universidade de São Paulo apresentaram em suas análises uma centralidade nas pesquisas voltadas para questões e estruturas da História quadripartite. O que contribuiu para que essa divisão dos conteúdos históricos se enraizasse de tal forma no ensino de História que até hoje, é considerada modelo básico do ensino fundamental, médio e superior. Portanto, vemos que a relação entre as políticas educacionais, os livros didáticos e as perspectivas do ensino de História estão intimamente ligados e para compreendermos melhor as nossas atuais formas de ensino dos conhecimentos históricos precisamos antes analisar como se estruturaram essas diretrizes reguladoras da produção e distribuição dos livros didáticos.

A Comissão Nacional do Livro Didático foi criada através do decreto-lei n 1.006, cd 30 de dezembro de 1938 e dentre seus 40 artigos, estipulava, conforme discorreu Luca, “... que, a partir de 1 de janeiro de 1940, livros sem autorização do ministério não poderiam ser utilizados nas escolas pré-primárias, primárias, normais, profissionais e secundárias de toda a República”(LUCA, 2009: 167). Essa determinação do decreto deu início a um processo de normatização da produção dos livros didáticos no Brasil.

Para a composição da Comissão Nacional do Livro Didático foram escolhidos intelectuais, professores, padres e militares, conforme afirmou Ferreira, “A CNLD foi composta por um grupo de intelectuais, escolhidos por Gustavo Capanema, não de forma aleatória, mas organizada de acordo com as possibilidades do Ministério” ( FERREIRA, 2008:16). Essa escolha contou com uma diretriz veiculada no Decreto-lei 1.006/38, no qual estava que

A Comissão deveria ser integrada por sete membros, designados pelo Presidente da República, escolhidos dentre “pessoas de notório preparo pedagógico e reconhecimento moral” (Decreto-Lei n° 1.006/38), divididos em especializações: duas especializadas em metodologia das línguas, três em metodologia das ciências e duas em metodologia das técnicas. Os membros da comissão não poderiam ter nenhuma ligação de caráter comercial com qualquer casa editorial (FILGUEIRAS, 2008:02).

Apesar do decreto não permitir qualquer ligação entre seus membros e a publicação de obras, havia certo relaxamento da lei, pois em algumas situações os livros de autoria total ou parcial de algum componente da comissão poderiam ser submetidos ao ministro e ao Presidente da República e se autorizados, posteriormente apresentados à Comissão. Claro que aqui podemos considerar que os nomes escolhidos para compor o grupo de avaliadores deveriam apresentar alinhamento com o governo e suas políticas educacionais. Sendo assim, estabelecia-se uma aproximação e ao mesmo tempo um

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alinhamento entre avaliadores, editores e autores de livros didáticos. Conforme discorreu Tânia Regina de Luca, “as relações com o Catete eram cuidadosamente nutridas, como ilustra o hábito de remeter livros para Getúlio Vargas e sua filha, Alzira, devidamente acompanhados de “bilhetes gentis” (LUCA, 2009:170). Esse hábito instituído a partir da implementação dos processos de avaliação e regulação dos manuais escolares através da Comissão Nacional do Livro Didático demonstra como se estabeleceu um sistema dialético entre as diretrizes do governo e a produção de novos livros didáticos.

Afinal, ao instituir uma lista de livros autorizados e ainda divulgar os motivos das reprovações dos títulos não autorizados, conforme apontou Luca, “... detalhava o processo de autorização e os motivos que justificavam o seu veto”(LUCA, 2009: 167), fornecia as bases normatizadoras da produção dos manuais escolares. Essa medida aproximou os editores e autores das políticas educacionais do governo e cerceava de forma direta a produção e criação dos livros didáticos. Isso, porque de acordo com Luca,

a criação da comissão não foi um ato isolado, antes se articulava a um conjunto de mudanças no campo educacional, iniciadas já em 1931 com a chamada Reforma Francisco Campos, que estabeleceu novas bases para o sistema de ensino do país como um todo, e que teve continuidade com a Lei Orgânica do Ensino Secundário, de 1942 (LUCA, 2009: 167-168).

Como bem apontou a autora, as normas instituídas pela Comissão Nacional do Livro Didático estavam articuladas diretamente com a visão política do Estado Novo para a educação e portanto se articulou com as diretrizes implementadas na sequência. Na Lei Orgânica do Ensino Secundário 4.244 de 1942, citada, encontramos nos incisos do artigo 24 as diretrizes para o ensino de História e Geografia e a determinação de que nestes sejam ensinados conteúdos próprios de moral e cívica, conforme segue:

§ 1º Para a formação da consciência patriótica, serão com freqüência utilizados os estudos históricos e geográficos, devendo, no ensino de história geral e de geografia geral, ser postas em evidência as correlações de uma e outra, respectivamente, com a história do Brasil e a geografia do Brasil. § 2º Incluir-se-á nos programas de história do Brasil e de geografia do Brasil dos cursos clássico e científico o estudo dos problemas vitais do país. § 3º Formar-se-á a consciência patriótica de modo especial pela fiel execução do serviço cívico próprio do Juventude Brasileira, na conformidade de suas prescrições. § 4º A prática do canto orfeônico da sentido patriótico é obrigatória nos estabelecimentos de ensino secundário para todos os alunos de primeiro e de segundo ciclo.

No ensino de História e Geografia seriam trabalhados os conteúdos de forma a propor: o desenvolvimento de uma “consciência patriótica”, a percepção dos problemas brasileiros e, como registrado no inciso 3º, a formação da juventude para o serviço cívico. Esse tipo de ensino de história e geografia apresentava um forte viés ideológico dirigido por uma propaganda voltada para o apoio e a legitimação do Estado Novo. Como vemos

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na citação, o foco de ensino seria no desenvolvimento de uma educação patriótica, ou seja, conforme já discorremos, os manuais que não seguissem essa orientação seriam descartados ou vetados da listagem oficial de livros autorizados para utilização no ensino público. Nessa mesma direção, afirmou Bomeny que o objetivo das reformas educacionais implementadas pelo Ministério da Educação e Saúde dentro do Estado Novo era instituir uma política para a educação capaz de:

Formar um “homem novo” para um Estado Novo, conformar mentalidades e criar o sentimento de brasilidade, fortalecer a identidade do trabalhador, ou por outra forjar uma identidade positiva no trabalhador brasileiro, tudo isso fazia parte de um grande empreendimento cultural e político para o sucesso do qual contava-se estrategicamente com a educação por sua capacidade universalmente reconhecida de socializar os indivíduos nos valores que as sociedades, através de seus segmentos organizados, querem ver internalizados (BOMENY, 1999, p. 139).

Na perspectiva apresentada pela autora, a política educacional implementada pelo Estado Novo e a chamada Reforma Capanema, tinham por foco legitimar a visão do Estado através de um ensino que fosse capaz de forjar uma nova identidade nacional, focada na imagem do trabalhador patriótico. Dessa forma, através da educação os ideais do novo regime instituído pelo Estado Novo seriam propagados como afirmou Rita de Cássia Ferreira,

A política cultural elaborada pelo Estado Novo e coordenada, principalmente, pelo Ministério de Educação e Saúde, obteve, sob a direção de Gustavo Capanema (1934- 1945), um amplo espaço para propagação dos ideais do regime, tendo na educação uma das principais estratégias de viabilização da construção do Estado Nacional ( FERREIRA, 2008:22).

Conforme a citação, o objetivo da política cultural do Ministério da Educação e Saúde era forjar as bases ideológicas para a construção de uma nova nação. Para tanto, era preciso implementar de uma política capaz de, segundo Ferreira, uniformizar, dentro dos limites possíveis, o ensino brasileiro, com vistas a “padronizar comportamentos, atividades e interesses da juventude brasileira. O conhecimento do idioma, noções básicas de Geografia e História da Pátria, arte popular e folclore, formação cívica, moral e a consciência do bem coletivo sobreposto ao individual seriam a base da formação do cidadão político” (FERREIRA, 2008: 22). Entretanto, a padronização de comportamentos dos jovens através do ensino, exigia mais do que uma proposta de política cultural e sim, uma nova estrutura administrativa do próprio Ministério de Educação e Saúde, o qual foi estruturado de forma a centralizar os processos de avaliação e controle dos livros didáticos, conforme demonstrado pelo gráfico a seguir:

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Figura no 1:

Fonte: FERREIRA, Rita de Cássia Cunha. A Comissão Nacional do Livro Didático durante o Estado Novo (1937-1945). Assis: UNESP, 2008, pg. 34.

Como vemos no gráfico criado por Ferreira, o Livro Didático estava dentro das Comissões Nacionais ao lado do Ensino Primário, enquanto departamento em separado no Ministério. Essa estrutura revela que, mesmo considerando o quanto eram pouco ágeis as análises e intervenções da Comissão Nacional do Livro Didático, como bem apontou Tânia Regina de Luca, a avaliação e regulação da utilização dos livros didáticos nas escolas era um assunto de fundamental preocupação do ministério. A partir da Lei Orgânica do Ensino Secundário de 1942, que ficou em vigência até a instituição da LDB - Leis de Diretrizes e Bases em 1961, e, a própria Comissão Nacional do Livro Didático, o governo conseguiu interferir diretamente na educação e nas formas de ensino, principalmente no ensino de História. Essa interferência se dava diretamente, não na produção como já mencionamos, mas através da censura, das diretrizes indicadas para a produção dos livros didáticos e ainda mais, a partir da orientação para reformulação dos manuais avaliados, pois segundo Juliana Miranda Filgueiras,

De acordo com o decreto-lei n° 1.006/38, a CNLD poderia indicar modificações a serem feitas nos textos dos livros examinados, para que fosse possível sua autorização. A obra depois de modificada deveria ser novamente submetida a exame da CNLD, para decisão final. Os livros didáticos autorizados receberiam

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um número de registro, que deveria aparecer na capa, juntamente com a frase: “livro de uso autorizado pelo Ministério da Educação”. A reedição de livros didáticos autorizados, que não possuíssem grandes alterações, não precisava passar por nova avaliação, mas a reedição deveria ser comunicada à CNLD. Em janeiro de cada ano o Ministério da Educação divulgaria no diário oficial a relação dos manuais de uso autorizado (FILGUEIRAS, 2008:02).

A Comissão, como analisou a autora, tinha o poder de indicar alterações dos conteúdos dos livros avaliados e indicar sua liberação para publicação e veiculação condicionada a nova apresentação aos avaliadores. Somente livros que tivessem poucas alterações sugeridas poderiam receber o número de registro e a frase “livro de uso autorizado pelo Ministério da Educação” sem passar por nova avaliação da Comissão. O processo e diretrizes utilizadas pela Comissão para avaliação dos manuais submetidos para análise, conforme apresentou Filgueiras, eram divididos em duas partes, na primeira vemos:

Art. 20. Não poderá ser autorizado o uso do livro didático:a) que atente, de qualquer forma, contra a unidade, a independência ou a honra nacional;b) que contenha, de modo explícito, ou implícito, pregação ideológica ou indicação da violência contra o regime político adotado pela Nação;c) que envolva qualquer ofensa ao Chefe da Nação, ou às autoridades constituídas, ao Exército, à Marinha, ou às demais instituições nacionais;d) que despreze ou escureça as tradições nacionais, ou tente deslustrar as figuras dos que se bateram ou se sacrificaram pela pátria;e) que encerre qualquer afirmação ou sugestão, que induza o pessimismo quanto ao poder e ao destino da raça brasileira;f) que inspire o sentimento da superioridade ou inferioridade do homem de uma região do país, com relação ao das demais regiões;g) que incite ódio contra as raças e as nações estrangeiras;h) que desperte ou alimente a oposição e a luta entre as classes sociais;i) que procure negar ou destruir o sentimento religioso, ou envolve combate a qualquer confissão religiosa;j) que atente contra a família, ou pregue ou insinue contra a indissolubilidade dos vínculos conjugais;k) que inspire o desamor à virtude, induza o sentimento da inutilidade ou desnecessidade do esforço individual, ou combata as legítimas prerrogativas a personalidade humana. (Decreto-Lei n° 1.006/38, p. 4).

Nessa primeira parte mais centrada nas questões de conteúdo, vemos claramente, a preocupação com um ensino centrado na educação cívica, para a formação de uma mentalidade patriótica. E ainda mais, na letra c encontramos o cerceamento de qualquer tipo de crítica ao regime instituído, pois como registrado, seria vetado o livro que ofendesse o “Chefe”, nesse caso Getúlio Vargas, ou mesmo as instituições nacionais. Toda e qualquer análise do governo vigente ficavam assim vetadas. Enquanto que a na segunda parte, centrada na apresentação e metodologia do livro, vemos:

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Art. 21. Ser ainda negada autorização de uso ao livro didático:a) que esteja escrito em linguagem defeituosa, quer pela incorreção gramatical, quer pelo inconveniente ou abusivo emprego de termos ou expressões regionais ou da gíria, quer pela obscuridade do estilo;b) que apresente o assunto com erros da natureza científica ou técnica;c) que esteja redigido de maneira inadequada, pela violação dos preceitos fundamentais da pedagogia ou pela inobservância das normas didáticas oficialmente adotadas, ou que esteja impresso em desacordo com os preceitos essenciais da higiene da visão;d) que não traga por extenso o nome do autor ou autores;e) que não contenha a declaração do preço de venda, o qual não poderá ser excessivo em face do seu custo.Art. 22. Não se concederá autorização, para uso no ensino primário, de livros didáticos que não estejam escritos na língua nacional.Art. 23. Não será autorizado uso do livro didático que, escrito em língua nacional, não adote a ortografia estabelecida pela lei (Decreto-Lei n° 1.006/38, pp. 4-5).

Conforme apresentado no Decreto-Lei 1.006/38, desde a forma de apresentação dos livros didáticos, ortografia, língua, até a proibição de termos regionais, eram regulados pela Comissão. Portanto, toda e qualquer editora, assim como autores, que fossem submeter seus livros para avaliação teriam que seguir as indicações do decreto. Tal análise corrobora com Luca, quando essa afirma que “o regime não apenas interferiu de forma incisiva no campo educacional, mas levou a cabo, desde a subida de Vargas ao poder, um processo de centralização e expansão da máquina burocrática que, aliado a um ambicioso projeto no âmbito da cultura, alterou as relações entre intelectualidade e Estado”(LUCA, 2009: 168). Nessa citação a autora nos propõe refletir sobre a aproximação gradual que foi estabelecida entre os autores, seus editores e o Estado. Ainda mais do que isso, nos possibilita percebermos que a avaliação e regulação dos livros didáticos durante o Estado Novo foram fundamentais instrumentos de legitimação do sistema político instituído pelo novo regime.

Essa aproximação foi estimulada pelo Ministério da Educação através de ações como empréstimos bancários às editoras, além do fornecimento de papel ou até mesmo a inclusão de seus títulos nas listas recomendadas pela Comissão Nacional do Livro Didático. Nesse contexto, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), de acordo com Luca, teve o papel de promulgar “... atividades editoriais que pretendiam difundir o projeto cultural e as realizações do regime e do chefe do Estado”(LUCA, 2009:169), além de censurar os manuais que apresentassem ideias contraditórias às diretrizes da Comissão Nacional do Livro Didático. Nesse ínterim, não podemos desconsiderar que as políticas educacionais implementadas pelo governo Vargas, sob os Ministérios de Francisco Campos e Gustavo Capanema, estimularam a ampliação da produção de livros didáticos, não apenas pela impossibilidade de importação, devido ao contexto conturbado do entre guerras, mas, também pelas mudanças implementadas na estrutura do ensino brasileiro. De acordo com Luca,

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... houve nesse período uma vigorosa expansão do mercado editorial, favorecida tanto pelo aumento do letramento, por reformas no ensino secundário e pela ampliação do segmento superior, além da própria conjuntura econômica interna e externa, pouco propícia à importação de livros. Esse conjunto completo de fatores alterou as condições de exercício da atividade intelectual e chegou mesmo a permitir a existência do ‘romancista em tempo integral (LUCA, 2009:168).

Os livros didáticos deixaram paulatinamente de serem produção secundária ou hobby de seus autores, mas o próprio objeto de seu investimento, como afirmou a autora. Entretanto, essa profissionalização da produção dos manuais escolares os empurrava cada vez mais ao seu lugar de produto comercial e, portanto, subjugado as regras de mercado. Ainda de acordo com Luca, até mesmo grandes editores como José Olympio, que não tinham entre suas publicações os livros didáticos enquanto produtos centrais, investiram em alguns títulos, “... como atesta a edição do volume História do Brasil (1944), de Otávio Tarquínio de Souza e Sérgio Buarque de Holanda, destinado à 3ª série do curso secundário e que, segundo informa na capa, estava, “de acordo com o programa oficial” (LUCA, 2009:169). Em exemplos como esse, vemos a orientação seguida pelas editoras que se propunham a publicar manuais escolares.

Dessa forma, a partir da criação da Comissão Nacional do Livro Didático institui-se no Brasil uma nova cultura editorial que investirá em manuais escolares a partir de orientações dos governos, visando a aprovação dos mesmos, ou até como ocorre nos dias atuais, a aquisição dos livros/produtos, pelo próprio Estado, mas essa última observação será foco da análise que nos propomos realizar a seguir.

1.2 O Plano Nacional do Livro Didático: (des) continuidades

Ao discorrermos sobre a Comissão Nacional do Livro Didático existente durante o Estado Novo percebemos o quanto essa, apesar de falha em muitos aspectos, correspondeu aos objetivos da política educacional daquele governo, enquanto instrumento de construção de uma nova nacionalidade. Notamos também que a partir da atuação dessa comissão surgiu uma nova relação entre o Estado, as editoras e os autores de livros didáticos e com isso, iniciou-se a normatização dos manuais escolares que passaram a ser adequados as diretrizes de avaliação do Ministério de Educação e Saúde. Essas diretrizes estiveram em vigor até 1961, como demonstramos, depois outras políticas as substituíram até chegarmos a criação do Programa Nacional do Livro Didático. Entre o fim da CNLD e a implementação do PNLD, tivemos um período demarcado pelas políticas educacionais do Governo Militar, que por serem também delineadas por perspectivas ideológicas autoritárias já foram foco de muitos estudos. De acordo com Miranda e Luca, “Neste contexto particular, destaca-se o peso da interferência de pressões e interesses econômicos sobre a história ensinada, na medida em que os governos militares estimularam, por meio de incentivos fiscais, investimentos no setor

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editorial e no parque gráfico nacional que exerceram papel importante no processo de massificação do uso do livro didático no Brasil”(MIRANDA & LUCA, 2004:125). Conforme afirmaram as autoras, a implementação de políticas de regulação dos livros didáticos durante o governo militar contribuiu para manter a cultura de vinculação entre a produção editorial dos manuais escolares e as diretrizes governamentais para esses. Apesar dessas políticas não serem nosso foco de análise, não podemos deixar de menciona-las, pois foram de alguma forma, o elo condutor entre a visão da CNLD e a criação do PNLD. De acordo com Miranda e Luca,

sob o período militar, a questão da compra e distribuição de livros didáticos recebeu tratamento específico do poder público em contextos diferenciados — 1966, 1971 e 1976 —, todos marcados, porém, pela censura e ausência de liberdades democráticas. De outra parte, esse momento foi marcado pela progressiva ampliação da população escolar, em um movimento de massificação do ensino cujas consequências, sob o ponto de vista da qualidade, acabariam por deixar marcas indeléveis no sistema público de ensino e que persistem como o seu maior desafio(MIRANDA & LUCA, 2004:125).

Os manuais escolares nesse período tinham a função de levar as escolas a ideologia do Governo Militar, o que não foi diferente do estabelecido no período do Estado Novo. Entretanto, o que queremos discutir aqui se centra no questionamento: Apesar dos contextos diferentes, quais a aproximações e os distanciamentos entre a atuação da Comissão Nacional do Livro Didático e o Programa Nacional do Livro Didático? Facilmente podemos responder que o primeiro fora um instrumento de veiculação ideológica do Estado Novo, enquanto o segundo é um instrumento de avaliação voltado à garantir a qualidade do ensino nos governos pós-ditadura militar, ou seja, democráticos no Brasil. Essa diferença contextual apresentada pode enganar o olhar do analista que considerar o objetivo da criação e manutenção dos dois órgãos, no entanto, nossa análise se centra no papel desenvolvido por eles. Apesar de objetivos diferentes, é preciso percebermos que ao ditar diretrizes de avaliação, tanto do CNLD, quanto o PNLD contribuíram e contribuem para a uniformização das formas de apresentação dos conteúdos nos livros didáticos.

O Programa Nacional do Livro Didático foi criado, como já referido, em 1985, entretanto, somente passou a função de aquisição e distribuição ampla dos livros didáticos para as escolas públicas a partir de 1995. Sua criação se insere dentro das discussões iniciadas a partir da abertura política no final do governo militar.

A partir da década de 1980, na conjuntura da reconstrução democrática, algumas tímidas ações no âmbito da Fundação de Assistência ao Estudante tangenciaram a discussão acerca dos problemas presentes nos livros didáticos distribuídos no território nacional. Esse movimento coincidiu com importantes debates a respeito dos programas oficiais de História, levados a efeito, sobretudo — mas não exclusivamente — nos estados de Minas Gerais e São Paulo. Marco na política em relação aos materiais didáticos foi a criação, em 1985, do Programa Nacional do Livro Didático — PNLD” (MIRANDA & LUCA, 2004:125).

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A preocupação dos educadores nesse momento era possibilitar novas produções de livros didáticos livres da ideologia autoritária do governo militar. Como analisou a autora, tais debates na década de 1980, contribuíram para a reformulação do ensino de História. E foi nesse contexto que em 1985 foi criado o PNLD. Segundo Vitória Regina Silva,

Desde a sua instituição, em 1995, e ampliação, em 1997, o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), vem se constituindo em uma das mais importantes políticas públicas educacionais do Brasil. Inicialmente voltado apenas para atendimento dos alunos do então 1º grau (posteriormente chamado de Ensino Fundamental), foi ampliado em 2002, passando a atender também os alunos do Ensino Médio. A aprovação em novembro de 2009 da Resolução no. 60, fez com que o programa passasse a ser política de Estado, institucionalizando-se definitivamente (SILVA, 2011: 01).

A importância do Programa apontada pela autora é pautada pela amplitude de atuação do mesmo, pois esse desde sua criação está em processo de ampliação ao ponto de se tornar uma política de Estado e atender todo o processo formativo dos alunos brasileiros desde as séries iniciais até o ensino médio, através da avaliação e distribuição dos livros didáticos que são utilizados nesses níveis de ensino. Mas, somente a partir de 1996, em outro contexto, não mais demarcado pelo Estado autoritário, como analisou Miranda e Luca (2004), o PNLD iniciou de fato a avaliação dos manais escolares. Para as autoras,

Desde então, estipulou-se que a aquisição de obras didáticas com verbas públicas para distribuição em território nacional estaria sujeita à inscrição e avaliação prévias, segundo regras estipuladas em edital próprio. De um PNLD a outro, os referidos critérios foram aprimorados por intermédio da incorporação sistemática de múltiplos olhares, leituras e críticas interpostas ao programa e aos parâmetros de avaliação (MIRANDA & LUCA, 2004:127).

O aprimoramento dos critérios, apontado pelas autoras, do programa se deu não apenas pela percepção de suas falhas, mas também pela renovação das políticas educacionais que desde a redemocratização brasileira vêm mudando de acordo com o ministério e visão de governo. Não somente os critérios de avaliação se alteraram, também os de inscrição das obras, em 1999, por exemplo o PNLD aceitou a inscrição de obras isoladas por editora e não apenas coleções como anteriormente. Contudo a partir de 2002, como analisaram Miranda e Luca, foi incorporado na área de História análises estatísticas para avaliar o desempenho de cada coleção em relação aos quesitos da ficha de avaliação dos avaliadores e que é divulgada no Guia do programa, conforme podemos visualizar através do gráfico a seguir:

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Figura no 2:

Fonte: MIRANDA, Sonia Regina & LUCA, Tânia Regina. O livro didático de história hoje: um panorama a partir do PNLD. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 24, nº 48, 2004, p.127 –. Disponível em: http://www.scielo.com.br/pdf/rbh/v24n48/a06v24n48.pdf, Acesso em: 15/04/2012, as 01:09.

No gráfico vemos que entre os anos de 1999 e 2005 a porcentagem na área de História de coleções aprovadas em relação às inscrições foi gradativamente aumentando. Podemos inferir a partir desses dados, que aos poucos os editores e escritores foram se adaptando aos critérios do programa até chegar à aprovação maior dos livros inscritos. Essa inferência corrobora com nossa tese nesse trabalho, a qual viemos discutindo, de que as políticas de avaliação dos livros didáticos contribuíram para a uniformização das produções e portanto, o cerceamento e delimitação da apresentação dos conteúdos dispostos nos manuais escolares.

Nesse ínterim, devemos considerar que o processo de avaliação dos manuais escolares realizado pelo PNLD se efetiva através de editais lançados trienalmente. De acordo Silva,

Os editais são sempre identificados por um ano: PNLD 2011 ou PNLD 2012, por exemplo. O ano ao qual o edital se refere não é o da sua publicação, mas aquele em que os livros serão usados pela primeira vez, sendo nos dois anos seguintes adquiridos acervos complementares, de reposição (exceto no caso dos livros consumíveis, que são repostos integralmente todos os anos) (SILVA, 2011: 02).

Os editais do PNLD possuem duas fazes principais a primeira é marcada pela candidatura dos livros para avaliação e posterior liberação da listagem dos indicados,

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a segunda é a faze na qual os professores a partir dessa listagem escolhem quais livros utilizarão em suas salas de aula. A estrutura do Programa é complexa e portanto, pouco ágil, entretanto, tem se mostrado eficaz. Conforme discorreu Silva, todo o processo entre a aquisição dos livros e sua chegada às escolas leva ao todo cerca de 20 meses, por isso os editais, apesar de apresentarem a data de utilização dos livros, como explicado na citação anterior, são abertos muito antes. Como demonstrou a autora,

... os livros que começaram a ser usados no início do ano de 2011 tiveram o seu edital publicado no final de 2008. Os livros foram inscritos no início de 2009, o resultado da avaliação publicado em meados de 2010, quando então foram escolhidos pelos professores. Durante o segundo semestre daquele ano foram feitas as negociação para venda, a impressão e a distribuição das coleções. Se considerarmos, ainda, que a produção editorial de uma coleção não leva menos do que dois anos, os livros inscritos em 2009 começaram a ser produzidos em 2007, de onde se conclui que entre a escrita dos originais e o uso do livro na sala de aula há pelos menos um período de quatro anos. Trata-se, portanto, de uma empreitada de longo prazo, envolvendo investimentos elevados e um grande número de agentes, entre autores, equipes editoriais, funcionários do MEC e do FNDE5, comissão de avaliadores (comissões técnicas e do IPT6), além de toda a logística para fazer com que os livros cheguem aos mais distantes pontos do país”(SILVA, 2011: 02).

Todo o processo, como vemos, é demorado, o que leva em algumas disciplinas a defasagem dos conteúdos quando os mesmos chegam nas salas de aula. Entretanto, esse não chega a ser um problema um dos maiores problemas do sistema, o que percebemos aqui é o movimento que se estabelece entre as produções, ou seja, escrita dos livros didáticos, as editores que inscrevem os mesmos e as diretrizes do PNLD. Afinal dentro de um sistema longo, podemos inferir que os manuais são produzidos cuidadosamente para serem aprovados pelo programa, ao contrário investimentos financeiros grandes seriam desperdiçados de ambos os lados, tanto das editoras quanto do governo. Esse caráter do processo de avaliação dos manuais didáticos demonstra como o PNLD influi de forma profunda e direta no mercado editorial de livros didáticos no Brasil, pois conforme afirmou Silva,

A institucionalização do PNLD e a ampliação da sua cobertura acarretaram uma profunda mudança no mercado editorial brasileiro. Ainda que compras governamentais de livros didáticos tenham ocorrido em outros tempos, a partir de 1995 elas passaram a ter uma regularidade e uma cobertura inédita. Para as editoras, a entrada do governo como grande comprador de livros representou uma significativa mudança em seu negócio, pois a venda para as escolas por meio de livrarias deixou de ser a principal fonte de faturamento. Ainda que a rentabilidade das vendas governamentais seja muito menor do que a da venda ao chamado mercado privado (o que eventualmente também inclui livros para alunos de escolas públicas), a quantidade de exemplares vendidos é incomparavelmente maior, representando parcela expressiva do giro de capital das empresas (SILVA, 2011: 03).

O mercado editorial de livros didáticos em outros momentos da história brasileira como no período da CNLD era voltado não apenas para atender as diretrizes do governo,

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mas também ao público consumidor. Isso porque os livros eram adquiridos pelos próprios alunos e suas famílias. Atualmente esse cenário é fundamentalmente diferente porque o governo é o consumidor dos livros que chegarão às salas de aulas das escolas públicas. Dessa forma, como bem discorreu a autora, apesar do lucro sobre os livros de forma individual ser menor na venda para o Estado do que para livrarias, a aquisição dos mesmos pelo Estado tornou-se regular e isso representa um renda estável para as editoras. Esse contexto levou as editoras a investirem na produção regular de livros didáticos para atender a esse mercado que se abria com a aquisição estatal de manuais escolares. Outra questão central levantada por Silva, é “que a aprovação ou reprovação de uma coleção no PNLD traz consequências para o desempenho da mesma no chamado mercado particular. Muitas escolas substituem os livros que adota se eles não constam da lista de obras aprovadas pelo MEC”(SILVA, 2011: 03). A avaliação do PNLD tornou-se importante para o mercado de livros didáticos tanto no processo de aquisição do Estado, mas também, como afirmou a autora, enquanto uma espécie de capital simbólico, como chamaria Bourdie, pois os livros bem avaliados acabam apresentando um bom desempenho nas vendas do mercado particular. Portanto, ainda para a autora, “é inquestionável o impacto das compras governamentais na indústria do livro didático desde 1995, com uma evidente subordinação da produção das coleções aos critérios fixados pelos editais”(SILVA, 2011: 03). Novamente, vemos como o PNLD, na mesma direção do CNLD, tem contribuído para a uniformização das produções dos livros didáticos.

No entanto, quais são os critérios estabelecidos pelo PNLD? O edital do PNLD 2012, destinado à compra de livros para o Ensino Médio, apresenta os seguintes critérios de avaliação:

2.1. CRITÉRIOS ELIMINATÓRIOS COMUNS A TODAS AS ÁREAS Os critérios eliminatórios comuns a serem observados nas obras inscritas no PNLD 2012, submetidas à avaliação, são os seguintes: (1) respeito à legislação, às diretrizes e às normas oficiais relativas ao ensino médio; (2) observância de princípios éticos necessários à construção da cidadania e ao convívio social republicano; (3) coerência e adequação da abordagem teórico-metodológica assumida pela obra, no que diz respeito à proposta didático-pedagógica explicitada e aos objetivos visados; (4) correção e atualização de conceitos, informações e procedimentos; (5) observância das características e finalidades específicas do manual do professor e adequação da obra à linha pedagógica nela apresentada; (6) adequação da estrutura editorial e do projeto gráfico aos objetivos didático-pedagógicos da obra. A não-observância de qualquer um desses critérios, detalhados a seguir, resultará em proposta incompatível com os objetivos estabelecidos para o ensino médio, o que justificará, ipso facto, sua exclusão do PNLD 2012.15

Dentre os critérios eliminatórios comuns a todas as áreas avaliadas, vemos no primeiro e segundo números dois pontos comuns ao exigido pela antiga CNLD, o respeito a legislação e “às normas oficiais”. Claro que não podemos considerar de igual forma, pois

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contextos e objetivos diferentes já foram discutidos, entretanto, essa regulação contribui para a uniformização dos manuais que serão produzidos dentro da visão pedagógica estabelecida pelos órgãos oficiais e não dentro da visão do autor ou de novas discussões sobre educação. Também podemos analisar que no segundo ponto a construção da cidadania é um dos fundamentos que os livros devem observar. Nos seis critérios vemos instrumentos reguladores e ao mesmo tempo normatizadores e cerceadores da produção dos livros. O edital ainda segue:

Em seguida, estabelecia que: 2.1.1. Respeito à legislação, às diretrizes e às normas oficiais relativas ao ensino médio Considerando-se a legislação, as diretrizes e as normas oficiais que regulamentam o ensino médio, serão excluídas as obras didáticas que não obedecerem aos seguintes estatutos: (1) Constituição da República Federativa do Brasil. (2) Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, com as respectivas alterações introduzidas pelas Leis nº 10.639/2003, nº 11.274/2006, nº 11.525/2007 e nº 11.645/2008. (3) Estatuto da Criança e do Adolescente. (4) Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. (5) Resoluções e Pareceres do Conselho Nacional de Educação, em especial, o Parecer CEB nº 15, de 04/07/2000, o Parecer CNE/CP nº 003, de 10/03/2004 e a Resolução CNE/CP nº 01 de 17/06/2004. 2.1.2. Observância de princípios éticos e democráticos necessários à construção da cidadania e ao convívio social. Serão excluídas do PNLD 2012, as obras didáticas que: (1) veicularem estereótipos e preconceitos de condição social, regional, étnico-racial, de gênero, de orientação sexual, de idade ou de linguagem, assim como qualquer outra forma de discriminação ou de violação de direitos; (2) fizerem doutrinação religiosa e/ou política, desrespeitando o caráter laico e autônomo do ensino público;(3) utilizarem o material escolar como veículo de publicidade ou de difusão de marcas, produtos ou serviços comerciais. 2.1.3. Coerência e adequação da abordagem teórico-metodológica assumida pela obra, no que diz respeito à proposta didático-pedagógica explicitada e aos objetivos visados. Por mais diversificadas que sejam as concepções e as práticas de ensino envolvidas na educação escolar, propiciar ao aluno uma efetiva apropriação do conhecimento implica: a) escolher uma abordagem metodológica capaz de contribuir para a consecução dos objetivos educacionais em jogo; b) ser coerente com essa escolha, do ponto de vista dos objetos e recursos propostos. Em consequência, serão excluídas as obras didáticas que não atenderem aos seguintes requisitos: (1) explicitar, no manual do professor, os pressupostos teórico-metodológicos que fundamentam sua proposta didático-pedagógica; (2) apresentar coerência entre essa fundamentação e o conjunto de textos, atividades, exercícios, etc. que configuram o livro do aluno; no caso de recorrer a mais de um modelo teóricometodológico de ensino, deverá indicar claramente a articulação entre eles; (3) organizar-se – tanto do ponto de vista dos volumes que compõem a coleção, quanto das unidades estruturadoras de cada um desses volumes ou do volume único – de forma a garantir a progressão do processo de ensino-aprendizagem; (4) favorecer o desenvolvimento de capacidades básicas do pensamento autônomo

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e crítico, no que diz respeito aos objetos de ensino-aprendizagem propostos; (5) contribuir para a apreensão das relações que se estabelecem entre os objetos de ensino aprendizagem propostos e suas funções socioculturais. (...)2.1.5. Observância das características e finalidades específicas do manual do professor O manual do professor deve visar, antes de mais nada, a orientar os docentes para um uso adequado da obra didática, constituindo-se, ainda, num instrumento de complementação didáticopedagógica e atualização para o docente. Nesse sentido, o manual deve organizar-se de modo a propiciar ao docente uma efetiva reflexão sobre sua prática. Deve, ainda, colaborar para que o processo de ensino-aprendizagem acompanhe avanços recentes, tanto no campo de conhecimento do componente curricular da obra, quanto no da pedagogia e da didática em geral. Considerando-se esses princípios, serão excluídas as obras cujos manuais não se caracterizarem por: (1) explicitar os objetivos da proposta didático-pedagógica efetivada pela obra e os pressupostos teórico-metodológicos por ela assumidos; (2) descrever a organização geral da obra, tanto no conjunto dos volumes quanto na estruturação interna de cada um deles; (3) apresentar o uso adequado dos livros, inclusive no que se refere às estratégias e aos recursos de ensino a serem empregados; (4) indicar as possibilidades de trabalho interdisciplinar na escola, a partir do componente curricular abordado no livro; (5) discutir diferentes formas, possibilidades, recursos e instrumentos de avaliação que o professor poderá utilizar ao longo do processo de ensino-aprendizagem; (6) propiciar a reflexão sobre a prática docente, favorecendo sua análise por parte do professor e sua interação com os demais profissionais da escola; (7) apresentar textos de aprofundamento e propostas de atividades complementares às do livro do aluno. (...) (EDITAL PNLD, 2012: 20-22).

A partir dos critérios apresentados, como já afirmamos, não apenas as formas de apresentação dos conteúdos, como também os próprios conteúdos são delineados dentro de um grupo de diretrizes estabelecidas como meio de regulação, mas que dialeticamente, cerceiam o universo de discussões pedagógicas possíveis no processo de produção dos manuais didáticos. Como já analisamos, mesmo sem produzir diretamente os livros didáticos, através do PNLD o governo participa ativamente de todo o processo de elaboração e publicação dos manuais escolares. Essa atuação do governo na própria composição dos livros nos chama atenção não apenas por seu caráter cerceador do universo editorial dos manuais, especificamente os de história, mas também porque precisamos levar em conta que, conforme bem analisaram as autoras Miranda e Luca, “... a educação constituiu-se em veículo privilegiado para introdução de novos valores e modelagem de condutas(...)” (MIRANDA & LUCA, 2004:125), durante o regime militar, como evidenciaram na continuidade dessa citação, mas também, em todo o processo de interferência do Estado sobre a disposição, apresentação e uniformização dos conteúdos escolares.

Dessa forma, podemos perceber que apesar de uma política que visa assegurar a qualidade do ensino nas escolas públicas, o PNLD acabou por contribuir para um processo de acomodação no qual o livro deixou de ser apenas um recurso didático, para se tornar O RECURSO DIDÁTICO, ou seja, excetuando o Ensino de Jovens e Adultos,

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em praticamente todos os níveis de ensino não se cogita mais a menor possibilidade da exclusão do livro didático das salas de aula. Não estamos aqui dizendo que isso é ruim ou bom, mas que é uma realidade que deve ser analisada, pois os docentes precisam ter consciência dos processos de produção dos manuais que utilizam como suportes didáticos em suas aulas. Pensar o livro didático e sua produção é ampliar as margens de reflexão sobre métodos e formas nas quais o ensino, em nosso caso de história, vem sendo efetivado no Brasil e assim, quem sabe construir espaço para um ensino independente, consciente e crítico.

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Ser-colônia como ontologia de Brasil: uma abordagem de estudo pela via da História das Idéias

ricardo oliveira da silva1

Resumo: No presente texto apresentamos os resultados parciais de uma pesquisa em andamento no Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS. Nesta pesquisa investigamos uma interpretação do ser do Brasil em narrativas históricas de meados do século XX. Neste artigo destacamos algumas reflexões teóricas sobre este estudo com base na história das idéias. Em um segundo momento nós situamos nossa abordagem em face de outras análises historiográficas.

Palavras-Chave: História das idéias, Brasil, intelectuais.

Abstract: In this paper we present the partial results of an ongoing study in the Graduate Program in History of UFRGS. This research investigated an interpretation of being Brazil’s historical narratives of the mid-twentieth century. In this article we highlight some theoretical reflections on this study based on the history of ideas. In a second step we situate our approach in the face of other historiographical analysis.

Keywords:History of ideas, Brazil, intellectual.

Na pesquisa de doutorado, realizada no Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, investigamos as narrativas escritas por Caio Prado Júnior, Alberto Passos Guimarães e Celso Furtado em meados do século XX sobre a história econômica do país, como caminhos na interpretação de um ser do Brasil: ser-colônia. Não possuímos como objetivo estabelecer ou comprovar uma correspondência ontológica de Brasil na “realidade econômica” dos anos de 1950/1960. Situamos nossa abordagem a partir da história das idéias e reivindicamos “a historicidade do pensamento em uma situação epocal [...], sem sua tradicional correspondência apriórica e absoluta com o espaço” (ARMANI, 2010, 16). Trata-se igualmente de salientar através da análise do conjunto de significantes na produção intelectual destes autores não haver uma história única, “mas histórias diferentes, em seu tipo, seu ritmo, seu modo de inscrição” (DERRIDA, 2001, 65). Partindo dessas premissas e levando em consideração se tratar de uma pesquisa em processo de “amadurecimento”, apresentamos algumas reflexões sobre os pressupostos teóricos e metodológicos que estamos procurando nos alicerçar para o desenvolvimento do projeto. Em um segundo momento nós destacamos essa proposta de trabalho em face de outras análises historiográficas.

1 Mestre em História pela UFRGS. Doutorando em História pela UFRGS. Bolsista CAPES. Endereço eletrônico: [email protected].

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1. Uma reflexão sobre o Brasil pela via da história das idéias

Na investigação de um ser do Brasil em narrativas históricas partimos dos pressupostos oferecidos pela história das idéias com a contribuição da crítica literária e da filosofia da linguagem. Com a crítica literária colocou-se em debate o papel da metáfora e da alegoria na construção do texto histórico. Com os pós-estruturalistas, questionou-se a compreensão do signo como a união da palavra (o significante) com a idéia ou o objeto que ela representaria (significado). No lugar de um sistema escrito gerando significados fixos, teríamos uma interminável cadeia de significantes em que o significado é sempre diferido. Sendo as narrativas compostas de palavras, esta perspectiva desvelou um panorama que permite múltiplas leituras, e, inclusive, significados divergentes sobre um mesmo texto, o qual, “começa a sugerir possibilidades que seu autor jamais havia imaginado” (HARLAN, 1989, 587).

Segundo David Harlan, com a crítica literária e a filosofia da linguagem ganhou espaço uma história intelectual liberada da busca das intenções do autor. Para Quentin Skinner, por exemplo, o historiador deveria recuperar as “intenções primárias” do autor, onde se encontraria a verdadeira mensagem do texto. Nesta tarefa, “o historiador teria que reconstruir o mundo mental em que o autor escreveu seu livro – todo o conjunto de princípios lingüísticos, convenções simbólicas e pressupostos ideológicos em que o autor viveu e pensou” (HARLAN, 1989, 584). Entretanto, a importância do texto está precisamente em transcender as intenções do seu autor. O questionamento da necessidade de buscar no texto uma intenção autoral e o pressuposto do processo de transmissão cultural e sua contínua descontextualização e recontextualização, frustra a crença de que no texto estará uma presença do passado: “quero sugerir uma abordagem que irá abandonar a tentativa de recuperar a intenção autoral, e que será mais comparativa do que contextualista, que se preocupará não com a busca de origens textuais, mas com o ressituar dos textos históricos” (HARLAN, 1989, 604). Ou seja, devemos reconhecer a validade de deixar o presente interrogar o passado através de uma história não concernente aos autores mortos, mas aos livros vivos, não circunscrita apenas aos escritores em seus contextos históricos, mas uma leitura de obras históricas em contextos novos e inesperados e que assim “forneça o meio crítico em que valiosas obras do passado podem sobreviver ao seu passado, sobreviver ao seu passado a fim de nos dizer sobre o nosso presente” (HARLAN, 1989, 609).

Um segundo ponto nesta reflexão teórica: ao frisarmos nossa interpretação de um ser do Brasil nas narrativas históricas de meados do século XX, nos posicionamos de acordo com Hans-Georg Gadamer, para o qual “é precisamente o que temos em comum com a tradição com a qual nos relacionamos que determina as nossas antecipações e orienta a nossa compreensão” (GADAMER, 2003, 59). A tradição da interpretação faz parte de nossa realidade histórica, indica a historicidade de nosso pensar: “toda

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interpretação de um texto deve, pois, começar por uma reflexão do intérprete sobre as idéias preconcebidas que resultam da ‘situação hermenêutica’ em que ele se encontra” (GADAMER, 2003, 61-62). Em razão disso, a abordagem sobre uma ontologia de Brasil em textos dos anos de 1950 e de 1960 não significa uma tese arbitrária, mas uma proposta de pesquisa fundamentada nos textos e na relação com o “olhar” teórico-metodológico na qual estamos imersos pela tradição.

Na esteira das considerações mencionadas até o momento gostaríamos de elucidar que ao nos referirmos aos textos de Caio Prado Júnior, Alberto Passos Guimarães e Celso Furtado, abordamos estes textos como narrativas históricas, na distinção entre o “real acontecido” e o texto elaborado pelo historiador sobre o “real”. Paul Ricoeur salienta que a narrativa histórica reivindica esta referência ao “real acontecido” por meio de vestígios, o que consiste na elaboração de um terceiro-tempo, o tempo propriamente histórico, mediação entre o tempo vivido e o tempo cósmico. Nesta tarefa recorrem-se “aos procedimentos de conexão, tomados de empréstimo à própria prática histórica, que asseguram a reinscrição do tempo vivido no tempo cósmico: calendário, seqüência de gerações, arquivo, documento, vestígio” (RICOEUR, 2010, 170). Por outro lado, esta referência por meio de vestígios retira algo da referência metafórica comum a todas as obras poéticas, na medida em que o passado só pode ser reconstruído pela imaginação: “o lugar marcado do imaginário está indicado pelo próprio caráter do ter-sido como não observável” (RICOEUR, 2010, 312). Com isto, o tempo narrado torna-se base da narrativa histórica.

Vale ressaltar mais uma vez, agora na referência ao trabalho de Paul Ricoeur, que na escrita do texto, a intenção do autor e o significado do texto deixam de coincidir. A inscrição torna-se sinônimo de autonomia semântica do texto, subtraído ao horizonte finito vivido pelo seu autor. Neste caso, “o que importa compreender não é a situação inicial do discurso, mas o que aponta para um mundo possível” (RICOEUR, 1976, 99). Este poder do texto de abrir uma dimensão de realidade comporta “um recurso contra toda a realidade dada e, dessa forma, a possibilidade de uma crítica do real” (RICOEUR, 2008, 149). Paul Ricoeur denota está dimensão do texto como o “mundo do texto”, aspecto que consideramos concernente à narrativa histórica no instante que sua leitura proporciona múltiplas interpretações.

Nossa análise postula a interpretação de uma ontologia2 de Brasil nas obras de Celso Furtado, Alberto Passos Guimarães e Caio Prado Júnior, o que constitui o ser do ente Brasil enquanto aquilo que é. Segundo Martin Heidegger, pensar no ser é pensar

2 Ontologia diz respeito ao conhecimento filosófico do ser. Neste campo de saber se realça o estudo ou conhecimento do que são as coisas em si mesmas, enquanto substâncias, por oposição ao estudo de suas aparências ou de seus atributos. Adota-se aqui uma definição de ontologia sem grandes pretensões, como teoria sobre o permanente, o que dura e constitui o ser do ente Brasil. O que está em jogo aqui é o olhar do historiador sobre narrativas históricas através de uma reflexão com elementos da filosofia. Contudo, não se trata de uma investigação filosófica.

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no seu sentido a partir do Dasein3. A compreensão do ser-aí inclui a compreensão de “mundo” e do ser dos entes que se tornam acessíveis dentro do mundo: “as ontologias que possuem por tema os entes desprovidos do modo de ser da pre-sença se fundam e motivam na estrutura ôntica da própria pre-sença” (HEIDEGGER, 1997, 40). Disto decorre a analítica existencial do ser-aí como ontologia fundamental de onde todas as demais são originadas. Nossa pesquisa aponta uma ontologia de Brasil a partir de narrativas históricas. Priorizamos uma investigação do ser do Brasil no “mundo do texto” possível de ser desvelado em narrativas históricas. Um “mundo” onde destacamos uma ontologia: ser-colônia.

Um trabalho que destaca uma ontologia a partir de narrativas históricas implica reconhecer, metodologicamente, a centralidade do texto na pesquisa. Compartilhamos da asserção de Eduardo Gusmão de Quadros de que não se pode, na superação ao positivismo historiográfico, anular os ganhos obtidos com a crítica documental. Seus recursos constituem a espinha dorsal do método investigativo em história. Por outro lado, a escritura também pode fornecer pontos relevantes na elaboração do método do conhecimento histórico, uma vez que existe uma centralidade da escritura no saber histórico: “a investigação parte de textos e tem por meta construir novos textos” (QUADROS, 2009, 07).

Eduardo Gusmão de Quadros situa sua posição a partir do trabalho de Jacques Derrida, perspectiva que compartilhamos. Aqui cabe a pergunta: de que maneira nós pretendemos concretizar nossa pesquisa? Na investigação que efetuamos das narrativas históricas de Caio Prado Júnior, Alberto Passos Guimarães e Celso Furtado nós analisamos os significantes, as relações e as diferenças entre significantes, na elaboração de significados e sentidos nos textos. Em Posições, Jacques Derrida afirma que todo processo de significação ocorre como um jogo formal de diferenças: “o jogo das diferenças supõe, de fato, sínteses e remessas que impedem que, em algum momento, em algum sentido, um elemento simples esteja presente em si mesmo e remeta apenas a si mesmo” (DERRIDA, 2001, 32). Em A escritura e a diferença encontra-se: “a ausência de significado transcendental amplia indefinidamente o campo e o jogo da significação” (DERRIDA, 2011, 410). Ou seja, as palavras são significantes sem significado em si, operando através da coesão e da distinção, cujos significados são estabelecidos no jogo entre significantes na escritura. Em razão disto, examinamos os significantes na différance, ou seja, “o jogo sistemático das diferenças, dos rastros de diferenças, do espaçamento, pelo qual os elementos se remetem uns aos outros” (DERRIDA, 2001, 33).

3 Dasein é uma palavra alemã que remete à existência. Uma tradução para dasein no português é ser-aí. Ao nos referirmos ao dasein, optamos pela tradução ser-aí, pois o advérbio “Da”, no alemão, significa “aí”, apontando para o mundo como o horizonte originário de configuração das possibilidades de ser do homem. Contudo, no caso das citações de Ser e tempo, traduzido por Márcia de Sá Cavalcante, mantivemos o termo pre-sença. Uma das justificativas para o uso de pre-sença por parte da tradutora está na tentativa de superação do imobilismo de uma localização estática que ser-aí poderia sugerir. O “pre” de pre-sença remetendo ao movimento de aproximação, constitutivo da dinâmica do ser, através das localizações.

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No jogo das diferenças entre significantes, os conceitos que criamos para atribuir sentidos a nossa abordagem das narrativas, como ser-colônia e ser-para-fora, estão formulados com significados múltiplos, que surgem nas relações entre os significantes no texto de cada autor. Com isto, nos aproximamos de uma escritura que soletra seus símbolos na pluridimensionalidade, como ressalta o livro Gramatologia:

Nele o sentido não está sujeito à sucessividade, à ordem do tempo lógico ou à temporalidade irreversível do som. Esta pluridimensionabilidade não paralisa a história na simultaneidade, ela corresponde a uma outra camada da experiência histórica e pode-se também considerar, inversamente, o pensamento linear como uma redução da história (DERRIDA, 2011, 106).

Trata-se de salientar, no que se refere ao método de pesquisa, o aspecto multidimensional das narrativas históricas de Caio Prado Júnior, Alberto Passos Guimarães e Celso Furtado. Neste viés, poderia se concluir que não há realidade fora do texto, que tudo é escrita. Aqui nos colocamos de acordo com a resposta de Eduardo Gusmão de Quadros aos críticos da sentença de Jacques Derrida de que “não há fora do texto”: “a questão colocada é que se ‘lê’ uma realidade a partir da cultura, da bagagem conceitual, de ‘textos’ que remetem-se uns aos outros. Então, a realidade remete a textos e textos à realidade” (QUADROS, 2009, 09).

2. Uma interpretação entre interpretações: o ser do Brasil como ser-colônia

Das interpretações sobre a produção intelectual de Caio Prado Júnior, Alberto Passos Guimarães e Celso Furtado, ressaltamos primeiramente a contribuição de Guido Mantega. No livro A economia política brasileira, há uma análise sobre os textos destes autores e de outros intelectuais, como Ignácio Rangel, Nelson Werneck Sodré e Maria da Conceição Tavares, como representativos do momento de consolidação do pensamento econômico brasileiro, cujo marco cronológico seria 1959, com a publicação de Formação econômica do Brasil, de Celso Furtado: “um trabalho de fôlego que, respaldado num sólido arcabouço teórico, procurava concatenar os vários aspectos da dinâmica de nosso sistema econômico” (MANTEGA, 1985, 11).

Segundo Guido Mantega, o mérito de Formação econômica do Brasil esteve na interpretação da transição da economia agroexportadora do país nos anos de 1930, para a acumulação industrial orientada para o mercado interno, pelo chamado processo de “substituição de importações”. Os textos de Alberto Passos Guimarães ganharam espaço pela caracterização do perfil agrário do modelo econômico democrático-burguês, modelo pelo qual o PCB baseava sua leitura da realidade brasileira. Nos livros de Alberto Passos Guimarães, a classe latifundiária consta como responsável pela exploração da população

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rural, particularmente por meio da imposição de relações semifeudais. Na obra de Caio Prado Júnior sobressai a rejeição da tese das relações feudais no campo e a apresentação do setor agrícola sob uma ótica capitalista originária dos interesses do capital mercantil europeu que colonizara o país. Guido Mantega denomina esta tese de Caio Prado Júnior pelo termo capitalismo colonial (MANTEGA, 1985).

Raimundo Santos, em Feudalidade e prussianismo no pensamento agrário do PCB, analisou o papel das classes agrárias nos textos políticos do PCB e dos seus pensadores. Para o autor, apesar da bibliografia marxista ter mostrado ao longo de sua história estudos sobre a área rural, como nos textos políticos de Marx e Engels e nas investigações de Lênin sobre o campesinato da Rússia, não foram muitos os Partidos Comunistas que produziram uma reflexão sólida e articulada similar aos autores marxistas clássicos. O PCB não seria um deles. Desde sua fundação, na década de 1920, a questão agrária permaneceria para o Partido como “parte” de uma “teoria geral”, fornecendo inspiração para as diretrizes políticas. Esta “teoria geral”, denominada democrático-burguesa, frisava o papel do desenvolvimento industrial para a consolidação do capitalismo, etapa necessária na luta pelo socialismo. Uma inflexão nesta postura do PCB ocorreria somente em meados dos anos de 1950:

A virada do pensamento político dos comunistas, a partir da morte de Vargas em 1954 e, sobremaneira, no contexto da crise do stalinismo nos anos 1956/57, vai espelhar o novo curso da vida política nacional, bem expresso na posse de Juscelino Kubitschek em 1956 e na magnitude que então assumiria o chamado movimento nacionalista, ou seja, quando o país começava a viver mais intensamente o processo de ampliação das liberdades democráticas e extensão da cidadania a crescentes parcelas da população, constituindo a grande novidade no campo (SANTOS, 1996, 16-17).

No contexto de redefinição da orientação política do PCB, que, influenciado em parte pelo movimento nacionalista, defenderia uma “frente única” na luta política, Alberto Passos Guimarães expõe a tese das “três frentes de luta de classes” no campo (camponeses, assalariados e semi-assalariados, contra o latifúndio, o imperialismo e o patronato rural), amplificando a “frente única” para o campo. Caio Prado Júnior, por outro lado, no V Congresso do PCB, realizado em 1960, interpela o paradigma pecebista da “revolução agrária antifeudal”, propondo a liberação da terra, mediante tributação rural, das travas que impediam sua “livre disponibilidade” mercantil, passo preliminar na realização de uma reforma agrária para o atendimento das necessidades do conjunto da população rural (SANTOS, 1996).

Em As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC, José Carlos Reis salientou alguns dos intérpretes do Brasil, entre os quais Capistrano de Abreu, Sérgio Buarque de Holanda, Nelson Werneck Sodré e Caio Prado Júnior. Para isto, frisou a problemática específica que teria orientado as avaliações dos autores sobre o passado brasileiro e as projeções de futuro. O que aproximaria e diferenciaria os intérpretes, o que os separaria

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e os agruparia, seria uma representação particular do tempo histórico brasileiro. Para corroborar o diagnóstico, José Carlos Reis utilizou as categorias temporais de mudança e de continuidade:

Esses autores realizaram fundamentalmente uma articulação de mudança (processo, modernização, progresso, revolução, na direção da independência e autonomia) e continuidade (estrutura, permanência, tradição, resistência, conservadorismo, que significam dependência e heteronomia). [...] Mudança, para o Brasil, significa a identificação das forças que produzem a autonomia e a emancipação nacional; continuidade, a identificação das forças que reproduzem e renovam a dependência (REIS, 2001, 14).

José Carlos Reis dividiu as interpretações do Brasil em duas correntes: do “descobrimento do Brasil”, com autores que teriam priorizado a continuidade em relação à mudança, como Varnhagen e Gilberto Freyre; e do “redescobrimento do Brasil”, com autores que teriam priorizado a mudança em relação à continuidade. Na segunda corrente, José Carlos Reis citou Alberto Passos Guimarães, ao lado de Nelson Werneck Sodré, como um intelectual que em sua análise da realidade brasileira defenderia a tese feudal como causa do atraso econômico do país. Uma tese posta como revolucionária por Alberto Passos Guimarães porque seria mais adequada para fundamentar transformações sociais e econômicas na área rural. Na mesma corrente do “redescobrimento do Brasil”, José Carlos Reis frisou que para Caio Prado Júnior a revolução brasileira para o campo não pressupunha o fim de relações feudais, pois a área rural seria capitalista desde o período colonial. Um capitalismo pouco desenvolvido e que se perpetuava ao longo dos séculos. Na visão caiopradiana o rompimento desta lógica é que deveria orientar uma teoria de mudança da estrutura fundiária (REIS, 2001).

Em Sete lições sobre as interpretações do Brasil, Bernardo Ricupero investigou as interpretações de Brasil que apareceram de forma mais sistemática entre a proclamação da República, em 1889, e o desenvolvimento mais pleno da universidade, a partir da década de 1930. Para o autor, anteriormente a 1889, a preocupação predominante entre os intelectuais brasileiros era criar referências nacionais para o país recém-independente. Por outro lado, no decorrer de meados do século XX, com a gradual expansão dos centros universitários, teria mudado o padrão de reflexão do país, com o declínio do gênero do ensaio, com narrativas de propensão totalizante, para monografias empíricas com maior rigor metodológico.

Para Bernardo Ricupero, em um país de passado colonial, o tema da formação tornou-se recorrente em vários intérpretes do Brasil: “ele indica a preocupação com o estabelecimento de um quadro social mais autônomo, nacional, que se contraporia à situação anterior, de subordinação colonial” (RICUPERO, 2008, 24-25). Um aspecto perceptível nos títulos e subtítulos de diversas obras: Casa grande & senzala: formação da família patriarcal brasileira (1933), de Gilberto Freyre; Formação do Brasil

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contemporâneo (1942), de Caio Prado Júnior; Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro (1958), de Raimundo Faoro; Formação econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado. Nas interpretações de Celso Furtado e de Caio Prado Júnior há uma dimensão normativa, ou seja, a “formação” da economia nacional como um processo inconcluso. Em razão disto, nas obras destes autores há um padrão, “iniciando-se por um grande balanço da história do Brasil e fechando-se com o programa político sobre como superar os problemas do país” (RICUPERO, 2008, 22).

Uma outra leitura sobre estas narrativas é a que estamos procurando desenvolver em nossa pesquisa. Na dissertação de mestrado investigamos o debate do começo dos anos de 1960 sobre a questão agrária brasileira, com base nas obras de Caio Prado Júnior e de Alberto Passos Guimarães. Nesta tarefa, analisamos como a produção destes autores interpelou o pensamento político do PCB. Para isto, privilegiamos uma abordagem em torno da relação intelectual/Partido. Por fim, concluímos que o estudo de Alberto Passos Guimarães e de Caio Prado Júnior dialogou com o pensamento agrarista do PCB, Partido ao qual pertenciam na condição de filiados, seja na tentativa de corroborar e mesmo fundamentar suas proposições, mais perceptível no caso de Alberto Passos Guimarães, seja para se contrapor e oferecer uma interpretação alternativa ao tema, como se dá com Caio Prado Júnior (SILVA, 2008).

No desenvolvimento da dissertação constatamos que os textos de Caio Prado Júnior e de Alberto Passos Guimarães não se limitaram em referendar tomada de posições frente às premissas políticas do PCB, mas também foram narrativas históricas que apresentaram interpretações de um ser do Brasil, o qual nós conceituamos como ser-colônia. Neste caso incluímos a produção intelectual de Celso Furtado. Com este conceito buscamos atribuir um nexo para aquilo que nas narrativas históricas identificamos como sendo o modo da dependência econômica do país, estruturada em função de interesses externos e em detrimento do desenvolvimento local e do atendimento das necessidades da população. Ou seja, o ser-colônia está fundamentado no modo de ser da economia do Brasil, cujo sentido é ser-para-fora.

Considerações finais

O nosso trabalho não possui a pretensão de invalidar as análises de Guido Mantega, Raimundo Santos, José Carlos Reis e Bernardo Ricupero, nem se colocar como uma interpretação “definitiva” da questão agrária nas obras de Alberto Passos Guimarães, Celso Furtado e Caio Prado Júnior, criando assim um interdito para o surgimento de futuras abordagens. Acreditamos que o saber humano jamais levantará uma barreira tão forte que represe o fluir do existir da realidade: “é preciso recordar que somos tempo, duração, o mais radical dos limites porque é ontológico: realidade fluente que não podemos

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deter, delimitar, definir” (PEGORARO, 2011, 33). Ou seja, “o tempo desestabiliza todas as nossas construções doutrinárias, os dogmatismos filosóficos, religiosos e científicos” (PEGORARO, 2011, 33). Com isto, ganha o conhecimento.

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Comunicações orais

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Henrique D´Ávila: um liberal riograndense e a questão militar no Império do Brasil

AmAndA ChiAmenti Both1

Resumo: Este artigo procura esclarecer em que termos se deram a relação entre políticos riograndenses, poder central e as forças militares no contexto da denominada Questão Militar. Tendo a atuação de Henrique d’Ávila, liberal riograndense, como ponto de partida, foi possível recuperar alguns aspectos envolvidos no conflito, que ultrapassou o âmbito estritamente militar, e foi determinante para a queda da monarquia em 1889. Além disso, tentamos demonstrar que a Questão Militar foi o auge de um conflito armado há algum tempo, haja vista que os descontentamentos dos militares com a política imperial eram muitos e alguns eram bastante antigos. Para tanto, utilizamos como fontes os Anais da Assembléia Provincial, Geral e Senado, bem como o jornal liberal “A Reforma”, tratando tais fontes sob o prisma da análise de conteúdo

Palavras-chave: questão militar, Henrique D’Ávila, Partido Liberal.

Abstract: This article tries to clarify about the conditions that made the relationship between riograndenses politicians, central government and the military in the context of the Military Question. Since the work of Henrique d’Ávila, liberal riograndense, as a basis, it was possible to recover some aspects involving the conflict, which exceeded the scope strictly military, which was essential for the overthrow of the monarchy in 1889. Furthermore, we try to demonstrate that the Military Question was a culmination of a conflict that was set since same time, considering that the grievances of de military with imperial politics were many and some were quite old. We used as sources Proceedings of de Provincial Assembly, Senate and General, as well as the liberal newspaper “A Reforma”, addressing such from perspective of content analysis.

Key words: Military Question, Henrique D’Avila, Liberal Party

Nosso objetivo ao estudar a atuação dos políticos da província de São Pedro do Rio Grande do Sul é investigar a participação dos políticos do Partido Liberal riograndense na política local e nacional nos anos que antecederam a queda da monarquia. O Partido Liberal foi escolhido em razão do seu fortalecimento e da emergência de lideranças políticas liberais nas últimas décadas do Império. Além disso, os liberais elaboraram um programa político e, por essa razão, acreditamos que sua atuação seria maior e mais incisiva, haja vista que teriam um conjunto de princípios, nos quais se baseariam. Em seu programa defendiam as eleições diretas, a abolição da guarda nacional, a reforma do poder judiciário e a extinção do poder moderador.

1 Acadêmica do 7º semestre do curso Licenciatura e Bacharelado em História da Universidade Federal de Santa Maria. Integrante da pesquisa “A província de São Pedro do Rio Grande do Sul e o Império do Brasil: história política e historiografia”, orientado pelo Professor André Atila Fertig. Email: [email protected]

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Contudo, o diálogo entre os objetivos da pesquisa, suas questões iniciais e o que encontramos nas fontes nem sempre nos permite continuar com o itinerário inicial. O primeiro problema encontrado estava na ausência de participação dos parlamentares eleitos tanto para a Assembléia Provincial, quanto para cargos no poder central. Os parlamentares não compareciam às sessões ou então não se empenhavam em manifestar suas posições políticas.

A partir disso, a solução foi verificar quais os parlamentares riograndenses do Partido Liberal eram mais atuantes nas fontes que nos propomos a estudar2. Foi possível selecionar três homens: Gaspar Silveira Martins, Visconde de Pelotas e Henrique d’Ávila: todos donos de uma notável carreira capaz de lhes garantir uma projeção em nível nacional3. Por intermédio destas três lideranças políticas percebemos que as discussões nas quais elas estavam mais fortemente envolvidas foram aquelas que pautavam o debate político no contexto de crise crescente do governo imperial. As denominadas questões militar e religiosa, bem como as reformas constitucionais, eram os temas mais recorrentes.

A opção por nos delimitarmos ao estudo da atuação de Henrique Francisco d’Ávila se explica pela pouca atenção dada até então para esse político do Partido Liberal, que alcançou postos muito restritos e privilegiados do governo imperial. Já a escolha questão militar está ligada à importância do conflito para os rumos da monarquia e pelo caráter militar da província de São Pedro.

Na segunda metade do século XIX transformações importantes ocorreram na sociedade brasileira. A intensificação da urbanização e a emergência da industrialização provocaram alterações na composição social da população, cada vez mais urbana e diversa do ponto de vista das relações de trabalho e categorias profissionais. Crescia uma camada social média, relacionada a profissões do contexto urbano – como advogados, professores, entre outros - que atuariam nos movimentos republicano e abolicionista, provocando o surgimento de um novo quadro político.

Os anos posteriores a Guerra do Paraguai marcaram o fortalecimento do exército como instituição militar e também política. O exército, influenciado pelas “novas idéias” cientificistas da época, principalmente o positivismo, passava a formar sua própria elite intelectual e seus quadros profissionais através da carreira militar e das escolas da própria instituição. O pouco peso político dos militares no Império do Brasil começava a ser contestado.

2 Foram utilizados como fontes para esta pesquisa os Anais da Assembléia Provincial, Anais da Assembléia Geral e Anais do Senado, e o jornal A Reforma, órgão do Partido Liberal na província de São Pedro do Rio Grande do Sul.

3 Gaspar Silveira Martins foi bacharel em Direito, juiz municipal do Rio de Janeiro de 1858-59. Presidente da província do Rio Grande do Sul em 1889. Em 1862 foi eleito deputado provincial pelo Rio Grande do Sul. Foi ministro da Fazenda em 1878, além de Conselheiro Extraordinário do Imperador. Já Visconde de Pelotas era um militar, lutou durante a Guerra Farroupilha pelo Império. Atuou nas campanhas militares no Uruguai e na Guerra do Paraguai. Pelotas foi também Ministro da Guerra e senador liberal entre 1880-1889. Com a República, foi o 1º Presidente do Estado do Rio Grande do Sul.

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Neste contexto ocorreu a denominada questão militar, ou seja, uma série de incidentes que opôs os militares e a Coroa entre os anos 1883 e 1887. Tal conflito é importante de ser considerado, pois é fundamental para explicar a queda da monarquia em 1889. Segundo John Schulz, desde meados do século XIX iniciou-se uma tensão entre os oficiais do exército, insatisfeitos com a limitação de seus direitos de cidadania. Na década de 1880 a tensão se intensifica, visto que uma nova geração de oficiais formados pela escola Militar da Praia Vermelha passou a defender a idéia do soldado-cidadão. A vitória no Paraguai havia feito crescer o orgulho dos militares, que começaram a reivindicar direito de reunião e livre manifestação pública. 4

Em 1883 foi apresentada na Assembléia Geral uma proposta de reforma do montepio militar. Da Escola Militar de Tiro Campo Grande, no Rio de Janeiro, presidida pelo Tenente Coronel Antonio de Senna Madureira, partiu a contestação à reforma. Mas foi no ano seguinte, 1884, que aumentou o conflito entre governo imperial e militares. Na mesma Escola Militar, Sena Madureira recepcionou o jangadeiro Francisco do Nascimento, militante abolicionista na Província do Ceará. Estava armado o atrito, visto que Sena Madureira é interpelado pelo ajudante-general do Ministério da Guerra, acerca da recepção de um abolicionista em uma instituição do governo, e como resposta diz que somente deve satisfação ao Conde D´Eu. Como punição, o Tenente-Coronel Madureira foi transferido para o Rio Grande do Sul, assumindo o comando da Escola de Tiro de Rio Pardo e, ao mesmo tempo, se aproximando dos republicanos riograndenses, principalmente de Júlio de Castilhos.

No final do ano de 1885 o conflito entre a Coroa e o exército se agravou quando o Coronel Ernesto Augusto Cunha Matos, veterano da Guerra do Paraguai, após inspecionar as guarnições do Piauí, denunciou irregularidades cometidas pelo Capitão Pedro José de Lima, ligado ao Partido Conservador. Por esse motivo, em seu relatório de 2 de março de 1886, propunha um Conselho de Guerra, com membros estranhos à Província do Piauí, para investigar as supostas irregularidades. Alguns meses depois, em 15 de julho, no parlamento, o deputado conservador Simplício Coelho de Rezende defendeu Pedro Lima, chamando Cunha Matos de “traidor e covarde” na presença do Ministro da Guerra Alfredo Chaves.

Segundo o jornal do Partido Liberal “A Reforma”, a explicação para a defesa de Pedro Lima por Coelho Rezende estava relacionada a troca de favores:

Este official, porém, goza da amizade do deputado Coelho de Rezende, de quem foi cabo eleitoral nas eleições de 15 de janeiro do corrente anno, e nessas circumstancias este ultimo entendeu da tribuna defender o amigo, offendendo o Coronel Cunha Mattos, no que o militar tem de mais sagrado, – a sua honra. (MCSHC, 11/08/1886)

4 SCHULZ, John, O exército e o Império. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História geral da civilização brasileira. São Paulo: Difel, 1971, t.2, v.4.

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Cunha Matos defendeu-se em artigo no “Jornal do Comércio” do Rio de Janeiro, em 24 de julho de 1886. Todavia, poucos dias depois, o ministro da Guerra Alfredo Chaves mandou advertir Cunha Matos, fundamentado no Aviso de 26 de dezembro de 1884, segundo o qual os militares não poderiam se manifestar através da imprensa. Além da advertência, Cunha Matos foi preso por dois dias.

A discussão em decorrência da advertência aplicada a Cunha Matos chegou ao Senado, onde envolveu tanto liberais quanto conservadores. Henrique d’Ávila, que ocupava o cargo de Senador no período, foi um exemplo de liberal riograndense que estava, ao menos em parte, alinhado com o programa partidário de 1863 e que se posicionou ao lado dos militares quando a questão militar passou a ser assunto no Senado. Ávila nasceu em Herval, em 1832, diplomou-se na Academia de Direito de São Paulo, foi eleito deputado provincial, deputado geral, presidente da província de São Pedro do Rio Grande do Sul e também da província do Ceará, além de ser eleito Senador, em 1882, Comandante da Guarda Nacional de Jaguarão e Ministro da Agricultura em 1880.

Henrique d’Ávila defendeu o direito de os militares fazerem uso da imprensa, pois a constituição, ao garantir esse direito aos cidadãos, não fazia distinção entre paisanos e militares quando se referia às liberdades individuais. Em conseqüência desse argumento, entendia d’Ávila que a punição aplicada aos militares Cunha Matos e Sena Madureira era inconstitucional:

Em que leis se fundamentam os Srs. Ministros da Guerra e da Marinha para estabelecer na classe militar uma censura prévia? A constituição não faz distinção alguma entre paisanos e militares. Concede o direito de usar a imprensa com as limitações que estabelece para todos os brasileiros, sem distinção de classes. (Anais do Império do Brasil, 18/08/1886)

Concomitantemente, d´Ávila criticava a falta de uma legislação para o Exército, que seria a causa da indisciplina que acometia a instituição e, aproveitando-se da situação, dirigia também críticas ao Imperador, pois ele não teria a preocupação devida com a reorganização do Exército:

O senado deve saber bem que os motivos da indisciplina do nosso Exército são muito complexos, são vários, e o principal deles, no meu modo de ver, é que entre nós não há uma lei militar que seja executada perfeita e completamente; nem mesmo a lei de promoções, que estabelece princípios sobre direitos sagrados da classe militar, nem essa mesma é entendida e executada como está escrita, como deverá ser executada: todos os dias estão sendo violados os direitos sagrados da classe militar com a execução falsa, imperfeita e incompleta que se dá a essa legislação. (...) Por que o governo não trata seriamente de reorganizar o nosso estado militar, por que não levanta o nível moral e intelectual do exército e da armada, para depois poder ter o direito de ser rigoroso quanto à disciplina? (Anais do Império do Brasil, 14/09/1886, p. 219)

O embate político não se limitou às criticas ao Imperador. A disputa se deu também no interior do parlamento, entre Liberais e Conservadores. Nesse sentido, tendo

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em vista o momento de crise pelo qual passava o Império, em que os parlamentares eram pressionados a escolher um lado, podemos dizer que, na província de São Pedro do Rio Grande do Sul, os membros do Partido Liberal adotaram uma postura quase uniforme em defesa dos militares, como exemplificado no discurso de Henrique d’Ávila. A explicação para essa postura dos liberais vai além do ideário comum que o Partido Liberal riograndense buscou criar com a elaboração de seu programa, uma vez que na sociedade brasileira do século XIX, os laços pessoais eram tão presentes quanto os laços ideológicos na configuração dos grupos políticos.5 É provável que a província tivesse uma identificação com o Exército devido ao seu histórico caráter e presença militar, muito em conseqüência da sua posição de fronteira. Ademais, a maioria dos líderes da mobilização militar era da província do Rio Grande do Sul ou havia passado por ela.

A tensão política entre liberais e conservadores fica bastante clara no discurso do senador Coelho Rezende, no qual percebemos não apenas a intenção de criticar a postura dos liberais da província do Piauí, reflexo do incidente ocorrido com o Capitão Pedro José Lima, mas os liberais de todas as províncias.

O coronel Cunha Mattos, que na inspeção militar que procedeu na companhia, verificou que a situação estava mal feita, que se negociava escandalosamente com o soldo dos soldados e com o primeiro prêmio aos voluntários e engajados, verificando sobretudo a subtração do fardamento pertencente à companhia, entendeu que se achando complicados na dilapidação de efeitos públicos militares amigos e correligionários seus, devia contar com a cumplicidade do silêncio do capitão Pedro Lima, (...) Lamento, Sr. Presidente, que um oficial de patente tão elevada como o Sr. coronel Cunha Mattos, de talento notável, de cultura de espírito bastante desenvolvida, podendo-se considerar um dos mais peritos na sua arma, tenha-se deixado dominar pela paixão partidária, deixando-se igualmente influenciar pelos chefes liberais do Piauí. (Anais do Império do Brasil,15/07/1886, p. 182)

Em outro discurso proferido na câmara, Coelho de Rezende ainda afirmava: “Sei que é da índole do Partido Liberal, salvo honrosas exceções, governar de chicotes e esporas, e V. Exª sabe que do Rio Grande do Sul nos veiu (sic) o lema despótico de que o poder é o poder” 6. Dois pontos merecem ser destacados nesse discurso. Em primeiro lugar, a reiteração do conflito político, marcado pela crítica do conservador Coelho de Rezende aos liberais, não apenas da província do Piauí, e às formas pela quais exerciam poder. Em segundo lugar, a identificação da província de São Pedro como uma província predominantemente liberal. De fato, o Partido Liberal era hegemônico na Assembléia Provincial do Rio Grande do Sul desde 1872 e assim permaneceu até o fim da monarquia.

Todavia, a maioria na Assembléia não significava controle total e efetivo sobre a província, entre outros motivos porque os Presidentes de Província, detentores do

5 Neste contexto, por ideologia queremos dizer um conjunto de pressupostos que orientam até certo ponto as ações de um grupo.

6 Anais do Império do Brasil. Sessão de 22/07/1886.

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poder executivo, eram nomeados pelo poder central e trocados a cada novo gabinete. Além disso, é importante considerar que esses políticos estavam inseridos também em outras esferas da sociedade provincial e estabeleciam relações, não necessariamente institucionalizadas, com uma pluralidade de atores sociais. Desse modo, os rumos da província não dependiam apenas da vontade política dos parlamentares, mas também da disponibilidade de apoio advinda dessas outras esferas da vida provincial pelas quais o poder também circulava.

Essa hegemonia se deveu, em parte, à capacidade dos liberais riograndenses de se rearticularem a luz de um programa partidário lançado ainda em 1863, que preconizava o fim do Poder Moderador, o fim da vitaliciedade do Senado e a descentralização administrativa, entre outros aspectos. Mas se deveu também ao fracasso do Partido Conservador em reagir, haja vista que nunca conseguiu elaborar um programa partidário. A influência dos liberais era tanta que os republicanos conseguiram se articular enquanto partido apenas a partir de 1882.

Embora 1883 tenha sido convencionado cronologicamente como o início da questão militar, algumas reivindicações da corporação vinham de longa data. Em uma publicação de abril de 1855, o jornal “O Militar” já denunciava a indiferença com que o Império tratava os militares. Os baixos salários, a lentidão nas promoções e o descaso com as famílias dos soldados eram razões que faziam crescer o descontentamento com o governo. Muitas viúvas e órfãos, por exemplo, não recebiam as pensões a que tinham direito. Desse modo, a carreira militar se tornava atrativa apenas para os que não possuíam outra perspectiva de ascensão social, visto que aos soldados eram garantidas apenas moradia, alimentação, educação e algum modesto dinheiro no bolso (SHULTZ, p.241).

Por esses motivos, as famílias mais abastadas optaram por uma formação acadêmica para seus filhos, sobretudo após a segunda metade do século XIX. Ademais, a lei da idade mínima para promoções e a crescente profissionalização e burocratização do exército dificultou, embora não tenha extinguido, a prática de concessão de privilégios aos soldados devido a sua origem ou aos laços pessoais de que dispunham.

Ainda em “O Militar”, percebemos o descontentamento com a condição de país escravocrata do Brasil. A posição favorável à abolição da escravidão e ao incentivo à imigração já aparecia antes da Guerra do Paraguai, mas torna-se muito mais forte após o seu término. Entre outros motivos os militares eram favoráveis à abolição porque era do seu interesse modificar o perfil social dos soldados, compostos em grande parte por pobres e ex escravos.

Todas essas reivindicações tornaram-se mais urgentes após a Guerra do Paraguai, pois o exército havia mostrado sua importância para a manutenção do Estado brasileiro. Nesse sentido, alguns avanços importantes foram conquistados a partir de 1870. Foram abolidos os castigos corporais e a extinção gradual da patente de cadete, baseada no status. Por fim, houve um aumento, ainda que pequeno, dos salários do exército.

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O tema da composição social do exército e das formas de recrutamento foi assunto recorrente entre os parlamentares. A necessidade de recorrer ao recrutamento forçado para a Guerra do Paraguai acendeu ainda mais o debate. Para os liberais, as condições em que se encontrava o exército impediam que os homens instruídos ingressassem na instituição, como manifestou D’Ávila ao senador Jaguaribe, da província do Ceará:

O nobre Senador, porém, permita que lhe diga: nem os voluntários que foram para a guerra do Paraguai desempenharam convenientemente a missão que lhes era confiada pela a Pátria, e nem esses soldados que da nobre província do meu colega enfileiram-se no Exército, são aqueles que nós convém; os Cearenses que vão para o Exército, todos sabem, vão coagidos pela miséria. É miséria que os obriga a procurar o pão no voluntário do prêmio. (Anais do Império do Brasil, 15/09/1886, p. 230)

A tensão entre militares e poder central ultrapassou os marcos cronológicos da Questão Militar, permanecendo acesa durante quase toda a segunda metade do século XIX. Além disso, o conflito envolvia diversos elementos que iam além do âmbito estritamente militar. Envolvia a politização de uma instituição até o momento em segundo plano, mas que mostrara seu valor para a manutenção do Estado brasileiro e, por esse motivo, buscava reconhecimento.

Somava-se a isso o caráter social dos problemas que enfrentava o exército. O crescimento do país fez surgir uma série de novas profissões com as quais o exército não tinha condições de competir, em função da baixa remuneração e da incerteza da garantia de benefícios aos soldados e às suas famílias.

A questão militar também mostra as características do mundo em transformação que era o Brasil da segunda metade do século XIX. O debate político que ocorreu no parlamento trazia à tona em vários momentos a importância que os laços pessoais ainda tinham frente às instituições. Todavia, a crescente burocratização das instituições, promovida pelos próprios parlamentares, tendia a reduzir essa importância, como foi o caso da gradual abolição da patente de cadete, reservada apenas a filhos de oficiais da marinha, do exército, da guarda nacional, nobres.

A participação dos políticos riograndenses foi bastante importante nesse conflito, que trouxe a baila outros assuntos muito caros aos liberais, como o sistema de recrutamento militar e a reforma no sistema eleitoral. Várias lideranças envolvidas na Questão Militar eram da província do Rio Grande do Sul ou haviam passado por ela. No que diz respeito aos liberais riograndenses, foram hegemonicamente defensores do exército, como fica exemplificado através da atuação de Henrique Francisco d’Ávila. É possível que essa defesa aos militares tenha ocorrido muito em razão da identificação da província com militares, em conseqüência da sua característica de fronteira. Contudo, os elementos envolvidos na discussão da Questão Militar estão longe de ser esgotados. Por esse motivo, os breves resultados apresentados aqui carecem ainda

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de estudos mais aprofundados para melhor explicar o envolvimento dos políticos da província do Rio Grande do Sul nesse conflito que foi de fundamental importância para os rumos do Império e da construção do Estado brasileiro.

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PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL E HISTÓRIA POLÍTICA: DISCUTINDO CONCEITOS

Artur Duarte Peixoto1

RESUMO: O político é um conceito central em estudos sobre partidos. Ainda que o Partido Comunista do Brasil (PCB), em parte significativa de sua história, não participe diretamente da política tal como outros partidos, o político perpassa sua atuação. Neste trabalho irei debater a importância desse conceito para estudar os partidos, principalmente o PCB.

Palavras-chave: político, partidos, Partido Comunista.

ABSTRACT: The political is a central concept in studies of parties. Although the Communist Party of Brazil (PCB), in a significant part of its history, don’t participate in the politics as other parties, political permeates its work. In this paper I will discuss the importance of this concept to study the parties, especially PCB.

Key-words: political, parties, Communist Party.

O POLÍTICO NO ESTUDO DOS PARTIDOS

A leitura de diversas obras sobre “história política” suscita muitas questões a serem debatidas, as quais mesmo não se referindo diretamente ao meu tema de pesquisa, a atuação do Partido Comunista do Brasil (PCB) no final da Primeira República, relacionam-se a discussões teóricas e metodológicas mais gerais que têm implicações em todo o trabalho que aborde de alguma forma o político. Para alcançar o objetivo almejado, irei debater neste texto a importância do político como conceito analítico para estudar os partidos.

Escolhi como questão a ser debatida neste texto a importância do político como categoria analítica para meu trabalho individual de pesquisa de mestrado, que desenvolvi no Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS. Tal escolha não foi aleatória, mas devido à pertinência dessa discussão para examinar a atuação do Partido Comunista, meu objeto de pesquisa.

Para iniciar um debate acerca de um conceito que se pretenda conter propriedades heurísticas que possibilitem ao pesquisador melhores condições analíticas sobre o seu objeto de pesquisa, um primeiro procedimento é procurar defini-lo de forma mais sofisticada possível. Aqui cabe uma primeira constatação a ser feita a respeito da

1 Licenciado e Especialista em História do Brasil pela UFPel. Mestre em História pela UFRGS. Professor da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre. [email protected]

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grande dificuldade em se conseguir definir precisamente o termo conceitual que se quer trabalhar aqui, o político. Dificuldade que é expressa por vários autores que se aventuraram pelo interior desse campo de estudos (FÉLIX, 2001, p. 106; GOMES, 1996, p. 59; CAPELLATO, 1996; FERREIRA, 1992). Sobre a questão, René Rémond observa que a tentativa de definição do político por meio das questões que fariam parte de seu domínio deveria ser descartada, da mesma forma que pela delimitação de um espaço que lhe seria próprio. O campo do político não tem fronteiras naturais, em determinadas conjunturas ele se dilata abarcando toda e qualquer realidade, já em outras ele se retrai extremamente. Ou seja, tentar fechá-lo dentro de limites perpétuos são inúteis (RÉMOND, 2003, pp. 442-443). Portanto, se nem por meio do que poderiam ser os seus elementos constitutivos ou de seu espaço seria possível definir precisamente o campo, devemos procurar uma outra forma de conceituação.

Ainda acompanhando o pensamento de Rémond, diante das impossibilidades de definição apontadas acima, ele salienta ser necessário definições mais abstratas, sendo portanto.

[...] A mais constante é pela referência ao poder: assim, a política é a atividade que se relaciona com a conquista, o exercício, a prática do poder, assim os partidos são políticos porque têm como finalidade, e seus membros como motivação chegar ao poder. Mas não qualquer poder! (RÉMOND, 2003, p. 444).

Na seqüência deste trecho, critica o que, em clara alusão a Michel Foucault, teria sido o diluimento da noção de poder após 1968, por causa de seu uso abusivo estendido a todos os tipos de relações sociais. No meu entendimento, voltando à questão do político, essa definição de Rémond é um tanto quanto rígida por compreender o poder somente em relação a um aspecto. Embora defina o objeto e resolva até certo ponto o problema de indefinição — pelo menos quando se refere a questões que se relacionam com o Estado — ainda tem limitações. A sua visão de poder definida a partir da conquista, do exercício e da prática, mas não de qualquer poder, cria limitações à noção do que é o político, pois ela fica muito presa à figura do Estado, não levando em consideração as diversas formas pelas quais o poder aparece em outras esferas da sociedade.

Nesse sentido, penso que para solucionar esse problema a melhor maneira não seria procurar uma definição de caráter tão peremptório, na medida em que, como já foi demonstrado, é uma tarefa um tanto árdua e, principalmente, de concretização bastante discutível. Creio que a saída deveria ser uma definição abrangente, em que a esfera do político fique bem clara para o pesquisador. Sobre isso, Loiva Otero Félix defende que.

[...] o historiador do político não pode nunca deixar de ter bem presente qual é a esfera do político, buscando entendê-la com as pistas etimológicas da palavra política em sua matriz grega vinculada à pólis, isto é, política (politike) como decisões tomadas no espaço da pólis, do corpo cívico, da comunidade de cidadãos (politikós), implicando processo de tomada de decisões (FÉLIX, 2001, p. 107).

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Ainda sobre o mesmo assunto, Félix observa que o “âmbito do político situa-se no universo das ações e decisões realizadas no espaço da pólis, no espaço público por excelência e que, como tal, se contrapõe ao espaço do privado” (FÉLIX, 2001, p. 107). Partindo da contribuição da autora, a origem etimológica da palavra responderia a nossa questão sobre qual seria a esfera do político, ou seja, tudo aquilo que está relacionado com o conjunto de decisões tomadas pelos cidadãos no espaço público que visa o gerenciamento do social, a gestão da coisa pública. Explicito novamente a advertência de Rémond, acerca do caráter flexível das fronteiras do político no tempo, já que em determinados períodos a gestão do social poderá abarcar questões que em outros períodos não.

Pelo que foi salientado acima sobre a esfera do político estar relacionada à gestão da coisa pública, os assuntos que se tornam relevantes para os estudos inseridos neste campo, não são os que tratam de descrever brigas no interior do centro do poder estatal porque não seriam temas relevantes ao historiador do político. Mais uma vez me utilizo das palavras de Félix, a qual diz ser o interessante:

[...] Aquilo que temos, com segurança, como domínio do realizado na pólis, fruto das relações entre os sujeitos sociais e as formas e encaminhamentos dos governos e estados, onde tanto a coordenação como o confronto das forças sociais se dão no espaço do público ou direcionando para ele (FÉLIX, 2001, p. 108).

Na seqüência deste trecho, a autora cita Cornelius Castoriadis, o qual observa que quando se refere à política ele não está referindo-se a “intrigas da corte ou lutas entre grupos sociais por seus objetivos ou posições (...), mas uma atividade coletiva cujo objeto é a instituição da sociedade como tal” (FÉLIX, 2001, p. 108). Ou seja, o ato descritivo puro e simples de divergências internas no núcleo do poder do Estado está mais relacionado, conforme o autor, para os “fofoqueiros” da história do que para os estudos pertencentes ao campo do político.

Mas após vincular o campo à gestão da coisa pública, parto para percorrer uma outra etapa deste trabalho, a de esboçar, brevemente, qual a importância do político para os partidos, sobretudo nos partidos comunistas.

E em relação à discussão desenvolvida acima, como o político se relaciona com os partidos? Por que é uma dimensão tão importante na análise partidária? Sem ter a pretensão de esgotar o assunto, começo a esboçar algumas respostas para os questionamentos levantados a partir do fato do político ser inerente aos partidos. Isso ocorre devido à aspiração em exercer o poder, seja mantendo a estrutura ou transformando-a, segundo nos informa J. Palombara (citado por CHARLOT, 1982, pp. 19/20). Rémond salienta que apenas para poucos temas a relação com o político está ligada a sua própria essência, como é o caso dos partidos, “cuja formulação pede de maneira quase mecânica, como um complemente obrigatório, o epíteto político, a ponto de tornar-se um pleonasmo”, ele conclui seu comentário tecendo uma fina ironia com a

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pergunta “alguém conhece partidos que não sejam políticos?” (RÉMOND, 2003, p. 441). Adiante, ainda no mesmo texto, Rémond observa que “os partidos são políticos porque têm como finalidade, e seus membros como motivação, chegar ao poder” (RÉMOND, 2003, p. 444). Ou seja, está na essência dos partidos, a aspiração a tomar o poder e controlar o aparato do Estado. Dessa forma, está na sua natureza a perspectiva de controlar gerenciamento do todo social.

Em relação ao partido comunista, embora não deixe de ser um partido político como os outros, ele é diferente dos demais (circunscritos ao campo parlamentar e institucional), na medida em que pretende tomar e exercer o poder e mesmo quando legalizado sua ação não se limita a esse terreno, mas também se insere nos movimentos sociais e, além disso, sua atuação é bem mais ampla, chegando a ser considerado uma espécie de “micro-sociedade”, pois afora sua atividade política.

[...] oferece aos seus militantes uma gama de atividades na área social, cultural, recreativa etc. Ele atua em todas as esferas da vida, pois a sua proposta é não apenas mudar o regime ou a forma de governo, mas transformar as relações sociais e fazer vigorar uma nova concepção de mundo. Ou seja, fazer “a” a revolução (PANDOLFI, 1995, p. 45).

Mas a relação do partido comunista com o político não ocorre somente por causa dos objetivos que almeja alcançar. Quando o Partido Comunista do Brasil foi fundado, a vertente do movimento operário mais influente nas organizações operárias era a anarquista, embora essa influência viesse apresentando sinais de declínio em virtude da forte repressão policial na conjuntura do final da década de 10 e início de 20. Conquanto, seja difícil definir precisamente o anarquismo por causa de sua diversidade interna, em linhas gerais.

[...] pode ser visto como um sistema de pensamento social que propõe transformações fundamentais na estrutura da sociedade, implicando a supressão do capitalismo e o fim da autoridade do estado, substituindo por alguma forma não governamental de cooperação entre indivíduos livres. Considera a sociedade dividida em duas categorias básicas, exploradores e explorados (PETERSEN, 1991-1992, p. 128).

No caso do Brasil, de maneira geral, e do Rio Grande do Sul, em particular, a vertente predominante entre os anarquistas era a anarco-sindicalista, a qual tinha nos sindicatos organizados com base em ofícios profissionais, o seu principal organismo de luta e o núcleo da futura sociedade quando da derrota do capitalismo (PETERSEN, 1991-1992, pp, 128-129). A tática precípua para a subversão da sociedade capitalista era a greve geral, devido ao entendimento de com a crise gerada pela paralisação das atividades produtivas de um determinado território, estaria aberto um canal de possibilidades para a tomada do poder pelos trabalhadores. Assim como viam no Estado a personificação da própria autoridade e a serviço das classes dominantes, os partidos

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políticos, independentes de sua orientação política, também eram vistos como organismos autoritários.

Por não confiarem na política parlamentar e se recusarem terminantemente a qualquer espécie de participação e pela exploração a que eram submetidos os trabalhadores se dar no âmbito econômico, as formas de luta dos anarco-sindicalistas se davam através de ações diretas de confronto com o capital, (tais como greves, manifestações, passeatas) (PETERSEN, 1991-1992, p. 129). Ainda que os anarquistas enfatizassem sua luta predominantemente econômica e criticassem a luta política, ela continha uma esfera política. Não a partidária, mas uma atuação política, na medida em que procuravam alterar a ordem social e a derrubada do estado capitalista.

Os comunistas, por seu turno, diferentemente dos anarquistas, vislumbravam na vida política parlamentar um meio importante de participação, embora tenham tido muita dificuldade de participar nesse espaço, devido às constantes perseguições e os freqüentes períodos em que ficavam na ilegalidade. Ao longo da década de 20 no Rio Grande do Sul, foram ampliando o peso de sua intervenção na dinâmica do movimento operário e com isso, implantando práticas diferenciadas na relação com as organizações operárias. Primeiramente, os sindicatos sob sua influencia eram organizados sob novas bases, por unidades de empresa e de indústria, ao invés de ofícios profissionais. Segundo, e mais importante, a introdução da perspectiva da participação eleitoral operária por parte dos comunistas divergia de toda tradição anarco-sindicalista anterior, tendo como resultado dessa divergência longos conflitos entre ambas vertentes, sendo que ao final da década, os militantes do PCB teriam alcançado a hegemonia do movimento operário gaúcho (PETERSEN e LUCAS, 1992, p. 305). A nova vertente hegemônica foi impondo lentamente uma nova forma de atuação política ao movimento operário.

Retornando à discussão mais geral sobre o político, cabem ainda mais algumas considerações. Uma decisão por parte do Estado pode alterar, de forma bastante considerável, os rumos da atuação de um partido, como do Partido Comunista do Brasil, que esteve durante a maior parte da sua história sob a clandestinidade. Ou seja, havia a proibição governamental do partido atuar livremente, o que o impedia ter participação parlamentar, sob pena de seus militantes serem presos (quando não punições ainda mais duras). Diante desse cenário em que eram constantemente reprimidos, era recorrente a criação de associações através das quais expressassem sua doutrina política. Em suma, o político estava interferindo na rota implementada pelo partido, pois o grupo dirigente do Estado, o poder político institucionalizado, impunha aos membros do PCB o que poderiam e o que não poderiam realizar. Tal raciocínio, poderia induzir a conclusão do Estado, neste caso, somente estar obedecendo aos seus desígnios de classe, mas a experiência já demonstrou que o aparato estatal é mais do que simplesmente um comitê gestor da classe dominante, o que equivale dizer que o político não é um mero espelho reflexivo das determinações sócio-econômicas, como durante muito tempo se defendeu.

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Ele tem um grau de relativa autonomia e não poder ser reduzido aos seus determinantes estruturais.

Mas antes de entrar mais a fundo na discussão sobre essa autonomia, gostaria de me remeter a outro debate que está intimamente vinculado a esse: a origem das escolhas políticas e os processos de tomada de decisão. Dosse relata que nas décadas de 60 e 70 existia uma forte convicção de que tudo era político.

[...] Contudo, a partir do momento em que o político estava por toda parte, ele estava sobretudo em lugar nenhum, tendo perdido sua autonomia. Ele estava reduzido, em nome de interesses de classe ou de fantasmas libidinosos, a não ser mais do que o fino véu de uma verdade sempre oculta, para sempre exterior à consciência (DOSSE, 2003, p. 377).

Ou seja, isso quer dizer que as escolhas e os processos de tomada de decisões dos atores sociais não teriam nenhuma autonomia própria, pois haveria uma verdade sempre oculta exterior à consciência, o que significava enfatizar o político apenas como um mero reflexo das estruturas econômicas e sociais. Portanto, estudar os fenômenos políticos não era importante, na medida em que não contribuiriam para a compreensão da sociedade. A partir do momento em que essa concepção foi perdendo espaço, em seu lugar ascendeu a posição que defendia a existência de uma grande liberdade às escolhas políticas, as quais constituiriam um domínio relativamente autônomo e auto-explicativo. Segundo Rémond.

[...] há uma conclusão que se impõe ao cabo de múltiplas pesquisas realizadas durante meio século sobre a origem das opiniões, das convicções e das crenças: não existe uma relação única de causalidade simples entre a situação, a posição, o status dos indivíduos e aquilo em que acreditam, a causa a que aderem e pela qual, eventualmente, dariam espontaneamente até a própria existência (RÉMOND, 1994, p. 6).

Segundo a opinião do autor, as escolhas e as decisões tomadas pelos atores sociais não podem ser consideradas, simplesmente, como um espelho reflexivo das instâncias econômicas e sociais sem um mínimo de autonomia própria. Norbert Elias também chega a uma opinião similar trilhando um outro caminho com seu estudo Os Estabelecidos e os outsiders (cf. ELIAS, 2000). Elias analisa uma pequena comunidade de trabalhadores, onde a única distinção existente entre eles seria em relação ao tempo de moradia no local. Todos tinham a mesma posição social e econômica, grau de instrução similar, pois trabalhavam na mesma empresa, sendo que a única disparidade é que um grupo de moradores, os outsiders, haviam chegado ao local quando já estava estabelecido um grupo mais antigo de moradores, pelos quais eram discriminados. O estudo aponta para motivações que estão muito além das explicações baseadas somente nas classes sociais, na medida em que ambos os grupos pertenciam à mesma posição social diante da estrutura capitalista. Ou seja, não há correspondência direta entre vinculação na

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estrutura social e as escolhas dos atores sociais, tanto políticas quanto de outra natureza, pois se tratam realmente de escolhas, feitas a partir de um campo de possibilidades no qual descortinaria ao indivíduo as alternativas que poderiam ser trilhadas. No mesmo sentido, Dosse salienta que o “olhar sobre o político não pode mais se contentar com uma visão instrumental” tanto na sua perspectiva leninista quanto na althusseriana. Para complementar seu raciocínio se apropria das palavras de Elias, pois ele.

[...] já tinha mostrado desde os anos 30 que o político é mais complexo. Escapando a uma concepção instrumental, ele analisou o poder como tentativa de equilibrar tensões sociais segundo configurações sempre renascentes. O político tem, segundo ele, um papel nodal, como mostra com seu estudo da sociedade cortesã, em torno do processo de curialização dos guerreiros que está na origem do “processo civilizatório”, da pacificação das condutas e do controle dos afetos (DOSSE, 2003, 381).

Portanto, se as estruturas econômicas e sociais não determinam o político, assim como não determinam as escolhas individuais, não existindo uma relação de correspondência direta entre eles, isso significa destacar a sua relativa autonomia frente aos outros domínios da sociedade. Mas até chegar a ter esse entendimento sobre sua autonomia, um caminho bastante conturbado foi trilhado. A crítica dos Annales sobre a hegemonia do político alterou o quadro epistemológico no campo do conhecimento histórico, na medida em que colocou sobre o primeiro plano o econômico e o social em detrimento do político, o qual ficou posto de lado num movimento ascendente de perda de espaço acadêmico. Os historiadores dos Annales criticavam o fato da história ser extremamente factual, presa a linearidade, preocupada com as ações individuais de pessoas de prestígio e sem possibilidade de comparação no tempo. Consideravam “as estruturas duráveis mais reais e determinantes que os acidentes de conjuntura” e que “os comportamentos coletivos tinham mais importância para o curso da história que as iniciativas individuais”.

Esse quadro foi alterado somente após o fenômeno conhecido como a crise dos paradigmas, quando houve a revitalização do político no campo do conhecimento histórico. Rémond aponta como razão desse “ressurgimento” duas ordens de fatores: as transformações sociais mais amplas, em relação ao aumento das atribuições do Estado com o declínio do Wellfare State; e a própria dinâmica interna da pesquisa histórica, que teria assimilado as críticas oriundas dos Annales e renovado o campo. Mas cabe uma pequena advertência a respeito dessa renovação, é que ele ocorreu em relação à trajetória do próprio campo. Ou seja, a renovação foi em relação à antiga forma de se fazer história política que se viu não corresponder às novas questões colocadas no interior do campo do conhecimento histórico, e não em relação à historiografia em geral, pois o objeto permaneceu o mesmo.

Ainda sobre a revigoração dos estudos do campo do político, Dosse coloca que esse

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fenômeno está relacionado com o questionamento sobre a “porção refletida da ação humana” que se fez nos anos 80.

[...] A relativização da porção inconsciente, que tinha sido a estrada real de acesso à verdade sob o estruturalismo, e a reabilitação da porção explícita da ação reergueram um horizonte político que se tinha considerado o aspecto mais desusado, obsoleto, da análise em ciências humanas (DOSSE, 2003, p. 377).

A consequência desse fenômeno foi uma resignificação do político com sua autonomia sendo bastante enfatizada nesse novo contexto. Para evitar que ocorresse um movimento “pendular” de substituição de um paradigma determinista por outro, Dosse aponta a necessidade de se realizar o contrário.

Não se trata assim de substituir a causalidade econômica, utilizada durante muito tempo de maneira mecânica, por uma causalidade política, mas de recuperar essa coerência imanente às formações sociais através do político (DOSSE, 2003, p. 379).

Adiante ele observa.

É o modo de encaixe dos diversos níveis de uma formação social que permanece a perspectiva de um programa de história total cujo princípio consiste em compreender as articulações e não em reduzir um nível ao outro. Historicizar as grandes divisões é o problema central que essa história política pretende colocar no sentido simbólico (DOSSE, 2003, p. 380).

René Rémond aponta algo parecido, enfatizando que o político existe por si mesmo, que tem uma consistência própria e uma “autonomia suficiente para ser uma realidade distinta” (RÉMOND, 2003, p. 445), mas nem por isso o historiador deve crer que o político mantenha todo o resto sob sua dependência. O autor salienta que.

[...] Cada vez menos pesquisadores acham que infra-estruturas governam superestruturas,e a maioria prefere discernir (como os autores desse livro) uma diversidade de setores — o cultural, o econômico, o social, o político — que se influenciam mútua e desigualmente segundo as conjunturas, guardando ao mesmo tempo cada um sua vida autônoma e seus dinamismos próprios (RÉMOND, 2003, p. 10).

Rémond enfatiza que o político, assim como o cultural, o econômico e o social, têm uma autonomia e um dinamismo próprio e que a relação entre todos é de influência mútua, porém desigual, o que significa em cada conjuntura específica um desses domínios terá predominância. Em um texto mais recente, publicado em 1994 pela revista brasileira Estudos Históricos, Rémond precisa melhor essa colocação destacando de maneira mais enfática a forma relativa que assume essa autonomia, assim como das escolhas políticas (RÉMOND, 1994). Dessa forma, ameniza, até certo ponto, o problema de uma melhor

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definição dessa autonomia e na relação do político com os outros domínios.Retornando ao meu objeto de pesquisa, a relação do Partido Comunista com o Estado

tem uma importância bastante significativa, não somente porque a razão de existência dessa organização é subverter a ordem do capitalismo, mas também as condições para sua atuação passam também pelas liberdades políticas do sistema partidário. Um sistema em que essas liberdades existem facilita suas condições de intervenção, no entanto onde elas inexistem, situação enfrentada durante maior parte de sua trajetória, cria graus de dificuldades muito acentuados para os militantes comunistas, que em vários momentos da história eram em pequena quantidade.

A partir do exemplo da promulgação da “Lei Celerada” (lei extremamente repressiva que recolocou o PCB na ilegalidade em agosto de 1927, a qual poderia ser entendida como a mera expressão dos auspícios da elite política brasileira, diante da visão sobre o Estado como um comitê gestor dos interesses da elite), o projeto de lei foi aprovado sob intenso debate no parlamento e muito criticado, estando longe de existir consenso quanto à necessidade de aprová-lo, evidenciando a relativa autonomia dos dirigentes do Estado frente à sua classe de origem. Demonstrando, também, o funcionamento complexificado do político, impedindo-o de ser reduzido a um epifenômeno reflexivo dos domínios sócio-econômicos.

Entretanto, por mais que enfatize a não predominância a priori do político sobre o econômico, o cultural ou o social, a sua autonomia relativa e a influência mútua entre os domínios, percebo que Rémond atribui uma papel mais proeminente ao político, sobretudo em seu texto mais antigo. Mas, quem vai ainda mais longe com certeza é Pierre Rosanvallon, que explicitando o ponto de convergência entre diversos autores, para os quais o político não seria uma “instância” ou um “domínio” entre outros da realidade, observa que para ele seria “o lugar onde se articulam o social e sua representação, a matriz simbólica onde a experiência coletiva se enraíza e se reflete ao mesmo tempo” (ROSANVALLON, 1995, p. 12), atribuindo ao político um papel mais preponderante que os outros autores citados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CHARLOT, Jean. Os partidos políticos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982.

DOSSE, François. O Império do sentido: a humanização das Ciências Humanas. Bauru: EDUSC, 2003.

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FÉLIX, Loiva Otero. História política renovada. História Unisinos, São Leopoldo, número especial, 2001, p. 103-116.

FERREIRA, Marieta de Moraes. A nova “velha história”: o retorno da história política. Estudos históricos. Vol. 5, n. 10, 1992.

GOMES, Ângela de Castro. Política: história, ciência, cultura, etc. Estudos Históricos, vol. 9, n. 17, 1996, pp. 59/84.

PANLDOLFI, Dulce. Camaradas e companheiros: história e memória do PCB. Rio de Janeiro, Relume-Dumará/Fundação Roberto Marinho, 1995.

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PETERSEN, Silvia. O anarquismo no Rio Grande do Sul na Primeira República. Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS. Porto Alegre (15),1991-1992.

RÉMOND, René (org.). Por uma história política. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

______________. Por que a história política? Estudos históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 7-19.

ROSANVALLON, Pierre. Por uma história conceitual do político (nota de trabalho). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 15, n.º 30, 1995, p. 9-22.

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A propriedade privada no Pampa e o “problema” do Gaúcho.

BrUNo PaNiz BoTelHo1

Resumo: Este artigo busca estabelecer uma relação entre a presença da propriedade privada no Pampa e as práticas dos gaúchos. Neste sentido, o trabalho leva em consideração aspectos políticos e culturais que elucidam a explicação de um processo de transformação da figura do gaúcho, bem como de sua funcionalidade no espaço do Pampa.

Palavras-chave: propriedade, gaúcho, pampa.

Abstract: This article intends to establish a connection between the presence of the private property in the Pampa and the practices of the gauchos. In this sense, this paper considerate some political and cultural aspects that can help with the main process explanation of the gaucho’s figure and his functionality in the Pampa’s area.

Key-word: property, gaucho, pampa.

1. Introdução

Este artigo busca estabelecer uma relação entre o processo de configuração do espaço do Pampa e a permanência do tipo humano Gaúcho neste processo. O trabalho leva em consideração o choque entre aspectos políticos e culturais presentes nesse movimento de redução gradativa dos espaços. Neste sentido, a questão do surgimento da propriedade privada na região do Pampa é de fundamental importância para sustentar a explicação do processo. No âmbito das fontes, o relato mais antigo que possuo remonta aproximadamente ao ano de 1770. Trata-se dos escritos de Concolocorvo, viajante europeu do século XVIII que retratou as vivências dos gaúchos na província de Montevidéu. As demais fonte são oriundas do século XIX, dentre elas: as instruções do Sr. João Francisco Vieira Braga ao capataz João Fernandes da Silva, no ano de 1832 e o livro de José Hernández, Instrucción del estanciero, de 1882. Ao analisar a questão da propriedade é possível perceber um descompasso entre as determinações oficiais e a aplicação prática dessas ordens. Esse desnível só é possível graças aos fluxos culturais e costumes peculiares da região do Pampa que entram em conflito com tais deliberações oficiais. De meu ponto de vista, o Gaúcho se caracteriza enquanto um “problema” precisamente durante este momento no qual a propriedade passa a existir de forma mais efetiva e produz a redução dos espaços

1 Graduando do 4º ano do curso de história-bacharelado pela Universidade Federal do Rio Grande - FURG. E-mail: [email protected]

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anteriormente trilhados pelos gaúchos. Trata-se de um período mediador entre a fase da propriedade meramente formal e oficial e o momento de sua consolidação prática e eficaz. Este período integra um longo processo de quase trezentos anos de relação entre propriedade e gaúcho no Pampa

Além disso, tenho o interesse de apresentar um argumento basilar que auxilia na compreensão do processo de assimilação do gaúcho pela propriedade: de meu ponto de vista, da fixação da propriedade privada no pampa representa um processo indelével de redução dos espaços. Concebo tal processo de contenção das práticas gauchescas como estando inserido neste grande movimento de institucionalização do espaço. O regramento e limite das funções, a afirmação de uma lógica de lucro acompanhada de uma crescente racionalidade e a utilização quase que completa das manadas (não só mais o couro). Tudo isso remete a outra forma de relação com o pampa. O gaúcho é quase que “sugado” por esse movimento. Através de algumas fontes tentarei demonstrar como se deu a ação disciplinadora e refreadora das praticas até então “insubmissas” dos gaúchos. Vale ressaltar ainda que, de meu ponto de vista, no espaço que se convencionou chamar de Pampa, os aspectos culturais e de costumes foram, durante os primeiros séculos, mais determinantes e efetivos do que os aspectos políticos. Neste sentido há uma sobre-saliência do cultural em relação ao político, de forma que Brasil, Argentina e Uruguai - os países que admitem o Pampa enquanto parte de seus territórios - existem como determinações políticas de períodos posteriores, pois o Pampa é, antes de tudo, um espaço de configuração singular que possibilita práticas e vivências culturais específicas e que, ao longo de sua história, nem sempre respeitou politicamente às determinações fronteiriças.

2. Propriedade formal e propriedade real: o Gaúcho enquanto “problema”.

Este momento do texto busca salientar o papel da propriedade para a compreensão do processo de transformação do Gaúcho. De meu ponto de vista, fazer a diferenciação entre propriedade formal e real é importante, uma vez que o momento de determinação da propriedade formal não corresponde ao momento de sua eficácia prática (real). Isto quer dizer que, em sua fase inicial, a propriedade existe mais enquanto uma determinação legal, e imprecisa do ponto de vista da atuação prática. Como uma primeira tentativa de atribuir propriedade ao espaço. Com o passar do tempo, esta propriedade formal tornar-se-á mais efetiva, de atuação mais prática. Neste sentido, há um intervalo temporal entre as deliberações e doações de terras das coroas Espanholas e Portuguesas e a aplicação mais efetiva dessas ordens. Defino propriedade formal como aquela determinada pelos setores administrativos das coroas luso-espanholas. No caso do Rio grande do Sul, temos

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a distribuição das sesmarias que correspondem, em princípio, às suertes de terras do Uruguai e da Argentina. Tratam-se de planos políticos de ambas as coroas no objetivo de proteger as fronteiras, conter os rebanhos e manter o comercio do couro.

Tendo isso em vista, se apresenta a seguinte questão: por que a propriedade, em sua fase incipiente, não obteve o mesmo status, característica e poder de atuação que a propriedade privada (ou estância) dos próximos séculos? E por que, no decorrer de sua afirmação e amadurecimento, a figura do gaúcho/gaucho se apresentará enquanto um “problema”?

O historiador Dante de Laytano, em seu livro A origem da propriedade privada no Rio Grande do Sul, faz algumas considerações acerca do início desse processo:

A sesmaria era a estância e nascia a propriedade privada então, revestida dos característicos jurídicos da doação oficial e governamental. (...) As primeiras sesmarias concedidas, no Rio Grande foram em 1732 e 1733 pelo conde de Sarzedas, depois de ter recebida da Câmara de Laguna, os respectivos experientes informados. (LAYTANO, 1983, 14).

Dante de Laytano apresenta os anos de 1732 e 1733 como aqueles que marcam o início da propriedade privada no RS. De meu ponto de vista, este seria um exemplo de propriedade em seu caráter formal, pois trata-se de uma determinação de natureza legal e oficial que envolve uma grande quantidade de terra (aproximadamente 13.000 ha) difícil de ser realmente delimitada. Desta forma, não há ainda condições de afirmação exatas dos limites das propriedades, considerando também a própria natureza da autoridade responsável, que gera uma outra concepção do termo fronteira.

Neste sentido, Tiago Gil salienta que as características jurídicas desse espaço que convenciona-se chamar “propriedade” produziu uma compreensão de “fronteira” fundamentalmente díspar daquela que é possível conhecer-se atualmente. Uma vez que, para Gil: “Aqueles homens que viveram a segunda metade do século XVIII possuíam referências espaciais distintas, muito orientadas por seus relacionamentos e experiências” (GIL, 2007, 32). Para os homens do século XVIII, diz ele, “a palavra fronteira era polissêmica” e possuía, pelo menos, dois significados:

O primeiro refere-se a uma área que engloba as localidades próximas aos territórios vizinhos e, portanto, passíveis de invasão. (...). O outro significado, mais utilizado depois da retomada lusa, pós 1777, diz respeito a áreas específicas, chamadas de fronteira de Rio Grande e fronteira do Rio Pardo. Designava, em suma, uma espécie de corredor comum de passagem entre os territórios espanhóis e portugueses. Esses corredores eram espaços privilegiados para a ação dos contrabandistas. (GIL, 2007, 33).

Tiago Gil chama atenção para o caráter “conveniente” do controle, reforçando o caráter dúbio da autoridade em relação ao contrabando de couro, acentua ainda mais

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ao dizer que a natureza do controle era relacional: “... possuindo uma característica bem marcante: existir para uns, mas não para todos.” (GIL, 2007, 37).

A grande extensão das terras, a fluidez das fronteiras e a característica relacional do poder revelam um perfil de propriedade que, por ser pouco efetiva, permite a presença desses homens soltos no Pampa. Mesmo com a presença formal da propriedade, os gaúchos transitavam pelo Pampa, usando o cavalo, “arranchando-se” e vendendo o couro do gado das “terras da coroa”.

Guilhermino Cesar, no livro O conde de Piratini e a Estância da Música: Administração de um latifúndio rio-grandense em 1832, fala sobre aspectos dimensionais de uma estância bem como a dificuldade de contenção dos rebanhos:

No governo geral de Gomes Freire de Andrada, a medida vigorante era a – sesmaria.(...). O gado vivia à lei da natureza, e não havia tapumes que bastassem para individuar as pastagens. O furto de gado era freqüente, pois no campo viviam moços andarengos, os ‘vagos’, os ‘gaúchos’, e a indivisão das terras facilitava-lhes a circulação e a atividade predatória. (CESAR, 1978, 17-18).

O “furto de gado”, como denomina o autor, é um aspecto discutível. Pois o “furto” é caracterizado de acordo com um determinado referencial, o do proprietário. Para os gaúchos, tais práticas integravam suas vivências e ressaltavam o sentido de uma existência afastada do senso de “legalidade”. Era essa “indivisão das terras”, ou seja, pouca ação da autoridade (proprietário), que permitia aos gaúchos transitarem pelo pampa, cultivando e aperfeiçoando suas práticas e técnicas campeiras de lida com o gado e cavalo.

Para termos acesso a uma descrição da presença dos gaúchos no século XVIII, apresento os relatos do viajante espanhol Concolocorvo (para alguns, pseudônimo de Calixto Bustamante Carlos2) que esboçam a forma de vida dos Gauderios de Montevidéu, considerando que se trata de uma descrição da segunda metade do século XVIII (aproximadamente 1770), essa fonte está alocada justamente na fase inicial, este momento que apresenta um perfil de propriedade que ainda não existia de forma prática e redutora dos espaços.

Estos son unos mozos nacidos em Montevideo y em los vecinos pagos. Mala camisa y peor vestido, procuran encubrir com uno o dos ponchos, de que hacen cama com los sudaderos del caballo, sirviéndoles de almohada la silla. Se hacen de una guitarra, que aprenden a tocar muy mal y a cantar desentonadamente varias coplas, que estropean, y muchas que sacan de su cabeza, que regularmente ruedan sobre amores.(CONCOLOCORVO, 1997, 33-34).

Chamo atenção para a forma de vida que levavam tais gaúchos, nutrindo-se

2 Há uma considerável discussão acerca da autoria e data desta fonte. Se desejar, o leitor poderá ter acesso a algumas versões entrando em contato com a seguinte edição: CONCOLOCORVO, El lazarillo de ciegos caminantes. Buenos Aires: Emecé, 1997. (p. 9 - 24).

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praticamente de tudo que o Pampa podia oferecer: comida, vestuário, abrigo -subsistência. O relato ainda revela uma veia artística dos gaúchos, o que esboça também alguns aspectos do seu imaginário.

No entanto, o elemento que mais me auxilia na elaboração de meu argumento diz respeito à descrição do espaço do pampa e às técnicas praticadas pelos gaúchos daquele período. Sobre isso, Concolocorvo afirma que:

Se pasean a su albedrío por toda la campanã y con notable complacência de aquellos semibárbaros colonos, comen a su costa y pasan las semanas enteras tendidos sobre un cuero, cantando y tocando. Si pierden el caballo o se lo roban, les dan otro o lo toman de la campanã enlazándolo con un cabresto muy largo que llaman rosario. También cargan outro, con dos bolas em los extremos, del tamanõ de las regulares com que se juega a los trucos, que muchas veces lastiman los caballos, que no quedan de servicio, estimando este servicio em nada, así ellos como los dueños. Muchas veces de juntan de éstos cuatro e cinco, y a veces más, com pretexto de ir al campo a divertirse, no llevando más prevención para su mantenimiento que el lazo, las bolas y um cuchillo. (CONCOLOCORVO, 1997, 34).

Neste trecho há uma definição relativamente clara da forma de vida daqueles gaúchos de Montevidéu no século XVIII: vivem “a su albedrío por toda la campanã” e “comen a su costa y pasan las semanas enteras tendidos sobre un cuero”. Essas duas afirmativas definem o tipo de existência que levava o gaúcho desta época. A expressão “a su albedrío” - “à sua vontade” - define esta forma de relação com o Pampa e que se vê afastada do meio urbano, da legalidade e do regramento. Poderíamos chamar de “liberdade” esse estado dos gaúchos? De meu ponto de vista, não. Isto por que toda liberdade existe em relação a uma noção previa do seu oposto, ou seja, a liberdade se apresenta geralmente enquanto um estado de superação em relação a algo ou alguém responsável pelo estado de “aprisionamento”. Neste sentido, a maneira pela qual o gaúcho vivia trata-se primeiramente de uma forma especifica de existência. Apreendida desde a infância. Por isso, supor que o gaúcho vivia em “estado de liberdade” depende do ponto de referência que se posiciona aquele que afirma e Concolocorvo - enquanto um viajante europeu - é um exemplo disso ao usar a expressão “a su albedrío”. Talvez em relação ao estilo de vida regrado da cidade, o gaúcho fosse “livre”. Mas creio que, em relação ao próprio gaúcho, não estaria de acordo com as fontes afirmar que ele mesmo se considerava “livre”.

Levando ainda em consideração os relatos de Concolocorvo, nota-se o domínio que

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possuíam os gaúchos em relação às atividade do campo, demonstrando grande facilidade na captura de animais (gado e cavalo) selvagens e na utilização de instrumentos como o laço, as boleadeiras3 e o cutijo4. Vale lembrar o grande interesse econômico que os proprietários apresentavam pelos rebanhos, uma vez que o gado constituía a grande fonte de riqueza da região do Pampa desde o início da colonização. Guilhermino Cesar confirma a importância da posse do gado ao dizer que: “Os primeiros registros de marcas e sinais, entre nós conhecidos, datam de 1767, e deviam ser presentes à correição dos juízes de Laguna.” (CESAR, 1978, 18). As marcações representam as primeiras tentativas de atribuir propriedade ao gado, que se encontrava solto no campo ainda não cercado.

Tendo em mente as técnicas e a relação de proximidade que o gaúcho assumia com o espaço do Pampa e seus elementos (o gado e o cavalo), procuro agora salientar, através de algumas fontes já citadas, o momento no qual o gaúcho passa a ser “visto” enquanto um “problema”. A fase de sua história no Pampa marcada pela afirmação e aumento do número de proprietários e fortalecimento dos dispositivos de controle das manadas e dos limites das propriedades. Para ilustrar o processo de introdução da legalidade na consolidação de um espaço monitorado utilizo o seguinte exemplo: a 20 de Julho de 1832, o Sr. João Francisco Vieira Braga, proprietário da Estância da Música, no Rio Grande do Sul, enviou 53 artigos contendo instruções ao capataz João Fernandes da Silva, alguns deles ilustram a tentativa de conter a ação daqueles que, em minha interpretação, seriam os gaúchos. Observe-se, primeiramente, o artigo 18:

Não consentir que pessoa alguma mate gado da mª. Marca, porq. também não quero que se mate para consumo da Estância o que pertença a outros, porem se alguma pessoa o fizer e der parte, Vmce. receberá o seu valor em dinrº. ou outra rez por aquella que mataram, cuja rez será logo morta para consumo da Estância. No Cazo porem que alguem o faça por prejudicar-me, ou haja disso desconfiança, se reprezentará ao filho do Capam. Gracêz, como Delegado do Juiz de Páz, para proceder a huma revista na Caza da Pessôa que se desconfia, e fazer-se tudo o mais que for necessário contra o Ladrão. (CESAR, 1978, 41-42).

Lembrando que a atividade das vacarias5 era comumente praticada pelos gaúchos6, percebe-se que a atuação do proprietário, a partir deste momento, torna-se

3 Este instrumento consiste, basicamente, em duas ou três bolas de pedra cobertas por couro e prezas umas nas outras. O objetivo é, mediante um preciso arremesso, acertar as patas do eqüino ou da rês de maneira a fazer o animal perder o equilíbrio e chocar-se contra o chão para que possa ser capturado ou morto.

4 Cuchillo, em espanhol; trata-se de uma pequena faca com lamina de comprimento variante entre dez e vinte centímetros. Instrumento básico para os gaúchos, com ele era tirado o couro do animal e também a carne (a chamada região do matambre, localizada entre as costelas e o couro) para consumo quase imediato.

5 Segundo as historiadoras Heloisa Reichel e Ieda Gutfreind as vacarias eram: “(...) atividades rápidas de caça ao gado, nas quais alguns homens, montados em cavalos, formavam um semicírculo, cercando os animais, enquanto outros ocupavam-se de aprisioná-los, cortando, com uma haste, os nervos de suas patas. Depois de mortos, retiravam o sebo e o couro, alimentavam-se de parte da carne e abandonavam o restante pelos campos, onde viviam muitos animais selvagens.” (REICHEL, Heloisa & GUTFREIND, Ieda. As raízes históricas do Mercosul. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1996.) p . 114.

6 Para Reichel e Gutfreind: “Os trabalhadores das vacarias se constituíam em mão-de-obra ocasional, contratada

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mais regular e prática. O campo passa a ser visto - pelos olhos do proprietário - cada vez mais enquanto uma possibilidade lucrativa e que regulamenta as funções para o melhor funcionamento. É por isso que agora as práticas dos gaúchos são vistas enquanto “ilícitas”, pois não se submetem a um regramento e legalidade que a propriedade exige. O artigo 18 já ilustra a noção do gaúcho enquanto um “problema”. Um ser insubmisso que “teima” em viver daquilo que pode tirar do Pampa, reproduzindo as práticas do momento anterior, no qual a propriedade ainda era de natureza formal.

O Artigo 25 é mais preciso quanto à proibição de alguma pessoa querer “arranxar-se”, ou seja, levantar rancho, nos limites da propriedade:

Sendo que uma Pessôa tente querer arranxar-se no Campo, Vmce. se oporá a isso uzando de toda a força que tiver ao seu alcance, por que ninguém está authorizado a fazelo sem que eu esteja convencido por Sentença final de que o terreno me ao pertence, e do que ocorrer devrá logo avizar o meu Cunhado João Roiz. Ribas para que elle tome algumas providencias a tal respeito. (CESAR, 1978, 43).

É possível perceber aqui alguns aspectos comuns a tentativa de ação do poder na propriedade: primeiramente, o caráter extremamente pessoal da ordem: a autoridade é o próprio dono que exerce o poder de conter qualquer ação subversiva a sua vontade. A seguir é perceptível o caráter de legalidade que a partir de agora toda e qualquer ação deve assumir no espaço. O gaúcho é justamente esse que ainda busca “arranxar-se” no campo sem a permissão da autoridade. Aos olhos do proprietário, o gaúcho é um “infrator” que, na medida em que ainda domina as técnicas campeiras, torna-se um “problema”, pois ainda busca morar no Pampa e matar o gado. Também é possível lembrar-se dos gaúchos na leitura do artigo 50: “Não consentir que fação corridas dentro do Campo para apanharem animais.” (CESAR, 1978, 47). E, a seguir, no artigo 51:

As Carnições que se fizerem devem ser feitas em Caza da Estancia e distribuir a Carne preciza pellos posteiros, e bom He haja sempre algum Charque feito para suprir a falta de Carne fresca, qdo. se não possa Carniar. (CESAR, 1978, 47).

Nota-se a introdução de outro vocabulário, agora, fundamentalmente autoritário e pessoal. A utilização freqüente, nos quatro artigos apresentados, de palavras como “não consentir”, “não quero que”, “uzando toda a força”, “ninguém está authorizado a fazelo sem que eu esteja convencido” ilustra o movimento. Essas palavras de ordem indicam o processo pelo qual passou o pampa, uma caminhada em direção a “legalidade”, a redução e monitoramento dos espaços. Considerando que o gaúcho vivia nesse espaço, ele foi certamente um dos mais afetados por tal processo, “sugado” lentamente para dentro da propriedade, modificando-se a cada dia, e transformando-se, finalmente em um

para a realização da empresa. Geralmente e muito de acordo com o tipo de trabalho que desenvolviam, eles eram encontrados cavalgando pelos campos, não tendo, na maioria das vezes, propriedade ou domicílio fixo. Eram, por isso, denominados de vagos, ou seja, mão-de-obra disponível e livre para ser contratada. Alguns historiadores, como Coni, denominavam os “vagos” de gaúchos, enquanto que outros, como Sala de Touron, de gaudérios.” Idem. p. 118.

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outro “tipo” de homem. Entretanto, antes de se tornar “outro”, “um peão da estância”, o gaúcho existiu enquanto um “problema” para os proprietários. Alguém que necessitava de disciplina e que, se não fosse tão “subversivo”, seria de muito proveito para atender às necessidades da propriedade, uma vez que dominava com grande habilidade a lida do gado e a montaria do cavalo.

Em 1882, José Hernández, mesmo autor de Martin Fierro, viaja para Europa e Austrália sob o comando do governador da província do Buenos Aires, Dr. Dardo Rocha com o objetivo de: “obtener elementos de estúdio sobre razas, métodos pecuários, etc., para ser aplicados posteriormente a nuestro medio rural.” (HERNÁNDEZ, 2008, 8). Ao concluir seu estudo, apresenta alguns elementos da estrutura hierárquica que deverá ser inserida na propriedade:

Una estância, como todo establecimiento industrial, debe estar subordinada a uma dirección única e inmediata, bajo la cual giran todos los resortes de su administración interior, para la puntual y exacta ejecución de las órdenes del propietario. Ese director, ese gerente de una estancia, es el mayordomo: tiene a su cargo la dirécción del establecimiento, y su inmediato subalterno es el capataz, encargado con sus peones de la ejecución de las ordenes que recibe. (HERNÁNDEZ, 2008, 281).

É possível perceber em 1882 um outro “ator” dentro da estância: a figura do peão. De meu ponto de vista, esses “peones” são os antigos gaúchos que foram “apaziguados” pela propriedade. Lembrando que, nesta fase, a propriedade inaugura uma pirâmide de funções. A propriedade é - como afirma o autor - um “estabelecimento industrial”, reforçado por uma ação racionalizada e norteado por uma lógica de mercado voltada para o lucro e que tem o campo como meio-de-produção e propriedade do estancieiro. José Hernández lembra que o “Mayordomo” não deve permitir nenhuma espécie de corridas no campo, muito menos que alguém capture animais sem sua permissão. (HERNÁNDEZ, 2008, 282). A palavra de ordem se materializa na figura do proprietário, o espaço ganha outra funcionalidade, os peões, antigos gaúchos (gauchos/gauderios), passam a ser responsabilidade do capataz, servem à sua palavra, inclusive, como diz o autor, é de dever do capataz:

...dar a los peones el ejemplo de la moralidad, de las buenas costumbres, de amor a família y al trabalho; haciéndose respetar com ellos, como un oficial com sus soldados, para que le obedezcan, y para que ejecuten puntualmente y sin tardanza sus ordenes. (HERNÁNDEZ, 2008, 289).

Nota-se que o dever do capataz de “dar a los peones el ejemplo de la moralidade”, “de las buenas costumbres” está inserido em um processo disciplinador e transformador do gaúcho em um “trabalhador da estância”. Um homem que, dotado de habilidades campeiras, serve à palavra do capataz. Percebo aqui o momento em que o gaúcho aparece não mais enquanto um “problema”, mas como um empregado. O gaúcho é

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destituído de sua subjetividade e passa por um processo de sistematização e regramento do seu trabalho de forma que este não existe mais enquanto uma expressão de sua vivência, mas sim como a expressão de uma vontade exterior a ele. Por isso, parece ficar claro que este não é o mesmo gaúcho caracterizado por Concolocorvo, aquele que vivia “solto” pela campanha, mudou tanto, a ponto de mudar de nome, de sentido. Agora, como peão, exerce um papel de submissão no mesmo espaço em que seus antepassados desenvolveram as técnicas que agora são aplicadas em prol de outra lógica econômica de apropriação do Pampa. É possível perceber que, na medida em que o gado é marcado (torna-se propriedade) e o campo é cercado, o gaúcho é forçado a se adaptar e, na posse de suas técnicas, serve à dinâmica comercial e capitalista exigida pela estância.

3. Considerações Finais

É importante salientar que o exposto até o momento está longe de resolver a questão ou até mesmo oferecer uma caracterização conceitual e precisa acerca da figura do gaúcho enquanto um “problema”. A pesquisa encontra-se ainda em andamento. O que fiz foi apresentar as informações que disponho até o momento e, no limite das fontes, divulgar algumas interpretações e hipóteses.

Vale relembrar que, de meu ponto de vista, o gaúcho existe enquanto um “problema” justamente no momento em que a ação da autoridade proprietária se fortalece e passa a identificar enquanto “ilicitas” algumas práticas no campo que pertencem especificamente aos gaúchos. Aliado a isso, percebo o amadurecimento de um processo disciplinador que atua principalmente sobre a redução dos espaços - cercamentos - e que propicia o maior controle sobre os rebanhos. Com o gado e o campo sendo monitorados constantemente, obviamente que as práticas dos gaúchos seriam mais facilmente notadas e ligeiramente denominadas de “ilícitas”. É neste momento que, para mim, o gaúcho existe enquanto um problema, pois ao mesmo tempo que, aos olhos do proprietário, ele pratica um “crime”, o gaúcho demonstra grande habilidade e especialidade na lida do campo. Tendo sido, durante tanto tempo, forçado por esse processo disciplinador a ser adaptar às novas realidades do espaço, o gaúcho transformou-se em um “peão de estância”. Neste sentido, este trabalho procurou demonstrar que tal processo de inserção do gaúcho na lógica da propriedade não se deu de forma pacifica e pueril. Pelo contrário, tratou-se de um processo que envolveu choque de concepções, embates políticos e utilização regular da violência.

Fontes

CESAR, Guilhermino. O conde de Piratini e a Estância da Música: Administração de

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um latifúndio rio-grandense em 1832. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Instituto Estadual do Livro; Caxias do Sul, Universidade de Caxias do Sul, 1978.

CONCOLOCORVO, El lazarillo de ciegos caminantes. Buenos Aires: Emecé, 1997.

HERNÁNDEZ, José. Instrucción del estanciero. Buenos Aires: Claridad, 2008.

Referências bibliográficas

LAYTANO, Dante de. A Origem da Propriedade Privada no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1983.

REICHEL, Heloisa & GUTFREIND, Ieda. As raízes históricas do Mercosul. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1996.

GIL, Tiago Luís. Infiéis Transgressores: Elites e contrabandistas nas fronteiras do Rio Grande e do Rio Pardo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007.

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“HÁ PETRÓLEO NA RAIZ DA CRISE”: A REPERCUSSÃO DA DEPOSIÇÃO DE ARTURO FRONDIZI NAS PÁGINAS DO JORNAL

DO BRASIL (1962)

dieGo da silva PacHeco 1

Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a repercussão da deposição de Arturo Frondizi nas páginas do Jornal do Brasil e como os significados constituídos em torno desse evento atuaram, possivelmente, como uma ideologia no contexto brasileiro. Assim, pretende-se verificar como o discurso do jornal analisado mobilizou ideias como a de democracia e de autoritarismo no fim de constituir uma ideologia, que visou sustentar a atuação desse veículo de comunicação dentro do contexto brasileiro.

Palavras chave: Imprensa brasileira, Governo Frondizi, Jornal do Brasil.

Abstract: This essay has as its main objective to analyze the repercussion of the coup against Arturo Frondizi in Jornal do Brasil daily. Also, it’s important to analyze how the meaning of this event shaped an ideology for the public opinion in Brazil. Therefore, it’s paramount to verify how the daily’s view on this matter mobilized concepts like democracy and authoritarism in order to build an ideology i to position the daily in the context of the brazilian press during that period

Key-words: Brazilian press, Frondizi Government, Jornal do Brasil.

Brasil e Argentina ocupam papel de destaque na cena política sul-americana.

Em torno da metade do século XX, em ambos os países, devido a uma série de processos históricos, foi possível a emergência de propostas desenvolvimentistas, que almejavam lograr a modernização nacional e, de certa forma, a postulavam uma posição hegemônica na América do Sul. Portanto, as relações, tanto no que é alusivo às disputas como às cooperações, entre os dois países são referenciais importantes para a compreensão dos processos históricos da região e de suas próprias realidades. Nesse sentindo, as representações mútuas envolvendo brasileiros e argentinos são um importante elemento para uma leitura tanto das relações oficiais, quanto das disputas entre os dois países, como destaca Helder da Silveira:

Brasil e Argentina representam-se mutuamente (...) como os países mais poderosos no cenário sul-americano e, eventualmente, como polos de disputas pela supremacia estratégica em tal espaço. Nessa perspectiva constroem-se, nos círculos diplomáticos, na grande imprensa e em

1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS.

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outras esferas de produção discursiva, representações de identificações constantes em ambos os países relativa a eventos ou cursos de longo prazo de suas respectivas ordens socieconômicas e políticas internas. (SILVEIRA, 2006)

Assim, intencionamos defender a ideia de que a constituição de uma interpretação sobre a política argentina foi um notório caminho para a construção de interpretações sobre o Brasil, sobretudo entre os veículos midiáticos. Dessa maneira, é possível argumentarmos que os meios de produção discursivo brasileiros tiveram nos eventos platinos não apenas um ponto de referência; diferentemente da repercussão daquilo que ocorria na África, na Europa e nos Estados Unidos, os significados elaborados a partir da leitura dos acontecimentos argentinos são um eixo da elaboração da própria política nacional. Esse protagonismo das imagens sobre a Argentina se deve pelo fato de os dois países apresentarem uma série de processos análogos, interesses comuns e mesmo a proximidade geográfica.

Assim sendo, levando em consideração a importância desse tipo de representação recíproca, o presente trabalho tem por objetivo analisar a atuação da grande imprensa do Rio de Janeiro, através do exemplo do Jornal do Brasil, durante o período parlamentar brasileiro (1961 – 1963). Nosso foco será os discursos produzidos referenciados na deposição de Arturo Frondizi, em março de 1962. Nesse sentido, procuramos compreender, até que ponto, esses significados podem ter se constituído como uma ideologia. 2

1. A trama política na Argentina e no Brasil

Uma das características da cena política brasileira no começo dos anos 1960 foi a acentuação das disputas entre os atores políticos nacionais. Por meio da inserção nas distintas esferas que compunham a sociedade brasileira, esses agentes exerceram participação nos embates que protagonizaram o período. O Estado, os partidos políticos, a produção acadêmica e a cultural se caracterizaram como sendo alguns desses campos de disputa e, por dentro deles, os grupos que compunham essa trama procuraram sustentar uma atuação no fim de defender os seus interesses.

Dentre todas as possíveis arenas onde essas disputas se desenvolveram, a grande imprensa se caracterizou como um dos mais destacados, no qual esses embates se desencadearam através de diversas estratégias. Estas variaram desde a legitimação até o expurgo de modelos, ideias, grupos e indivíduos. Entendemos como a “grande imprensa”

2 Entendemos como ideologia o uso de formas simbólicas e do sentindo atribuído a essas com o objetivode elaborar e reforçar determinadas relações de poder. Segundo John Thompson “Fenômenos ideológicossão fenômenos simbólicos significativos desde que eles sirvam, em circunstâncias sócio-históricasespecíficas, para estabelecer e sustentar relações de dominação”. (THOMPSON, 2002. p. 75-76.)

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como um espaço constituído pelos jornais diários de grande circulação, dirigidos ao conjunto da sociedade e não para as categorias sociais e profissionais específicas. Em um período onde a televisão ainda se firmava como veículo de “comunicação de massa” e o rádio era voltado para o entretenimento, o principal meio por onde se vinculavam as discussões em torno da política e a formação de opinião eram os grandes jornais.

Nesse contexto, a imprensa carioca possuía notoriedade, em virtude, principalmente, do fato de o Rio de Janeiro ter sido durante longo período a capital do país e, uma vez que não havia um sistema de informações de âmbito nacional, os jornal da antiga capital federal adquiriram grande importância dentro do contexto brasileiro (MARTINS, 2006). As mídias atuam dentro das sociedades modernas como um espaço pelo qual se vinculam formulações discursivas, que podem vir a atuar, através da mobilização de seus significados, no fim de estabelecer e sustentar relações de dominação. Os periódicos, por meio de sua esfera discursiva (a grande imprensa), são notórios atores políticos, sendo em muitas oportunidades protagonistas dos embates que envolvem a política nacional. 3

Dentro dessas perspectivas, no seguimento desse artigo, iremos conduzir a análise da atuação do Jornal do Brasil através de sua produção discursivo-ideológica em torno da repercussão dos acontecimentos que envolvem a deposição de Arturo Frondizi, em março de 1962. A seguir iremos conduzir breves ponderações sobre a situação política argentina na época com o fim caracterizar os acontecimentos que serviram de subsidio para a atuação discursiva analisada nesse estudo.

***

As circunstâncias que marcaram a eleição de Arturo Frondizi em 1958 foram especiais. Foi a primeira vez que a sociedade argentina foi às urnas para eleger um presidente após a queda de Juan Domingo Perón e existiam muitas expectativas com os resultados do pleito. O êxito dos radicais intransigentes nessas eleições em muito se deveu a aliança firmada com os segmentos peronistas, que foram excluídos do processo eleitoral por meio da proscrição do partido. 4 As políticas governamentais do governo Frondizi estiveram embasadas pela influência do pensamento de cunho nacionalistas e desenvolvimentista, do qual o próprio presidente era um dos grandes expoentes na Argentina. O objetivo era superar as mazelas que assolavam o país através da

3 A problemática onde os veículos de comunicação são entendidos como atores sociais é bastante remota e abordada sobre diversos referenciais. Ao longo dos anos 30 e 40 surgiu uma série de formulações teóricas sobre os papéis da mídia nas sociedades modernas. Um primeiro exemplo pode ser verificado dentro daquilo que é chamado de comunication research, baseadas na ideia do estimula e ação (theory bullet e os estudos em comunicação da chamada teoria administrativa). Posteriormente surgiram outras correntes, mesmo por fora da comunication research, como, por exemplo, a Escola de Frankfurt (Adorno Horkheimer) e a Sociologia da Comunicação (Bourdieu e Champagne).

4 Para ver mais sobre o contexto que envolve a deposição de Perón e a ascensão de Frondizi consultar: POTASH, 1980; SZUSTERMAN, 1998; ROMERO, 2006; e SAN ROMAN, 2009.

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industrialização, que tinha como condição a melhoria da infra-estrutura, sobretudo no que era referente à base energética. 5

Contudo, as constantes crises políticas marcaram o período em que Frondizi esteve à frente do governo, ligadas a sua relação com o peronismo e com os setores conservadores das Forças Armadas, os chamados gorilas. Por um lado, Perón e seus partidários exigiam a sua reinserção a político-partidária, ponto esse que sustentou a aliança entre peronistas e frondizistas. Por outro lado, mesmo tendo oficialmente se retirado da política com as eleições de 1958, os militares ligados à Revolución Libertadora procuravam sustentar o seu legado, ou seja, a proscrição do peronismo. (POTASH, 1980; SZUSTERMAN, 1998)

O derradeiro deslace ocorreu após o final da reunião da OEA em Punta del Este, em janeiro de 1962, onde o país se absteve na votação que decidiu a expulsão de Cuba

do organismo. A repercussão da postura do corpo diplomático argentino na reunião nos meios militares foi negativa, o que tornou a situação delicada para Frondizi. Esse novo ponto de atrito entre os militares e o governo Frondizi ocorreu às vésperas de um evento importante para a política argentina. (SZUSTERMAN, 1998) No dia 18 de março ocorreram eleições onde seriam escolhidos aqueles que iriam compor as duas câmaras legislativas nos próximos anos e os novos governadores das principais províncias do país. Essas eleições tinham um caráter especial, pois pela primeira vez desde a queda de Juan Domingo Perón as lideranças peronistas estavam autorizadas a se candidatarem a cargos públicos através de uma legenda própria. (POTASH, 1980)

Entretanto, todas as atenções estavam voltadas para a eleição na província de

Buenos Aires, a mais importante do país, que representava algo semelhante a uma segunda presidência. O resultado do pleito foi a esmagadora vitória dos peronistas, que não somente passaram a deter maioria nas duas câmaras legislativas, como foram vitoriosos em cinco províncias, dentre as quais a citada Buenos Aires, onde um dos

principais dirigente peronista e aliado de Perón, o líder sindical Andrés Framini, foi

eleito.Nos dez dias seguintes, a crise atingiu imensas proporções. A primeira iniciativa do

governo para amenizar a situação foi a de decretar a anulação das eleições, como forma de procurar acalmar os círculos militares. Mesmo com a intervenção federal nas províncias onde os peronistas triunfaram, as forças armadas insistiam que a única solução viável seria a renúncia do primeiro mandatário. Mesmo com a mediação de Pedro Eugenio Aramburu, na tentativa de lograr uma solução negociada, no dia 29 de março ocorreu um golpe liderando pelos comandantes das três armas que depôs o presidente Frondizi. (POTASH, 1980)

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5 Arturo Frondizi foi um destacado intelectual e escreveu diversas obras refletindo sobre a situação nacional argentina. Suas ideias seguiam um “caminho do meio” entre o pensamento tradicional, ligado à agro-exportação, e um nacionalismo exacerbado praticado pelos peronistas. (SAN ROMAN, 2009; SZUSTERMAN, 1998).

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O contexto sócio-histórico estruturado 6 onde se inseriu essa atuação esteve

caracterizado pelos reflexos da “solução parlamentarista” brasileira. A renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, desencadeou um amplo embate que abarcou diversos

setores da trama política nacional. Perante a má sucedida tentativa de golpe de Quadros, a questão sucessória passou a ser o centro das atenções. O seu sucessor constitucional, o

vice-presidente João Goulart, não era bem visto entre os setores da sociedade relacionados com o pensamento conservador, que em um movimento para impedir sua posse, articulou um golpe através dos ministros militares. (MONIZ BANDEIRA, 1997)

Em decorrência desse movimento, iniciou-se uma ampla mobilização de oposição ao golpe e de defesa da manutenção da legalidade. Não havia uma homogeneidade entre aqueles que se postaram pela posse de João Goulart. Enquanto uns estavam interessados em conceber apoio ao vice-presidente, outra parte dos envolvidos no movimento pela legalidade tinha como motivação a defesa da constitucionalidade do regime político brasileiro. (FERREIRA, 2003a) Mesmo entre os defensores da legalidade o nome de Jango não era uma unanimidade e existia o receio de que sua ascensão representasse o acesso de grupos radicais de esquerda a uma posição privilegiada no poder.

Perante essa situação, por dentro do próprio movimento pela legalidade surgiu a opção pela “solução parlamentarista”. Os seus proponentes objetivavam, ao mesmo tempo, manter a vigência da constitucionalidade, bloqueando a ação golpista, e não conceder amplos poderes aos setores considerados “radicais”. Mesmo com seus aliados insistindo para que reivindicasse os poderes plenos, Goulart aceitou as condições, tendo em mente que essa seria uma oportunidade tanto de desarmar seus adversários, quanto de ampliar a sua base política. Argelina Figueiredo descreve da seguinte maneira a instituição do parlamentarismo brasileiro:

“O sistema parlamentarista, implantado às pressas, visava, na verdade, impedir que ele [Goulart] exercesse seus poderes. Sob um parlamentarismo “híbrido”, o govêrno não tinha instrumentos que dessem a ele eficácia e agilidade”.

Portanto:

Tratou-se de uma solução que resultou de uma ampla coalizão para impedir o golpe militar, isolando os grupos civis e militares que não se conformaram com a sua posse, garantido, assim, as instituições democráticas. Contudo, a coalizão democrática, formada por diferentes correlações de forças, não chegou a um consenso no sentindo de manter as regras constitucionais, sobretudo na questão da manutenção do presidencialismo . A solução de compromisso, portanto, foi a restringir os poderes de Goulart com o parlamentarismo, impedindo o golpe, mas também frustrando os grupos nacionalistas e de esquerda. (FIGUEIREDO, 1993)

6 A noção de contexto socio-histórico estruturado apóia-se na obra de John Thompson (THOMPSON, op.cit. pp.72 – 90) e inspira-se igualmente na noção de campo de integração social (BOURDIEU, 1992. P.183 – 202).

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Como foi visto, o início dos anos 60 representou uma prévia dos conturbados acontecimentos que se desenrolariam nos dois países durante a década. O advento das “soluções autoritárias” de 1964, no Brasil, e de 1966, na Argentina, 7 foram resultantes dos embates políticos que se estendiam desde o final da Segunda Guerra, onde grupos antagônicos disputavam o direito de impor suas diretrizes políticas. Não sendo possível chegar a um consenso, o resultado foi o conflito direto entre ambas as partes.

Portanto, a “crise da legalidade” e a “deposição de Frondizi” podem ser entendidas como eventos que antecederam a emergência das ditaduras militares nos dois países e a compreensão da correlação de forças e a atuação dos sujeitos envolvidos nesses eventos é um caminho pertinente para a compreensão desses processos. O embate político não se resumiu à movimentação de tropas e de alianças políticas; as “lutas simbólicas” foram, igualmente, notórias na constituição dessas tramas.

Ao longo dessa conjuntura foram elaboradas imagens que visaram a “interpretar” a essência desses acontecimentos. Os diversos produtores discursivos – com destaque para a grande imprensa – rivalizaram pela atribuição de sentidos às “formas simbólicas” e na sua mobilização. Esse procedimento é o que chamamos de “ideologia”. Portanto, estamos preocupados com as maneiras como esses produtores discursivos se utilizaram dessas imagens, dentro de um contexto socialmente estruturado, no objetivo de estabelecer ou sustentar posições de poder na trama política brasileira.

2. O conluio conservador e a ameaça à democracia

Quando se tratou de pensar as origens da “crise argentina”, o Jornal do Brasil ofereceu uma “racionalização” 8 era parte de uma crise muito mais ampla, que ameaça toda a América Latina. A descrição da cena sulamericana, oferecida pelo período do Rio de Janeiro, estaria caracterizada pelo embate entre interesses distintos: Por um lado, as denominadas “elites tradicionais” e, por outro, lideranças políticas que estariam engajadas em um amplo projeto de modernização das nações latino-americanas. Dentro da lógica apresentada, esses grupos, que surgiam em oposição aos interesses oligárquicos, tinham por objetivo superar essas antigas relações, a fim de lograr para o seus países um cenário de desenvolvimento socioeconômico.

Nessa leitura, o governo Frondizi foi visto como uma dessas forças em prol da modernização, conduzindo importantes reformas na Argentina, como pode ser visto no

7 Sobre o autoritarismo no Brasil e na Argentina ver mais em: ROUQUIÉ, 1984 e O´DONNELL,1986.

8 Quando nos referimos à “racionalização” entende-se o conceito proposto por Thompson, no qual essase trata de “uma estratégia da ideologia, através da qual o produtor de uma forma simbólica constróiuma cadeia de raciocínio que procurar defender, justificar, um conjunto de relações ou instituiçõessociais, e com isso persuadir uma audiência de que isso é digno de apoio”. (THOMPSON, 2002, p.82-83.)

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seguinte trecho de peça editorial:

A Argentina realizou, nos últimos anos, importantes reformas econômicas. Foi pôsto em prática um programa de austeridade, que importou a elevação brutal do custo da vida; o país abriu mão de sua política nacionalista no tocante a petróleo e, com a admissão de capitais e técnicas estrangeiros, atingiu o grau de autosuficiência, passando mesmo à eventual exportador de óleo cru e gás, aliviando a pressão de suas importações a ampliando suas fontes de renda em divisas. Lançou se num processo de industrialização, com êxito bastante, usando a cooperação de capitais e técnicas estrangeiras. 9

As denominadas “elites tradicionais” foram descritas de maneira negativa pelo jornal analisado. O “expurgo” 10 desse grupo foi constituído através de uma estratégia fundada na atribuição de características negativas, como, por exemplo, “reacionária” e “oligárquica”. Por sua vez, quando foi feita menção aos “agentes modernizantes” – no caso argentino o radicalismo intransigente – ocorreu uma descrição positiva de suas ações no contexto local. O processo de industrialização, conduzido por Frondizi, que teve como seu carro chefe a autonomia na produção petrolífera, foi entendido como sendo o promotor do desenvolvimento nacional, que acarretou progresso para à nação.

Ao descrever os porquês atribuídos pelo discurso do jornal ao êxito do projeto frondizista, nota-se que a questão do amálgama entre os interesses nacionais e o capital estrangeiro teria sido a grande virtude desse projeto. O JB apontou que o governo conseguia superar uma situação crítica percorrendo um caminho que não fora seguido antes por nenhum dos grupos políticos que estiveram no poder, o que resultou em grande benefícios à economia argentina:

O esquema de Frondizi produziu resultados: deu maior flexibilidade aos trabalhos de pesquisa, criou condições para a emulação e competição entre grupos. Em têrmos práticos, os gastos da Argentina com a importação de petróleo baixaram de 28 milhões de dólares, em 1958, para 97 milhões, em 1961. Nesta altura, as perspectivas são de que possa a Argentina, a curto prazo, não só lograr a auto-suficiência, como também passar à condição de exportadora de petróleo cru.11

Entretanto, de acordo com o discurso analisado, essa política de modernização nacional não era bem vista pelos setores conservadores da sociedade argentina. Segundo essa “racionalização”, os interesses desses grupos estavam ligados às velhas estruturas, ou seja, vinculados à produção primária para a exportação. Portanto, as políticas que tinham por intuito consolidar um processo de industrialização na Argentina se opunham

9 “Revolução e economia”. Jornal do Brasil, 30 de março de 1962. p.6.

10 Quando nos referimos a “expurgo” estamos utilizando uma categoria do discurso ideológico que, segundo John Thompson, “essa estratégia envolve a construção de um inimigo, seja ele interno ou externo, que é retratado como mau, perigoso e ameaçador e contra o qual os indivíduos são chamados a resistir coletivamente ou expurgá-lo. (THOMPSON, 2002, p. 87).

11 “Petróleo na Argentina”. Jornal do Brasil, 12 de Abril de 1962. p.6.

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aos interesses particulares dessas elites. Em entrevista concedida ao JB, aquele que foi o “homem forte” do governo deposto, Rogelio Frigerio, sustentou que o problema argentino consistia justamente no embate entre esses projetos antagônicos. Essa não teria sido uma peculiaridade do país platino: em todo o continente seria possível perceber esse conflito e que os “reacionários” estavam se opondo à emancipação dos povos americanos e iam de encontro àquilo que a “Aliança para o Progresso” objetivava:

Essas são as fòrças que olham para o passado e que estão em nosso país, como em tôdas as nações do Hemisfério, nutrindo-se da filosofia oposta à da Aliança para o Progresso, formulada pelo Presidente Kennedy e sustentada por êle, contra a resistência dos reacionários em seu próprio país, se negam a permitir que a garantia da liberdade política só se pode lograr pela imediata elevação dos níveis dos povos do Continente. Frigerio disse que uma minoria predominante nas Fôrças Armadas argentinas está servindo de “braço executor” para a política dos grupos reacionários. Mas os recusa a aceitar a tese de que tal atitude representa o pensamento dessas mesmas Fôrças Armadas. 12

Outro elemento apontado como instigador da crítica desses setores ao modelo desenvolvimentista frondizista foi o alto custo que esse projeto teve para a Argentina. Segundo a explicação oferecida pelo discurso do jornal, ao mesmo tempo em que se privilegiava o desenvolvimento de uma indústria pesada, carecia-se-ia de uma produção voltada aos produtos básicos, que tinham de ser exportados, tendo por consequência um déficit na balança comercial. Para a população, a resultante desse esquema era o aumento brutal do custo de vida, que prejudicava, principalmente, as camadas médias e baixas.

O Jornal do Brasil em diversos momentos, até mesmo em seus editoriais, da visibilidade a essas críticas. O problema do “déficit orçamentário”, segundo os oposicionistas, era decorrente da questão de que a exploração petrolífera era feita por meio de contratos com empresas estrangeiras, que exploravam e forneciam petróleo ao governo em troca de divisas, que, naturalmente, equilibravam a balança comercial do país platino.

Porém, o discurso oficial do jornal, expresso em seus editoriais, rechaça essa interpretação. Pelo contrário, o aumento da produção de hidrocarbonetos em território argentino apresentava-se como a solução do déficit da balança, pois o sucesso do projeto frondizista estava alçando a Argentina, ao contrário do Brasil, à condição de exportadora:

Êsses detalhes [o êxito argentino na produção petrolífera] têm uma certa importância para o Brasil, de vez que, situado numa posição bem menos favorável, continua como importador em potencia a largo prazo, e a Argentina poderá vir a ser um nôvo mercado fornecedor de petróleo cru para as refinarias brasileiras. [grifo nosso]13

12 “Frigerio diz que há petróleo na raiz da crise argentina” Jornal do Brasil, 27 de março de 1962. p.3.

13 “Petróleo na Argentina”. Jornal do Brasil, 12 de abril de 1962. p. 6

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Em outro editorial, essa questão foi complementada da seguinte maneira:

Em têrmos gerais, o déficit orçamentário para 1962 é estimado em 30 ou 40 milhões de pesos. No ano passado, o balanço comercial foi encerrado com um saldo negativo de 450 milhões de dólares. O país tem compromissos a saldar no exterior, entre 1962 e 1965, orçados em 1,5 bilhão de dólares, isto segundo dados do Govêrno deposto, o qual se preparava para negociar ampla consolidação e novos esquemas para tais compromissos. 14

Essa “racionalização” teve ainda respaldo no comentário, em peça editorial, sobre uma declaração do ministro da economia do gabinete de José Maria Guido (o sucessor de Frondizi), Federico Pinedo. Segundo o político argentino, a crise tivera sua gênese no governo Perón, porém foram nos anos de Frondizi que as questões que envolviam a situação precária da economia argentina conheceu sua face mais alarmante. Sobre as iniciativas do novo governo a fim de sanar as mazelas argentinas afirma-se:

Sobre o terreno movediço da crise política lança-se o Govêrno argentino num processo de revisão de sua política financeira, com profundas repercussões nos planos econômico e monetário, interno e externo. Segundo a exposição do Ministro da Economia, Federico Pinedo, tudo remonta à situação herdada do peronismo e as dificuldades com que luta o país ter-se-iam agravado com os rumos seguidos a partir de 1960. Vincula-se aquela situação, posta pela ditadura, à outra, mais recente, estabelecida pelo Govêrno Frondizi, quando foram postas em prática medidas visando ao restabelecimento da realidade econômica, a mais importante das quais no plano de exploração petrolífera, paralelamente com o fomento da industrialização. 15

Mesmo indicando essa deficiência do modelo frondizista, o discurso do jornal partiu em defesa da política econômica do governo deposto. A crítica ao posicionamento do governo Guido, com relação às causas da crise argentina, partiu da ideia de que os êxitos do processo de industrialização estavam sendo sonegados. O periódico analisado indicou que o argumento central na condenação da política econômica foram os gastos em torno da Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF). No entanto, além do progresso que esses investimentos acarretaram para a Argentina, como, por exemplo, o desenvolvimento de certos setores da indústria, em relação à balança comercial era uma questão de equivalências, ou seja, o atual déficit, no final das contas, correspondia àquilo que o país outrora desembolsava com a importação de petróleo, além de ter logrado condições para a vinda de investimentos estrangeiros em larga escala:

Conquanto não tenha sido tomada qualquer providência de estrutura, tudo indica, que a ação dos Yacimentos Petrolíferos Fiscales, mais dia menos dia, será objeto de profunda intervenção. Esta autarquia é apontada como uma das responsáveis pelo pesado déficit orçamentários, desconhecendo-se agora que,graças aos esforços de Frondizi, no particular os gastos da Argentina com

14 “Crise na Argentina”. Jornal do Brasil, 13 de Abril de 1962. p.6.

15 “Crise na Argentina”. Jornal do Brasil, 13 de Abril de 1962. p.6.

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o petróleo, no exterior, baixaram de mais de 300 milhões em 1958 para menos de 70 milhões em 1961. Ignora-se que nos últimos quatro anos entraram na Argentina investimentos estrangeiros estimados em 400 milhões de dólares,em sua grande maioria aplicados na indústria pesada, particularmente nos setores da química, da construção de veículos automotores e na mecânica.16

Portanto, o JB destacou que a Argentina tinha agora uma infra-estrutura, tanto no que era alusivo a transportes como à base energética, que possibilitava a entrada de recursos estrangeiros e no momento da derrubada de Frondizi, estava progredindo nesse sentindo. Importante notar que nos discursos produzidos sobre esse tema, o governo deposto não era posto como “nacionalista”; pelo contrário, uma de suas grandes virtudes teria sido a superação desse, a fim de buscar uma fórmula de desenvolvimento que condissesse com as demandas do país vizinho. Assim, implementou-se esse modelo que tinha por base a internacionalização da economia argentina, abrindo espaço para a cooperação do capital estrangeiro, que se dava tanto por via de investimentos diretos na indústria como por meio da concessão de empréstimos de longo prazo. Teria sido essa situação que possibilitara o sucesso desse modelo. Em artigo escrito especialmente para o Jornal do Brasil, Omer Mont’Alegre sustenta o seguinte sobre o caso argentino:

A atenuação do nacionalismo econômico reabriu as portas do País para o capital estrangeiro, e, de 1958 a 1961, entraram cerca de 400 milhões de dólares, a metade dos quais procedentes dos Estados Unidos, para investimentos em indústrias básicas. Foram mais beneficiadas as de produtos químicos (118 milhões), a de automóveis (97 milhões) e a de metalúrgia (44 milhões). Com a participação de empréstimos internacionais a longo prazo e investimentos de capitais privados estrangeiros formou-se um parque siderúrgico com capacidade prevista para 2,5 milhões de toneladas de aço até 1965. Foram postos em marcha projetos de expansão da capacidade instalada de geração de energia elétrica, visando uma meta de 60% mais até 1965. 17

Esse era um projeto de modernização, que, apesar dos problemas que se geraram em torno de sua aplicação, foi assinalado como um exemplo positivo, tendo por base o princípio da autonomia. A sua independência, segundo Frigerio, em sua já citada entrevista, podia ser exemplificada no fato de o governo argentino ter buscado negociar os contratos de exploração petrolífera não só com as empresas detentoras do monopólio internacional, mas pelo contrário, ter buscado estabelecer acordo com investidores à margem desse monopólio. Essa virtude teria sido uma afronta aos interesses monopolistas; a crise vir em um momento como esse não seria coincidência, mas uma reação a essa política. Frigerio sustentara em sua entrevista que: “é por demais sintomático (...) que no momento em que 16 “Crise na Argentina”. Jornal do Brasil, 13 de Abril de 1962. p.6.

17 “Crise econômica ameaça a Argentina de reversão no processo industrial” Jornal do Brasil, 15 de abrilde 1962. p. 17..

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o Govêrno que reforça seu programa de exploração petrolífera e gasífica com emprêsas americanas, italianas e francesas que não fazem parte do monopólio internacional, se provoca uma das crises mais profundas que o país já conheceu.” 18

Não somente de fatores econômicos consistia a modernização conduzida pelo governo Frondizi. Segundo o JB, o projeto de consolidação da Argentina como um país moderno também pressupunha sanar outras enfermidades do seu sistema político, entre elas, a questão do peronismo. Esse teria sido outro ponto que ocasionou desagrado entre os grupos que compunham os “setores conservadores”. A maneira encontrada para lidar com tal situação veio em oposição à adotada pelo governo anterior: ao invés de buscar “eliminar” o peronismo através de sua exclusão do jogo político, os radicais intransigentes teriam partido da tese de que essas massas deveriam ser reincorporadas ao jogo eleitoral, uma vez que se tratava de um movimento político que mobilizava um amplo eleitorado.

Portanto, para o êxito do projeto frondizista era também crucial a reinserção dos quadros peronistas na vida política. Dentro dessa lógica, enquanto esses quadros estivessem fora do jogo eleitoral, nunca a democracia funcionaria plenamente, uma vez que o termo pressupõe “governo de todos” e o peronismo era parte considerável do todo da sociedade argentina. No entanto, segundo o jornal analisado, Frondizi foi infeliz na tentativa de impor essa visão às oligarquias de seu país:

Na Argentina, infelizmente, Frondizi não conseguiu impor os seus pontos-devista. A tese de integração, que visava à reincorporação pacífica dos peronistas na vida política do país, foi vetada, sabotada, esfarinhada por uma minoria de ultra-montanos que contava com o apoio dos chefes militares. Emvão, o Presidente Frondizi tentou convencer os conservadores e as Fôrças Armadas de que o programa de desenvolvimento econômico era mais importante do que as atitudes emocionais em política. 19

O jornal analisado constituiu uma ampla “racionalização”, onde os chamados “setores oligárquicos”, juntamente com as Forças Armadas, formavam um “conluio reacionário” contra a modernização argentina. Uma vez que houve a caracterização positiva do modelo frondizista, descrito como promotor do progresso, a atuação política dessa oposição “conservadora” passou a representar mais do que um mero antagonismo, mas uma afronta ao desenvolvimento nacional argentino. Esses grupos estariam colocando obstáculos à prosperidade do todo em prol dos seus interesses particulares, ligados às estruturas tradicionais e o comércio com o estrangeiro.

Em torno da constituição da “racionalização” da existência de um “conluio conservador”, o JB indicou que o exemplo argentino consistia em um alerta a todo

18 “Frigerio diz que há petróleo na raiz da crise argentina” Jornal do Brasil, 27 de março de 1962. p.3.

19 “A Argentina em perigo”. Jornal do Brasil. 20 de março. p. 6.

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o continente. Não era somente “pela esquerda” que emergiam obstáculos para a consolidação da democracia. A resistência de Frondizi à tentativa de golpe apontou justamente para esse tema. Existia, portanto, segundo o discurso do jornal, um amplo movimento, oriundo da “direita”, contra as instituições livres na América:

Frondizi está prestando um inestimável serviço a todos os democratas da América Latina. Cada minuto de resistência, na Argentina, é precioso para todos nós – especialmente para aquêles que, por vêzes com a melhor das intenções, julgaram que a democracia, atualmente, nas Américas e no mundo, é ameaçada apenas pelo comunismo, pelo fidelismo, pelos grupos da chamada extrema esquerda. 20

Assim, o jornal analisado ressaltou a existência desse potencial “autoritário” na direita, “conservadora” e “reacionária”. Esse era o caráter da conjuntura do golpe de Estado sofrido por Frondizi; uma reação dos setores conservadores argentinos, ligados à sociedade tradicional, contra as reformas propostas pelo governo. Deste modo, elaborou-se uma “racionalização” que visou a alertar para a existência de um potencial “autoritário” nos setores “conservadores”. Esse não era um risco inerente apenas aos grupos à esquerda do espectro político. Portanto, os defensores da democracia deveriam ter ciência de que as ameaças à ordem legal poderiam emergir também à direita do espectro político:

A trama reacionária, na Argentina, ficou exposta em tôda a sua brutalidade, a partir do dia 18 de março. E que os conspirados têm apoio no estrangeiro, não se pode negar. Ontem, publicamos entrevista ao assessor mais chegado a Frondizi, o economista industrial Frigerio, que mostrava que há um conluiode monopólios internacionais, anticomunistas profissionais, políticos condenados ao ostracismo, latifundiários e importadores empedernidos e militares desorientados – um conluio contra o futuro da Argentina. 21

3. Considerações finais

Dentro de uma possível leitura, os significados constituídos em torno das questões que envolveram a derrubada de Arturo Frondizi atuaram em duas vias. Um dos seus vieses foi conduzido através das leituras sobre o modelo econômico frondizista, representado, sobretudo, pelos avanços atribuídos na questão petrolífera. O discurso do jornal atribuiu um caráter positivo a um modelo de industrialização baseado em dois

20 “A hora final”. Jornal do Brasil, 28 de março de 1962. p.6.

21 “A hora final”. Jornal do Brasil, 28 de março de 1962. p.6.

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aspectos: a associação com o capital estrangeiro e a ação interventora do Estado. Essa foi uma época em que no Brasil se debatia, em diversas esferas, os rumos

que deveria seguir a industrialização do país. Em torno dessa problemática, formaram-se diversas interpretações, que tinham nos seus extremos, por um lado, o projeto de industrialização nacionalista e de subordinação do capital internacional aos interesses nacionais e, por outro, aqueles que defendiam eram contrários à intervenção estatal e a industrialização. Em meio a um conturbado contexto, onde a “solução parlamentarista” estava oferecendo seus primeiros resultados, em meios a uma visita do presidente João Goulart a John Kennedy, o Jornal do Brasil, através do exemplo argentino, advogou pela opção por um “caminho do meio” entre o nacionalismo radical e o liberalismo, onde o Estado seria o gestor da economia, mas em parceria com o capital estrangeiro.

O segundo viés dessa ideologia foi conduzido a partir da “racionalização” de uma dicotomia, onde, na América Latina, havia dois grupos em oposição: os defensores do desenvolvimento, que apenas poderia ser atingido por meio da modernização das forças produtivas, em oposição ao “conluio conservador”, do qual faziam parte as oligarquias, que com o apoio de setores expressivos das “Forças Armadas”, boicotavam tudo aquilo que ia contra os interesses agro-exportadores, no caso, a emergência da industrialização.

Em toda a América Latina, dentro da lógica apresentada, as instituições democráticas estavam em crise. Quando esses “setores conservadores” viam seus interesses ameaçados, por intermédio da aliança com os militares, derrubavam governos democraticamente eleitos e, quando necessário, impunham ditadores. É curioso observar um veículo da comunicação apontado tradicionalmente como um defensor do conservadorismo e agrarista sustentando essas ideias. 22 Por mais que se esteja falando apenas de um lado da produção discursiva do JB – a repercussão da política argentina – e não se analise os seus posicionamentos em uma perspectiva mais ampla, no mínimo, temos aqui motivos para sugerir uma crítica a essa interpretação.

Portanto, através do referencial argentino, o Jornal do Brasil constituiu uma ideologia que visava “expurgar” os chamados setores conservadores ligados à agro-exportação, defendendo a necessidade de buscar a modernização das forças produtivas do país. A Argentina era, dessa maneira, o exemplo a ser seguido e, dentro de uma possível leitura, é possível afirmar que nesse momento, frente às circunstâncias que envolveram a “solução parlamentarista” no Brasil, o JB se posicionou favorável à vigência das instituições democráticas e a um projeto planejado e intervencionista de industrialização via Estado.

De maneira implícita, dentro dessa interpretação, a própria crise da legalidade teria sido um resultado desse esquema e, portanto, era preciso que os brasileiros estivessem atentos a preparados para a defesa da democracia e garantissem o apoio necessário

22 MONTALVÃO, Sérgio e FERREIRA, Marieta de Moraes In: ABREU, Alzira Alves de. (org) Dicionário histórico-biográfico brasileiro: pós-1930. Rio de Janeiro: FGV, 2001.

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para a implementação de políticas que resultassem na industrialização o que, ao mesmo tempo, pode ter sido uma ideologia de apoio ao governo Goulart, que se propunha a isso, e de alerta às suas ligações com um nacionalismo exacerbado, que também era negativo aos interesses nacionais.

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Sublegenda, Rivalidade e Cooperação: um estudo sobre as rivalidades partidárias no interior da ARENA gaúcha nas

eleições riograndenses - (IJUÍ) - (1968/1982)

dirceU aNdré Gerardi (PUc/rs)[email protected]

raFael macHado madeira (PUc/rs)[email protected]

Resumo: O AI-2 imposto pelo regime militar extinguiu os partidos do período de 1945-1964, porém não retirou dos quadros partidários a identificação com estes partidos e suas lideranças. No Rio Grande do Sul, a aglutinação dos quadros políticos nos novos partidos parece obedecer a uma polarização Pró e Anti-PTB. Os pró ingressam no MDB, e os anti-PTB na ARENA, proporcionando a continuidade da disputa do período anterior. No âmbito municipal, a sublegenda viabilizou a continuidade dos diferentes grupos/famílias políticas e possibilitou a competição entre os próprios grupos da ARENA e do MDB no estado.

Abstract: The AI-2 imposed by the military regime extinguished the 1945-1964´s political parties, however it did not remove the identification that politicians used to have with those political parties and its leaderships.In Rio Grande Do Sul, the pro and anti-PTB cleavage seems to have structured the formation of the new parties. The pro engaged in MDB and anti-PTB, in ARENA, keeping basically the same pattern of competition of the previous period. At the municipal level, sublegenda guaranteed the autonomy of the different political groups, even the competition within ARENA and MDB.

“Partido político de âmbito nacional, de apoio ao governo, fundado em 4 de abril de 1966 dentro do sistema de bipartidarismo instaurado no país após a edição do Ato Institucional nº2 (27/10/1965), que extinguiu os partidos existentes, e do Ato Complementar nº4, que estabeleceu as condições para a formação de novos partidos. [...] O sistema criado foi bipartidário sobretudo porque, para existir, cada movimento político deveria contar com quase 1/3 dos congressistas existentes, afora o fato de que os representantes do povo tiveram, por lei, 45 dias para organizar os novos partidos.O bipartidarismo foi, assim, artificialmente implantado em virtude de um duplo processo de determinação. Por um lado, a intenção governamental de criar um partido suficientemente forte para assegurar respaldo parlamentar e, por outro, a acomodação dentro de cada partido de políticos de posições diversificadas”. (Abreu, 2001; 112).

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Introdução1.

Na primeira definição da ARENA encontrada em Abreu (2001), pode-se identificar claramente uma das principais características do partido encarregado de dar sustentação política ao regime militar brasileiro: o fato do mesmo ter sido formado por atores políticos de praticamente todas as cores partidárias existentes no período anterior, muitos dos quais eram rivais ferrenhos entre si no âmbito municipal e estadual1. Dessa forma, a ARENA (assim como o MDB) foi marcada, em nível nacional, pelo que parte da literatura especializada denominou como um “artificialismo” muito grande (Kinzo, 1988), que refletia esta incorporação (em grande parte dos casos indiscriminada) de atores políticos das mais diversas cores partidárias no interior do partido. De acordo com Krieger (1976) e Filho (1975) a estratégia do regime de criar um grande partido de apoio ao governo militar implicou na formação desta estrutura significativamente heterogênea. Um exemplo destes problemas constituiu-se justamente em como resolver o impasse na escolha dos candidatos do partido nas eleições majoritárias (senador e prefeito municipal) em todo o país.

Sobre este aspecto, o testemunho do ex-udenista Mem de Sá, arenista e também ministro durante o governo Castelo Branco, narra com exatidão as dificuldades encontradas na época para resolver essa questão:

“O caso mais difícil... era o da conciliação dos interesses eleitorais e partidários entre remanescentes das agremiações, adversários forçosamente reunidos, sobretudo entre os ex-pessedistas, os ex-udenistas, e até numerosos ex-trabalhistas. Como metê-los todos na mesma canoa e, especialmente, como escolher, dentre eles, os candidatos para as eleições para o ano seguinte, 1966?” (Kinzo:1988; 30).

Assim, no processo de seleção de candidatos, a ARENA deparava-se com um agente complicador que, pode-se supor, influenciou decisivamente no grau de coesão interna do partido. Devido ao fato do mesmo ter se formado a partir da confluência de vários dos partidos anteriormente existentes (principalmente da UDN, PSD, PL, PDC e PRP), uma das principais dificuldades postas no momento da definição das candidaturas, era a da acomodação destas antigas correntes partidárias no interior do novo partido.

Neste cenário, pode-se supor a existência, no interior da ARENA, de uma disputa e uma relação de forças bastante intensa entre os diferentes grupos pelo domínio, não só dos cargos eletivos, mas também das nomeações e dos cargos de comando interno do partido (diretórios municipais e estaduais). Uma das formas encontradas para amenizar

1 Sobre este aspecto em três dos principais estados brasileiros ver, por exemplo, com relação à Bahia: Sampaio (1960, 1964, 1966 e 1967-1968) e Guimarães (1976). Com relação à São Paulo: Ferreira (1960 e 1964), Malheiros (1961), Dallari (1967-1968 e 1976) e Sampaio (1982). E, por fim, com relação ao Rio Grande do Sul: Azevedo (1960 e 1964). Para se restringir (à exceção do livro de Sampaio sobre o PSP paulista) somente aos artigos publicados na Revista Brasileira de Estudos Políticos. Sobre este aspecto em nível nacional, ver: Kinzo (1988) e Meneguelo, Mainwaring e Power.(2000).

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esses conflitos e viabilizar a manutenção da unidade partidária, por mais precária que ela tenha sido inicialmente, foi a instituição das sublegendas nas eleições majoritárias (para senador e para prefeito, nas cidades em que ocorreram eleições). Esse mecanismo visava justamente a solucionar o problema da representação dos diferentes grupos nas eleições, permitindo o lançamento de até três nomes por partido em cada disputa eleitoral, possibilitando assim que as facções internas (representadas, via de regra, pelos remanescentes dos antigos partidos) se sentissem contempladas, podendo lançar suas respectivas lideranças na disputa.

Um partido altamente fragmentado internamente e tendo que conviver e buscar conciliar da melhor forma possível rivalidades profundamente arraigadas entre seus membros e seus respectivos grupos. Esta, sem dúvida, constitui-se em uma das características mais marcantes da ARENA em nível nacional, e perpassa, desde a sua origem, toda a estrutura interna do partido.

Apesar deste caráter artificial atribuído à ARENA e MDB em nível nacional pela literatura especializada, no Rio Grande do Sul esta artificialidade não se reproduziria com a mesma intensidade uma vez que a dinâmica político-partidária já seria, tradicionalmente, marcada por uma bipolarização muito forte tanto em nível estadual - Xausa e Ferraz (1981) - como também no âmbito municipal - Trindade (1981) e Trindade e Noll (1991). De acordo com os autores:

“A extinção dos partidos imposta pelo Ato Institucional nº2, afora o esperado impacto sentimental, não trouxe ao estado nenhuma alteração de relevância nos alinhamentos políticos já existentes. Ao contrário da maioria dos demais estados, onde a ARENA e o MDB aglomeravam grupos artificiais ou heterogêneos, no Rio Grande serviram apenas para confirmar e oficializar arregimentações já fixadas firmemente nas eleições de 1962, e que em 1966 foram substancialmente as mesmas, como seriam de resto sem a extinção dos partidos”. (Trindade apud Xausa e Ferraz, 1991, p. 82).

Dessa forma, no Rio Grande do Sul, o sistema bipartidário imposto pelo regime militar em 1965 teria, tão somente, se sobreposto à configuração e à dinâmica previamente existentes no estado. O fato dos partidos conservadores-liberais (o anti-PTB)2 e dos partidos populistas (notadamente o PTB) constituírem-se, respectivamente na base da ARENA e do MDB gaúchos é aqui tomado como um indicador do impacto reduzido que a instauração do bipartidarismo teve no estado, em função da sua dinâmica partidária e eleitoral já polarizada.

Além disso, o fato dos partidos formadores da ARENA no estado possuírem uma trajetória comum de alianças, tanto eleitorais como administrativas, que quase sempre se refletia também em uma atuação unificada na Assembleia Legislativa (enquanto governo e enquanto oposição) pode ser tomado aqui como uma das causas que explicariam

2 Ver Trindade e Noll, 1991.

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esse caráter menos artificial da ARENA gaúcha em relação às demais seções estaduais do partido.

Um dos principais objetivos do presente trabalho é o de contrastar estas duas perspectivas, analisando a dinâmica da ARENA gaúcha com base justamente na relação entre os grupos remanescentes dos antigos partidos existentes no período multipartidário anterior. O fato de a dinâmica eleitoral (principalmente para o governo do estado) entre 1945-1964 ter se caracterizado pela disputa entre dois blocos claramente definidos permite afirmar que não havia clivagens/disputas internas a cada grupo? É possível afirmar que a passagem do “anti-PTB” para a ARENA, significou apenas a unificação em uma mesma legenda de lideranças que já atuavam na prática como um único partido? O presente trabalho visa a problematizar esta interpretação através da análise do padrão de relação entre os diversos grupos que formam a ARENA no estado do Rio Grande do Sul.

Para isto, parte-se do pressuposto da existência de duas lógicas eleitorais distintas (uma nas eleições estaduais e outra nas municipais). Neste cenário, pode-se supor que as rivalidades locais entre os remanescentes dos antigos partidos, que eram possíveis de serem sublimadas quando concorriam em aliança nas eleições estaduais, passavam a influenciar e a tencionar os grupos a defenderem a utilização do recurso da sublegenda, nas eleições à prefeitura municipal, dando espaço à manutenção das disputas entre as lideranças que formavam a ARENA. Para avaliar este aspecto, além da existência, ou não, destas rivalidades no interior do partido em cada município, deve-se considerar também a força do próprio MDB, uma vez que este fator (pode-se supor) influenciou na estratégia utilizada pelo partido governista em cada eleição. Outra dimensão relevante para a análise constitui-se em tentar mensurar até que ponto a divisão dos candidatos arenistas em sublegendas foi fruto de disputas e rivalidades internas e até que ponto, resultou, simplesmente, da estratégia do partido governista buscando potencializar seu desempenho eleitoral vis-a-vis ao MDB.

Entende-se que o tema proposto por este artigo possui relevância em função da escassez de estudos que tenham como objeto principal de análise, tanto o período bipartidário (1965-1979) como, em particular, a ARENA. No Rio Grande do Sul, particularmente esta análise possui relevância uma vez que a ARENA constituiu-se na base de uma das organizações partidárias mais bem estruturadas no estado (o atual PP – Partido Progressista). Segundo o site do partido, contam com 148 prefeitos, 122 vice-prefeitos3 e 1177 vereadores eleitos4 em 2009.

3 Partido Progressista, diretório regional do Rio Grande do Sul. Prefeito de Minas do Leão é eleito presidente da Associação dos Prefeitos e Vice-prefeitos Progressistas. <http://www.pp-rs.org.br/noticias_int_materia.php?id=1668> acesso: 28 de maio de 2011.

4 Partido Progressista, diretório regional do Rio Grande do Sul. Com mais 3 cadeiras confirmadas em Boa Vista do Cadeado, PP-RS ratifica maior número de vereadores com 1177 eleito. <http://www.pp-rs.org.br/noticias_int_materia.php?id=1488> acesso: 28 de maio de 2011.

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Entende-se também que esta abordagem possui relevância uma vez que a partir da dinâmica identificada ao longo das eleições (estaduais e municipais), será possível mensurar de forma mais precisa o impacto que a instauração do sistema bipartidário teve na dinâmica política do estado. Nesse sentido, a análise exploratória das eleições majoritárias possibilitará mensurar a existência de rivalidades municipais entre os remanescentes dos antigos partidos dentro das novas organizações partidárias ARENA e MDB.

A hipótese que orienta a pesquisa é a de que mesmo na ARENA gaúcha onde o processo de formação do partido teria sido menos artificial que no restante do país, a manutenção de rivalidades locais no interior da ARENA (e do MDB), ainda assim, se faz presente. Rivalidades estas que podem, não só, serem identificadas, como também atuarem no sentido de definir o padrão de interação entre os diferentes grupos no interior do partido, ao longo das eleições ocorridas no período.

Parte-se também do pressuposto de que as eleições municipais constituem-se no cenário privilegiado para o estudo da manifestação destas rivalidades. Uma vez que as mesmas possibilitariam, através do mecanismo da sublegenda, não só a sobrevivência de antigas rivalidades existentes no interior do antigo “anti-PTB” gaúcho (Trindade e Noll, 1991), como o surgimento de novas clivagens no interior da organização, oriundas, por exemplo, da ascensão dos arenistas mais jovens, cuja experiência partidária inicia-se somente após a extinção do multipartidarismo.

Para esta análise, realiza-se aqui um mapeamento do fenômeno da sublegenda em alguns dos principais municípios da província: Caxias dos Sul e Ijuí. A análise consistirá no exame dos dados eleitorais colhidos no Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul e referentes às eleições para prefeito ocorridas ao longo do período de vigência do bipartidarismo (1966, 1972 e 1976) além dos de 1982, na fase de transição democrática. Além destes dados, as trajetórias dos candidatos a prefeito serão analisadas a partir dos dados biográficos dos mesmos.

Antecedentes eleitorais: a polaridade entre PTB e2. Anti-PTB - (1945-64)

As rivalidades políticas verificadas durante o multipartidarismo no Rio Grande do Sul foram caracterizadas pela polarização da disputa eleitoral. Este modelo norteou em certa medida, o ingresso de quadros políticos dos antigos partidos na ARENA e no MDB. As disputas eleitorais centradas ao executivo subnacional gaúcho e legislativos (estadual e federal), demonstram com maior nitidez a polaridade entre PTB e anti-PTB.

Nas eleições para o governo da província gaúcha de 1947, a coligação (PSD/PRP/PCB) vence o PTB por apenas 20 mil votos. Em 1950 o PTB aliado ao PSP inverte o

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jogo, derrotando a coligação (PSD/PL/UDN), situados como anti-PTB. Em 1954 a Frente Democrática (PSD/PL/UDN), retoma o poder. Leonel Brizola em 1958 pela coligação (PTB/PRP) reconquista o executivo estadual, derrotando a Frente Democrática. No ano de 1962 o grupo anti-PTB organiza a coalizão conhecida como Ação Democrática Popular – ADP, composta pela coligação: (PSD/PL/UDN/PRP/PDC) que elege Ildo Meneghetti, por uma diferença de 20 mil votos ante ao PTB. Esta breve descrição revela duas coisas: 1) a bipolaridade da disputa eleitoral, marcada pelo aumento no número de coligações e 2) o PTB que assume status de principal força eleitoral em 1962, concorrendo às eleições ao executivo (legislativos estadual e federal além do senado) sem coligação.

Neste contexto de extrema competição eleitoral, as coligações foram a maneira encontrada pelos partidos menos representativos, como uma alternativa viável a sua sobrevivência. Campello de Souza (1983) exemplifica que o sistema eleitoral se encaminhava para uma relativa incerteza eleitoral, pela não existência de um “partido hegemônico” e pelo acirramento da competição. Para o caso gaúcho, a “incerteza” é gerada pelo descolamento dos resultados eleitorais do PTB em relação ao grupo que lhe faz oposição, tornando-se em 1962, mesmo com a saída do grupo de Fernando Ferrari, como a maior força do partido a nível nacional. Segundo Trindade (1978), o PTB gaúcho dominava 54% dos municípios, crescia em 56% enquanto PSD, seu principal adversários, declinava em 85% das cidades. Levando a crer que o PTB pelo menos no Rio Grande do Sul, não fosse o desfecho do Golpe militar de 1964, seria o partido “dominante”.

Fatores que favoreceram alinhamentos, alianças e coligações incomuns (como as entre UDN, PCB, PRP, PL e PSD), que não devem ser vistos como sinônimos de artificialidade, mas como alternativas a consecução de seus objetivos, relegando ao sistema certa racionalidade, teses de Campello de Souza (1983), Lima Junior (1982) e Lavareda (1991), que identificaram que havia de certa forma um “sentido na desordem”, e por consequência, encaminharia o sistema para a consolidação.

Por outro lado, a polarização PTB e anti-PTB que permeava a competição estadual, também irá reger a composição dos legislativos estadual e federal. Observa-se o crescimento constante do PTB, tendo um declínio em 1962 pela saída de Fernando Ferrari do partido. O PSD apresenta ao logo do tempo certa estabilidade, e o PL cresce irregularmente. A UDN não possuía expressão eleitoral. Nenhum partido ou coligação ameaçou a liderança do PTB nos cargos legislativos.

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Quadro 1Votação dos partidos para a Deputado Estadual e Federal RS (1945-1962)

Ano da Eleição

Partido 1947 1950 1954 1958 1962Estadual Federal Estadual Federal Estadual Federal Estadual Federal Estadual Federal

PTB 172.059 40.146 250.316 296.421 312.957 338.829 480.866 602.925 481.690 554.518PSD 171.528 389.975 209.518 225.129 206.928 232.007 272.779 288.287 236.527 286.378*PL 54.972 51.324 70.355 54.195 107.209 93.881 145.441 120.912 125.614 -

PSP 2.727 - 26.165 11.329 30.048 1.694 55.466 - 21.242 -PRP 46.783 21.197 53.862 46.505 61.218 70.346 71.598 63.923 79.071 -UDN 47.426 58.663 53.425 11.329 52.739 39.117 67.726 49.182 63.488 -

Outros 34.548 387.59 25.246 7.135 37.079 20.246 61.700 20.835 124.084 66.882Total 530.043 561.305 688.887 652.043 808.178 796.120 1.155.576 1.146.064 1.131.716 907.778

Coligação Aliança Democrática Popular – APD (PL-UDN-PDC-PRP) Fonte: (XAUSA e FERRAZ, 1981, p.155 e 156).

Neste sentido, o crescimento constante do PTB, aliado a radicalização da política e a eclosão de inúmeros movimentos reivindicatórios pelo país, proporcionou o desenvolvimento de um clima de incerteza eleitoral, instalado a partir de 1960 e, que funcionou seguramente contra o PTB (Xausa e Ferraz, 1981), reforçando ainda mais a polaridade. E é justamente esse posicionamento que será refletido na coligação da ADP para as eleições de 1962 ao governo subnacional, legislativos (estadual e federal) e para as eleições ao Senado. A ADP funcionou como catalisador das correntes contrárias ao petebismo no estado, posição que também será a diretriz para a composição da ARENA riograndense.

O alinhamento verificado em 1962 pode ter fornecido as diretrizes para a migração para ARENA e MDB, mas não amenizará as disputas intrapartidárias na composição dos novos quadros partidários. Principalmente no caso da ARENA, onde essa aglutinação foi problemática em vários sentidos, entre eles destaca-se a tentativa de congregar numa mesma corrente política, quadros de antigos adversários políticos e outro, e também, não menos importante, seria o peso que a representatividade dos partidos anteriores teria no momento da composição e indicação das candidaturas. Neste sentido, verificaremos como ocorreu a transição destes quadros dos antigos aos novos partidos e como a sublegenda viabilizou a manutenção destas rivalidades eleitorais nas cidades selecionadas.

Sublegenda e rivalidade: as eleições municipais da ARENA e MDB3.

Posteriormente a edição do AI-5 o regime militar altera as regra do jogo eleitoral, favorecendo nitidamente ao partido que lhe dá sustentação: a ARENA. O impacto do bipartidarismo na competição político-eleitoral do Rio Grande do Sul foi devastador principalmente para o PTB. Se antes o PTB (Trindade, 1978), dominava 54% das cidades, com o MDB esse dado não passaria dos 6%. Os partidos situados no momento

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anterior como anti-PTB, dominavam em apenas 14%, com a ARENA, controlam 40% dos municípios. Contudo o número de localidades sem dominação salta de 28 para 54%. Desta forma o bipartidarismo inverte radicalmente as posições em que se encontravam os partidos. Agora cabe verificar como isso ocorre em Ijuí.

Das cidades citadas selecionamos os dados eleitorais disponíveis do período multipartidário (1945-1964), com intenção de confrontar com as chapas formadas nas sublegendas da ARENA e MDB nas eleições de 1968, 72 e 76 na intenção testar as hipóteses anteriormente citadas.

3.1 Antecedentes políticos e as eleições de Ijuí (1968-1976)

Nossa hipótese determina que há ocorrência de competição intrapartidária quando as sublegendas apresentam chapas com candidatos distintos, mas quando as sublegendas são compostas por candidatos a prefeito distintos e um único nome para vice-prefeito em ambas as chapas, é plausível intuir que estamos diante de um projeto de partido que pretende usar a sublegenda e seus candidatos para maximizar os ganhos eleitorais e dar espaço para as diferentes lideranças que passaram a coabitar no partido possam manter suas respectivas máquinas partidárias e eleitorais em funcionamento.

O texto apresentará inicialmente os antecedentes eleitorais do período multipartidário (1947-1963), identificando a polarização pró e Anti-PTB. Posteriormente, focaremos na análise dos dados eleitorais da ARENA e MDB entre (1968 e 1976), verificando a competição intrapartidária nas sublegendas. Com a abertura política de 1979, o multipartidarismo volta a vigorar atrelado a uma parte da legislação anterior, permitindo a presença da sublegenda. Desta forma, as eleições de 1982 ocorridas num período de transição democrática, serão adicionadas na análise de maneira complementar, pelo fato de apresentar as características de competição interna do período anterior.

Nas eleições de 1959 é eleito como prefeito em Ijuí, o petebista, Benno Orlando Burmann que relatando sobre sua candidatura a Assembleia Estadual, relata a ocorrência da polarização:

“[...] o partido insistia em lançar seu nome à Assembléia Legislativa; “apesar de negar-me a aceitar a indicação, meu nome foi aprovado pela convenção partidária como candidato a deputado”. Não aceitei, negando-me a assinar o documento, autorizando a inscrição como candidato. Os prazos para indicação e registros dos candidatos estavam encerrados, quando a Câmara Federal, atendendo aos interesses dos Partidos conservadores, votou uma lei reabrindo os prazos para indicação e registros de candidatos. A campanha desenvolveu-se de forma dramática, reunindo, de um lado, todos os partidos em atividade (numa frente anti-PTB) e do outro, o PTB” (BINDÉ, 2006: 36-7).

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Observando os resultados eleitorais do período multipartidário (1947–1965) da cidade de Ijuí, identificamos competição ao executivo municipal nos anos de 1947, 1951 e 1955, centradas entre três partidos (PSD, PRP e PTB). Nas eleições de 1959 com a coligação da Frente Democrática - FD (PSD/UDN/PL), e 1963 com a da Ação Democrática Popular – ADP (PRP/UDN/PL/PDC), procuravam derrotar o crescimento do PTB na esfera local, equalizado pelos resultados estaduais do partido. No legislativo municipal o PTB entre 1955 e 1963 crescia e seus vereadores obtinham as maiores votações entre os partidos. Porém o PRP foi o fiel da balança em grande parte das eleições.

Em 1947 a coligação PTB/PTL obteve 2.615 votos (37,12%), elegendo o prefeito e vencendo o PRP por 179 votos; O PSD conquistou 28,31% da votação. O vice-prefeito eleito pertencia à coligação PTB/PL e obteve votação de 2.731 obtendo 39,20% dos votos válidos. No legislativo municipal o PRP elege sete (6) vereadores, PL e PSD dois (2) cada um, e o PTB apenas um (1) sendo a minoria no legislativo.

Na eleição para prefeito de 1951 a FD fez 3.363 ou 34,40% dos votos, vencendo a chapa do PRP por oitos votos; O PTB coligado com o PSDA5 obteve 30,05%. O vice-prefeito eleito foi da FD, conquistando 37,37% dos votos sob o candidato do PRP. No legislativo a FD6 e PRP elegem quatro (4) vereadores cada, o PTB três (3). Os vereadores do PRP seguidos pelos do PTB foram os mais votados no geral, após observamos os da FD, com as menores votações.

Para o pleito de 1955 as duas principais forças da cidade PRP e PSD coligadas fizeram 5.029 votos, vencendo o PTB por uma diferença de 540 votos. Neste momento, verificamos que o PTB fixava-se como um partido protagonista na esfera local, pois obtém sozinho, 4.489 votos, representando 34,38% dos sufrágios e só é derrotado (mesmo assim por margem mínima de votos) pela união das até então duas principais legendas do município. O vice do PRP/PSD vence com 37,94% dos votos, porém o petebista obtém 4.559. No legislativo, PRP/PSD elegem cinco (5) vereadores7, PTB sozinho elege quatro (4), os mais votados na câmara, e o PL dois (2).

A partir das eleições de 1959 é crescente o número de partidos coligados, e obedecem a lógica da dinâmica de disputa político-partidária e eleitoral identificada em âmbito estadual: polarização entre Pró e Anti-PTB. No âmbito da disputa, esta passa a ser, em certa medida, bipartidária. Nesta eleição são duas as chapas: PTB/PRP versus FD. PRP era o fiel da balança em Ijuí e jogava com o lado que lhe proporcionasse maiores ganhos. Como resultado, (PTB/PRP) obtiveram 8.337 votos, correspondentes a 60,13% da votação municipal ante a FD que obteve apenas 32,32%. No legislativo a coligação

5 Partido Autonomista, fundado por um grupo de políticos gaúchos dissidentes do PSD, após Getúlio Vargas ter rompido com o PSD nacional em 1948.

6 Dois do PSD e dois do PRP. UDN não elegeu vereador.

7 Dois do PSD e três do PRP.

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(PTB/PRP) conquista sete (7) assentos8 e a FD quatro (4) vagas. A eleição de 1963 é simbólica, demonstrando a nítida polarização do Anti-PTB,

congregados na ADP, derrotando o solitário PTB. O PRP foi o “fiel da balança” nas eleições de 1955, 59 e 63, apesar de sua força no legislativo diminuir drasticamente ao longo do tempo. A situação da UDN era agonizante, nunca elegeu prefeito ou vereador sem estar coligado. O peso das coligações era fator decisivo na determinação das vitórias.

Com base nos dados da (tabela 1), observamos que o ingresso dos quadros políticos do período multipartidário no interior da ARENA ou MDB, no município, parece ter obedecido a polarização das eleições de 1963, desta forma uma das chaves para se entender as migrações para ARENA/MDB em 1965 são as eleições de 1962/63 e a polarização PTB versus anti-PTB. Isso revela duas coisas, uma que o MDB teve maior espaço para o desenvolvimento de novas lideranças e a segunda, que a ARENA acondicionava em um mesmo espaço representantes políticos de correntes diversas, além de antigas rivalidades desempenhadas no período anterior. Desta forma a sublegenda torna-se uma válvula de escape, permitindo que as rivalidades sejam amortecidas em seu interior.

As duas sublegendas da ARENA em 1968 deixam muito clara essa competição. A sublegenda ARENA I lança como candidato a prefeito Reinholdo Kommers, Vereador (PRP) em 1951 e 1955 e suplente de Deputado Estadual (PRP) 1958, com 4.285 votos. O Vice-Prefeito indicado, Olívio Hermes, foi suplente de vereador (PL) 1955. Na ARENA II, Emídio Odósio Perondi é candidato a Prefeito, foi Vereador (PSD) 1963, posteriormente teve trajetória como Deputado Federal e após na Federação Gaúcha de Futebol. Seu Vice-Prefeito Carlos R. Sperotto não possuía trajetória anterior. No MDB, a sublegenda MDB I apresenta como prefeito Sady Strapazzon, Vereador (PTB) 1951, 1955 e 1959, seu vice, Wanderley A. Burmann (descendente de Benno Orlando Burmann) foi Vereador (PTB) 1947 e Prefeito eleito (PTB) 1959. Após o golpe militar de 1964, é perseguido e exilado no Uruguai. No MDB II, observamos o contraste com o candidato a prefeito Francisco Assis Costa, Suplente de Vereador (PL) 1947, 1951, 1955 e 1959, assumindo em todas as legislaturas; Vereador eleito (PL) 1963; desempenhou atividade partidária no interior do PL desde a fundação. Era sócio de um comércio de bebidas (Werner LTDA) e atuava como advogado no município; Seu vice Amaury Muller não possuía trajetória anterior.

Mesmo com a extinção do multipartidarismo os militares não conseguem apagar o carisma e, muito menos, a identificação do eleitorado com estas lideranças, uma prova disso é a vitória do MDB ante a ARENA, por uma diferença de 165 votos. No legislativo municipal o MDB elege seis (6) vereadores, obtendo 7.796 votos que representam 50,42% da votação total; e a ARENA cinco (5), ficando com 45,54% dos votos. Marcando a volta da competição eleitoral, parecido com o modelo polarizado de outrora. Porém, o PTB agora sob a forma de MDB e o anti-PTB no interior da ARENA. Tais dados nos permitem afirmar que, ao menos em Ijuí, as primeiras eleições não trouxeram para o

8 Dois do PRP e cinco do PTB.

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regime militar o resultado esperado de toda a engenharia institucional montada para criar um partido político de apoio ao regime grande e viável eleitoralmente e um partido de oposição mais fácil de ser derrotado nas urnas.

ARENA e MDB apresentaram candidatos ao executivo e legislativo municipal com trajetória política anterior. Entre os vereadores do período multipartidário, apenas um do PTB (Sady Strapazzon) ingressa no MDB e é reeleito. No MDB migraram entes do PTB e PL. O caso de ex-PL no MDB também demonstra que assim como no âmbito estadual (onde se identifica a também a presença de um ex-membro do PL – Paulo Brossard – no MDB) nem sempre a polarização se manteve coerente no município de Ijuí.

Em 1982 com a abertura política, a preservação do sistema de sublegenda e o retorno do multipartidarismo, a análise dos resultados eleitorais permitiu verificar o acirramento da disputa eleitoral local, agora, equalizada pela quantidade de partidos e as sublegendas derivadas, fragmentando a disputa e tornado os resultados imprevisíveis. Por outro lado, observamos o retorno de uma elite política do período multipartidário (1945-1964), antes do PTB e agora acomodada no PDT representada pela família Burmann.

Em um breve histórico da família, identifica-se que atravessa três sistemas eleitorais, não sendo desarticulada pela ditadura. Benno Orlando Burmann, trabalhou na Associação Comercial de Ijuí e formou-se contador e em 1944 fundou o PTB sendo eleito vereador da Juventude Trabalhista. Fora da vida política foi fiscal e inspetor da Secretaria Estadual da Fazenda, proprietário do moinho Arroio do Leão, no atual distrito do Chorão, além de proprietário e plantador no distrito de Mauá, foi um dos fundadores da COTRIJUÍ. Perseguido pela ditadura, exila-se no Uruguai, Após retornar ao Brasil, é eleito Deputado Estadual pelo PDT, partido fundado por ele em Ijuí e faleceu em 2006. Seu irmão, Arno Arcêncio Burmann era comunista e defensor da Campanha da Legalidade, ajudando inclusive a organizar um grupo de militantes dispostos a pegar em armas em Catuípe, local onde residia9. Wanderley Agostinho Burmann, também era irmão de Benno. O filho de Wanderley, Gerson Burmann é eleito três vezes pelo PDT (2002, 2006 e 2011)10.

As sublegendas em 1982 foram utilizadas pelos partidos como forma de maximizar os ganhos eleitorais, podendo ser comparado com um modelo de partido catch-all, no sentido de oferecer ao eleitorado diversas opções de candidatos e com penetração em eleitorados diversos.

Por fim, a análise das quatro eleições ocorridas sob o guarda-chuva do bipartidarismo

9 Militante comunista de Ijuí homenageado nos 50 anos da Legalidade. http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=162156&id_secao=3 . Acesso: 28/04/2012. “em determinado momento marchávamos para uma guerra civil na qual aderiu a 3ª Região Militar do Exército, o que teve uma força notável, principalmente para o Rio Grande do Sul, onde os militares aguardavam armas para defender a legalidade”

10 Deputados eleitos pelo PDT de Ijuí. http://pdtijui.com.br/?i=deputados . Acesso: 28/04/2012.

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nos permite elencar, à guisa de conclusão, os pontos que seguem. 1) O êxito do Regime em formar um partido de apoio ao governo e com força eleitoral foi alcançado apenas parcialmente em Ijuí. Este êxito relativo é atestado pelas derrotas das forças governistas tanto nas primeiras (1968), quanto nas últimas eleições (1982) disputadas sob a vigência do mecanismo da sublegenda. 2) Se não venceu todas as eleições, a continuidade das carreiras políticas dos prefeitos eleitos pela ARENA em 1971(Emídio Perondi) e em 1976 (Wilson Mânica) atesta o êxito do regime em sua política de patrocinar carreiras e novas lideranças (ou de lideranças de segunda grandeza) no município. Perondi, por exemplo, foi Deputado Federal pela (ARENA) em 1976, pelo (PDS) em 1982. Após isso, observamos seu irmão Darcício Perondi11, filiado ao PMDB seguir carreira política na Câmara dos Deputados de 1995 até os dias atuais. Wilson Mânica, por sua vez, conquistou cargos como Deputado Estadual (PDS) 1987 e pelo (PPR/PPB) 1991. O fato destes políticos não serem de famílias políticas tradicionais no município, de terem conquistado no máximo o cargo de vereador (o primeiro em 1963 e o segundo, já em 1968, sob a legenda da ARENA) e de terem ultrapassado as fronteiras do município e se tornado lideranças de âmbito estadual nas décadas de oitenta e noventa ilustra este ponto.

Toda a perseguição que os oposicionistas sofriam, combinada com o estímulo e apoio dados pelo regime aos candidatos oficiais contribuíram para que os efeitos destas práticas possam ser identificados em Ijuí muito tempo após a extinção, seja da ARENA, seja do próprio regime militar.

11 Deputado Federal eleito pelo PMDB em 1995, 1999, 2003, 2007 e 2011.

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Tabela 1 – Eleições multipartidárias e sublegendas apresentadas pela ARENA e MDB entre 1968 e 1982

IJUÌ

Ano Eleição Partido Prefeito Vice-Prefeito Votos Situação

Mul

tipar

tidar

ism

o

1947

PTB-PTL Joaquim Pôrto Vilanova

José Antônio Frantz 2615 Eleito

PRP Alberto Hoffmann

João Cardoso de Azambuja 2436

PSDSolon Gonçalves da Silva

Edvino Schröer 1995

1951

PSD/UDN/PL1 Ruben Kessler da Silva

Orlando Dias Athayde 3363 Eleito

PRP Eugenio Michaelsen

Lothar Fredrich 3355

PTB-PSDA Gentil Pedro Lucca

Hugo Willy Hintz 2938

1955

PSD-PRP Lothar Friedrich

Edwino Schröer 5029 Eleito

PTB Joaquim Pôrto Vilanova

Antônio Bresolin 4489

PL-UDN Orlando Dias Athayde Bruno Fuchs 3134

1959PTB-PRP Benno Orlando

Burmann2Eugênio Michaelsen 8337 Eleito

PSD/UDN/PL3 Bruno FuchsSolon Gonçalves Dias

4481

1963

PRP/UDN/PL/PDC4 Walter Müller

Solon Gonçalves da Silva

8413 Eleito

PTB Ademar Porto Alegre

Telmo Tassinari 5664

MTRSerafin Rodrigues Pasche

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Dita

dura

19685

ARENA 1 Reinholdo Kommers6 Olívio Hermes7 4759

ARENA 2 Emídio Odósio Perondi8

Carlos R. Sperotto9 2593

MDB 1Sady

Strapazzon10 Wanderlei Agostinho Burmann

6112 Eleito

MDB 2Francisco

Assis Costa11Amaury Muller 1412

197112

ARENA 1 Emídio Perondi

Wilson

Mânica13 6790 Eleito

ARENA 2Walter

Müller14Claude

Wondracek15 4992

MDB 1 Itelmino J. Severgnini João Filipin16 3081

MDB 2Aldo P. de

Azambuja17Serafin R. Pasche 1242

MDB 3 Alcides Lucion Gilberto Pasquali 2183

197618

ARENA 1Wilson Maximino Mânica

Olivar

Scherer19 6028 Eleito

ARENA 2Nilo

Bonfanti20 Olivar Scherer 1294

ARENA 3 Armindo Pydd Olivar Scherer 5579

MDB 1 Sady Strapazon Valdir Heck 1915

MDB 2 Wanderley Burmann

Itelvino Severgnini 9394

Abe

rtur

a

198221

PDT 1Wanderlei Agostinho Burmann

Valdir Heck 14449 Eleito

PDT 2Leonardo

Azambuja22Santo Joel V.

da Cunha23 410

PDS 1 Armindo Pydd Antonio Nilo Schirmer 5420

PDS 2 Olivar Scherer Antonio Nilo Schirmer 6280

PDS 3 Jaíme Sérgio Muraro

Antonio Nilo Schirmer 2683

PMDB 1 Honorato Pasquali

Santa Edy Nehring 1008

PMDB 2 Suimar João Bressan

Santa Edy Nehring 743

PMDB 3Thomaz Aquino de Moaraes

Santa Edy Nehring 532

PT Dinarte Belato Valentina Fracaro 274

Fonte: Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul; Projeto Memória das urnas. UNIJUÌ. http://www.unijui.edu.br/content/view/4884/3938/lang,iso-8859-1/ .último acesso: 30/04/2012.

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4. Conclusão:

O desempenho político dos partidos no município de Ijuí apresenta competição ao Executivo Municipal nos anos de 1947, 1951 e 1955, centradas entre três partidos (PSD, PRP e PTB). Nas eleições de 1959 com a coligação da Frente Democrática - FD (PSD/UDN/PL), e 1963 com a da Ação Democrática Popular – ADP (PRP/UDN/PL/PDC), procuravam derrotar o crescimento do PTB na esfera local. No legislativo municipal o PTB entre 1955 e 1963 crescia e seus vereadores obtinham as maiores votações entre os partidos.

Compreender o sistema eleitoral bipartidário, competição política, rivalidades entre ARENA e MDB é essencial tem conhecimento do período anterior. Na transição do multipartidarismo para o bipartidarismo, a estratégia política do militares de extinguir as antigas instituições e formar novos partidos políticos, não é suficiente para anular a identificação do eleitorado com lideranças trabalhistas. Em Caxias, mesmo com as dificuldades impostas pelo regime militar, o MDB/PMDB conquista as eleições de 1968, 1976 e 1982, sendo que em 1976 a margem de votos foi de 12.076, lembrando que esta diferença nunca passou dos quatro (4) mil votos em todo o período. A polarização anti-PTB é clara 1951, 1959 e 1963. O PRP é um dos principais partidos do município e o “fiel da balança”.

Essa polarização, principalmente a ocorrida nas eleições de 1963 é uma das chaves para compreender a migração de políticos para o interior da ARENA e MDB. As lideranças partidárias que fizeram parte das coligações, ADP - (PRP/UDN/PL/PDC) em Ijuí são vistas no interior da ARENA e os remanescentes do - PTB, no interior do MDB. Porém resalvamos que tal modelo explicativo tem seus limites. Identificamos, por exemplo, em Ijuí, Francisco Assis Costa, ex-membro do PL e com longa trajetória de vereador, ingressa no MDB. No Rio Grande do Sul, a clivagem PTB versus anti-PTB serve para se ter uma primeira compreensão do processo de tomada de decisão (filiação na ARENA, ou no MDB), das antigas lideranças políticas. Porém, para se ter uma compreensão mais acurada deste importante período, é fundamental a análise mais detalhada deste fenômeno. E o âmbito municipal constitui-se em cenário promissor de análise.

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(Footnotes)

1 Frente Democrática.2 Vereador (PTB) 1947 e um dos fundadores do PTB 1947.3 Frente Democratica.4 Ação Democrática Popular.5 Fonte: Jornal Correio Serrano, 18 Nov. 1968 p. 1 e 2.6 Vereador (PRP) 1951 e 1955; Suplente de Deputado Estadual (PRP) 1958, com 4.285 votos; Deputado Estadual não eleito (ARENA) 1974;7 Suplente (PL) 1955;8 Vereador (PSD) 1963; Candidato Prefeito (ARENA 2) derrotado 1968; Prefeito eleito (ARENA) 1971 e Deputado Federal (ARENA) 1979; Deputado Federal (PDS) 1982.9 Deputado Estadual não eleito (PFL) 2002;10 Vereador (PTB) 1951, 1955 e 195911 Suplente Vereador (PL) 1947, 1951, 1955 e 1959, assumindo em todas as legislaturas; Vereador (PL) 1963,12 Fonte: Jornal Correio Serrano, 17 nov. 1972 p. 1.13 Vereador (ARENA) 1968; Deputado Estadual (PDS) 1987; Deputado Estadual (PPR/PPB) 1991; 14 Suplente (PRP) 1951; Vereador (PRP) 1955 e 1959; Prefeito Eleito (ADP) 1968; Deputado Estadual (ARENA) 1966; Exerceu ainda outras atividades comunitárias, como a presidência da Sociedade Ginástica Ijuí. 15 Vereador (ARENA) 1968; 16 Vereador (MDB) 1968;17 Vereador (MDB) 1968;18 Fonte: Mapa Totalizador Eleições 1976 TRE 1976.19 Vereador (ARENA) 1972; 20 Vereador (ARENA) 1972;21 Fonte: TRE-RS Resultados eleitorais eleições de 15/11/1982.22 Professor FIDENE;23 Funileiro e retificador;

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História Política e imprensa católica

FaBiaN FilaTow1

Resumo: A comunicação irá apresentar um breve estudo sobre a imprensa católica analisando nesta a presença da propaganda anticomunista. Para isso, realizamos um estudo de caso, no qual analisamos artigos do jornal Estrela do Sul entre os anos de 1930 e 1936. O referido jornal foi produzido sob a responsabilidade da Arquidiocese de Porto Alegre (RS). O objetivo é refletir a aplicabilidade interpretativa da ideia da identidade dos opostos, ou seja, busca-se compreender as representações presentes no jornal sobre o comunismo.

Palavras-chave: História Política – Imprensa – Anticomunismo

Resumen: La comunicación presentará un breve estudio de la prensa católica mediante el análisis de la presencia de propaganda anticomunista. Para ello, se llevó a cabo un estudio de caso en el que se analizaron artículos del periódico Estrela do Sul, entre 1930 y 1936. Ese documento fue elaborado bajo la responsabilidad de la arquidiócesis de Porto Alegre (RS). El objetivo es reflejar la aplicabilidad de la idea de interpretación de la identidad de los contrarios, es decir, tratamos de comprender las representaciones presentes en el periódico sobre el comunismo.

Palabras clave: Historia Política - Prensa - anticomunismo

A presente comunicação visou realizar um exercício de reflexão sobre a possibilidade da aplicabilidade da concepção identidade dos opostos, presente na obra O ardil totalitário: imaginário político no Brasil dos anos 30, da historiadora Eliana Dutra2, também nas publicações realizadas no jornal católico Estrela do Sul, entre os anos de 1930 e 1936. Período no qual percebemos uma intensificação da campanha anticomunista na imprensa católica.

Nas publicações do jornal se percebe a busca por identificar o inimigo que estava a ameaçar o Brasil, a saber, o perigo do comunismo. Assim sendo, o católico foi identificado como brasileiro e a ameaça com o mundo soviético comunista.

1 Licenciado, Bacharel e mestre em História pela URFGS. Doutorando em História pela PUCRS. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

2 DUTRA, Eliana. O ardil totalitário: imaginário político no Brasil dos anos 30. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997. Obra dedicada ao estudo da construção do imaginário político que vigorou no Brasil ao longo da década de 1930, destacando a construção da ameaça comunista.

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Não temos a pretensão de efetuar uma ampla análise sobre o anticomunismo vigente no Brasil na década de 1930. Igualmente não nos propomos a analisar o jornal Estrela do Sul em sua totalidade. Ater-nos-emos a algumas reportagens, principalmente editoriais, os quais nos possibilitam refletir sobre a aplicabilidade da identidade dos opostos. Para este fim, selecionamos notícias e artigos que apresentaram a Rússia Soviética como cenário para a campanha anticomunista. O trabalho está estruturado em duas partes, na primeira apresentamos algumas notas sobre o Jornal Estrela do Sul e, na segunda, analisamos o anticomunismo católico expresso no referido jornal.

1. Jornal Estrela do Sul – algumas notas.

O jornal Estrela do Sul era de propriedade do Centro da Boa Imprensa do Rio Grande do Sul. Era produzido sob a responsabilidade da Arquidiocese de Porto Alegre. Sua fundação se deu no século XIX, em 1868, nomeado A Estrela do Sul. Foi publicado até o final do século XIX, tendo sua publicação temporariamente desativada. Reativado no final de 1910 com o nome Estrela do Sul. Nesta fase teve como redator monsenhor Nicolau Marx e o gerente cônego Cleto Benvegnú. A redação, administração e oficinas funcionavam no antigo seminário, sendo publicado às quintas-feiras. Funcionou até 1939, ano no qual deixou definitivamente de ser produzido.

Entre os assuntos abordados se destacavam a vida da Igreja na arquidiocese e no mundo, os festejos religiosos, transcrições das encíclicas e cartas pastorais do arcebispo Dom João Becker3. Constava ainda de relatos sobre a vida de santos, reflexões sobre os evangelhos e artigos sobre a política gaúcha. O jornal era composto por diferentes espaços, tais como a coluna da juventude, sobre a Ação Católica; o Consultório Popular, destinado a medicina popular, entre tantos outros.

Após 1930 o jornal intensificou as publicações de caráter anticomunista. Surge uma campanha em apresentar a Rússia como o pior país do mundo, um país sem Deus, sem religião, desorganizado, lugar do caos, o inferno na terra. País onde todas as barbáries eram passíveis de ocorrência. Expondo a Rússia como um exemplo do pecado, do mal, indicando como responsável o comunismo, nomeado comunismo soviético.

Nas publicações encontramos artigos nos quais podemos identificar o anticomunismo, que poderia ser relacionado com a distante Rússia ou a setores da sociedade brasileira e porto alegrense. No jornal estavam destacado os setores nacionais mais suscetíveis a esta ameaça comunista, a saber: o operariado, a família e a educação.

3 Nascido na Alemanha, em 24 de fevereiro de 1870. Veio com 8 anos para o Brasil, juntamente com seus pais e vários irmãos. Fora ordenado sacerdote em 2 de agosto de 1896. Assumiu a Arquidiocese de Porto Alegre em 8 de dezembro de 1912. Depois de quase 50 anos de sacerdócio, e tendo dirigido a Arquidiocese por mais de 33 anos, que abrangem também a época conturbada de duas guerras mundiais, faleceu em 15/06/46. Guia da Arquidiocese de Porto Alegre 1986/7. Número especial da Revista UNITAS, 1986. Elaborado pelo Centro de Pastoral da Arquidiocese.

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2. Apresentação do inimigo nas páginas do jornal Estrela do Sul

Segundo noticiado no jornal católico, a presença comunista não se restringiria a existência do Partido Comunista. Segundo o artigo intitulado medida preventiva que se impõe, o perigo comunista se fazia presente através de determinadas personalidades.

A profissão de fé bolchevista, feita por Luiz Carlos Prestes no seu estranho manifesto, não deixou de ter um efeito vantajoso. Sabido que ele gozava das simpatias de muita gente, não só no nosso Estado, como também fora dele, adquirido pela sua marcha através do Brasil; e havia uma corrente considerável que sonhava com uma revolução contra o governo federal, chefiada por Prestes, a quem se considerava por ai como um salvador da Pátria.

Ainda segundo o artigo, a ameaça se faz presente na classe operária, referência direta ao Bloco Operário e Camponês existente em Porto Alegre.

Mas, a par desta vantagem inegável, o manifesto também não deixará de produzir uma influência prejudicial em outro sentido. Referimo-nos a classe operária. Sabido é que existe aqui e alhures, a propaganda das ideais comunistas, e que já logrou adquirir regular número de adeptos. Para não ir mais longe, nesta mesma capital, o Bloco Operário e Camponês, com ideais nitidamente soviéticas, chegou a concorrer às eleições de deputados e tem feito reuniões e passeios e festas, aberta e publicamente.

Por fim, o referido artigo destacou que o perigo comunista estaria presente na própria organização política, pois teria sido permitida sua existência pelo governo, que possibilitou a participação dos comunistas nas eleições.

Medidas de exclusiva violência não surgem os efeitos desejados e necessários; são contraproducentes, não convencem nem convertem facilmente os comunistas fanáticos, senão que lhes acirram os ódios contra a sociedade. E assim enquanto tais homens não passam à direta violação das leis e não tentarem abertamente contra a ordem pública, parece menos justo que o governo os persiga depois que lhes deu liberdade para pregarem as suas doutrinas e concorrerem às urnas4.

Com a ocorrência da Revolução de 1930 percebemos uma tentativa de aproximação por parte da Igreja com o novo governo. A Igreja Católica do Rio Grande do Sul, através de seu arcebispo, declarou apoio à causa revolucionário de 1930.

O grande triunfo da Revolução despertou um jubilo indizível no meio da população riograndense. (...) A Revolução Nacional conseguiu, rapidamente, uma vitória estrondosa, que culmina na formação de um governo provisório, que será chefiado pelo benemérito presidente do Rio Grande do Sul5.

4 Estrela do Sul, 15/06/30, “Medida Preventiva que se impõe”, p. 1.

5 Estrela do Sul, 09/11/30, “A Religião Católica e o atual momento. Vibrante discurso do exmo. sr. Arcebispo Metropolitano, no Te-Deum, D. João Becker”, p. 1.

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Segundo o Sérgio Micelli, foram muitos os investimentos feitos pela Igreja Católica desde a separação, ocorrida em 1891 entre Estado e Igreja, para que “a corporação eclesiástica pudesse vir a exercer o grau de capacidade de pressão como vem atuando desde 1930-35.”6

Corroborando a assertiva de Micelli, temos publicado no jornal aqui analisado a crítica efetuada pela Igreja Católica do Rio Grande do Sul sobre a separação entre Estado e Igreja, a qual alegou que em 1891 foi imposta ao país uma Constituição imperfeita e com perfil atéia: “Pois bem! A este Brasil católico e cristão foi imposta uma constituição imperfeita, sem rei e sem Deus, segundo as ideias de uma escola de poucos adeptos e contra as tradições religiosas de muitos séculos.”7

O discurso católico declarava que com a República foi negado o direito do povo brasileiro de ter uma orientação cristã. “A Republica afastou a cruz de Cristo da família, das escolas e dos tribunais, da vida oficial e pública.”8

A Revolução de 1930 possibilitou uma oportunidade de reaproximação. O clero gaúcho ocupou o posto de capelão entre as tropas revolucionárias, fato noticiado no jornal da arquidiocese, “O clero, em razão de sua missão social, e religiosa, está ao lado do povo. Por isso, grande número de capelães militares nomeados pelo governo e apresentados pela autoridade eclesiástica, acompanham as nossas forças.”9

A busca pela reaproximação estava impressa no jornal, no qual Dom João Becker declarou seu apoio à revolução, publicando as correspondências trocadas entre o arcebispo e Getulio Vargas.

Aceite v. ex. minhas calorosas congratulações e cumprimentos fulgurantes triunfo. Meus votos se realizaram. Regenerador da Republica surgiu do meio nosso heróico povo gaucho. Partiu do alto nossas coxilhas verdejantes. Chegou Rio sob as bênçãos da Igreja e aplausos delirantes da Nação. Parabéns. - (a) João, arcebispo de Porto Alegre.10

Vargas, em resposta, escreveu: “D. João Becker, Arcebispo de Porto Alegre - Palácio Catete, 5-11-30, 21 horas - Sinceros agradecimentos pelas vossas congratulações, que refletem no seu entusiasmo a nobre atitude do clero riograndense. - (ass.) Getulio Vargas”11.

A Igreja Católica se apresentava como defensora dos direitos da família, do operariado e da educação contra a ameaça comunista na década de 1930. Declarando-se

6 MICELLI, Sérgio. A elite eclesiástica brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988, p. 154.

7 Estrela do Sul, 09/11/30, p. 1.

8 Estrela do Sul, 09/11/30, p. 1.

9 Estrela do Sul, 02/11/30, p. 3.

10 Estrela do Sul, 16/11/30, p. 1.

11 Estrela do Sul, 16/11/30, p. 1.

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contra o ensino laico, identificando-o como uma das maneiras pela qual o comunismo tende a se difundir nas sociedades. Apresentava-se como a única força institucional existente naquele período capaz de manter a ordem e a moral no país, “a religião é necessária, igualmente para a solução dos grandes problemas políticos e sociais que, atualmente, agitam o nosso país.”12 Nesta defesa, o comunismo soviético ocupou o posto de inimigo no discurso católico. Sobre o inimigo e sua ameaça ao Rio Grande do Sul o jornal Estrela do Sul publicou,

Aqui tem estado emissários russos, a pregar as suas doutrinas aos operários das fabricas. Verdade é o governo do Estado moveu-lhes uma ação repressiva, conseguindo documentação exata da extensão da propaganda, e deportou alguns elementos nocivos. Não obstante isto, a gérmen subsiste, continua a fermentar, e os numerosos comunistas, longe de se converterem, constituem focos de propaganda e doutrinação das idéias soviéticas. A adesão de Prestes às mesmas vale por um estimulo a essa gente13.

O jornal apresentou uma definição do que seria o comunismo, na qual construiu

uma identidade dos opostos. “O que é o bolchevismo em nossos dias senão a cultura de satã, a destruição do pudor, a anulação da família, o descalabro da sociedade e a anarquia completa do mundo?”14

Outro recurso utilizado para identificar o comunismo soviético com o maléfico, dava-se na publicação de supostos casos de barbárie e degradação moral, incluindo a presença de crianças, “por um prato de comida prostituem-se meninas de oito a dez anos. Registram-se casos de rapazes antropófagos que trucidaram e comeram camaradas órfãos”15.

Frente a estas publicações das intenções comunistas para o Brasil, a Igreja não deixou de se posicionar. Assim sendo, condenou os grupos brasileiros que se opunham a nova política do país, que eram contrários ao governo provisório de Vargas, passando a identificar a oposição - partidos políticos, movimentos e indivíduos - com o comunismo. Caso exemplar foi o de Prestes: “Luiz Carlos Prestes, lançou um manifesto declarando-se em desacordo com a revolução, porque ela não foi comunista e reafirma as suas ideais soviéticas.”16 O discurso anticomunismo presente no jornal se efetuou de maneira a atacar a URSS, mas podemos identificar este ataque também aos movimentos e partidos do Brasil.

Caso da Aliança Nacional Libertadora que foi identificada como agente do comunismo no país.

12 Estrela do Sul, 09/11/30, p. 1.

13 Estrela do Sul, 15/06/30, p. 1.

14 Estrela do Sul, 25/05/30, p. 1.

15 Estrela do Sul, 29/06/30, p. 1.

16 Estrela do Sul, 30/11/30, p. 3.

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A grande maioria dos chefes aliancistas pertencem ao Partido Comunistas, como por exemplo, o sr. Luíz Carlos Prestes, que o declarou publicamente e categoricamente na carta que dirigiu ao comunista Mercolino Casardo, um dos fundadores da Aliança. (...) de fato, a Aliança é uma mascara especialmente preparada pela Internacional Comunista que o Partido Comunista Brasileiro afivelou por alguns instantes, para assim mais facilmente conseguir os seus propósitos revolucionários17.

Na continuidade, a ANL foi identificada como comunista e que apenas estariam a disfarçar o nome,

Estes folhetos são, pois, a prova de que os aliancistas se confundem com os comunistas, ou melhor, que eles são os mesmos indivíduos. A Aliança é o comunismo sob um nome diferente. (...) Todos dentro da Aliança Nacional Libertadora, o Partido Comunista continua a dar o seu mais decidido apoio á Aliança Nacional Libertadora18.

Podemos indicar que em 1935 o inimigo já estava identificado. A ocorrência da Intentona Comunista contribuiu com o governo e com a Igreja na identificação do inimigo, pois com o levante se efetuou a materialização do inimigo.

3. A ameaça comunista ronda o operariado, a família e a educação.

O jornal Estrela do Sul foi um veículo utilizado também nas disputas eleitorais. A criação da Liga Eleitoral Católica, em 193219, visou orientar os eleitores católicos a dirigirem seu voto aos candidatos que se identificam com posturas favoráveis as idéias cristãs e católicas, evidentemente o apoio é dado àquele que se posicionam favoráveis as intenções da instituição e que se opuseram a legalização do divórcio, do ensino laico, entre outros pontos.

O voto dos católicos há de ser dado aos candidatos que, pelo programa partidário desfraldado oficialmente, nos garantam uma legislação favorável. Claro está que partidos que apresentem injuriadores do nosso Arcebispo e do clero, não estão nestas condições, não podem merecer a confiança do eleitorado católico.20

Destacamos a seguir uma publicação na qual podemos perceber a importância da LEC como instrumento de identificação entre católicos e brasileiros, “estamos seguros de que os nossos católicos (...) saberão compreender o seu dever e não se ouvirá uma nota desafinada neste coro uníssono que há de se formar em torno da L.E.C. Tal é o dever, tal

17 Estrela do Sul, 11/07/35, p. 3.

18 Estrela do Sul, 18/07/35, p. 4.

19 Confira Estrela do Sul, 12/06/32, p. 1.

20 Estrela do Sul, 13/09/34, p. 4.

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é a urgente e absoluta necessidade da hora presente”.21 A Constituição de 1934 concedeu avanços às reivindicações da Igreja, como no caso do ensino e do casamento.

3.1 Os operários

Inúmeros artigos publicados no jornal católico faziam referência aos operários no mundo comunista soviético. Sempre composta por uma denúncia sobre os horrores vivenciados pelo operariado sob o regime comunista.

Era uma verdadeira caçada humana, sem piedade alguma, contra camponeses que procuravam passar a fronteira e abandonar o tão gabado paraíso soviético. (...) ‘Todas as noites se ouvem tiros de fusil e por semanas inteiras ficam os cadáveres sobre o gelo. É a ‘Tcheka’ que mostra aos habitantes da fronteira e, por meio deles, ao mundo inteiro, o verdadeiro aspecto do governo que a si mesmo se chama de ‘governo da ditadura proletária’. É do país onde se constrói o Estado socialista que fogem em massa os infelizes cidadãos e é contra eles que o governo envia, como ultima saudação socialista, balas de fuzil. (...) Nós denunciamos esta barbárie ao mundo inteiro e apelamos á classe operaria. O governo soviético tem ensanguentado precisamente as águas daquele rio que deveria separar o país da exploração capitalista, do país da liberdade revolucionária.22

Podemos identificar a utilização da identidade dos opostos na construção anticomunista no artigo do jornal. Os operários soviéticos foram apresentados como massa de exploração, como prisioneiros, como escravos sob o regime comunista. Estava presente a fome, também explorada pela matéria do jornal, segundo o qual, os operários, pouco tinham para comer, era dado uma pequena ração que deveria servir para o mês todo23. Os descontentamentos dos operários frente a realidade do dito paraíso soviético também foi abordado no jornal,

O ‘Udarnik Uglia’, no seu número 7, diz que as condições de alimentação e habitação dos mineiros russos são catastróficas. (...) No número 12 do mesmo jornal operário. Na mina de ‘Golubowka’ os salários dos mineiros quase sempre são pagos com grande atraso, de tal forma que em fins de janeiro de 1932 ainda não se haviam pagos os salários de dezembro anterior.24

E ainda, apresentou um relato como legitimação: “Eu tenho visto a alimentação dos pobres operários nos restaurantes do governo: causava nojo - e, ao dizer isto, o semblante de Herrera traduzia indignação e horror - era uma comida indigna de cães e porcos.”25

21 Estrela do Sul, 12/06/31, p. 1.

22 Estrela do Sul, 29/04/32, p. 1.

23 Confira Estrela do Sul, 19/06/32, p. 1.

24 Estrela do Sul, 18/09/32, p. 1.

25 Estrela do Sul, 16/02/33, p.1.

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Por fim, destacamos uma reportagem que abordou a vida operária na Rússia Soviética, onde identificou Stalin como o ídolo e que no momento de necessidade clamavam por Deus.

Por toda a parte são numerosos os famintos e mendigos, as mulheres que abandonam suas crianças pelas estradas. (...) Conseguir o pão é uma tortura, pois com o pequeno pedaço comprado devo passar por duas filas de mãos famintas, com os rostos macilentos, a qual nos braços esqueléticos tem crianças que gritam e choram, ou então em meio de velhos a cair, que imploram a todos ‘por piedade, em nome de Jesus Cristo’ um pedacinho de pão (é curioso gritarem em nome de Deus que aprenderam a negar, e não em nome de seu ídolo, Stalin!)26.

Na construção da identidade dos opostos, a Igreja gaúcha investe nos Círculos Operários para “proteger” os operários do avanço da ideias comunistas. Declarava estar na defesa dos interesses materiais dos trabalhadores, dos interesses intelectuais e morais dos mesmos e de suas famílias27. Na capital gaúcha, o C.O.P.A. (Círculo Operário Porto Alegrense), foi inaugurado em 28 de fevereiro de 1934. Acontecimento que recebeu ampla cobertura do jornal da arquidiocese,

A organização do C.O.P.A está em franco progresso. Em 28 de fevereiro foi instalado o primeiro núcleo do Círculo no bairro de Petrópolis, o qual está já em pleno funcionamento, tendo já um curso noturno com 35 alunos para os associados.No dia 15 do corrente foi inaugurado o núcleo de S. João, o qual no dia 27 iniciou o seu curso noturno. No dia 25 realizou-se a primeira reunião geral ordinária de sócios, tendo-se desenrolado um programa de caráter informativo, instrutivo e diversivo. No dia 27 deste mês, realizou-se a instalação do núcleo Navegantes tendo como sede provisoriamente, o colégio paroquial.28

3.2 – A família

Em defesa da família, foram publicados artigos apresentando o comunismo soviético como maléfico, visando apenas a sua destruição. Enfatizando a bestialização do ser humano através da desagregação familiar.

Há, porém, uma causa do destroço que, manifestamente, supera todas as outras: a desagregação da família, que na Rússia chegou ao fundo do mais trágico abismo. Na dispersão das crianças e no seu embrutecimento tem enorme responsabilidade o governo bolchevista, que conspurcou com os seus princípios a santidade do lar. O bolchevismo profanou a família transformou as casas em outros tantos covis, onde o homem se entrega aos instintos bestiais, onde a mulher é um instrumento de prazer, onde os filhos estão marcados das consequências das aberrações

26 Estrela do Sul, 21/09/33, p. 4.

27 Estrela do Sul, 07/12/33, p. 1.

28 Estrela do Sul, 26/04/34, p. 1.

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paternas e abandonam iguais a animais o feto natal para se entregarem à vida das estradas.29

A família russa foi apresentada como a destruição total, tendo como a única causa o comunismo lá implantado. A crítica da Igreja estava voltada para o divórcio, indiretamente podemos nos reportar a discussões e debates que eram realizados no Brasil naquele contexto.

O divórcio, na Rússia, não exige quaisquer formalidades: basta entrar na repartição do registro civil e manifestar o desejo de se divorciar, para estar roto o matrimonio. Há indivíduos que se divorciaram sessenta (60!) vezes, dois irmãos, em Moscou, trocaram as mulheres depois de dois meses de convivência; há casos em que indivíduos obtiveram dois e até três divórcios no espaço de 24 horas.30

O Arcebispo D. João Becker, em sua 19º Carta Pastoral declarou que o comunismo tem como objetivo a destruição da religião, através da destruição família, do operariado e da educação. Em relação à mulher e a família declarou,

Ela [a mulher] já não goza mais dos encantos de um lar, onde faça parte integrante de uma família. Os homens, dominados pelas paixões desregradas, brincam de tal forma com o que chamam amor, que a mulher se torna objeto de caça de livres atiradores. Sem o conhecimento da mulher casada, pode o marido repudiá-la. Basta que ele se desagrade do almoço servido pela esposa, para póla na rua.31

Segundo o arcebispo, somente a religião cristã dignificava a mulher e seu papel na sociedade, assim como sendo membro fundamental para a instituição família,

Somente a religião cristã pode salvar a dignidade da mulher, santificando sua união com o homem, por meio de um sacramento. Só a religião divina tem o poder de conferir á esposa e á mãe uma posição social aureolada de respeito e honra só ela possui o condão de lhes proteger a dignidade no conceito da sociedade humana.32

3.3 Educação.

Nesta última parte do texto, nos atemos à análise de algumas reportagens publicadas no jornal Estrela do Sul referente à educação. Na década de 1930 a Igreja estava envolvida na luta contra a laicização do ensino. Neste sentido, o jornal desempenhou função significativa. Através das suas páginas temos a busca por relacionar os males

29 Estrela do Sul, 04/10/31, p. 1.

30 Estrela do Sul, 04/10/31, p. 1.

31 BECKER, João. O Comunismo Russo e a Civilização Cristã. Porto Alegre: Centro da Boa Imprensa, 1930, p. 48.

32 BECKER, João. Op. Cit. p. 49.

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que se perpetuavam na União Soviética com o ensino deixado sob os cuidados do Estado. A seguir destacamos uma exemplificação das publicações presentes no jornal.

Mas para guerrear com Deus é preciso extingui o pudor já na alma da criança. E isto vem efetuando o bolchevismo já ha muitos anos. As crianças que, conforme a expressão de Lactancio, deviam ser educadas nos regaços de suas mães, “in gremio matriz erudiantur”, são arrancadas desapiedadamente ao seu amor. Para que? Para receberem do Estado uma educação que é a aberração de toda a lei moral. Obrigam meninos e meninas a dormirem em dormitórios comuns; ainda levam mais longe a sua felonia: premiam aos meninos que seduzirem meninas. Deste “paraizo” da educação comunista passam para o banco das aulas. As crianças, sem temor de Deus e com o coração corrompido, dão-se ao vicio degenerescente do álcool e é caso raro encontrar-se menino ou menina que não seja alcoólico. Obrigam a pobres meninas de 12 e mais anos a representarem cenas abertamente imorais, às quais representações todos os mais alunos e alunas devem comparecer.33

A identificação do ensino laico com o comunismo ficou explicitada na citação destacada. Dom João Becker declarou que “o Estado comunista considera os filhos como sua exclusiva propriedade34”, ou seja, negando os divinos direitos de serem educados por seus pais, no convívio da família. Ainda segundo D. João Becker, “nem a própria mãe tem direito sobre o filho. O seu amor materno, segundo a doutrina bolchevista, é um instinto egoísta e irracional, só digno de animais”35. Ou seja, a família teria por finalidade apenas a reprodução de novos contingentes para servirem os propósitos do comunismo, mas a educação destes novos membros é de responsabilidade do Estado bolchevista.

Percebe-se a tentativa de identificar o laicismo como um dos caminhos que conduziria, ou possibilitaria a divulgação do comunismo. Tornar o ensino laico no Brasil significaria permitir o comunismo. Assim, o católico foi convocado a combater o ensino laico. Novamente teremos uma identificação entre os opostos. Católico defende o Brasil do comunismo. Já aqueles que são favoráveis ao ensino laico estariam identificados com o comunismo.

4. Apontamentos finais

Visando um fechamento do texto, acreditamos ser produtiva a aplicabilidade da identidade dos opostos. Exposta de maneira breve neste trabalho, a campanha anticomunista católica analisada através de artigos e notícias publicadas no jornal Estrela do Sul na década de 1930, podemos indicar que ser católico estaria identificado com ser brasileiro. Ser brasileiro estaria em desacordo com o comunismo. O comunismo

33 Estrela do Sul, 25/05/30, p. 1.

34 BECKER, João. Op. Cit. p. 53.

35 Id. Ibid., p. 53-54.

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seria o promovedor do divórcio e do ensino laico. Ser católico seria se opor a proposta de tornar o ensino brasileiro uma responsabilidade do Estado. O mesmo se aplicaria ao casamento, católico seria opositor do casamento civil e defenderia a tradição, o casamento sob bênçãos da Igreja Católica, preservando a família, salvando o Brasil.

Acreditamos ser possível a utilização da identidade dos opostos como instrumento de análise na construção de imaginários, inclusive os imaginários políticos.

O imaginário pode estar presente na construção da identidade nacional, ou seja, opondo-se ao governo provisório, sendo favorável ao ensino laico ou casamento civil, votando em candidatos que não se identificam com os preceitos católicos, poderemos identificar um oposicionista político, um não brasileiro no discurso católico, que na década de 1930, poderia ser identificado como agente do comunismo soviético.

Por fim, acreditamos ter contribuído para evidenciar que o discurso anticomunista católico perceptível nas páginas do jornal Estrela do Sul não tomou como alvo unicamente o partido político identificado com o pensamento comunista. Demonstramos através dos exemplos destacados que se construiu uma identidade com diversos setores da sociedade passíveis de serem afetados pelo comunismo. Construiu-se igualmente a ideia da ameaça iminente e amplamente divulgada, tendo como referência um local distante, a Rússia Soviética, que através das páginas do jornal estavam próximas, sendo muitas vezes indicados casos semelhantes no Brasil e mesmo em Porto Alegre.

5. Fonte

Jornal Estrela do Sul (1930-1936). Arquivo da Cúria Metropolitana de Porto Alegre – RS.

6. Referências Bibliográficas

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Clientelismo, coronelismo e relações de poder em Santa Maria/RS na Primeira República (1889 – 1895)

FaBrício riGo Nicoloso1

aNdré ÁTila FerTiG2

Resumo: Este artigo objetiva compreender o contexto político do Rio Grande do Sul nos primeiros anos da República (1889-1895), analisando as formas pelas quais o município de Santa Maria estava inserido nas relações entre poder local e poder estadual. Para tal, serão feitas reflexões tendo como referencial teórico a Nova História Política, através da análise do conteúdo das cartas que Coronéis republicanos de Santa Maria enviavam a Júlio de Castilhos, possibilitando um entendimento com maior clareza da cultura política do período. Palavras-chave: Santa Maria, coronelismo, relações de poder.

Abstract: This article has for objective understand the political scene of Rio Grande do Sul in the six first years of Republic (1889 - 1895), analyzing the ways in which the town of Santa Maria was inserted in relations between local power and state power. For this propose, will be made reflections having as theoretical reference the New Political History, through of content analysis of the letters sent by political republicans authorities of Santa Maria to Júlio de Castilhos, enabling a clearer understanding of the political culture of that time. Keywords: Santa Maria, coronelismo, power relations.

Introdução

Este artigo objetiva compreender o contexto político do Rio Grande do Sul nos primeiros anos da República (1889-1895), analisando as formas pelas quais o município de Santa Maria estava inserido nas relações entre poder local e poder estadual, levando em conta os jogos de interesses e os acordos estabelecidos entre a elite política local e o poder central do PRR tendo à frente a chefia de Júlio Prates de Castilhos.

Para o desenvolvimento deste objetivo serão feitas algumas reflexões, tendo como guia os estudos teóricos da Nova História Política, que ajudam a esclarecer tanto os processos políticos inscritos na longa duração, mentalidades políticas e culturas políticas, quanto os fatos e eventos característicos da curta duração, como as rupturas, as revoluções.1 Aluno do curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); Órgão financiador: CAPES; e-mail: [email protected]

2 Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); e-mail: [email protected]

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A Nova História Política, através dos estudos oriundos basicamente da escola francesa, representada por René Rémond, Jacques Julliard, Pierre Rosanvallon, entre outros precursores dos anos 1970/80, tornou possível a renovação do político, campo da história que foi vítima de uma certa ojeriza por parte das primeiras gerações dos Annales, de Lucien Febvre e Marc Bloch, que privilegiaram o econômico e o social, justamente por defenderem a superação da história política tradicional, que era factual e só narrava os acontecimentos relativos ao Estado e aos heróis de guerras e batalhas. A história política renovada ampliou os horizontes metodológicos e lançou novos olhares sobre os objetos da política, dando origem a novas abordagens e conceitos.

Assim, os historiadores passaram a se debruçar sobre o conceito de cultura política, que se originou do contato interdisciplinar principalmente com a antropologia e a sociologia. Para Ângela de Castro Gomes (2005, p. 30), a categoria cultura política foi definida como “um sistema de representações, complexo e heterogêneo, mas capaz de permitir a compreensão dos sentidos que um determinado grupo atribui a uma dada realidade social [...]”.

Para René Rémond (2003) a história política possui um campo teórico/conceitual que lhe é próprio e que não se sobrepõe aos outros campos, como o social, o econômico ou o cultural, mas que mantém com eles uma relação dialética, tendo “muito a contribuir em troca – não apenas marginalmente – para todos os outros setores da história” (RÉMOND, 2003, p. 10). Indo ao encontro do pensamento de Rémond, Julliard (1976, p. 180-1) afirma que “o político, como o econômico, o social, o cultural e o religioso, acomoda-se aos métodos os mais diversos, inclusive os mais modernos”.

Tendo sido esclarecidos alguns pontos do referencial teórico utilizado neste estudo, cabe fazer menção às fontes e a metodologia utilizada para o desenvolvimento do mesmo. Será feita análise de conteúdo das cartas que eram enviadas por sujeitos atuantes na vida política de Santa Maria a Júlio de Castilhos. Estas cartas foram encontradas no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS) – Fundo Acervo Júlio de Castilhos -.

Refletindo sobre a Análise de Conteúdo (AC), Caregnato e Mutti (2006) apontam que a AC constitui-se enquanto uma “técnica de pesquisa que trabalha com a palavra, permitindo de forma prática e objetiva produzir inferências do conteúdo da comunicação de um texto replicáveis ao seu contexto social” (Ibid. p. 682). O mais importante a se perceber nesta forma de análise textual, ainda segundo as autoras, é que ela permite que o conteúdo da documentação seja agrupado em categorias temáticas, segundo uma classificação que o pesquisador venha a definir, conforme seu tema e problema de pesquisa.

Ao codificar os textos das cartas que eram enviadas pelos republicanos de Santa Maria a Júlio de Castilhos, se fará a análise de seus conteúdos por categorias temáticas, conforme as questões que surgirem do diálogo com a referida documentação.

Como este estudo compreende a atuação de sujeitos da elite santa-mariense, é

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necessário que se faça uma breve conceituação sobre qual a noção de elite aqui utilizada, já que trata-se de um termo polissêmico.

Fazendo citação ao sociólogo suíço Giovanni Busino, Heinz (2006, p. 7) traz a seguinte definição do termo, que sintetiza a forma como será trabalhado ao longo do texto:

No plural, a palavra “elites” qualifica todos aqueles que compõem o grupo minoritário que ocupa a parte superior da hierarquia social e que se arrogam, em virtude de sua origem, de seus méritos, de sua cultura ou de sua riqueza, o direito de dirigir e negociar as questões de interesse da coletividade.

O texto se dividirá em dois momentos. No primeiro será feita uma abordagem geral do contexto político do Rio Grande do Sul na primeira década da República, compreendendo como se deu a ascensão do PRR ao poder estadual e as relações de poder que permearam as políticas entre o Estado e os municípios. No segundo, será realizada uma reflexão mais aprofundada de como Santa Maria estava inserida nestas relações de poder, demonstrando que o poder local estava marcado por relações clientelistas de favorecimento dos “amigos” e que, desde os primeiros momentos da República, haviam disputas internas no Partido Republicano do município, em que os coronéis locais se agrupavam em facções que disputavam a preferência de Júlio de Castilhos.

1 – O contexto político do Rio Grande do Sul nos primórdios da República

Para que melhor se vislumbre o cenário político rio-grandense à época da primeira república, é necessário que se volte o olhar pelo menos até meados dos anos 1880, pois foi o período em que o movimento republicano tornou-se mais intenso, principalmente devido ao retorno à Província de um grupo de jovens que haviam cursado Direito em São Paulo, pertencentes a setores influentes da elite e que chegavam ao Rio Grande intensamente influenciados pelos ideais republicanos e pela doutrina positivista, defendendo a abolição, a separação entre Estado e Igreja, o casamento civil, além de levantarem uma série de outas bandeiras.

Neste período os republicanos rio-grandenses estavam buscando reconhecimento, tanto para ganhar destaque perante as outras agremiações partidárias, quanto para conquistar a opinião pública. Então, a fundação de um clube republicano em qualquer município onde o PRR aspirasse estabelecer sua influência era o primeiro passo a ser dado, pois a partir dos clubes, os correligionários se organizavam para a fundação de um jornal e posteriormente da célula partidária local, sendo que, segundo Capovilla (1990), era para este esforço que os republicanos direcionavam sua ação nos anos da propaganda.

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A propaganda republicana exerceu um papel fundamental na formação dos novos quadros do partido e no convencimento da opinião pública, o que, devido às particularidades do contexto de decadência das instituições monárquicas, definia-se como a luta principal, pois o Partido Liberal, que tinha à frente Gaspar Silveira Martins, constituía-se como “o mais influente da Província, dominando a Guarda Nacional, o Legislativo provincial e a maioria dos governos municipais”. (RECKZIEGEL, 2007, p. 23). Para a disputa da opinião pública na imprensa, o PRR em 1884 fundou o jornal “A Federação”, sendo Júlio de Castilhos por muitos anos o seu redator.

Heloísa Capovilla (1990) destaca a importância que a organização interna3 do PRR teve em sua trajetória até atingir o poder, pois foi através da disciplina e da extrema rigidez da sua hierarquia que os republicanos castilhistas estabeleceram-se no governo.

O movimento republicano pode ser entendido dentro de um cenário onde estavam ocorrendo rearranjos entre setores da elite nacional e regional, num contexto de mudanças graduais. Para Ângela Alonso (2009, p. 88) “as fissuras geradas pela mudança [...] abrem novas linhas de ação no ambiente político, incentivando mobilizações coletivas por parte de alijados pela coalização política no poder”.

No caso brasileiro, no qual o Rio Grande do Sul estava inserido, não houve uma crise profunda. A reorganização das elites em torno das novas necessidades econômicas que o capitalismo industrial passou a exigir, não implicou numa ruptura política, pelo contrário, a República se alicerçou sobre os antigos quadros institucionais do Império.

Naquele momento histórico, os republicanos viam a necessidade de convencer a população, através de sua ideologia, de que a República era o melhor regime de governo, de que a ditadura republicana era necessária para a manutenção da ordem e de que eram os portadores de uma “pureza de intensões” com a qual pretendiam conduzir o país e o estado. Tanto Júlio de Castilhos, quanto os outros membros do PRR certamente acreditavam em suas estratégias políticas e eram guiados pela forte influência que tinham da doutrina positivista do francês Augusto Comte.

Com a República, Júlio de Castilhos passou a se utilizar de toda sua astúcia política e capacidade retórica para atacar o maior inimigo do PRR no contexto, o Partido Liberal, através da imprensa em “A Federação” e pressionando o então Presidente do Estado, Visconde de Pelotas, no sentido de afastar os liberais dos mandos de governo e

3 Capovilla (1990, p. 89) elaborou um esquema muito esclarecedor, que explica a organização interna do PRR: O partido político PRR criava normas políticas discutidas no CONGRESSO REPUBLICANO, que elaborava diretrizes e leis para os CLUBES E NÚCLEOS, que remetiam notícias para a IMPRENSA PARTIDÁRIA. Num sentido inverso o PRR divulgava doutrina pela IMPRENSA PARTIDÁRIA, que remetia mensagens e doutrina aos CLUBES E NÚCLEOS, que enviavam representantes para o CONGRESSO REPUBLICANO. Todas estas instâncias, por sua vez, estavam direcionadas à COMISSÃO EXECUTIVA, que era o órgão central. Os CLUBES E NÚCLEOS enviavam correspondências à COMISSÃO EXECUTIVA, que executava normas dos congressos para os CLUBES E NÚCLEOS. O CONGRESSO REPUBLICANO legislava e deliberava para a COMISSÃO EXECUTIVA, que prestava contas ao CONGRESSO REPUBLICANO. A IMPRENSA PARTIDÁRIA refletia o pensamento da COMISSÃO EXECUTIVA, que fazia a sua atuação através da IMPRENSA PARTIDÁRIA. O PRR era representado pela COMISSÃO EXECUTIVA.

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dos cargos públicos. O período entre novembro de 1889 e junho de 1892, quando Castilhos assume

definitivamente a presidência do Estado, foi marcado pela maior instabilidade política e administrativa que o Rio Grande do Sul viveu em toda a sua história republicana, com inúmeros políticos assumindo as posições de mando e sendo depostos em curto tempo de governo. Um fato importante que se deu neste intervalo de três anos foi a elaboração da Carta Constitucional Republicana escrita por Júlio de Castilhos em 14 de julho de 1891. Pelo fato de Castilhos ter personificado a constituição estadual às suas vontades, excluindo de sua elaboração companheiros dos tempos de propaganda como Assis Brasil, Demétrio Ribeiro e Barros Cassal, ocorreu o racha interno no PRR, dando origem à oposição republicana. Foi justamente esta oposição que no curto espaço de tempo de novembro de 1891 até o mês de julho de 1892, governou o Estado numa Junta Governativa Provisória formada por Assis Brasil, Barros Cassal e Luis Osório, que ficou conhecida pejorativamente como “governicho”, alcunha que lhe foi dada pelo próprio Castilhos.

Com a tomada definitiva do governo estadual pelos republicanos castilhistas no mês de junho de 1892 começaram as exonerações nos cargos públicos e a perseguição aberta às oposições, tanto pelo empastelamento de seus jornais, quanto pelas prisões.

A construção do Estado autoritário no Rio Grande do Sul não se deu apenas pela coerção física, mas principalmente com a maneira pela qual transcorreu o rearranjo de forças entre poder local e poder estadual, através das negociações do governo central com os municípios, tendo na figura dos coronéis uma peça importante nesta rede de poder. Os republicanos souberam jogar com o poder que os coronéis possuíam, deixando que se preservassem os esquemas informais de poder, mas, ao mesmo tempo, concedendo vantagens aos chefes locais que fossem leais ao PRR, constituindo o que ficou conhecido pela historiografia como sistema político coronelista.

Segundo o historiador Gunter Axt (2007), o “coronelismo é um sistema político nacional, baseado em barganhas entre o governo e os coronéis” (AXT, 2007, p. 89 Apud. CARVALHO, 1998, p. 132). O autor também destaca que

Trata-se de uma “rede de compromissos”, segundo a qual o governo estadual, fortalecido pelo federalismo fiscal e institucional da República Velha, “garante para baixo o poder do coronel sobre seus dependentes e seus rivais, sobretudo cedendo-lhe o controle dos cargos públicos”, enquanto “o coronel hipoteca seu apoio ao governo, sobretudo na forma de votos” (Ibid, 2007, p. 89).

Segundo Heloísa Capovilla (1990) “o sistema de reciprocidade de favores é condição

sine qua non para a sobrevivência do coronelismo, constituindo-se também a fidelidade dos coronéis aos chefes maiores em outra condição importante” e desta “aliança entre poder local e poder estadual resultou que todos os cargos políticos locais foram, em geral, preenchidos por indicação do chefe local” (CAPOVILLA, 1990, p. 21).

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A aparente contradição entre o poder de mando local do coronel e sua cooptação pelo governo republicano, em realidade é explicada pelo fato de que:

Castilhos iniciou uma atuação junto ao município, que foi depois continuada [...]. Na nova articulação não havia, na prática, contradição entre a centralização do PRR e a descentralização do coronelismo, mas um ajuste com as condições históricas dadas mediante a adequação do positivismo-castilhismo às condições pré-existentes de mando local, assentado numa pratica autoritária. (FÉLIX, 1987, p. 28).

Na prática, o que ocorria, era uma adequação das conveniências dos coronéis aos interesses do partido no município em que se dava seu âmbito de atuação. O chefe local que atendesse aos interesses do PRR obteria facilidades político-administrativas e até mesmo vantagens financeiras, garantindo em troca os votos para os candidatos do partido por parte do seu “curral eleitoral”, além de sua incorporação à Brigada Militar em períodos de Conflito.

2 – As relações de poder nos bastidores do PRR: a análise das cartas trocadas entre os coronéis republicanos de Santa Maria e Júlio de Castilhos

A análise das cartas e correspondências que eram remetidas entre os correligionários do PRR permite a reconstrução de conflitos e tensões, públicas ou pessoais, que muitas vezes não eram divulgados na imprensa partidária republicana, que era composta pelo jornal “A Federação” a nível estadual e pelos jornais locais, vinculados aos núcleos e clubes republicanos.

Para a análise destas cartas, será feita uma divisão de seus conteúdos em duas temáticas: 1 – Clientelismo e trocas de favores entre os coronéis republicanos locais e Júlio de Castilhos; 2 – Conflitos políticos e disputas internas no Partido Republicano de Santa Maria.

2. 1. 1 – O favorecimento dos “amigos”: o clientelismo nas cartas enviadas pelos coronéis republicanos locais a Júlio de Castilhos

A cultura política de finais do século XIX, na qual Santa Maria estava inserida, era marcada pela corrupção no exercício de funções na esfera pública, pois, entre outros problemas, frequentemente “os postos administrativos eram preenchidos por indivíduos que mantinham estreitas relações pessoais, advindas tanto de laços de afetividade como de consanguinidade” (PISTOIA, 2011, p. 25). O que também constituía uma prática comum era o partido que estivesse no governo favorecer os “amigos” com cargos de

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confiança, ao mesmo tempo em que caçava os mandatos de quem pudesse representar um “incômodo” aos seus interesses.

Segundo Richard Graham (2003), na medição de forças entre dois ou mais chefes locais, levava vantagem aquele que conseguisse arrebanhar mais clientes ao seu favor e, em função disso, “indicações para cargos oficiais ajudavam a ampliar o círculo de um chefe” (GRAHAM, 2003, p. 17). Neste sentido, torna-se importante destacar o fato de que “a procura de cargos públicos por parte da autoridade local continuou a caracterizar a República, como ocorrera durante o Império” (Ibid. 2003, p. 20). Nas palavras de Graham (Ibid. 2003 p. 17) “a família e a unidade doméstica constituíam os fundamentos de uma estrutura de poder socialmente articulada e o líder local e seus seguidores trabalhavam para aumentar essa rede de dependência”.

Os coronéis de Santa Maria procuravam ampliar sua esfera de influência nos setores públicos através da indicação de pessoas de sua confiança para o preenchimento de cargos, através dos quais pudessem estar representados os seus interesses, obtendo mais poder à medida que conseguissem colocar mais clientes à sua disposição. No entanto, para que obtivessem estes benefícios pessoais, era preciso que sua indicação passasse pela aprovação do líder máximo do PRR, Júlio de Castilhos.

Então, algumas vezes os coronéis remetiam cartas ao chefe pedindo pela sua intervenção na promoção de uma pessoa de sua família, ou do seu círculo de amigos, outras vezes o pedido se direcionava à sua própria promoção, que vinha sempre acompanhado por juras de lealdade pessoal e partidária, pois a ocupação do cargo público era seguida da promessa de representação dos interesses do Partido e do chefe de Estado na localidade.

Em carta enviada a Júlio de Castilhos no dia 12 de outubro de 1892, período em que o PRR em Santa Maria estava recompondo os quadros do funcionalismo público com figuras da confiança de Júlio de Castilhos, após a derrubada do “governicho” do poder, Carlos Haag, sujeito da confiança de Castilhos no cargo de Agente dos Correios, declaradamente pedia que o líder do Partido intercedesse a seu favor, numa questão de cunho clientelista:

Excelentíssimo ChefeEstimo que tenhas gozado saúde, é quanto eu o desejo, no dia 5 de agosto fui reentregado na Agência de Correios desta cidade, que assumi o exercício no dia 01 de setembro. Nessa data, indiquei a minha mulher para ajudante do Correio e isso no dia 24 do mesmo mês tive um ofício do administrador dos correios do Estado dizendo que, não podia nomear Elisa Haag para ajudante do Correio, visto que esta Agência era de 3ª [ilegível] e que só serviam senhoras nomeadas para agências de 4ª [ilegível], assinado dito ofício estou decidido a pedir a minha exoneração, sendo que, como Agente, não podendo cuidar de outros negócios, este emprego só não me dou para mim. Portanto peço-vos [ilegível] abstem de Diretoria Geral dos Correios, para a nomeação de minha velha [...].4 (Fundo A. P. Júlio de Castilhos, série 08, subsérie Correspondência recebida, 12/10/1892, AHRS).

4 Fundo A. P. Júlio de Castilhos, série 08, subsérie Correspondência recebida, 12/10/1892, AHRS

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Carlos Haag solicitou exoneração do cargo de Agente dos Correios porque precisava tratar de assuntos pessoais ligados à política, que não ficam explícitos na carta, mas que podem ser exemplificados em sua ação no ano seguinte (1893), quando liderou uma frente de combate na Revolução Federalista. Pelo fato de estes compromissos exigirem mais tempo de dedicação, não poderia continuar no cargo que ocupava frente aos correios, fazendo então o apelo a Castilhos para que intercedesse a favor da posse de sua mulher. Desta forma, estaria garantindo a perpetuação de sua influência pessoal na Repartição Telegráfica.

Um caso interessante para análise de promoção pessoal ligada à troca de favores políticos é o de Herculano dos Santos, que foi um fiel correligionário de Júlio de Castilhos no Partido Republicano de Santa Maria e que, durante os primeiros anos da República, ocupou o cargo de Serventuário Vitalício do ofício do 2º tabelião do público, judicial e notas do cível e comercial, possuindo o próprio Cartório, que funcionava das 9 horas da manhã às 5 horas da tarde5. Sabendo do cargo que o mesmo ocupava, cabe levantar algumas questões: Quais as estratégias utilizadas por este agente da história de Santa Maria até chegar à posição social na qual estava, de Serventuário Vitalício, possuindo seu próprio Cartório? Esta ascensão estaria relacionada a alguma vinculação política e partidária? O conteúdo de uma carta enviada por Herculano dos Santos a Júlio de Castilhos no dia 26 de agosto de 1890 traz alguns indícios que podem ajudar na compreensão deste caso, e embora não possibilite a obtenção de respostas definitivas, permite que sejam levantadas algumas hipóteses no intuito de se tentar responder às questões levantadas. Nestes termos foi escrita a carta:

Os meus sinceros pêsames pelo golpe que vos acaba de ferir no íntimo [ilegível] com o falecimento de vossa virtuosa progenitora. Junto a esta encontrará o meu digno correligionário uma carta da Comissão Executiva daqui [ilegível] a minha pretensão de ser nomeado Secretário vitalício do segundo cartório desta cidade. O concurso para preenchimento do mesmo ficara marcado à 29 do mesmo mês. Estando eu habilitado a exercer esse lugar, como poderá o meu correligionário verificar pelos documentos que apresentei ao governo do Estado, expus que não [ilegível] duvidoso eu prestar o vosso valioso auxílio para o bom andamento da minha pretensão pelo que antecipo rendo já os meus agradecimentos.6

Pelo conteúdo da carta fica quase confirmada a hipótese de que a nomeação de Herculano dos Santos como Secretário vitalício do 2º Cartório da cidade esteve vinculada a questões políticas e de interesse partidário. O principal indício que reforça esta ideia é o próprio fato de a carta ter sido enviada ao líder máximo do Partido Republicano três dias antes da realização do Concurso Público para preenchimento do cargo. Isto fica mais claro ainda se avaliadas as próprias palavras do pretendente ao cargo, que dizia que não seria duvidoso que ele prestasse o valioso auxílio de Castilhos para o bom

5 HERCULANO DOS SANTOS. O Combatente, Santa Maria 23 de Abr. 1893, p. 1. AHSM

6 Fundo A. P. Júlio de Castilhos, série 08, subsérie Correspondência recebida, 26/08/1890, AHRS

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andamento de sua pretensão. Como casos assim davam-se numa época em que em todo o Rio Grande do Sul os

cargos públicos eram quase sempre preenchidos por figuras da indicação do Partido do Governo e o seu exercício estava diretamente relacionado aos compromissos estabelecidos entre os Coronéis Locais e sua clientela e o Chefe de Estado, fica claro o comprometimento assumido por Herculano dos Santos para com Júlio de Castilhos e o PRR, a partir do momento em que conseguiu sua nomeação para o cargo pretendido.

2. 1. 2 - Conflitos políticos e disputas internas no Partido Republicano de Santa Maria

O conteúdo destas cartas também permite a percepção de conflitos entre facções rivais no interior do próprio partido, a revelação de pendengas que entrecruzavam interesses públicos e privados, algumas vezes em textos de caráter confidencial, que trazem à luz da história fatos que a imprensa republicana não noticiava, fosse por não ser do interesse dos chefes que chegasse ao conhecimento do público, ou em função da censura que sofriam os jornais.

No dia 10 de maio de 1893, nos momentos iniciais da Revolução Federalista, irrompe uma grave crise no Conselho Municipal de Santa Maria, conforme Beltrão (1979, p. 377) relata como sendo um movimento “em oposição ao Intendente Valle Machado [...]”.

Dois meses antes deste incidente, no dia 08 de março de 1893, o fiel correligionário de Castilhos no PRR de Santa Maria, Coronel Ernesto Beck, enviava uma carta em caráter reservado ao líder republicano, na qual relatava com maiores detalhes os incidentes envolvendo facções opostas dentro do Conselho Municipal. O Coronel, um dos chefes da Guarda Municipal que comandou uma frente de batalha durante a federalista, pede a intervenção de Júlio no conflito que estava se dando entre o grupo liderado por Ramiro de Oliveira7 e o outro, que tinha à frente o Coronel Valle Machado8:

7 Nos primeiros momentos da República, foi nomeado pelo Governo Provisório do Estado 3º Suplente do Juízo Municipal, após o mesmo governo ter exonerado os membros que ocupavam as posições anteriormente. Em 23 de fevereiro de 1891, foi nomeado por Castilhos para compor a Segunda Comissão Intendencial. Segundo Belém (2000, p. 169) no ano de 1891 “tendo, em 18 de dezembro, o Governador Provisório General Barreto Leite, enviando à Intendência o Decreto n. 5, de 09 do mesmo mês, com o qual eram dadas instruções para ser feita uma qualificação suplementar de eleitores, o intendente-comissário Ramiro de Oliveira não concordou que fosse cumprida a ordem governamental [...]”. Membro do Partido Republicano de SM, Ramiro de Oliveira seguiu sempre à risca as ordens de Júlio de Castilhos e, posteriormente, de Borges de Medeiros, o que o garantiu a nomeação como Intendente Municipal no período de 1908 a 1912.

8 3 - Um dos fundadores do Clube e do Partido Republicano de Santa Maria, Francisco de Abreu Valle Machado era um correligionário de confiança de Júlio de Castilhos, tanto é que foi o Intendente Municipal que mais tempo permaneceu no poder frente aos negócios do município no período de 1892 a 1900. Durante sua administração, bateu de frente com facções internas do partido local, sendo seu maior opositor o próprio Ramiro de Oliveira.

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Prezadíssimo...Depois de fazer sinceros votos pela conservação da vossa saúde, passo a orientar-vos do motivo desta. Fiel às vossas ordens, aqui vou lutando com milhares de dificuldades, senão com [ilegível] quadra excepcional que atravessamos, um pequeno grupo de companheiros, aliás moços muito distintos, dirigidos pelo Saudosíssimo Ramiro, lembravam-se em má hora, estribados em motivos fúteis, de abrir luta com o nosso Intendente Coronel Valle Machado, pensando eleger uma comissão executiva. Como bem podeis ver, neste momento, uma comissão executiva, é completamente extemporânea, só trazendo ao partido ressentimentos e ódios. Ainda mais, posso afirmar-vos que tal comissão não obteve mais de 40 votos em todos os distritos, representando assim, uma insignificante minoria [...].9

Neste trecho da carta fica claro que Ernesto Beck se posicionava a favor de Valle Machado, pedindo que Castilhos interviesse em benefício do Intendente, julgando desfavorável ao Partido uma divisão como a que estava se dando, tendo como maior argumento o momento de crise em que estava vivendo o Rio Grande, conjuntura em que seria desfavorável permitir a formação de grupos minoritários.

Num segundo momento da carta, o Coronel Ernesto Beck passava a fazer alguns relatórios referentes ao conflito federalista e mais uma vez posicionava-se contrário à divisão no partido, utilizando o contexto de instabilidade do estado como argumento:

Passo a dar-vos conta, de serviço feito nesta localidade relativo ao contingente expedido para S. Gabriel. O Tenente Coronel Justo Rocha, Comandante do 31, forneceu-me um custo de 50 homens para a marcha. O Tenente Coronel Haag, Comandante do 72º forneceu-me com dificuldades 64 homens, sendo preenchido no Corpo 127 voluntários o contingente que marcharia. Lá a aludida Comissão Executiva, se pode atribuir o efeito negativo de semelhante reunião, pois que os membros correligionários menos esclarecidos, vendo a luta entre companheiros ficam vacilantes. Tenho sido auxiliado na missão em que me acho incumbido, pelo Ten. Cel. Tobias, e Majores Felisbino Beck e Fidêncio de Oliveira e Silva, visto que, para não exacerbar mais os ânimos, tenho propositalmente deixado de ouvir o Cel. Valle e seus gratuitos desafeiçoados [...]. Assim pois, vê o excelentíssimo em que lençóis me tenho visto, ora procurando conciliar uns, ora outros, e ao mesmo tempo, atendendo às reclamações de adversários, aquelas que me parecem justas. É escusado dizer-vos ainda uma vez que a maioria do partido não aceita a Comissão Executiva em sua totalidade, e que ficou acertado em reunião do mesmo partido, e em presença do Cel. Santos Filho, que eu assumiria a direção política do partido, no que concordaram os membros da Comissão Ramiro e Herculano, que se achavam presentes à reunião.10

Pela grande influência na política local, que provinha em parte da confiança que o chefe do partido depositava em sua pessoa, devido a laços pessoais de amizade e a compromissos públicos, fica fácil supor que Ernesto Beck, através das ordens de Castilhos, não teve grandes dificuldades em dissolver esta dissidência interna, garantindo o mando de Valle Machado na Intendência Municipal (seu mandato se prolongou até o ano de 1900), pois naquele período de crise, em que o governo estava em guerra contra a oposição 9 Série Correspondência Recebida, Fundo Acervo Júlio de Castilhos, 08/03/1893 – AHRS

10 Série Correspondência Recebida, Fundo Acervo Júlio de Castilhos, 08/03/1893 – AHRS

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federalista, não era conveniente a Júlio de Castilhos manter dissidências internas.

2. 1. 3 – A Repartição Telegráfica de Santa Maria como centro das disputas entre o Delegado e o Telegrafista

O próximo episódio a ser analisado transcorreu entre os anos de 1899 e 1900 e teve como palco central das disputas a Repartição Geral dos Telégrafos de Santa Maria, envolvendo dois grupos antagônicos no Partido local, sendo figuras centrais o Telegrafista Salvador Pires e o Delegado de Polícia Ramiro de Oliveira, ambos membros do PRR e amigos pessoais de Júlio de Castilhos. Este caso pode ser entendido como sendo um desdobramento do episódio da divisão no PRR local ocorrida em 1893, quando constituiu-se uma Comissão Executiva liderada por Ramiro de Oliveira para fazer frente ao grupo do Intendente Valle Machado. Conforme a análise das cartas enviadas pelo Delegado Ramiro de Oliveira e pelo Telegrafista Salvador Pires a Júlio de Castilhos, será possível perceber que acima do ranço pessoal entre os dois, estava a disputa por poder interno no PRR local entre a facção da Comissão Executiva e o grupo de Valle Machado.

A pendenga entre o Salvador Pires e Ramiro de Oliveira teve início em razão da transferência do primeiro para a Repartição Telegráfica de Santa Maria. Com a decisão do Direto Geral dos Telégrafos de transferir Salvador Pires para Santa Maria, Thomás Ramos, aliado de Ramiro Oliveira, que ocupava o cargo até então, teve de ser deslocado para outro município. Esta remoção desagradou o líder da Comissão Executiva, pois Thomás Ramos representava os seus interesses nos Telégrafos. Naquele contexto histórico o controle sobre a Repartição Telegráfica era fundamental para o partido que estivesse no poder, pois o Telégrafo era a chave para as comunicações dos municípios entre si e com a Capital. Foi este o motivo principal que levou Ramiro de Oliveira a comprar briga contra Salvador Pires, difamando sua imagem dentro do partido através da Imprensa e através das cartas que enviou a Júlio de Castilhos, pedindo ao chefe republicano que intercedesse a seu favor.

Então o Delegado passou a remeter cartas de cunho sigiloso ao Palácio do Governo, lembrando a Júlio de Castilhos da fidelidade que cultivava pela sua pessoa e pelo PRR, para então pedir pela remoção de Salvador Pires em favor da volta de seu aliado. “É urgentíssima a vinda do Ramos. Com o atual encarregado, não posso entrar naquela repartição [...].Este também está com o Valle e como sabeis é mais motivo para sua retirada”11. Observa-se que como maior argumento utilizado pelo Delegado para convencer Castilhos da necessidade da remoção de Salvador Pires, era que este estaria ao lado do grupo do Intendente Valle Machado, justamente o adversário que Ramiro de Oliveira combatia desde 1893. Neste momento, diferente do contexto da divisão no

11 Carta de Ramiro de Oliveira a Júlio de Castilhos (Série Correligionários, Subsérie Correspondência recebida, Fundo Acervo Júlio de Castilhos, 14/05/1899 – AHRS).

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Conselho Municipal em 1893, o grupo de Valle Machado não gozava do mesmo prestígio para com o chefe do Partido e Ramiro de Oliveira tentou tirar proveito desta situação.

Para Salvador Pires, o que mais importava era manter limpa sua imagem frente aos companheiros do PRR local e ao líder máximo, Júlio de Castilhos, bem como permanecer em Santa Maria. Neste intuito, o Telegrafista iniciou uma verdadeira empreitada, recolhendo provas que o inocentassem das acusações que lhe eram dirigidas pelo Coronel Ramiro. Nesnte sentido, o telegrafista contatou o Diretor Geral dos Telégrafos, Álvaro de Oliveira, para que este declarasse que os motivos de sua remoção não tinham motivações políticas. Em carta enviada a Castilhos, Salvador Pires diz: “[...] juntei o original do telegrama com que o Dr. Ramiro de Oliveira, em nome da Comissão executiva, dignou-se dirigir-me qualificando-me de traidor.”12 Este telegrama que continhas ofensas proferidas por Ramiro de Oliveira foi enviado para o Senador Pinheiro Machado, ao qual Salvador Pires pedia que averiguasse a verdade sobre os fatos.

A correspondência do Diretor dos Telégrafos que Salvador Pires tanto esperava para provar sua inocência lhe foi remetida no dia 31 de janeiro de 1900, a qual Álvaro de Oliveira deixava a ele a liberdade de fazer da mesma o uso que achasse mais apropriado. No telegrama, o Diretor pedia para que fosse comunicado ao “Snr. Pires” que a remoção do “Snr. Ramos” teria se dado exclusivamente por sua iniciativa e afirmando que a remoção teria se dado unicamente porque “sabia que ele desejava uma estação mais próxima de Porto Alegre, por incômodos de pessoa de sua família [...]”13.

Enviando esta carta a Júlio de Castilhos e pedindo que a remetesse a Borges de Medeiros, Salvador Pires tratou de resolver esta questão nos bastidores do Partido, sem recorrer à imprensa. Para o telegrafista, estava apresentada a prova de sua inocência.

Pela análise do conteúdo da correspondência enviada pelo Diretor dos Telégrafos à Salvador Pires, é possível compreender este conflito com uma riqueza de detalhes que não seria perceptível apenas através da leitura dos textos publicados na imprensa, que pelo fato de serem tendenciosos, principalmente numa época em que os jornais eram fortemente vinculados às ideias partidárias, não desvelavam as minúcias, que só podem ser percebidas no entrecruzamento dos conteúdos das cartas, fundamental na montagem dos quebra-cabeças.

Considerações finais

A transição para a República no Rio Grande do Sul no final do século XIX, pode ser compreendida como fazendo parte de um processo, no qual muitos elementos que

12 Carta de Salvador Pires a Júlio de Castilhos (Série Correligionários, Subsérie Correspondência recebida, Fundo Acervo Júlio de Castilhos, 15/01/1899 – AHRS).

13 Correspondência de D. Ferraz a Salvador Pires (Série Telegramas, Subsérie Recebidos, Fundo Acervo Júlio de Castilhos, 31/01/1900 – AHRS).

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compunham a mentalidade política do Império permanecem, como o clientelismo e o autoritarismo dos chefões locais. O que houve durante a política do PRR foi uma adaptação do poder privado dos coronéis aos interesses do partido, sendo que no processo de cooptação, o partido concedia vantagens aos coronéis que melhor atendessem às suas vontades nos municípios.

Através da análise dos conteúdos das cartas que eram enviadas pelos representantes políticos do PRR em Santa Maria a Júlio de Castilhos, podem ser observados muitos dos elementos que compunham a política dos coronéis, como favorecimentos políticos clientelistas e disputas que ocorriam no interior do poder local entre facções que disputavam o poder e a solicitude de Júlio de Castilhos.

Referências

Fontes documentais

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Carta de Ernesto Beck a Júlio de Castilhos (Série Correspondência Recebida, Fundo Acervo Júlio de Castilhos, 08/03/1893 – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS)).

Carta de Herculano dos Santos a Júlio de Castilhos (Série 08, Subsérie Correspondência recebida, Fundo A. P. Júlio de Castilhos, 26/08/1890, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS)).

Carta de Ramiro de Oliveira a Júlio de Castilhos (Série Correligionários, Subsérie Correspondência recebida, Fundo Acervo Júlio de Castilhos, 14/05/1899 – AHRS).

Carta de Salvador Pires a Júlio de Castilhos (Série Correligionários, Subsérie Correspondência recebida, Fundo Acervo Júlio de Castilhos, 15/01/1899 – AHRS).

Correspondência de D. Ferraz a Salvador Pires (Série Telegramas, Subsérie Recebidos, Fundo Acervo Júlio de Castilhos, 31/01/1900 – AHRS).

GOVERNO da ordem. A Federação, 1889, p. 1. Arquivo Histórico de Santa Maria (AHSM).

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Os conceitos na escrita da história: Revolução Farroupilha e Federalismo

FaBrício aNTôNio aNTUNes soares1

Resumo: O presente trabalho visa analisar o conceito de federalismo na história da historiografia da Revolução Farroupilha. Para tanto, faz-se uso da história conceitual, onde serão analisadas as perspectivas de Pierre Rosanvallon e Reinhart Kosellck. Com base nestes autores e a partir da história conceitual, busca-se obter uma metaepistemologia do conceito de federalismo na história da historiografia da Revolução Farroupilha.

Palavras-chaves: Federalismo. História conceitual. Metaepistemologia.

Keywords: Federalism. Conceptual history. Metaepistemology.

1. História conceitual e história da historiografia O objetivo desta seção do trabalho é abordar o caráter operacional da história dos

conceitos para a história da historiografia. Partindo do artigo de Pierre Rosanvallon2 quero demonstrar a importância epistemológica da análise dos conceitos para a construção da própria narrativa historiadora. Não se tem a intenção, neste texto, de fazer uma história da história das ideias.3 O objetivo é pontual: conceito e metaepistemologia.4 Indiretamente: a narrativa historiadora.

Rosanvallon inicia abordando, em seu texto, a mudança por que passou a história política no século XX na França. Nota que a partir de 1930, o estudo do político, que era dominado pelo historiador das ideias, o filósofo e o historiador dos acontecimentos, perdeu força para a história do econômico, do social e do cultural, vinculados à escola dos Annales. Contudo para o autor a decadência da história política tradicional igualmente

1 Doutorando do programa de pós-graduação da PUCRS; Bolsista CNPq, [email protected]

2 ROSANVALLON, Pierre. Por uma história conceitual do político. In: Revista Brasileira de História. São Paulo. V. 15 nº30, pp. 9-22, 1995.

3 La marcha de las ideias: Historia de los intelectuales, historia intelectual. València: PUV, 2006. FALCON, Francisco. História das ideias. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997.

4 HACKING, Ian. Ontologia histórica. In: Ontologia Histórica. São Leopoldo- RS: Editora Unisinos, 2009.

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foi seguida pelo incremento da história das mentalidades políticas e, especialmente da sociologia política. Estas, para o Rosanvallon, inovaram e permitiram renovar a abordagem do político. Contudo, elas não preencheram o vazio deixado pelo perecimento da história das ideias e da história das instituições. O deslocamento de método e do objeto que elas operaram marcou rapidamente seus limites. Contudo, a partir da década de 1970, para o autor, há a formação progressiva de uma história conceitual do político. Segundo o historiador francês, esta “nova” disciplina tem em comum: (i) Uma certa dimensão filosófica; (ii) o pressuposto metodológico deriva da definição implícita do político sobre a qual ele se funda:

“O político não é uma “instância” ou um “domínio” entre outros da realidade: é o lugar onde se articulam o social e sua representação, a matriz simbólica onde a experiência coletiva se enraíza e se reflete ao mesmo tempo” (ROSANVALLON, 1995, pg. 12)

(iii) A modernidade, sua instauração e seu trabalho.

Para o autor, o primeiro passo desta construção é uma diferenciação entre história conceitual e história tradicional das ideias. Rosanvallon caracteriza a história tradicional das ideias com cinco fraquezas metodológicas. (i) A tentação do dicionário; (ii) história das doutrinas; (iii) o comparativismo textual; (iv) o reconstrutivismo; (v) o tipologismo. É o comparativismo textual que me interessa neste texto. O autor caracteriza desta forma o comparativismo textual: (i) Consiste somente em pensar uma obra em relação àquelas que a sucedem ou a precedem, a só fazê-la existir relativamente ao que lhe é exterior; (ii) A história das ideias consiste então em manipular uma espécie de caleidoscópio graças ao qual nós podemos arrumar uma multiplicidade de figuras sempre bem ordenadas; (iii) Este comparativismo sistemático dissimula frequentemente uma ausência total de capacidade de interrogação dos textos; (iv) A arte do comentário consiste em se abrigar sempre atrás da pressuposição de uma característica explicativa da referência; (v) Cegueira quanto às diferenças de contexto nas quais as obras tomam sentido; (vi) A obra é implicitamente apreendida como um texto autônomo, ela não é concebida como um trabalho do qual se trataria de compreender os determinantes; (vii) Supõem-se que as palavras não tem história.

Concordo com as considerações expostas pelo autor, para o momento da historiografia que ele analisou. Entretanto, na reflexão que proponho, busco recuperar o comparativismo textual como uma forma de metaepistemologia na história da historiografia. Entendo por metaepistemologia o exame das trajetórias dos objetos ou conceitos que representam certos papéis no pensamento sobre conhecimento e crença.

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Isto é estudar, conceitos epistemológicos como objetos que evoluem e sofre mutação. Para defender minha proposta vou partir das considerações de Koselleck5 sobre

história dos conceitos, e tentar mostrar que certo tipo de comparativismo textual é aceitável. Para Koselleck a história dos conceitos delimita um campo particular de estudos, que se encontra em recíproca relação de tensão frente à história social. Para o autor há duas etapas metodológicas na história dos conceitos: (i) A partir da investigação de significados passados, tanto a história dos termos quanto a dos conceitos conduz à fixação desses significados sob nossa perspectiva contemporânea. Enquanto esse procedimento da história dos conceitos é refletido metodologicamente, a análise sincrônica do passado é completada de forma diacrônica; (ii) Os conceitos são separados de seu contexto situacional e seus significados lexicais investigados ao longo de uma sequência temporal, para serem depois ordenados uns em relação aos outros, de modo que as análises históricas de cada conceito isolado agregam-se a uma história do conceito. É este segundo ponto que me interessa. É neste ponto que a história dos conceitos perde seu caráter subsidiário em relação à história social. Quando se focaliza a duração ou transformação dos conceitos a relevância epistemológica cresce.

Certo tipo de comparativismo textual é importante, pois, a alteração dos significados conceituais devem ser compreendidos antes que esses significados possam ser tomados como indicadores dos conteúdos extralinguísticos. Assim, os processos de permanência e transformação conceitual são compreendidos ao longo da série de significados e dos usos de um conceito determinado. A história dos conceitos como disciplina autônoma interpreta a história, segundo Koselleck, por meio dos conceitos em uso no passado, deste modo:

“A história somente passaria a ser história à medida que já tivesse sido compreendida como conceito. Do ponto de vista da teoria do conhecimento, nada que ainda não tivesse sido compreendido como conceito poderia realizar-se como história” (KOSELLECK, 2006, pg. 110).

É neste ponto que Rosanvallon não percebe a importância da história dos conceitos.

Ele não percebe a história dos conceitos como uma disciplina autônoma, com caráter epistemológico, frente à história social, história política ou a história da historiografia. Pois o próprio conceito que a história estabelece, é que será a possibilidade de escrever a história. E é somente com o comparativismo entre textos que, tanto sincronicamente como diacronicamente, se estabelecerá o significado do conceito. A metaepistemologia somente se concretiza enquanto história dos conceitos. E para haver história dos conceitos de um ponto de vista metaepistemológico, tem que haver comparação entre os textos.

Esta diferença de enfoque, entre Koselleck e Rosanvallon na história conceitual, é por que para o historiador francês, o objeto da história conceitual do político é a apreensão 5 KOSELLECK, Reinhart. História dos conceitos e história social. In: Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.

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do desenvolvimento e evolução das racionalidades políticas, isto é, “dos sistemas de representações que comandam a maneira pela qual uma época, um país ou grupos sociais conduzem sua ação” (ROSANVALLON, 1995, pg. 16). Desta forma podemos afirmar que Rosanvallon esta mais perto da história conceitual inglesa, de Skinner e Pocock,6 isto é, há uma diferença de orientação entre aqueles e Koselleck. E a diferença se encontra na dimensão cognitiva da história conceitual. O historiador alemão se interessa pelas condições da linguagem que formam a realidade histórica, enquanto, Rosanvallon e os autores ingleses, privilegiam a dimensão da performatividade da linguagem, o dizer como ato.

Assim, no decorrer do texto, esta dimensão cognitiva da história conceitual estabelecerá as possibilidades de interpretação do conceito de federalismo na história da historiografia sobre a Revolução Farroupilha. Como o conceito de federalismo ajuda a estabelecer o cenário de uma história possível.

2. Revolução Farroupilha e Federalismo

Como foi usado o conceito de federalismo na historiografia sobre a Revolução Farroupilha? Qual significado assume este conceito na gramática do texto? Que histórias possíveis ele ajuda a criar? Destes os primeiros textos historiográficos o conceito de federalismo foi central nas narrativas sobre a Revolução Farroupilha.7 A questão posta por estes autores era saber se a Revolução Farroupilha era separatista, federalista, liberal ou queria uma confederação com os demais estados do Brasil imperial.

Não temos a intenção deste neste trabalho fazer uma revisão geral do uso do conceito de federalismo na historiografia sobre a Revolução Farroupilha. Optou-se, neste texto, em fazer um corte temporal nos textos. É analisado o que foi produzido nos últimos 35 anos na historiografia.

Inicia-se o percurso pelo conceito do federalismo no livro de Moacyr Flores, O modelo político dos farrapos.8 Neste livro o autor quer demonstrar que a luta entre o poder executivo e o poder legislativo, ocasionada pelo choque de ideias absolutistas

6 POCOCK, J.G.A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003. SKINNER, Quentin. Significado y comprensión en la historia de las ideas. In: Prismas: Revista de historia intelectual, n°4, 2000. pp. 149-191.

7 ASSIS BRASIL, Joaquim Francisco. História da República Rio-Grandense. Porto Alegre: ERUS, 1981.BARCELLOS, Ramiro Fortes de. A Revolução de 1835 no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Codec, 1987.

DOCCA, Emílio Fernandez de Souza. O sentido brasileiro da Revolução Farroupilha. Porto Alegre: Globo, 1935. SOUZA, J. P. Coelho de. O sentido e o espírito da Revolução Farroupilha. Porto Alegre: Globo, 1945. SOUZA DOCCA, Emílio Fernandez de. O sentido brasileiro da Revolução Farroupilha. Porto Alegre: Globo, 1935. VARELA, Alfredo. História da grande revolução: O ciclo farroupilha no Brasil. Porto Alegre: Globo, 1933. 6v.

8 FLORES, Moacyr. Modelo político dos farrapos: as idéias políticas da Revolução Farroupilha. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1996.

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e centralizadoras contra ideias liberais e federativas, foi a alavanca propulsora da Revolução Farroupilha. O conceito de federalismo encontra-se neste texto como um conceito operacionalizante da intriga do livro que é a disputa de poder entre executivo e legislativo.

Segundo Flores os farroupilhas batiam-se pela federação, mas não a uma República do Brasil e sim às demais províncias federadas a República Rio-Grandense. Para o autor os farroupilhas viam a federação como a única forma de salvar o Império do Brasil, uma federação em que as províncias teriam a soberania para escolher seus próprios governantes. Uma importante demarcação que Flores faz no conceito é que os farroupilhas, principalmente Bento Gonçalves e Bento Manuel, eram contra a federação platina, isto é, os farroupilhas se alinharem com os países do prata.

O exemplo de federação, ou até mesmo de confederação, Flores já fazendo uma aproximação entre estes dois conceitos para este período, era os Estados Unidos da América, que formava um Estado Federal, mas conservava a autonomia regional. Para o autor neste caso a federação serviu para unir estados separados, no Império do Brasil iria separar províncias de um Estado unitário, assim, a descentralização seria a solução para corrigir as distorções existentes. Deste modo, a ideia de descentralização, composta no conceito de federalismo, assumiu um uso no contexto da Revolução Farroupilha um significado para uma maior independência local, originando a separação da província.

Na primeira fase da Revolução o conceito de federalismo só significava, segundo Flores, uma descentralização administrativa, contudo, na segunda fase, o conceito assume um significado revolucionário com o advento da República Rio-grandense. Para Flores:

“A ideia de federação estava ligada à de república, não havendo apoio das demais províncias brasileiras; os revolucionários rio-grandenses, que conheciam a federação empiricamente, extrapolaram este conceito para independência, surgindo no Rio Grande do Sul um Estado independente e soberano” (FLORES, 1996, pg.120).

A ideia de federação é, neste contexto, não em relação ao Brasil, mas sim que

as províncias brasileiras adotassem a forma de governo republicano e se unissem à República Rio-Grandense.

Sandra Pesavento, em Farrapos, liberalismo e ideologia,9 considera que foi preocupação dos historiadores definir qual o princípio norteador do movimento, se a ideia de república e do separatismo, se o espírito do federalismo. Para a autora, a Revolução Farroupilha se insere na intriga histórica do processo de descolonização, que ocorre por motivos de transformação na base econômica.

Segundo Pesavento, a hegemonia dos cafeicultores do sudeste do país, centro do

9 PESAVENTO, Sandra. Farrapos, liberalismo e ideologia. In: DACANAL, José. A Revolução Farroupilha: história & interpretação. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1985.

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poder do Império, fomentou neste período uma relação centralizadora e de opressão com o Rio grande do Sul. Deste modo as tensões entre a corte e a província somente aumentou o espaço para a fomentação das ideias federativas. Tais ideias correspondiam aos interesses dos novos grupos burgueses na ordem capitalista que se expandia.

O tom dominante do discurso farroupilha era de conteúdo liberal. Esta é uma primeira delimitadora, em Pesavento do conceito de federalismo. Outros delimitantes seriam, no discurso farroupilha, a luta contra o centralismo e o unitarismo da Corte, que segundo a autora, dão a tônica ao federalismo farrapo:

“todavia, a rebelião dos farrapos acabou conduzindo não a defesa da monarquia federativa no país (...) mas sim evoluiu para a proclamação de uma república que, por sua vez, empunhava a bandeira da federação” (PESAVENTO, 1985, pg. 21).

A preocupação com o endosso do federalismo responde as necessidades da economia subsidiária, a província do Rio Grande, contra a da economia central, Corte, de exportação.

Helga Piccolo, em A Guerra dos Farrapos e a Construção do Estado Nacional,10 cria a intriga em que se moveram os demais usos do conceito de federalismo. A autora esta preocupada em entender a Revolução Farroupilha a partir da construção do Estado nacional brasileiro. Segundo Helga, mesmo com a queda de D. Pedro I e o inicio da regência “a união das diversas províncias brasileiras por laços federativos (...) continuava no plano dos projetos não concretizados” (PICCOLO, 1985, pg. 30). As províncias não receberam autonomia e isso significava uma ordem política centralizada.

No texto de Helga, o federalismo como conceito assume uma importância operacional no texto maior que nos autores anteriores, pois em seu texto ele é o conceito chave para entender a Revolução Farroupilha, deste modo, “a federação, para os farrapos, era uma exigência porque constituía a solução para os males de que padecia a província e pela federação lutaram por cerca de nove anos” (Idem, pg. 52).

No texto de Helga, os farroupilhas lutavam por um federalismo, que não interessava ao poder central nem a economia de exportação, cujos interesses o poder central tinha que atender. Deste modo o conceito de federalismo em Helga, possui seu significado quando organizado dentro da intriga da construção do Estado-Nação brasileiro, como uma reivindicação política da província do Rio Grande com o objetivo de mais autonomia política e econômica, que se esbarrava com o projeto político dos cafeicultores do sudeste do Império brasileiro que praticavam uma política centralista e conservadora.

10 PICCOLO, Helga. A Guerra dos Farrapos e a Construção do Estado Nacional. In: DACANAL, José. A Revolução Farroupilha: história & interpretação. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1985.

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Décio Freitas em Farrapos: uma rebelião federalista,11 afirma que Revolução faz parte de uma grande rebelião federalista que abarcou quase todo pais, contra o opressivo centralismo do recém-criado Estado Nacional. Para o autor deve-se articulá-la na sequência das insurgências federalistas que reivindicaram autodeterminação federativa como garantia peculiares de regiões que, segundo Freitas, eram sacrificadas pelo centralismo, “Só nessa perspectiva é que a Guerra dos Farrapos pode de fato ser entendida” (FREITAS, 1985, pg. 111). É interessante notar que Freitas diverge conceitualmente de Helga, pois por mais que, também tenha o conceito de federalismo como operacionalizador da intriga - centro X províncias, ele desloca o conceito suavemente da (i) construção do Estado-nacional para as (ii) lutas regenciais.

Tendo conquistado a independência, a elite escravocrata do Sudeste tratou de cobrar seus direitos, estabelecendo sua hegemonia no resto do país, segundo o autor, assim, as elites das demais regiões para a promoção e defesa de seus interesses consideravam vital uma estrutura federativa.

Para Freitas, “em nenhuma região a ideologia autonomista e federalista vicejava mais vigorosa que no Rio Grande de São Pedro” (Idem, pg. 115). Essa ideologia, e aqui uma característica que só Freitas dará ao conceito, “assentava em primeiro lugar na geografia” (Idem, pg. 115). Tinha, também, como base a econômica: o charque e o couro. Segundo o autor, tal como os demais movimentos federalistas do Império, o dos farrapos sofreu da estreiteza de sua base social. Outra característica, que somente o autor estabelece na gramática do conceito, é “a característica essencial do ciclo federalista que se abre em 1824 e se fecha em 1848 consiste na traição12 das elites aos interesses de suas regiões” (Idem, pg. 120). Isto é, a história tem um movimento em direção à liberdade que se expressa no conceito de federalismo que os farroupilhas traem.

Cezar Guazzelli em Textos e lenços13 aborda que o conceito de federalismo apresentou:

“muitos significados no conturbado processo de construção dos Estados nacionais na América Latina. De maneira geral, representou à justificativa político-ideológica preferencial para aquelas elites periféricas que resistiam contra a formação de Estados centralizados, controlados pelos grupos exportadores. A República Rio-Grandense não fugiu a esta retórica, e há diversas manifestações das principais lideranças farroupilhas defendendo princípios federalistas que garantissem a autonomia provincial”(GUAZZELLI, 2005, pg. 55).

Para o autor a presença de Bento Gonçalves e de outros tantos chefes de fronteira

em território oriental permitiu-lhes o convívio com as propostas federalistas que

11 FREITAS, Décio. Farrapos: uma rebelião federalista. In: DACANAL, José. A Revolução Farroupilha: história & interpretação. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1985.

12 Itálicos meu.

13 GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. Textos e lenços: representações de federalismo na república rio-grandense (1836-1845). In: Almanack brazilienze, nº 01, 2005.

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circulavam amplamente pelo Prata, contudo para Guazzelli “eram, no entanto vagas estas noções de federalismo”(Idem, pg. 55).Para o autor as ideias dos farroupilhas sobre o federalismo eram vagas e imprecisas: “ Um governo central adverso às verdadeiras e legitimas unidades políticas, as províncias” (Idem, pg. 58).

Guazzelli retoma a intriga de Helga, só que modificando-a. Não mais a reconstrução do Estado-nacional brasileiro, mas a construção dos Estados-nacionais platinos, isto é, Guazzelli ao invés de colocar a Revolução Farroupilha em uma perspectiva do Império brasileiro, coloca a Revolução Farroupilha como processo platino. Outra característica é uma deflação da importância operacionalizante do conceito de federalismo no seu texto. No seu texto federalismo perde espaço para os conceitos de “senhores guerreiros” ou “caudilhos” como conceito operacionalizante da intriga. Para o autor:

“Os exemplos teóricos e práticos afirmavam as vantagens de uma organização federal, mas não havia aprofundamentos na discussão da natureza de federalismo, não se ampliando a noção de mera autonomia provincial. A bandeira do federalismo, por mais vaga que fosse a sua ideia, era propagada como um conceito de todos os ‘povos livres’, subjugados pela maquina militar do Império do Brasil” (Idem, pg. 61).

Em Federalismo Gaúcho,14 Maria Padoin constrói uma intriga que retoma a

preponderância operazionalizante do conceito de federalismo, semelhante à Helga, mas dentro da perspectiva, iniciada por Guazzelli, da construção dos Estados-Nacionais platinos. Deste modo trabalha a Revolução Farroupilha “como mais um exemplo das relações de poder que tiveram no federalismo sua explicação e diferença” (PADOIN, 2001, pg. 10).

Para a autora a Revolução Farroupilha surgiu como fruto dos interesses da elite da campanha que se uniu em um projeto político que teve no federalismo sua bandeira. Uma delimitação conceitual, que Padoin estabelece no conceito, é de que quando se discute um projeto político federalista farroupilha esta se referindo, no interior da elite farroupilha, a dois projetos de federalismo diferentes, ao projeto político defendido pelo grupo da maioria (liderados por Bento Gonçalves e Domingos José de Almeida) contra o grupo da minoria ( liderados por Vicente da Fontoura). Segundo a autora, para o grupo político da maioria:

“era a defesa de um Estado independente, sobera e federal sob o governo republicano (...) para a minoria (...) significava um regime político descentralizado monárquico ou não, no qual a autonomia provincial deveria ser mantida e garantida pelo poder central do Estado e, no caso do Império” (Idem, pg. 125).

Outra delimitação do conceito que ganha destaque é a relação com o conceito de

14 PADOIN, Maria Medianeira. Federalismo gaúcho: Fronteira, direitos e revolução. São Paulo: Cia Editora nacional, 2001.

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“direito das gentes”. Segundo a autora o direito das gentes foi usado pelos farroupilhas para explicar que a Revolução não era mera anarquia, mas sim uma guerra civil, de tal modo, “o Direito das Gentes justificou o direito à liberdade e a defesa do federalismo” (Idem, pg.91).

Outro destaque importante no conceito de federalismo na narrativa de Padoin é uma contestação direta a Moacyr Flores na passagem em que este afirma que os farroupilhas somente conheceram o federalismo empiricamente. Padoin analisa que não só conheciam empiricamente como também os homens que formavam a elite farroupilha tinham acesso “a livros, periódicos e participavam de sociedade literárias, filantrópicas e secretas, onde recebiam, discutiam e aprofundavam as ideias da época”(Idem, pg. 94).

Cada historiador usou o conceito de federalismo de uma maneira própria. Em cada uso o conceito estava numa rede gramatical diferente. Em cada texto o federalismo ajudou a criar um cenário de uma história diversa. O federalismo, em cada texto, teve um significado distinto. Em cada narrativa, o federalismo epistemologicamente teve um grau diferente.

Referencias bibliográficas

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A ciência como regeneradora da nação brasileira

GeaNdra deNardi mUNareTo1

lUis carlos dos Passos marTiNs2

Resumo: O seguinte trabalho visa analisar o projeto nacional formulado pelos integrantes do movimento eugênico no Brasil, na primeira metade do século XX. Cientistas e intelectuais brasileiros, convencidos do poder da ciência em estabelecer uma nova ordem à sociedade, entendiam que a eugenia poderia desempenhar um papel importante no sentido de auxiliar a regeneração nacional, orientando o país a seguir o caminho da “modernidade” e do “progresso”.

Palavras-chave: nação, eugenia, ciência.

Abstract: This article’s objective is to understand the national project formulated by the members of the eugenic movement in Brazil, in the first half of the XX century. Brazilian scientists and intellectuals, enganged by the science’s power to stabilish a new order to society, understood that the eugenics could role a very important play in the meaning of help the national regeneration, conducting the country to follow the “modernity” and “progress” path.

Keywords: nation, eugenics, science

O movimento eugênico no Brasil, ao contrário do que se pensou durante muito tempo, teve uma participação bastante expressiva entre os intelectuais e “homens de sciencia”. As discussões englobando a ciência eugênica foram introduzidas no cenário brasileiro durante as primeiras décadas do século XX, tornando-se cada vez mais recorrentes no meio intelectual e científico, mobilizando médicos, higienistas, juristas e educadores. A eugenia representava um símbolo de modernidade cultural, sendo assimilada como uma teoria científica que expressava aquilo que havia de mais atualizado e moderno em termos de ciência na época.

As discussões sobre eugenia abordavam um número amplo de questões como evolução, progresso e civilização, ideias que povoavam o imaginário das elites brasileiras durante um período em que se questionava o atraso brasileiro frente aos demais países.

Essa “nova ciência” atraiu a atenção de inúmeros intelectuais e “homens de sciencia” no Brasil, que acreditavam que a eugenia seria uma ferramenta capaz de desempenhar

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e bolsista CAPES. Email: [email protected]

2 Professor orientador.

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um importante papel no processo de construção de uma “outra” realidade nacional, o que os possibilitaria agir no sentido de retirar o país do atraso civilizacional. No caso brasileiro, assim como em muitos países da América Latina, a eugenia foi incorporada a projetos políticos e científicos que almejavam promover uma ampla reforma social, incluindo premissas médicas e ideais científicos relativos a trabalho, educação, urbanismo, higiene e civismo, na qual a eugenia teria o papel de melhorar não só o aspecto físico, mas também moral e mental da “raça nacional” (SOUZA, 2010, p. 146).

Ao contrário do que durante muito tempo se afirmou, a intelectualidade brasileira não foi uma mera consumidora passiva de ideias. De acordo com Angela Alonso, tal concepção implicaria assumir “um critério de avaliação exógeno ao objeto e que solapa o contexto sociopolítico na qual ele se constituiu” (ALONSO, 2002, p.33). Assim, devemos entender que, no Brasil, o movimento eugênico foi remodelado e transformado de acordo com a realidade nacional. Dessa forma, fica mais fácil percebermos o que determinou a adoção de certas teorias em detrimento de outras.

Para Alonso, é um equívoco tratar os intelectuais brasileiros como copiadores de teoria estrangeiras, ou analisá-los por sua fidelidade aos originais europeus. Esse tipo de análise conduz sempre ao que a autora classificou como “diagnóstico de insuficiência”. Ou seja, a questão acaba sendo formulada como relação de cópia/desvio entre sistemas intelectuais nativos e estrangeiros (ALONSO, 2002, p.32).

Nesse tipo de raciocínio, as ideias são os agentes do processo, e os “intelectuais”, seus meros portadores. Para Fritz K. Ringer, “a fraqueza desse sistema repousa particularmente em seu extremo idealismo ou intelectualismo. Ideias nunca são totalmente separáveis de seu enraizamento em instituições, práticas e relações sociais” (RINGER apud ALONSO, 2002, p. 33).

A relação entre contexto brasileiro e as teorias europeias é bastante dinâmico. É preciso superar a controvérsia sobre o caráter imitativo ou original das ideias brasileiras, pois trata-se de uma discussão estéril. Tanto o repertório estrangeiro quanto a tradição nacional são fontes intelectuais válidas, apropriadas de modo seletivo num processo que passa necessariamente por supressão, modificação e recriação (ALONSO, 2002, p. 34). Podemos, a partir daí, entender de que maneira as teorias eugênicas forma reconfiguradas seletivamente ao cruzar diferentes fronteiras culturais entre continentes e ou mesmo regiões nacionais.

Eugenia – a ciência a serviço do melhoramento racial

Conforme nos mostra Octávio Domingues em sua obra Eugenia: seus propósitos, suas bases, seus meios, as propostas de impedimento de matrimônio de eliminação de indivíduos que fugiam a normalidade estabelecida pelos parâmetros sociais seriam bastante remotas. Encontraríamos, segundo Domingues, a proibição do matrimônio

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entre pessoas com males crônicos na “primitiva civilização chinesa”, nas leis de Manú na Índia, na qual era recomendado que se deveria “evitar o casamento de mulheres com determinadas características, ou portadores de certas moléstias, explicando-se que das más uniões só poderá nascer uma prole má, e das uniões boas, uma prole boa.” (DOMINGUES, 1933, p. 15). Além disso, encontramos recomendações semelhantes na legislação hebraica, que condenava o matrimônio entre os epilépticos, leprosos, tuberculosos e alcoólatras. Já na civilização helênica, na qual o autor denomina como “pioneiros do eugenismo no mundo antigo”, vemos leis que preconizavam a eliminação de “recém nascidos raquíticos e mal formados”, bem como filósofos que procuravam defender ideias que propunham operar uma certa escolha entre os genitores, a fim de formar proles vigorosas, sadias e inteligentes.

“Temos assim Theognis de Megara, Platão, Aristóteles – que naqueles tempos remotos já procuravam convencer ao homem de que ele, como um ser capaz de raciocinar, bem poderia logicamente ver quão lhe era necessário velar pela sua prole, aplicando princípios semelhantes aos que serviam de base ao zelo e cuidado com que se multiplicavam e melhoravam os rebanhos” (DOMINGUES, 1933, p. 15-16).

Embora essa preocupação com a qualidade das proles humanas seja uma questão antiga, que perpassa diferentes períodos históricos, só há uma sistematização dessas ideias como uma ciência específica no final do séculos XIX, quando Francis Galton publicou vários artigos que foram compilados na obra Hereditary Genius, em 1869, denominando essa nova ciência de eugenia - termo que deriva do grego eugen-s, significando “bem nascido”. Galton definiu a eugenia como sendo “o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente” (GALTON, 1973, p.17).

Enquanto ciência, a eugenia se baseou no estudo e entendimento das leis da hereditariedade humana, visando o “aprimoramento” da raça humana. Como movimento social, reuniu propostas que visavam à melhoria da sociedade, por meio do encorajamento à reprodução dos grupos considerados “adequados”, e evitando que àqueles que fossem vistos como “inadequados” transmitissem suas características às gerações futuras (STEPAN, 2005, p.9). Afinal, segundo pensavam os eugenistas do período, por que esperar milhares de anos para que a natureza operasse o lento processo de seleção natural? À eugenia caberia, dessa forma, desempenhar o papel de apressar e racionalizar a seleção natural, operando uma seleção artificial a fim de melhorar a raça humana.

Pode-se dizer, em termos gerais, que a eugenia buscava a administração científica e “racional” da hereditariedade humana, introduzindo ideias sociais e políticas inovadoras e, segundo Stepan, potencialmente explosivas, como era o caso da seleção social deliberada contra os indivíduos considerados “inadequados”, incluindo medidas de segregação e cirurgias esterilizadoras.

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Percebemos, assim, que a eugenia foi um plano de ação que, através da interferência deliberada na reprodução humana, buscava reverter a tendência degenerativa da raça. De acordo com Bowler, apesar de apresentar diferentes formas, baseadas em modelos de evolução e herança distintos – e que, por consequência, sugeriram diferentes estratégias - todas as variantes da eugenia proporcionaram bases para justificar a exclusão de certos tipos humanos (BOWLER apud CASTAÑEDA, 2003, p. 904).

O movimento eugênico irradiou-se por diversos países e continentes, apresentando propostas e fundamentações diversas. Segundo Castañeda, essa articulação teórica, cuja base se assentava na ciência da hereditariedade, era modelada por contextos sociais distintos, o que fez com que cada país desenvolvesse seu próprio movimento e definisse seus objetivos. Assim, define como ponto de partida das diferentes propostas eugênicas a articulação entre escolhas teóricas e influências socioeconômicas:

“Ao nosso ver, na discussão eugênica, estão envolvidos aspectos ‘subjetivos’ quanto ‘objetivos’, que não se contrapõe, pelo contrário, se complementam, participam de uma ‘montagem’, cujos contornos se articulam entre cultura e conhecimento científico. Portanto, do ponto de vista da história da genética, a eugenia pode ser entendida como um movimento científico para o qual confluíram diversas teorias. Ao se vincularem, elas assimilaram algumas ideias, assim como refutaram outras em função do contexto sociopolítico em que se encontravam” (CASTAÑEDA, 2003, p. 902)

Buscaremos entender, ao longo do artigo, como a eugenia, através da interpretação do contexto em que emergiu e se disseminou no Brasil, formulou respostas para os problemas nacionais do país e, através disso, propôs soluções para a construção de uma nação moderna e viável.

Eugenia como projeto nacional

O século XIX viu emergir inúmeras teorias sobre a inferioridade racial de certos povos, que passaram a ser hierarquizados com base em seu “grau de desenvolvimento” intelectual, físico e moral. A partir do parecer de naturalistas, viajantes e intelectuais estrangeiros, apoiados nessas ideias científicas e em seus conceitos desfavoráveis sobre raça, o Brasil foi considerado, através de diagnósticos completamente pessimistas com relação ao seu futuro, uma nação inviável. Escritores como o conde Joseph Arthur de Gobineau, Louis Couty e Louis Agassiz – que visitaram o Brasil durante a década de 1860 – bem como o inglês Thomas Buckle, descreviam o país como um “território vazio” e “pernicioso à saúde”, enquanto que os brasileiros eram vistos como “seres assustadoramente feios” e “degenerados”. Consideravam que o estado letárgico do povo e da nação brasileira, estacionados na escala progressiva da sociedade, era resultado de uma conjunção de fatores climáticos e raciais.

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A “larga miscigenação” era uma das causas apontadas para a inferioridade do brasileiro e decretava a impossibilidade do Brasil em ascender aos valores do mundo moderno e civilizado. Para esses homens, influenciados pelas ideias do determinismo biológico que permeavam o discurso científico da época, o país havia produzido elementos inúteis e incapazes de acompanhar o progresso da humanidade, uma vez que a miscigenação étnica seria um fator que caminhava na direção contrária da evolução. A mistura racial, nessa concepção, seria responsável pela permanência de características inferiores nos híbridos, já que os elementos mais fracos tenderiam a predominar nos descendentes. Dessa forma, haveria uma potencialização dos defeitos, criando gerações sucessivas de degenerados (SANTOS, 2008, p. 91).

Essas representações negativas acerca da nossa realidade nacional, quando não influenciaram a opinião dos intelectuais brasileiros sobre o seu próprio país, ao menos colocaram em dúvida a sua viabilidade no cenário internacional. De acordo com Schwarcz:

“Incômoda era a situação desses grupos intelectuais, que oscilavam entre a adoção de modelos deterministas e a reflexão sobre suas implicações; entre a exaltação de uma “modernidade nacional” e a verificação de que o país, como tal, era inviável. “Devia ser difícil abrir mão da crítica externa e de uma certa internalização desse tipo de visão estrangeira a respeito do Brasil, como um país aberrante”, afirma Roberto Ventura (1988:91). Afinal, em um momento que se redescobria a nação, aborígenes, africanos e mestiços passavam a ser entendidos como obstáculos para que o país atingisse o esplendor da civilização, como uma barreira para a formação de uma identidade nacional” (SCHWARCZ, 1993, p. 240).

O Brasil do início do século XX era visto como uma nação ainda em processo de formação. A população, retratada como degenerada pelos intelectuais estrangeiros e nacionais, que os julgavam através de padrões burgueses de civilização e progresso, era composta por um grande contingente de negros, brancos e mestiços pobres, vivendo sob péssimas condições sanitárias. Totalmente desamparados pelo Estado, esses grupos sociais, juntamente com a população indígena e sertaneja que habitava o interior do Brasil, não eram reconhecidos como cidadãos ou como parte integrante da nação. Além disso, um grande número de doenças e endemias rurais - ancilostomíase, malária e doença de Chagas - flagelava a população, contribuindo para a definição de um quadro bastante pessimista. Da mesma maneira, a expansão da imigração estrangeira, o crescimento dos centros urbanos e a industrialização colaboravam para aumentar os problemas sanitários e o temor por novas epidemias, como a febre amarela, a peste bubônica, a tuberculose e a varíola (SOUZA, 2010, p. 407).

Devido a esses e outros problemas sociais e políticos, o Brasil continuava sendo visto como uma nação incivilizada e em franco estado de degeneração. Para muitos dos intelectuais do período, fatores como o clima e a raça ainda eram utilizados como

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explicação não só para os dilemas raciais e problemas sanitários, mas também como forma de compreender a incapacidade do Brasil em organizar-se como uma nação moderna.

Em meio a esse quadro de incertezas quanto ao futuro da nação, alguns intelectuais propunham uma explicação alternativa, questionando as teorias deterministas que condenavam o Brasil a um inevitável e eterno fracasso. Fazia-se necessário repensar não só imagem do Brasil e da condição de ser brasileiro, mas, antes, encontrar soluções viáveis que efetivamente pudessem regenerar e civilizar o país de modo a alavancar o progresso do país e colocá-lo nos trilhos da modernidade (SOUZA, 2010, p.148).

Os relatórios das expedições científicas realizadas pelo Instituto Oswaldo Cruz a diferentes regiões do interior do Brasil tiveram papel fundamental ao traçarem um inventário das condições de vida dos habitantes do país, revelando as mazelas responsáveis pelos problemas étnicos, sociais e econômicos do país. Um desses em especial, feito por um cientista e um sanitarista, Arthur Neiva e Belisário Penna, ganhou imensa publicidade por meio da campanha realizada pelo escritor Monteiro Lobato em prol da reformulação da saúde pública3. “O relatório de Neiva-Penna expunha as feridas. Onde está o progresso? Por que ele não veio? Por que permanecemos na pobreza enquanto outros povos utilizavam as novas técnicas do mundo industrial?” (SANTOS, 2008, p. 37).

O novo retrato do Brasil, descoberto pelos médicos sanitaristas, teve papel central na reconstrução da identidade nacional a partir da identificação da doença como elemento distintivo da condição de ser brasileiro (MAIO, 1996, p. 23). “O Brasil é um imenso hospital”, denunciava o médico e professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Miguel Pereira.

O avanço das pesquisas bacteriológicas e os estudos sobre a patologia das moléstias tropicais contribuíram igualmente para chamar a atenção dos intelectuais e das autoridades públicas quanto as possibilidades da ciência como regeneradora da população nacional, de modo a ditar os caminhos da modernização à jovem república brasileira.4 Se anteriormente o clima e a miscigenação eram apontados como causas da degeneração da “raça” brasileira, os sanitarista e eugenistas empenhavam-se em demonstrar que o atraso do país estaria relacionado às doenças e falta de saneamento. Dentro desse projeto regenerador, os médicos ocupariam papel central como administradores e assessores do Estado, uma vez que eram os detentores do saber científico, caracterizado como sendo 3 A expedição de Arthur Neiva e Belisário Penna percorreu, em 1912, o norte da Bahia, sudeste de Pernambuco, sul do Piauí e nordeste de Goiás, com o objetivo de estudar as condições sanitárias e enfrentar os problemas de saúde existentes nas localidades visitadas. A viagem teve duração de sete meses e registraram não apenas as doenças encontradas, mas também aspectos sociais, econômicos e culturais da vida das populações locais. THIELEN, Eduardo Vilela; SANTOS, Ricardo Augusto. Belisário Penna: Notas fotobiográficas. In: História, Ciência e Saúde - Manguinhos vol.9 no.2 Rio de Janeiro Maio/Ago. 2002.

4 Sobre o assunto, ver KROPF, Simone Petraglia. A descoberta da doença nos sertões: ciência e saúde nos trópicos brasileiros no início do século XX. In: HEIZER, Alda; VIDEIRA, Antônio Augusto Passos (Orgs.). Ciência, civilização e república nos trópicos. Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2010.

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neutro e isento de paixões ou interesses, o que os tornava aptos para conduzir a reforma de que o Brasil necessitava. Para esses indivíduos, os problemas da falta de educação e saúde pública não se resumiam a simples questões técnicas. Elas possuíam uma dimensão política: a construção da Nação brasileira.

É nesse contexto em que a confiança profética nos “homens de sciencia” se aprofundava, eugenistas e higienistas encontraram solo fértil para a propagação de suas ideias e para seu estabelecimento dentro do campo científico brasileiro, assumindo um papel fundamental na construção do discurso regenerador da nação. Disposta a promover a higiene e o saneamento como “panaceia universal” para os males nacionais, a intelligentsia brasileira se viu atraída pela eugenia devido a esta representar em seus enunciados um tipo de extensão e modernização científicas do trabalho de figuras consagradas tanto no cenário nacional quanto internacional, como Oswaldo Cruz e Carlos Chagas (indicado duas vezes ao prêmio Nobel de medicina nos anos de 1913 e 1921). Além disso, esta apresentava-se como alternativa a diminuir as altas taxas de mortalidade infantil e as péssimas condição de saúde da população. De acordo com Stepan, “a eugenia tornara-se uma metáfora para a própria saúde” (STEPAN, 2005, p. 99). A eugenia, por outro lado, também foi capaz de garantir um espaço de autoridade para profissionais da área médica – principalmente aqueles ligados à medicina social – onde pudessem implementar seus projetos de saúde pública e divulgar os ideais sanitários e eugênicos.

Era de suma importância para os eugenistas que houvesse a centralização dos serviços eugênicos nas mãos do Estado, de forma a garantir a sua implementação e eficácia, uma vez que este detinha a autoridade para planejar e intervir na sociedade. Mas isto deveria ser feito com a devida assessoria dos “homens de sciencia”. Os bacharéis, deveriam ceder os “cientistas de verdade”, como proclamava Monteiro Lobato.

“[...] a república dos Estados Unidos do Brasil é um gigantesco hospital, que em vez de lidado por enfermeiros é dirigido por bacharéis. E conclui-se ainda que é tempo sofistas de profissão cederem o passo aos cientistas de verdade. É ridículo, e mais que ridículo, fatal, permanecer uma enfermaria desta ordem coalhada de legistas discutindo chicanas à beira de milhões de entrevados. O bacharel do Brasil faliu” (LOBATO, 1957, p.243) .

Eugenistas e higienistas clamavam por uma política salvadora que, através da observação da realidade do país, propusesse uma solução totalmente imune às determinações da política bacharelesca comprometida com os interesses privados – politicalha ou politicagem, como eles a definiam. Para esses agentes sociais, o conhecimento da realidade nacional – dado através do estudo científico – guiaria a construção de um modelo político adequado (SANTOS, 2008, p. 79).

Essa dicotomia entre país real e país legal resultava da inadequação das

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instituições políticas da Primeira República e de seu modo equivocado de percepção da realidade nacional. O governo republicano era responsabilizado pelas mazelas que atingiam o país, sendo este incapaz de apreender objetivamente a realidade nacional e apresentar soluções que dissessem respeito ao país real.

Esses eugenistas e higienistas colocavam, assim, a organização da nação a cargo do Estado forte, capaz de realizar as urgentes tarefas nacionais e cuja concretização não estaria ao alcance de nenhum outro. Como nesse período ganhavam força as ideologias antiliberais, que propunham o crescimento do poder Estatal, não é de surpreender que o autoritarismo era apontado por eugenistas com um dos modelos a serem seguidos a fim de estabelecer um governo adequado e próprio a nosso contexto (BOARINI, 2003, p. 190).

A política deveria deslocar-se dos políticos e das discussões parlamentares, que representavam apenas interesses individuais e de facções, para cientistas e técnicos, ou seja, profissionais que expressavam interesses guiados pela razão e pela percepção da realidade. Só estes podiam representar os interessas da nação.

Dentro da visão médico-organicista expressada pelo movimento eugênico, a sociedade era retratada com um grande organismo vivo. O corpo social estava doente, e contaminado por uma patologia mais grave que as endemias tropicais – a politicalha- pois esta arruinava o caráter dos homens, anarquizava o Estado e destruía a sociedade.

“As representações sociais, ancoradas nessa visão organicista possuíam uma eficácia simbólica, pois, devido a esse conjunto de interpretações, erigia-se um projeto de nação e de sua história. As metáforas das doenças reproduziam representações que remetiam para a vida social, política e cultural” (SANTOS, 2008, p. 81).

Essas metáforas que representavam o país como um organismo, utilizadas por intelectuais e “homens de sciencia” vinculados ao movimento eugênico e higienista, afirmavam a unidade, cujo objetivo era preservar o conjunto da sociedade e a harmonia das diversas partes que compunham esse grande organismo. Além disso, visavam construir através delas uma identidade cultural e nacional, marcando a importância simbólica e política dessas representações sociais do Brasil – processo que envolve, a invenção, a divulgação, a imposição e a adesão de um grupo de ideais, valores, crenças e ideologias e que são materializados e /ou operacionalizados em instituições, rituais, símbolos, etc. (HEIZER; VIDEIRA, 2010, p. 12).

Considerações finais

Buscamos, ao longo deste artigo, discutir como a eugenia, além de uma ciência que tinha por objetivo a melhoria hereditária da raça humana, visou criar um projeto

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nacional específico. Cientistas e intelectuais brasileiros, convencidos do poder da ciência em estabelecer uma nova ordem à sociedade, entendiam que a eugenia poderia desempenhar um papel importante no sentido de auxiliar a regeneração nacional, orientando o país a seguir o caminho da “modernidade” e do “progresso”.

Essa linguagem de uma ciência “desinteressada” e neutra disfarça as raízes sociais do pensamento dos cientistas e intelectuais que a formaram. Segundo Stepan, a eugenia trata-se de mais um dos inúmeros exemplos inscritos na história das ciências naturais, em que matérias de caráter social e político são submetidos a uma abordagem “cientificista”, revestindo-se de uma identidade apolítica da qual derivam, posteriormente, conclusões altamente politizadas e que ganham considerável autoridade exatamente pela suposição de que estão ancoradas em um conhecimento supostamente neutro (STEPAN, 2005, p. 33).

Dentro desse projeto regenerador da nação, médicos ocupariam um papel de suma importância, pois detinham o conhecimento necessário para lidar com as doenças e endemias que assolavam a população brasileira. A política bacharelesca da Primeira República, não tinha condições de formular uma política orientada para os problemas do Brasil real, sofrendo duras críticas por parte dos integrantes do movimento eugênico.

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SCHWARCZ, Lília Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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STEPHAN, Nancy Leys. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005.

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A face coercitiva do controle: o campo da educação superior no Brasil da Ditadura Civil-Militar (1964-1988)

Jaime valim maNsaN1

Resumo: Durante a vigência do regime ditatorial instaurado no Brasil em 1964, os governos civil-militares realizaram diversas ações de controle da sociedade civil, algumas delas orientadas especificamente para o campo da educação superior. Buscavam controlar por meio da coerção e também através da formação de consensos favoráveis. Objeto de reflexão nesta comunicação, a coerção dava-se por meio de normatização, vigilância e punição.

Palavras-chave: Controle coercitivo. Educação superior. Ditadura Civil-Militar.

Resumen: Durante la vigencia del régimen dictatorial instaurado en Brasil en 1964, los gobiernos civil militares hicieron diversas acciones de control de la sociedad civil, algunas de ellas orientadas especificamente para el campo de la educación superior. Buscabam controlar por medio de la coerción y también a través de la formación de consensos favorables. Tema de reflexión en esta ponencia, la coerción ocurría por medio de normación, vigilancia y punición.Palabras clave: Controle coercitivo. Educação superior. Ditadura Civil-Militar.

Em 1975, em um ofício interno do Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais (DOPS/MG), afirmava-se a respeito de um estudante da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais: “na Polícia Federal, consta que o referido elemento foi preso no dia 18/03/1974 e liberado no dia 20/03/74, na operação ‘Caco de Telha’, efetuada pela 4ª Brigada de Infantaria, conforme Informação nº 016/74/SOP/DOI/4ª Bda. Inf., de 22/03/1974” (Brasil, 1975).

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Em 21 de outubro de 1969, a Junta Militar decretava o Ato Complementar nº 75. O fundamental de seu conteúdo estava no Art. 1º:

Todos aqueles que, como professor, funcionário ou empregado de estabelecimento de ensino público, incorreram ou venham a incorrer em faltas que resultaram ou

1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e orientação do Prof. Dr. Helder Gordim da Silveira. Correio eletrônico: [email protected]

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venham a resultar em sanções com fundamento em Atos Institucionais, ficam proibidos de exercer, a qualquer título, cargo, função, emprego ou atividades, em estabelecimentos de ensino e em fundações criadas ou subvencionadas pelos Poderes Públicos, tanto da União, como dos Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios, bem como em instituições de ensino ou pesquisa e organizações de interesse da segurança nacional (Brasil, 1969a).

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Em 1981, a Assessoria de Segurança e Informações da então Fundação Universidade Estadual de Londrina (FUEL) informava as divisões de segurança e informações do Ministério da Educação e Cultura (DSI/MEC) e da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Paraná (DSI/SSP-PR) sobre um protesto, ocorrido em 18/03/1981, contra a ação de reintegração de posse de imóvel que até então estaria “indevidamente ocupado pelo DCE/Livre e centros acadêmicos livres da FUEL”.2 Indicava as entidades representativas presentes no ato, bem como que a programação do mesmo “contou com a apresentação de show musical, teatro e pronunciamentos realizados por estudantes e políticos, contra o governo e autoridades constituídas” (FUEL, 1981, p. 1).

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1. O objetivo da presente comunicação é demonstrar como e por que as citações anteriores representam os três aspectos fundamentais e indissociáveis de um mesmo fenômeno. Pretende-se ainda refletir sobre a possibilidade de tal fenômeno ter sido um dos pilares do último regime ditatorial estabelecido no Brasil.

2. As relações entre Estado e sociedade civil, em regimes democráticos ou autoritários, são marcadas por uma significativa complexidade, que não pode ser satisfatoriamente compreendida se tais relações forem vistas como estáticas, unilaterais ou mecânicas. São relações dinâmicas, multipolarizadas e mutáveis, que costumam incluir fortes disputas pelo Estado, instrumento de poder por excelência.3 Por óbvio, essas disputas são travadas entre aqueles que detêm o poder e os que não se conformam com sua subalternidade. Trata-se, em essência, de relações de dominação e resistência, que são,

2 A criação de centros e diretórios acadêmicos autodenominados livres foi uma das várias formas de resistência que estudantes de todo o país utilizaram após o golpe de 1964, sobretudo após a imposição, em novembro de 1964, da chamada “Lei Suplicy” (referência ao então ministro da Educação e Cultura, Flávio Suplicy de Lacerda). Ela determinava a substituição da União Nacional dos Estudantes (UNE) e demais órgãos de representação estudantil então existentes por uma estrutura fortemente hierarquizada, atrelada ao MEC e fiscalizada pelo Conselho Federal de Educação e conselhos universitários de cada instituição de educação superior (Brasil, 1964; Mansan, 2009, p. 157-159). A Universidade Estadual de Londrina foi criada no início de 1970, como fundação, em consonância com o tipo de expansão da educação superior promovido no país após a Reforma Universitária de 1968. Em 1991, foi transformada em autarquia, por meio da Lei Estadual nº 9.663, de 16/07/1991 (UEL, 2011).

3 “Estado” será usado aqui sempre em referência a seu sentido estrito, sinônimo de “sociedade política” em Gramsci. A esse respeito, conferir, dentre outras passagens, Gramsci (2004: 20-21; 2007: 39).

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também (mas não apenas), formas específicas de luta de classes.4

O controle sobre a sociedade civil, que o Estado proporciona ao grupo no poder, pode variar bastante, do extremamente evidente ao praticamente imperceptível.5 Em alguns casos, pode apoiar-se fundamentalmente em consensos favoráveis (majoritariamente espontâneos, em alguns casos, em outros predominantemente ‘formados’, ou seja, constituídos a partir de incentivos do Estado ou de setores da sociedade civil). Em outros casos, o controle pode basear-se primordialmente na coerção. Contudo, tanto em ditaduras quanto em democracias, coerção e consenso sempre estão presentes, na forma de uma “relação de unidade-distinção”: o que varia é o equilíbrio ou desequilíbrio entre um e outro elemento na constituição dos modos específicos de controle adotados em cada conjuntura.6

Paralelamente, para além de um instrumento de poder, o Estado é, também, um espaço social com características próprias, no interior do qual, em muitos casos em função de questões exclusivamente suas, são travadas complexas relações entre indivíduos e grupos, que podem ir da mais forte associação ao mais intenso conflito. Em outras palavras, o Estado é, também, um campo.7

3. Essa breve exposição, pouco ou nada inovadora, serve aqui de moldura para o quadro analítico de que trata esta comunicação, voltada para as complexas relações travadas, no Brasil, entre o Estado e um significativo segmento da sociedade civil – o campo da educação superior –, em um contexto de autoritarismo, a saber, aquele instaurado em 1964.

A comunicação tem por base a pesquisa de doutorado que vem sendo realizada pelo autor desde 2011 no Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS. O objeto de estudo da referida pesquisa é o controle do campo da educação superior, no Brasil, entre 1964 e 1988.8 Pensa-se, com Gramsci, que isso tenha ocorrido tanto por meio da

4 Optou-se aqui por estabelecer uma diferença entre “dominação” e “controle”, termos por vezes usados como sinônimos. Para os fins desta comunicação e da pesquisa que a embasa, utilizar-se-á “dominação” em referência ao fim (a condição da classe, fração ou composição que domina os demais segmentos da sociedade) e “controle” em referência ao meio (as ações e estratégias, realizadas por meio do Estado ou diretamente, com as quais determinado grupo no poder busca controlar o restante da sociedade civil, tornando dominante a classe, fração ou composição a que pertence ou representa). A diferença é sutil, mas importante. Permite equacionar mudanças ou permanências na estrutura social com oscilações conjunturais na intensidade do controle, variações na ênfase entre coerção e consensos favoráveis, etc.

5 Utiliza-se aqui a noção de grupo no poder em referência àqueles que governam de fato, a partir da percepção de que nem sempre o governo formal corresponde exatamente a esse grupo. Em diferentes conjunturas, os membros do governo formal, sobretudo os agentes do primeiro escalão, podem e geralmente fazem parte do grupo no poder; este, no entanto, muitas vezes inclui indivíduos que não pertencem ao governo formal (como empresários, intelectuais, etc.), mas que influenciam diretamente as decisões governamentais.

6 A respeito da referida “relação de unidade-distinção”, conferir Gramsci (2007) e Bianchi (2007).

7 O conceito de campo está sendo aqui utilizado na acepção proposta por Bourdieu. Conferir, a título de exemplo, Bourdieu (2006, p. 31).

8 Está sendo adotada a periodização do regime ditatorial proposta por Renato Lemos (2011), que observou que, em 1985, houve no Brasil uma mudança de governo, não de regime, sendo, por esse motivo, o ano de 1988 um marco

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formação de consensos favoráveis quanto pela via da coerção, sendo este último aspecto do fenômeno do controle social o tema da presente reflexão. Dado o caráter inconcluso da pesquisa, torna-se evidente o motivo pelo qual as proposições aqui feitas devem ser vistas como hipóteses de trabalho, afirmações provisórias sujeitas a modificações que a continuidade do trabalho investigatório possa eventualmente exigir.

Uma das características essenciais do fenômeno do controle social promovido por intermédio do Estado é a mencionada dualidade coerção/consenso. Essa perspectiva dual do controle, marcada pela indissociabilidade e pela mútua determinação, parece bastante interessante para a análise do objeto de estudo em questão. Isso porque, no trato com as fontes, salta aos olhos a constante preocupação dos policy makers do período com a implementação de políticas destinadas a formar consensos favoráveis. Do mesmo modo, inúmeros documentos da época evidenciam a racionalidade das políticas coercitivas, pautadas pela otimização dos recursos disponíveis com vistas à obtenção de fins determinados. Essa visão complexa do fenômeno do controle, marcada pela dualidade coerção/consenso, ajuda a questionar imagens simplistas, bem como explicações reducionistas análogas a elas. Tais explicações costumam caracterizar os conflitos sociais travados no período ditatorial de forma maniqueísta, deixando de lado a grande complexidade que marcou, naquele contexto como em outros, as relações entre dominantes e dominados, particularmente no que diz respeito às interações entre Estado e sociedade civil. Explicações baseadas em oposições reducionistas do tipo sociedade civil vs. militares no poder, democracia vs. ditadura, oposição vs. governo, dentre outras bastante presentes à época em estratégias discursivas utilizadas no âmbito de lutas ideológicas (no que eram relativamente eficazes e, por isso, se justificavam plenamente), foram assimiladas de forma acrítica por certas memórias, relatos jornalísticos e até mesmo por alguns estudos acadêmicos. Compreender tais usos calcados no senso comum, indo além de uma crítica superficial, é uma das tarefas mais urgentes daqueles que se dedicam ao estudo da história recente do Brasil. Esta comunicação tem a pretensão de contribuir, mesmo que modestamente, com esse esforço coletivo de compreensão do passado, a partir da análise de uma das faces do fenômeno do controle: a coerção.

4. Talvez o aspecto mais evidente do controle coercitivo seja a punição. Esta tem um caráter fundamentalmente reativo, embora possa realizar também uma função preventiva de suma importância, na medida em que o ato punitivo pode funcionar como exemplo para outros, desmotivando novas ações idênticas ou análogas à punida.

No contexto histórico em análise, várias medidas punitivas foram utilizadas. Dentre aquelas aplicadas com vistas ao controle do campo da educação superior, algumas se destacaram:

Intervenções e fechamentos de órgãos de representação estudantil, sindicatos

histórico mais adequado.

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de professores ou funcionários, como o que ocorreu com os órgãos de representação estudantil após a já referida “Lei Suplicy”, em novembro de 1964;Proibições e repressões a passeatas, peças teatrais, apresentações musicais

e outras manifestações públicas, como no caso do “Massacre da Praia Vermelha”, em 23/09/1966, no Rio de Janeiro, quando agentes repressivos invadiram o antigo prédio da Faculdade Nacional de Medicina, localizado na Praia Vermelha, e espancaram os estudantes que, após repressão a uma passeata na qual participavam, ali haviam se abrigado;Apreensões de cartazes e panfletos , como no caso da distribuição do panfleto “Morre um estudante” por universitários da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 1970. No panfleto, eles indagavam o motivo da morte de seu colega, Ari Abreu Lima da Rosa, o “Oscarito”, que um ano antes havia sido preso pelo DOPS/RS e em 1970 morrera no hospital da Base Aérea de Canoas/RS, em circunstâncias até hoje desconhecidas (Mansan, 2008);Expurgos: de estudantes, como vários dos que foram afastados da UFRGS em função do episódio, já mencionado, da distribuição do panfleto “Morre um estudante”; de servidores técnico-administrativos, como no caso de Arnóbio Washington e Feiga Langfeldt, sumariamente afastados da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) em 1964 (ADUSP, 2004, p. 19); e de professores, como no caso dos docentes da UFRGS cassados em 1964 e 1969 (Mansan, 2009);Prisões , como nos casos dos participantes do XXX Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), realizado em Ibiúna, interior de SP, em 1968; do estudante universitário mineiro citado no início deste texto; e ainda do estudante da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Frederico Eduardo Mayr, preso em 1972 em São Paulo;Tortura , como ocorrido com Armando Temperani Pereira, professor de Economia na UFRGS e liderança trabalhista, preso e torturado logo após o golpe; com Aurora Maria Nascimento Furtado, estudante da USP presa e torturada em 1972 no Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do RJ; e com Luiz Oscar Matzembacher, estudante da UFRGS que, após ser expurgado da universidade pelo mencionado caso do panfleto “Morre um estudante”, entrou na clandestinidade, sendo preso e torturado na “Operação Bandeirantes” (OBAN) em SP;Assassinatos , como nos casos de Alexandre Vannuchi Leme, estudante universitário assassinado sob tortura em 1973 no DOI-CODI/SP; e de Iara

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Iavelberg, professora da USP assassinada em 1971 em Salvador;‘Desaparecimentos’ , como exemplificam os casos da estudante universitária carioca Lúcia Maria de Souza, ‘desaparecida’ em 1973 na região do Araguaia; de Honestino Monteiro Guimarães, estudante da Universidade de Brasília (UnB) ‘desaparecido’ em 1973, no Rio de Janeiro; e de Márcio Beck Machado, estudante da Universidade Mackenzie (SP), ‘desaparecido’ também em 1973, no interior de Goiás.

Os casos citados são exemplos da aplicação daquelas medidas punitivas que, como é sabido, atingiram várias outras pessoas além das mencionadas. Também é preciso considerar aqueles que eram indiretamente punidos (familiares, amigos, colegas, etc.), em função daquilo que Abos (1979) chamou de “violência radial”.

Vale lembrar ainda que a punição muitas vezes implicava na imputação de determinados estigmas aos punidos (que, portanto, eram punidos duplamente), sendo tal efeito simbólico, em alguns casos, mais danoso que a própria medida punitiva que o gerou.9

5. Se a punição é uma forma de coerção fundamentalmente reativa, a normatização é essencialmente preventiva. Estabelece os limites da ação para aqueles que não ousam infringir a lei, ao mesmo tempo em que oferece elementos para que se tente justificar a punição daqueles que julgam que o risco é compensado pela necessidade de resistir. Por outro lado, do mesmo modo que a punição possui um importante aspecto preventivo, a normatização apresenta um caráter reativo inegável, na medida em que, muitas vezes, constitui-se como proibição daquilo que anteriormente era praticado dentro dos marcos legais.

Dois tipos de normatização devem ser levados em conta, especialmente no caso em questão.

O primeiro é o mais óbvio. Trata-se da normatização aqui chamada de externa, válida para toda a sociedade ou para sua maioria. Normatização da qual a legislação é o exemplo mais evidente e significativo, embora, talvez valha ressaltar, não seja o único, inclusive no contexto em análise.

É possível citar vários exemplos de instrumentos legais que cumpriram uma função coercitiva da mais alta importância, em diferentes conjunturas do período 1964-1988. Além da já referida “Lei Suplicy”, poderia ser lembrada a chamada “Lei de Reforma Administrativa” (Decreto-lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967) que, dentre várias outras medidas, constituiu uma ampla rede de vigilância da burocracia civil, sob responsabilidade direta dos ministérios, por meio da instituição de assessorias de segurança e informações, divisões de segurança e informações e comissões de investigação

9 Para uma reflexão sobre o estigma imputado àqueles que sofriam afastamentos sumários, ver Mansan (2011).

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sumária (Brasil, 1967).10 Outro exemplo é o caso do Decreto-lei nº 477, de 26 de fevereiro de 1969, criado

especificamente para normatizar a conduta dos agentes dos campos da educação básica e superior, fossem eles docentes, estudantes ou servidores técnico-administrativos, estivessem inseridos em instituições públicas ou privadas. O referido decreto definia como crime as atividades consideradas “subversivas”, como a elaboração ou distribuição de panfletos e materiais de divulgação “subversivos” de qualquer natureza, a promoção ou participação em passeatas e movimentos “subversivos” e o uso de ambientes escolares para “fins de subversão” ou para a prática de “ato contrário à moral ou à ordem pública” (Brasil, 1969b).

Este último trecho citado do Decreto-lei nº 477 remete a outro aspecto importante da normatização. Trata-se da referência, na norma, a elementos de uma determinada moral (e, eventualmente e por meio dela, de ideologia a ela associada), com o objetivo de legitimar tanto a medida normatizadora em questão (o meio) quanto a permanência da estrutura social vigente (o fim). A menção à “ordem pública” é tática análoga, diferindo apenas por fazer referência direta à estrutura social vigente, deixando implícita (e, por isso, às vezes ignorada) a premissa obviamente falsa de que aquela estrutura corresponde à única ou à melhor alternativa.

Havia nisso uma clara imposição à sociedade, que deveria aceitar aquela moral e aquela ordem como únicas. Quem se recusasse enfrentaria sérias medidas repressivas, tanto as previstas na lei quanto as não assumidas, embora igualmente promovidas, por aquela forma específica de Estado capitalista. Diante de arbítrio tão evidente, supõe-se que não pudesse haver dúvidas quanto ao caráter ditatorial do regime. Entretanto, a normatização e outras ações, por meio das quais buscava-se criar uma aparência de democracia a encobrir a essência autoritária daquele regime, constituíam parte importante de estratégias de formação de consensos favoráveis postas em prática naqueles tempos. Tais estratégias eram eficazes, particularmente entre aqueles com mais dificuldades de acesso a educação e informação.

Aqui, a fronteira entre coerção e consenso é especialmente tênue. Nesses casos, torna-se bastante evidente o caráter indissociável e mutuamente determinante dos dois componentes do controle, aquilo que Gramsci definiu como uma “relação de unidade-distinção”.

O segundo tipo de normatização refere-se àquela que é interna ao sistema de controle social. A necessidade de ser observada com mais cuidado não advém do fato de ser considerada um modo pelo qual um conjunto de indivíduos e instituições estabelece regras válidas apenas para si, pois isso é óbvio. O aspecto supostamente não consensual desse tipo de normatização reside em caracterizá-lo como um modo de controle. Entretanto, seja em relação ao caso em análise, seja no estudo de outros

10 Para detalhes desse processo no caso do MEC, conferir Mansan (2010).

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sistemas de controle social, essa hipótese parece bastante adequada. Para perceber as diversas nuances dessa questão, é preciso observar as disputas e relações de dominação e resistência que também existem entre os membros de um sistema de controle social, as hierarquias que se estabelecem em seu interior.

O “Manual do interrogatório”, documento pertencente ao Fundo DOPS/PR do Arquivo Público do Estado do Paraná, é um bom exemplo desses instrumentos normativos de uso interno, por meio dos quais os dirigentes daquele sistema de controle social estabeleciam regras e disseminavam determinadas ideias entre seus subordinados.11 Além de constituir-se em um importante meio de disseminação ideológica, definia normas de conduta para os agentes diretamente envolvidos na “produção de informações”, com vistas a uma maior eficácia nesse tipo de atividade.12

Por meio do manual, o “interrogador” era orientado, por exemplo, a observar as “várias pressões mentais e físicas” sofridas por um indivíduo que “está sendo submetido a interrogatório, alternadamente com confinamento e isolamento”, e sugeria: “o interrogador deve observar, constantemente, e explorar estas pressões, assim como as reações do indivíduo”. Alertava ainda que, “por necessidade de conforto físico e mental, [o interrogado] tornar-se-á cada vez mais dependente do interrogador”, situação na qual “uma eventual afinidade (ou intimidade) poderá ser estabelecida, e a vontade de resistir do indivíduo será anulada”. Atingido esse estágio, sugeria o manual que o indivíduo fosse então “interrogado minuciosa e intensivamente”. Após a conclusão do interrogatório, o interrogado poderia ser “liberado, preso ou recrutado para o serviço, como um agente, uma fonte de informes ou um auxiliar de interrogatório (informante introduzido na cela de um prisioneiro renitente), etc.” (Magalhães, 2004, p. 226-228).

6. Fundamental em toda forma de controle, a vigilância é indispensável às ações

normativas e punitivas, por ser a responsável pelo fornecimento das informações com base nas quais serão elaboradas e implementadas normas e punições. No processo de vigiar, há dois momentos fundamentais: o da ‘leitura’, quando um agente ou órgão de vigilância observa um determinado segmento social em relação a aspectos específicos, e o da ‘escrita’, quando descreve aquilo que observou, relatando o comportamento do(s) vigiado(s) em relação aos aspectos previamente determinados e a outros que tenha julgado relevantes.

A analogia com o processo de leitura e escrita busca chamar a atenção para o papel ativo daquele que vigia. Os termos ‘observar’ e ‘descrever’, por vezes, são associados a uma ideia de neutralidade, de reprodução fiel daquilo que é observado e descrito. Aqui, a intenção é ressaltar a inadequação de tal suposição de neutralidade. Ler é interpretar

11 Para acesso ao “Manual do interrogatório”, bem como a um comentário introdutório ao mesmo, ver Magalhães (2004).

12 Ver, a respeito do “trabalho ideológico” desempenhado pelo manual, Magalhães (2004, p. 202).

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e, por óbvio, um mesmo texto pode ter inúmeras interpretações, mais ou menos díspares entre si. Também (e de forma mais evidente) em relação àquele que descreve, porque faz opções, usa recursos linguísticos que domina em alguma medida e julga apropriados, etc. O mesmo ocorre com fenômenos análogos, como o da observação e descrição de um segmento social por quem o vigia.

Em outras palavras, há algo de subjetivo tanto na ação de observar quanto na de descrever, e essa subjetividade pode criar uma distorção, mais ou menos intensa, entre aquilo que é dito de algo e esse algo do qual aquilo é dito. Ao tratar da questão da vigilância, é indispensável ter isso em conta, tanto para compreender de maneira mais profunda os processos coercitivos de controle quanto para evitar um uso ingênuo de documentos produzidos por órgãos e agentes de vigilância.

No caso em questão, várias foram as formas de vigilância postas em prática com vistas ao controle do campo da educação superior. A documentação atualmente disponível demonstra, de modo inquestionável e à exaustão, que servidores técnico-administrativos, estudantes e professores, nas mais diversas instituições de educação superior públicas e privadas do país, estavam sendo vigiados atentamente por membros da “comunidade de segurança e informações”.

Entre 1964 e 1988, variaram as estratégias de vigilância do campo da educação superior implementadas pelos governos civil-militares. De modo extremamente genérico, deixando de lado muitas especificidades conjunturais ou regionais importantes, é possível descrever esse processo por referência a três fases, em cada uma das quais predominou um certo perfil de vigilância, bastante relacionado com a respectiva conjuntura:

(1) De 1964 a 1968, predominou a forma de vigilância que aqui será chamada de colaborativa: os governos civil-militares do período contaram com a colaboração (espontânea ou cooptada) de membros do campo da educação superior, sobretudo reitores e diretores, mas também professores, servidores técnico-administrativos e estudantes, de modo oficial (comissões de investigação sumária, por exemplo) ou extra-oficial (delações, etc.);

(2) de 1968 a 1979, de modo geral o campo da educação superior foi vigiado de forma direta: foram criadas, nas instituições de ensino superior (bem como em vários outros órgãos), as “assessorias (especiais) de segurança e informações” (ASI e, em alguns casos, AESI), geralmente compostas ou chefiadas por um militar de alto escalão (oficial superior e, em alguns casos, oficial general). Tais assessorias estavam subordinadas ao MEC, por meio da Divisão de Segurança e Informações do MEC (DSI/MEC) e da Comissão de Investigação Sumária do MEC (CISMEC);

(3) de 1979 a 1988, a vigilância do campo assumiu gradativamente uma forma dissimulada: a conjuntura e o projeto de abertura “lenta, gradual e segura” requeria que o caráter coercitivo do regime fosse ocultado. Era fundamental que o campo continuasse sendo vigiado, para evitar que a distensão tomasse rumos indesejados, mas, ao mesmo

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tempo, isso deveria deixar de ocorrer de modo ostensivo, para evitar que a oposição, naquela conjuntura já com uma maior ‘margem de manobra’, utilizasse a situação como mote para críticas ao governo. Nesse sentido, vale lembrar que, em 8 de maio de 1979, o então ministro da Educação Eduardo Portella, por meio de uma comunicação interna, teria solicitado às instituições de ensino superior do país a extinção de suas ASI (Oliveira, 1979, p. 10). Aos poucos, as assessorias foram sendo formalmente extintas. Os militares que as chefiavam, contudo, permaneciam nas instituições, como “assessores” dos reitores, dando seguimento, na prática, ao exercício de suas funções de vigilância (Mansan, 2009, p. 199-204).

7. No início deste texto, três documentos foram citados. O primeiro, de 1975, ao fazer referência à prisão de um estudante universitário em Minas Gerais, exemplificava um tipo de punição frequente naqueles dias. O segundo consistia em um caso de normatização: uma lei que, imposta em 1969, impedia professores e servidores técnico-administrativos que tivessem sido sumariamente afastados de instituições públicas de educação básica ou superior de continuar atuando na área, em ensino ou pesquisa, nos setores público e privado. O terceiro documento, de 1981, dizia respeito a uma ação de vigilância, cujo alvo era constituído por estudantes que teriam protestado contra o despejo de entidades estudantis em Londrina/PR.

Um olhar mais atento, entretanto, perceberá que a primeira citação era também um exemplo de vigilância, ao ilustrar um aspecto desse tipo de atividade realizado por órgãos da “comunidade de segurança e informações”, núcleo daquele sistema de controle social. Mais especificamente, poder-se-á perceber uma forma de relação entre vigilância e punição.

Essa observação mais cuidadosa também permitirá ver que, na segunda citação (um caso indubitável de normatização), está igualmente exemplificada uma importante característica do elemento punitivo da coerção. Mais especificamente, percebe-se ali como o estabelecimento de uma determinada norma, sob a forma de lei, poderia servir como instrumento punitivo, ao tirar do indivíduo enquadrado naquela lei praticamente todas as possibilidades de seguir atuando em seu campo profissional. Percebe-se, igualmente, como uma norma poderia servir como base para a formação de consensos favoráveis, ao justificar antecipadamente a aplicação da referida punição, apresentada não como uma ação arbitrária (o que de fato era), mas como uma exigência legal. Evidenciam-se aí as relações entre normatização e punição e entre coerção e consenso.

O terceiro documento citado exemplifica, como já foi dito, uma ação de vigilância. No entanto, vale lembrar que a causa do protesto vigiado fora um ato punitivo: o despejo de entidades estudantis contrárias ao regime.

Vigilância, punição e normatização eram diferentes modos de controlar coercitivamente a sociedade e, dependendo da maneira como esta reagia às medidas

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de controle, novas formas de relação entre os três elementos do tripé coercitivo eram estabelecidas, para que o controle fosse mantido e, sempre que possível, aprimorado.

Ao chegar ao final desta breve reflexão, parece não haver dúvidas quanto à crucial importância que aqueles três aspectos do controle coercitivo tiveram para o regime ditatorial instaurado em 1964. Entende-se, ainda, ter sido possível demonstrar a viabilidade e o potencial de uma abordagem da coerção que considere, para além de seu aspecto mais evidente (a punição), seus outros dois componentes. Normatização, vigilância e punição relacionavam-se, segundo essa perspectiva, de modo indissociável e mutuamente complementar. Juntas, constituíram a face coercitiva do controle.

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A DIVISÃO DO TRABALHO NA FÁBRICA RHEINGANTZ: UMA ABORDAGEM DA QUESTÃO DE GÊNERO E IMIGRAÇÃO

ATRAVÉS DE UM ESTUDO DE CASO

JaNaiNa scHaUN sBaBo1

livia recHia dorNeles vaNessa cosTa da silva

RESUMO : O presente texto tem por intuito realizar uma análise sobre a forma de organização do trabalho na fábrica Rheingantz, atribuindo uma atenção especial a uma abordagem muito em voga no cenário historiográfico, se trata da questão de gênero, relatando as diferenças predominantes segundo o sexo no que tange as atribuições assentadas no ambiente de trabalho, além de refletir sobre sua repercussão no interior das indústrias, buscando detectar a importância da mão de obra dos imigrantes na composição do cenário industrial rio grandino, salientando a importância na configuração da economia da cidade, além de sua inclusão na participação da estrutura social deste município.

Palavras- chave: Questão de Gênero, Imigração, Fábrica Rheingantz.

I. INTRODUÇÃO

Tendo em vista as pesquisas existentes sobre a fábrica Rheingantz, principalmente no que concerne a participação dos imigrantes e a divisão do trabalho por gênero na mesma, se faz necessária a presença de uma pesquisa que admita a importância de aprofundar estudos sobre a constituição das indústrias e a formação da massa operária, devido a participação deste segmento no desenvolvimento urbano. No que concerne a inserção dos imigrantes, fenômeno que será retratado no decorrer deste texto, enfatiza-se sua influência no processo de industrialização da cidade, justamente pelo fato de representarem a mão-de-obra preponderante na composição da indústria.

Dentre as atividades que caracterizavam o circulo de trabalho na fábrica, nota-se que as funções na Rheingantz as mesma eram distribuídas diferentemente no que tange homens e mulheres, ou seja, às mulheres se designava a prática com tecidos e aos homens compreendia atividades que exigissem maior força física. Sendo que os imigrantes também estavam incluídos, e muito, nessas distribuições com caráter distinto

1 Acadêmicas do Curso de História Licenciatura da Universidade Federal do Rio Grande.Emails: [email protected]; [email protected].; [email protected]

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de serviço, pois representavam esses homens e mulheres em sua grande maioria. Sabe-se que sua mão de obra na fábrica Rheingantz era considerada de total importância, desenvolvendo assim, uma força de trabalho essencial para a produção. Compreende-se, contudo, que para realizar esse estudo, deve-se começar da origem da imigração em nosso país, relacionando gradualmente com os imigrantes na cidade do Rio Grande e a divisão do trabalho de acordo com o gênero presente na fábrica, ou seja, teremos um embasamento teórico essencial na produção deste trabalho, contando também com o auxílio de uma fonte primária, significativa para a análise deste contexto.

Assim, através do livro Movimento Operário no Brasil (1877-1944), de Edgard Carone, se percebe que os imigrantes estabelecem grande participação na concentração quantitativa de operários em âmbito nacional, pois no que se trata da mão-de-obra desta categoria, eles se destacavam constantemente. Já na obra intitulada História das mulheres do Brasil, de organização de Mary Del Priore e coordenação de Carla Bassanezi, se observar o destaque atribuído a de dois artigos para essa pesquisa, o primeiro de autoria de Margareth Rago, (Trabalho Feminino e Sexualidade), e segundo de Cláudia Fonseca, (Ser Mulher, Mãe e Pobre), ambas tratam do processo de inserção da mulher no mercado de trabalho e a dificuldade da mesma em manter-se em uma sociedade onde o trabalho é permeado por idéias machistas e conservadoras. Com o propósito de sinalizar aspectos sobre a obra Rheingantz: uma vila operária em Rio Grande, de Vivian S. Paulitsch, a fim de finalizar aqui a introdução das obras estudadas, se percebe o quão grande é a participação dos imigrantes na caracterização da cidade do Rio Grande. A participação destes como uma nova classe de trabalhadores aponta que cada etnia com suas características particulares trouxeram ao município, uma identidade que somente a Noiva do Mar possui, sinalizadas em pontos arquitetônicos do município.

O presente estudo, portanto, se dedica a analisar a divisão do trabalho e a presença de imigrantes na instituição, procura saber quais foram os fatores que realmente influenciaram essas pessoas a se deslocarem-se de lugares longínquos para uma região do interior do Estado do Rio Grande do Sul, será abordado, assim, os seguintes problemas de pesquisa: Quais os fatores que influenciaram a vinda dos imigrantes para fábrica de tecidos em questão? Quais as funções designadas aos mesmos, e sua participação na composição e formação da cidade? Com o objetivo principal de olhar essa questão através de um estudo de caso, pelo viés da história oral, de Dario Compolsilvan, ex-trabalhador da fábrica Rheingantz.

Para isso, será utilizada como forma de embasar o trabalho a metodologia de pesquisa nomeada como análise de conteúdo, a fim de averiguar a descrição de história oral retirada do Centro de Documentação Histórica “Prof. Hugo Alberto Pereira Neves” da FURG e será um auxílio na elaboração de uma síntese sobre o conjunto de obras que terão por funcionalidade, atribui ao texto um embasamento historiográfico. Essa metodologia perpassará todos os âmbitos da pesquisa, pois a mesma se enquadra

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na proposta do trabalho por proporcionar uma análise considerada abrangente das informações encontradas durante a leitura da entrevista de Dario Compolsilvan.

Para uma melhor compreensão, afirmamos que o artigo será dividido das seguintes formas: a primeira é composta por uma breve discussão historiográfica sobre a industrialização brasileira, perpassando por pontos que abordam as seguintes posições: a formação do operariado, a inserção da mulher no ambiente industrial, o papel da imigração no desenvolvimento da indústria e na divisão do trabalho na fábrica; a segunda aborda a questão da indústria local, salientando a estrutura, formação e composição da fábrica Rheingantz, através das memórias de Dario Compolsilvan. E na seqüência serão apresentadas ao leitor, algumas considerações finais.

II. UMA ANÁLISE HISTORIOGRÁFICA

Com o propósito de atribuir um olhar sob o processo de industrialização da cidade do Rio Grande, sob o enfoque da configuração da mão-de-obra predominante no interior das indústrias, buscamos conceituar tal processo de transformação econômica, seguindo parâmetros da Macro-História, pois a consideramos de suma relevância para a formação deste contexto, principalmente no que concerne a expansão da industrialização regional, neste caso, da cidade do Rio Grande, pois a partir de uma reflexão sobre esta especificidade há a possibilidade de realizar essa relação mesmo que indireta assim, tal característica pode ser observada principalmente em âmbito econômico que como conseqüência ocasionará mudanças nos parâmetros sociais.

O progresso industrial brasileiro pode ser visto como um grande avanço para a economia do país, principalmente quando se trata de uma nação que até então possuía como base econômica a produção agrícola. Logicamente, não podemos deixar de relatar um fenômeno relevante para este estudo, se trata da compreensão que deve existir quanto o setor primário, pois o mesmo conduz até os dias atuais a estrutura econômica do país, conferindo um caráter vital para sua existência e sendo um condutor na produção referida á subsistência da população. Além disso, possui representação em nossa economia com caráter agroexportadora, sendo significativa para a exportação, neste caso, de matéria prima.

A concentração de uma significativa produção ganhou forma nas vésperas da segunda guerra mundial e durante a mesma, ou seja, o surto do dito “progresso” começara a aparecer no país, isto se justifica ao afirmarmos que neste período, existiam, cerca de 49.418, empresas, isto é, quatro vezes mais do que em 1920, por exemplo. Trata-se de um momento turbulento onde mesmo em seus aspectos mais negativos, ocasionou transformações econômicas e sociais em uma sociedade. (CARONE, 1979).

As indústrias foram surgindo no cenário urbano devido a um acúmulo de capital, na qual o comerciante investia o dinheiro na compra do maquinário necessário para o

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funcionamento mais especificamente de uma fábrica. Mas nem sempre seu surgimento era de forma repentina, pois havia as pequenas empresas que eram de cunho familiar, intituladas como manufatureiras predominantes em grande quantidade em regiões urbanas da Europa, na América Latina, mais especificamente no Brasil, além de tais oficinas, surgiram também as Agroindústrias, devido o acentuado cultivo de produtos de ordem primária, a agricultura familiar e a composição de pequenas fábricas, juntamente com o artesanato doméstico propiciaram a essas instituições o seu desenvolvimento paulatino, até o momento de atingirem o patamar de uma indústria com produção em larga escala. Como nos mostra Vivian S. Paulitsch em sua obra, “Em outros casos, a indústria apareceu como resultado da evolução da pequena empresa de origem familiar para a grande fábrica, ou da unidade artesanato para a fabril-manufatureira.” (PAULITSCH, 2008, p. 26), representando esta modificação na composição das condições de fabricação.

Contudo, é importante levarmos em consideração a configuração da estrutura social, as transformações econômicas devem seguir os caminhos atribuídos pela sociedade, pois de nada vale elevar o sistema produtivo se não há mercado consumidor para absorver o acúmulo, devido a esta posição salientamos que este processo é seqüencial, a permanência de um maior número de indivíduos em uma sociedade, compreende a uma elevação na oferta, se trata de um aspecto da Lei da Oferta e da Procura.

Para que houvesse o desenvolvimento industrial seria necessário o fornecimento de mão-de-obra, a fim de abarcar o sistema de mercado consumidor e satisfazer a composição no número de trabalhadores, com esta finalidade, se fazia necessário que a mão-de-obra fosse qualificada atendendo os requisitos essenciais para o funcionamento fabril, porém, as empresas muitas vezes eram obrigadas a recorrer na obtenção de pessoas habilitadas que provinham de fora do país, onde ocupavam cargos semelhantes ás práticas que seriam realizadas nas indústrias brasileiras.

Sendo o Rio Grande do Sul um estado responsável por abastecer a economia interna, este foi um fator que contribuiu para implantar um perfil de indústrias ditas tradicionais, abarcando a produção ligada a tecelagem, por exemplo, como é o caso da Rheingantz que seguindo este perfil, ganhou destaque por sua atuação na economia do estado. Mas sua origem no Rio Grande do sul está no período da transição do Império para a República, mais precisamente na segunda metade do século XIX. Segundo a autora, Vivian S. Paulitsch foi neste período, também, em que e o Rio Grande do Sul se tornou o principal fornecedor de charque no que tange o mercado brasileiro.

“Desde meados do século XIX, o governo brasileiro procurou atrair milhares de imigrantes europeus para trabalhar tanto na lavoura, nas fazendas de café, quanto nas fábricas que surgiam nas cidades, substituindo a mão de obra escrava, especialmente depois da promulgação da Lei do Ventre Livre e da Abolição dos Escravos.” (RAGO, 1997, p. 580)

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Os imigrantes, nesse processo de transformações, foram de suma importância para tal desenvolvimento, pois com suas experiências adquiridas anteriormente em seus países, cultivavam em terras virgens a princípio em pequena escala apenas para o seu sustento, com o passar do tempo em larga escala. Como podemos ver em Paulitsch, “Os alemães foram os primeiros a chegar, em 1824, e passaram a praticar uma agricultura de subsistência em pequenos lotes com mão de obra familiar.” (PAULITSCH, 2008, p. 26).

A citação á seguir é responsável por delinear explicitamente esta ideia sob um olhar singular, sinalizando a fábrica Rheingantz como uma empresa que não se distingue das demais situadas no Centro do Brasil, que por sua vez, possuíam um porte maior no tange a linha de produção. “Em relação à mão-de-obra, as empresas muitas vezes tinham que mandar vir da Europa pessoal habilitado, como foi o caso da Rheingantz.” (PAULITSCH, 2008, p. 27).

Essa classe na sua maioria formada por imigrantes presenciou grandes conquistas como uma liga de trabalhadores na luta por melhores condições, caracterizando especialmente as melhorias no papel da mulher neste ambiente de trabalho, um exemplo a ser colocado, é a fixação da seção especial sobre a proteção do trabalho das mulheres e crianças menores de 14 anos (art. 403), promulgada em 1943. De forma semelhante agiu o artigo que realiza determinações sobre empregados do sexo feminino sob a afirmação de que não podiam realizar tarefas no qual exigissem grandes esforços físicos (art. 383). E às gestantes, foi concedida uma licença maternidade remunerada, onde o período de tempo oscilava entre seis semanas antes do parto e mais seis semanas após o parto (art.392) (CARONE, 1979).

Como vimos acima, as mulheres também ocupavam seu lugar no mercado de trabalho, sendo conveniente citar que sua inserção como operária na indústria foi um processo inevitável, pois nas condições que muitas viviam, ou seja, na pobreza ou até mesmo na miséria, exigia tal procedimento. No que tange o perfil da constituição familiar, salienta-se que um número considerável dessas mulheres se encontravam casadas, deste modo, eram acompanhadas de seus marido e filhos que também necessitavam da renda, outras eram abandonadas e isso fazia com que a necessidade de emprego fosse mais iminente. A obra de Cláudia Fonseca, Ser Mulher, Mãe e Pobre (1997), nos mostra como a industrialização e a participação da mulher compõe grande parte da mão de obra trabalhadora nas fábricas.

“As estatísticas sobre o Rio Grande do Sul em 1900 mostram que cerca de 42% da população economicamente ativa era feminina: as mulheres trabalhavam principalmente em ‘serviços domésticos’, mas sua atuação era também importante nas ‘artes e ofícios’ (41, 6%), na indústria manufatureira (46, 8%), e no setor agrícola.” (FONSECA, 1997, p. 517)

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Entretanto, podemos ver na história que esse processo de inserção das mulheres no mercado de trabalho, apesar de ter sido inevitável não foi fácil. Justamente pelo fato das mesmas estarem inseridas em uma sociedade totalmente voltada para valores conservadores e dominadas pelos homens. A maneira com que a mulher era observada, á caracterizava como uma pessoa frágil, pois era mantenedora do lar, a pessoa que garantia a organização da casa e das crianças, baseando-se apenas em um trabalho doméstico, porém quando começa a desbravar um mercado que então estava somente nas mãos dos homens, são vistas, na grande maioria das vezes, como uma pessoa que não merece respeito, mas apesar disso, continuaram a sua luta nesse terreno árduo e ao conseguirem empregos nas fábricas, apesar de todas as barreiras e de todos os preconceitos por parte da sociedade, começaram a partir do século XIX, a se tornarem grande parte da massa operária (RAGO, 1997). Neste período, estando o imigrante inserido nas fábricas e exercendo atividades em grande quantidade, percebemos que essas mulheres provinham de outras regiões, á serviço nas fábricas, formando a mão-de-obra operária.

Apesar de nosso trabalho explorar a participação da mulher nas indústrias, destacamos que em um primeiro momento as mesmas estiveram presentes nas pequenas manufaturas e imersas em locais distintos, geograficamente falando, se trata da lavoura, mais especificamente dos cultivares de café durante o século XIX e assim, posteriormente assumirão uma postura de mão-de-obra na zona urbana.

Como podemos perceber, a imigração constituiu grande parte da mão de obra trabalhadora no nosso país, essa massa trabalhadora era introduzida em fábricas e utilizada para os serviços industriais. Esses serviços eram muitas vezes distinguidos entre homens e mulheres, naturalmente estas últimas sempre ficavam nos setores que possuíam pouquíssima mecanização. Assim, estavam em grande número trabalhando em indústrias de fiação e tecelagem.

III. A ESTRUTURA DA INDÚSTRIA RHEINGANTZ: MEMÓRIAS DE DÁRIO COMPOLSILVAN

Com vista de melhor estruturar o estudo apresentado, é valido destacar para o leitor a origem e formação da estrutura da instituição Rheingantz.

Em Rio Grande no ano de 1874, o primeiro prédio, mais precisamente em frente à antiga cadeia, no quarteirão formado pelas ruas Conde de Porto Alegre, Almirante Barroso, General Câmara e Coronel Sampaio, começava as atividades da fábrica Rheingantz, sincronizando com a presença dos imigrantes Europeus para o estado, sendo fundada por Carlos Guilherme Rheingantz, de nacionalidade alemã, juntamente em sociedade com seu sogro Miguel Tito, porém, a sociedade feita logo se desfez e Carlos Rheingantz passou a comandar a fábrica sozinho. Então, a partir desse momento a

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mesma passou a se chamar Fábrica Nacional de Tecidos de Lã Rheingantz de & Cia. (PAULITSCH, 2008).

“A sociedade com o seu sogro Miguel Tito de Sá não teve muita duração, e logo em seguida Carlos Guilherme Rheingantz assumiu o ativo e o passivo da fábrica que passou a denominar-se Fábrica Nacional de Tecidos de Lã de Rheingantz & Cia, nas mesmas instalações.” (PAULITISCH, 2008, p.57)

Em 1891 a fábrica foi transformada em sociedade anônima, passou a se chamar de União Fabril e Pastoril, mas em 1895 ela sofre novas modificações e torna-se agora apenas União Fabril. A fábrica Rheingantz tinha como finalidade produzir tecidos de lã. Muitos de seus funcionários eram vindos de fora do país e suas moradias eram de acordo com cada nacionalidade, possuíam moradias com perfil de aluguéis, uma forma de manter certa organização da estrutura residencial dos empregados, como nos mostra Paulitisch,

“Após a construção das ‘casas da fábrica’ a partir de 1984, as demais construções de semelhante tipologia foram edificada entre 1903 e 1922, construindo a denominada Vila Operária.” (PAULITSCH, 2008, p.63)

Como é possível notar, considerava-se comum a vinda de imigrantes para servir como mão de obra especializada a fim de trabalhar nas indústrias brasileiras. Tais trabalhadores eram trazidos de seus países para exercer um papel que até então, no que compete aos serviços dentro das fábricas, pode ser considerado inexistente, pois os imigrantes que aqui chegavam tanto homens como mulheres, mesmo indiretamente atendiam as necessidades das instituições fabris do período (PAULITSCH, 2008). Porém, se pode ver que nem todos os imigrantes vinham com o intuito de trabalhar especificamente em fábricas, observa-se tal característica claramente nos relatos de Dario Camposilvan entrevistado no dia 28 de setembro de 1981, por Maria Regina da Silva Freitas, na cidade de Rio Grande. Ele revela que mesmo sendo imigrante, não se estabeleceu na cidade do Rio Grande a fim de empregar-se, mas sim por outros motivos que não vem ao caso da pesquisa. Contudo, o entrevistado afirma uma posição de grande valia, no que concerne o crescimento da indústria em determinados períodos, nos informa que a Segunda Guerra Mundial influenciou demasiadamente na composição da mão de obra proletária na indústria Rheingantz, aspecto considerado por sua vez, de grande importância para o contexto regional, pois no momento era considerada uma das maiores fábricas do estado (COMPOSILVAN, 1981).

“A mão-de-obra da fábrica era constituída por dois terços de mulheres e um terço de homens. As mulheres trabalhavam na produção e os homens na manutenção (...).” (PAULITSCH, 2008, p. 65)

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A carga horária dos funcionários era em torno de dez horas diárias, os empregados deveriam cumprir determinados horários já estipulados, por exemplo, trabalhavam dez horas por dia se necessário algumas vezes trabalhavam mais, ou seja, se aumentava a jornada de trabalho para os operários. Com a finalidade de atribuir maior assistência ás funcionárias, a fábrica disponibilizava locais para permanência dos filhos das operárias (COMPOSILVAN, 1981), com calendário escolar específico e regular. Assim, como também destaca a autora, havia aluguéis de moradias, constituindo a chamada Vila Operária, disponibilizando assistência para os funcionários vindos de fora, prática realizada até o ano de 1968, período em que foi decretado a falência da fábrica

“O auxilio educacional dada aos filhos dos funcionários no começo era periódico; com o passa do tempo foi adquirido proporções cada vez maiores, até a construção de uma escola (...).” (PAULITSCH, 2008, p.59)

O que na década de 1940, caracterizava a estrutura econômica da cidade do Rio Grande como sendo basicamente de cunho industrial, devido a quantia de empresas aqui instaladas, perfil que acabaria se transformando com a estagnação que chegara durante a década de 1960, ocasionando o fechamento de indústrias têxteis como a fábrica Rheingantz que permanece desativa desde a década de 1970, a sua falência se deve a grande concorrência de outras fábricas e magazines, mas não se pode esquecer a grande contribuição que a mesma ofereceu a cidade do Rio Grande no que tange o seu desenvolvimento.

IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Responsável pela colaboração no processo de industrialização da cidade é assim, que podemos analisar o papel desempenhado pela Fábrica Rheingantz para a formação e constituição dos parâmetros urbanos da Noiva do Mar. Com o auxílio de inúmeros aspectos, os quais foram sintetizados ao longo do texto, onde vinculamos o estágio de industrialização do país com o de nosso estado, para que em um último instante fosse possível relatar a nascente industrialização rio grandina, Além de salientar seus aspectos norteadores como, por exemplo, a constituição da classe operária na cidade, pois a presença dos imigrantes trouxe consigo, não só no que concerne sua estrutura, mas também na formação da classe operária aqui existente, atribuído uma atenção especial ás mulheres que protagonizaram o espaço das indústrias têxteis.

O papel dos imigrantes na fábrica Rheingantz, tanto os homens quanto as mulheres, são considerados essenciais para o desenvolvimento da mesma, são pessoas que vieram de seus países acabaram encontrando aqui uma segunda casa, com o intuito de seguirem suas vidas, trabalharam e contribuíram com o desenvolvimento do setor industrial e do ambiente urbano.

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REFERÊNCIAS

BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, © 1977.

BASSANEZI, Carla (coord. de textos). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997;

CARONE, Edgard. Movimento operário no Brasil (1877-1944). São Paulo: Difel, 1979.

FONSECA, Cláudia. Ser Mulher, Mãe e Pobre. In: DEL PRIORE, Mary (org.);

PAULITSCH, Vivian S. Rheingantz: Uma Vila Operária em Rio Grande. Rio Grande: FURG, 2008;

RAGO, Margareth. Trabalho Feminino e Sexualidade. In: DEL PRIORE, Mary (org.);

FONTE

CAMPOSILVAN, Dario. Entrevista realizada em Rio grande, dia 28 de setembro de 1981. FREITAS, Maria Regina da Silva. Arquivo do CDH – FURG.

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Gaúcho e Política na visão de Arsène Isabelle

maTHeUs Barros da silva1*

RESUMO: O artigo tem por objetivo analisar como na visão de um viajante foi caracterizado o gaúcho. Usarei como fonte principal uma citação especifica do viajante francês Louis-Fréderic Arsène Isabelle (1807-1888), que entre 1830 e 1834 realizou sua viajem na Região Platina. Palavras-chave: Gaúcho, Pampa, Viajantes.

ABSTRACT: The article aims to analyze how the vision of a traveler has characterized the gaucho. I will use as the primary source of a quotation specifies French traveler Louis-Frédéric Arsene Isabelle (1807-1888), who between 1830 and 1834 held its journey in Platinum Region.

Keywords: Gaucho, Pampa, Travelers.

Introdução:1.

O espaço meridional do continente Sul-americano a partir do período colonial, e posteriormente já durante o século XIX, com Estados independentes, foi destino para determinados grupos de homens aos quais comumente se denomina pelo termo “Viajante”. Estes ocupavam funções que podiam variar entre funcionários vinculados às coroas ibéricas e nas respectivas colônias realizarem demarcações que estabelecessem marcos limítrofe entre as mesmas. Também houve viajantes que ligados ao cientificismo e ao pensamento liberal burguês europeu do século XIX, empreenderam verdadeiras expedições.

Aqui, dizer espaço meridional é entendido por Região Platina. Assim, no presente estudo as fronteiras nacionais pouco importam, não há motivos para especificar e delimitar entre Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina, pois antes, esta região produziu uma mesma forma de vivência, uma totalidade sociocultural e assim, como resultado, um agente social singular neste espaço, o gaúcho. O conceito de região é usado de acordo com a definição elaborada pelas pesquisadoras Heloisa Reichel e Ieda Gutfreind que se referem à Região Platina como uma totalidade cultural.

1 * Acadêmico do 7° semestre em História – Bacharelado na FURG. Membro dos grupos de pesquisa “Espaço pampeano: Histórias, Fronteiras e Culturas” e “Cultura e Política no Mundo Antigo”, ambos sob a supervisão e orientação do Professor Doutor Jussemar Weiss. Contato: [email protected]

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Ao analisarmos o processo histórico colonial da Região Platina como uma totalidade, sentimos a necessidade de ampliar o conceito de região, integrando-lhe, também, posicionamentos teóricos trazidos da história sociocultural. Nesse sentido, entendemos que as relações sociais estão fundamentadas em experiências concretas, vividas pelos homens, as quais fazem deles produtores de cultura. Em outras palavras, as vivências, as idéias, os sentimentos que os homens desenvolveram nas suas relações com outros homens compõem, em um espaço delimitado a cultura de uma região. Ela, pois, é entendida como resultante das relações de domínio, de submissão ou de resistência que expressam os permanentes conflitos que caracterizam as relações sociais (REICHEL; GUTFREIND, 1996, p. 13).

O artigo tem por objetivo analisar como na visão de um viajante foi caracterizado o gaúcho. Usarei como fonte uma citação especifica do viajante francês Louis-Fréderic Arsène Isabelle (1807-1888), que entre 1830 e 1834 realizou seu itinerário na Região Platina2. Desta maneira, procuro nas palavras de Isabelle, verificar os atributos aplicados ao gaúcho, como este homem do pampa é descrito nas palavras de outro, que vindo da Europa produz um discurso a partir de um choque cultural.

Justifico a fonte por dois motivos. Em primeiro lugar, é utilizado o diário de um único viajante, pois a proposta não é realizar um estudo comparativo de discursos entre viajantes. Mesmo que cada um possua sua identidade na escrita, em tese todos produziram um relato de espanto etnocêntrico. Para além das especificidades de suas obras, o que importa aqui é o total estranhamento, a incapacidade de perceber no outro – o gaúcho – a validade da forma como constitui sua existência. Em segundo lugar, Arsène Isabelle é singular, pois, não é um naturalista de formação3, sua mentalidade é voltada para duas vias básicas; a questão econômica comercial e ao homem enquanto agente nesta dinâmica. Isto é evidente quando ao ler a dedicatória contida em sua obra encontra-se:

Aos senhores negociantes que constituem o comércio do Havre, como uma manifestação ostensiva, e não equívoca, dos votos do autor por sua prosperidade, à qual estão ìntimamente ligadas as do Havre, a da nossa indústria e a das nossas manufaturas (ISABELLE, 1949, p. 21).

O relato dos viajantes e a pesquisa histórica:2.

A pesquisa histórica ao abandonar a antiga idéia que vigorou até começo do século XX, de que a História só poderia ser alcançada em sua plenitude através do estudo objetivo do documento considerado oficial, levou à consideração de novos elementos como

2 A edição que uso neste artigo é a primeira editada em português. ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul. Tradução de Teodemiro Tostes. Rio de janeiro: Livraria Editora Zelio Valverde S.A., 1949. Por se tratar de uma edição muito antiga, anterior a reforma ortográfica na língua portuguesa ocorrida nos anos de 1970 o texto da citação contém diferenças em relação à ortografia corrente atualmente.

3 Sobre relatos de viajantes de formação no campo nas Ciências Naturais ver os diários publicados de Auguste de Saint-Hilaire e Charles Darwin.

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fontes históricas. Assim, podem-se designar como fonte para pesquisa do historiador atual, os denominados diários dos viajantes.

Em primeiro lugar um questionamento, quem eram esses viajantes? Aqueles, a quem se chamou por viajantes mostravam-se como um grupo heterogêneo de homens, havia estudiosos das ciências naturais, outros ligados a cargos diplomáticos, aqueles com aspirações industriais e mesmo aventureiro-exploradores.

Em um segundo momento outra problemática surge, qual motivo levou no século XIX o continente americano a ser destino de um elevado número de viajantes? O século XIX mostrou-se como um predominante período de pensamento cientificista na Europa, desta maneira, tem-se um número de estudiosos, entre eles, das chamadas ciências naturais, que são despertados em seus gênios científicos pelo desconhecido, o novo mundo. A gama e amplidão de novos conhecimentos que se mostrava promissor foi talvez o motor da vinda de muitos viajantes vinculados aos estudos naturais, isso se torna mais evidente quando se considera que praticamente tudo aqui, no continente americano, era novo para os europeus, para a mente do homem cientifico novecentista era seu “paraíso”.

Por outro lado, havia homens que não tinham ligação estreita com o pensamento acadêmico cientifico, mas antes se pautavam por algo mais pragmático, considerava-se as novas terras, como um quase infinito espaço para o desenvolvimento do trabalho industrial. Isabelle pode ser classificado na intersecção destes dois principais motivadores.

Os viajantes eram provenientes do continente europeu, assim, ao entrarem em contato com o mundo americano, acabaram por produzir discursos que refletiam um choque entre duas humanidades, ou melhor, uma tensão entre duas maneiras de vivência.

É preciso saber atribuir ao relato dos viajantes o devido valor, por não fazerem parte das sociedades observadas, os viajantes acabaram por construir um discurso que possibilitava uma visão mais abrangente da realidade em questão, percebendo, determinadas contradições internas. Deve haver cuidado para não incorrer no pensamento, de que tais escritos não estavam carregados de etnocentrismo, visto que, como já mencionado, eram homens que possuíam uma já elaborada conceituação sociocultural estabelecida.

Para enfatizar a respeito da noção do relato de viagem como dotado de um olhar distanciado da sociedade analisada pode recorrer à seguinte passagem:

O viajante, em sua qualidade de estrangeiro, como não fazia parte do grupo cultural visitado, tinha condições de perceber aspectos, incoerências e contradições da vida quotidiana que o habitante, ao dá-la como natural e permanente, encontrava-se incapaz de perceber (LEITE Apud GOMES, p. 117).

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Os viajantes, ao seu modo realizaram em certa medida uma problematização da realidade que observaram. Através de uma leitura atenta, os relatos de viagem podem constituir um importante subsídio para a pesquisa histórica.

Os viageiros estariam como que, ao observar o outro, utilizando “óculos”, possuía um filtro, que os faziam produzir seus escritos a partir de idéias e conceitos já construídos, como por exemplo, o que é uma sociedade civilizada, regrada.

Cada viajante trás consigo modos de percepção que variam por inúmeros motivos. São elementos que compõem a sua individualidade e interferem em sua capacidade de julgamento, tais como: sua naturalidade (ou nacionalidade) formação cultural, ou atividade profissional, enquadramento social, e ainda, a finalidade da viagem, O olhar do viajante estará armado também pelas variáveis de seus objetos, pelo compromisso de credibilidade científica cultivado, principalmente, pelos narradores de expedições naturalistas (GOMES, 2009, p. 121).

Contudo, os relatos de viagem como fontes para o estudo da história, possui valor na medida em que sua singularidade está no fato de produzidos in loco, no momento em que as ações observadas estavam em processo de acontecimento. Assim, o historiador tem a sua disposição uma imagem viva, em movimento, daquilo que constitui sua fonte.

O gaúcho e o olhar do outro:3.

Sobre Arsène Isabelle não se tem grandes notas biográficas, sabe-se o que se depreende de seus próprios escritos, assim em outra obra onde discorre sobre emigração e colonização na região do sul do Brasil e repúblicas do prata, o viajante aparece vinculado aos títulos de “Chanceler do Consulado de França, autor de viagem a Buenos Aires e a Porto Alegre, de Notas comerciais e de muitos outros escritos sobre Montevidéu.”4

O francês vindo do Havre5, em seu escrito deixa clara sua adoração desde muito cedo para com a literatura de viagem e com isso o despertar do desejo de empreender grandes viagens.

Entre 1830 e 1834 realizou sua viagem pela Região Platina. Chegando a Buenos Aires em 1830, enfrentou dificuldades financeiras, após, tentou começar uma indústria têxtil para ressarcir seu prejuízo, a mesma não obteve progressos, assim lhe restou de fato começar seu périplo. Isabelle é um viajante peculiar quando comparado a outros. Não é possível classificá-lo estritamente na categoria de naturalista, assim penso ser correto o definir como homem de mentalidade burguesa industrial.

4 Informações retiradas da nota sobre ao autor escrita pelo tradutor da presente edição, Teodemiro Tostes.

5 Cidade francesa da Alta Normandia.

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Agora, a partir de uma citação do viajante francês, tenta-se apreender o que entendeu e caracterizou por gaúcho. Arsène Isabelle assim fala:

Os gaúchos ou habitantes do campo são, em relação à Buenos Aires, o que são os tártaros em relação à China ou os beduínos em relação a Argel. Foi um chefe gaúcho que triunfou do partido Lavalle e serão os gaúchos que dominarão sempre a cidade, opondo-se a toda inovação útil ao país, até que se ponha em prática o plano de Rivadavia, que consistia em favorecer os estrangeiros e induzi-los a formar colônias no interior. O exemplo de seu trabalho, de sua moralidade, dos laços de família que se formariam, a modificação de alguns hábitos ainda selvagens, contribuiriam para suavizar os costumes ásperos dos gaúchos; compreenderiam a civilização européia, e caráter indomável, insubordinado, cederia à atração de um bem-estar que ainda não experimentaram; sua educação política, desenvolvendo idéias de uma ordem mais elevada, faria nascer um amor à pátria menos ardente, menos devorador, mas melhor compreendido, mais constante, mais nobre; saberiam que a pátria é a nação toda inteira e não só o campo onde nasceram; que a liberdade não consiste em reprovar toda espécie de freio que os legisladores pretendam pôr em suas paixões desregradas (ISABELLE, 1949, p. 94).

Antes de começar os comentários que se referem aos aspectos elencados na citação acima, quero invocar mais uma vez sobre a questão da região. A passagem destacada deixa claro que o viajante está falando de Buenos Aires, como afirmado anteriormente isso pouco importará no estudo, pois o espaço pampeno independentemente de fronteiras nacionais produziu um agente social que ao mesmo tempo foi singular e comum aos territórios compreendidos no que denominamos por pampa6.

“Os gaúchos ou habitantes do campo são, em relação à Buenos Aires, o que são os tártaros em relação à China ou os beduínos em relação a Argel (...)” O que se pode depreender deste momento? Primeiramente pode parecer sem sentido o fato de Isabelle tecer comparativos entre o gaúcho e povos tão distantes. É possível afirmar que o recurso de comparação serviria para que o leitor da literatura de viagem fosse capaz de mentalmente produzir uma imagem, uma aproximação imagética sobre aquilo que se lia.

Proponho ao lado desta concepção, outra forma de interpretar este momento da citação. Arsène usa dos tártaros e beduínos, pois estes no imaginário do europeu configurariam um entrave para o desenvolvimento daqueles respectivos lugares. Assim o gaúcho aparece da mesma forma, elemento que oferece obstáculo no progresso da Região Platina. Também fica evidente a noção de violência contida na figura do gaúcho. Tártaros e beduínos são pelos europeus deste período vistos como selvagens representantes da barbárie, assim Isabelle transpõe esta concepção para os gaúchos.

Outro detalhe merece ser ressaltado, enquanto por um lado, os tártaros e beduínos

6 O espaço ao qual se conhece pelo termo Pampa abrange a metade sul do Rio Grande do Sul, determinadas províncias argentinas, são elas Buenos Aires, La Pampa, Corrientes, Santa Fé, Córdoba e Entre Ríos e a totalidade do território uruguaio.

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são autóctones em seus respectivos locais, por outro lado, o gaúcho é produto da ação colonizadora. O gaúcho é o fruto do contado, da miscigenação do sangue europeu com o elemento nativo e com o negro. É nas interações entre estas variáveis no período colonial, que o tipo gaúcho nasce.

A respeito deste processo de interação étnico-cultural, as pesquisadoras Heloísa Reichel e Ieda Gutfreind nos elucidam do seguinte modo:

Sendo assim, esta cultura em construção contou com a influência, com maior ou menos peso, de elementos da cultura dos povos nativos, da branca européia e da negra africana, sendo que todas, por sua vez, encontravam-se em estágios culturais diferenciados. A classe dos dominados se constituiu, do ponto de vista étnico, predominantemente de índio e de mestiços. A predominância numérica dos nativos fez com que o costume ou a tradição indígena influísse na formação da cultura popular da campanha platina. Por outro lado, por menor que fosse o número de elementos brancos, o estágio de desenvolvimento e a dominação da cultura européia fizeram com que o costume ou a tradição da mesma também influísse significativamente. O mesmo deve ser relativizado em relação à influência da cultura negra. Esta foi menor, tendo em vista que a utilização da relação escravista nas atividades produtivas da campanha não foi tão expressiva quanto nas áreas de plantation ou de agricultura extensiva (REICHEL; GUTFRIEND, 1996, p. 170).

Assim, diferentemente dos povos citados pelo viajante, o gaúcho foi a síntese de

um vagaroso processo que teve início no período colonial, onde foi produzido um sujeito singular. O gaúcho, sendo resultado de elementos distintos, fluía por entre aquelas realidades.

Seguindo o destrinchar da citação tem-se; “(...) Foi um chefe gaúcho que triunfou do partido Lavalle e serão os gaúchos que dominarão sempre a cidade, opondo-se a toda inovação útil ao país, até que se ponha em prática o plano de Rivadavia, que consistia em favorecer os estrangeiros e induzi-los a formar colônias no interior (...).” Fica claro toda aversão que Arsène Isabelle tinha em relação ao que não julgava de acordo com ideais burgueses liberais. O viajante demonstra simpatia pelo plano político de Rivadavia7, governante argentino anos antes de Arsène Isabelle empreender sua viagem. Rivadavia era um modernizador, educado nos valores liberais, pretendeu uma política econômica de incentivo a imigração européia, abertura da Argentina ao capital estrangeiro e livre comércio, medidas combatidas pelos que defendiam o sistema econômico arraigado nas grandes extensões de terra8. Assim, visava promover um salto de cultura edificando teatros, bibliotecas, universidades e subsidiando a vinda de cientistas e intelectuais para a Argentina (LYNCH, 2009, p. 644).

“(...) O exemplo de seu trabalho, de sua moralidade, dos laços de família que se

7 Bernardino de la Trinidad Gónzalez Rivadavia y Rivadavia (1780-1845). Presidente da Argentina, de 1826-1827.

8 O caudilho Juan Manoel Rosas e seus seguidores são o exemplo bem acabado.

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formariam, a modificação de alguns hábitos ainda selvagens, contribuiriam para suavizar os costumes ásperos dos gaúchos (...)” O viajante nesta parte coloca o homem europeu como o exemplo de uma vida de trabalho, enquanto que o gaúcho é visto como o contrário de tal mentalidade. Nota-se que o gaúcho é explicitamente como alguém dotado de hábitos selvagens, elemento “indomável” e “insubordinado”. Aqui está claro que o viajante impõe uma noção caracterizada como o embate entre civilização e barbárie, seria lícito mesmo trocarmos o primeiro termo, assim se tem Europa (civilização) versus barbárie (pampa).

O gaúcho para Isabelle estava no contra fluxo do desenvolvimento civilizatório, ou seja, habitava o local da barbárie. Norbert Elias ao se referir sobre o processo civilizatório empreendido pela Europa diz:

O processo civilizatório do Estado é a Constituição, a educação, por conseguinte, a eliminação de tudo que era ainda bárbaro ou irracional nas condições vigentes, fossem penalidades legais, as restrições de classe à burguesia ou as barreiras que impediam d desenvolvimento do comércio (ELIAS, 1990, p. 62).

Pode-se ver nesta reflexão do sociólogo alemão, como o que teria sido o ponto de vista de Arsène Isabelle ao deparar-se com o que julgou barbárie.

Não é só o autor francês que faz censura aos hábitos vinculados à campanha, intelectuais latino-americanos, que imbuídos de um ideal civilizatório europeu, como o escritor Domingo Faustino Sarmiento, que produziu uma obra chamada “Facundo” deixava bem claro sua ojeriza ao elemento “bárbaro” pampeano.

O homem da cidade veste trajes europeus, vive a vida civilizada tal como a conhecemos em todas as partes; ali estão as leis, as idéias de progresso, os meios de instrução, alguma organização municipal, o governo regular, etc. Deixando-se o ambiente urbano, tudo muda de figura: o homem do campo usa outra roupa, que chamarei americana, por ser comum a todos os povos; seus hábitos de vida são diversos; suas necessidades, peculiares e limitadas. Parecem duas sociedades diferentes, dois povos estranhos um ao outro. Ainda há mais: o homem da campanha, longe de aspirar a assemelhar-se ao da cidade, rechaça com desdém seu luxo e suas maneiras corteses; e o vestuário do homem da cidade, o fraque, a capa, nenhum traço da indumentária européia pode apresentar-se impunemente na campanha. Tudo o que há de civilizado na cidade está bloqueado ali, proscrito, e aquele que ousasse mostrar-se sobrecasaca, por exemplo, e montado em sela inglesa, atrairia para sim as burlas e as agressões brutais dos campeiros (SARMIENTO, 1996, p. 32).

Ressalto o fato de que se não tivesse anteriormente registrado que a passagem acima era de outro autor, tranquilamente o leitor pensaria se tratar ainda das palavras de Arsène Isabelle.

Tais conceitos empregados por Isabelle podem ser entendidos na medida em que

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se observa a qual tipo de sociedade o viajante era originário. Certamente os viajantes tinham cada qual uma nacionalidade, mas de forma geral eram europeus. A Europa no século XIX passava pela consolidação de um processo que já anteriormente havia dado início, a afirmação de um pensamento burguês, que tinha na sua esteira a construção de uma autoridade civilizatória e normatizadora das condutas humana. Certamente o homem do campo que Isabelle teria tido contato na Europa, diferia indelevelmente do gaúcho, se lá o camponês era homem acantonado, mesmo submisso, no espaço pampeano o gaúcho corria solto sobre o cavalo, realizava a caça ao gado não possuía noções de espaços cercados, mas antes de uma totalidade territorial onde fazia sua existência.

“(...) saberiam que a pátria é a nação toda inteira e não só o campo onde nasceram (...)” Disto pode-se concluir que Isabelle mostra o gaúcho como um elemento estranho à noção de pátria. O viajante por pertencer a uma realidade onde noções de Nação, Cidadão possuem uma estabilidade, se espanta com estes homens soltos pelo pampa, que vivendo fora de normas consideradas civilizadas tornam-se entraves ao desenvolvimento social, neste caso a oposição que Isabelle faz, é a de cidadão versus bando. Mas deve-se manter em mente que o francês elaborou esta concepção não compreendendo que o gaúcho foi um resultado de forças que entraram em contato e confluência anteriormente da configuração dos Estados Nacionais na Região Platina.

O gaúcho nasce das seguintes variáveis, que em nada são mediadas por ideais nacionalistas, primeiramente tem-se a intersecção ocorrida entre o elemento europeu e o nativo, foi a partir da relação, na maioria das vezes conflituosa entre esses, que emergiu aquele tipo humano singular em relação a todos que no mesmo espaço habitavam. Uma segunda variável nesta equação é que tanto no período colonial como pós-independência os limites e as questões a cerca da propriedade da terra permaneciam de forma indefinida, isso ocasionou que nas extensões relativamente pouco controladas do pampa, o gaúcho pudesse encontrar seu local de ação, construiu sua existência em uma vivência com determinados elementos pampeanos, como o cavalo9 e o gado vacum10.

O viajante francês encerra sua citação da seguinte maneira “(...) que a liberdade não consiste em reprovar toda espécie de freio que os legisladores pretendam pôr em suas paixões desregradas.” O gaúcho é na visão de Isabelle, mostrado estritamente

9 Sobre a introdução do cavalo na Região Platina: “El primero que se introdujo fue el caballo, por Mendoza em 1536, y al despoblarse Buenos Aires em 1541, quedaron unas pocas cabezas que huyeram a la pampa y, reproduciéndose em libertad, dieron nacimiento a grandes manadas chimarronas. Poco después, em 1542, Cabeza de Vaca importo otros pocos caballos a la Asunción, por vía terrestre desde las constas del Brasil, viniendo entre ellos algunos garañones, com los que se obtuvieron las primeira mula” (CONI, 1969, p. 28).

10 A respeito da entrada do gado: “El vacuno entró por las costas del Brasil y de allí a la Asunción, llevado por los Hermanos Goes em 1555, y em 1568 Felipe de Cáceres trajo outra partida, ya más numerosa, de Santa Cruz de la Sierra. Del Paraguay el vacuno se extendió a Santa Fé, Buenos Aires y Cirrientes, a donde fue llevado em el momento de fundarse casa uma de estas ciudades. Em el Norte, fue traído a Santiago de Estero desde la Serena em Chile por el conquistador Pérez de Zurita em 1557; sucessivas partidas entradas desde el Alto Perú concluyeron de poblar com ganado vacuno el resto del território de la gonbernación del Tucumán” (CONI, 1969, p. 28).

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como um marginal11, estar contra as decisões dos legisladores é agir contra lei. Mais uma vez é preciso refletir sobre as palavras de Isabelle na medida em que entendemos algo de sua realidade. Uma sociedade, que constrói um corpo político, que está baseado nos pressupostos da representatividade, bem como na separação e equidade entre os poderes. Ações estas que foram por objetivo, desenvolvidas, pois visavam à garantia e manutenção de um estado de segurança e igualdade no direito de propriedade.

Desta maneira, a realidade da Região Platina no que tange a uma organização jurídica, foi chocante para Isabelle, ou seja, ele percebe nesta região que o funcionamento das leis corria de maneira, pode-se dizer fluida e de um caráter patrimonialista. As leis, elaboradas no meio urbano das cidades, tinham uma fraca e demorada efetividade no espaço pampa, eram cumpridas na medida em que podiam ser úteis aos proprietários, assim, é evidente o cunho personalista daquele aparato político e jurídico, pois quando mais próximo se estava do centro do sistema, maior seria a facilidade de usá-lo ao próprio favor.

Com efeito, o gaúcho, que alheio às noções e impasses jurídico daquela sociedade, vivia em duplo mundo, ora tolerado e mesmo procurado na medida em que era possuidor de habilidades especificas que pudessem servir aos interesses de um grande proprietário que necessitando de gado recorria aos gaúchos, estes se colocando a disposição para um trabalho sazonal recebiam um subsídio para sua existência. Em outros, momentos condenado por ser considerado símbolo de atraso social.

Se neste período, o conjunto de leis é ainda algo nebuloso quando ao seu cumprimento, o século XIX também assiste os definitivos processos da privatização da terra. Nesta realidade, o gaúcho assumiu um caráter de homem marginal diante das autoridades governamentais. Com a estância se constituindo como unidade de produção básica da região platina, o gaúcho passou a ser visto como mão-de-obra em potencial para tal empresa, aquele que na contramão deste processo não se submetia a tal restrição e mantinha seu tipo de vivência que já há muito havia sido edificado, apresentando-se resistente a se tornar um peão de estância, acabou por ser visto pela autoridade como um vago, marginal, sem deus, sem rei, sem lei, elemento que se não fosse possível converter em mão-de-obra regular deveria ser combatido.

O gaúcho era o produto de uma mistura de raças (...). Numa definição simples, o gaúcho era um homem livre em cima de um cavalo (...). Uma maior precisão distinguiria entre os habitantes sedentários da zona rural, que trabalham a terra para sim próprios ou para um patron, e o gaúcho pura, um nômade e independente, não-vinculado a qualquer propriedade. E um maior refinamento dos termos identificaria o gaúcho malo, que vivia da violência e da quase-delinquência e que o Estado encarava como um criminoso. Bom ou mau, o gaúcho clássico asseverava sua liberdade com relação a todas as instituições formais; era

11 Para autores que seguiram essa interpretação pode-se como exemplo, ver: NICHOLS, Madaline Wallis. O gaúcho. Rio de janeiro: Editora livraria Zelio Valverde, 1946.

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indiferente à religião (...). Não queria terra; vivia da caça, do jogo e da luta (...). Propriedade, diligência habitação era conceitos que ele desconhecia (LYNCH, 2009, p. 64).

O gaúcho se diferenciava por suas habilidades, como o destro manejo do laço, das boleadeiras e a igual destreza com “cutillo” 12. Antes mesmo de se transformar em mito idílico, o gaúcho era de certa forma, reconhecido em tais singularidades, pois era de grande valor quando estava trabalhando para algum grande proprietário. Era com essas habilidades e conhecendo cada metro do pampa como ninguém, que o gaúcho preava o gado.

Conclusão:4.

Desta maneira, pode-se passar em revista o que foi tratado neste estudo afirmando, que o diário de viagem não se constitui como uma obra histórica, já que não encerra em si uma preocupação metodológica, tem antes como objetivo realizar uma descrição geográfica, política e considerações sobre os costumes pertencentes às sociedades visitadas, com isso em mente o historiador pode evitar certos perigos contidos no relato de viajantes, pois muito já foi produzido utilizando os viajantes sem lê-los protegidos por critérios analíticos. Seja para acusar o gaúcho de bandido dos pampas ou como base do mito do homem livre, virtuoso e valente pampeano.

O diário de Isabelle foi a fonte em questão, pois ele primeiramente não é típico, como Darwin e Saint-Hilaire, por exemplo, por serem naturalistas realizam um discurso muito próximo, descrições extremamente físicas, cientificistas e além do mais são abordados muito freqüentemente em texto sobre viajantes. Em segundo lugar, na citação especifica que pincei de seu diário, foi possível elencar aspectos tão variados que foi permitido a partir deste microcosmo dentro de seu escrito, realizar um estudo de visão geral, onde a cada fração de sua citação estabeleceu-se relações com outros contextos.

Hábitos considerados violentos também foram observados por Isabelle. Isto é uma visão de homens que pertenciam a uma forma totalmente outra de pensar a maneira de organização e proceder de uma sociedade, não poderia ser diferente tal olhar, assim como não se deve pensar em uma maneira alternativa para as práticas e hábitos dos gaúchos, pois as ações que os mesmos desenvolveram e executaram eram as únicas possíveis em seu universo de existência. Pode-se sintetizar esta reflexão afirmando, que enquanto o gaúcho construía seu mundo mediado por uma ausência relativa de contenção, por outro lado, a realidade de Isabelle era a sociedade do controle, assim, o gaúcho aos olhos de Arsène Isabelle pode ser esquematizado da seguinte maneira; resultado da ação colonial, um elemento avesso às noções de civilidade, um bárbaro que

12 Termo que se pode traduzir por a faca.

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para o viajante era um entrave no desenvolvimento do progresso. Com efeito, o gaúcho foi o tipo social peculiar que pertenceu ao espaço do pampa,

o gaúcho, homem que condicionado e nascido a partir de uma maneira específica de vivência, as lides campeiras, se constitui como sendo personagem diferenciado na história do espaço pampeano.

Fonte:5.

ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Zélio Valverde, 1949.

Referências Bibliográficas:6.

CONI, Emilio A. Los posibles aspirantes a gaúchos: La introcción de nuevos animales domésticos. In: CONI, Emilio A. El gaúcho: Argentina – Brasil – Uruguay. Buenos Aires: SOLAR/HACHETTE, 1969, pp. 28.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editores, 1990, pp. 64.

GOMES, Carla Renata Antunes de Souza. De rio-grandense a gaúcho: o triunfo do avesso. Porto Alegre: Editoras Associadas, 2009.

LYNCH, John. As Repúblicas do Prata da Independência à Guerra do Paraguai. In: LESLIE, Bethel (org). História da América Latina: Da Independência a 1870, Volume III. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF – Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, pp 625 – 692.

REICHEL, Heloisa Jochins, GUTFRIEND, Ieda. As raízes históricas do MERCOSUL: a região platina colonial. São Leopoldo: ED. Unissinos, 1996.

SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo: civilização e barbárie no pampa argentino. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS/EDIPUCRS, 1996.

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JUAN MOREIRA: LITERATURA E IDENTIDADE, NA ARGENTINA EM FINS DO SÉCULO XIX.

Pedro viceNTe sTeFaNello medeiros1

Resumo: O artigo busca entender a relação que se estabeleceu entre a literatura “criolla” e a construção de uma identidade nacional na Argentina em fins do século XIX. Esse contexto é caracterizado por um crescente fluxo imigratório e uma expansão urbana e industrial, estabelecendo-se, assim, uma nova relação política pela integração dos imigrantes à nacionalidade. Somado a isso, temos o desenvolvimento de uma pujante imprensa e, através dela, a disseminação de uma literatura “criolla” resultando na criação de heróis populares como “Juan Moreira”. Neste sentido, tentaremos traçar um paralelo entre o choque destas variáveis e a constituição de uma identidade argentina.

Palavras-chave: Argentina; literatura; identidade.

Resumen: El artículo busca comprender la relación establecida entre la literatura criolla y la construcción de una identidad nacional en Argentina a los fines del siglo XIX. Este contexto es caracterizado por un cresciente flujo inmigratorio y una expansión urbana e industrial, estableciéndose, así, una nueva relación política por la integración del inmigrante a la nacionalidad. Además, tenemos el desarrollo de una pujante prensa y, a traves de ella, la difusión de una literatura de signo criollista resultando en la criación de heroes populares, como “Juan Moreira”. Siendo así, intentaremos trazar un paralelo entre el choque de estas variables y la constituición de una identidad argentina.

Palabras clave: Argentina; literatura; identidad.

No último quartel do século XIX e início do século XX, nota-se uma situação bastante

peculiar na República Argentina. Esse contexto singular se produziu a partir de uma mescla de fatores, como projetos políticos educacionais, um fluxo imigratório crescente e um desenvolvimento industrial e urbano. Sendo que essa nascente industrialização atraiu um grande número de pessoas para a cidade, colidindo com esse diferente universo cosmopolita, produziram uma nova ordem social.

Neste sentido há uma necessidade quanto à construção de uma identidade nacional, algo que sintetize o argentino, e ao mesmo tempo produza algum tipo de singularidade valorativa, fazendo com que todos se identifiquem com determinado ideal. Neste mote, é imprescindível citar o desenvolvimento de uma pujante imprensa, que imbricada com os outros elementos já citados, funcionou como um grande instrumento e motor para a construção identitária. O que se quer neste artigo é pensar a relação que se estabelece

1 Licenciando em Hitstória na Universidade Federal do Rio Grande – FURG. [email protected]

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entre a literatura “criolla”2 e a construção dessa identidade nacional. Buscaremos compreender a construção desta identidade nacional argentina

a partir de uma literatura que tinha como pano de fundo a temática do gaúcho e seu universo. Faremos isto a partir da obra de Eduardo Gutierrez, “Juan Moreira”. Esta obra surge como folhetim, que diariamente era publicado nos jornais argentinos, o que revela esta luta pela construção de uma identidade nacional, já que mostra em suas páginas o desenrolar de uma vida gauchesca, construída a partir de uma referencia urbana, em choque com o mundo cosmopolita da nova Argentina. Tentaremos entender como se deu a relação entre o desenrolar diário desse folhetim e os valores que o mesmo carregava consigo, no embate com a nova ordem social que surgia, e os projetos políticos que se tinham, para a constituição desta identidade gauchesca argentina, sintetizada na maioria das vezes pela figura de “Juan Moreira”.

Essa construção de uma identidade nacional que se desenvolvera a partir da imbricação de diversas variáveis como projetos políticos, manifestações literárias que ganham força com o incremento de uma imprensa aos moldes europeus, ao mesmo tempo em que um incontável contingente de imigrantes chegava quase todos os dias ao porto de Buenos Aires. De fato era uma nova e moderna Argentina que nascia, ou melhor, podemos dizer era a “Argentina” que nascia, pois este país concebido de uma maneira unificada, só é tido como tal em 1862 com a assunção ao poder central do então governador de Buenos Aires, Bartolomé Mitre. Depois das guerras de independência nos anos de 1810, foram travadas diversas lutas pelo poder e que pudessem congregar todas as províncias em uma só nação, após tantas disputas entre os partidos “unitários” e “federais”, somente ao alvorecer da década de 1860, que poderemos entender isso tudo como um único país, chamado Argentina.

Por conseguinte, era uma nação que crescia fortemente nos rumos da modernidade, considerando ainda que sua capital Buenos Aires, possuía um porto que a conectava diretamente com o que acontecia na Europa. Desta maneira, com um presidente que tinha um enorme apreço pela civilização européia, que se constituíra na Argentina um projeto político educacional fundamental para sua construção identitária. Sucedendo Bartolomé Mitre em 1868, assume a presidência Domingo Faustino Sarmiento, que a partir de então desenvolve uma grande empresa para civilizar seu país, incentiva a imigração européia, fomenta a indústria, aplica planos urbanizadores nas cidades, mas principalmente se caracterizou por seu projeto político educacional e cultural. Construindo teatros e bibliotecas, e fundamentalmente aumentando de forma considerável o número de escolas, o que resultou nas décadas seguintes em uma taxa de alfabetização por volta dos 30%, índice bastante alto para os padrões latino-americanos

2 A literatura “criolla” nasce concomitante com o “criollismo”, um movimento que busca valorizar saberes e práticas ligadas à terra, ao pampa, como forma de afirmação e de legitimação da população nativa em detrimento ao estrangeiro. Esta literatura é folhetinesca, sendo concebida no seio da cultura de massas e argumentada a partir de uma visão maniqueísta de mundo.

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da época. Com as bases educacionais cimentadas por Sarmiento temos um aumento da parcela letrada da população, tornando possível a criação de leitores que participaram, via, leitura das aventuras de Juan Moreira e a partir dele entram na discussão do que é ser argentino nestes momentos. Na Argentina surge neste período um fenômeno raro na América latina, o desenvolvimento de um corpo de leitores de jornais (diários ou não) que mediante a leitura participam do problema nacional, isto é, em função da chegada de estrangeiros que vêem participar do processo industrial nascente, os choques entre os locais e os imigrantes tornam a questão da identidade, um problema nacional.

Resultado de planos políticos que a fomentou, a imigração trouxe um enorme contingente populacional oriundo de diversos países, como Itália, França, Espanha, Inglaterra, Irlanda, Alemanha, entre outros. Estes imigrantes trouxeram consigo sua experiência com a ordem industrial de trabalho, contribuindo ainda mais para acelerar o processo modernizador argentino. Com os europeus também vieram suas inúmeras manifestações culturais e ideais políticos, que logo se chocaram com as populações locais, produzindo nas cidades argentinas um clima de confusão e estranheza. Sensações que se traduziram em momentos de rixas entre nativos e estrangeiros, e como se segue a necessidade de afirmação de uma identidade genuinamente argentina. Seria a edificação de um tipo argentino ideal, ensejada por uma literatura que idealizaria a figura do gaúcho, e ganhando ampla difusão através de seu caráter periódico, que curiosamente, congregaria uma única identidade para toda a nação, incluindo tanto os argentinos da campanha e da cidade, como também os recém chegados imigrantes europeus.

Para los grupos dirigentes de la población nativa, esse criollismo pudo significar el modo de afirmacíon de su propia legitimidad y el modo de rechazo de la presencia inquietante del extranjero. Para los sectores populares de esa misma población nativa, desplazados de sus lugares de origen e instalados en las ciudades, esse criollismo pudo ser una expresión de nostalgia o una forma sustitutiva de rebelión contra la extrañeza y las imposiciones del escenario urbano. Y para muchos extranjeros pudo significar la forma inmediata y visible de asimilación, la credencial de ciudadanía de que podían munirse para integrarse com derechos plenos en el creciente torrente de la vida social. (PRIETO, 2006, p, 18 e 19)

Portanto constata-se a partir do trecho acima, que embora atendendo diferentes

necessidades, essa construção de identidade fez de um aspecto cultural, que primeiramente poderia separar nativos de estrangeiros, uma útil ferramenta para a integração destes últimos a sociedade argentina.

Assim sendo, é visto na Argentina em fins do século XIX, o desenvolvimento de uma imprensa em moldes praticamente impensáveis para a América do Sul na mesma época. A partir dos anos 1870 o número de jornais no país só cresceu, para termos uma idéia desta difusão, temos segundo (PRIETO, 2006, p.34 e 35), no ano de 1877 uma população de 2.347.000 habitantes, e nesse mesmo ano a edição de 148 jornais, traduzindo-se numa

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relação de um jornal para cada 15.700 habitantes, estando à Argentina neste quesito à frente de países europeus como Bélgica e Suíça. E no transcurso que a modernização do país avança, a imprensa segue sua crescente, sendo que no ano de 1882, dois anos depois da primeira aparição de “Juan Moreira” em um folhetim, a relação jornal por habitante, situava a imprensa argentina como a terceira no mundo, consistindo em um jornal para cada 13.509 habitantes.

Estes números nos mostram uma importante faceta do processo modernizador argentino, que imbricada com a variável da alta taxa de alfabetização, vão constituir uma das principais bases para a concepção de uma identidade nacional a partir da literatura. Consequentemente é o tipo singular de literatura difundida por estes inúmeros periódicos que será o diferencial na edificação de uma identidade. As literaturas de folhetim presentes nos jornais argentinos da época são espécies de historietas que constituem uma leitura de fixação do leitor para com a estória, e que, pelo seu caráter diário criam um vinculo até mesmo de ordem subjetiva entre aquele que lê, e o universo acerca do qual esta lendo, como podemos observar neste trecho:

Una novela puede cambiar el destino de un hombre. Sobre todo, cuando su vida aparece escrita día a día en un folletin que los lectores de un diário consumen com insaciable avidez. Sobre todo, también, si esse hombre ya há muerto y la fiicción puede modificar ciertas circunstancias o adornar la historia real. (LAERA, 2001, p.5)

Este excerto, escrito por Alejandra Laera, retirado do prólogo de uma edição atual de “Juan Moreira”, reflete sobre o folhetim, nos dizendo como o dia-a-dia de um folhetim, e os adornos feitos pela ficção à história real, pode mudar o destino de um homem, e se somado a isso este homem já for morto, podendo torná-lo herói, sendo “Juan Moreira” um exemplo clássico dessa relação. Obra que foi publicada por Eduardo Gutierrez em forma de folhetim no jornal de sua família, pela primeira vez entre 1879 e 1880, alcançando em pouco tempo um tremendo sucesso, sendo vendido a diversos jornais do interior, ganhou rapidamente difusão nacional, e ao sair em livro algum tempo depois, teve seus exemplares esgotados logo em seguida, (LAERA, 2006, p.6).

Eduardo Gutierrez era filho de uma família abastada, com tradição nas letras, tinha vários irmãos que se concebiam como grandes intelectuais, proprietários de uma gráfica editora e de alguns jornais da época. Todavia, Eduardo era mal visto pelos irmãos, que não o enxergavam na mesma categoria de intelectual, mas apenas um medíocre escritor de folhetins. Curiosamente foi exatamente escrevendo novelas folhetinescas, que Eduardo ficou nacionalmente conhecido.

Para escrever “Moreira”, Gutierrez, vai buscar inspiração em um boletim policial do partido de “Matanzas”, na época um povoado rural da campanha de Buenos Aires. A partir desta ficha policial, o autor constrói um verdadeiro romance, onde coloca um gaúcho injustiçado e perseguido pelas autoridades na condição de herói. Em “Juan

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Moreira”, o autor nos trás a vida de um gaúcho argentino típico do final do século XIX, peão que trabalha ora para um e ora para outro, que tendo algumas posses, às vezes se envolve em alguma confusão, em uma “pulperia”3, sendo possível nestes casos, a referida confusão terminar em tragédia. A história de “Moreira” se desenrola a partir de que este se casou com “Vicenta”, a mesma prenda que era pretendida pelo tenente local, resultando então na perseguição por parte do tenente a “Juan”. “Moreira” sempre muito tranqüilo vai agüentando aquela pressão até que certo dia, não podendo mais sustentar tais moléstias acaba perdendo a razão. Nessa passagem o tenente faz com que “Moreira” arranje uma confusão com o dono da “pupleria” local, e “Juan” acaba matando o vivente, decorrendo em sua perseguição. Nesta parte da obra “Moreira” assassina o tenente, percebendo que sua vida entra em desgraça. Torna-se um procurado fora da lei, tendo de fugir de pago em pago , sobrevivendo sempre com a polícia em seu rastro, se envolve em várias pelejas, até que um dia é assassinado.

São esses elementos dramáticos presentes na obra de Gutierrez, que fazem eco na população, um gaúcho injustiçado que tem de matar para sobreviver. Em uma das passagens, “Juan Moreira” mata oito soldados, constituindo o imaginário de um bravo guerreiro, que nunca se entrega. Esses valores subjetivados pelos leitores, entram em choque com a sociedade em que vivem, produzindo um sentimento bastante interessante, como se percebe em Graciela Montaldo:

O passado rural é uma forma de aglutinar um tempo fraturado, cortado pela irrupção de outro tempo, o tempo acelerado da modernização, de forma que todas as ficções como os ensaios, tentam encontrar algum sentido naquele passado. (MONTALDO, 1993, s.p)

Por essas razões, é que as classes populares se identificam com esses tipos gauchescos encarnados pela literatura, encontram nesses um sentido que lhes dá força para resistir às novas subordinações do mundo moderno. E ao mesmo tempo esses cenários rurais idealizados transmitem-lhes uma espécie de conforto o qual não possuem mais em suas vidas citadinas.

Essa valorização destinada aos costumes gauchescos ocorreu de maneira tão pujante entre as massas urbanas, que as pessoas começaram a conceber tais valores de um modo quase que inerente a suas vidas, fazendo com que isso refletisse na forma de se vestirem, falarem, comerem e até mesmo de se comportarem e agirem, como nos elucida Prieto:

Como forma de civilización, la literatura popular de signo criollista proveyó símbolos de identificación y afectó considerablemente las costumbres del segmento más extendido de la estructura social. Las decenas de “centros

3 Pulperia era como se chamavam as pequenas casas de comércio que se encontravam na zona rural do prata, nelas era possível comprar quase tudo do que se precisava para a subsistência diária, como também a pulperiaera local de bebedeira jogos de azar, por isso era bastante comum as confusões e atos violentos. No Rio Grande do Sul, as pulperias são conhecidas como “bolichos”.

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criollos”, mencionados anteriormente, no fueron sino la expresión perdurable de un fenômeno de sociabilidad cimentado en el homenaje ritual de mitos de procedencia literária. (PRIETO, 2006, p.145)

Assim sendo, temos a criação destes “centros criollos”, que diretamente ligados ao incipiente movimento “criollista”, eram espaços onde se reconstituía um cenário gauchesco em todos os âmbitos, desde o nome dado ao centro até as formas de se vestir e de falar de seus freqüentadores, funcionava como uma espécie de microcosmos rural dentro do mundo cosmopolita. Nota-se então, entre as massas urbanas desse momento, uma apropriação de aspectos culturais do universo “pampeano”, arquitetados de maneira artificial pela literatura, afetando intimamente as formas de relações sociais. Os valores ensejados pela literatura ultrapassam as fronteiras dos “centros criollos” influenciando de maneira indelével no comportamento das pessoas, gerando um fenômeno que se convencionou chamar de “moreirismo”, como podemos observar neste trecho:

En la mayoría de los textos provistos por esta literatura, aquella liberalidad frívola e irresponsable aparecía reforzada por la plasmación de un personaje que resumía en si los extremos de cualquier actitud permisiva: el gaucho alzado, el matrero, el malevo agauchado, cada una o todas las variantes posibles del modelo impuesto por el Juan Moreira de Gutiérrez. Las transgresiones sociales encarnadas en el moreirismo eran el correlato de las transgresiones operadas en el plano de la lengua. Las historias de unos poços marginados por la ley y las buenas costumbres abrían un universo en el que se cobijaban densos grupos humanos para legitimar su propia desafección a las normas establecidas. (PRIETO, 2006, p.173)

Esse “moreirismo” se edifica a partir de que os valores professados por novelas como a de “Juan Moreira”, são apropriados por alguns setores da população para legitimar de modo subjetivo suas práticas transgressoras. Portanto, o “criollismo” foi para as massas urbanas da Argentina, muito mais do que manifestações culturais, tendo em vista a situação de deslocamento em que essa se encontrava perante a nova ordem social que emergia. O “criollismo” se tornou algo inerente à vida destas pessoas sendo processado por elas como uma verdadeira forma de civilização.

Conquanto, para as classes dominantes, o “criollismo” também teve sua funcionalidade. A relação de identidade entre o incipiente movimento e a elite local, funcionou como instrumento de sustentação ideológica e prática. Ideológica, porque era um objeto cultural que servia como forma de afirmação para a burguesia argentina mediante a presença estrangeira, com a qual se sentiam constantemente ameaçados. De caráter prático, porque muito se lucrou com as temáticas “criollas”, já que em torno delas se desenvolveu um verdadeiro circuito comercial, estimulando a fabricação e a venda de diversos artigos entendidos como gauchescos, como se observa:

Existió, sin duda, una manipulación comercial del fenómeno criollista, tal como se indicó al describir las características del aparato de edición y difusión de

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su literatura. El circo, el teatro, la fabricación y venta de disfarces, guitarras y aperos gauchos, se ubicaban en la dinámica de un circuito comercial y, con sus propios estímulos de competencia, debieron contribuir a su florecimiento. (PRIETO, 2006, p.162)

Seguindo esta lógica torna-se possível entender que “Juan Moreira” funcionou como um importante catalisador na construção desta identidade nacional. Encarado de várias formas pelas diversas parcelas da população, o “criollismo” difundido pela literatura, conseguiu a partir da colisão de determinados fatores, congregar uma identidade nacional para toda a Argentina.

Conclusão:

Pensando a Argentina em fins do século XIX, deparara-se com um momento bastante peculiar produzido pelo choque de diversas variáveis. Pode-se dizer que a necessidade de construção de uma identidade nacional neste momento, vai permear os conflitos gerados pelo embate entre os principais elementos que compõem o contexto, resultando de uma forma bastante curiosa na edificação dessa identidade para os argentinos.

Analisando o contexto, tem-se uma nova ordem social estabelecida no país, desencadeada por uma expansão industrial e urbana, com um crescente fluxo imigratório e êxodo rural. Considerando o movimento “criollista” desenvolvido por uma parcela da população nativa, baseado nos valores ligados a terra, e criando um imaginário a partir do cenário gauchesco, este movimento busca valorizar aquilo que seria genuinamente argentino, sendo uma espécie de afirmação construída em oposição à presença estrangeira. É neste sentido que se faz necessária a construção de uma identidade que congregue todos os habitantes do país, desde os recém chegados estrangeiros como também todos os outros componentes da população argentina.

O período também se caracterizou por projetos políticos educacionais, que em pouco tempo resultaram em uma alta taxa de alfabetização, produzindo assim uma grande quantidade de leitores, fato raro na América do Sul nestes tempos. Além de leitores a Argentina do final do século XIX também produziu muitas leituras, devido ao desenvolvimento de uma vigorosa imprensa. E foi através desta vil imprensa que surgiu um tipo de literatura, que seria um dos principais catalisadores na construção da identidade nacional.

Esta literatura denominada “criolla” apropriou-se das temáticas gauchescas, e artificiosamente ensejou símbolos e idealizações, e por seu caráter de folhetim, ou seja, na maioria das vezes de tiragem diária, criava um tipo de vínculo entre o leitor e o enredo, fazendo com que muitas vezes o leitor concebesse os personagens como heróis. Um desses heróis literários foi o gaúcho “Juan Moreira”, personagem cuja assimilação

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foi praticamente incorporada por parte de alguns argentinos.O “criollismo” altamente disseminado pela literatura exerceu várias funções entre

os setores sociais da população argentina. Para as classes altas e dirigentes serviu como objeto de cultura e também de afirmação perante a presença estrangeira. Para os estrangeiros a assimilação desses elementos culturais foi uma maneira legal de se inserirem como argentinos na sociedade, já para os setores populares foi entendido como uma forma de civilização, e o preenchimento de um vazio subjetivo causado pela situação de deslocamento em que se encontravam na irrupção de uma Argentina cosmopolita, industrial e moderna.

Conclui-se que a partir da necessidade presente e a imbricação das variáveis do contexto, somadas à produção desta literatura “criolla” constituíram-se ícones gauchescos como símbolo nacional, e desse modo congregando uma identidade nacional para todos os argentinos.

Fontes:

GUTIÈRREZ, Eduardo. Juan Moreira. Barcelona: Editorial Sol 90, 2001.

Referências Bibliográficas:

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MEYER, Augusto. Gaúcho – História de uma Palavra. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1957.

NICHOLS, Madaline Wallis. O Gaúcho. Rio de Janeiro: Livraria Editora Zélio Valverde S.A., 1946.

PRIETO, Adolfo. El discurso criollista en la formación de la Argentina moderna. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2006.

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“O PMDB É UM BALAIO DE CARANGUEJOS”: IDEIAS-FORÇA DO PDT CONTRA O PMDB NA CAMPANHA ELEITORAL DE 1982 NO

RIO GRANDE DO SUL1

rHUaN TarGiNo zaleski TriNdade2

RESUMO: A campanha eleitoral de 1982 no Rio Grande do Sul foi marcada pela rivalidade entre PMDB e PDT, dois dos partidos que naquele momento se propunham a ser oposição ao partido que representava a continuidade do Regime Civil-Militar naquela eleição, o PDS. Tendo como base as contribuições de Pierre Bourdieu (2001), o presente trabalho tem como recorte temático e temporal o processo eleitoral de 1982 no Rio Grande do Sul. Naquele momento se extinguira o bipartidarismo anterior e se reinaugurara no Brasil o pluripartidarismo, o que acabou levando a que a oposição ao regime antes abrigada no MDB se dividisse em várias outras siglas partidárias. As críticas e acusações são mútuas, mas o PDT é aquele que mais investe na disputa que vai ao encontro da estratégia do Regime Civil-Militar de “dividir para dominar”, segundo a qual era interessante que as oposições disputassem espaços entre si a fim de fortalecer a posição dos apoiadores do regime. Portanto, a pesquisa centra-se especificamente na identificação e na análise das ideias-força que foram produzidas pelo PDT na campanha contra o PMDB, tendo como fontes os periódicos Correio do Povo e Zero Hora.

Palavras-Chave: Transição política; eleição 1982; partido PDT.

Key-Words: Political transition; election 1982; Party PDT.

INTRODUÇÃO

As eleições de 1982 são um marco no processo de transição política da ditadura para democracia no Brasil, principalmente em decorrência de seus resultados. O fato é que depois de 1966, volta-se a eleger por via direta os governadores estaduais, assim como os eleitores escolheriam candidatos para todos os níveis, exceto presidente. Neste momento, também, se definiria o Colégio Eleitoral que elegeria o próximo chefe máximo do executivo.

Esta eleição faz parte do contexto da transição política no Brasil, que se caracterizaria pela lentidão e controle do processo. Partimos do pressuposto de que as transições são um momento que atinge uma conjuntura mundial, segundo Huntington

1 Este texto é fruto de um trabalho mais amplo intitulado: A divisão das oposições e as oposições divididas: a rivalidade PDT x PMDB na campanha eleitoral de 1982 no Rio Grande do Sul, apresentado como trabalho de conclusão de curso em Licenciatura em História na UFRGS.

2 Graduado em Licenciatura em História pela UFRGS. Graduando em Bacharelado em História pela UFRGS. E-mail: [email protected].

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(1994), a partir da década de 1970, com a chamada “terceira onda”3, que instaura um período de democratizações desde a Europa, Ásia até a América Latina. Neste processo, Marques (2010) e Arturi (2001) concordam com o fato de que são importantes os atores, os fatores políticos e institucionais, além das “macro-variáveis”: estrutura econômica, social e política pré-existentes (ARTURI, 2001: 15-16), bem como a influência externa (SANTOS, 2010: 15-18) e traços da cultura do país.

No caso do Brasil, a transição política seria pactuada, como aponta Moclaire (2001), ou seja, fruto de um acordo entre as elites feita a partir da transação, que segundo Marques

se dá quando as elites que estão no poder, diante do aumento dos custos para a manutenção do regime autoritário, dão o ponto de partida ao processo de transição. Ao dar início à transição, tais forças objetivam poder aproveitar-se do poder que ainda têm em mãos para negociar uma boa posição política após o fim do regime autoritário. Assim, conduzem o processo de democratização, introduzindo medidas liberalizantes e fixando limites na atuação dos autores evolvidos. (MARQUES, 2010: 64)

Partindo da identificação dos matizes acerca da transição pela transação, podemos concordar com Marenco (2007) e sua afirmação sobre o caso brasileiro

Seus contornos foram definidos por uma agenda de distensão política introduzida por agentes do regime autoritário, em contexto no qual este dispunha de base política e indicadores favoráveis ao desempenho econômico, disposição da oposição liberal e democrática em aceitar os termos estabelecidos pelo establishment, marginalização dos extremistas e políticos e limitada mobilização social, resultando em uma convergência entre os brandos do regime e os moderados da oposição, impondo um ritmo lento e altamente negociado para o processo de afastamento dos militares da arena governamental. (MARENCO, 2007: 74)

A partir destes pressupostos, cabe ressaltar que, para fins analíticos deste trabalho, é importante ter em mente o fato de que o Brasil passou por um longo processo de transição de um regime autoritário para a “democracia” e que o nosso estudo se insere dentro da fase inicial deste processo, a “distensão” e a liberalização4 da ditadura militar, quando o Estado toma as rédeas do processo e utiliza-se de uma via eleitoral (ARTURI, 2001 & LAMOUNIER, 1988) , com revalorização do sistema eleitoral pré-existente, como método para a “abertura” do regime, de forma que controla as regras do jogo político e limita a política enquanto representação política, ao mesmo tempo, que abre espaço para oposição, “de elite”, os partidos e políticos.

Um exemplo, que denota o controle que exercia o regime na questão eleitoral,

3 Huntington destaca três ondas de democratizações, sendo a terceira, iniciada com o fim da ditadura portuguesa, em 1974, de modo que a partir de então, alastra-se para América Latina, atingindo inclusive o Brasil.

4 Para Marques, de acordo com O´Donnel e Schmitter, a liberalização é o “processo de tornar efetivos determinados direitos que projetam tanto os indivíduos como os grupos sociais de atos arbitrários ou ilegais cometidos pelo Estado ou por uma terceira parte” Cf. MARQUES, op. cit., p. 62 apud O´DONNELL, G. & SCHMITTER, P. 1998.)

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ocorre na eleição de 1982, pois esta, devido a sua importância, levou o governo Figueiredo a se utilizar da estratégia da “divisão das oposições”, acabando com o bipartidarismo em 1979, o qual dera vantagens eleitorais para a oposição, o MDB (Movimento Democrático Brasileiro) em relação à situação, a ARENA (Aliança Renovadora Nacional), nas eleições de 1974 e 1978 com o voto plebiscitário5. A citada ARENA, com o pluripartidarismo, manteve-se quase inteiramente coesa e gerou o PDS (Partido Democrático Social), já o MDB se fragmentou, surgindo o PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), o PDT (Partido Democrático Trabalhista), o PT (Partido dos Trabalhadores), além do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) e PP (Partido Popular), os últimos compostos também de alguns arenistas dissidentes. Além da divisão das oposições, que tinha como intuito fragmentar os votos oposicionistas, o governo gerou uma série de constrangimentos eleitorais conhecidos por “Pacote de Novembro”, de 1981.

Entre as medidas, destacamos: a proibição das coligações; a obrigatoriedade dos partidos de lançar candidatos a todos os níveis; a vinculação total dos votos, com pena de anulação em caso de desobedecimento da regra; e proibição de renúncia do candidato a não ser que o partido desistisse das eleições. Esses elementos, dentre eles a Lei Falcão6, foram chamados pela oposição de “casuísmos”.

A resposta da oposição para tal artimanha governamental foi a incorporação do PP pelo PMDB, restabelecendo de certa forma, em nível nacional, o bipartidarismo, já que os dois maiores partidos de oposição se juntavam garantindo várias lideranças conhecidas para a agremiação essa política e grande potencial eleitoral, que combateriam o PDS.

No Rio Grande do Sul, a situação é parecida com a do resto do Brasil, com crise econômica e grandes vitórias emedebistas nas eleições anteriores, principalmente em Porto Alegre. O que tornava o Rio Grande do Sul um “reduto oposicionista”. Sendo que, neste estado, concorrem o PMDB, maior partido de oposição que tenta ocupar o lugar do MDB, com o PP incorporado, o PDS, o PDT e o PT, ficando de fora o PTB, que apoiara o primeiro citado.

A “divisão das oposições”, no entanto, acaba por colocar em disputa a força de dois partidos em especial, o PMDB, e o PDT, ambos oposicionistas e com grandes lideranças, diferindo do resto do país onde a disputa ficou somente entre PDS e PMDB. A partir disto, os dois se posicionaram na campanha eleitoral e formularam discursos a fim de se diferenciarem um do outro, sendo o PDT aquele que mais vai investir nessa contenda.

Para entender o funcionamento da campanha e a formulação dos discursos políticos partimos da teoria do campo político de Bourdieu (2001), que segundo a definição do

5 Voto do sim ou não ao regime, em que se levava em conta os resultados das administrações da ARENA, que passava por uma crise, já que o Brasil tinha problemas na área econômica depois do “milagre brasileiro” do final dos anos 60 e início dos anos 70.

6 Instrumento governamental, que impedia a utilização de rádio e TV pelos partidos e candidatos, exceto por uma “enfadonha” sucessão de currículos.

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autor é “[...] entendido ao mesmo tempo como campo de forças e como campo de lutas que têm em vista transformar a relação de forças que confere a este campo a sua estrutura em dado momento” (BOURDIEU, 2001: 163-164), assim em sua definição,

O campo político é o lugar em que se geram, na concorrência entre os agentes que nele se acham envolvidos, produtos políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos, acontecimentos, entre os quais os cidadãos comuns, reduzidos ao estatuto de “consumidores”, devem escolher, com probabilidades de mal-entendido tanto maiores quanto mais afastados estão do lugar de produção (BOURDIEU, 2001: 164).

Para que possamos compreender as tomadas de posição, programas, intervenções, discurso eleitoral, é importante conhecer o universo das tomadas de posição propostas em concorrência no campo político e não só conhecer as pressões dos laicos (a “base”) de quem os responsáveis por tais tomadas de posição são os mandatários (BOURDIEU, 2001: 171-172). Deste modo, tendo em vista essas definições, buscamos apresentar a campanha eleitoral como um espaço de lutas, que opõe os profissionais no campo político e é um embate entre “ideias” e “ideais”,

Ela assume pois a forma de uma luta pelo poder propriamente simbólico de fazer ver e fazer crer, de predizer e de prescrever, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, que é ao mesmo tempo uma luta pelo poder sobre os “poderes públicos” (as administrações de estado). Nas democracias parlamentares, a luta para conquistar a adesão dos cidadãos (o seu voto, as suas quotizações, etc.) é também uma luta para manter ou para subverter a distribuição de poder sobre os poderes públicos (ou, se se prefere, pelo monopólio do uso legítimo dos recursos políticos objectivados, direito, exército, polícia, finanças públicas, etc.). Os agentes por excelência desta luta são os partidos, organizações de combate especialmente ordenadas em vista a conduzirem esta forma subliminada de guerra civil, mobilizando de maneira duradoura, por previsões prescritíveis, o maior número possível de agentes dotados da mesma visão de mundo social e do seu porvir (BOURDIEU, 2001: 174).

Sobre este aspecto, evidenciamos, ainda com Bourdieu, que “A produção de ideias acerca do mundo social acha-se sempre subordinada, de fato, à lógica da conquista do poder, que é a da mobilização do maior número” (BOURDIEU, 2001: 175). Essas ideias políticas são determinadas tanto por pressões internas do campo, quanto pela necessidade de legitimação externa daquele, sendo elas legitimadoras da luta no campo político.

Consideramos que “Basta as ideias serem professadas por responsáveis políticos, para se tornarem ideias-força capazes de se imporem à crença ou mesmo em palavras de ordem capazes de mobilizar ou desmobilizar” (BOURDIEU, 2001: 187), de modo que essas ideias-força, segundo Bourdieu, “têm o poder de fazer com que o porvir que elas anunciam se torne verdadeiro” e essa verdade da promessa ou do prognóstico dependeria da autoridade e da capacidade daquele que as pronuncia de fazer crer na sua veracidade e capacidade (BOURDIEU, 2001: 186).

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É, especialmente, na campanha eleitoral que os profissionais proporcionam ao “profano”7 a oferta de produtos políticos e ideias, as quais estes devem escolher, porquanto, em 1982, verificamos que o PDT fornece ideias políticas e estas se relacionam e contrastam com o PMDB, na medida em que opõem os profissionais e os partidos na luta pelo voto, tendo em vista atacar pontos centrais que fazem jus ao momento histórico em questão.

Nesse sentido, pensamos nos periódicos de grande circulação como elementos privilegiados para a observação da disputa entre agentes políticos, já que são responsáveis por direcionar questões do campo político para fora dele, ou seja, fornecer ao profano os produtos políticos produzidos na luta interna do campo, além da presença da supracitada Lei Falcão, naquele período. Destarte, são os jornais Correio do Povo e Zero Hora8, as fontes primárias neste trabalho, desde o dia 1 de agosto de 1982, quando o último candidato ao governo do estado é lançado e que, então, devidamente começa a campanha eleitoral9, até 22 de novembro de 1982, quando a contagem de votos anuncia a vitória de Jair Soares, candidato do PDS, partido da situação e de ex-membros da ARENA, que conjugava os aliados civis do regime.

Diante desse contexto, o Rio Grande do Sul, como verificamos, tinha dois grandes partidos em disputa, o PDS pró-regime, e o PMDB, oposição; mas também destacava-se uma “terceira força”, o oposicionista PDT, que reclamava a origem trabalhista de seus membros, trabalhismo este reconhecidamente uma força no Estado. Assim, os dois partidos de oposição mais destacados, além de terem o inimigo em comum, o PDS, vão disputar o voto entre si, sendo que, nesse sentido, destaca-se o PDT que procura diferenciar-se através da produção de expedientes que ao mesmo tempo são contrastantes com relação ao outro e constroem a imagem que o partido quer transmitir de si mesmo. Cabe assim, identificarmos as ideias-força proferidas pelo partido.

1.PMDB igual ao PDS

O principal ponto que os “porta-vozes” do PDT exploraram, durante a campanha, foi a de uma possível ligação entre PDS e PMDB. Dois fatos em particular contribuem para a formulação desta concepção: a incorporação do PP e a presença de antigos membros da UDN, PL e ARENA, que se ligaram ao partido de outra maneira.

O grande trunfo do PDT era explorar a presença de ex-arenistas no PMDB e

7 Bourdieu faz a separação no campo político entre “profissionais” e “profanos”, sendo os últimos os consumidores de produtos políticos produzidos pelos primeiros na disputa interna.

8 Os periódicos pesquisados estão no acervo de imprensa do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa

9 Consideramos o dia 1º de agosto como o momento de início da campanha, já que em 1982 volta a eleição para Governador e então, este seria o cargo majoritário e mais importante no qual os partidos mais investiram, portanto, neste dia é lançado o último candidato a governador de estado, Jair Soares do PDS.

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descaracterizá-lo como antagonista do governo, já que o grande inimigo daquela eleição era o próprio regime, assim como ocorrera em 1974 e 1978. No entanto, agora, a oposição dividida procurava maneiras de se diferenciar e se colocar no lugar da “verdadeira oposição”.

Podemos identificar a formulação desta noção com Alceu Collares, candidato ao governo do estado pelo PDT, ao afirmar:

O PMDB é o primo-irmão do PDS [...]. Conservadores Liberais que se reuniram numa frente ampla com interesses eleitoreiros para formar o PMDB se assemelham muito aos integrantes do PDS. Para mim eles são parentes. Pertencem à mesma árvore genealógica. São farinha ruim do mesmo saco, vinho estragado da mesma pipa. Visam seus interesses particulares.10

ligando os dois partidos ao regime, automaticamente, os peemedebistas não seriam capazes de trazer mudanças como expõe novamente o candidato ao governo do estado pelo PDT,

Se por algum azar o PMDB ou o PDS vierem a ganhar estas eleições, tudo continua como está, indo de mal a pior, porque a PMDB de hoje é tão conservador e a cúpula deste conglomerado está tão comprometida com a minoria rica que controla este País, que seu modelo alternativo não pode alterar em nada a estrutura do atual modelo econômico dependente e comprometido.11

Cabe ressaltar que a presença destes arenistas suscitou, também, a possibilidade de criação de um novo partido, como é o caso da afirmação do candidato do PDT para a Assembleia Legislativa, Aldo Pinto12, de que “70% dos integrantes do PMDB são originários do Governo, ou seja, da extinta Arena e que com a mobilização pela criação do Partido Liberal já começam a pensar numa nova composição partidária.”13.

O que importa é a formulação de um discurso que tenta ao mesmo tempo, colocar o PMDB numa posição mais conservadora e pró-regime, o que tornaria o PDT o mais antagônico a este e a opção de oposição única ou mais radical.

Outro ponto importante, é que, além da presença dos ex-arenistas provindos do PP, outros argumentos são utilizados para vincular o PMDB ao PDS, entre eles, os candidatos originários da UDN e do PL, que são considerados pelos pedetistas como inimigos do trabalhismo, a exemplo Paulo Brossard, ex-PL, que concorre ao senado pelo PMDB, sendo alvo do PDT, também pelo fato de ter, inicialmente, apoiado o golpe de

10 Correio do Povo 5/10/1982, p. 08.

11 Zero Hora 27/09/1982, p. 13.

12 Não sabemos medir a quantidade de ex-arenistas no PMDB, nem se os dados oferecidos na citação acima estão corretos, além disso, embora não tenha sido gerado um Partido Liberal depois das eleições de 1982, também não temos informações sobre conversações entre a ala mais “conservadora” do PMDB para a formação deste ou de algum outro partido.

13 Zero Hora 12/09/1982, p. 16.

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1964. Em suma, igualar o PMDB ao PDS será a grande arma do PDT para confrontar

os peemedebistas e o motor para a construção das outras ideias-força identificadas.

2. A frente: o PMDB

O PDT, ao longo da campanha, condenou o caráter frentista do PMDB, típico de seu predecessor, o MDB, que tinha como tática o monopólio da Oposição. A incorporação do PP, o apoio dos Partidos Comunistas, além da presença de antigos membros do ex-PTB, PSD (Partido Social Democrático), UDN (União Democrática Nacional), PL (Partido Libertador), todos pré-golpe, além de outras siglas menores, com ideologias que variavam da “esquerda” para “direita”14, são os motivos pelos quais os pedetistas vão tentar atingir o eleitorado, buscando tirar a legitimidade de oposição do PMDB e sua capacidade de expor-se unido.

O MDB se caracterizava por congregar, ao longo de sua existência, um grande número de políticos de diferentes origens partidárias, ideológicas e sociais, visto que era o partido que integrava os opositores do regime para disputa do jogo político eleitoral. Desta maneira, mantiveram-se dentro do PMDB, virtual sucessor do MDB, diversos políticos de diferentes correntes de pensamento, como os provenientes do antigo PTB, Pedro Simon, Sigfried Heuser e Wilson Vargas, que se consideravam trabalhistas, membros da UDN, como Sinval Guazzelli e do PL, como Paulo Brossard, além de comunistas como Jussara Cony. São essas diferenças entre os membros do PMDB que serão atacadas pelo PDT, não apenas as diferenças, como a própria presença destes dentro do mesmo partido.

O PMDB é nomeado de “frente inorgânica”, “frente ampla”, “balaio de gatos”, “saco de gatos”, “balaio de caranguejos”, “zoológico”, “amontoado eleitoreiro”, “conglomerado eleitoral”, “torre de Babel”, entre outras denominações bastante críticas por parte dos porta-vozes pedetistas. Como aponta Alceu Collares, quando critica Pedro Simon, afirmando:

[...] o PMDB é um balaio de bixos da pior espécie, que não tem como sobreviver. Esses bixos todos, como é que vão conviver no mesmo balaio? Como esse homem que nos traiu, esse equilibrista de tendências políticas, como poderia governar? Com o apoio dos comunistas – e não faço crítica, apenas constato que tem apoio dos comunistas, como tem dos fascistas, homens da direita e da esquerda. [sic] 15

14 Com direita e esquerda não pretendemos esmiuçar a questão da existência ou não, realmente, de ideologias que se encaixassem nesta nomenclatura. Neste sentido, procuramos apenas empregar termos comumente utilizados para diferenciar os partidos políticos e as diferentes correntes ideológicas.

15 Zero Hora 15/08/1982, p. 13.

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Getúlio Dias afirma, na campanha, diante de um assunto sobre a decisão de manter os trabalhistas no MDB ou criar um novo partido, que “a frente eleitoral oposicionista no partido único, praticamente, esgotara sua função com a liberalização do regime”16, assim, procura deslegitimar a existência de um partido com as características descritas acima para o PMDB.

Essas afirmações denotam que seria ultrapassado o modelo frentista do PMDB, ou seja, já não teria utilidade eleitoral, além de ser nocivo para as mudanças esperadas.

Nesse contexto, a imagem que os pedetistas, automaticamente, tentam imputar a si próprios com esta crítica é de que valem, na disputa, os “verdadeiros partidos”, com “ideologias definas”. Um exemplo propõe Américo Copetti, candidato do PDT à Assembleia legislativa, para ele, ao contrário da frente “Um partido, [...], é sempre faccioso, é sempre definido. Ele apresenta sempre a visão de um ângulo. Pode ser rejeitado por esta visão, mas ele cria o contraditório. A sua influência é mais restrita, mas ele é mais eficiente, porque mobiliza”17.

Nesse contexto, podemos identificar que os pedetistas atacavam a configuração do PMDB enquanto partido político, como reforça, por exemplo, o então líder da bancada do PDT na Assembleia Legislativa, Romildo Bolzan: “O PMDB, hoje, não se constitui em partido político, mas sim uma verdadeira torre de Babel.”.

Outro ponto que verificamos é a possibilidade de fragmentação do Partido do Movimento Democrático Brasileiro que os pedetistas colocam em pauta, como exemplifica Romildo Bolzan ao asseverar que o PDT “vem para permanecer: não é uma frente transitória que, como o PMDB, desaparecerá com as próximas eleições”18.

Em suma, identificamos de que maneira o PDT se coloca como “partido” enquanto trata o PMDB como uma “frente”, já ultrapassada e pouco coesa. Nesse sentido, dentro desta noção de atacar a multiplicidade de correntes dentro do PMDB, verificamos dois outros expedientes, um em relação à presença da direita, e outro da esquerda.

2.1. A incorporação do PP

Os pedetistas investiram contra a incorporação dos pepistas, membros do Partido Popular criado em 197919, já que no Rio Grande do Sul, esta incorporação resultou na

16 Zero Hora 17/09/1982, p. 09.

17 Correio do Povo 29/09/1982, p. 08.

18 Zero Hora 10/8/1982, p. 23

19 Formado basicamente por setores moderados do MDB e liberais da ARENA, já tinha sido planejado tanto pelos agentes do governo, quanto pelos seus organizadores, para ser um partido de oposição moderada ao regime Civil-Militar, que, por alguns momentos, inclusive, votasse a favor do governo, no entanto, devido ao “pacote de novembro” e os “casuísmos eleitorais”, preferiram se ligar ao PMDB para terem melhores chances nas eleições tornando o último o grande bloco oposicionista das eleições de 1982 em nível nacional.

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integração de políticos ligados à antiga ARENA ao PMDB, que, como sucessor do MDB, colocava lado a lado antigos rivais. Nesse contexto, as críticas pedetistas já vinculadas às divergências ideológicas das hostes peemedebistas, vão ao encontro da presença de antigos apoiadores do governo na oposição e pondo em dúvida justamente o caráter desta última.

Alceu Collares, sobre uma reunião dos candidatos a governadores de estado do PMDB, afirmou que “na maioria são ex-arenistas, ex-governadores nomeados, que entraram no PMDB através do PP. O PMDB não é oposição. Foi o PP que incorporou o PMDB.”20 Comenta ainda, em outro momento, que “o meu MDB não tinha governador nomeado, não tinha governadores torturadores, não tinha o Sr. Sinval Guazzelli.”21O candidato ao governo do estado pelo PDT critica a influência de políticos arenistas, como o ex-governador nomeado pela ARENA, Sinval Guazzelli, então candidato a deputado federal pelo PMDB, além de atacar o fato de o PMDB se dizer oposição e sucessor do MDB.

Romildo Bolzan, candidato a deputado federal do PDT, censura a outros ex-arenistas quando assinala que “o PMDB é um verdadeiro cavalo de Tróia. Tudo baseado em um plano arquitetado pelo Governo. Infiltrando integrantes seus nesta frente eleitoreira e interesseira chamada PMDB”, questionando “o que é neste momento Oposição? Sinval Guazzelli, o ex-ministro de Médici, Cirne Lima, os 12 candidatos do PMDB em 12 estados, que serviram ao governo e ao sistema? Os senadores biônicos, governadores, torturadores, ex-ministros da revolução?”22, tendo, segundo ele, o PMDB se descaracterizado como partido de oposição com a incorporação do PP.

Fica patente a tentativa de desvincular o PMDB de seu caráter oposicionista, aludindo a alguma filiação com o PDS, até mesmo para o PDT23 ocupar os espaços eleitorais da oposição, principalmente no Rio Grande do Sul, onde tem maior força e busca se afirmar como mais antagônico ao regime.

2.2. O apoio dos PC´s

O apoio dado pelos partidos comunistas foi mal visto pelos pedetistas e colaborou para a crítica ao caráter frentista do PMDB e para atacar a forma como controlaria todas as “ideologias” agrupadas no partido.

Como é patente em nossas observações nos periódicos, o apoio dos comunistas 20 Zero Hora 3/09/1982, p. 09.

21 Zero Hora 4/09/1982, p. 15.

22 Zero Hora 6/10/1982, p. 10

23 Não temos informações se antigos membros da ARENA tenham se vinculado ao PDT e concorrido a cargos por este, mesmo assim nos preocupamos aqui em identificar a forma como os pedetistas criticam essa situação do PMDB, bem como automaticamente se colocam como contrastantes a este fato e, portanto, “verdadeira oposição”.

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em nível nacional, ao PMDB, é condenado pelo PDT, por exemplo, no dia 13 de agosto, após a divulgação de um manifesto de apoio do PCB (Partido Comunista Brasileiro) ao PMDB, em que Carlos Augusto de Souza comentou

O apoio do Partido Comunista Brasileiros ao PMDB evidencia que o PMDB não se constitui em um partido político, mas em uma frente eleitoralista, uma incômoda casa de cômodos, na qual se albergam, circunstancial e indiscriminadamente, senadores biônicos, ex-governadores nomeados, anticomunistas, juntamente com facções rivais da esquerda e até o próprio PCB, que é um partido político24

Como Figueiredo (2009) deixa claro, os PC´s tinham uma presença já dentro do MDB, uma vez que não eram legalizados. No PMDB continuaram com importância pelo seu peso elaborativo e programático, embora este não fosse um partido que evidenciasse disputa entre as classes, mas que tinha seu foco na derrubada da ditadura. Entre os principais movimentos comunistas presentes no PMDB destacamos o MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), o PRC (Partido Revolucionário Comunista), mas principalmente o PCB e o PCdoB (Partido Comunista do Brasil)25.

Teriam sido os pecebistas que trataram pela primeira vez do chamado “voto útil”26, com objetivo de não fazer o jogo do governo e dividir as oposições, fato que unificou estes e também os membros do PCdoB no PMDB. Destarte, ainda que alguns membros de movimentos comunistas tenham migrado para o PDT e PT, as discussões frente os novos movimentos de esquerda, levaram a essa disposição dos comunistas no Partido do Movimento Democrático Brasileiro. A noção, muitas vezes, era de chegar primeiro à democracia para então atingir o socialismo.

Diante destes aspectos, a presença de candidatos comunistas é em menor medida criticada, sendo o foco maior o apoio destes, como exemplifica Carlos Augusto Souza, secretário geral do PDT, afirmando que “Não há, pois, mais do que taticismo ou reboquismo eleitoralista na postura do PCB.”. Ataques a essa situação e até a possível formulação do voto útil são observáveis, mas candidatos ditos “comunistas” não são criticados27 como os ex-arenistas no caso anterior.

24 Zero Hora 13/08/1982, p. 08.

25 O PCB já convivia no MDB com certa “fluidez” e maior integração no jogo eleitoral, com apoio a candidatos e recrutamento de agentes. O PCdoB, de acordo com César Figueiredo (2009), era mais “fechado” e desprestigiado no PMDB devido à herança da luta armada e às discussões que opunham a revolução à participação no jogo eleitoral. Entretanto, acima de tudo, os comunistas usaram o partido legalizado do PMDB para atuar nas eleições e apoiar candidatos ligados a suas bases.

26 Buscando uma “unidade oposicionista”, o discurso do PMDB era pelo voto no maior partido de oposição, a fim de derrotar o PDS. Essa tática teria como principal ponto a ser atingido as bases do PDT.

27 Ainda que os pedetistas critiquem o apoio de comunistas, no Rio de Janeiro, o ex-membro do PCB Luís Carlos Prestes, que fora beneficiado juntamente com Brizola pela Anistia, apoiava o candidato do PDT, embora no resto do Brasil manifestasse apoio pelo PMDB. No Correio do Povo de 13 de agosto, Brizola defende-se afirmando que no RJ, o PC, o MR-8, o PC do B, entre outros apoiariam o “chaguista” Miro Teixeira do PMDB, enquanto Prestes não se definira ainda. No entanto, posteriormente na campanha Prestes delega apoio a Brizola e faz comícios em ajuda a este.

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3. O voto consciente

A crítica à tática do “voto útil”, utilizada pelos peemedebistas, e a criação da tese do “voto consciente”, a fim de combatê-lo, foram uma das vicissitudes da campanha por parte do PDT. Essa estratégia pedetista não tinha a mesma importância daquela do PMDB, não obstante foi uma das prerrogativas da campanha, que basicamente funcionava como uma crítica à tentativa de monopólio da oposição e polarização da eleição pelo PMDB.

Mila Cauduro, candidata a suplente ao Senado na chapa de Getúlio Dias, faz um apelo, neste sentido, exaltando o caráter do seu partido, visto que para ela

O expediente eleitoreiro denominado voto útil, acoberta a adesão dos cúmplices da ditadura, ou melhor, de várias ditaduras. Defenderemos o voto consciente, o voto no-partido que é sinônimo das mais importantes conquistas sociais do povo brasileiro, que é tradição, é força da raça, já é mistura de terra e sangue, o partido liderado por Leonel Brizola. [sic]28

Para Romildo Bolzan, “há de se diferenciar se este voto útil e consciente é para o sistema ou para a Oposição. O PDT entende que o voto útil e consciente só pode ser para Oposição. Digo ainda que certos dirigentes do PMDB são verdadeiros inocentes úteis ao sistema”29. O candidato segue, a partir da crítica do voto útil, a tônica dos argumentos pedetistas acerca do real caráter oposicionista do PMDB.

Já quanto ao fato de tentar voltar ao voto plebiscitário do bipartidarismo com o monopólio da oposição, Alceu Collares declara:

essa confusão que alcança as mentes de algumas pessoas, embaidas na cantinela de voto útil, é conseqüência do ambiente de estufa e de obscurantismo político cultural de que recém estamos querendo sair. Como querem esses arautos do tal voto útil que se construa no Brasil uma democracia, se não querem permitir ao povo a existência do pluripartidarismo, com propostas diversificadas entre as quais o eleitor pode votar? Querem amarrar o [e]leitor numa única alternativa, que hoje não é mais Oposição [...] [sic]30

De modo que, a partir dessa noção, tenta desvincular o PMDB da memória do MDB, porquanto este já não mais seria oposição.

O fato a ser destacado deste expediente do PDT é que, embora não possamos medir o alcance do voto consciente, este foi basicamente criado em função do slogan do “voto útil” peemedebista, que se vinculava ao momento histórico da eleição.

28 Zero Hora 03/09/1982, p. 09.

29 Zero Hora 06/10/1982, p. 10.

30 Zero Hora 09/11/1982, p. 08.

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4. O trabalhismo

Nesse momento, cabe apresentar a forma que o PDT pretendia se colocar diante do eleitorado, como a “única oposição” e como único capaz de “mudar”, bem como, seu movimento o “trabalhismo”, confundido com o partido e seus candidatos, que excluíam os antigos petebistas que procuraram o PMDB. Nesse ponto, revelamos uma disputa pela memória dos antigos trabalhistas e do próprio trabalhismo.

Verificamos a ideia-força com Ludovino Fanton, Secretário-geral do PDT nacional, quando assevera que o “PDT oferece-se ao eleitorado como único partido verdadeiramente de Oposição, com raízes nos ideais de Getúlio Vargas desde a revolução de 1930 [...]”31, posicionando o PDT novamente no lugar de oposição verdadeira, contudo agora alentando uma memória ligada ao “trabalhismo” e a seus grandes líderes.

A principal maneira com que o PDT afirmava ser a “verdadeira oposição” aparece nos discursos do partido através da vinculação com o “trabalhismo”32. O PDT utiliza a imagem de Getúlio Vargas, Alberto Pasqualini, João Goulart e Leonel Brizola, membros do antigo PTB, com fins eleitorais. Para Grill (2003) isto implica a utilização dos chamados “ícones” ou “pais fundadores”. Getúlio Vargas e sua linha intitulada de pragmático-getulista do “trabalhismo”, tendo como bíblia a “carta-testamento”, são também os legados que o PDT procura evidenciar, além do fato de que a ditadura teria sido feita contra o trabalhismo e seus líderes.

Essa “utilização política” do que Grill (2003) chama de “tradição trabalhista”, marcada por “ideias” e “marcos objetivos”, é a formulação de uma genealogia simbólica ou uma linhagem mitológica que serve como recurso eleitoral (GRILL, 2003: 286) e para a criação de capital simbólico. Assim, o carisma, a figura dos líderes, seus feitos que lhe dão o chamado capital heróico, sua ascensão política, entre outros elementos, são reclamadas pelos pedetistas. Segundo Grill (2003), isto acontece porque os agentes “reivindicam o papel de sucessores reivindicando a posse de qualidades semelhantes ao ancestral e o reconhecimento disto por parte dos demais seguidores” (2003: 291), além disso, assumem o papel de herdeiros a fim de incorporar o prestígio do líder. Consoante o autor, “as demonstrações de lealdade aos antepassados e as proximidades familiares, políticas e sociais com os ícones ligados a esferas transcendentes e perenes da vida social ativam a “tradição política”.” (2003: 292).

Nesse sentido, muitas vezes, os pedetistas citam a continuação das reformas de base de João Goulart33, ou até mesmo o fato de que a ditadura teria sido feita contra o “trabalhismo”, reafirmando a sua vinculação com o passado e, automaticamente, ao

31 Zero Hora 28/08/1982, p. 08.

32 Não procuramos discutir a ideologia do trabalhismo ou seus princípios, mas apenas evidenciar o seu caráter fixado de “tradição política”, com o qual os partidos vão disputar a sua vinculação ou não.

33 Zero Hora 09/11/1982, p. 12.

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oposicionismo como mostra Lamaison Porto, ex-secretário do governo Brizola, e na época fora da política partidária, quando afirma que “[...] o trabalhismo, representativo dos interesses e aspirações populares, é o movimento social mais antagônico ao regime e ao Sistema pós-64 [...]”34. Para Grill, essa “tradição política” contemplaria alianças e seguidores, no nosso caso é um recurso eleitoral. E este também opõe o PDT ao PMDB, que disputam esta memória e este legado35. A origem “trabalhista” ou a apropriação desta leva a alguns atritos principalmente entre as grandes lideranças dos partidos.

Um exemplo da disputa pela memória trabalhista é visível no período das homenagens ao aniversário de morte de Getúlio Vargas, que se deu durante a campanha eleitoral, quando o PDT condena a prestação de homenagens por parte do PMDB, pois como registra o dirigente pedetista, João Satte, a presença do comando peemedebista “seria uma afronta à memória do ex-Presidente Getúlio Vargas [...], já que é constituído de correntes políticas como a UDN do Sr. Carlos Lacerda o homem que levou Getúlio ao suicídio.”, assim observamos que os pedetistas não querem “dividir” a memória “trabalhista” e colocam os outros em oposição a esta36.

Verificamos, portanto, que a memória do “trabalhismo” além de ser utilizada para aumentar o prestígio do PDT, também é colocada como sendo algo que somente este partido pode reclamar, sendo os outros ou inimigos, ou traidores deste movimento identificado com oposicionismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em suma o estado do Rio Grande do Sul, na medida em que aumentaram os espaços da oposição, acompanhou o crescimento desta, não obstante, será o único estado em que a estratégia governamental posta em prática em 1982 funcionará e culminara com a vitória do regime já no seu desenlace, em outros estados considerados “redutos oposicionistas”, como São Paulo e Rio de Janeiro, venceram candidatos do PMDB e PDT.

Os resultados eleitorais de 1982 revelam que no Rio Grande do Sul, a maior parte do eleitorado votou na oposição, que ficou com 49,6% dos votos, enquanto o PDS com 33,0% (AYDOS, 1988: 10), mantendo o caráter de “reduto oposicionista”, que ganhou com as eleições anteriores, porém, a vitória foi do partido do governo, já que os votos

34 Zero Hora 09/11/1982, p. 12

35 Há referências dos peemedebistas como Wilson Vargas, que considera-se trabalhista afirmando que esta “é uma doutrina que [...] não pode ser contida em uma ou outra sigla. [...] ninguém tira do PMDB o privilégio de portar a bandeira de Getúlio na trajetória histórica do Rio Grande e do País.”. Zero Hora 24/08/1982, p. 09. Legitimando a demanda do PMDB pela “tradição” do trabalhismo.

36 Outro exemplo podemos observar diante das acusações feitas a Pedro Simon, que era egresso do antigo-PTB e seguidor declarado de Alberto Pasqualini, entretanto, segundo os políticos pedetistas, não teria mantido sua palavra em se juntar a Brizola no seu partido, de modo que é considerado traidor do próprio trabalhismo.

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oposicionistas se fragmentaram37.Para compreendermos o momento histórico e o contexto político das eleições de

1982, o posicionamento do PDT, que entendemos estar assentados na forma de ideias-força elencadas, são de grande valia, já que dizem muito de como o partido se coloca diante das modificações das regras do jogo político por parte do governo, bem como, respondeu à divisão das oposições e também à liberalização do regime político. Ao mesmo tempo em que se moldou na campanha em oposição ao outro.

Após 1982, tendo de negociar com governadores oposicionistas, o regime vai paulatinamente perdendo o controle da transição política, o que culminará com o fim da ditadura e a eleição de um presidente civil em 1986.

FONTES

Periódicos:Zero Hora (01/08/1982-22/11/1982)Correio do Povo (01/08/1982-22/11/1982)

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37 Não podemos esquecer, é claro, que o PDS tinha grande força eleitoral, principalmente nas regiões coloniais do Rio Grande do Sul, onde a ARENA, já ganhava anteriormente.

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O “BANDOLEIRO” LEONEL ROCHA E A REVOLUÇÃO DE 1923 ATRAVÉS DO JORNAL A FEDERAÇÃO

Rodrigo Dal Forno1

Resumo: Esta comunicação tem como objetivo analisar a construção depreciativa realizada pelo jornal A Federação em torno da liderança do General Leonel Rocha durante o período de guerra civil que se estabeleceu no Rio Grande do Sul através da chamada Revolução de 1923. Durante a revolta, Leonel Rocha comandou as tropas revolucionárias no norte do estado, especificamente na região do município de Palmeira das Missões. O jornal A Federação, órgão de imprensa oficial do Partido Republicano Rio-Grandense e do estado, acompanhou e noticiou as movimentações do conflito armado, ao passo em que buscou deslegitimar e desmoralizar a atuação das lideranças opositoras, rotulando homens como Leonel Rocha enquanto bandidos e bandoleiros sem motivações políticas e vinculados a uma causa que nada tinha de revolucionária, mas sim de mero banditismo e criminalidade.

Palavras-chave: Revolução de 1923 – Leonel Rocha – A Federação

Resumén: La comunicación tiene como objetivo analizar la construcción despectiva realizada por el periódico A Federação en torno al liderazgo del general Leonel Rocha durante la guerra civil que se estableció en Rio Grande do Sul a través de la llamada Revolución de 1923. Durante la revuelta, Leonel Rocha dirigió las tropas revolucionarias en la parte norte del estado, específicamente en el municipio de Palmeira das Missões. El periódico A Federação, el órgano de prensa oficial del Partido Republicano Riograndense y del estado, seguió y notificó los movimientos de los conflictos armados, mientras trataban de desacreditar y deslegitimar las acciones de los dirigentes opositores, etiquetado hombres como Leonel Rocha de bandidos y bandoleros, que no tienen motivaciones políticas y vinculadas a una causa que no tenía nada de revolucionaria, sino un mero bandidaje y delincuencia.

Palavras-Clave: Revolución de 1923 – Leonel Rocha – A Federação.

Revolução e Imprensa1.

O presente trabalho é resultado preliminar da pesquisa em andamento que vem sendo desenvolvida pelo autor no trabalho de conclusão de curso em Bacharelado em História pela Universidade Federal de Pelotas, sob orientação da Prof. Dra. Elisabete Leal. Através do qual vem se pesquisando a Revolução de 1923 e especificamente a figura de Leonel Maria da Rocha e sua participação neste conflito. Nesta comunicação buscaremos analisar de que forma ocorreu a construção de cunho pejorativa realizada

1 Acadêmico do 8º Semestre do Curso de Bacharelado em História pela Universidade Federal de Pelotas. [email protected]

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pelo periódico situacionista A Federação, em relação a liderança de Leonel Rocha e sua atuação no norte do Rio Grande do Sul durante esta revolta. O periódico situacionista rotulou homens como Leonel Rocha como bandidos e bandoleiros, sendo que esta representação é fruto de um discurso da época que ainda não obteve uma análise crítica por parte da historiografia. Para analisar este discurso de exclusão e estigmatização nos basearemos nos conceitos de estabelecidos e outsiders de Norbert Elias e Scott Johnson (2000) e de banditismo social de Eric Hobsbawm (2010). Cabe ressaltar que esta análise ainda encontra-se em fase de construção.

O jornal A Federação foi fundado no dia 1º de Janeiro de 1884 com o intuito de ser instrumento propagandista do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR). Júlio de Castilhos, principal liderança do partido, ditou as bases políticas e doutrinárias do PRR assim como do periódico, que seguiu fielmente os ideais castilhistas mesmo após a morte do patriarca, tendo o jornal funcionado, apesar de diversas dificuldades econômicas iniciais, interrupitamente por cinqüenta e três anos (1884-1937). (LEAL, 1996, p. 172). O jornal se colocou diretamente como veículo de propagação das opiniões político-partidárias dos republicanos rio-grandenses e com a hegemonia deste grupo no poder, veio a se tornar o órgão de imprensa oficial do estado. Para Félix, A Federação realizava o modelo de jornalismo vigente em seu contexto histórico, de caráter opinativo e não informativo. Desta forma, o jornal A Federação era utilizado pelos republicanos “politicamente com a finalidade de persuadir, de convencer. Com o discurso exercia a militância política. Almejava obter efeitos pelo usa da palavra, através da força e do peso da argumentação” (FÉLIX, 1993, p. 51). Segundo Leal analisar um periódico partidário com estas características implica buscar em suas “entrelinhas” os caminhos ideológicos e identificar a tentativa de construção de um discurso legitimador de um partido que procurava persuadir seus leitores (LEAL, 1996, p. 173). Uma das tônicas do periódico partidário daquele contexto era a de critica e desmoralização das oposições, sendo que em tempos de crise política e convulsão social, períodos de instabilidade no poder para os próprios castilhistas-borgistas, como foram os casos do conflito federalista de 18932 e da revolta de 1923, este ataque as oposições parecem ter adquirindo contornos ainda mais acentuados.

De acordo com Maria Antonieta Antonacci, a Revolução de 1923 se tratou de “uma luta interclasse dominante tendo em vista que a partir do pós-guerra, o acirramento das condições de mercado e a falta de reformulação do projeto do grupo no poder, levaram as oposições a trocar as urnas pelas armas” (ANTONACCI, 1981, p.114). A crise econômica derivada do período pós Primeira Guerra Mundial levou as elites econômicas gaúchas a buscarem novas respostas frente à crise junto ao governo do estado, que por sua vez se mostrava incapaz de fornecer soluções (ANTONACCI, 1981, p.112). A tensão na

2 Ver: FÉLIX, Loiva Otero. Pica-paus e maragatos no discurso da imprensa castilhista. IN: Revolução Federalista de 1983. Cadernos Ponto e Vírgula: Porto Alegre, 1993.; FÉLIX, Loiva Otero. Imprensa, Revolução e Discurso: A construção de categorias. IN: FÉLIX, Loiva Otero; RAMBO, Arthur. B. (Orgs.). A revolução ferederalista e os teuto-brasileiros. São Leopoldo: UNISINOS, 1995.

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economia gaúcha, principalmente no setor pecuarista, aliada ao descontentamento da hegemonia política exercida pelo chefe do partido Borges de Medeiros e as violências e arbitrariedades cometidas pelos republicanos contra as oposições, tendo em vista que a fraude e a violência política aumentaram ainda mais drasticamente no começo dos anos vinte (LOVE, 1975, p. 141.). Este contexto levou dissidentes republicanos, federalistas e liberais-democratas desejosos por uma nova política econômica estadual e uma renovação na comandância do estado a se unirem e aderirem a campanha de candidatura de Joaquim Francisco de Assis Brasil para o pleito eleitoral de Presidente do Rio Grande do Sul em 1922. Em janeiro de 1923, Borges de Medeiros foi declarado vencedor do pleito sob criticas de fraude e corrupção por parte das oposições.

Diante deste quadro de questionamento da validade da vitória do PRR, as oposições unificadas em torno das eleições optaram por trocar as urnas pelas armas iniciando assim um período de guerra civil que prevaleceu até o final do ano de 1923. Os revolucionários desejavam a deposição de Borges de Medeiros da presidência do Estado, a revisão na constituição gaúcha castilhista que permitia o exclusivismo dos republicanos no poder e aspiravam pela intervenção do Presidente da República Arthur Bernardes no estado sulino. Bernardes veio a intervir apenas no final daquele ano, enviando seu Ministro de Guerra, Setembrino de Carvalho ao estado para que mediasse as tratativas de paz. O movimento revolucionário se encerrou com o Pacto de Pedras Altas, realizado em Bagé, que selou a paz entre as duas partes divergentes. Em linhas gerais, o tratado de paz assinado vedava a eleição de Borges de Medeiros para o próximo pleito em 1928, tornava obrigatória a eleição para vice-presidente, concedia anistia aos revolucionários, adequava o sistema eleitoral estadual ao federal entre outras diretrizes. Ao final da guerra civil, o Rio Grande do Sul entraria processo de reconciliação entre as suas elites políticas e econômicas que se iniciou em 1923 e que culminaria na projeção da política gaúcha a esfera nacional com a Revolução de 1930. (ANTONACCI, 1981, p.111).

Neste contexto revolucionário de 1923 se destacaram algumas colunas revolucionárias que mantiveram o estado convulsionado em combates com a Brigada Militar e os Corpos Provisórios: Honório Lemes atuava na fronteira oeste, com sede em Rosário do Sul; Zeca Neto e Estácio Azambuja mantiveram a zona sul conturbada; Menna Barreto, Felipe Portinho e Leonel Rocha convulsionavam todo o norte do Rio Grande do Sul. Nos interessa em especifico a atuação de Leonel Rocha, que arregimentou e mobilizou seu grupo armado no município de Palmeira das Missões.

Leonel Maria da Rocha e a Revolução de 1923 no norte do Rio 2. Grande do Sul

Leonel Maria da Rocha nasceu em 13 de Outubro de 1865, no município de Taquari e aos vinte e três anos se transferiu para o município de Palmeira das Missões, onde se filiou

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ao Partido Federalista e iniciou sua trajetória política e militar bastante movimentada (ARDENGHI, 2003, p.161-2). Já em 1893 o caudilho aderiu o exército revolucionário e tomou parte da Revolução Federalista de 1893. Na luta federalista se colocou como ajudante do General Prestes Guimarães, que nomeou Rocha como major e o incumbiu da importante missão de fazer ligações e ir ao encontro do General Gumercindo Saraiva, no Paraná. Depois desta missão, Leonel passou a organizar grupos armados para a luta federalista durante toda a revolução no interior do município de Palmeira. O caudilho ainda se envolveria mais tarde na chamada Revolução da Palmeira, ou levante de 1902 (SOARES, 1974, p. 164). No município de Palmeira o período intermediário entre as duas guerras civis de 1893 e 1923 foi de permanente instabilidade, além do levante de 1902 e outros pequenos choques armados, o período também foi repleto de disputas políticas pelo poder local, tendo a oposição federalista, através da figura de Leonel Rocha, se mantido ativa durante todo o período, ora através de embates eleitorais, ora através de mobilização armada. (ARDENGHI, 2003, p.189)

O “caudilho a pé”, como se refere Mozart Pereira Soares (SOARES, 1974, p. 199), embora possuísse alguns recursos financeiros e pequena propriedade na região serrana, não era um daqueles famosos caudilhos a cavalo e com grandes posses, representava outra categoria social em relação aos demais caudilhos que aderiram as lutas revolucionárias de seu tempo, não se inserindo, portanto na elite estancieira do Rio Grande do Sul, (FERREIRA FILHO, 1986, p.13) Durante grande parte da República Velha, Leonel Rocha sempre manteve arregimentado sobre seu comando um contingente significativo de homens, em sua grande maioria, caboclos, peões, ervateiros e roceiros que depositavam enorme confiança em seu chefe, e nele colocavam suas esperanças de mudanças social que almejavam (FERREIRA FILHO, 1986, p. 136-7).

A Revolução de 1923 na região histórica e geográfica conhecida como Grande Palmeira (Atuais municípios de Palmeira das Missões, Sarandi, Frederico Westphalen, Chapada, entre outros) a oposição à política borgista foi liderada pela figura de Leonel Maria da Rocha, que liderou as tropas revolucionárias formadas por homens que geralmente tinham as mesmas condições sociais e econômicas que seu líder. O movimento revolucionário de 1923, em Palmeira, sob o comando deste caudilho, apresentou características peculiares e singulares em relação às demais regiões: primeiro, o líder do movimento, Leonel Rocha não era um fazendeiro poderoso economicamente e politicamente, segundo, as agitações eleitorais, assim com os choques armados em Palmeira ocorreram mais cedo do que as demais cidades, e foram as primeiras movimentações revolucionárias no estado (SOARES, 1974, p. 199-200). Durante o período da luta armada, Leonel mobilizou intensamente contingentes de caboclos e ervateiros no interior do município de Palmeira, nas localidades de Fortaleza, Rio da Várzea, Potreiro Bonito e Nonoai (ARDENGHI, 2003, p. 192), dividindo seus comandados em pequenos grupos e praticando á tática de guerrilha, fazendo ataques constantes na forma de piquetes e em seguida retirando-se

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para as matas dos arredores do município. Tendo em vista que o município de Palmeira possuía vasta área florestal, isto constituiu em um espaço privilegiado para este tipo de atuação por parte dos maragatos. (ARDENGHI, 2003, p.201). Esta forma de atuação de guerrilha e retirada para as matas, tornava extremamente difícil a perseguição e o combate das tropas de Leonel por parte dos legalistas, que eram comandados por Firmino de Paula e Valzumiro Dutra. Assim como está relacionada às precárias condições e recursos das tropas revolucionárias em termos de armamentos e suprimentos, sempre inferiores aos utilizados pelas tropas legalistas. Com ataques e movimentações deste gênero, Leonel Rocha travou diversos pequenos combates e escaramuças, sendo que o ponto culminante da sua atuação e de seus comandados ocorreu em 4 de Junho de 1923, com a tentativa de tomada do município de Palmeira, tentativa frustrada e repelida pelas tropas legalistas.

Após o término da Revolução de 1923, entre os anos de 1924-1927, Leonel Rocha seguiu atuando no município de Palmeira. Ora em confrontos relacionados a posse da terra e disputas locais, através de ataques a companhias de colonização particular, como os confrontos armados nas colônias de Xingu, Tesouras e Sarandi. E ora aproximando-se do movimento tenentista, apoiando e mobilizando indivíduos para aderir à causa dos tenentes. (ARDENGHI, 2003, p. 220-236). Após estes conflitos Leonel Rocha se exilou em Missiones na Argentina, retornando no Brasil em 1930 á pedido de Getulio Vargas para organizar grupos armados em Palmeira em prol da Revolução de 1930.

“Revolução? Não, banditismo.”- A Revolução de 1923 nas páginas do 3. jornal A Federação

Durante o conturbado ano de guerra civil no Rio Grande do Sul, o jornal A Federação procurou noticiar diariamente os acontecimentos bélicos no estado, além de buscar criticar de forma assídua a atuação das principais lideranças do contexto revolucionário: Honório Lemes, Zeca Neto, Felipe Portinho, Mena Barreto, Leonel Rocha, entre outros, todas estas figuras de liderança destacada foram alvos das mais ácidas criticas pelo periódico.

A região norte do estado foi a primeira a se levantar em armas e insuflar a guerra civil, com isto sendo a primeira a chamar atenção dos jornalistas republicanos. Já durante os meses de janeiro e fevereiro, as páginas do jornal criticavam assiduamente a atuação de chefes revolucionários locais, como Arthur Caetano, Menna Barreto, Leonel Rocha, Salustino de Pádua, etc. Em um primeiro momento o jornal se colocou de forma ambígua: ora qualificando os acontecimentos da região como mero boato espalhado pelos adeptos de Assis Brasil em relação a um possível grande e contínuo movimento

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revolucionário que vinha ocorrendo nos municípios de Palmeira e Passo Fundo3; e ora, não mais negando a existência de grupos armados e a deflagração deste movimento revolucionário, mas passando a condenar e desqualificar deliberadamente a atuação destas lideranças, relacionando suas ações com atos exclusivamente de banditismo e questionando o real teor daquele movimento armado:

[...] num covarde ajuntamento de malfeitores que saqueiam, matam, estupram e fogem a aproximação da força repressora, já não autoriza duvida de nenhuma espécie. O que existe, ou melhor, o que existiu nos municípios de Passo Fundo e Palmeira nada teve de comum mesmo com um simulacro de revolta popular. Foi o banditismo flutuante e mal contido, elemento mercenário de ínfima espécie, acoitado nas matas e nos desvãos da nossa fronteira do norte que tentou a sortido, não para lutar por uma ideia, embora condenável, mas para assaltar fazendas pacifica degolar colonos, violentar donzelas, espalhar a tranqüilidade, em suma, e dar ao longe a impressão de que naquela parte do Estado estivesse realmente conflagrada por motivos de ordem política.4

Através desta postura o periódico situacionista buscou desvincular a atuação das oposições do plano político de contestação da legitimidade do governo Borges de Medeiros, relacionando o movimento deflagrado inicialmente no norte do Rio Grande do Sul como um movimento de banditismo. Ou seja, não havia revolução, não havia motivações políticas naquela contenda, a atuação de grupos armados estava meramente relacionado a criminalidade. Leonel Rocha e seu grupo de bandoleiros figuram seguidamente como responsáveis por uma série de crimes e atrocidades cometidos na região. Algumas das mensagens transmitidas no discurso do jornal merecem nossa atenção especial para compreender a construção desta representação da figura de Leonel Rocha. : a) Os saques, assassinatos e depredações realizadas pelo grupo comandando por Leonel Rocha pelo interior de Palmeira; b) A forma de arregimentação através da coerção realizada pelo caudilho para reunir elementos em suas hostes; c) O uso de adjetivos depreciativos que visavam inferiorizar os revolucionários.

A acusação de saques, depredações e assassinatos a colônias de imigrantes e descendentes de imigrantes europeus nas áreas rurais, aparecem continuamente como alguns dos atos de maior banditismo do bando de Leonel Rocha. Trata-se da barbárie e a desordem de um grupo de bandidos saqueadores, contra o trabalho disciplinado de grupos de trabalhadores rurais do norte do estado:

Toda essa zona norte compreendida entre os municípios de Passo Fundo, Erechim e Palmeira, é, como ninguém ignora, habitada por populações imigrantes, agrupadas em pequenas povoações, em núcleos importantes de trabalho e riqueza [...] Internados, isolados nas matarias densas dessa região próxima a fronteira com Santa Catarina, onde é fácil o esconderijo e a emboscada é difícil

3 A Federação, Proto Alegre, 13/01/1923, p.1; A Federação, 25/02/1923, p.6

4 A Federação, 07/02/1923, p.1, [grifo nosso]

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a penetração das forças legais, os bandoleiros de Portinho, de Leonel Rocha e outros, se entregam a mais desenfreada pilhagem e aos mais revoltantes desatinos contra os colonos ali residentes.5

Analisar estes atos em tempos revolucionários nos parece tarefa bastante complicada. Sabe-se que tanto os grupos revolucionários quanto os grupos legalistas, através dos conhecidos piquetes, realizavam a prática de roubos, principalmente de animais. Do lado maragato, esta prática era justificada em nome da causa revolucionária, na qual os líderes revolucionários repassavam promissórias aos saqueados, que receberiam de volta os prejuízos após o fim e a vitória na revolução. Até que ponto pensava-se em seguir à risca estas diretrizes parece complicado saber. No entanto, como alerta Hobsbawm, em se tratando de um bandido social, como acreditamos ser possível identificar alguns traços em Leonel Rocha, seria impensável para este, apropriar-se da colheita dos camponeses no próprio território em que ele vive. (HOBSBAWM, 2010, p. 37). Tendo em vista que os distritos rurais em que Leonel é acusado de praticar saques freqüentes, eram também os mesmos em que o caudilho recebia maior adesão popular e que serviam de refugio e zona freqüente de sua atuação revolucionária.

Obviamente o roubo a algumas propriedades, fundamentalmente aquelas de inimigos de guerra, era uma solução bastante eficaz para a manutenção de recursos das tropas e o levantamento da moral dos revolucionários, diante das situações sempre precárias e adversas em que estes viviam no seu cotidiano de luta armada. Este tipo de ação parece ter sido algo constante, a exemplo do episódio em que Leonel Rocha e seu grupo saquearam 400 rezes e 200 animais de cria da propriedade do Coronel Victor Dumoncel em Santa Bárbara 6. Fato de grande relevância, tanto pelo valor financeiro do saque, quanto por se tratar do furto de um líder republicano e chefe militar de extremo destaque na região. Também cabe lembrar, como bem percebeu o historiador britânico Hobsbawm, que tempos de revoluções se colocam como excelentes ocasiões para a prática de crimes por bandidos comuns. (HOBSBAWM, 2010, P.130). O que torna a possível que criminosos e crimes quaisquer se confundissem com a atuação dos revolucionários.

Outro elemento fundamental para compreender a construção da imagem de Leonel Rocha proposta pelo olhar legalista está presente na tentativa de deslegitimação da atuação do caudilho, através de notícias relacionados a arregimentação de suas tropas, onde Leonel freqüentemente é criticado pela forma como recrutava elementos para suas hostes: “Leonel Rocha tentou novamente, reunir gente nos sertões do Rio da Várzea, encontrando porém em todos dificuldades, pois os seus correligionários andam ocultos nos matos para não o seguir.”7; “Leonel Rocha tem ameaçado de morte os seus correligionários

5 A FEDERAÇÃO, 18/09/1923, P.1.

6 A FEDERAÇÃO, 19/09/1923. P.2

7 A FEDERAÇÃO, 14/09/1923, P.1

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que se recusam a acompanhá-lo.”8; “Leonel continua recrutando gente embora encontre repulsa de seus próprios companheiros e tente levar a força alguns e ameaçar outros a morte”9. A forma como ocorriam tais recrutamentos e formação dos contingentes revolucionários na prática nos parece extremamente complicado de saber devido á carência de fontes históricas sobre o funcionamento e organização militar destas tropas revolucionárias. No entanto é possível perceber a intenção do discurso republicano de deslegitimar o carisma e adesão que o líder federalista possuía no município de Palmeira e seus arredores. Durante 1923 as tropas de Leonel Rocha chegaram a serem compostas por 800 á 1000 homens, algo realmente significativo para um contingente revolucionário naquele contexto de 1923 e que demonstra um enorme prestígio e reconhecimento da liderança de Leonel Rocha frente à população local.

Cabe ressaltar, que embora o jornal A Federação fosse editado em Porto Alegre, bastante distante do município de Palmeira, sua circulação era bastante significativa, atingindo boa parte do estado (LEAL, 1996. P. 171), tendo inclusive um correspondente ativo em Palmeira das Missões, assim como em diversos outros municípios do interior. Com isto, possivelmente as notícias chegassem até a população local fazendo com que se construíssem opiniões dos mais variados tipos frente ao grupo revolucionário e seus meios de atuação.

A construção da imagem deste inimigo republicano também ocorreu através da adjetivação negativa destes indivíduos por meio do uso dos mais variados termos depreciativos para vincular estes caudilhos a imagem de bandidos, desordeiros, ladrões e, conseqüentemente deslegitimar o seu respaldo social e a motivação política de sua contenda. Para analisarmos este processo de estigmatização e de inferiorização, nos baseamos no estudo de Elias e o conceito de estabelecidos e outsiders, que em linhas gerais aborda a ideia de estabelecidos, enquanto um grupo de maior poder em um determinado contexto e que pensa a si mesmo como humanamente superior e que com isto, estigmatiza o grupo outsider como um grupo de pessoas de menor valor humano, que devem ser colocadas fora do jogo de força das relações de poder assim como da sociedade. Deste modo a exclusão e a estigmatização do grupo outsider, são armas poderosas por parte dos estabelecidos para afirmar sua superioridade e manter os demais em seu lugar, tendendo a atribuir sempre ao grupo de fora características pejorativas (ELIAS, 2000, p.19-22). Conforme aponta Elias:

Afixar o rótulo de “valor humano inferior” a outro grupo é uma das armas usadas pelos grupos superiores nas disputas de poder, como meio de manter sua superioridade social. Nessa situação, o estigma social imposto pelo grupo mais poderoso ao menos poderoso costuma penetrar na autoimagem deste último e, com isso, enfraquecê-lo e desarmá-lo (ELIAS, 2000, p.24).

8 A FEDERAÇÃO, 31/03/1923, P. 3

9 A FEDERAÇÃO, 27/03/1923, P.3

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A Federação utilizou como arma fundamental o estigma para a desmoralização de seus opositores no contexto de 1923 e construiu através de seu discurso o imaginário de um bandoleiro que depreda, mata e rouba. Ainda segundo Elias, a relação de estigmatização entre grupos estabelecidos e outsiders por todo o mundo se dá através de uma gama de termos depreciativos que agem na estigmatização daqueles que estão colocados enquanto outsiders. Por exemplo, nos países de língua inglesa, através do uso de termos como “crioulo”, “gringo”, “carcamano”, “sapatão”, entre outros. (ELIAS, 2000, p.27). No contexto do Rio Grande do Sul de 1923, Leonel Rocha assim como outros chefes revolucionários, apareceu relacionado a uma série de termos pejorativos: “bandoleiro”, “bandido”, “famigerado caudilhete”, “desordeiro”, “falso libertário”, “salteador”, “chefe de rapina”, etc. Dentre os mais variados termos usados pelo periódico, o adjetivo de “bandoleiro” aparece como o mais usado e foi aquele que de certa forma se fixou no imaginário e na memória do conflito de 1923, sendo recorrente na memória coletiva a relação entre os maragatos daquele ano com a denominação de bandoleiros. O termo bandoleiro, no contexto depreciativo de 1923, vinculava e rotulava os grupos armados como bandos de bandidos desordeiros que saqueavam, matavam e não possuíam objetivos ou ideais políticos. De acordo com Elias, em determinadas relações entre o grupo estabelecido, e o grupo outsider, o próprio nome dado a este último pode servir como forma de implicar inferioridade e desonra. (ELIAS, 2000, p.27). Claramente o termo “bandoleiro” é empregado com esta idéia explicita de produzir uma imagem de inferioridade ao grupo outsider.

Para Elias, está estigmatização também está relacionada a outro preceito fundamental, “a anomia talvez seja a censura mais freqüente a lhes ser feita; repetidamente, constata-se que os outsiders são vistos pelo grupo estabelecido como indigno de confiança, indisciplinado e desordeiro.” (ELIAS, 2000, p.27). Esta anomia, ou a ausência de respeito pelas normas sociais estabelecidas, também está mais do que dada no tratamento direcionado aos bandoleiros maragatos. O reforço constante à ideia de desrespeito à ordem social e à prática de crimes justifica o tratamento realizado pelo poder legalista e demonstra a inferioridade social dos adversários políticos. Pois, segundo o jornal situacionista: “No Rio Grande do Sul existe o império da lei, e todo aquele que se coloca fora dele é inimigo da sociedade”10. Portanto, na perspectiva castilhista-borgista, o adversário é colocado como um perfeito outsider, que deve ser estigmatizado e afastado da sociedade, tendo em vista que esta se encontra bem ordenada e governada pelo projeto político do grupo republicano. Esta depreciação individual, ou do grupo como um todo, se colocava como arma fundamental nesta luta contra a oposição através da palavra escrita.

Outro conceito fundamental para compreendermos esta estigmatização e atuação de Leonel Rocha aos olhos do poder está relacionado ao banditismo social. Hobsbawm ao

10 A FEDERAÇÃO, 19/02/1923, p.1

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trabalhar com a perspectiva de banditismo social difere este de cunho mais contestador da ordem e do poder estabelecido e com fortes laços a determinados grupos sociais, ao banditismo comum praticado por criminosos quaisquer. Para o historiador:

O principal com relação aos bandidos sociais é que são proscritos rurais que o senhor e o Estado encaram como criminosos, mas que continuam a fazer parte da sociedade camponesa, que os considera como heróis, campeões, vingadores, pessoas que lutam por justiça, talvez até mesmo vistos como líderes da libertação e, sempre, como homens a serem admirados, ajudados e sustentados. (HOBSBAWM, 2010, p.36. [grifo nosso]).

Embora tidos como meros bandidos pelo estado, que buscou difundir e convencer com esta ideia, o real papel político e social destes indivíduos necessita de uma análise mais profunda, tendo em vista que as páginas de A Federação defendiam ideias de um programa político-partidário bastante definido e nenhum pouco neutro, que se acentuou ainda mais durante o contexto de guerra civil e disputa pelo poder na contenda de 1923. Assim como se tratou de um discurso construído em seu contexto histórico e ainda não revisitado criticamente por historiadores. O certo é que indivíduos como Leonel Rocha, frente ao discurso legalista, acabaram assimilando em sua autoimagem o conceito de bandido social, de perfeitos bandoleiros, se colocando como homens fora da lei, contraventores da ordem e inimigos do estado.

Considerações finais4.

Diante do quadro de análise proposto, podemos pensar a estigmatização e construção da imagem de um Leonel Rocha bandoleiro através de alguns elementos fundamentais presentes no discurso do jornal A Federação. No discurso do periódico, Leonel Rocha era praticante de atos de banditismo como roubos e assassinatos contra colonos trabalhadores e indefesos, assim como recrutava e persuadia indivíduos para que aderissem a sua coluna revolucionária através da violência e ameaça de morte, mas quase sempre encontrando repulsa, negação e deserção. A luta de Leonel e de outros em 1923, nada tinha de cunho político e revolucionário, eram meros bandos de indivíduos que cometiam crimes e os justificam questionando a legitimidade do governo de Borges de Medeiros. Resumidamente esta nos parece ter sido a tônica do discurso republicano impresso nas páginas do periódico legalista durante os meses de guerra civil, na busca pelo convencimento e persuasão da opinião pública e na tentativa de deslegitimar e despolitizar a atuação de importantes líderes, como foi o caso de Leonel Rocha. No entanto, como destacamos, o verdadeiro papel político e social deste caudilho na contenda de 1923 e nas demais lutas armadas em que esteve envolvido parece ainda obscurecido, necessitando de maiores análises e pesquisas por parte da historiografia.

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Fontes Primárias e Referências Bibliográficas5.

Fonte Primária:A Federação, Porto Alegre, 1923. Bibliotheca Pública Pelotense.

Referencias Bibliográficas:

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ARDENGHI, Lurdes Grolli. Caboclos, Ervateiros e Coronéis: Luta e Resistência no Norte do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: EDUPF, 2003

ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

FÉLIX, Loiva Otero. Coronelismo, borgismo e cooptação política. Porto Alegre: Editora Universidade/UFRGS, 1987.

FÉLIX, Loiva Otero. Pica-paus e maragatos no discurso da imprensa castilhista. Revolução Federalista de 1983. Cadernos Ponto e Vírgula: Porto Alegre, 1993

FERREIRA FILHO, Arthur. Revolução de 1923. Porto Alegre: Imprensa Oficial do Estado, 1973.

FERREIRA FILHO, Artur. Revoluções e caudilhos. Porto Alegre: Martins Livreiro. 1986.

HOBSBAWM, Eric. Bandidos. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

LEAL, Elisabete. O positivismo, o Partido Republicano Rio Grandense, a moral e a mulher (1891-1913). Dissertação (Mestrado em História). Porto Alegre, UFRGS: 1996. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1996.

LOVE, Joseph. O regionalismo gaúcho. São Paulo: Perspectiva, 1975.

SOARES, Mozart Pereira. Santo Antônio da Palmeira. Porto Alegre: Bels, 1974.

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PLÍNIO SALGADO E A GESTAÇÃO DO PENSAMENTO NACIONALISTA A PARTIR DO MOVIMENTO MODERNISTA

RodRigo SAntoS de oliveiRA1 CARmem g. BuRgeRt SChiAvon2

RESUMO: A Ação Integralista Brasileira (AIB) foi o primeiro movimento político de massas organizado, nacionalmente, no Brasil; pode ser, inclusive, considerado um dos precursores dos partidos políticos em âmbito nacional no país – lembrando que até a formação da AIB, em 1932, não existiam agremiações políticas nacionais e sim regionais. Uma das principais bases do integralismo foi o nacionalismo exacerbado e suas origens remontam à participação de Plínio Salgado enquanto escritor modernista, na década de 1920. Em sua militância nas correntes nacionalistas, que se formaram no momento posterior à Semana de Arte Moderna (1922), foi organizando e estruturando os princípios de sua concepção nacionalista, a qual, na década seguinte, viria a se consolidar na formação da AIB. A partir destas considerações objetiva-se analisar a produção modernista de Plínio Salgado e perceber como esta se refletiu no integralismo.

PALAVRAS-CHAVE: Plínio Salgado, Modernismo, Integralismo.

INTRODUÇÃO

No presente artigo, discutiremos a influência do movimento modernista na visão nacionalista de Plínio Salgado, futuro líder e criador da Ação Integralista Brasileira (AIB). Para tanto, dividiremos o texto em duas partes, sendo que na primeira, apresentaremos uma pequena biografia política do líder integralista Plínio Salgado e, na segunda, abordaremos a sua produção modernista.

1. PEQUENA BIOGRAFIA POLÍTICA DE PLÍNIO SALGADO (1922-1945)3

A sociedade brasileira vivenciou inúmeras transformações nos anos vinte do século anterior. Além disso, foi nesse período que ocorreram as revoltas tenentistas de 1922, 1924

1 Doutor em História (PUCRS) e professor visitante do Instituto de Ciências Humanas e da Informação (ICHI) da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Contato: [email protected]

2 Doutora em História (PUCRS) e professora do Instituto de Ciências Humanas e da Informação (ICHI) da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Contato: [email protected]

3 Não avançaremos a biografia de Salgado além de 1945, pois buscamos compreender as influências diretas da participação modernista em sua concepção política que o levaram a fundar a Ação Integralista Brasileira e posteriormente seu período de exílio em Portugal.

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e da Coluna Prestes e que o país presenciou a efervescência do movimento modernista, através da realização da Semana de Arte Moderna de São Paulo, em fevereiro de 1922. Dentro desse contexto, surgiu a figura de Plínio Salgado, o qual se tornaria um dos expoentes da corrente modernista brasileira.

Plínio Salgado nasceu em São Bento do Sapucaí (São Paulo), em 22 de janeiro de 1895. Já no ano de 1918, iniciou suas atividades ligadas à política no momento em que participou da fundação do Partido Municipalista (que reunia 16 líderes do Vale do Paraíba); nessa época, sua atividade política traduzia-se pela realização de conferências em nome da autonomia municipal. No ano de 1920, começou a trabalhar no jornal Correio Paulistano, órgão oficial do Partido Republicano Paulista (PRP), neste momento, Salgado fez amizade com Menotti del Picchia (redator-chefe do jornal) e, em companhia deste e de Cassiano Ricardo e Cândido Mota Filho, passou a fazer parte do movimento Verde – Amarelo, uma vertente nacionalista do modernismo. Em 1925, com os mesmos companheiros, lançou o movimento da Anta, que exaltava o elemento indígena, especialmente, o tupi, como o portador das origens nacionais mais autênticas4. Em 1926, Plínio Salgado, publicou seu primeiro romance intitulado O Estrangeiro, obra que discutia a questão da identidade nacional brasileira e que o tornou conceituado no meio modernista.

A partir deste momento, Plínio Salgado, além de atuar no meio literário, ingressou no campo político brasileiro. Sua trajetória política começou em 1927, momento em que se elegeu deputado estadual pela sigla partidária do PRP. Em 1930, apoiou a candidatura situacionista de Júlio Prestes à Presidência da República em oposição a Getúlio Vargas. Neste mesmo ano, antes mesmo de concluir seu mandato de deputado, viajou para o Oriente Médio e à Europa como preceptor do filho do amigo Souza Aranha. Na ocasião, Plínio impressionou-se com o fascismo e com Mussolini; inclusive, alguns autores consideram que esta fascinação o estimulou a pensar na elaboração de uma doutrina semelhante para o Brasil. Em outubro de 1930, Plínio Salgado retornou ao Brasil logo após o início da revolução que tiraria Washington Luís da Presidência da República. No jornal Correio Paulistano, Plínio defendeu o governo por meio da publicação de dois artigos, todavia, após a vitória dos revolucionários, passou a apoiar Getúlio Vargas.

Em fevereiro de 1932, Salgado fundou a Sociedade de Estudos Políticos (SEP), organização composta por intelectuais simpáticos ao fascismo europeu. Não obstante, a coroação definitiva da sua carreira política sobreveio alguns meses depois, quando divulgou o Manifesto de Outubro, o qual continha as diretrizes básicas da futura Ação Integralista Brasileira (AIB)5. Sobre esta organização, Stanley Hilton afirma que

4 Também em 1925, sob a inspiração de Alberto Torres e Oliveira Viana, publicou a obra Literatura e Política, que expressava idéias nacionalistas com destaque ao aspecto antiliberal e agrarista.

5 “O integralismo se definiu como uma doutrina nacionalista cujo conteúdo era mais cultural do que econômico. Sem dúvida, combatia o capitalismo financeiro e pretendia estabelecer o controle do Estado sobre a economia. Mas sua ênfase maior se encontrava na tomada de consciência do valor espiritual da nação, assentado em princípios

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A Ação Integralista Brasileira nasceu no período de fluidez política e social que seguiu a Revolução de 1930. Fundada em outubro de 1932, por Plínio Salgado, o partido floresceria num clima de nacionalismo cultural e ansiedade da classe média face ao comunismo. Vestindo camisas verdes, usando o sigma como símbolo e o braço esticado como saudação, os integralistas apregoavam soluções nacionalistas para os problemas brasileiros. (HILTON, 1977, p.24)

Em fevereiro de 1934, ocorreu o Congresso de Vitória, onde foram traçadas as diretrizes integralistas e elaborados os estatutos da AIB, na ocasião, também foi elaborado um plano de ação e os Departamentos de Doutrina, de Propaganda, de Milícia, de Cultura Artística, de Finanças e de Organização Política. Plínio Salgado confirmou sua autoridade ao conseguir a aprovação dos artigos que definiam as atribuições do “chefe nacional da AIB”.

No ano de 1935, a AIB aprovou a repressão à Intentona Comunista e, em 1937, converteu-se em partido político e lançou o nome de Plínio Salgado à Presidência da República para as eleições que estavam previstas para janeiro de 1938, mas diante da percepção de que Getúlio Vargas continuaria no poder, da promessa de que o chefe integralista receberia o Ministério da Educação e do seu desejo de fazer do integralismo a doutrina do novo regime, ele retirou sua candidatura e em seguida, apoiou a implantação do Estado Novo (em 10 de novembro de 1937). Após a institucionalização deste, os partidos políticos foram extintos e o espaço de atuação da AIB ficou bastante reduzido.

Em represália à extinção dos partidos políticos, alguns líderes integralistas, desiludidos com a política adotada pelo presidente Getúlio Vargas, julgando contar com o apoio do exército e da opinião pública, promoveram um assalto ao Palácio Presidencial, no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, em 11 de maio de 1938. O movimento fracassou, pois Vargas contou com o apoio da cúpula militar e a partir deste momento, intensificou-se a perseguição aos líderes integralistas e foi dentro desse contexto que o principal líder do movimento, Plínio Salgado, em maio de 1939, foi preso e um mês depois enviado ao exílio, em Portugal.

Muito embora o fracasso do levante integralista de 1938, ressalta-se que este acelera a ampliação da estrutura político-constitucional do Estado Novo, originando a imposição de alguns decretos-leis. Entre eles, destaca-se o de 8 de abril de 1939, sobre a administração dos Estados e Municípios. De acordo com este, “Interventor ou Governador e o Departamento Administrativo tornam-se órgãos da administração do Estado. O Interventor é nomeado e pode nomear os Prefeitos, demitir ou aposentar os funcionários do Estado” (BONAVIDES, ANDRADE, 1991, pp. 380-381). Dessa forma, o Departamento Administrativo torna-se um órgão de aprovação dos atos dos interventores e do orçamento estadual, também apto à fiscalização e execução orçamentária, ou seja, “delineava-se um federalismo mais associado com a economia e os negócios financeiros dos Estados, o que fortalecia a imagem do mercado nacional” (CARONE, 1976, p. 161). unificadores: ‘Deus, pátria e família’. Era o lema do movimento” (FAUSTO, 1991, p. 353).

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Esta política de intervenção estatal na economia agradava os empresários brasileiros na medida em que favorecia o seu crescimento por meio da importação de bens de produção e da desvalorização da importação de bens de consumo (TOTA, 1996, p. 26).

Por outro lado, destaca-se que no período do exílio de Plínio Salgado (1939-1946), Portugal vivenciava o seu Estado Novo6, no dizer do historiador Luís Reis Torgal, um regime fascista “à portuguesa”, que para ele, se trata de um fascismo “adequado às nossas próprias características, de um povo rural, dotado de uma mentalidade rural e de uma concepção católica, de um Estado que fez da manutenção do seu império colonial a sua grande cruzada” (TORGAL, 1997, p. 31), será neste cenário que Plínio Salgado vivenciará novas experiências e reformulará a doutrina integralista. De acordo com os trabalhos de Ricardo Seitenfus (1990) e Stanley Hilton (1983), o exílio de Plínio Salgado representa, também, um momento crítico da sua vida em razão do seu contato com a Gestapo e o serviço italiano em Lisboa.

Desse modo, o exílio de Plínio Salgado constitui-se um período chave na sua vida, tendo em vista que representa a conversão (verdadeira?) dele de integralista em conservador católico como atestam as suas publicações à época e a nova rearticulação integralista, em 1945, por meio da formação do Partido de Representação Popular (PRP).7

2. A PRODUÇÃO MODERNISTA DE PLÍNIO SALGADO

Plínio Salgado não foi um dos organizadores tanto da Semana de Arte Moderna, como Mário e Oswald de Andrade, Menotti de Picchia Anita Malfatti, entre outros – mas do grupo que foi se agregando ao movimento entre os anos de 1922 e 1924 – como Cassiano Ricardo, Agripino Grieco, Alceu Amoroso Lima, etc (CÂNDIDO, CASTELO, 1983).

Embora Plínio Salgado seja sempre lembrado dentro do modernismo como escritor, principalmente pela trilogia “crônicas da vida brasileira”, em destaque a obra O estrangeiro de 1926, seu despertar literário se deu a partir da poesia, e não da literatura. Suas preocupações até esse livro, eram voltadas para a produção e discussões em torno da poesia.

Na palestra que proferiu no segundo dia da Semana, del Picchia ilustrou a sua fala com poesias e trechos de prosas que refletiam o “novo espírito moderno” e Plínio Salgado foi um dos autores citados (ALAMBERT, 2004). A partir de então, foi apresentado como

6 O Estado Novo português surge em 1932 e se estende até 1974, quando a “Revolução dos Cravos” coloca um ponto final ao longo predomínio salazarista.

7 Plínio Salgado foi o presidente do PRP entre sua fundação até sua extinção em 1965, com o Ato Institucional nº 2. Entrou na Aliança Renovadora Nacional (ARENA) no mesmo ano e permaneceu como membro ativo do partido até sua morte em 1975.

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um poeta vinculado “ao novo espírito”. Contudo, o despertar da poesia de Salgado foi anterior. Em 1919 publicou Tabor

livro de poesias, marcadamente em estilo parnasiano, mas que já demonstrava certas características modernistas.8 Este livro foi a reunião de poesias que publicou em um jornal literário, chamado “Albor”, em sua juventude.

Na revista Klaxton, principal voz do modernismo nos seus primeiros passos, Plínio Salgado, foi um dos colaboradores e também publicou uma de suas poesias, já desvinculado do estilo parnasiano e completamente inserido na “vanguarda modernista” (SALGADO, 1922, p. 4), conforme indicação abaixo:

Uma interpretação para esse poema seria o “eco” ser a reverberação do modernismo “nas cristalinas lâminas da serra”, ou seja, São Paulo. E com esse “eco” que “cantava sozinho”, porque todos os demais movimentos teriam morrido, e apenas o modernismo, permaneceria e realizaria o “milagre da ressurreição” das artes brasileiras. Em resumo, o poema, poderia ser interpretado como uma típica produção modernista, da primeira fase: combativa, iconoclasta e que procura apresentar apenas o modernismo como representante das artes brasileiras. Uma característica interessante desse poema é o fato de apresentar uma referência religiosa, mesmo que desvinculado de um sentido

8 De acordo com a biografia feita por sua filha, sua primeira manifestação literária foi através de uma poesia composta quando estava na escola primária em sua cidade natal São Bento. Ver: LOUREIRO, 2001. Apesar do tom ufanista de exaltação da memória do próprio pai, o texto apresenta o mérito de apresentar dados memorialísticos da autora e dados pontuais, como o encontro de Salgado com lideranças e personalidades, etc. Ou seja, memórias contrapostas com documentos pessoais, que ao pesquisador serve como uma fonte auxiliar.

O eco

Nas cristalinas lâminas da serranebrilha a sua voz, na multidão das vozes.Cada encosta é um espelho; cada espelhoreflete a imagem do seu canto

Canção magoada... noiva triste...mira, remira o límpido cristal...É a voz do sabiá multiplicadanum grande coro de sabiás!

Como esse canto se namora!Como vaidoso fita a própria imagemSobre a paisagem colorida,o panorama da Sonoridade...O eco é a multidão das imagens sonorasna face pura dos espelhos invisíveis...

Canta sozinho... todos os pássaros morreram...Só ele vive, o solitário...Canta! E cantando operao alto milagre da Ressurreição!

Canção magoada... como se enamoranas arias simultâneas que desperta,no mimetismo das suas sombras!

Canção magoada... noiva triste...voz do sabiá sozinho, nunca estarás sozinhanunca terás esta impressão desoladorada minha dor que não achou aindaque ainda não viu, para se enamorarna lâmina pura das almas,como vês nas lâminas da serra,desabrochar o desenho da sua imagem!

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religioso, mas que é um traço peculiar na produção de Salgado ao longo de toda a sua vida, mesmo antes de sua adesão ao modernismo9, perpassando o integralismo até a sua morte em 1975.

Junto sua atuação como poeta Plínio Salgado também se preocupou com a poesia que era produzida, pelo modernismo. Ainda em 1922 buscou compreender essa poesia que era produzida dentro de São Paulo, que nesse ano seria a base do próprio movimento. O resultado de suas reflexões está no texto A poesia em São Paulo no ano do centenário da Independência. É um texto bastante combativo, e que buscava compreender ou até mesmo fixar as bases do pensamento modernista dentro da poesia. Para ele: “a poesia, como toda a literatura paulista, é, no atual momento, uma expressão tão complexa de tendências e influências, de caracteres raciais confusos e de circunstâncias tão diversas, que um espírito sensato, uma vez senhor da situação geral das nossas letras, teme qualquer tentativa de classificação ou síntese” (SALGADO, 1957 [I], p. 157).

Assim, estariam atravessando um “período neutro”, em que não haviam “aspirações coletivas nem fenômenos sociais generalizados”. Naquele momento não haveria “uma escola artística ou literária [...] seria aliás, o absurdo”, pois não tinha nenhum fato predominante para atrair as atenções “seja ele estético, político, filosófico ou referente a simples acontecimentos regionais” (SALGADO, 1957 [I], p. 157).

Essa poesia paulista, de acordo com a sua visão “é uma verdadeira mostra de variedades, que não denuncia na semelhança das técnicas ou afinidades de assuntos, a influência poderosa de um fato exterior único nem os impulsos de uma tendência interior única” (SALGADO, 1957 [I], p. 139).

Dentro dessa visão não havia um pensamento único e coerente, que pudesse gerar uma corrente, daqueles apegados à antiga estrutura, pois todos estariam presos a grilhões de reminiscências de escolas antigas: “temos neoclássicos, românticos, parnasianos, simbolistas, neoparnasianos, regionalistas, futuristas, nefelibatas e revolucionários independentes. Faltaria um elemento de ligação dentro do pensamento artístico:

Sem um forte idealismo político, moral ou religioso, cada espírito é, por enquanto, um gesto a procurar um roteiro seguro. Rondam em torno das teorias de arte codificadas e vigentes pensamentos esparsos de rebeldias ainda nebulosas. Do caos deverá nascer a luz. (SALGADO, 1957 [I], p. 142-143)

Essa “luz” quebraria com a “neutralidade” das artes naquele momento e iniciaria as bases de um novo pensamento, o modernismo.

Num período assim, que se afigura neutro, pelas suas incoerentes reações artísticas, pelas mutabilidades verificadas no tipo fregolesco do escritor que se inicia em várias escolas para a todas renunciar, sem cantar vitória dentro de nenhuma, a única atitude da crítica deve ser a de aconselhar a redução de todas

9 Plínio Salgado antes de sua adesão ao modernismo publicou um livro específico sobre questões religiosas, pouco conhecido e muito difícil de ser encontrado.Ver: SALGADO, 1921.

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as inteligências a um denominador comum de cultura, bem orientada e dirigida. Nossa grande poesia, moldada no ambiente contemporâneo, dirigindo-se aos homens de hoje, em nome das emoções contemporâneas, pousará, só assim, sobre uma base sólida e ela mesma indestrutível. (SALGADO, 1957 [I], p. 143)

Plínio Salgado ainda apresenta o modernismo como um movimento em marcha, contudo salienta a necessidade de uma orientação para colocar ordem dentro de das várias “linhas de pensamento” nas letras.

As revoluções da arte moderna serão um perigo para os povos sem cultura; agirão como elemento dissolúvel em vez de construtor; desorientarão completamente os “novos” e corresponderão para o senso estético das turbas a um movimento de anarquia e de regresso.Não é preciso apenas marchar, porém, saber marchar, e marchar com segurança. Ora se o avanço é fatal na arte, que é a síntese da grande ofensiva acentuada nos dias de contemporâneos, preparemo-nos para não resvalar nos declives da decadência que é, indiscutivelmente também, um modo de marchar. (SALGADO, 1957 [I], p. 143)

Posteriormente apresenta exemplos de poetas que representam o “novo espírito moderno”, em que destaca Menotti Del Picchia, com as obras Poemas do Vício e da Virtude, Moisés, Juca Mulato e Máscaras; também Mário de Andrade, autor de Paulicéia Desvairada.

Não há necessidade de discutir o extenso arrolamento de obras e autores que Plínio Salgado discute, e sim a sua leitura sobre o movimento, principalmente no fato de querer introduzir uma ordem ou organização, tentando estabelecer uma espécie de base para o movimento, mesmo que ele mesmo aponte os vários matizes e vieses que tornavam tão eclético a produção das artes literárias nesse momento. Principalmente se levarmos em conta que, pelo menos nesse princípio, o movimento pregava sua independência por não ficar preso a modelos filosóficos, teóricos e estéticos. Ao mesmo tempo é interessante notar que vários elementos que o autor apresenta como básicos para que o modernismo se tornasse um movimento significativo ele vai introduzir, pelo menos no discurso, no integralismo. Como um “forte idealismo político, moral ou religioso”, além de expressões de cunho religioso como “do caos nascerá a luz”, além de uma noção de processo evolutivo, da questão da marcha. Isso é indispensável quando levamos em conta que é nesse período que começa a ser gestado nele o pensamento nacionalista que culmina na AIB, dez anos mais tarde.

No ano de 1926, parte para a literatura, com duas obras Discurso às estrelas, uma coletânea de crônicas e O estrangeiro, o primeiro volume da trilogia “crônicas da vida brasileira”. Como apontou na reedição de 1956:

“Discurso às estrelas” é também, uma preparação dos trabalhos de teor puramente literário que da mesma pena saíram nas páginas de “O estrangeiro”, “O esperado”, “O cavaleiro de Itararé”, “Geografia sentimental” e outros, não se

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excluindo, sob muitos aspectos, a “Vida de Jesus”.Editado depois de “O estrangeiro”, este livrinho foi escrito antes daquele romance, num período de experiências do estilo moderno, em que o autor se preparava para a composição da sua obra, que foi a primeira a surgir sob a inspiração revolucionária da arte, nos domínios da ficção. (SALGADO, 1957 [II], p. 9)

Dividido em oito pequenas crônicas cujo tema principal é a religiosidade. Elemento central de três delas: 1º “O sentimento de tragédia”, sobre a Paixão de Cristo e a Páscoa; o 3º “O drama mais velho do mundo”, um diálogo entre Adão e o Diabo; 7º “Sonho de bebê”, sobre o mais importante bebê de todos os tempos que seria Jesus Cristo. A 2ª crônica “Os bondes, os homens e a vida” aborda a questão da modernidade e como ela afeta a vida das pessoas na cidade grande. Já a 4ª “O desconhecido” aborda questões da família. A 5ª “Os deuses medíocres” versa, a partir de metáforas sobre a natureza, a questão dos gênios e artistas. A 6ª “O elogio de Sancho Pança”, é uma leitura de Salgado sobre os personagens de Miguel de Cervantes. Por fim, na 8ª crônica, “O belo poema do Léxico”, versa sobre as letras e a poesia, também apresenta referências religiosas.

A obra Discurso às estrelas abre para Salgado o caminho para o escritor. Esse é ponto maior desse texto no conjunto da obra, que fica registrado apenas o fator religioso em destaque. Entretanto, deve ser ressaltado que o estilo das crônicas é nitidamente modernista. Sem regras ou normas pré-definidas ele varia a forma em que são apresentadas as histórias. Também cadê destacar que este livro, igualmente como aconteceu com Tabor, de 1919, é uma compilação de textos publicados pelo autor entre 1921 e 1923. De acordo com o próprio Salgado:

Corriam os anos de 1921 e 1923. Comecei minhas experiências nas colunas do “Correio Paulistano”. Eram escritos que, posteriormente, saíram enfeixados num pequeno volume que intitulei “Discurso às estrelas” [...] onde se pode ver, claramente, o prenúncio da forma adotada em “O estrangeiro”. (SALGADO, 1957 [III], p. 368-369)

Mas de toda a produção literária a obra O esperado, publicado ainda em 1926 é aquela que tem a maior expressão, seja pelo o seu papel dentro do modernismo ou pelo papel que teve dentro da obra de Salgado.

O próprio Salgado reconheceu a importância dessa obra em vários momentos de sua vida, porém, em dois merecem destaque.10 O primeiro foi na obra Despertemos a nação, de 1935, já quando ele era a liderança máxima dentro da Ação Integralista Brasileira.

10 Aqui achamos que devemos contar um fato interessante que aconteceu quando estávamos fazendo o levantamento de fontes para escrever sobre O esperado. Depois que já havíamos selecionado os textos para citar a importância da obra para Salgado, tivemos acesso à tese de doutorado em Ciência da Literatura de José Elíseu de Barros, sobre as obras O esperado e O estrangeiro. O autor, em dois momentos diferentes, cita os dois exemplos semelhantes aos que selecionamos para usar no nosso trabalho. O curioso é o fato de dois autores que trabalham em áreas diferentes utilizem exemplos semelhantes das mesmas obras. Ver: BARROS, 2006, p. 13 e 23 a 34. A diferença é que o autor coloca em sua tese de forma literal todo o texto de Salgado sobre os trinta anos de O esperado enquanto eu faço apenas citações pontuais.

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O meu primeiro manifesto integralista foi um romance. Quatro anos levei a meditá-lo e a escrevê-lo, desde uma luminosa manhã de setembro em que viajei pelo sertão paulista, onde o Tietê explode nas pedreiras do Avanhandara. A tragédia da raça e o poema lírico da Terra desvendaram-se aos meus olhos cantaram nos meus ouvidos. Uma noite, em que o acaso me levara a rua. Visconde de Parnaíba, em frente ao prédio silencioso da hospedaria dos imigrantes, senti a voz do destino, escrevi o primeiro capítulo de O Estrangeiro. Em abril de 1926, publicou-se o romance; nunca mais abandonarei esta batalha. (SALGADO, 1957 [IV], p. 9)

Aqui notamos o tom messiânico em que Salgado usava em suas publicações no tempo da AIB. Essa primeira leitura servia na época para apresentar o integralismo como algo mais longínquo, e o vincular a expressões da nacionalidade, no caso específico, o modernismo, que seria algo maior do que o movimento político.

A segunda vez foi dentro do livro Sentimentais, publicado cerca de trinta anos depois do lançamento de O estrangeiro. Nessa sobre a publicação, ele procura rememorar os acontecimentos que o levaram a escrever a obra e aqueles indivíduos que tiveram papéis importantes em sua publicação. O autor credita a inspiração para compor o livro foi a viagem que fez ao interior paulista, percorrendo várias cidades, em 1923. “Era a força da Pátria, a explodir convidando o Homem Brasileiro a aproveitá-la. Era a imagem de nossas potências anímicas, que deveriam ser captadas e dirigidas no sentido dos grandes ideais. Meu pensamento tomava corpo. O livro ia nascendo” (SALGADO, 1957 [III], p. 361-362). Além da dessa viagem havia a vida na cidade, que refletia uma das bases do livro, o choque entre a cidade e o campo. Dos amigos que o cercavam ele coloca em destaque Raul Bopp, Cassiano Ricardo, Mário Graciotti, Manuel Mendes, Gabriel Marques, Plínio Melo, Augusto Frederico Schidt, Menotti del Picchia, Mota Filho e Alfredo Elis.

O estrangeiro foi considerado por alguns críticos como o principal romance produzido no Brasil nos anos 1920, com o crítico literário Wilson Martins (MARTINS, 1983). Como aponta José Eliseu de Barros, na fase inicial do modernismo predominava a poesia. (BARROS, 2006, p. 11) De acordo com o próprio Salgado, o modernismo tinha grandes expressões na área da poesia, contudo, não haviam intelectuais que produzissem obras em prosa, ou seja, romances modernistas.

Estávamos em plena revolução literária e artística. Até aquele momento, muito se discutia, mas nada ainda se havia realizado em prosa moderna. A produção do modernismo era exclusivamente poética revelando-se em valores da estirpe de Menotti, Guilherme, Ronald, Mário de Andrade, Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, Tasso da Silveira, os grupos de Belo Horizonte e de Cataguazes. Os prosadores continuavam a escrever em forma e estilo velhos, embora arremetendo contra estes. Não saíra ainda um romance representativo dos anseios renovadores da geração. (SALGADO, 1957 [III], p. 368).

Logicamente O esperado, para Salgado, foi essa obra que iniciou a prosa dentro do modernismo, que não apenas seria o principal romance modernista, como a base da

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futura AIB. “Estava lançado, com ele, um grande movimento nacional, que mais tarde se corporificou na Ação Integralista Brasileira” (SALGADO, 1957 [III], p. 373).

De acordo com Barros a poética futurística é a base estética nesta obra modernista de Plínio Salgado. (BARROS, 2006, p. 57)

No romance O Estrangeiro a identidade é total. A poética futurística era o modelo estético a ser seguido por Plínio Salgado em determinado momento de sua obra. Também outros modernistas brasileiros receberam forte influência da vanguarda européia que em nada se adequara ao contexto nacional onde a modernização se estabelecia.

Não faremos uma ampla análise da obra, porque outros autores já o fizerem, apenas gostaríamos de ressaltar alguns pontos, que auxiliarão em nossa análise.

O romance é dividido em três partes: “A terra do saci”, “O boitatá” e a “Cabeça da mula sem cabeça”. Cada um dos capítulos recebe o nome de uma figura da mitologia brasileira. No primeiro o “saci”, que possui características das três raças que compõe o povo brasileiro: o indígena, o africano e o europeu. Surgiu entre os indígenas na região das Missões no Sul do Brasil, no norte do país com influência africana foi transformado em um negro que perdeu uma perna lutando capoeira, também herdou o pito, uma espécie de cachimbo da cultura africana. Do europeu, herdou o píleo, uma espécie de gorro, que era usado tanto por gregos como romanos em solenidades. Era um símbolo de liberdade. No segundo, o “boitatá”, que seria uma cobra de fogo que protegeria as matas contra aqueles que a incendeiam, sua origem é indígena. Por fim a “mula-sem-cabeça”, representada, logicamente por uma mula sem cabeça e que relinchava e soltava fogo pelas ventas. É um mito brasileiro sem origem definida, está vinculado ao imaginário católico brasileiro, segundo uma mulher que seduzisse algum membro da Igreja Católica, principalmente padres, seriam transformados nesse ser.11

Acreditamos não haver necessidade de fazer uma descrição da obra. Retiraremos apenas alguns elementos que auxiliem em nossa análise. Por essa mesma razão nos deteremos apenas na primeira parte, pois é nesse momento pode-se analisar a questão sobre a visão da brasilidade de Plínio Salgado: os problemas sociais e raciais, a oposição entre “serão” e “litoral”, a modernidade, o nacionalismo, a religiosidade que aparece em pequenas referências, mas que está sempre presente. Ou seja, elementos do seu pensamento, que estarão na futura AIB, mas que já estão aqui nesse momento presentes de forma embrionária nesse romance social.

Nessa primeira parte “A terra do saci”, Salgado apresenta os diversos personagens – junto com suas personalidades e elementos de sua origem social e racial12. Aqui podemos

11 Tipografia das lendas retiradas da enciclopédia virtual Wikipedia (www.wikipedia.org). Acessado em 16 de fevereiro de 2007, às 9h.

12 Utilizamos o termo “racial” e não “étnico”, pois o autor faz questão de ressaltar as diferenças “raciais”. Ou seja, a

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fazer uma relação com o saci, figura de nossa mitologia que simboliza a congregação de várias características étnicas da composição brasileira.

Em torno do personagem central, Ivan, um imigrante russo, que segundo o próprio autor é “a figura culminante do livro. Síntese de todos os personagens. Consciência de todos os males. Ação norteada por um idealismo ‘a priori’ anulada pelos ceticismos cruéis, em face do utilitarismo ambiente e do preconceito esmagador. Pletora de personalidades contrastantes e incapazes” (SALGADO, 1926, p. 8). É através da fala desse personagem que apresenta a sua visão de sociedade:

- As instituições americanas repousam na rocha viva dos direitos do Homem. Quando desabar o dilúvio russo, as suas últimas ondas virão morrer aqui, de encontro com as paredes de Imigração, onde há um dístico, à maneira de sentença, a encimar um arco de triunfo. E a América, então, reconstruirá o que estiver destruído no mundo.Distraia-se olhando a noite. Mas o seu pensamento voltava:- Aqui, sem prerrogativas de nascimento, sem brasões nem escudos de armas, efetiva-se o ciclo da evolução social. O homem entra pela porta da escravidão e sai pela da opulência. E apenas os fracos sucumbirão na luta, em que se forja o Deus-Ciclope-Indivíduo. (SALGADO, 1926, p. 19)

É interessante notar que nessa citação dois pontos centrais da pregação ideológica da futura ideologia integralista: a união das raças e miscigenação (“as paredes de Imigração”) e o “fantasma” do comunismo (“quando desabar o dilúvio russo”).

A sociedade apresentada pelo autor é composta por dois grupos raciais: o caboclo (miscigenação entre o índio, o africano e o europeu) e pelo europeu (colonos europeus e fazendeiros luso-brasileiros).

Os caboclos constituiriam a expressão pura da brasilidade para Plínio Salgado, mas que estariam diminuindo e perdendo a sua identidade diante da “invasão” européia.

Ivan queria ver um caboclo autentico. Contou-lhe um amigo que eram raros. Quase todos estavam no sertão. Poucos ficaram nas redondezas, cantando a viola, empalamados.Alguns, - pequenos agricultores, taverneiros, carreadores ou peões, exceção feita ao Zé Candinho -, andavam por ali, mas guardavam poucos traços do caboclo genuíno, ou antes, eram uma expressão inferior do caboclo.O legítimo, esse prosseguia a sua faina, rumo das brenhas, afastando-se da onda absorvente dos estrangeiros.Dizia exaltado, num largo gesto:- Caboclo, Hércules em fuga, a rebentar portas de bronze! (SALGADO, 1926, p. 29)

Aqui podemos observar outro traço do pensamento de Salgado e que terá bastante destaque na futura AIB, a relação entre o “sertão” e o “litoral”, onde o primeiro manteria a pureza do “espírito brasileiro” e o segundo por onde chegaria a influência estrangeira, que corromperia a “brasilidade”. questão racial é muito importante para o autor, por isso mantivemos o termo utilizado por ele.

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Os colonos (principalmente ele ressalta os imigrantes italianos) trariam com eles o trabalho e a modernidade. Enquanto os fazendeiros, os luso-brasileiros, garantiriam a manutenção dos valores sociais e dos velho costumes, estes que entrariam em conflito com a nova onda de modernidade, demonstrado no livro pelo “ciclo ascendente do colono (os Mandolfis [família de imigrantes italianos]); ciclo descendente das raças antigas (os Pantojos [tradicional família de luso-brasileiros]).” (SALGADO, 1926, p. 7) Ou seja, um choque entre o velho e o novo.

Na trama, os elementos sociais e raciais entram em conflito, que são apresentados através do preconceito, tanto racial: “Carmine Mandolfi [imigrante] não via com bons olhos a pretensão do Zé Candinho [caboclo]. A sua irrevelada aversão ao mameluco ficava no fundo subconsciente, entre consideração e desprezo” (SALGADO, 1926, p. 72-73). Também pela econômica e política: “- Esses estrangeiros, concluiu, chegam aqui com uma trouxa às costas, e logo são fazendeiros, prefeitos, delegados, chefes políticos. Deprimem os brasileiros e, no caminho que vamos, não tardará o dia em que seremos súditos de Vitor Manuel” (SALGADO, 1926, p. 84).

O conflito é resolvido através da concepção de miscigenação entre a cultura européia e a brasileira, onde Salgado, através do seu personagem Ivan, apresenta seu ponto de vista:

Ivan dizia a Floriano:- Realmente, a moeda do imigrado está nas suas veias. Em compensação, os povos que assim pagam à terra o preço da vida, compram a vida eterna. Que hoje é a faixa de terra de onde partiram os navegantes de Sagres? Um casco de navio, mordido de ferrugem, que encalhou na História. Mas Portugal viverá sempre deste lado do oceano, porque se fez a eucaristia da terra bárbara.Pantojo entrou na conversa:- Portugal explorou o Brasil, sem senhor!E Martinho acolitou:- Isso, coronel! Muito bem!Floriano explicou:- O que Ivan quer dizer eu entendo: os reis portugueses levaram o ouro, mas pagaram com sangue e alma do seu povo> O proveito material...E Ivan concluiu:- Por isso, digo: o ideal de “italianidade” é uma ilusão de ótica dos que ficaram na Itália. E refiro-me à concepção de “italianidade” adotada por “Dante Alighieri”, que é uma instituição obcecada e impertinente. Os que aqui estão são glóbulos da Pátria Nova, em que Itália será eterna, como Portugal. (SALGADO, 1926, p. 85-86)

Aqui aparece uma concepção de nacionalismo, este que já havia ficado latente nas reflexões do personagem Ivan sobre o “novo” e “velho” mundo. “Pensava, ao embarcar para a América, viesse matar a sede de liberdade que requeimava as entranhas do seu povo. Mas a liberdade no Novo Mundo era uma relação de equilíbrio, uma expressão intermédia, que não desalterava o homem secularmente comprimido pela laje do despotismo.” (SALGADO, 1926, p. 51)

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Além desse nacionalismo regado pelas reflexões de Ivan, sobre o velho e novo mundo e suas ponderações sobre a miscigenação dos povos dentro da “Pátria Nova”, o autor apresenta o seu traço ufanista. Através do personagem Juvêncio, um professor primário, apresentado por ele no prefácio do livro “o nacionalismo latente corporificado no mestre-escola” (SALGADO, 1926, p. 7). É o personagem que ensina as crianças os valores nacionais:

As crianças das Escolas Reunidas eram filhos de italianos, espanhóis, japoneses, sírios, mulatinhos espertos puxados ao português. Cantavam o Hino Nacional e respondiam na ponta da Língua, se lhes perguntavam – quem descobriu o Brasil?- Foi o almirante português Pedro Álvares Cabral. (SALGADO, 1926, p. 30)

O mesmo Juvêncio – provavelmente um Alter Ego do escritor – emociona-se diante dos símbolos nacionais.

A bandeira flutuava – palpitante cabeleira – na ponta do caule esguio, que era um homem comprido e entusiasmado.O gavião no alto – pinhé! Pinhé! – descrevia grandes círculos azuis. E as vozes afinadinhas: Ouviram do Ipiranga as margens plácidas de um povo heróico o brado retumbante...Juvêncio vibrava. Nem uma nota fora do compasso! Eram unisonas, como saídas de uma só boca, de um só peito, de um só coração. (SALGADO, 1926, p. 30-31)

Também é através desse personagem que Plínio Salgado apresenta a sua noção sobre política e os partidos políticos, muito semelhante ao que aparecerá nos escritos dele na década seguinte, já convertido em líder integralista. Na fala de Juvêncio:

- Não é admirável o fato de não termos partidos. Não há partidos sem povo e, em São Paulo, ainda não há povo, mas elementos em combate para a fixação da coletividade tipo. Nossa consciência não se orienta ainda num sentido definitivo. Adiantamos, pois, o problema das idéias para quando tivermos resolvido o do progresso material, da organização econômica, sobretudo o do predomínio de um dos determinados cursos das correntes raciais. Precisamos de estradas, de escolas. Todo o sentimento de divergência partidária, resto do antigo caráter, que apenas provisoriamente, se expressara, será antecipação desastrosa.

O romance social O estrangeiro marca um momento de inflexão na obra modernista de Plínio Salgado. Suas preocupações passam da produção e análise literária para um discurso que ultrapassa o âmbito das artes e assume proporções de pregação política. Ainda sob efeito dessa obra publicou “A anta e o curupira”, surgido de uma palestra que ministrou nas dependências do jornal Correio Paulistano. Nessa ocasião recebeu de seus amigos uma placa de bronze pelo fato de ter editado o romance. No corpo do texto, vários temas que aparecem dentro da fala e das ações de seus personagens (que também eram elementos do pensamento do autor) são apresentados de forma didáticas, marcados pelo “pragmatismo” de Plínio Salgado. Aqui o nacionalismo sobressaiu-se como elemento central, inclusive sendo o ponto inicial da palestra: “estes dias inquietantes

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que estamos vivendo no Brasil, exigem da nossa geração uma atitude sem precedentes. Chegou o momento de tomarmos uma resolução suprema: revestir-nos da coragem de nos confessarmos brasileiros (...)” (SALGADO, 1957 [V], p. 31).

Dividido em doze pontos didaticamente doutrinários, o texto abrange vários aspectos da “nacionalidade” e do “nacionalismo”, que deveria, dentro da visão de Plínio Salgado, ser o ideal que deveria ser alcançado por todos os brasileiros. Para ele a “Pátria” era uma “fatalidade humana”. Dessa forma, “quem se libertar da Pátria, fazendo desta apenas um objeto curiosos de estudo, tornar-se-á o escravo mesquinho de todas as outras pátrias” (SALGADO, 1957 [V], p. 32). O nacionalismo dentro de sua concepção era uma forma de libertação do jugo externo: “Eximidos do que chamamos ‘os prejuízos do preconceito nacionalista’ eis-nos optando pelos prejuízos de arbítrios exteriores, puramente pessoais. Somos postos à venda, a retalhos, no bazar cosmopolita” (SALGADO, 1957 [V], p. 32).

A arte fica, nesse texto em segundo plano, e aparece em apenas três dos doze pontos e mesmo assim, utilizados para ressaltar o caráter nacionalista das artes no Brasil. “É o velho refrão, desde o ‘dadaísmo’, que a arte corresponde a um estado de espírito. Acredito que nós, brasileiros, temos o nosso estado de espírito, que não é o dadaísta. Um estado de espírito é uma forma de ambientação. Nosso ambiente tem que ser brasileiro.” (SALGADO, 1957 [V], p. 42) Ainda, segundo ele:

Para não cairmos numa nova onda de falsa literatura, ou pesquisa literária burocrática – que é a feição predominante de grande parte da modernidade brasileira -, é necessário que nos integremos no Brasil. Pelo sentimento de brasilidade, não de patriotismo a priori. Esse sentimento tem raízes profundas na Nacionalidade porque provém da primeira raça que aqui viveu. O sangue negro, o português, o espanhol, o italiano, o alemão, o asiático, tudo aqui entrou, mas não o destruiu. Modificou-o para melhor (SALGADO, 1957 [V], p. 48).

A conclusão do texto mostra esse nacionalismo embrionário de Salgado em uma forma mais próxima do discurso integralista: o ufanismo, o providencialismo, o retorno às origens nacionais...

Mais do que um símbolo nacional, símbolo humano que supera a D. Quixote e todas as outras criações – o “Curupira” há de descer um dia do sertão, lá de onde está a voz que chama, acompanhado de seus milhões de pirilampos, escoltado pelas hordas das caititus e das capivaras, montando a anta, seu cavalo e totem da raça tupi, para a invasão das cidades e a grande revolução do pensamento nacional, de que somos batedores, destinados ao sacrifício. Só então, será proclamada a nossa independência, já claramente esboçada, e teremos uma arte humana e universal, possuindo uma política brasileira, com raízes profundas na terra americana e na alma da Pátria (SALGADO, 1957 [V], p. 53).

É interessante notar, neste trecho, a vinculação direta que Plínio Salgado faz entre a arte e a política. A política, que por sua vez vai acabar tomando espaço ainda maior na sua produção. E isso fica claro no manifesto O curupira e o carão escrito em

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conjunto com Cassiano Ricardo e Menotti de Picchia. O livro é divido em nove artigos, assinados pelos três autores, não possuiu um elo de ligação entre os textos, que em última análise é uma coletânea de textos cujo tema central é a arte e nacionalismo e a oposição a correntes modernistas opostas a esses ideais.

A obra foi publicada em 1927 pela editora de Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia, a Editora Hélios, cujas principais publicações eram a da “Coleção Verde-Amarelo”, voltadas a divulgação de sua “visão” modernista, que com O curupira e o carão tiveram o seu manifesto de oposição à corrente de Oswald de Andrade, “Pau-Brasil”. O manifesto segue uma ordem de guerra a Oswald de Andrade:

Em três correntes dividiu-se o grande rio [modernismo]: a de Mário de Andrade com, os extremistas; a do “Pau-Brasil” importado da França por Villagaignon e lavrado por Oswald de Andrade e a nossa Verdeamarela, que quer conter, vivas, a alma e a paisagem da Pátria.Se um espírito comum é o Deus tutelar das três igrejas, cada uma criou seu Evangelho e seu rito. A nossa está para a de Mario como a igreja católica para a grega ortodoxa. Oswald é o heresiarca, quase huguenote, a quem reservamos uma noite de São Bartolomeu... (PICCHIA, RICARDO, SALGADO, 1927, p. 14-15)

A arte nesse manifesto é o “campo de batalha” do nacionalismo e da nacionalidade. “O culto do país é uma conseqüência de processos inspirados num ideal muito mais superior e humano. Arte é sinceridade. Nesta sinceridade vão os tons fortes do sangue e da terra. Portanto, toda obra de arte é nacionalista” (PICCHIA, RICARDO, SALGADO, 1927, p. 41).

Nesse livro os três autores apresentam as bases do pensamento em comum que têm do que deve ser a arte e do que é o nacionalismo. Suas oposições às correntes inimigas, principalmente no tocante a influências externas, que levariam a uma dependência de nossas artes. Aliás esse é um dos temas mais recorrentes.

Nas palavras de Menotti del Picchia:

A nossa estética é de reação. Como tal é guerreira. O termo futurista, com que erradamente nos etiquetaram, aceitamo-lo porque era um cartel de desafio. Na geleira de mármore de Camarra do parnasianismo dominante, a ponta agressiva dessa proa verbal estilhaçava como um aríete. Não somos, nem nunca fomos “futuristas”. Eu pessoalmente abomino o dogmatismo e a liturgia da escola de Marinetti. Seu chefe é para nós, um precursor iluminado, que veneramos como um general da grande batalha da reforma, que alarga seu “front” em todo o mundo. No Brasil, não há, porém, razão lógica e social para o futurismo ortodoxo, porque o prestígio do seu passado não é de molde a tolher a liberdade de sua maneira de ser futura. Demais, ao nosso individualismo estético, repugna a jaula de uma escola. Procuramos, cada um atuar de acordo com o nosso temperamento, dentro da mais arrojada sinceridade (PICCHIA, RICARDO, SALGADO, 1927, p. 20-21).

Para Cassiano Ricardo haveria uma grande divisão entre as correntes nacionais

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e as adversárias, que sofrem influências externas, ou seja, em seu pensamento também é voltado, assim como Salgado, para a questão do “sertão” e do “litoral”.

Dentro de nossa originalidade como povo livre é que nós da taba verdeamarela procurando a melhor forma de expressão para revelar o Brasil. Os outros também, não há dúvida. Mas há uma diferença enorme de processos e de atitudes. [...] O caso, entretanto, é que eles, a começar pelo começo estão errados: olham o nosso país visto do litoral; nós procuramos olhá-lo, visto do centro. Quando querem descobrir o Brasil, metem-se a procurá-lo nos livros (os que não foram à Europa) ou vão achá-lo na “rue de la Paix” (os que passeiam a sensibilidade displicente a bordo dos transatlânticos). Ao passo que nós, quando queremos certificar-nos da nossa existência e da nossa originalidade, enveredamos pelo país a dentro. [...] Os nossos adversários são adeptos da cultura importada e das receitas de inteligência: são dadaístas, futuristas, expressionistas, cubistas, impressionistas, principalmente francesistas; nós não. O que propugnamos é a criação de uma cultura nossa, viva e intelectual. Americana e brasileirista (PICCHIA, RICARDO, SALGADO, 1927, p. 47-48).

É interessante o traço de Ricardo no tocante a leitura dos adversários e sua oposição em estilo e prática. Pelo menos é o que propunham. Como um manifesto de oposição, Oswald de Andrade é o principal adversário, e é combatido principalmente por Plinio Salgado.

A poesia do Oswald de Andrade é muito gostosa, mas é servida à francesa. Pega daqui um elemento, pega outro, e vai fazendo pratinhos de estilo com ingredientes da terra. É fragmentária como experiências. É muito mais registro de nativismos, material que vai juntando. Há um grande mérito no Oswald. A sua pesquisa é paciente como a dos dicionários de regionalismos, de idiotismos. Essa sua ocupação deveria levá-lo para a Academia. Quando a forma brasileira se cristalizar no futuro Silogeu, ele será o patrono de uma cadeira (PICCHIA, RICARDO, SALGADO, 1927, p. 74).

Logicamente a corrente de Plínio Salgado defenderia o oposto:

A nossa Academia Verde Amarelo é constituída de espíritos anti-acadêmicos. Quer dizer que é justamente o contrário de uma academia. A primeira condição para fazer parte é não ser literato. A segunda é divergir dos companheiros, e nisto estamos todos de acordo. A terceira é mandar às favas a Europa, desde Racine a Cocteu. A quarta é ser brasileiro nato,eleitor, maior de idade. [...] Quer dizer o cidadão tem que ser brasileiro (PICCHIA, RICARDO, SALGADO, 1927, p. 75).

Nessas duas citações de Plínio Salgado fica latente outra característica da futura AIB, uma oposição sempre marcada pela contraposição direta ao inimigo, em um embate que tem dupla função: a oposição propriamente dita e uma “demarcação de território” através de uma definição de identidade. Nesse ponto voltaremos mais adiante, quando analisarmos a questão da contraposição entre aliados e inimigos integralistas, no quinto capítulo dessa tese.

Fica nítido em uma análise desse manifesto que a tomada de posição dentro do

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modernismo para os verdeamarelos de Salgado, Picchia e Ricardo, é política e marcada por um embate ideológico nacionalista. Já está presente não apenas nos escritos de Plínio Salgado, como em seus dois companheiros. Contudo é Salgado que tenta definir, ou pelo menos corporificar o pensamento dessa corrente modernista através da vinculação entre arte e política. Aliás, que é o tema central de outro de seus estudos teóricos Literatura e Política, de 1928.

A obra é dividida em artigos, semelhante ao Curupira e o carão, não possui uma vinculação orgânica entre eles. Nesse texto ele vai pregar um papel militante dos literatos na sociedade, engendrados pelo caráter nacionalista. “É fácil compreender toda a extensão das conseqüências da destruição dos ídolos literários do Passado. Chegou o momento da intelectualidade brasileira influir decisivamente nos destinos do país, como aconteceu na Rússia, com Dostoiewsky, Tolstoi, Máximo Gorki, Turgueneff, Kroprotckine [...]” (SALGADO, 1957 [VI], p. 30).

Nesse texto o pensamento de Salgado já está bastante cristalizado. As críticas a Oswald de Andrade e seus “comparsas” seguem o mesmo padrão de O curupira e o carão, contudo as críticas ao comunismo, ao liberalismo e ao imperialismo atingem um ponto muito semelhante ao que vai ser a futura AIB.

Como podemos observar nos trechos abaixo. O primeiro deles sobre o imperialismo:

Abatida a doutrina imperialista nos domínios das relações internacionais dá-se, por assim dizer, um fenômeno geológico no equilíbrio moral dos povos. A submersão de um continente de idéias políticas corresponde, na humanidade contemporânea, ao surgimento de um continente novo: instintos comerciais inconfessáveis, consolidando-se em princípios econômicos (SALGADO, 1957 [VI], p. 62).

Junto às criticas ao sistema liberal baseado no sufrágio universal apresenta suas reticências:

O sufrágio universal dá ao patrão dá ao patrão e ao operário a faculdade de depositar, nos comícios de que saem eleitos os dirigentes e legisladores [...] Todos são iguais. Cada voto é a “unidade”... A organização das elites dirigentes, por processos seletivos, torna-se impossível na prática, em conseqüência do preconceito democrático da igualdade de direitos. Origina-se desse fato, nova burla, que tende a agravar-se cada vez mais, à proporção que os idealistas utópicos, fundamentados no princípio da Revolução Francesa. [...] A igualdade dos direitos políticos é o controle da liberdade num sentido meramente teórico, liberdade essa abandonada às suas próprias leis existenciais, nas contingências pragmáticas da vida econômica (SALGADO, 1957 [VI], p. 62-63).

Ainda sobre o liberalismo: “Que rumo devem seguir os países novos, como o Brasil? Se pretendemos empreender a defesa da democracia, em face das prementes realidades econômicas dos povos, devemos colocar o problema sob o ponto de vista retardatário do

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liberalismo dos nossos partidos oposicionistas?” (SALGADO, 1957 [VI], p. 64-65)Essa pergunta surge diante de dois “problemas” pela lógica de Salgado para os

males europeus, que afligiria os povos americanos “fascismo” e “comunismo”. “Aparecem duas tisanas para as doenças da Europa; o comunismo e o fascismo. Ambos materialistas, decretam a falência da democracia: ou triunfa o imperialismo econômico baseado no ‘nacionalismo’, no ‘fascismo’, na ‘ditadura militar’; ou vence o imperialismo político da Terceira Internacional” (SALGADO, 1957 [VI], p. 64). O que é bastante interessante desse trecho é o fato do fascismo ser apresentado como uma vertente do materialismo e vinculado ao imperialismo. Nota-se, aqui, que o futuro líder da AIB ainda não está convencido das “benesses” do fascismo, que virá apenas com a sua viagem à Europa três anos mais tarde, contudo, a sua leitura sobre o comunismo segue o mesmo padrão da década seguinte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para finalizar gostaríamos de fazer algumas ponderações sobre a produção modernista de Plínio Salgado. Em primeiro lugar gostaríamos de ressaltar o fato de vários elementos do movimento integralista já se fazem presentes no pensamento de Salgado nos anos de 1920. Isso fica claro em uma leitura mais aprofundada de seus textos. Mas, em segundo lugar, dentro dessa mesma leitura fica claro não são esses elementos que são fundamentais para o lançamento da AIB. Falta o elemento aglutinador no seu pensamento. E esse virá apenas na década seguinte, na viagem que Salgado fez à Europa, onde conhecerá a experiência fascista. Nesse ponto concordamos plenamente com Hélgio Trindade, que desde os anos 1970 afirma que o fascismo é esse elemento central para a AIB.

Aqui gostaríamos de tomar uma posição, que talvez seja um pouco controversa, pois acreditamos que os pontos básicos da formação política de Salgado que vão surgindo tanto na sua formação jornalística, como literária, entram em anacronismo com a sua própria atuação política. Porque afirmamos isso? Vamos nos prender a uma leitura pontual dos elementos básicos que surgem em seu pensamento na década de 1920: aversão ao liberalismo e ao sistema político partidário; anti-imperialismo (anti-capitalismo no que se refere ao ingresso de capital externo, pois não apresenta criticas ao capitalismo nacional); apelo religioso; anticomunismo e anti-materialismo, e principalmente um nacionalismo ufanista, exacerbado e também xenofóbico, oposição entre “sertão” e “litoral”.

Não seriam anacrônicos se Salgado não estivesse imerso dentro da estrutura liberal do Partido Republicano Paulista e que toda a sua produção se deve aos contatos que fez (como Menotti e Ricardo) como redator do órgão oficial do Partido Republicano Paulista (PRP). Ou seja, as idéias que ele defendia eram exatamente opostas àquelas

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que ele, enquanto funcionário do Partido era obrigado a defender e aceitar. Também devemos levar em conta que Plínio Salgado chegou a se eleger deputado estadual pela agremiação, e não nos anos iniciais de sua formação e sim no período entre 1928 e 1930, que observamos em sua produção intelectual que seu pensamento já está bastante “amadurecido”. Como explicar que um membro do principal partido vinculado a mais poderosa oligarquia do país sendo contra ao liberalismo e ao sistema partidário? Como entender que um membro do partido que garantia a manutenção da sua força na supervalorização do seu produto (café) em detrimento de toda a produção das outras unidades da federação, fosse um ferrenho nacionalista?

Aí encontramos o anacronismo, na oposição entre discurso e prática. Pelo menos nos anos de 1920. Já na década seguinte, devido ao declínio das oligarquias com a Revolução de 1930 e sua experiência com o fascismo ele entra em um consenso entre sua atuação e pensamento, através do jornal A Razão, fundado em 1931 e que serviu para aglutinar seguidores dentro do pensamento nacionalista que desenvolveu em seu período modernista, acrescido da experiência fascista que presenciou em sua viagem à Itália em 1930.

Finalizando, gostaríamos apenas de ressaltar que não podemos afirmar que o integralismo já estava gestado apenas na produção literária na década de 1920. Eles são fundamentais, sem os quais a AIB não existiria, mas é o caráter fascista da década seguinte que vai dar uma coesão a esse pensamento de Plínio Salgado13.

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FAUSTO, Boris (Org.). História geral da civilização brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro:

13 No pós-guerra, os integralistas fizeram de tudo para desvincular a antiga AIB com o fascismo. Por isso buscaram “reconstruir” a imagem do antigo movimento, buscando “compreender” os elementos “nacionais” do pensamento de Salgado e a suas influências de autores brasileiros. Assim se apegavam a esses escritos da década de 1920, em que alguns dos elementos da futura AIB já se faziam presentes, e reeditavam textos publicados no período da AIB retirando ou reescrevendo trechos em que aparecia a citações que pudessem ser compreendidas como fascistas. Ou seja, tentavam apagar o principal elo de ligação do movimento integralista, o seu caráter fascista.

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A Campanha da Legalidade em São Sepé a partir de memórias.

Tamiris carvalHo1

carlos HeNriqUe armaNi2

RESUMO: Este artigo faz parte da monografia de Especialização em História do Brasil da Universidade Federal de Santa Maria, onde objetivou-se abordar como a sociedade sepeense ainda guarda em sua memória coletiva o papel desempenhado por Leonel de Moura Brizola. Foram utilizados como fontes os depoimentos de pessoas que vivenciaram este momento histórico, fosse participando do movimento ou não, bem como o cruzamento com referências bibliográficas pertinentes para a pesquisa. Obras que tratam de memória como, Écléa Bosi, Maurice Halbwachs Michael Pollak entre outros. Em se tratando do contexto e do movimento da Legalidade foram essenciais para o trabalho as obras de Jorge Ferreira, Joaquim Felizardo entre outras. Percebemos que a sociedade sepeense ainda tem muito presente a memória deste movimento e que os apoiadores e opositores ainda se reconhecem em meio a sociedade.

Palavras- chaves: memória; sociedade sepeense; Campanha da Legalidade

Keywords: memory; society sepeense; Campaign for Legality

A MEMÓRIA, A HISTÓRIA POLÍTICA E O TESTEMUNHO ORAL.1.

Para tratarmos da memória brizolista em São Sepé durante a Campanha da Legalidade, precisamos abordar a renovação que a História Política teve a partir de 1970, que nos permite utilizarmos novas fontes e novos objetos.

René Remond (1994) e Jacques Julliad, (1974), possibilitaram o alargamento do campo da história política, devido à interdisciplinaridade, pois eles utilizaram-se de outras áreas do conhecimento para se ter uma melhor compreensão da mesma. Ampliou-se o entendimento do político que pôde ser compreendido como o comportamento dos cidadãos responsáveis por seus rumos. A história do político recebeu influências da psicologia social, da ciência política, da linguística e da filosofia, sendo que o seu casamento com a antropologia trouxe à luz uma história dos costumes. Como se percebe, houve uma mudança na forma de pensar história, com novos objetos de estudo, que não apenas os

1 Acadêmica do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Email: [email protected]

2 Professor Adjunto do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria– UFSM. Email:[email protected]

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fatos políticos tradicionais ligados ao Estado, brindando-lhes um olhar diferenciado.Essa nova abordagem da História Política nos permite trabalharmos com a

memória e a história oral a qual “história oral é um método de pesquisa que privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma de se aproximar do objeto de estudo” (ALBERT, 1989, p. 18). Como consequência, o método da história oral produz fontes de consulta (as entrevistas) para outros estudos, podendo ser reunidas em um acervo aberto a pesquisadores.

Em se tratando de memória, Michael Pollak (1992, p. 02) nos coloca que “a priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente intimo, próprio da pessoa”. Pollak (1992, p. 02) ressalta ainda que “podem existir acontecimentos regionais que traumatizaram tanto, marcaram tanto uma região ou um grupo, que sua memória pode ser transmitida ao longo dos séculos com altíssimo grau de identificação”. O que vem ao encontro de como nosso trabalho, visto que abordará como a sociedade sepeense ainda guarda uma memória coletiva como a população sepeense atuou durante a Campanha da Legalidade.

Pollak (1992), ainda acrescenta que “a memória é um fenômeno construído social e individualmente, quando se trata da memória herdada, podemos também dizer que há uma ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de identidade”. Percebemos, então, que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletivo, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si. Os nossos depoentes criaram uma identidade a qual eles se reconhecem entre si, pois ao longo das perguntas eles citavam o nome de seus companheiros porque há uma identificação entre eles. Os entrevistados tinham necessidade de relatar como se deu a relação com Brizola e São Sepé.

A ligação de Brizola com São Sepé deveu-se à amizade que havia com o Senhor Leôncio Silveira como foi relatado por José Maria Picada, “Dr. Leôncio era um destacado militante trabalhista político sepeense, de quem foi contemporâneo de escola de Brizola, facilitando assim para que algumas obras importantes acontecessem em São Sepé” como a construção de escolas rurais estaduais do Cerrito do Ouro, Mata Grande, Vila Nova do Sul e Jazidas, quando Brizola era secretário no governo de Ernesto Dornelles.

O Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) surgiu em São Sepé na década de 1950 onde visava à valorização do trabalho frente à ação do capital, preservando os direitos dos cidadãos para que os praticantes dos dois segmentos, no exercício da atividade produtiva do país e da sociedade, caminhassem lado a lado, respeitando-se mutuamente (PICADA, 2012).

Conforme José Maria S. Picada:

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o número de participantes ativos, no começo era pequeno, dentre os pioneiros podemos destacar Dirceu Paulino Brum, José de Castro, Júlio Freitas Santos, Júlio Vargas, José Luiz Cunha Porto, dentre outros. Os participantes dos outros partidos de conduta conservadora menosprezavam e procuravam ridicularizar os trabalhistas por serem poucos, em São Sepé. Taxavam-nos de “o grupo da carrocinha”, justamente pela condição de que caberíamos todos dentro de uma simples carroça.

Em São Sepé havia o Partido Libertador (PL), a União Democrática Nacional (UDN), o Partido Social Democrático (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Conforme Rogério Vargas a UDN era quem determinava os rumos das eleições:

A UDN tinha um determinado número de votos e esta se alternava, às vezes, fazendo parte desta coligação do PL e PSD, e outras vezes mudando de lado e apoiando o PTB. Quando a UDN mudava de lado o PTB ganhava a eleição, porque naquela época não havia eleitores que migrassem de partido, então a diferença de votos em São Sepé era de 200 a 300 votos e a UDN era quem determinava as eleições.

Em 1959 os trabalhistas conseguiram eleger o vice-prefeito, pois, na época, os candidatos concorriam em chapas distintas, possibilitando eleger candidatos diferentes. Túlio Farias Brenner elegeu-se prefeito pelo PSD e Júlio Vargas que era vereador pelo PTB, então vice-prefeito.

Durante a campanha política para governador do estado em 1958, Brizola esteve em São Sepé e região realizando comícios como foi relatado por nossos entrevistados. Rogério Vargas lembrou que:

a vinda do Brizola como candidato. Ele esteve em Restinga Seca, nós fomos a Formigueiro porque meu pai fazia parte da executiva do partido e o Brizola iria encerrar o comício em São Sepé. Nós saímos daqui logo depois do meio-dia, a chegada do Brizola era prevista para seis horas da tarde em Formigueiro, mas ele chegou lá pelas dez da noite, fez um comício no clube, falaram os candidatos a deputado na região e depois saíram em direção a São Sepé, onde houve um comício muito grande na esquina do Peixoto que estava em construção, por volta da meia-noite, onde foi ovacionado pela população. Mas ele perdeu a eleição em São Sepé, porque aqui havia um reduto conservador, com pouca margem, mas perdeu a eleição.

O senhor Crespiniano de Souza Aires relatou que:

Em 1958 trabalhou nas eleições para o Brizola, trouxe o meu irmão e um primo meu que tinha 18 anos para fazer o título eleitoral e qualificar. O Brizola veio num comício na Praça Saldanha Marinho em Santa Maria, nós estávamos lavrando com boi na lavoura e eu disse para os guris vamos largar os bois e vamos para o comício do Brizola.

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Nesses dois depoimentos, é possível perceber uma “memória a um só tempo individual e coletivo e que pode ser percebida entre indivíduos, considerados sujeitos do conhecimento e da ação política” (SANTOS, 2003, p. 20). Essa memória coletiva dos entrevistados tem vínculos com o passado, com as experiências transmitidas e negociadas, experiências essas em que eles participaram como atores políticos naquele momento histórico.

Em se tratando da memória do Brizola quando havia sido prefeito de Porto Alegre em 1955, Jarbas Moreira relatou que:

Quando elegeu-se prefeito de Porto Alegre fez um governo exemplar, o Brizola por sua visão de estadista, um homem que estava a frente de seu tempo ele sabia que tinha que construir uma trincheira de resistência contra a exploração internacional para conseguir a independência social, política e econômica do Brasil. Ele acreditava muito no rádio e como prefeito tinha um programa sexta-feira na rádio Farroupilha ali ele começou como um clarim despertando consciência, explicando causas e consequências.

Brizola possuía um carisma inquestionável, o que acabava por aglutinar seguidores, apesar de alguns dizerem-se brizolistas, mas em alguns momentos discordarem das suas decisões. Em São Sepé, como percebemos nos diferentes relatos, a população reuniu-se para o comício. Conforme Marli Baldissera (2003, p.40 ) Brizola tinha “uma grande capacidade de comunicação com as massas trabalhadoras, por falar uma linguagem simples e entendível pelo povo”. Para José Pires “ele tinha um jeito de cativar o povo humilde que era grande parte do eleitorado”.

No plano nacional, Jânio Quadros e João Goulart eram presidente e vice-presidente, respectivamente, eleitos em 1961 e Leonel de Moura Brizola era então governador do estado do Rio Grande do Sul eleito em 1959. Em agosto de 1961, Jânio Quadros renunciou a presidência da República e pela Constituição quem deveria assumir seria o vice-presidente neste caso Jango que neste momento encontrava-se na China. Durante o seu curto mandato “Jânio passou a se tornar uma afronta para a cúpula que o elegeu” (AMARAL, 1986, p.36) então em agosto de 1961 renunciou a presidência da República.

Segundo Andréia Rezende Peres Janes (2007):

O relacionamento do vice com o presidente da República não era muito afinado, primeiro porque Jânio Quadros ajustava sua política econômica de acordo com as recomendações do Fundo Monetário Internacional (FMI) e, segundo, porque tinha escolhido para os ministérios militares pessoas do grupo antivarguista. No entanto, a perda do apoio político da UDN levou o presidente Jânio Quadros a reestruturar a economia, aprofundando a política externa independente e o apoio ao desenvolvimentismo. Essa mudança possibilitou uma aproximação entre o presidente e seu vice. Mesmo assim, apesar desse recente entrosamento, a renúncia de Jânio Quadros pegou Jango de surpresa em sua visita à República Popular da China em 25 de agosto de 1961 (p. 16).

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A notícia da renúncia do presidente surpreendeu a todos “o povo perde a noção de tudo que o cerca. À sua frente caminhos que se cruzam. Encruzilhadas ameaçam os caminhantes. A indecisão impera, provocando uma enorme inquietação” (AMARAL, 1986, p. 41). Essa inquietação não foi diferente no interior do Rio Grande do Sul, em São Sepé nossos entrevistados relataram o clima de surpresa que foram acometidos ao saber da notícia.

O senhor Rogério Vargas, que na época era estudante, relatou que:

estava internado no Colégio Santa Maria com 17 anos, junto com uma rapaziada de São Sepé. Nós fazíamos a lição de casa numa sala onde tinha um rádio e quando nós entravamos para o estudo o padre desligava o rádio e nós entramos para a sala e já estava o Brizola conclamando a população a se incorporar a lutar, denunciando o golpe então ali eu fiquei sabendo e já gostava muito de política.

Para o senhor Odilon Vieira foi uma surpresa “ficamos sabendo pelo rádio e para nós foi um espanto, mas nunca imaginamos que iria eclodir a Legalidade”. Não foi diferente para o senhor José Maria Picada:

fiquei sabendo renúncia pela imprensa, o governo já estava em Brasília, a renúncia do Jânio estourou como uma bomba ninguém esperava, ele fez um manifesto. Até hoje ninguém explica direito a renúncia dele, uns dizem que ele renunciou para voltar como ditador, outros acreditavam que era um ato intempestivo dele.

Assim como o senhor Jacinto Corrêa relatou que:

A renúncia trouxe uma surpresa geral para o país, naquela época não existia televisão eram poucas as pessoas que tinham, mas nós ficamos sabendo pelo rádio, já vínhamos acompanhando pelo rádio as dificuldades que o Jânio Quadros vinha enfrentando porque ele vinha fazendo um governo interpessoal, não tinha diálogo com os demais, então ele foi perdendo o apoio dos ministros e dos partidos. Em minha opinião e de muitas pessoas, não sei se é verdade, mas dizem que ele pretendeu dar um golpe, ele renunciou com a intuição de ser reconduzido novamente e ficar como um ditador. O que ele queria era o poder absoluto, não queria compartilhar das decisões administrativas, então este foi o maior problema do Jânio.

A surpresa não foi diferente para o senhor José Pires que morava na zona rural de São Sepé:

Essa notícia por rádio foi uma surpresa enorme muito mais para quem votou nele, nós não tínhamos muita comunicação e tudo parecia muito calmo. O Jânio com umas ideias estranhas, algumas certas, outras causava surpresa em quem votou nele, mas, aquela renúncia foi uma surpresa enorme para partidários e para adversários.

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Com a renúncia do presidente Jânio Quadros, pela Constituição, quem deveria assumir a presidência da República seria o então vice-presidente João Goulart que se encontrava na China. Tão logo soube da notícia preparou-se então para o retorno ao Brasil. No dia seguinte, o Brasil estava em alerta não havia dúvida que os militares estavam armando um golpe para impedir a posse de Jango.

Os dias que se seguiram até a posse de Jango como presidente da República foram tensos, como veremos a seguir, com a mobilização da população em prol da Constituição que ficou conhecida por Campanha da Legalidade e teve como seu representante e mobilizador Leonel de Moura Brizola, que na época era governador do Estado do Rio Grande do Sul.

Conforme Jorge Ferreira (2005, p. 08) “a mobilização popular pela posse de João Goulart aproximou até mesmo inimigos e adversários. O Partido Libertador, opositor intransigente a Brizola, abandonou momentaneamente as desavenças e apoiou o governador naqueles dias”. Em São Sepé, ocorreu o mesmo sendo o PL a maior oposição ao PTB naquele momento apoiou o movimento como é possível constatar nas palavras do senhor Rogério Vargas:

todos os partidos aderiram e passavam o dia inteiro escutando o rádio e ao mesmo tempo os auto-falantes tocando bandas marciais e todas as noites tinha um ato cívico onde os oradores falavam de todos os partidos políticos porque houve uma unanimidade entre os partidos políticos e abriram um livro para quem quisesse lutar na defesa da Constituição, em apoio a Legalidade eu com 17 anos e outros mais contemporâneos nos alistamos. Nós só esperávamos a deflagração para partirmos.

A movimentação não fez parte apenas de Porto Alegre, mas sim de várias cidades do interior do Estado, dentre elas: Santa Maria, Pelotas, Soledade, São Leopoldo, entre outras. Porém, era necessário “por amplos meios de comunicação, disseminar ideias, imagens e representações que atingissem a dignidade das pessoas, incitando-as e mobilizando-as a ações e atitudes de rebeldia em grande escala” (FERREIRA, 2005, p. 06). Criou-se então a Cadeia Radiofônica da Legalidade onde a Rádio Guaíba teve seus microfones transferidos para o Palácio Piratini, já que as outras rádios como a Farroupilha, Difusora e Capital foram fechadas por transmitirem o manifesto de Brizola.

Conforme Odilon Vieira:

Durante a Campanha da Legalidade, o Brizola instalou no porão do Palácio Piratini a rádio e começou a transmitir a sua mensagem eu me lembro que o pessoal esperava com ansiedade o encontro com ele. Ele sabia dar conotação as palavras de forma que cativava então ele criava uma imagem do que queria dizer e isso era o que mais contagiava na Campanha da Legalidade, que não durou muito tempo para infelicidade nossa porque a toda hora havia uma possibilidade de uma guerra

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De acordo com Baczko, “a informação é recebida de forma contínua, diversas vezes por dia, englobando o planeta inteiro, conjugando os dados estatísticos com as imagens e afetando todos os domínios da vida social” (1985, p.313). Assim foram os dias que se seguiram, pois “os clamores de Brizola encontraram imediata adesão” a população aderiu ao seu pedido e, segundo Baczko, a imagens e sons acabaram afetando a vida cotidiana das pessoas.

Além disso, o poder carismático assenta em imaginários sociais que o grupo social projeta sobre o chefe carismático, “oferecendo ao grupo uma certa identidade coletiva, orientando e canalizando as suas esperanças e angústias” (BACZKO, 1985, p. 315). Brizola, por ser dono de um carisma inquestionável, lançava mão de sua retórica, às vezes agressiva, para convencer a multidão.

Odilon Vieira relatou que:

O Brizola que era muito destemido, audacioso, “caudilhesco” talvez tenha sido isso, tinha o poder de calvanizar a opinião de muitos embora tivesse muitas rivalidades principalmente da classe mais dominante, isso fazia parte da sua personalidade. Mas o maior defeito dele era ser brizolista demais, mas um homem uma visão muito grande a sua maior preocupação era com a educação e contra os poderosos econômicos. Ele não admitia que a riqueza que se concentrasse nas mãos de tão poucos e do outro lado tivesse uma legião tão grande de necessitados. Ele semeou por todo o Rio Grande do Sul, quando era governador, as brizoletas, umas escolinhas normais para o ensino fundamental.

Nas palavras de Odilon Vieira, percebemos que Brizola utilizava-se do poder de persuasão para convencer a população, havia uma legitimidade que era conseguida pelo carisma de Brizola. Conforme Max Weber (1980, p. XXII):

A dominação carismática é um tipo de apelo que se opõe às bases da legitimidade da ordem estabelecida e institucionalizada. O líder carismático, em certo sentido, é sempre revolucionário, na medida em que se coloca em oposição consciente a algum aspecto estabelecido da sociedade em que atua. Para que se estabeleça uma autoridade desse tipo, é necessário que o apelo do líder seja considerado como legítimo pelos seus seguidores, os quais estabelecem com ele uma lealdade do tipo pessoal.

Em São Sepé, também houve mobilização por parte da população, como foi relatado

por nossos entrevistados. Segundo o senhor Jacinto Corrêa:

A Legalidade então surgiu não de um partido, mas de uma força natural, pela defesa da Constituição. São Sepé teve uma participação mássiça e Caçapava do Sul também, quando tinha evento sobre a Legalidade em Caçapava do sul o pessoal de São Sepé participava, da mesma forma que os caçapavanos também vinham até São Sepé. Realmente foi um movimento bem intenso, o Brizola liderava através do rádio.

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O senhor José Maria Picada lembrou que:

Em 1961 com o movimento da legalidade nós formamos reuniões no antigo teatro velho onde hoje é o Centro Cultural, lá foi aberto um livro de inscrição para quem quisesse participar do movimento e inclusive pegar em armas se fosse possível, eu sei que assinaram mais de cem pessoas dentre eles eu também assinei, mas esse livro lamentavelmente desapareceu.

Essas reuniões no antigo teatro em São Sepé também fazem parte da memória do senhor Rogério Vargas:

a população sepeense estava mobilizada no antigo teatro municipal, onde hoje é o Centro Cultural ali era o QG da Legalidade. Todos os partidos aderiram e passavam o dia inteiro escutando o rádio e ao mesmo tempo os auto-falantes tocando bandas marciais e todas as noites tinha um ato cívico onde os oradores falavam de todos os partidos políticos porque houve uma unanimidade entre os partidos políticos e abriram um livro para quem quisesse lutar na defesa da Constituição, em apoio a Legalidade eu com 17 anos e outros mais contemporâneos nos alistamos. Nós só esperávamos a deflagração para partirmos.

Mais uma vez é possível perceber nas palavras de nossos entrevistados que todos os partidos encontravam-se unidos pela validade da Constituição, pois conforme o senhor Rogério Vargas:

Discursava todas as noites a Dona Maria Simões, era professora, um adversário político nosso, era agente de estatística em São Sepé o Jacob, independente do Afif, do Luis Fernando Freitas, o Natalício Pontes, o meu pai e outros oradores de outros partidos o professor Jacinto, o próprio prefeito Túlio participou algumas vezes. Todas as noites já havia uma convocação e aquilo ali perdurou mais ou menos por uma semana, cessaram todas as atividades, não tinha aula nos colégios até que chegaram naquela condição conciliadora de implantar o parlamentarismo e foi uma decepção muito grande, porque nós estávamos embalados para fazer uma revolução e de repente o Jango concorda em assumir e depois teve o plebiscito onde a maioria esmagadora devolveu ao presidente os seus direitos para exercer a presidência da República.

O senhor Odilon Vieira lembrou “que onde hoje é o Centro Cultural, antigo teatro velho, houve um esclarecimento para a população onde havia um livro onde aqueles que apoiavam a Legalidade assinavam eu assinei e outros, até pessoas que mais tarde foram para a ARENA”.

Esse movimento de mobilização, que ocorreu no antigo teatro em São Sepé, faz parte da memória coletiva dos entrevistados e como salientou Myrian Sepúlveda dos Santos:

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nós somos tudo aquilo que lembramos; nós somos a memória que temos. A memória não é só pensamento, imaginação e construção social, ela é também uma determinada experiência de vida capaz de transformar outras experiências a partir de resíduos deixados anteriormente (2003, p. 26).

Essas lembranças de nossos agentes de pesquisa são experiências de vida transformadas em memória coletiva. Assim como eles lembram da ligação que Jango possuía com os sindicatos, fatores esses que dificultaram a sua posse como presidente da República em 1961.

Os clamores de Brizola se estenderam por todo o país para que João Goulart assumisse a presidência da República, porém somente o governador de Goiás, Mauro Borges, apoiou a resistência frontal aos ministros militares. Em 31 de agosto, Jango desembarca em Montevidéu, onde se encontrou com Tancredo Neves para pactuar a emenda do parlamentarismo, “na madrugada do mesmo dia, o Congresso aprovou a emenda parlamentar” (FERREIRA, 2011, p. 335). Segundo Ferreira (2011, p. 335):

Brizola, no entanto, negava-se a aceitar o acordo. No dia seguinte à aprovação da emenda parlamentar, pela Rede da Legalidade, o governador gaúcho, após declarar a mudança do regime não poderia ser decidida em 24 horas, e votada na madrugada, denunciou o processo, a seu ver espúrio. No entanto, nada mais havia a fazer. Goulart aceitaria o regime de gabinete.

Marli Baldissera, (2003, p. 39), ressalta que “apesar de não ter atingido completamente seu objetivo, o episódio da Legalidade - que era João Goulart assumir a presidência no regime presidencialista - mostrou a força do povo organizado e projetou nacionalmente Brizola como líder popular” O regime parlamentarista impediu que Jango exercesse seus poderes. Paulo Schilling (1979, p. 226) mostra que “a crise havia produzido e projetado nacionalmente um líder popular. Brizola emergiu do episódio como o grande líder nacional”. No Rio Grande do Sul, passou a ser considerado um herói.

Foi possível perceber que mesmo após a morte de Brizola a sua memória ainda esta presente na sociedade sepeense, suas ideias ainda permeiam o cenário politico.

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Organizações Guerrilheiras: As concepções políticas das esquerdas na luta armada (1964-1976)

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Resumo: O artigo a seguir tem como objetivo discutir quais eram as concepções políticas das organizações guerrilheiras que pegaram em armas e participaram da resistência à Ditadura Civil-Militar dentro da época em que essa foi uma estratégia utilizada, de 1964 até fins de 1976. Para além de conceitos simplistas e superficiais, que acabam por mistificar o processo de luta armada, contribuir-se-á para a análise da complexa rede de influências e pressupostos que teceram um heterogêneo campo da esquerda no período.

Palavras Chaves: Luta Armada; Ditadura Civil-Militar; Organizações Guerrilheiras;

Key Words: Armed Struggle; Civilian-Military Dictatorship; Guerrilla Organizations;

Memórias, resignificação e mistificação.1.

Tem-se avolumado, nos últimos tempos, o debate em torno da memória sobre os acontecimentos que se deram durante a Ditadura Civil-Militar, pelo fato principal de que no campo político se avança na chamada Comissão da Verdade, criada pela presidente Dilma Roussef em novembro de 2011. Como no Brasil não houve punição aos responsáveis pela tortura, sequestros e assassinatos, esse é um tema de bastante disputa não só do campo da memória, mas também de correlação de forças entre setores da sociedade, progressistas ou conservadores, pela alteração deste quadro de impunidade ou pela manutenção do status quo político social, respectivamente.

Diante deste tema latente e tão crítico para nossa sociedade, a luta armada à Ditadura tem se mostrado nodal neste debate, por ter sido a forma mais aguda de resistência, e a que mais implicou em uma transformação radical das estruturas sociais historicamente arraigadas no Brasil. Por isso mesmo sua resignificação histórica tem sido disputada, e diferentes versões sobre as características, fundamentos e objetivos da luta armada tem sido muitas vezes “distorcidos” para servir aos interesses dos mais diferentes grupos.1 Historiador licenciado formado pela UFSM, e mestrando em História pela mesma universidade.

2 Professor Doutor em História Social pela UNICAMP, orientador.

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“Terroristas”. Foram assim classificados os guerrilheiros pela Ditadura, que não só reprimia se utilizando de seu aspecto militar, mas propagandeava, já na época, pelos meios de comunicação das grandes mídias no seu aspecto civil, tendo ainda hoje repercussão e eco em certos setores de nossa sociedade contemporânea. Tentavam distanciar a luta armada de suas bases populares através da marginalização das organizações guerrilheiras, reduzindo seus propósitos e suas próprias existências ao “terror” que causariam ao desenvolvimento e segurança nacional, dentro da lógica dos grupos que comandavam o Estado no pós-64.

Esta “lógica” se encontra ainda presente e atuante. Na Câmara dos Deputados, Jair Bolsonaro, do Partido Progressista (PP), oriundo da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido que legitimava politicamente a “aparência democrática” do período, em seu discurso do dia 8 de março de 2012, disse no púlpito que “é lamentável termos à frente do Brasil uma mulher como Dilma Rousseff, com esse passado terrível de roubo, assassinato, sequestro e terrorismo.” Relacionando a atual presidente da República à supostas ações da VPR, VANGUARDA POPULAR REVOLUCIONÁRIA, quando na verdade Dilma foi membro apenas dos COMANDOS DE LIBERTAÇÃO NACIONAL (COLINA) e a VAR-PALAMARES (VANGUARDA ARMADA REVOLUCIONÁRIA – PALMARES).

Infelizmente, a posição conservadora e alinhada ao discurso oficial da Ditadura Civil-Militar, não é tão inexpressiva, já que Jair Bolsonaro, ex-militar, foi eleito, em 2010, como 11º deputado federal mais votado do Rio de Janeiro, com 120.646 votos, ou 1,51% dos votos dos eleitores deste estado. Assim como ele diversos outros “representantes políticos” da Ditadura, como Jarbas Passarinho e Paulo Maluf, tiveram votações regularmente dilatadas, o que é reflexo de uma parcela significativa de pessoas que concordam, mesmo que parcialmente, com algum aspecto de sua agenda político-ideológica.

Portanto se faz necessário aprofundar a análise em torno das características políticas das organizações guerrilheiras, contribuindo para a historiografia do tema, e superando modelos analíticos demasiadamente simplistas e generalizantes, acabando por reforçar certas mistificações que levam a cristalização de apenas um tipo de memória. A dos vencedores.

Simplificações e “tipos ideais”2.

Não pretendo fazer aqui uma revisão historiográfica completa, ou tampouco, esgotar este tema, mas sim demonstrar, neste momento, como as obras mais significativas tem contribuído para a formação de uma noção geral em torno da figura do “guerrilheiro”.

Entre os historiadores, certamente o livro “A revolução faltou ao encontro”, lançado em 1990, por Daniel Aarão Reis Filho foi o mais impactante e o mais polêmico em torno

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deste debate, e certamente tem sido, mesmo que indiretamente ou subjetivamente, base teórica legitimadora de certo discurso presente até os dias de hoje.

Fruto de sua tese de doutorado defendida em 1987 na Universidade de São Paulo, o livro ainda repercute no meio político, sendo apropriado por diversos setores. Nele, Reis Filho defende o conceito de que o processo de luta armada contra a Ditadura foi levado a cabo por “Organizações Comunistas” que se constituíam em “Estados Maiores Revolucionários” que pretendiam tomar o poder de assalto.

O autor levanta três hipóteses principais sobre estas organizações. A primeira tem a ver com a necessidade de se “manter e garantir a coesão interna”. Esta foi levada a diante sem a necessidade de manter a “sintonia com processo vivo da luta de classes”. Diversos elementos são levantados para demonstrar essa tal “coesão interna”, como a iminente vitória do socialismo, a indispensabilidade do partido de vanguarda, o “complexo de dívida” dos militantes para com as organizações, as tarefas massacrantes, entre outros.

A segunda hipótese é relacionada com a negação do papel exercido pelo comunismo internacional nas organizações comunistas brasileiras. De acordo com ele os comunistas brasileiros tiveram total autonomia e independência deste “Comunismo Internacional”.

A terceira hipótese que Reis Filho levanta é sobre a configuração social destes “estados maiores”, determinantemente formado por “trabalhadores intelectuais”. O que naturalmente reforçaria o desligamento dos comunistas com as bases sociais que pretendiam revolucionar: “As organizações de estado-maior, por sua natureza, estruturam sua coesão interna com base em postulados e mecanismos de funcionamento que escapam em grande medida às contingências da realidade imediata”.

Não só neste, mas em outros textos (Reis Filho, 2004), o autor tenta salientar o quão antidemocrático eram estes comunistas, e como suas práticas autoritárias generalizadas eram corriqueiramente utilizadas. Em uma de suas passagens mais sintéticas e expressivas, quando ressalta a dicotomia entre as organizações e a sociedade, o historiador diz-nos:

Na própria concepção da organização há, portanto, um duplo sentido excludente e antidemocrático: a vitória das lutas sociais, articuladas em termos dos interesses imediatos das pessoas comuns, depende de uma teoria e de um Partido que não são – e não podem ser – patrimônio dos movimentos sociais. Estes são incapazes, por sua própria natureza, de atingir e dominar a teoria e de se organizar como Partido. [REIS FILHO, 1990, pag. 136.]

As primeiras críticas à Reis Filho já surgem no ano de 1990. Carlos Weiner, no mesmo ano do lançamento do livro, já levanta uma série de questões problemáticas de fundo teórico presentes na obra (Weiner, 1990). É fortemente criticada a noção que Reis Filho tem do que chama genericamente de “comunistas”:

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Seus comunistas são universais, não estão referidos a um processo histórico determinado em que a constituição de concepções, linhas políticas e práticas possa ser entendida, ela também, como história. Entre os comunistas, é o que nos sugere, não há história; apenas memória, eterna e monótona repetição dos mesmos mitos e das mesmas regras. [WEINER, 1990]

Os comunistas de Reis Filho, os “estados maiores revolucionários”, são modelos ideais, organizações homogêneas, onde todas seguem o mesmo padrão, e por “natureza”, autoritárias para com seus próprios integrantes e em relação às vontades das classes que pretendiam revolucionar.

Esta é uma concepção funcionalista weberiana, que aparece mais ou menos marxizante ao longo do livro. Das mais de três dezenas de organizações do período entre 1964 e 1976, quando a luta armada era uma estratégia de resistência ainda em prática, será realmente possível que este “modelo” cabe para todas?

Apesar das relativizações, a impressão que se passa é que estas eram produtos das mentes de jovens de setores da classe média, especialmente estudantes que buscavam tomar o poder e instalar o socialismo, completamente alheios às classes sociais trabalhadoras. Estas organizações eram todas compostas pelos mesmos estratos sociais? Tinham a mesma forma de organização? Os mesmo objetivos estratégicos e táticos?

Para Weiner é esta a sensação que se tem ao final do livro:

A impressão que fica para o leitor é que estes tais comunistas surgem do nada, para organizarem a si mesmos em torno de grandes ilusões e acabarem presos, torturados e mortos nas mãos dos militares. E que se a revolução tivesse comparecido, talvez estivessem hoje no poder. [WEINER, 1990]

Se o “modelo” de Reis Filho está certo, para todas as organizações que se embrenharam no processo de luta armada contra a Ditadura Civil-Militar, de maneira autoritária e antidemocrática, como afirma, buscando não a democracia, mas tentando implantar o socialismo, não estaria correto o argumento das forças conservadoras e militares de que o 31 de março de 1964 foi uma “revolução” em prol da democracia? Que vieram para salvar o país da “ditadura comunista”?

Não é isso que afirma Daniel Aarão Reis Filho, ex-militante do Movimento Revolucionário – 8 de Outubro (MR-8), responsável pelo setor operário da organização. Mas sem dúvida, é o que está presente nas entrelinhas de suas conclusões. Na contramão, diversos autores tem buscado analisar as organizações guerrilheiras brasileiras sob outro prisma.

Complexificações e Heterogeneidades. 3.

Tem-se desde a década de 1980, tentado compreender a complexa rede de influências

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e concepções que moldaram as organizações armadas do processo de luta armada contra a Ditadura Civil-Militar.

O primeiro grande trabalho sobre o tema foi lançado em 1987 por Jacob Gorender, historiador ligado ao tema da escravidão e Brasil pré-republicano, mas que atuou no Partido Comunista Brasileiro (PCB) no pré 1964, e posteriormente ao golpe foi um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), sendo preso torturado e depois exilado. Partindo de sua própria experiência Gorender escreveu “Combate nas trevas”, livro que tenta recuperar e desmistificar o processo de luta armada em geral.

Nele o autor já faz uma importante diferenciação, que apesar de ainda genérica já dá mais conta da heterogeneidade da esquerda no período, diferenciando cada organização guerrilheira por suas influencias ideológica e como isso se traduzia na prática.

Organizações que mantém a indispensabilidade do Partido nos moldes marxista-leninista como ferramenta fundamental e insubstituível de resistência e superação do capitalismo, de um lado, como Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Ala Vermelha do PCdoB, PCBR, Partido Comunista Revolucionário (PCR), Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT), entre outros; e de outro lado partidos de orientação foquista cubana, agrupamentos que se inspiravam na experiência da Revolução Cubana, onde não haveria necessidade de um partido de moldes clássicos, formula já desgastada pelo imobilismo e burocratismo, sendo apenas necessário com a Revolução já feita. Ação Libertadora Nacional (ALN), Vanguarda Armada Revolucionária (VPR), Vanguarda Armada Revolucionária (VAR), VAR-PALMARES, MR-8, Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), Resistência Democrática (REDE), Movimento de Libertação Nacional (MOLIPO), entre outros.

Gorender ainda cita o grupo nos nacionalistas, influenciados pelo radicalismo trabalhista de Brizola, que optaram pela luta armada não na busca do socialismo, mas no retorno à democracia burguesa eleitoral do pré-64, sendo responsáveis por eventos conhecidos como Guerrilha de Copacabana e Guerrilha do Caparaó. Grupos como o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), Resistência Armada Nacional (RAN), Movimento de Ação Revolucionária (MAR) e outros reuniriam trabalhistas radicais e militares legalistas, o que cria um interessante contraponto as teses de Daniel Reis Filho e seus “comunistas”.

Ainda haveria grupos trotskistas, que se utilizariam de uma estratégia “bolchevique”, atuando dentro dos sindicatos, tendo os operários o principal alvo de convencimento e militância, não optando pela luta armada, como os do Partido Operário Revolucionário – Trotskista ( POR-T), e outras frações.

Em “O fantasma da revolução”, do sociólogo Marco Ridenti, lançado em 1993, tem uma preocupação ainda maior com o caráter destas organizações que pretendiam a “revolução brasileira”.

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O autor estipula três grandes coordenadas de divergências entre as mesmas, diferenciando umas das outras: o caráter da revolução brasileira; as formas de luta para chegar ao poder; e que tipo de organização necessária à revolução.

O primeiro aspecto passa sobre quem seriam os “aliados” sociais das organizações e se a revolução viria em algumas etapas ou diretamente ao fim da Ditadura, caso tivessem sucesso. A maior parte dos partidos de orientação marxista-leninista tinha que a revolução socialista viria em duas etapas, a primeira democrática-burguesa, sendo, portanto, setores da burguesia nacional, aliados contra o imperialismo, e numa segunda etapa, a revolução socialista propriamente dita, levada por camponeses e operários. As outras organizações, inseridas neste contexto de crise dos paradigmas do centralismo democrático dos anos 60, analisaria a burguesia nacional como uma inimiga, atrelada ao imperialismo, e, portanto, a única coisa a se fazer era lutar contra a Ditadura e pela implantação imediata do socialismo, sem fases intermediárias.

O segundo elemento diferenciador da esquerda na época diz respeito à forma de organização que como já adiantado, era intensamente discutida e questionada no período. Ridenti afirma: “Basicamente, as posições se polarizavam quanto à necessidade ou não da estruturação de um partido nos moldes marxistas-leninistas clássicos para fazer a revolução, partindo da guerra de guerrilhas no campo e das ações armadas nas cidades”.

Para ele, PCBR, Ala, PRT e POC defendiam que o Partido deveria coordenar a guerrilha rural com a luta armada urbana, articulando ações de massa no campo e na cidade, conduzindo o processo até o fim. Outras organizações se viam como embriões de futuros partidos leninistas, sendo naquele momento um tipo de organização mais ágil e mais voltada para ações armadas, termo que ficou conhecido como “militarismo” das organizações que privilegiavam ações armadas em detrimento às discussões teóricas; ainda que tenha existido uma distância entre o que se dizia sobre si e o que de fato houve, como aponta Ridenti.

Por último, a forma de luta revolucionária foi um importante divisor entre a esquerda evidenciando sua heterogeneidade. O PCB optava pela via pacífica para alcançar o socialismo, enquanto o POR-T era o único, segundo o autor, que preconizava atuação exclusiva no meio operário se atendo a uma estratégia bolchevique. De resto, a esquerda optou em pegar em armas na luta contra a Ditadura e pelo socialismo.

Para ele, o grande divisor aqui era entre o maoismo e o guevarismo. PCdoB e Ação Popular (AP) se inspiravam no maoismo e abdicaram atuar nas cidades, onde se concentrava a repressão, buscando formar a “guerra popular prolongada” no campo e com apoio e adesão dos camponeses, promovendo o “cercamento às cidades”, não a toa, parte da AP adere ao PCdoB. A Ala também se aproximava do maoismo, entretanto via que ações na cidade ajudariam a levantar fundos para financiar as bases no campo, e por isso apenas atuaram na cidade, onde foram repremidos até a organização se extinguir; o que demonstrava influência do foquismo cubano nas suas práticas.

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As outras organizações se consideravam mais ou menos foquistas, onde, tendo como exemplo a Revolução Cubana de 1959, um foco guerrilheiro no campo, iniciado por um grupo especializado, uma vanguarda revolucionária, formando um “embrião” de um posterior partido nos moldes leninistas, onde várias vanguardas se reuniriam.

Em suma, as organizações guerrilheiras que atuaram nas cidades são divididas por Ridenti um grupo: ALA, ALN, COLINA, MAR, MNR, MOLIPO, MR-8, MRT, PCBR, POC, PRT, RAN, REDE, VAR e VPR, entre outros, sendo subdivido em mais “massistas”, aqueles que privilegiariam o trabalho de fundo com as bases popular e ações armadas (ALA, MR-8, PCBR, POC, PRT e VAR); e “militaristas”, onde as ações armadas teriam mais preponderância do que trabalho de base, evidenciando o papel fundamental das vanguardas revolucionárias (todas as outras organizações citadas acima).

Fica claro que as organizações armadas não eram tão homogêneas assim, e tampouco tinham a mesma percepção da realidade em que vivam, como transforma-la e de que forma fazê-lo. Outros trabalhos ajudaram nesse aprofundamento historiográfico do tema (Rollemberg, 2003; Sales, 2007), tornando o cada vez mais complexo, evidenciando o rico contexto de contradições que permeavam a prática e a teoria destes grupos.

Síntese necessária.4.

A guerrilha armada foi um processo intenso de resistência e, ao mesmo tempo, de luta contra a Ditadura Civil-Militar, sendo dialeticamente contraposto (e contrapondo) permanentemente à repressão das forças das classes conservadoras que se instalaram no poder no pós-64. Portanto é necessário entender as organizações guerrilheiras como foram, históricas.

Já havia propostas de luta armada antes de 1964, com a POLOP (Política Operária), organização crítica ao PCB fundada em 1961, e com o PCdoB, cisão do PCB de 1962. Entretanto nada havia saído do papel até o golpe civil-militar que derrubou João Goulart de março para abril de 1964. Portanto o golpe não veio para combater a luta armada, essa inexistia na prática nesse período.

Assim como o AI-5 de 1968 não vem combater a luta armada, que diferente do que afirma Reis Filho, ainda se relaciona com outras estratégias de resistência, como passeatas, piquetes, greves, e outras. Apesar da já incipiente incursão de organizações guerrilheiras, principalmente nacionalistas ligados ao trabalhismo radical, o Ato Institucional responsável pelo aprofundamento vertiginoso da falência dos direitos civis até o fechamento do Congresso Nacional, que servia de engodo para legitimar a pseudo-“democracia” dos opressores, veio para repremir as grandes manifestações sociais de estudantes e operários, como a “marcha dos 100 mil” em protesto à morte do estudante Edson Luís e as greves de Contagem e Osasco, com mais de 20 mil operários paralisados.

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O ato veio para suprimir a crescente onda de organização social contra a Ditadura.O AI-5 é responsável direto pelo aumento explosivo das ações das organizações

guerrilheiras, não ao contrário, como bem percebe Gorender:

Ao iniciar-se o ano de 1969, a ALN e a VPR concluíram que o comprometimento prático com a luta armada se confirmou acertado diante do fechamento completo da ditadura militar. O capítulo das lutas de massas estava encerrado. Nas trevas da clandestinidade, na havia resposta possível que não a do combate pelas armas. As vanguardas revolucionárias não podiam ser partidos políticos com braços armados, mas organizações de corpo inteiro militarizadas e voltadas para a tarefa da luta armada. [GORENDER, 1987, pag.167.]

Tornara-se extremamente reduzida, portanto, a possibilidade de resistência dentro de estratégias populares de protesto à Ditadura. É exatamente por isso que não restara muita opção àqueles que combatiam o poder instituído se não se inserir na luta armada, ou resistir cotidianamente. Como também percebe Ridenti: Depois do fechamento político imposto pelo AI-5, no final de 1968, com as ondas de prisões, com o cerco policial aos guerrilheiros e com a imersão geral das esquerdas na “luta armada” e o distanciamento da implantação da almejada guerrilha rural, as teses sobre o papel das ações armadas urbanas foram deixando de apenas vinculá-las apenas à preparação da guerrilha no campo. [RIDENTI, 2010, pag. 51]

Aqueles que optaram pela luta armada não o faziam de maneira idealista, no sentido hegeliano da palavra. Havia um amplo contexto de revolução ao redor do mundo, e de crescente repressão política e social no Brasil. E concordando ou não com os erros e acertos desta estratégia, a luta armada é legitima até mesmo para os grandes teóricos liberais, de tradição hobbesiana, lockeana, tomista, rousseauniana (Vannuchi, 2011) onde um governo que se torna tirânico deve ser combatido pelos cidadãos, mesmo que de maneira violenta.

E aqui não pode haver confusão. Como bem desmistificou Jacob Gorender ainda em 1987, a violência do opressor veio primeiro que a violência do oprimido. A violência cotidiana das classes no poder que a Ditadura apenas agravou.

As organizações guerrilheiras que se formaram em resposta a isso foram extremamente complexas, carregadas de contradições, como não poderia deixar de ser qualquer processo histórico. O próprio conceito militar de “guerrilha”, como estratégia de combate surpresa pouco esteve presente ao lado das organizações, que mais resistiram e sobreviviam do que avançavam em ofensiva.

Entretanto não se pode cair em um simplismo anacrônico de que se tratava de “aventureiros”, “românticos” ou “jovens iludidos”. Esta consolidação de certo tipo de memória na sociedade em geral, através de biografias e produções cinematográficas, serve a interesses obscuros, porque joga a responsabilidade no fracasso da luta armada nos próprios guerrilheiros, fadados desde o início à derrota. Ora, fácil dizer isso hoje, à

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época nada estava dado.Essa condenação do guerrilheiro pelo que fez e pelo que escreveu deve ser

cuidadosamente e criticamente analisada pelo historiador. Pode um jornal de organização guerrilheira, escrito para agregar e animar a militância, em um cotidiano de intensa repressão e cuidados, servir como base de uma análise profunda e científica da exata correlação de forças e história do Brasil?

As fontes devem ser claramente analisadas pelo historiador, e não podemos exigir precisão teórico-metodológica de reflexão de quem tinha outros objetivos: angariar apoio, mostrar uma perspectiva positiva de luta, incentivando a continuidade da resistência, mesmo frente a tantas adversidades.

A luta armada contra a Ditadura Civil-Militar foi levada a cabo por uma complexa rede de organizações, nem todas comunistas, no sentido ortodoxo da palavra, tendo diferentes compreensões de como se daria esse processo, quem seriam seus aliados, e de que forma fariam a luta revolucionária. Transitando de ideais soviéticos, chineses e cubanos, até chegar ao Brasil, onde não transposição mecânica destes preceitos, mas uma leitura do que existia de mais avançado e efetivo no mundo naquele momento, buscando a superação de burocratismos e imobilismos. E, pelo menos, de 1964 a 1976 esta foi uma estratégia legitima de resistência e luta daqueles que buscavam uma pátria livre.

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- REZENDE, Sidney. Confira a lista dos 46 deputados federais eleitos pelo Rio de Janeiro. In: SRZD. Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: http://www.sidneyrezende.com/noticia/103115. Acesso em: 29 abr. 2012.

- RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução. – 2. ed., rev. e ampl. – São Paulo: UNESP, 2010.

- ROLLEMBERG, Denise. Esquerdas revolucionárias e luta armada. In. FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano. Livro 4. O tempo da Ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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- SALES, Jean Rodrigues. A luta armada contra a Ditadura Militar. A esquerda brasileira e a influência da Revolução Cubana. São Paulo: Perseu Abramo, 2007.

- URIBE, Gustavo. Maluf e Tuma responderão por ocultar mortos na ditadura. Estadão. São Paulo, 26 de novembro de 2009. Disponível em: < http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,maluf-e-tuma-responderao-por-ocultar-mortos-na-ditadura,472681,0.htm>. Acesso em: 29 de abr. 2012.

-VANNUCHI, Paulo. Prefácio. In: GONÇALVEZ, Vanessa. Eduardo Leite Bacuri. São Paulo: Plena Editorial, 2011.

- WAINER, Carlos. Trabalho de ideólogo. Teoria e debate, São Paulo, n. 12, 1990. Disponível em: < http://www.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/editora/teoria-e-debate/edicoes-anteriores/resenha-revolucao-faltou-ao-encontro-0>. Acesso em 18 de abr. 2012.

Resumos de apresentações de

pôsteres

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SEM DATA PARA SAIRBruno Martins Selayaran, Luiz Fernando Rodrigues Filho e Sergio J. Barbieri Terra

Resumo: Afirmamos que, através do processo jurídico de nº. 066755-12.00-98.8, intentado por Oribe Sérgio Terra, podemos ver que, quando ele e seus companheiros estavam aprisionados na antiga enfermaria militar (transformada em presídio da cidade de Jaguarão), perdiam a noção de tempo. Pois, pelo que podemos notar durante entrevista concedida a nós, a primeira data é a que ele conseguia recordar, que era a de entrada ao presídio, foi essa que ficou gravada em suas mentes, mas os dias subsequentes eram totalmente inexatos. Além do mais, as torturas, sevícias, chagas, etc. Ficamos parecer ser o que agravava mais, essa rotina monótona e entediante. Então, pretendemos falar sobre a intempestividade desse período que deixou para sempre marcado o dia-a-dia desse senhor mostrando um pequeno exemplo de como eram feitas as torturas na região sul.

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Laboratório de História, Imagem e Som (LAHIS/FURG): uma proposta para o Levantamento, catalogação e Digitalização de documentação HistóricaFernando Milani MarreraSilviane Machado,Douglas Ferreira dos Santos, Karolina Dias e Daniele Dourado

Resumo: O Laboratório de História, Imagem e Som foi criado no ano de 2009 dentro das propostas do projeto de Metodologia da Pesquisa: Levantamento, Catalogação e Digitalização da Documentação Histórica, coordenado pela Prof. Dra. Júlia Silveira Matos. Desde então o laboratório promove a digitalização de acervos documentais de cunho historiográfico, tais como revistas, periódicos etc. Tal processo ocorre através da estrutura disponibilizada com o Scanner francês de modelo SuprascanI20 e com os programas de beneficiamento de imagens, também disponibilizados pela empresa francesa. Inicialmente, estava vinculado a estrutura do Centro de Documentação Histórica do ICHI/FURG. No entanto, com a reformulação do projeto em 2011, o laboratório adquiriu autonomia dentro da instituição, passando também a trabalhar com a perspectiva de criação de material midiático para o ensino de história. Sua estrutura conta com um estagiário e cinco bolsistas que executam as tarefas de catalogação e beneficiamento das imagens para a construção de um banco de dados iconográfico a ser disponibilizado para pesquisadores. Atualmente, o laboratório atende a digitalização de diferentes acervos, tais como: CDH/FURG, Biblioteca Rio-Grandense e acervos particulares como o do Cine-Glória e Schiavon de Livros Didáticos.

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A VIDA PRIVADA E MILITAR DO VISCONDE DE PELOTAS REVISITADA ATRAVÉS DE SUAS CORRESPONDÊNCIASGuilherme de Mattos Gründling

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Quilombo: questão de constitucionalidadeLucas da Silva Brandão e Luciane Avila

Resumo: Por ocasião da ADI 3239, traçamos um breve paralelo entre a legislação sobre terras quilombolas na constituição de 1988 e nos dois decretos (4887/03 que revogou o 3912/01), levando em consideração a relevância do quesito permanência na terra e outros critérios pertinentes.

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A implementação da Sociologia no Ensino Médio: Contexto histórico e políticoMarília Fernandes Rehermann Freitas

Resumo: A disciplina de Sociologia retorna com caráter obrigatório aos currículos escolares a partir da resolução CNE/CEB 03/98. Houve uma significativa movimentação de cientistas sociais para que isso fosse possível, com a alegação de que a sociologia é fundamental para a formação do indivíduo, seja na escolha da profissão ou para o exercício da cidadania, denotando que a sua presença ou ausência significa que já há um indício de escolhas no campo político. Esse fato teve a influência do processo de democratização ocorrido na década de 1980, onde há uma ruptura com as imposições feitas pelo período da Ditadura Civil e Militar. No entanto, somente no final da década de 1990 alguns sindicatos de cientistas sociais incluem os licenciados em seus quadros, fato que legitima e dá ensejo às lutas pelo retorno da sociologia ao ensino médio nas escolas. O objetivo deste trabalho é realizar a análise dos fatos sócio-históricos e políticos que levaram ao retorno dessa disciplina aos bancos escolares, através de revisão bibliográfica e documental.

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A “ANISTIA BRASILEIRA”, DA DÉCADA DE 70 ATÉ OS DIAS ATUAIS: A IMPORTÂNCIA DA LEI DE ANISTIA NO CONTEXTO NACIONALNatália Centeno Rodrigues

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A Historiografia Militar no Estado Novo (1937-1945)Priscila Roatt de Oliveira

Resumo: Em 1937 através de um golpe de Estado, Getúlio Vargas com apoio de forças antidemocráticas (incluindo o Exército), instaura um regime autoritário no país, que permite sua continuidade na presidência. Esse crescimento da função das forças armadas na sociedade, através da intervenção política leva a criação de uma História Militar que visava glorificar os feitos e os heróis dessa instituição.

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A escolha desses grandes nomes e episódios militares não ocorre de forma aleatória, possuía a finalidade de demonstrar a importância do Exército para História do Brasil. Com fundação da editora do Exército, a Biblioteca Militar em 1937, essa corporação assume a função de divulgar a sua versão dos acontecimentos históricos. Esse trabalho visa analisar essa historiografia militar da Editora da Biblioteca do Exército e a sua tentativa de legitimar o papel do Exército durante o Estado Novo.

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AS INFLUÊNCIAS DA GUERRA FRIA NO CONTINENTE LATINO AMERICANO: O ANTICOMUNISMO E AS DITADURAS DE SEGURANÇA NACIONALANTICOMUNISMO E AS DITADURAS DE SEGURANÇA NACIONALRodrigo Santos de Oliveira, Camila Almeida da Silva, Felipe Vargas da Fonseca e Douglas Ferreira dos Santos

Resumo: O presente estudo trata de apresentar o contexto da Guerra Fria e o processo de surgimento do pensamento anticomunista na América Latina que darão origem as Ditaduras de Segurança Nacional, de maneira especial a partir da década de 60. Os objetivos desta pesquisa são: a) Apresentar os diferentes pontos de vista, tanto da União Soviética quantos dos Estados Unidos pós Segunda Guerra; b) Entender os principais fatores que levam o pensamento antiesquerdista a se expandir no continente latino americano; c) Mostrar quais os fatores que levam isto acontecer; d) Perceber como esta ação se da na realidade da América Latina. Trata-se de uma pesquisa que tem como principais referenciais (GUAZZELLI, 1993) e (MORAES, 2001). O estudo ainda em andamento apresenta alguns resultados parciais como à forte influência norte-americana na Latinoamérica através das elites americanas e os investimentos de capital estrangeiro. A queda da popularidade dos líderes populistas que governavam a maioria dos países sul americanos naquele momento histórico, que servirá de auxílio para os golpes militares.