278
Ano XIII Nov 16 Número 12

Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Ano

XIII

Nov

16

Núm

ero

12

Page 2: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo
Page 3: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo
Page 4: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo
Page 5: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo
Page 6: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Direção Teatral: Formação e Pesquisa | 6

O TEATRO POLÍTICO NO AGORA: TEMÁTICAS E EXPLORAÇÕES ESTÉTICAS URGENTES

PÁGINA 24

POR UMA ARTE PANFLETÁRIA

Nina Caetano (Belo Horizonte/MG)

PÁGINA 58

O ESCRACHE: UMA ARMA PARA A TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

Pedro Diniz Bennaton (Florianópolis/SC)

PÁGINA 84

CENA E FEMINISMOS DECOLONIAIS LATINO-AMERICANOS: subjetividades como zonas de confronto

Stela Fischer (São Paulo/SP)

SUMÁRIO

Page 7: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

7 | Sobre a direção de atores: uma reflexão

PÁGINA 154

NORDESTE, BRASIL, LATINOAMÉRICA

Fernando Yamamoto (Natal/RN)

PÁGINA 106

NOTAS PARA RETOMADA DO DEBATE SOBRE TEATRO E REVOLUÇÃO NO BRASIL

Rafael Litvin Villas Bôas (Brasília/DF)

PÁGINA 134

O TEATRO NA URGÊNCIA: como pensar o político no interior do campo teatral?

Sara Rojo (Belo Horizonte/MG)

Page 8: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

SUMÁRIO

O TEATRO POLÍTICO NO AGORA: TEMÁTICAS E EXPLORAÇÕES ESTÉTICAS URGENTES

PÁGINA 170

A CRIAÇÃO TEATRAL EM PORTUGAL NO CONTEXTO DAS PRÁTICAS ARTÍSTICAS COMUNITÁRIAS

Hugo Cruz e Irene Serafino (Porto/Portugal)

PÁGINA 190

ENTRE O SUBLIME E O ESPÚRIO: uma breve exposição sobre o conceito de justaposição como procedimento de montagem política

Santiago Sanguinetti (Montevidéu/Uruguai)

Page 9: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

GALPÃO EM FOCO

CINE HORTO EM FOCO

PÁGINA 222

NÓS E A APOSTA NO RISCO

Eduardo Moreira (Belo Horizonte/MG)

PÁGINA 242

FESTIVAL CENAS CURTAS DO GALPÃO CINE HORTO: a liberdade criativa como atitude política

Marcos Coletta (Belo Horizonte/MG)

Page 10: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

PRODUÇÃO EDITORIAL: Marcos Coletta

JORNALISTA RESPONSÁVEL: Luciene Borges (MG 09820 JP)

CONSELHO EDITORIAL: Chico Pelúcio, Marcos Coletta, Nina Caetano e Sara Rojo.

COLABORADORES DESTA EDIÇÃO: Eduardo Moreira, Fernando Yamamoto, Hugo Cruz, Irene Serafino, Marcos Coletta, Nina Caetano, Pedro Diniz Bennaton, Rafael Litvin Villas Bôas, Santiago Sanguinetti, Sara Rojo e Stela Fischer.

REVISÃO: Élida Murta e Rachel Murta | Trema Textos

TRADUÇÃO: Gabriela Figueiredo e Thiago Landi

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO: Estúdio Lampejo

EXPEDIENTESubtexto – Revista de Teatro do Galpão Cine Horto n. 12 – ISSN 1807-5959

Page 11: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

CPMT – Centro de Pesquisa e Memória do Teatro do Galpão Cine Horto

Rua Pitangui, 3613 – Horto. CEP 31030-065Belo Horizonte – Minas Gerais – Brasil / Tel. +55 31 3481 5580http://galpaocinehorto.com.br/cpmt/ [email protected]

A Revista Subtexto é uma publicação independente. Todas as opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade exclusiva dos autores.

Publicação Eletrônica. Versão em Português. NOVEMBRO DE 2016.

Page 12: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Editorial | 12

EDITORIAL

Page 13: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

13 | Editorial

EDITORIAL

Page 14: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Editorial | 14

CARO LEITOR,

A décima segunda edição da Revista Subtexto de Teatro surge a partir das discussões e reflexões suscitadas no IV Seminário Subtexto em Diálogo, ocorrido em 18 de junho de 2016. Nesse evento bienal nosso principal desejo é levantar questões e pensamentos acerca de temas pertinentes e atuais que possam produzir ações e estratégias práticas, além de promover intercâmbios e encontros entre artistas, pesquisadores e o público presente no espaço do Galpão Cine Horto. Como síntese do Seminário, a Subtexto conseguinte reúne artigos dos palestrantes e mediadores, além de textos de outros profissionais que não participaram do evento, mas que foram convidados a escrever por possuírem um reconhecido trabalho artístico ou pesquisa sobre o tema proposto a cada edição. Em 2016, o seminário propõe o tema “O teatro político no agora: temáticas e explorações estéticas urgentes” como uma iniciativa de pensar e refletir o teatro político à luz de questões atuais e urgentes, que vêm mobilizando debates em diversos campos e que reverberam na cena teatral brasileira contemporânea.

Page 15: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

15 | Editorial

Arte e política, em seu sentido mais amplo, são campos historicamente interligados que cultivam uma relação ontológica que se transforma e se renova a cada geração, dando origem a variados movimentos, ações e reações. No teatro mundial, as referências mais imediatas nos remetem às comédias gregas que já desafiavam o status quo de sua época, ao agitprop russo comunista dos anos 1920, ao teatro épico-dialético de Bertolt Brecht e às performances e aos happenings de coletivos da contracultura norte-americana, como Bread and Puppet e Living Theatre, nos idos de 1970. No Brasil, desde os movimentos de resistência à ditadura militar, o teatro político se alinhou à esquerda marxista e aos sonhos de revolução popular, resultando em experiências de grupos historicamente emblemáticos como Arena, Opinião, Teatro Oficina, CPC da UNE, Teatro Experimental do Negro e, também, no desenvolvimento de poéticas importantes como o Teatro do Oprimido, de Augusto Boal, internacionalmente reconhecido. Com o restabelecimento da democracia e a crescente ênfase dada ao trabalho do ator, ao processo criativo e às questões técnicas do fazer teatral, o termo “teatro político” acabou rotulado como algo datado, frequentemente usado de forma pejorativa para categorizar propostas cênicas de forte discurso, mas de pouco apuro estético, usadas apenas como veículo de uma ideologia. Do “teatro político” derivam outros termos como “teatro de resistência”, “teatro de militância” e “teatro panfletário”, sendo este último, talvez o mais rejeitado, por ser costumeiramente relacionado à doutrinação e ao maniqueísmo. Não é incomum um espetáculo ser “elogiado” por ser “político sem ser panfletário”, reforçando preconceitos e desentendimentos.

Page 16: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Editorial | 16

Mas, para além dos rótulos, o teatro (assumidamente ou não) político nunca deixou de ser realizado no Brasil e, recentemente, vem ganhando fôlego e ressignificados a partir de experimentações com variadas formas e linguagens, em que se destacam obras híbridas de caráter performático e convivial. Com a efervescência de movimentos culturais e sociais voltados para setores marginais e periféricos da sociedade, o teatro político de hoje se propõe a discutir não mais (ou não apenas) a grande política e as grandes ideologias, mas as micropolíticas numa concepção molecular, dinâmica e rizomática. Mais do que um embate entre comunismo/capitalismo, democracia/ditadura, o cunho político das obras artísticas atuais parece evidenciar o convívio e o confronto das subjetividades em detrimento de uma visão massificadora da sociedade. Manifestos e ações sobre questões de gênero, de raça, de desigualdade social, de relações de poder e opressão, de desconstrução de padrões sociais e de afirmação de identidades têm sido vistos com frequência cada vez maior na cena teatral do País. O que parece estar presente no teatro político do agora é a visão de uma sociedade não homogênea, não coesa, não unívoca, que se reconhece como diferente e desigual e descobre infinitos grupos dentro de cada grupo, infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo o fim das utopias modernas, a liquidez das relações interpessoais, a realidade virtual, o advento das redes sociais, a fragmentação, a diluição de fronteiras geopolíticas e o excesso de informação, reconfigurando nossos problemas e desafios e fazendo reacender a potência política e contestadora do teatro – esta arte tão antiga, mas nunca ultrapassada.

Page 17: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

17 | Editorial

O que podemos considerar como “teatro político” hoje? Para onde esse “teatro político” está mirando o seu olhar? Que tipo de transformações ele deseja impulsionar? Que estratégias e mecanismos cênicos ele tem desenvolvido ou retomado? Questões como essas balizaram a realização do Seminário e a produção da revista Subtexto. Nas páginas a seguir, poderemos conhecer ideias e práticas de grupos e artistas contemporâneos que, através de suas obras e pesquisas, vêm movimentando discursos, saberes e afetos que se querem políticos na medida em que interferem diretamente nas relações sociais, nos nossos lugares de enunciação e na ideia de corpos individuais e coletivos.

Page 18: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Editorial | 18

No texto que abre a seção principal, Nina Caetano (MG) reivindica uma arte panfletária na cena contemporânea apoiada nos pensamentos de Ileana Dieguez, Judith Butler e Eleonora Fabião e na própria experiência como performer e pesquisadora, enfatizando a potência do corpo como panfleto, como “campo de batalha”.

Em seguida, Pedro Bennaton (SC) aborda a experiência político-artística do grupo argentino H.I.J.O.S. (Hijos por la Identidad e Justicia contra el Olvido y el Silencio) e estabelece relações entre os eixos performance, teatro, comunidade e transformação.

Depois, Stela Fischer (SP) dá foco à cena de mulheres artistas latino-americanas que tomam as subjetividades como zonas de confronto e contra-atacam o colonialismo histórico, as sequelas de governos ditatoriais, as dinâmicas de neocolonização, o conservadorismo e outras situações de opressão que se evidenciam na América Latina.

Rafael Litvin Villas Bôas (DF) propõe em seu texto um mapeamento em forma de notas da retomada do teatro político brasileiro, reavaliando o sentido contemporâneo do debate sobre teatro e revolução e apontando para uma nova geração de artistas que emerge na política, recuperando táticas de luta, inventando métodos e se defrontando com um cenário menos ofuscado pela ideologia.

Page 19: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

19 | Editorial

No próximo artigo, Sara Rojo (MG) nos lança a pergunta “Como pensar o político no interior do campo teatral?” e tece alguns apontamentos sobre a prática teatral em diálogo com alguns filósofos contemporâneos como Georges Didi-Huberman e Jacques Rancière, buscando exemplificar suas ideias com espetáculos teatrais recentemente montados em Belo Horizonte.

Fernando Yamamoto (RN), do Clowns de Shakespeare, relata a experiência do grupo em suas incursões pela América Latina e como isto resultou no Projeto Latino(-)americano, que envolve ações de criação, formação, pensamento, e cujo primeiro fruto foi a Trilogia Latino(-)americana, formada por três peças que dialogam com o passado e o presente político do nosso país e do nosso continente.

Dois textos internacionais fecham a seção principal da revista: Hugo Cruz e Irene Serafino (Porto/POR) refletem sobre a atual produção teatral portuguesa baseada num sentido comunitário que impulsiona ações emancipatórias e expõem a experiência do projeto PELE - Espaço de Contacto Social e Cultural, desenvolvido na cidade do Porto.

Por fim, Santiago Sanguinetti (Montevidéu/URU) analisa o procedimento de justaposição de elementos dissonantes e contraditórios para produzir a multiplicação dos sentidos de uma obra, fazendo com que a forma seja tão ou mais política que o conteúdo. Como exemplos, o autor nos apresenta e disserta sobre as peças que formam a Trilogia da Revolução, escritas e dirigidas por ele.

Page 20: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Editorial | 20

Na seção Galpão em Foco, o diretor, ator e dramaturgo Eduardo Moreira (MG), um dos fundadores do Grupo Galpão, compartilha conosco algumas reflexões sobre a última montagem do grupo, Nós, estreada em 2016 sob a direção de Marcio Abreu. A obra se destaca por buscar novos horizontes na trajetória do Galpão e por se propor política desde o início do processo de criação, resultando em um espetáculo que traz para a cena o peso e os dilemas de uma companhia de 35 anos de existência e os relaciona com temas sociais e políticos da atualidade.

Na seção Cine Horto em Foco, o Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto é observado pelo ator, dramaturgo e pesquisador Marcos Coletta (MG), enfatizando sua potência política ao proporcionar um espaço de liberdade criativa, experimentação estética e pluralidade temática há 17 anos. O autor destaca as duas últimas edições do projeto, quando integrou a equipe de curadoria e contribuiu para uma guinada ainda mais engajada e crítica do Festival.

Page 21: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

21 | Editorial

Com estes dez artigos, a décima segunda Revista Subtexto deseja contribuir com a discussão sobre os caminhos e desafios de um “teatro político” menos rotulado, que seja coerente com o nosso tempo e atravessado pelas questões e tensões sociais que vivemos hoje, buscando articulações que possam reverberar em ações e pensamentos artísticos comprometidos com o presente e atentos ao futuro.

Boa leitura!

Marcos Coletta

Coordenador editorial da Revista Subtexto

Page 22: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O TEATRO POLÍTICO NO AGORA: TEMÁTICAS E EXPLORAÇÕES ESTÉTICAS URGENTES

Page 23: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O TEATRO POLÍTICO NO AGORA: TEMÁTICAS E EXPLORAÇÕES ESTÉTICAS URGENTES

Page 24: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Nina Caetano 1(BELO HORIZONTE/MG)

POR UMA ARTE PANFLETÁRIA

Page 25: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

POR UMA ARTE PANFLETÁRIA

1 - Nina Caetano (MG) é performer, pesquisadora e

ativista. Professora do Programa de Pós-Graduação

em Artes Cênicas da UFOP, ela coordena o NINFEIAS –

Núcleo de Investigações Feministas (Ouro Preto/MG) e

integra o OBSCENA – agrupamento independente de

pesquisa cênica (BH/MG).

Page 26: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo
Page 27: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

27 | Por uma Arte Panfletária

QUAL É A EFETIVIDADE DA AÇÃO NA CENA CONTEMPORÂNEA?

Essa questão, lançada pela pesquisadora cubana Ileana Diéguez no Colóquio Pensar a Cena Contemporânea2, tem sido mote para muitas das discussões e práticas em torno das possíveis relações entre arte e política ou, mais especificamente, entre as artes da presença e a ação política, que realizo dentro do projeto de pesquisa “Corpos Estranhos, Espaços de Resistência”, desenvolvido junto aos coletivos NINFEIAS e Obscena3.

“Seu

co

rpo

é u

m c

amp

o d

e b

atal

ha”

[Fam

oso

car

taz

pró

-ab

ort

o, c

on

ceb

ido

pel

a at

ivis

ta fe

min

ista

est

adu

nid

ense

Bar

bar

a K

ruge

r, em

198

9]

Page 28: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 28 Temáticas e explorações estéticas urgentes

O projeto investiga ações performativas e escritas performadas (em suas múltiplas dimensões e suportes) que têm como eixo as diferentes corporeidades e práticas espaciais produzidas nas relações de enfrentamento e convívio ocorridas no espaço urbano. Interessam-me, sobremaneira, as corporeidades vistas a partir das questões de gênero4, sendo objeto de investigação as práticas parodísticas e de (auto)invenção que visam a perturbar as lógicas de padronização e espetacularização das subjetividades e colocar em xeque discursividades e representações que materializam os corpos, ou seja, são objeto de experimentação as práticas que desejam evidenciar os efeitos de poder que pesam sobre nossos corpos, tornando-os (ou não) inteligíveis:

Nesse sentido, o que constitui a fixidez do corpo, seus contornos, seus movimentos, será plenamente material, mas a materialidade será repensada como o efeito do poder, como o efeito mais produtivo do poder. [...] O ‘sexo’ é, pois, não simplesmente aquilo que alguém tem ou uma descrição estática daquilo que alguém é: ele é uma das normas pelas quais o ‘alguém’ simplesmente se torna viável, é aquilo que qualifica um corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural (BUTLER, 1999, p. 111).

Page 29: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

29 | Por uma Arte Panfletária

2 - Realizado na UDESC em julho de 2015, sob o tema “Teatros do Real”, o colóquio contou com a participação de Ileana Diéguez (Universidade Autônoma do México) e de José António Sanchez (Universidade Castilla-La Mancha, na Espanha), importantes referências mundiais para a pesquisa da cena contemporânea, principalmente no contexto ibero-americano.

3 - No cerne da pesquisa de ambos os coletivos está o interesse em dialogar diretamente com a cidade e seus habitantes, fazendo parte de sua investigação as relações entre corpo, espaço e poder – ainda que, no caso do NINFEIAS, as pesquisas centrem-se, especificamente, em práticas performativas feministas.

4 - BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

Embora Butler trate especificamente de sexo e gênero, seria possível, para o âmbito desta discussão, considerar ainda outros marcadores identitários, como o imperativo étnico-racial, que tendem a fazer de determinados corpos e comportamentos o padrão socialmente visível, e tornar outros corpos invisíveis ou abjetos.

Desse modo, vejo, nas articulações entre ativismo e performance, uma possibilidade de considerar a prática performática como uma nítida colocação/tomada de posição de corpos políticos marcados pela diferença e, talvez, marcados pela opressão e pela invisibilidade: o corpo da mulher, mas também o corpo dx negrx, dx transgênerx, dx gordx e tantos, tantos outros corpos possíveis! Nesse sentido, considero que a performance pode, muitas vezes, alargar as fronteiras de sua ação política e flertar diretamente com os movimentos sociais, performatizando-os.

Page 30: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 30 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Dessa perspectiva, sem dúvida nenhuma é possível também alinhar a essa discussão aquilo que Ileana Diéguez chama de performances ou “ações cidadãs”, ou seja, “os gestos simbólicos que colocam vontades coletivas na esfera pública e constroem de outras maneiras seu ser político. Não tendo um fim estético, produzem uma linguagem que absorve a percepção e suscitam olhares a partir do campo artístico”5. Essas ações cidadãs podem abarcar desde as marchas silenciosas das Mães de Maio, na Argentina, até a Praia da Estação6 e outras ações ativistas, ligadas à militância política dos movimentos sociais e ao cyber ativismo.

A arte activista está profundamente intrincada no movimento de resistência cultural que pode assumir configurações muito para além do que inicialmente se poderia considerar de âmbito artístico. Não devemos esquecer que desde muito cedo a arte de vanguarda sempre procurou posicionamentos questionadores e alternativos aos poderes e representações dominantes da sua época. Por outro lado, a segunda metade do século XX assistiu a uma crescente colaboração interdisciplinar entre diversas áreas do saber, daí o alargamento maleável do conceito de activismo, de modo a articular-se com outras práticas que contribuem para o fim comum de resistência cultural (VIEIRA, 2007, p. 14).

Page 31: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

31 | Por uma Arte Panfletária

5 - DIÉGUEZ, 2011, p. 14.

6 - Para saber mais sobre o ativismo performático da Praia da Estação, consulte: MELO, Thálita Motta. Praia da Estação: carnavalização e performatividade. Dissertação (Mestrado em Arte). Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, 2014.

7 - DIÉGUEZ, 2011, pp.19-20.

É importante destacar que, embora a aproximação entre performance e ativismo não seja tão recente – remontando às décadas de 1950 e 1960 – parece haver, atualmente, um estreitamento desses laços. Se, por um lado, como salienta Diéguez, podemos notar o “ressurgimento de uma politização na arte, através de práticas carnavalescas, lúdicas e corporais”, por outro lado, é bastante perceptível “o desenvolvimento de uma atitude estetizante das práticas políticas”7 de diversos movimentos sociais – do feminismo e do ativismo LGBTT ao movimento negro – fazendo com que a experimentação expressiva do corpo possa acontecer em variados níveis. Na organização da Marcha das Vadias, só para citar um exemplo, é possível observar da construção de um corpo coletivo à individuação das marcas de opressão (ou de reivindicação de liberdade) nos corpos que performam múltiplos discursos sobre a mulher. Pois pensar o corpo da mulher já não nos coloca inúmeras questões, tais como: o que é “ser mulher”? O que a define? O que define um corpo como feminino? O que pode o corpo de uma mulher? E o que não pode?

Page 32: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 32 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Ferr

an U

tzet

en

saia

co

m

ato

res

a p

eça

Tran

slat

ion

s.

Foto

: Mar

ina

Rau

rell

Page 33: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

33 | Por uma Arte Panfletária

Nesse contexto, a performance pode ser especialmente produtiva, pois, sendo uma linguagem artística aberta, que não exige o aprendizado de nenhuma técnica específica – como bem lembrou a estudiosa Denise Pedron, no especial sobre performance do programa Brasil das Gerais8 –, ela pode levar cidadãos e artistas ou até mesmo ativistas a uma reflexão mais ampla das imbricações entre formação sensível e o papel político que exercem, como explicita Eleonora Fabião:

Esta é, a meu ver, a força da performance: turbinar a relação do cidadão com a polis; do agente histórico com seu contexto; do vivente com o tempo, o espaço, o corpo, o outro, o consigo. Esta é a potência da performance: des-habituar, des-mecanizar, escovar a contra-pêlo. Trata-se de buscar maneiras alternativas de lidar com o estabelecido, de experimentar estados psicofísicos alterados, de criar situações que disseminam dissonâncias diversas: dissonâncias de ordem econômica, emocional, biológica, ideológica, psicológica, espiritual, identitária, sexual, política, estética, social, racial. (FABIÃO, 2008, p.237)

8 - Programa da Rede Minas. O especial sobre performance foi ao ar no dia 19/04/13 e contou com a presença também da autora do presente artigo e dos estudiosos e performers Roberson Nunes e Marco Paulo Rolla, responsável pela MIP – Manifestação Internacional da Performance. Disponível em: http://bit.ly/2e22lvg .

Page 34: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 34 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Evidentemente, não é exclusividade da performance a possibilidade de “disseminar dissonâncias”, até mesmo porque ela não escapa da institucionalização ou mercantilização de sua produção9. No geral, essa tem sido a tarefa de toda arte que se pretende política. No campo das artes da presença, me interessam especialmente as diversas modalidades cênicas que, escapando de uma taxonomia teatral mais tradicional, experimentam as relações entre arte e vida, estética e ética, imbricando criação artística e ato ético.

Pois foi justamente considerando as práticas ou modalidades cênicas que buscam relacionar sua experimentação artística ao campo ético-político ou, como enunciado por Ileana Diéguez, que pensam a “prática artística como a forma estética de um ato ético”10, que chegamos11 ao tema “O Teatro Político no Agora: Temáticas e explorações estéticas urgentes” para orientar as discussões do IV Seminário Subtexto em Diálogo, realizado no dia 18 de junho de 2016, no Galpão Cine Horto, com a presença de cinco palestrantes de várias regiões do País: Stela Fischer (Rubro Obsceno/SP), com o tema “Cena e feminismos latino-americanos: subjetividades como zonas de confronto”; Fernando Yamamoto (Clowns de Shakespeare/RN), que tratou das “Temáticas políticas na cena nordestina atual”; Pedro Bennaton (ERRO Grupo/SC), com o tema “Modus operrante - procedimentos estratégicos para jogos, intervenção urbana e teatro situacional nas ruas”; Rafael Villas Boas (projeto Terra em Cena/DF), que falou sobre os “Desafios do teatro político contemporâneo” e, por fim, José Fernando Azevedo (Teatro de Narradores/SP), com o tema “Cenas de Rua”.

Page 35: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

35 | Por uma Arte Panfletária

9 - Mas este é tema de outros textos... Para quem se interessar, sugiro a leitura do artigo de Josette Féral (2015), O que restou da performance art? Autópsia de uma função, nascimento de um gênero, bem como meu artigo A performance morreu? Antes ela do que eu, publicado no Portal Primeiro Sinal e disponível em: http://www.primeirosinal.com.br/artigos/performance-morreu-antes-ela-do-que-eu .

10 - DIÉGUEZ, Ileana. La “efectividad” de la “acción” en la “escena contemporánea”: ¿La práctica estética como acto? Texto inédito apresentado no colóquio Pensar a Cena Contemporânea, já citado anteriormente.

11- Quando digo chegamos, estou me referindo a Marcos Coletta, Sarah Rojo e eu que, junto com Luciene Borges e Fernando Mencarelli, fomos responsáveis pela curadoria do seminário.

12 - Mediada por mim e Marcos Coletta, a mesa foi protagonizada pelos artistas e pesquisadores Cida Falabella (Zap 18 – Zona de Arte da Periferia), Sara Rojo (Grupo Mayombe de Teatro), Igor Leal (Afazeres Queer), Alexandre de Sena (Grupo Espanca!), Marina Viana (Grupo Mayombe de Teatro e Primeira Campainha) e Clóvis Domingos (Obscena Agrupamento).

13 - Informações retiradas do site do evento: http://www.osconectores.wix.com/moteh .

O evento trouxe ainda a mesa de debates “Políticas, engajamentos e identidades na cena belo-horizontina”12, na qual a questão apresentada por Diéguez – sobre a efetividade da ação na cena contemporânea – foi levantada para discutir as práticas cênicas realizadas em Belo Horizonte nos últimos anos, por alguns dos artistas e pesquisadores presentes. E aqui, quando penso práticas cênicas, quero fazê-lo no sentido ampliado, proposto por Diéguez (2011, p.14), em que essa denominação “tenta quebrar a sistematização tradicional e procura expressar o conjunto de modalidades cênicas – incluindo as não sistematizadas pela taxonomia teatral – como as performances, intervenções, ações cidadãs e rituais. Mas, sobretudo, essa pesquisa se abre a outro território não teatral, não estético”, em que incluo não somente as micropolíticas cotidianas, mas também ações paralelas, realizadas por artistas ou agentes culturais, como, por exemplo, esse seminário e também encontros e mostras como a MOTEH - 1ª Mostra de Teatro e Direitos Humanos de Belo Horizonte que, fruto da colaboração dos coletivos Os Conectores e ZAP 18, levou a público, de 13 a 28 de agosto de 2016, “apresentações de teatro, performances e intervenções urbanas, além de ações formativas como debates, oficinas e um seminário sobre Teatro e Direitos Humanos”13.

Page 36: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 36 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Outras práticas cênicas poderiam, no âmbito da cena política e no contexto da mesa de debates, ser aqui citadas. Trago duas, em razão, talvez, da implicação dos corpos envolvidos na criação: as Cenas Pretas, conjunto de três cenas curtas – O que não vaza é pele, Não conte comigo para proliferar mentiras, Rolezinho: nome provisório – dirigidas por Alexandre de Sena, artista negro que traz no trabalho um nítido recorte étnico-racial; e Calor na Bacurinha, espetáculo dirigido por Marina Viana, com viés claramente debochado-revolucionário-feminista:

As Bacurinhas são um bando, formado por mulheres artistas da cidade de Belo Horizonte. [...] Em Calor na Bacurinha, realizam um levante de diversas vozes e modos de ser mulher que re-existem diante da cultura patriarcal. Questionam os lugares aos quais esta cultura colocou e ainda coloca as mulheres e parodiam, debocham e ironizam para manifestar e se posicionar diante disso. Calor na Bacurinha trata-se de uma manifestação de liberdade em que com seus corpos nus, parodiam a própria nudez e celebram o direito ao corpo livre, corpo este que é o protagonista da obra14.

Page 37: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

37 | Por uma Arte Panfletária

É também a partir dessa implicação do (meu) corpo que quero e posso falar: como mulher, como performer e ativista feminista, me sinto convocada a correr o risco de fazer aqui o elogio a uma cena que, como diria Marina Viana (e ela o disse nesse dia), tem “levantado a bandeira”, a uma cena que, sem pudor, tem se assumido como panfletária.

(pan.fle.tá.ri.o)

a.

1. Que escreve panfletos; PANFLETISTA

2. Ref. a ou próprio de panfleto.

3. Fig. Que se vale da ironia e da sátira para criticar ou atacar algo ou alguém; de discurso crítico, irônico, satírico e mordaz

4. Fig. Que defende uma ideia, posição, doutrina ou movimento etc. de modo contundente e com extremada ênfase

5. Próprio de panfletário (7)

sm.

6. Autor de panfletos; PANFLETISTA

7. Indivíduo panfletário (3 e 4) [F.: panfleto + -ário15.

14 - Release do espetáculo, disponível em: http://fitbh.com.br/2016/calor-na-bacurinha/ .

15 - Dicionário Caldas Aulete digital, disponível em: http://www.aulete.com.br/panfletario .

Page 38: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 38 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Mas o que pode um panfleto quando este é senão, como diria a militante transexual candidata à vereadora em sua cidade, o próprio corpo16? Como não marcará uma posição contundente uma arte produzida a partir das condições de risco em que vivem determinados corpos no mundo? A partir de corpos que, como bem lembra o cartaz-epígrafe que abre este texto, são campos de batalha? Cartaz-panfleto que, usando taticamente (CERTEAU, 2014) as “armas do inimigo”, provoca fissuras no discurso publicitário, desorganizando as narrativas estereotipadas do mercado (“não sou uma estrela, eu sou uma arma”...). Pois se o meio é mensagem, não é possível tratar de arte política somente a partir do aspecto temático: parece-me necessário pensar em suas formas (“política da percepção”) ou em seus modos de produção.

Voltemos então à questão colocada por Diéguez. Ao tratar da efetividade da ação na cena contemporânea, ela o faz colocando em xeque, inicialmente, o sentido desses três termos: efetividade, ação e cena contemporânea.

Page 39: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

39 | Por uma Arte Panfletária

Com essas questões como horizonte, Diéguez mergulha em algumas reflexões levantadas por Bakhtin18 para discutir as aproximações e os limites entre arte e vida: “quando nos perguntamos se uma ação na arte pode ser concebida e sustentada como um ato na vida”. Continuando, a pesquisadora salienta que, no projeto filosófico de Bakhtin, o ato ético é resultado da interação entre dois sujeitos distintos, não como relação formal, mas no sentido de uma responsabilidade concreta que condiciona o ser-para-outro.

No que tange à cena contemporânea, a pesquisadora questiona, em primeiro lugar, que tipo de cena se tem em mente quando usamos esse termo, uma vez que, segundo ela, “a noção de ‘cena’ se deslocou dos campos artísticos e cada vez mais tem sido considerada como lugar de onde se observam ou onde se refletem realidades sociais, históricas e políticas”17 como, por exemplo, nas expressões “a cena hip hop” ou “a cena política atual”. Em seguida, Diéguez discute em que sentido “ação” está sendo considerada: “a ação como execução performática ou teatral, ou como acontecimento artístico em geral? Ou a ação como ato que compromete a unidade do ser”, ou seja, a ação como um ato em que o sujeito esteja eticamente engajado? E, por último, ela se pergunta em que sentido uma ação pode ser considerada efetiva, ou seja, “para quem ou para o que [ela] é efetiva e a partir de quais critérios – pragmáticos, artísticos, éticos – pode se medir esta ‘efetividade’” da ação?

16 - “Meu corpo é o meu panfleto”.

17 - Esta e todas as citações neste parágrafo referem-se a DIÉGUEZ, Ileana. La “efectividad” de la “acción” en la “escena contemporánea”: ¿La práctica estética como acto? Texto inédito apresentado no colóquio Pensar a Cena Contemporânea, já citado anteriormente.

18 - BAKHTIN, Mikhail. A Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

Page 40: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 40 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Ainda segundo Diéguez, essa noção de implicação é o fundamento real do ato que implica também a prática artística como forma estética do ato ético. No entanto, nunca como uma ação técnica ou, muito menos, como um espetáculo do corpo. Em relação ao corpo do performer, ela salienta que o corpo do atuante (seja ator ou praticante):

[...] não é somente uma presença material que executa uma partitura performativa dentro de um marco autorreferencial e estético. [...] A presença é um ethos que assume não somente sua fisicalidade, mas também a eticidade do ato e as derivações de sua intervenção. A condição de performer enfatiza uma política da presença ao implicar uma participação ética, um rasgo em suas ações sem o encobrimento das histórias e personagens dramáticos.

Ou seja, a presença abarca não só o aspecto físico, material, do performer, mas também a responsabilidade ética que ele toma para si ao colocar-se em um espaço cênico, assumindo todos os riscos daquilo que Eduardo Pavlovsky chama de “ética do corpo”.

Page 41: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

41 | Por uma Arte Panfletária

A partir daí, Diéguez vai abordar algumas experiências das artes do corpo que aconteceram em “realidades em que se violam, somem ou aniquilam corpos”. Experiências artísticas atravessadas pelo contexto histórico em que o corpo dx artista está não somente instalado, mas diretamente implicado. Como o corpo negro de um homem que, em resposta a um episódio de violência policial racista, sofrido em Blumenau (SC), transmuta o autobiográfico em político e, à moda de Brecht, encena uma fábula na qual “um indivíduo de cor chega a uma terra onde tudo é branco, causando reações que vão da surpresa à violência”19 . Em O que não vaza é pele (2012), no entanto, o plano ficcional é invadido o tempo todo pela dimensão do real: desde a presença aparentemente descompromissada dos atuantes até a disruptiva exibição da matéria de um jornal televisivo que revela para nós, espectadores, o fato de que o indivíduo de cor, narrado na “singela” fábula, é o diretor (e ator) Alexandre de Sena. Ao colocar em fricção o ficcional e o autobiográfico, a potência da cena se apresenta em todo o seu vigor, evidenciando, pelo caráter performativo, o íntimo cruzamento entre a dimensão pessoal e a política20.

19 - Sinopse da cena curta O que não vaza é pele, disponível em: http://picumah.com/o-que-nao-vaza-e-pele/.

20 - Questão já expressa pela feminista Carol Hanisch, em artigo de 1969 intitulado justamente O Pessoal é Político, no qual reivindica o direito de tratar como políticas as questões ligadas ao corpo e à sexualidade da mulher, desprezadas pela esquerda da época como problemas de âmbito privado.

Page 42: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 42 Temáticas e explorações estéticas urgentes

A experiência do racismo, quando lida por outros negros presentes no teatro, fazia com que o texto do artista fosse, ao mesmo tempo, o texto de muitos, em um exercício de encontro entre o eu e o outro. A voz embargada do espectador ao realizar a leitura denota o impedimento social que é imposto aos negros de falarem. Como se algo estivesse sempre entalado, preso, impedido de sair de dentro21.

Page 43: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

43 | Por uma Arte Panfletária

21 - Trecho de crítica de Soraya Belusi às Cenas Pretas, no site Ágora – crítica teatral, disponível em: http://www.agoracriticateatral.com.br/criticas/50/o-que-n%C3%A3o-vaza-%C3%A9-pele,-n%C3%A3o-conte-comigo-para-proliferar-mentiras,-rolezinho

22 - Trecho de crítica de Soraya Belusi às Cenas Pretas, no site Ágora – crítica teatral, disponível em: http://www.agoracriticateatral.com.br/criticas/50/o-que-n%C3%A3o-vaza-%C3%A9-pele,-n%C3%A3o-conte-comigo-para-proliferar-mentiras,-rolezinho.

Esse impedimento social vai repercutir no grito lancinante que encerra a última das cenas dessa trilogia dirigida por Alexandre de Sena: Rolezinho – nome provisório (2014). Aqui, o caráter performativo ganha força, enfatizando, de modo mais estreito, as relações entre arte e vida, entre ato ético e prática estética. Ao tratar do fenômeno social que ficou conhecido como “rolezinho” – episódio protagonizado, em 2013, por jovens, em sua maioria negros e pobres das periferias de São Paulo, que demandavam o direito de frequentar espaços de lazer como os shoppings centers – a cena traz à tona a questão da (in)visibilidade de corpos negros e periféricos.

O que tanto assustava a classe média brasileira, a presença de um grupo de jovens negros e de periferia usufruindo o direito de frequentar espaços antes a eles negados, de se tornarem visíveis onde ninguém os queria ver, era, assim como se dá na cena, uma performance sobre poder – poder ser, poder existir, poder se fazer ver. Não é diferente no teatro. Ainda são minoria os atores negros ocupando os palcos brasileiros, assim como no público22.

Page 44: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 44 Temáticas e explorações estéticas urgentes

É interessante perceber que o processo de criação da cena, inspirado pela performance Presença Negra23, foi conduzido pela experimentação performática de outros “rolezinhos”, para os quais foram convocados “artistas negros da cidade de BH através de redes sociais”, de modo a promover encontros de criação e ensaios em locais públicos (configurados também como performances e intervenções urbanas), que pretendiam “culminar numa cena que promova uma reflexão pelo desenvolvimento da linguagem teatral negra contemporânea”24.

Page 45: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

45 | Por uma Arte Panfletária

23 - “Pensada pelos artistas Peter de Brito e Moisés Patrício a ação performática A presença negra (2014) surgiu em resposta à ‘desproporção na representação demográfica de afrodescendentes em certos espaços sociais, e mais precisamente no contexto das artes visuais’, como afirmam no manifesto de fevereiro de 2015 (publicado na revista O Menelick 2º . Ato, número 15)”. BISPO; LOPES. Presenças: a performance negra como corpo político. Artigo disponível em: http://www.coletivoasa.dreamhosters.com/wp-content/uploads/2015/06/CorpoPolitico.pdf .

24 - Trechos retirados de Projeto Rolezinho, disponível em: http://picumah.com/rolezinho-nome-provisorio/

25 - Assisti ao conjunto das Cenas Pretas no projeto Conexões, em dezembro de 2015, na FUNARTE-MG. As impressões ficaram profundamente marcadas, mas, para a descrição de algumas das ações trazidas aqui, tive que recorrer ao link “texto e roteiro”, disponível em: http://picumah.com/rolezinho-nome-provisorio-cena-curta/ .

A cena resultante é poderosamente simples. Uma adolescente negra sai da plateia e adentra o palco. Retira da mochila alguns “adereços de proteção (joelheiras, cotoveleiras, guias)” e, exercendo seu papel de corifeu – do coro negro que em breve se formará – pede “ao técnico do teatro um pedestal com microfone. Ele entra e instala. O técnico representa, ali, todos os trabalhadores dos bastidores”. Ela, então, retira do bolso um celular e começa a ler um texto, seu manifesto. “A atriz lê lentamente” e, à medida que lê, o palco vai sendo tomado por pessoas negras: algumas trajando roupas comuns, outras trazendo a marca de sua ancestralidade. A primeira a responder é uma senhora que atende ao seu insistente chamado: “Vem, dá cá sua mão (se referindo ao público): eu existo!” (e eu, ali na cadeira, me sentindo convocada a fazer o mesmo a cada vez que a frase se repetia: dá cá sua mão!). Logo o palco está inundado de corpos negros, diversos em sua força e em sua beleza. “Neste momento a atriz levanta seu braço direito com o punho cerrado. O coro inspira profundamente e emite um forte grito em direção à plateia. Um grito de leão”. Esse grito que embargava a garganta de todxs desde a primeira cena, me atravessa e me afoga. “É importante que este som atravesse os corpos [...]. Um som de mar embala o grito. Black out”25.

Page 46: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 46 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Afinal, o que pode um corpo-panfleto mover?

Uma experiência, por definição, determina um antes e um depois, corpo pré e corpo pós-experiência. Uma experiência é necessariamente transformadora, ou seja, um momento de trânsito da forma, literalmente, uma trans-forma. As escalas de transformação são evidentemente variadas e relativas, oscilam entre um sopro e um renascimento. Programas criam corpos – naqueles que os performam e naqueles que são afetados pela performance [...]. Corpos são vias, meios. Essas vias e meios são as maneiras como o corpo é capaz de afetar e de ser afetado. O corpo é definido [por Espinosa] pelos afetos que é capaz de gerar, gerir, receber e trocar. (FABIÃO, 2008, p.237-238)

Page 47: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

47 | Por uma Arte Panfletária

No arremate deste texto, quero tecer meu manifesto e, para isto, retomo rapidamente a expressão de Carol Hanisch – “o pessoal é político” – a fim de trazer aqui o meu grito, de dentro do campo de batalha que é o meu corpo. O grito de um corpo que sente na carne as violências decorrentes de uma performance de gênero imposta socialmente. E que, quando não o sente diretamente, se propõe a ser palco para a voz de outras tantas mulheres, silenciadas por uma estrutura machista, cruel: seja na forma de neutralização de sua voz política ou na naturalização e romantização de relações que violam ou aniquilam seus corpos. Não, em um país em que se mata, em média, 13 mulheres por dia26, esta não pode mais ser tratada como uma questão de âmbito estritamente privado, doméstico. Não, essa não é uma questão pessoal.

26 - Sobre estatísticas de violência contra a mulher, ver Mapa da Violência 2015, disponível em: http://www.compromissoeatitude.org.br/dados-nacionais-sobre-violencia-contra-a-mulher/ .

27 - Trecho da crítica Esse silêncio grita por humanidade, de Ivana Moura, publicada no blog Satisfeita, Yolanda? Disponível em: http://www.satisfeitayolanda.com.br/blog/2015/12/21/esse-silencio-grita-por-humanidade/ .

Espaço do Silêncio é uma performance de rua. Nela trago, além de uma carta-manifesto, 365 etiquetas que tento, ao longo de uma ação que dura, atualmente, entre 5 e 8 horas, imprimir a um branco lençol de casal. Na boca, trago uma cruz vermelha. Essas vão se multiplicando ao longo das horas. Sob cada cruz, cada uma das etiquetas se transmuta em uma espécie de lápide, construindo “um cemitério simbólico [...]. Esse ritual silencioso vocifera de historicidade e traça seu legado de injustiças. O gestual é suave e decidido. O olhar duro carrega uma revolta contida. Quem cruzou o olhar com a atriz sente que ela cobra a parcela que cabe a cada um da responsabilidade de estar no mundo”27. De fato, sinto que essa ação a cada dia vem cobrar a mim a minha parcela de estar mergulhada de corpo inteiro neste mundo e de fazer dele minha matéria. Pois não é a performer, parafraseando Eleonora Fabião (2008, p.238), quem, ao evidenciar o corpo, deseja tornar evidente o corpo-mundo?

Page 48: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Nin

a C

aeta

no

na

per

form

ance

Esp

aço

do

Silê

nci

o.

Foto

: Mar

úzi

a M

ora

is.

Todos os dias, nas ruas da cidade, mulheres são construídas.

Mulher princesa. Mulher boneca. Mulher rosa. Mulher sobremesa. Mulher de cama e mesa. Mulher doce dócil muda. Mulher morta. Mulher, uma obra em construção: Sorriso. Batom Boca Beijo. Depiladores hidratantes sutiãs pregadores talheres gleidy sachê vassoura escova progressiva inteligente. Silicone. Peito. Bunda. Coxa. 100% completa. Como você gosta. Pronta para consumo imediato. Sarada. Turbinada. Preparada. Plastificada. Espancada. Esquartejada. Morta. Jogada pros cachorros. na lagoa. no lixo. Como você gosta?

Desculpe o transtorno, estamos trabalhando para você.

Mulher. Ser humano do sexo feminino capaz de conceber e gerar outro ser humano e que se distingue do homem por essa característica. A mulher em relação ao marido. Esposa. Casar. Amar. Amar e respeitar até que a morte os separe. Cuidar. Limpar. Lavar. Passar. Sujeitar. Sorrir. Servir bem para servir sempre. Agradar. Transar. Mesmo sem vontade. Mesmo sem vontade apanhar. Compreender. Apanhar. Perdoar. Apanhar. Esquecer. Esquecer. Esquecer. Morrer. Mesmo sem vontade.

Page 49: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

49 | Por uma Arte Panfletária

Todos os dias, nas ruas da cidade, mulheres são destruídas. A cada 15 segundos, uma mulher é espancada no Brasil. Destruir. Ex-terminar. 70% das mulheres mortas no país são vítimas de seus namorados, noivos, maridos. Eliza, 25 anos, esquartejada e jogada pros cachorros a mando do ex-amante e pai de seu filho. Júlia, 80 anos, morta a tiros pelo marido. Leonice, 21 anos, 13 facadas, ex-companheiro. Maria Islaine, 31 anos, ex-marido. Ele apontou a arma para ela e atirou 7 vezes, sem que ela reagisse. Jacqueline, 26 anos, estrangulada e esquartejada, namorado. Arabela, 37 anos, 12 facadas, ex-marido. Eloá, 15 anos, ex-namorado: morta com 1 tiro na cabeça, sem que ninguém reagisse. Natália, 16 anos, grávida de 3 meses, morta pelo namorado com pelo menos 80 facadas, sem que ela eu você, sem que ninguém reagisse28.

28 - Carta-manifesto exposta ao transeunte durante a performance urbana Espaço do Silêncio, realizada por mim em espaços urbanos de grande fluxo de pedestres, como a Praça 7 (BH/MG) ou o Vale do Anhangabaú (SP/SP).

Page 50: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 50 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Post scriptum ou notas finais

Em relação à minha parcela de estar no mundo, constato, a cada dia, que a ação Espaço do Silêncio, antes de tudo, me convoca a uma espécie de missão. Qual missão eu ainda tateio, ainda tateio o que preciso fazer com o que faço. Pois essa performance tem se revelado muito maior do que eu. Ela tem me revelado dimensões inusitadas e alcances inesperados. E penso que realizá-la é a minha chance de conhecê-la. Nesse tatear, vou então a alguns fatos, que trago em notas sobre ela.

Page 51: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

51 | Por uma Arte Panfletária

1. Em maio de 2014, eu fazia a ação na Praça 7. Uma mulher passou, bebê no colo, e parou para ler minha carta-manifesto. À medida que lia, ela nos co-movia – pois se alterava e, se alterando, me alterava também. Ao final da carta, ela olhou em meus olhos e disse: Eu quero me juntar a você. E eu, de olho nela e um pouco pasma, perguntei: agora? A moça pensou no bebê, pensou em como podíamos e respondeu: agora não. Pediu meus contatos – que eu, desesperada, rascunhei na carta-manifesto – e partiu. Nunca mais a vi.

2. Em junho de 2015, uma moça de 20 anos, Débora Souza, foi assassinada em frente à casa que eu mantinha em Ouro Preto. Isso aconteceu em um sábado de manhã, numa rua movimentada do bairro. Após reagir a um assédio, ela é morta a facadas e seu assassino, preso em flagrante, aguarda processo em liberdade após alegar “legítima defesa”. Três dias depois, eu fiz Espaço do Silêncio no mesmo local, em memória de Débora. Chovia. Algumas mulheres, em estado de luto, se aproximaram de mim, como quem se aproxima da família em um velório. Outras pessoas – homens e mulheres – em minha volta e movidos pela ação, discutiam o caso. Alguns achavam que ela merecia aquilo, porque tinha bebido com seu assassino algumas horas antes.

Page 52: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 52 Temáticas e explorações estéticas urgentes

3.Em 29/7/2016 fui procurada via Messenger por Rosy Souza. Ela me disse que havia visto, em compartilhamentos do Facebook, materiais sobre Espaço do Silêncio. Nesses materiais, estava o nome de sua tia, Osailda de Sousa Coelho, de 45 anos, assassinada por envenenamento pelo marido, em Dom Expedito Lopes, Piauí. Rosy me disse que ela havia visto o nome da tia e resolvido me procurar. Rosy quer justiça, ela luta para que o crime, ocorrido em fevereiro de 2015, seja julgado como tal e o feminicida – que permanece em liberdade – seja punido. Ela luta para que o crime não seja esquecido e para que a memória de sua tia não seja apagada.

Esp

aço

do

Silê

nci

o, o

len

çol.

Foto

: Nin

a C

aeta

no

Page 53: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

53 | Por uma Arte Panfletária

Page 54: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 54 Temáticas e explorações estéticas urgentes

4.Em 3/9/2016, fui novamente procurada via Messenger. Agora, por uma atriz e amiga que havia acompanhado, no final de 2015, a mesa de debates “Feminicídio: o corpo da artista e a fabricação do corpo feminino”, da qual participei na II Bienal Internacional de Teatro da USP. Na ocasião, tratei da ação Espaço do Silêncio e Vanessa Biffon, tendo vivido recentemente uma perda, lembrou-se de mim: no final de julho de 2016, Fernanda Sante Limeira, a irmã de uma grande amiga, foi assassinada pelo ex-marido, e o desejo era que eu fizesse minha ação também em memória a ela.

E eu a farei, Vanessa. Em memória de sua amiga. E em memória de Osailda. E de Débora. E de Adelina de Abreu. Adriana Almeida. Alessandra de Moraes. Alessiane de Araújo. Alexandra Moreira. Alice de Almeida. Aline Rosa da Silva e sua filha Tamy. Aline Gouveia. Amanda Bueno. Amanda Linhares. Amanda Pedro. Ana Alice Moreira. Ana Carolina Florenzano. Ana Carolina Nascimento. Ana Maria dos Santos. Ana Paula da Silva. Ana Paula Barros. Ana Tereza Leone. Anaíldes dos Santos. Andreia Aquino. Andressa da Conceição. Anete Silva. Angelina Filgueiras. Arabela Bastos. Bárbara Richardelle. Batistina Feijó. Beatriz Cândido. Beatriz de Oliveira. Berenice Correia. Brenda Esteves. Bruna da Silva. Bruna Alves. Bruna de Oliveira. Bruna Brito. Camila Albrecht. Camila Belegante. Cara Burke. Caroline Barbosa. Caroline Gomes. Celina Rodrigues. Christiane de Souza. Cícera Ferreira. Clarinda Maciel. Cláudia da Silva. Claudiana Barbosa. Claudiane Martiniano. Cléia Dallin. Cleia Quevedo. Cleomara Sorotenik. Cleusa de Lima. Cleuza Pereira. Conceição Lima. Cristiana Ribeiro. Cristiane Ferreira. Cristina da Silva. Daiane Sousa. Dalete Gonçalves. Dalvânia Correia. Damiana Andrade. Damiana Pereira. Dandara Aguiar. Daniane Lemes. Daniela de Moura. Daniela Maria da Conceição. Daniela Pavanelo. Daniele Cardoso. Danielle Oliveira. Dara dos Santos. Dayane Barbosa. Dayane Mozer. Débora de Araújo. Deise Ferreira. Deiviane Mello.

Page 55: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

55 | Por uma Arte Panfletária

Delzita Martins. Denise Lima. Denise Soares. Dineuza Rodrigues. Divana Peres. Edislene Rezende. Edmaria Rocha. Edna Oliveira. Edneia Jeronymo. Eduvirgem Queirós. Elaine Bezerra. Elaine Nunes. Elba Medeiros. Eliana Soares. Eliane Aparecida Inês. Eliane Borges. Eliar Rodrigues (Lili de Zé Barbeiro). Elida Sousa. Eliérica Augusto. Elisângela Gonçalves. Elisângela dos Santos. Eliza Samudio. Eloá Pimentel. Érica Sales. Érica Pontes. Estélia Viana. Ester dos Santos. Eurides de Castro. Eva Mara dos Santos. Fabiana Cardoso. Fabiana de Paula. Fabiana Nakamura. Fernanda Botto. Fernanda Carla Therese. Fernanda de Almeida. Fernanda Marques. Fernanda Pimenta. Flávia do Nascimento. Flaviana Batista. Francielle Sena. Francileide Ramos. Francine Carvalho. Gabrielli Soares. Geni Pereira. Geovani da Silva e sua mãe, Arminda. Gerlândia da Silva. Gislene Alves. Gorete Mendes. Grazielle Del Soto. Helen Vieira. Ignez Gasperini. Ilinéia Gomes. Inara Romano. Ingrid Clemente. Ingrid Fernandes. Iolanda Nunes. Isabel de Campos. Isabel Sousa. Isabella Cazado. Isaura Medalha e sua filha Carla. Isaura Mendes. Isis Santos. Irene Andriazzi. Ivaneide Lima. Jaci Almeida. Jaciele dos Santos. Jackeline Rodrigues. Jacqueline Batista. Janaína da Silva. Janaína Dalben. Jandeilma dos Santos. Jane Fernandes. Janete Belini. Jaqueline Vieira. Jayne Vieira. Jemima da Veiga. Jéssica Camilo. Jessica Furtado. Jéssica Nogueira. Jéssica Ramos. Jocélia Boeno. Joelma de Sá. Joelma Viana. Jorgelina de Almeida. Joseilda Marques. Josiane Faria. Josiene Azevedo. Josina Silva. Joyce Soares. Júlia Fernandes. Juliana Paiva. Justina de Jesus. Karine de Abreu. Kássia Pereira. Kassia Mattos. Katia Candido. Keila Benízia. Keila Campos. Keila Fernandes. Keila Nascimento. Keliane de Oliveira. Kely Ostwald. Kemilly Andrielli. Laida Romualdo. Laila Sousa. Laís Alves. Laissy Carvalho. Larissa Câmara. Larissa Velasco. Laura Rosolem. Leidiane Miotto. Leila Bloemer. Leonice Sizinande. Letícia Guedes. Letícia Santos. Letícia Soares. Lidiane Barros. Liliane Ferreira. Lindalva Barra. Lívia de Aguiar. Lizete Meurer. Lorraine Ventura. Louise Ribeiro. Luana Oliveira. Lucélia Salazar. Lucélia Rodrigues. Luciana Pereira. Luciara Aguiar. Luciene de Azevedo. Lucimar Arruda. Lucimar Silva. Lucivania da Silva. Luzia Coelho. Luzia Steinbach. Luziene Andrade. Madalena Souza. Marcelina Santos. Márcia Pereira. Márcia Policarpo. Márcia Thomé e suas filhas Jaíne e Jeisse. Márcia Xavier. Margot Proença. Maria Alice Seabra. Maria Antônia de Souza. Maria Antônia Lagos.

Page 56: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 56 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Maria Antônia Lima. Maria Aparecida da Cunha. Maria Aparecida Dantas. Maria Aparecida Alves. Maria Aparecida Oliveira. Maria Augusta Magalhães, Maria Cristina Gomes. Maria das Dores Ramos. Maria das Graças da Silva. Maria de Fátima dos Santos. Maria de Jesus. Maria de Nazaré. Maria Divina Pereira. Maria do Carmo Santos. Maria do Carmo Alves. Maria do Carmo Rocha. Maria do Socorro Duarte. Maria dos Remédios de Sousa. Maria dos Santos. Maria Francisca Santana. Maria Gorete Pereira. Maria Graciela Graunke. Maria Helena Alves. Maria Helena Feitosa. Maria Islaine de Morais. Maria Joana de Jesus. Maria José de Pauli. Maria Ligia Siqueira. Maria Lina Dias. Maria Lúcia Nunes. Maria Regina dos Santos. Maria Rizomar. Maria Vilani. Marildete de Lemos. Marilene Soares. Marinalva Macena. Marina da Silva. Marinete Gomes. Mariza Fialho. Marlene de Sena. Marli Silva de Souza. Marlúcia Moreira. Mércia Nakashima. Milena Alves. Mirian Gabe. Mylena Bessa. Nádia Guerra. Nadir Farias. Natália Luiz. Natália Vitorina. Natália Eger. Nayanne Carvalho. Neruracir Santos. Nilma Lacerda. Nilzete Cerqueira. Noêmia Bordignon. Noêmia Pereira. Patrícia de Melo. Patrícia Moura. Patrícia Pereira. Patrícia Peixoto, sua irmã Cristiane Vendramini e sua avó Damiana Lopes. Paula Nascimento. Paula Lima. Pollyana Lopes. Priscila Sousa. Raíssa (travesti). Raquel Soares. Regiane Alves. Regiane Barcelos. Regina Bastos. Regina de Jesus Belo. Renata Araújo. Rildeny Modesto. Rita de Cássia Evangelista. Rita Rodrigues. Rosana Cândido. Rosana Ferreira. Rosane Berteli. Rosângela Fernandes. Rosenilda Pereira. Rosiane Borges. Rosimare Alves. Rozineide Bauer. Salete Macedo. Sandra Alfonso. Sandra Gomide. Sandra Santos. Sara Teixeira. Sebastiana Paniagua. Shirley Cavalcante. Shirley da Silva. Shirley Souza. Sidilene Alves. Silvana Lima. Silvia Miranda. Simone Maldonado. Sintia de Sousa. Solange da Silva. Solange Campos. Stéphanie Rodrigues. Sueldia Claudino. Suênia Sousa. Tainá Caetano. Tatylla Marçal. Terezinha Gomes. Thainá Batista e sua mãe, Isaura Medeiros. Thais Borges. Thaís Muniz. Thajela Oliveira. Tânia Galvão. Thaynara Gualberto. Úrsula Raimundo. Valdenize Santos. Valcicléia da Cruz. Vanda Brígida Pereira. Vanessa da Silva. Vanessa da Silva Santos. Vanessa Peloi. Vanessa Ribeiro. Vandressa França. Veridiana Carneiro. Vilma Coutinho. Vilma Lima. Viviane da Lima. Viviane Garcia. Waleska Cordeiro. Yasmim Ferreira. Yasmin França. Yoná Azevedo. Yorrally Ferreira. Zilda de Jesus.

Page 57: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

57 | Por uma Arte Panfletária

Referências:

BERNSTEIN, Ana. Marina Abramovic: do corpo do artista ao corpo do público. In: SÜSSEKIND, Flora; DIAS, Tânia e AZEVEDO, Carlito (Org.). Vozes Femininas: gênero, mediações e práticas de escrita. Rio de Janeiro: 7 letras: Fundação Casa Rui Barbosa, 2003, pp.378-398.

BUTLER, Judith. Corpos que pesam. In: LOURO, Guaciara Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: Artes de Fazer. Petrópolis, Editora Vozes: 2014.

DIÉGUEZ CABALLERO, Ileana. Cenários Liminares: teatralidades, performances e política. Uberlândia: EDUFU, 2011.

FABIÃO, Eleonora. Performance e Teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. In: Revista Sala Preta, v.8, n.1. São Paulo, PPGAC da ECA-USP, 2008, pp. 237-238. Disponível na versão online: http://revistasalapreta.com.br/index.php/salapreta/article/view/263.

FÉRAL, Josette. Além dos Limites: Teoria e Prática do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2015.

REDE MINAS. Especial sobre Performance. Programa Brasil das Gerais, da Rede Minas. Link: https://youtu.be/Yv5w8OxW298

VIEIRA, Teresa de Jesus Batista. Artivismo: estratégias artísticas contemporâneas de resistência cultural. Dissertação (Mestrado em Multimédia). Faculdade de Belas Artes, Universidade do Porto, 2007.

Page 58: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Pedro Diniz Bennaton 1(FLORIANÓPOLIS/SC)

O ESCRACHE : UMA ARMA PARA A TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

Page 59: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

1 - Pedro Diniz Bennaton (SC) é doutorando em Teatro

na UDESC, pesquisador, performer, diretor e autor

do ERRO Grupo, com o foco em intervenções urbanas

realizadas no Brasil, na América do Sul, na Europa

e nos EUA, bem como contempladas por uma série

de prêmios de arte nacionais e estaduais. Bennaton

lecionou na UDESC, de 2009 a 2012, como colaborador,

e em oficinas ministradas pelo ERRO.

O ESCRACHE : UMA ARMA PARA A TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

Page 60: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 60 Temáticas e explorações estéticas urgentes

ESTE ARTIGO ABORDA uma experiência de fins políticos sob uma ótica de identificação de suas teatralidades e performatividades. Levando em conta definições do teatro contemporâneo, a experiência política analisada a seguir é capaz de integrar teorias artísticas, que assumem características de transformação social, mesmo que constituída como uma performance política em seus procedimentos de ação. Não resta dúvida de que o objeto de pesquisa em questão pode ser utilizado como um exemplo claro de teatro político atual que visa à transformação da realidade.

Page 61: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

61 | O Escrache: uma arma para a transformação social

É reconhecida a frase de Bertolt Brecht que afirma que todo o teatro é político e não ter consciência disto significa fazer teatro para a manutenção do status quo. Podemos dizer que Brecht se esquece, em tal afirmação, das inúmeras práticas que pretendem conscientemente a manutenção do status quo e que se utilizam de teatralidades e performatividades para prolongar a continuação nefasta do capitalismo como regime econômico da sociedade. Cabe ao teatro político que visa à transformação de nosso sistema e das lógicas de dominação incorporar táticas de ação de movimentos e organizações sociais que pretendem também tal transformação, de modo a atingir tanta ou maior eficácia quanto os mecanismos de dominação da arte como produto e do mercado.

O foco principal deste artigo é analisar a experiência político-artística do grupo argentino H.I.J.O.S. (Hijos por la Identidad e Justicia contra el Olvido y el Silencio) à luz de referências teatrais, identificando elementos da proposta das performances políticas deste grupo contemporâneo para caracterizá-lo como um teatro político eficaz e de transformação social, ao redor dessa relação entre teatro, comunidade e transformação.

Page 62: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 62 Temáticas e explorações estéticas urgentes

De acordo com Jan Cohen-Cruz, em seu livro Radical Street Performance (1998), o teatro de transformação social na atualidade é parte das manifestações de muitas ONGs (Organizações Não-Governamentais) e de outros movimentos políticos/sociais, como, no Brasil, com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), divulgando suas ideologias e suas ânsias de mudança em suas comunidades de atuação.

Vivemos numa época na qual não vemos no teatro uma força de transformação social como aquela do início do século XX, presente, por exemplo, em manifestações de Agit-Prop. Existem diversas, pequenas e grandes, revoluções sendo formadas nos quatro cantos do mundo, guerras que, porém, por enquanto, não estão relacionadas ao fazer teatral como estavam no começo do século passado. Contudo, o teatro de transformação social sobrevive, e pode virar arma, tanto nas periferias de Paris como em Buenos Aires, São Paulo e Bagdá.

Page 63: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

63 | O Escrache: uma arma para a transformação social

Julia Elena Sagaseta, teórica da UBA (Universidade de Buenos Aires), enxerga nas performances do grupo político-performático argentino H.I.J.O.S. expressões de teatro de transformação social contemporâneo. Vinculado à questão das pessoas desaparecidas durante a ditadura militar da Argentina (1976-1983) e a uma nova expressão de cobrança de justiça, o grupo tem em seu modo de manifestar, tanto estética como ideologicamente, ideias de um teatro político, caracterizando-se como um efetivo teatro de comunidade, e de transformação social por também ter o auxílio, em sua formação, dos coletivos artísticos argentinos Etcétera e G.A.C. (Grupo de Arte Callejero).

O H.I.J.O.S. realiza suas performances como práticas de intervenções essencialmente urbanas, criando situações, interferindo no cotidiano das pessoas, comunicando seus ideais e transformando quem assiste e quem realiza a performance. É o teatro para a comunidade: uma performance que busca fugir do mercado, do formato de mercadoria, do produto e interferir na estrutura urbana, penetrar o sistema e invadir sua base, comunicando seus ideais para as pessoas e enfrentando o poder instituído.

Page 64: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 64 Temáticas e explorações estéticas urgentes

A performance realizada, chamada de escrache pelo H.I.J.O.S., surpreende diversas camadas dessa sociedade, desestabilizando o sistema e concretizando objetivos motivados por ideais políticos. O termo escrache, segundo a pesquisadora e professora da N.Y.U. (New York University) Diana Taylor, está etimologicamente relacionado a “exasperar = expelir, e é definido como arrojar algo com força” (2000, p.38). Por exemplo, um general torturador na ditadura militar foi preso após uma performance de H.I.J.O.S. em Buenos Aires. Outro general, Massera, que estava internado no Hospital Naval, em Buenos Aires, foi vítima do grupo em uma das performances e acabou falecendo após três dias. Ninguém fica impune a performances, tamanha é sua interferência no cotidiano. A performance política, elucidada por Jan Cohen-Cruz, tem a “capacidade de transformação” (1998, p.13). Assim, o grupo foge do que é caracterizado como produto e dos processos de reificação e, por sua vez, cria armas contra o domínio do capitalismo, da injustiça. O H.I.J.O.S. investe nas brechas deixadas pela onipresença exacerbada das políticas de desenvolvimento na Argentina. O grupo destrói o que os oprime, sem inventar maneiras de disfarçar os traumas. Isso fica claro ao analisar como o grupo define o conceito de escrache, nome utilizado para suas performances políticas:

Foto

de

cart

az d

a

cart

og

rafi

a d

o H

.I.J.

O.S

.

par

a se

us

escr

ach

es.

(htt

p:/

/ww

w.h

ijos.

org

.ar/

)

Page 65: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo
Page 66: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 66 Temáticas e explorações estéticas urgentes

O escrache é uma ferramenta para poder derrubar o muro da impunidade, é informar o que a história oficial nega, é um grito que deixa em agonia o silêncio. O escrache é testemunho transformado em denúncia e mobilização. É a agitação em massa, o canto, é protesto transformado em criatividade. Se não existe justiça, existe escrache. (Tradução do autor para panfleto do H.I.J.O.S, 2000)

Page 67: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

67 | O Escrache: uma arma para a transformação social

O grupo argentino invade uma rua onde está situada uma casa de um torturador da ditadura militar, ou onde ele estiver, e o denuncia para a população. Nos escraches os H.I.J.O.S., além de seus corpos, usam figurinos e máscaras (roupas, que podem ser estranhas ou cotidianas, que eles consideram próprias para o escrache ter mais impacto e para os confrontos com policiais), tintas (para pichar nos muros e nas paredes os nomes das vítimas do escrache, torturadores e até instituições, com seus endereços e acusação), bombas de tinta vermelha (usadas para manchar a casa da vítima), entre outras “armas”. Dependendo da situação os integrantes do grupo têm que se disfarçar para invadir o espaço e surpreender a vítima, como o fizeram no julgamento pela violação dos direitos humanos do general Alfredo Astiz, quando o grupo realizou o escrache em pleno tribunal. Porém, geralmente, mesmo fazendo a invasão no espaço público, o H.I.J.O.S. divulga o escrache com o endereço da vítima, dia, hora, lugar de início e, às vezes, os crimes que a vítima cometeu.

Page 68: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 68 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Por performance se entende o restaurado, o (re)iterado, o que Richard Schechner chama de twice behaved behavior – “repertório reiterado de condutas repetidas”. Cria um espaço privilegiado para o entendimento de trauma e memória. Trauma, e seus efeitos “pós-traumáticos” seguem manifestando-se corporalmente muito depois de que passou o golpe original. O trauma regressa, se repete em forma de comportamentos e experiências involuntárias. Ainda que a performance não seja uma (re)ação involuntária, o que se assemelha com o trauma e que também se caracteriza como o reiterado. Performance (o mesmo que memória, o mesmo que trauma) é sempre uma experiência no presente. (TAYLOR, 2000, p.34)

Ao tentar definir os preceitos da performance do grupo argentino foi preciso encontrar outros teóricos que também o analisavam. A pesquisadora Diana Taylor apoia-se em Richard Schechner para elucidar o escrache como performance:

Page 69: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

69 | O Escrache: uma arma para a transformação social

Considerando o conceito proposto por Taylor, o H.I.J.O.S. pratica um teatro de transformação social. Se o grupo não transforma fisicamente o espaço público escolhido estrategicamente para a ação, ou transforma momentaneamente os usos deste espaço e as pessoas que estão nele durante o escrache, no mínimo eles transformam a eles mesmos, pois estão lidando com seus traumas e memórias. São traumas e memórias, pois, no início de sua formação, em 1996, o grupo foi fundado basicamente por jovens que tinham perdido seus pais durante a ditadura militar na Argentina. Nesse período os militares que estavam no governo fizeram desaparecer, assassinaram e torturaram mais de 30.000 pessoas. Esses jovens queriam tentar reaver seus pais ou pelo menos os corpos, e o escrache foi um modo de protesto, uma matéria de ações, que eles criaram para serem escutados.

Page 70: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 70 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Contudo, o que caracteriza o escrache como um modo tão efetivo de ser não apenas um teatro para a comunidade, mas um teatro com e por comunidade é a presença, hoje em dia, de sessões de H.I.J.O.S. por toda a América Latina e por alguns países da Europa. Inclusive no Brasil, como podemos ver, atualmente, pelos escrachos em aeroportos aos políticos golpistas, e em 2013, com a intervenção na placa da ponte estaiada em São Paulo substituindo o nome oficial (que não convém nem mencionar aqui) pelo do Jornalista Vladimir Herzog (assassinado na Ditadura Militar no Brasil). O escrache, atualmente, é uma arma difundida em outros territórios, em outras comunidades, e operada por atores, e não atores, do H.I.J.O.S. ou não. O escrache não precisa ser feito por integrantes do grupo, pois a intenção sempre foi que diversas pessoas participassem dele, tomando a luta para si e agindo por vontade própria. Um autêntico teatro político de transformação, nos moldes em que Augusto Boal propôs com suas estratégias em seu Teatro do Oprimido. A fórmula do H.I.J.O.S. pode ser menos clara como teatro, mas é tão intervencionista, participativa e efetiva no sentido da transformação social quanto um teatro político tradicional.

Page 71: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

71 | O Escrache: uma arma para a transformação social

Ao redor do mundo, inúmeros jovens órfãos encontraram suas raízes parentais depois do trabalho de H.I.J.O.S., destes, alguns até se descobriram órfãos, pois viviam com famílias que não eram as suas, como filhos de generais torturadores que os roubaram, e os criaram, após matarem seus pais. O fundamental, portanto, é que o grupo atua concretamente no cotidiano das pessoas, no espaço público, e estabelece uma relação de confiança para qualquer um participar, organizar e executar o escrache. Esse teatro político de transformação pode ser feito por qualquer pessoa, de qualquer comunidade, de inúmeras maneiras, pois todas as comunidades neste mundo de terror capitalista estão de alguma maneira oprimidas, e reprimidas, pela lógica do mercado.

Diana Taylor elucida a ideia de performance como sendo uma teoria que provém de “estudos antropológicos que focam em dramas sociais e coletivos e de estudos teatrais”. Nessa definição, Taylor (2000, p.34) inclui os mais diversos tipos de acontecimentos sociais “ao vivo, peças teatrais, bailes, rituais, manifestações políticas, esportes, festas (entre muitos)”. Renato Cohen (1989, p.87-88) esclarece as ideologias da performance quando diz que:

Page 72: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 72 Temáticas e explorações estéticas urgentes

O artista é um relator de seu tempo… O discurso da performance é o discurso radical. O discurso do combate (que não se dá verbalmente, como no teatro engajado, mas visualmente com as metáforas criadas pelo próprio sistema), da militância, do underground…

Diana Taylor frisa a relação substancial que a performance do H.I.J.O.S. pode ter com o teatro, quando coloca que esta, em “termos de conteúdo dramático, alcança a dimensão da tragédia aristotélica” e “o alívio catártico ajuda os H.I.J.O.S. a superarem suas perdas”. No final dos escraches é costumeiro entre os participantes se abraçarem e chorarem descarregando suas emoções. “Os escraches são menos solenes e mais carnavalescos”, diz Taylor (2000, p.38-39), por causa da libertação emocional que ocorre no instante da ação.

Page 73: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

73 | O Escrache: uma arma para a transformação social

Car

taz

de

div

ulg

ação

de

um

escr

ach

e d

o H

.I.J.

O.S

.

(htt

p:/

/ww

w.h

ijos.

org

.ar/

)

Page 74: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 74 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Os participantes do grupo são atores da vida, do “espetáculo” real, que transformam o roteiro da história de quem está na performance. O escrache, por suas induções, infiltrações e legítima violência, invade, pressiona, violenta e chantageia a mídia e os poderes vigentes. Nessa ótica, o H.I.J.O.S. também faz, como na definição do performer, de Renato Cohen (1989, p.47):

[…] Um trabalho humanista, visando a libertar o homem de suas amarras condicionantes, e a arte dos lugares comuns, impostos pelo sistema. Os praticantes da performance fazem parte de um último reduto que Susan Sontag chama de “heróis da vontade radical”, pessoas que não se submetem ao cinismo do sistema, e praticam, à custa de suas vidas pessoais, uma arte de transcendência.

Page 75: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

75 | O Escrache: uma arma para a transformação social

A performance pode ser, grosso modo, definida como um teatro de apresentação, no qual os atores/performers realizam uma ação no presente instante das próprias vidas e das vidas de diversas pessoas. Nesse sentido, o grupo argentino opera de modo concreto, não só quando realiza a performance no instante do cotidiano das pessoas como na transformação social, quando inverte a lógica do Estado, que sempre oculta, desaparece, extermina, anula e evidencia, mas traz à tona atrocidades cometidas no passado que incomodam culturalmente o presente de toda uma nação.

Page 76: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 76 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Car

taz

de

div

ulg

ação

de

um

escr

ach

e d

o H

.I.J.

O.S

.

(htt

p:/

/ww

w.h

ijos.

org

.ar/

)

Um dos fatores mais importantes do funcionamento do escrache é o fato de este acontecer na cidade, nas ruas e com a participação dos cidadãos, da comunidade. A ação no espaço urbano da rua proporciona uma releitura da vida social, atuando em seu âmago, com o objetivo de modificá-lo. A rua, desse modo, torna-se o lugar de um ato intrinsecamente revolucionário no âmbito da vida real.

Page 77: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo
Page 78: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 78 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Em um mundo onde a arte é feita para o comércio, o teatro se resume em festivais, e temporadas são bancadas por projetos de leis de incentivo, a arte é produto e, ainda, patrimônio do capital – censura e dinheiro unidos em um único projeto. É a morte da arte de transformação. O que interessa é a alienação nos simulacros tecnológicos do poder que é invisível, mas que ainda deixa brechas. É por essas brechas que a arte deve penetrar. A rua, nesse caso de uma sociedade consumista, opera como a libertação da arte como mercadoria, ou seja, talvez o teatro político de transformação social seja essencialmente um fenômeno urbano, e hoje em dia sua potência se suceda no espaço urbano.

Page 79: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

79 | O Escrache: uma arma para a transformação social

O teatro de transformação social contemporâneo é, segundo Taylor, o teatro que consegue extrair ou transformar imagens culturais comuns de um arquivo coletivo, porém atuando em contextos sociais. Dessa maneira, a performance que invade o espaço público não só provoca uma transformação dentro de um ambiente comum, mas também “remarca as fissuras na lógica do Estado” (TAYLOR, 2000, p.35). O ambiente da rua, atualmente, não é, e nunca foi, livre; pelo contrário, é onde enxergamos as provas da repressão, mas por isso sempre foi e sempre será berço de “revoluções” e transformações.

Page 80: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo
Page 81: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

81 | O Escrache: uma arma para a transformação social

Car

taz

de

den

ún

cia

do

H.I.

J.O

.S.

de

um

a p

risã

o m

ilita

r cl

and

esti

na

uti

lizad

a n

a d

itad

ura

.

(htt

p:/

/ww

w.h

ijos.

org

.ar/

)

Acredito que o trabalho que o H.I.J.O.S. vem desenvolvendo oferece táticas importantes para essa aproximação, e que educadores e “fazedores” de teatro devem considerar, para análise, ações afins ao escrache, para expandir e aprofundar um tipo de teatro que atua para, com e pela comunidade, com o objetivo de uma transformação social, utilizando-se de ferramentas igualmente violentas quanto à dura realidade que a pressiona. No ERRO Grupo (coletivo no qual sou diretor) foram identificados procedimentos estratégicos de ação urbana oriundos de movimentos político-sociais para que no início do grupo começássemos a desenvolver nossas formas de ação. Procedimentos como participação, deslocamento, ocupação, confiança e invisibilidade foram fundamentais para uma construção poética do ERRO Grupo, assim como para tentarmos que nossas ações fossem eficazes além do contexto artístico. É tarefa articular ações em pesquisas e obras para ir além na comunicação com a cidade e seus habitantes, construindo maiores vínculos de aproximação com a vida de cada um que faz, participa, não apenas contempla um teatro político de transformação social.

Page 82: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 82 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Bibliografia

BENNATON, Pedro. Deslocamento e invasão: estratégias para a construção de situações de intervenção urbana. Dissertação de Mestrado. Florianópolis, UDESC, 2009.

COHEN, Renato. A Performance como linguagem.São Paulo: Ed. Perspectiva, 1989.

COHEN-CRUZ, Jan. Radical Street Performance. New York: Ed. Routledge, 1998.

H.I.J.O.S. – periódicos - año 6, nº 9, Verano 2001, Buenos Aires.

________. – material coletado de arquivo iconográfico (fotos, cartazes, panfletos etc.), http://www.hijos.org.ar/ e http://www.hijos-capital.org.ar/.

SAGASETA, Julia Elena. Teatro y Performance. Urdimento: Revista de Estudos em Artes Cênicas, n.3, Udesc, Florianópolis, 2000.

SCHECHNER, Richard. The Future of Ritual – writings on culture and performance. London and New York: Ed. Routledge, 1995.

TAYLOR, Diana. Disappearing Acts: Spectacles of Gender and Nationalism in Argentina’s “Dirty War”. Durham, NC: Duke University Press, 1997.

TAYLOR, Diana. El espectáculo de la memoria: trauma,

Page 83: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

83 | O Escrache: uma arma para a transformação social

performance y política. Teatro al Sur nº 15, 2000, pp. 34-40.

TAYLOR, Diana. The Archive and the Repertoire: Performing Cultural Memory in the Americas. Durham, NC: Duke University Press, 2003.

TEATRO AL SUR. Periódico. n.24, Junio de 2003. Buenos Aires.

Page 84: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Stela Fischer 1(SÃO PAULO/SP)

CENA E FEMINISMOS DECOLONIAIS LATINO-AMERICANOS: SUBJETIVIDADES COMO ZONAS DE CONFRONTO

Page 85: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

1 - Stela Fischer (SP) é doutoranda em Artes Cênicas na

Universidade de São Paulo, Mestre em Artes/Teatro pela

Universidade Estadual de Campinas. Autora do livro

Processo Colaborativo e Experiências de Companhias

Teatrais Brasileiras (Hucitec, 2010). Coordena na

cidade de São Paulo o Coletivo Rubro Obsceno, um

agrupamento de mulheres artistas com a finalidade de

discutir as questões de gênero nas artes da cena.

CENA E FEMINISMOS DECOLONIAIS LATINO-AMERICANOS: SUBJETIVIDADES COMO ZONAS DE CONFRONTO

Page 86: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 86 Temáticas e explorações estéticas urgentes

AO TRATAR DA CENA DE MULHERES ARTISTAS latino-americanas que tomam as subjetividades como zonas de confronto, inevitavelmente abre-se a discussão sobre o momento presente, no qual vivemos nas frestas das reedições de processos de colonização. Na compreensão de como ainda se perpetuam as condições de subalternidade e de controle dos nossos modos de existir, utilizo alguns exemplos de cenas criadas como contravenção às situações de opressão que se evidenciam neste momento atual de instabilidade política na maioria dos países da América Latina. Sobretudo, no contra-ataque: ao colonialismo histórico; às sequelas de governos ditatoriais; às dinâmicas de neocolonização dos nossos governos (legítimos ou não) cada vez mais conservadores, com tendências religiosas apenas pelo interesse pelo eleitorado; aos nossos sistemas de informação, comunicação e entretenimento, muitas vezes alinhados aos interesses das políticas neoliberais globalizadas, etc.; dispositivos estes que atuam como aparelhos biopolíticos com distribuição e produção de “anatomias estandardizadas que mantêm vigentes/atualizam/performam a ficção humana do sujeito hegemônico” (SAYAK, 2014).

Page 87: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

87 | Cena e feminismos decoloniais latino-americanos: subjetividades como zonas de confronto

2 - A “Bolsa Estupro”, de autoria dos deputados federais Luiz Bassuma (PT-BA) e Miguel Martini (PHS-MG), é uma assistência financeira para as gestantes que tenham sido vítimas de estupro e que decidam levar sua gravidez adiante, ao invés de abortar. Nesse caso, o pai terá direito de registrar a criança, ser o responsável pela pensão alimentícia e ter direito, consequentemente, à visita a criança. O projeto também inviabiliza pesquisa com células-tronco e fertilização in vitro.

No Brasil, por exemplo, uma problemática que se ergue são as articulações de dominação por parte de governantes, muitos deles filiados a partidos que têm vínculos com o fundamentalismo cristão. Um dos sintomas de disciplinamento dos corpos femininos ou feminilizados sob a perspectiva heterossexual, branca, cristã, misógina é o crescente número de adesões e tentativas incoerentes de aprovação de Projetos de Leis que controlam os direitos de gênero e sexualidade brasileiros. Por exemplo, o Estatuto do Nascituro (PL 487/07), que prevê que o aborto seja proibido em qualquer circunstância, atribuindo ao embrião o status jurídico e moral de pessoa nascida e viva, e seu desdobramento na “Bolsa Estupro”2; o Estatuto da Família (PL 6583/13), que define como entidade familiar o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, excluindo a união entre pessoas do mesmo sexo como família; o PL 5069/2013, que restringe o atendimento pelo Sistema Único de Saúde às vítimas de violência sexual; o PL 2731/2015, que propõe alterar o Plano Nacional de Educação blindando a discussão de gênero nas escolas; entre tantas outras proposições em tramitação. Todos esses PLs ilustram bem o quanto a sexualidade e as mulheres brasileiras têm sido cada vez mais vigiadas e há, sem dúvida, uma iminência de retrocesso em nosso Congresso Nacional. Considerando que essa realidade é também resultado de uma crescente onda conservadora contra os governos de esquerda em grande parte dos países latino-americanos, vejo tentativas hostis de dominação que geram formas de pensamento normativo e condutas que incentivam a formação de frentes de violências de gênero.

Page 88: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 88 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Grupos invisibilizados como os das mulheres, dos imigrantes, dos negros e dos cidadãos de sexualidades dissidentes e policiadas aparecem nos estudos multiculturais e decoloniais como categorias fundamentais para observar as lógicas coloniais e são colocados no centro de suas discussões emancipatórias. Nessa direção, tenho especial interesse pelos estudos e manifestações decoloniais que, como esclarece a linguista estadunidense radicada no Equador, Catherine Walsh, em seu ensaio Notas pedagógicas desde las grietas decoloniales (2014), vêm das margens, das bordas, das pessoas e comunidades, dos movimentos coletivos que transgridem as matrizes de poder colonial em suas práticas de ser, de existência, de criação e do pensamento.

Essas informações estão aqui sumariamente destacadas apenas para justificar que ainda se faz necessário e imprescindível tratar das questões sobre a legitimação de direitos e descolonização dos corpos desses grupos ainda invisibilizados em diversos âmbitos, inclusive no artístico; da cena que é proposta como desafios estéticos relacionais trançados ética e politicamente, expandindo sua capacidade de resistência do campo social global, nas negociações entre os espaços poéticos e os do real (BOURRIAUD, 2009).

Page 89: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

89 | Cena e feminismos decoloniais latino-americanos: subjetividades como zonas de confronto

Essa expansão da dimensão poética das artes para o campo social é o que Ilena Diéguez, ao apropriar-se de conceitos propostos pela teoria do antropólogo Victor Turner sobre a liminaridade, sugere como o espaço intersticial das artes no qual se configura uma “zona complexa onde se cruzam a vida e a arte, a condição ética e a criação estética, como uma ação da presença num meio de práticas representacionais” (DIÉGUEZ, 2011, p.20). O sujeito/a sujeita da representação decolonial está para além do artista, incorporando uma presença social, atuando também como representante da cidadania na qual está imbricado o trabalho artístico. E esse artístico está inteiramente envolto pelo tecido intersubjetivo e social que desmonta as formas de representações convencionais para dar lugar à presença e às corporeidades que questionam as derivações de dominação e colonização ainda presentes em nossas culturas subalternas. O corpo é, então, tomado como zona de confronto, de resistência.

Page 90: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 90 Temáticas e explorações estéticas urgentes

É importante destacar que práticas de artistas mulheres latino-americanas apontam em direção a uma ressignificação dos discursos feministas e, consequentemente, de gênero, nos quais se transcende a condição de vitimização. Nesse panorama, o entendimento da arte feminista vem se tornando cada vez mais flexível, aberto, e códigos binários como opressor/vítima, ativo/passivo, homem/mulher, heterossexual/homossexual não são mais seus pontos fortes, mas, sim, a ambiguidade, a marginalidade, a subversão, a resistência, as subjetividades que a constituem. Muitas vezes esses discursos são articulados com outros temas para além das questões de gênero, como a militarização de países da América Latina no combate ao narcotráfico; as denúncias contra a lógica do sistema neoliberal global; os processos discriminatórios relacionados à racialização e à vulnerabilidade dos povos indígenas e das classes empobrecidas pelo sistema de poder capital; os vestígios do trauma e da memória social de nossos governos ditatoriais; entre outros temas que tocam tantas questões identitárias, entretanto alinhadas às atuais discussões de gênero.

Page 91: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

91 | Cena e feminismos decoloniais latino-americanos: subjetividades como zonas de confronto

3 - Regina José Galindo é artista autodidata e performer guatemalteca. Pesquisa o corpo em situação de resistência física como meio de abordar sua estética decolonial, transmitindo memória social e identidade. Não há como negar que sua condição como mulher latina imprime em suas performances uma historicidade marcante. Sobre Galindo, Diana Taylor (2012, p.134) ressalta ainda o seu físico aparentemente frágil, uma mulher de pequena estatura, magra, de cabelos negros, como a representação dos corpos de todas as mulheres da Guatemala, mas de extrema valentia quando toma seu corpo como zona de resistência a violentas forças sociais.

4 - Texto extraído do Catálogo/Programa do 8º Encontro do Instituto Hemisférico Cidade/Corpo/Ação: A Política das Paixões nas Américas. São Paulo, 2013, p. 60.

Essa contemporização dos feminismos no teatro e na performance é validada pelo crescente interesse de artistas e ativistas latino-americanas em realizar trabalhos com a prerrogativa de denúncia e intervenção nos contextos sociais e políticos nos quais se inserem. Artistas que permitem, com sua prática de resistência e seus testemunhos pessoais, autenticar suas histórias de exploração, nas quais protagonizam os questionamentos sobre identidades tidas como expatriadas, a “outra”, a subalterna, a marginal sob a ótica colonial e da massificação globalizada. Como o faz, por exemplo, a performer guatemalteca Regina José Galindo3, em Piedra (2013), na qual ocupa o espaço de cena nua, com o corpo inteiro negro, pintado de carvão. Deitada sobre os calcanhares, imóvel e em silêncio, consente que três pessoas urinem em suas costas. No chão, fica impressa a marca do corpo, de tinta e de fluidos deste ato ritual de desonra. A performance me afeta pela violência histórica a que somos subjugadas e me coloca numa experiência de humilhação, disciplinamento, exclusão e silêncio, como todos os corpos colonizados de milhares de mulheres das Américas. Nos dizeres de Galindo:

Sobre o corpo das mulheres latino-americanas está inscrita a história da humanidade. Sobre os corpos conquistados, marcados, escravizados, objetificados, explorados e torturados pode-se ler as nefastas histórias de luta e poder que formam nosso passado. Corpos frágeis somente na aparência. É o corpo da mulher que sobreviveu à conquista e à escravidão. Que como pedra guardou o ódio e o rancor em sua memória para transformá-lo em energia e vida4.

Page 92: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 92 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Perf

orm

ance

Pie

dra

. São

Pau

lo, j

anei

ro d

e 20

13.

Foto

s: J

ulio

Pan

toja

/

Inst

itu

to H

emis

féri

co.

Page 93: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

93 | Cena e feminismos decoloniais latino-americanos: subjetividades como zonas de confronto

Page 94: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Vio

leta

Lu

na

em R

equ

iem

for

a lo

st la

nd

/ R

equ

iem

par

a u

na

tier

ra p

erd

ida.

Foto

: Fid

el U

gart

e.

Page 95: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

95 | Cena e feminismos decoloniais latino-americanos: subjetividades como zonas de confronto

Ou também em Requiem for a lost land / Requiem para una tierra perdida (2012), da performer mexicana Violeta Luna5. Em passagem pelas fronteiras estéticas e conceituais entre o teatro e a performance, Luna executa uma série de ações em procedimento ritual para lembrar os inúmeros assassinatos cometidos na “guerra às drogas” no México. A cena mais marcante de sua performance é quando se desfaz a longa e negra trança dos cabelos de origem marcadamente indígena e os penteia com uma violência crescente. Abaixa-se com os cabelos jogados para frente, cobrindo seu rosto e neles coloca, com a destreza de um prestidigitador, fotos 3x4 de pessoas com rostos desconhecidos. Em seguida, derrama sobre os cabelos um líquido vermelho. Um rio de sangue se forma, submergindo os rostos das fotos que nos remetem à identidade dos inúmeros mortos, dos corpos esquartejados, das mulheres violadas, das crianças sem pais, dos inocentes sequestrados. Retrato da violência com que muitos cidadãos, inclusive as mulheres, são afetados pela cultura da violência incitada pelo ex-presidente mexicano Felipe Calderón no combate ao narcotráfico, com o apoio incondicional dos Estados Unidos, país com maior responsabilidade pela militarização da América Latina. Dessa forma, esse trabalho me força a olhar para o recente cenário de destruição e violência no México, no qual Luna submete seu corpo em cena como “território político”, estabelecendo uma zona de confronto sensível, um depoimento vivo do trauma.

5 - Violeta Luna é atriz, performer e ativista mexicana, radicada em São Francisco, Califórnia. Trabalhou com o grupo La Pocha Nostra e atualmente com Secos & Mojados. Também desenvolve trabalhos solos e é membro do The Magdalena Project, rede internacional de artistas mulheres do teatro, pela qual viaja levando seu trabalho para diversos países. Mais informações sobre a artista no site: www.violetaluna.com.

Page 96: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 96 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Outra ação é Para aquelas que não mais estão (2015), parceria entre Violeta Luna e o coletivo Rubro Obsceno6, agrupamento do qual faço parte em São Paulo. Nessa performance tratamos do tema do feminicídio por acreditarmos ser imprescindível denunciar a cultura do ódio às mulheres que parece intensificar-se e reforçar padrões históricos que naturalizam o discurso da violência contra a mulher e colonizam seus corpos como territórios. Um exemplo de sua radicalização são os genocídios de Ciudad Juárez (México), enunciado por Rita Laura Segato como uma “nova forma de guerra” (2012).

Foi divulgado no mês de outubro de 2015 o último “Mapa da Violência” informando que o Brasil é o quinto país do mundo em feminicídio, ficando atrás de El Salvador, Colômbia, Guatemala e a Rússia. O estudo informa que, entre 2003 e 2013, o número de homicídios de mulheres passou de 3.937 para 4.762, um aumento de 21%. Isso representa uma média de 13 mulheres assassinadas por dia, sendo que 61% são de mulheres negras (WAISELFISZ, 2015, p.30).

Page 97: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

97 | Cena e feminismos decoloniais latino-americanos: subjetividades como zonas de confronto

Após todo o itinerário traçado durante a performance para materializar uma denúncia poético-cênica da violência contra as mulheres que constantemente cai em esquecimento e impunidade, o momento final é a construção de um memorial às vítimas de feminicídio na América Latina nos últimos anos. Em silêncio, ajoelhadas diante das fotos das vítimas de feminicídio, acendemos velas dizendo os nomes e idades de mulheres assassinadas. Também convidamos o público para acender suas velas. A atmosfera é a de um velório, um ritual em celebração a essas vidas descontinuadas. No total são acesas 150 velas, 150 mulheres, apenas 150. Infelizmente, neste exato momento, este número continua a crescer...

6 - O coletivo Rubro Obsceno é um agrupamento cênico criado em 2013 na cidade de São Paulo, a partir dos encontros do The Magdalena Project no Brasil. Realiza projetos artísticos sociais, com um teatro mais voltado para o empoderamento de diferentes grupos de mulheres, por exemplo, mulheres com HIV, mulheres em situação de violência, mulheres com mais de 60 anos e, agora, mulheres presidiárias. São atividades de formação e também de criação cênica pautada em suas histórias pessoais. Também produziu a Mostra ObsCENAS (SP, 2014), que reuniu artistas de várias cidades e contou com a presença de Julia Varley, atriz do Odin Teatret e fundadora da rede The Magdalena Project. Em março deste ano, organizou a “Ocupação Mulheres Performance e Gênero”, junto ao Coletivo Dodecafônico na Oficina Cultural Oswald de Andrade, que resultou na apresentação ininterrupta de 16 horas de performances de artistas mulheres. A performance Para aquelas que não mais estão foi concebida para a programação da II Bienal Internacional de Teatro da Universidade de São Paulo e estreou em 18 de dezembro de 2015, no TUSP, São Paulo. Também foi apresentada no X Encuentro do Hemispheric Institute of Performance and Politics, em Santiago do Chile, julho de 2016.

Page 98: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 98 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Vio

leta

Lu

na,

Ste

la F

isch

er e

Leti

cia

Oliv

ares

, em

Par

a aq

uel

as

qu

e n

ão m

ais

estã

o, n

o in

stan

te

fin

al d

a p

erfo

rman

ce: a

cen

der

vela

s, e

voca

r o

s n

om

es e

reve

ren

ciar

a v

ida.

Foto

s: R

od

eric

k S

teel

Page 99: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

99 | Cena e feminismos decoloniais latino-americanos: subjetividades como zonas de confronto

Partilhamos a dor da morte de nossas “irmãs”. Nossa cena associa-se ao real, não no sentido de substituí-lo, pois o espaço da arte não pode suprir o estado de luto, visto que este está atravessado pelo esquecimento, pela indiferença, pela escassez de justiça. É, antes de tudo, um memorial para celebrar e recordar aquelas que viveram entre nós, dilatando a inteligibilidade da violência que acomete muitas mulheres. Ressignificamos, assim, o espaço do teatro para criar outra espacialidade performativa: a de visibilizar os vestígios dessas mortes e reunir as memórias das mulheres assassinadas em uma cerimônia pública na qual se expõe muito mais do que uma ação cênica. Um lugar para “evocar ao invés de um lugar para representar” (DIÉGUEZ, 2013, p.210).

Page 100: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo
Page 101: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo
Page 102: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 102 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Então...

As artistas aqui enunciadas utilizam seus corpos, discursos e poéticas como vias de inscrições políticas. Uma arte em consonância com os feminismos latino-americanos decoloniais que subvertem os binarismos e validam a visibilidade dos modos de existir em desobediência às delimitações e segregações impostas pelas formas coloniais operantes na atualidade. Articulam, a partir de suas criações, outros temas numa dinâmica capaz de envolver afetos múltiplos, principalmente quando se trata de construção de subjetividades com valores sociais que desestabilizem as construções e os códigos hegemônicos de interesses corporativados.

Page 103: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

103 | Cena e feminismos decoloniais latino-americanos: subjetividades como zonas de confronto

E é na interseção entre performance, teatro, ativismo social e as atuais teorias feministas que me interessa destacar essas cenas feitas de fissuras e aporias, de hibridizações, sincretismos que convocam as identidades marginalizadas de diversas mulheres para tomar o centro das discussões, pelo viés político, ético, poético. Uma cena, feita por mulheres, necessária neste momento de anacronismos políticos que efetuam exclusão da cidadania e incentivam a precarização da vida. Uma cena realizada nas articulações do pensamento decolonial, a partir das políticas do corpo e das artes como campos de experimentação identitária, no qual as diferenças são aceitas e estimuladas, e as relações de poder e a ilegitimidade dos nossos governos são denunciadas.

Page 104: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 104 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Referências

BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

DIÉGUEZ, Ileana. Cenários Liminares: teatralidades, performances e política. Uberlândia: EDUFU, 2011.

______. Cuerpos sin duelo: iconografias y teatralidades del dolor. Córdoba: DocumentA/Escénicas, 2013.

HEMISPHERIC INSTITUTE. Catálogo/Programa do 8º Encontro do Instituto Hemisférico Cidade/Corpo/Ação: A Política das Paixões nas Américas. São Paulo, 2013.

SAYAK,Valencia. Interferencias transfeministas y pospornográficas a la colonialidad del ver. E-misférica, vol.11, n.1. 2014. Disponível em: <http://hemisphericinstitute.org/hemi/es/e-misferica-111-gesto-decolonial/valencia>. Acesso em: jul. 2016.

SEGATO. Rita Laura. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial. E-cadernos ces, n. 18, 2012. Disponível em: <https://eces.revues.org/1533>. Acesso em: 22 jan. 2016.

TAYLOR, Diana. Performance. Buenos Aires: Asunto Impreso ediciones, 2012.

Page 105: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

105 | Cena e feminismos decoloniais latino-americanos: subjetividades como zonas de confronto

WAISELFISZ, Julio J. Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil. Brasília, DF: ONU Mulheres, OPAS/OMS, Flacso e Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2015. Disponível em: <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf>. Acesso em: jul. 2016.

WALSH, Catherine. Notas pedagógicas desde las grietas decoloniales. E-misférica, vol.11, n.1. 2014. Disponível em: <http://hemisphericinstitute.org/hemi/es/e-misferica-111-gesto-decolonial/walsh>. Acesso em: jul. 2016.

Page 106: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Rafael Litvin Villas Bôas 1(BRASÍLIA/DF)

NOTAS PARA RETOMADA DO DEBATE SOBRE TEATRO E REVOLUÇÃO NO BRASIL

Page 107: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

1 - Rafael Litvin Villas Bôas (DF) é professor da

Faculdade UnB Planaltina, do PPG em Literaturas e

do Mestrado Profissional em Artes da Universidade

de Brasília. Integrante do Coletivo Terra em Cena e

coordenador do grupo de pesquisa Modos de Produção

e Antagonismos Sociais.

NOTAS PARA RETOMADA DO DEBATE SOBRE TEATRO E REVOLUÇÃO NO BRASIL

Page 108: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 108 Temáticas e explorações estéticas urgentes

CINQUENTA E DOIS ANOS após iniciar o último golpe de Estado no Brasil, que nos manteve sob ditadura militar por vinte e um anos (1964-1985), estamos vivendo o primeiro golpe de Estado no País, no século XXI, porém em chaves distintas das anteriores. O atual estado de exceção é decorrente de um golpe midiático-jurídico-parlamentar e, também, para os movimentos sociais do campo, é repressivo, por meio da articulação de setores da justiça com forças policiais estaduais.

Na década de 1960 a Revolução Brasileira era uma questão debatida não apenas no plano da especulação teórica, estava ao rés do chão, debatida no plano da estratégia, como possibilidade concreta vislumbrada por setores da esquerda brasileira. Diversos segmentos de trabalhadores da arte tomaram parte no debate, muitas obras precipitaram o debate ao dar forma estética às contradições da realidade nacional. Falar em revolução não era algo deslocado diante das condições objetivas do contexto, considerado por muitos como o único período pré-revolucionário que o Brasil viveu no século XX.

Page 109: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

109 | Notas para retomada do debate sobre teatro e revolução no Brasil

Todavia, um dos efeitos das derrotas políticas é a expropriação da memória dos perdedores. Retirar do horizonte estratégico a perspectiva da revolução foi uma das principais conquistas da classe dominante. Partidos limitados ao horizonte das eleições da democracia representativa, que elegeram o marketing político como a arma principal de diálogo com as massas, sempre em registro apelativo, em detrimento do trabalho de base, da formação e da capilaridade do trabalho de agitação e propaganda: é a imagem do cenário de terra arrasada da política brasileira, vitimada por sucessões intermitentes de ciclos de contrarrevoluções preventivas, em que práticas distintas, como as preservadas e fortalecidas por movimentos sociais ou por coletivos de teatro político, aparecem hoje como residuais.

Page 110: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 110 Temáticas e explorações estéticas urgentes

A despeito da conjuntura pessimista, levantamos elementos que nos permitem avaliar que novas possibilidades surgem no mesmo compasso em que novas gerações emergem na política, recuperando táticas de luta, inventando métodos e se defrontando com um cenário, talvez, menos obnubilado pela ideologia. “Mais que o fim de nossas esperanças no futuro, vivemos o fim de uma época de ilusões”, finaliza Nildo Ouriques, no texto “Crise no Brasil: o eclipse da inocência”, para a revista argentina Confluencia: la unidad es nuestra apuesta revolucionária (n.7, 2016).

Este texto propõe um mapeamento, em forma de notas, dessa guinada histórica regressiva, e pretende destacar, em contraparte, as possibilidades contra-hegemônicas do cenário em que se insere a retomada do teatro político brasileiro, com o intuito de reavaliar o sentido contemporâneo do debate sobre teatro e revolução. Quais experiências em andamento indicam a superação dos limites impostos pela forma mercadoria? Em que medida o teatro político pode atuar na reconstrução de um bloco histórico de esquerda em perspectiva anticapitalista? Quais fissuras no poder hegemônico as crepitações mais acirradas da luta de classes, desde julho de 2013, no Brasil, foram capazes de causar, e em que medida elas podem ser expandidas, com potencial de ruptura com estruturas de poder?

Page 111: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

111 | Notas para retomada do debate sobre teatro e revolução no Brasil

2 - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

1. De quando o teatro brasileiro falava em Revolução

Há dezoito anos Iná Camargo Costa publicava no livro Sinta o Drama (1998) um breve texto que sintetizava o argumento de sua tese de doutorado A hora do teatro épico no Brasil 2, publicada em 1996: Teatro e revolução nos anos 60.

Page 112: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 112 Temáticas e explorações estéticas urgentes

A autora descreve no texto o movimento de ascenso da produção do teatro político evidenciando o acúmulo no campo da dramaturgia e da organização do trabalho, destacando a superação dos limites tradicionais impostos ao teatro pela forma mercadoria: “se alguma vez houve revolução no teatro brasileiro, esta aconteceu no CPC” (COSTA, 1998, p. 186). E exemplificava como os espetáculos posteriores ao golpe de 1964 já apresentavam mecânicas de reificação da força produtiva do teatro épico:

depois de [Arena conta] Tiradentes, o teatro épico não tinha mais chances na dramaturgia brasileira, o que não impediu, nem poderia, a adoção de seus achados técnicos, só que agora totalmente desvinculados das condições que lhe dão significado. Em outras palavras, no Brasil como em outros países, depois de derrotado o movimento que lhe dava sentido, o teatro épico se transformou em mais um recurso que o vencedor pode utilizar como bem entender, assim como faz com as batatas (op. Cit, 189).

Page 113: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

113 | Notas para retomada do debate sobre teatro e revolução no Brasil

2. O protagonismo do teatro político na luta da década de 1960

Entre muitos méritos de A hora no teatro épico no Brasil, escrito há vinte anos, está o valor de explicar quais foram as providências que posicionaram o teatro político daquele período como um dos grandes protagonistas da luta popular e de esquerda do contexto.

O teatro participou daquele momento histórico como força estética produtiva. Cumpriu a função de socialização da experiência de luta dos trabalhadores, para os trabalhadores, e agia como veículo de integração, na medida em que, por meio de seu modo de produção específico, não só o conteúdo dos embates era transmitido, mas também o próprio processo de produção das obras.

Page 114: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Nel

son

Xav

ier

com

ele

nco

do

Co

leti

vo Te

rra

em

Cen

a (U

nB

) e

Bri

gad

a N

acio

nal

de

Teat

ro d

o

MS

T a

s ap

rese

nta

ção

de

Mu

tirã

o e

m N

ovo

So

l, em

201

2, n

o E

nco

ntr

o U

nit

ário

do

s Po

vos

do

Cam

po,

das

Ág

uas

e F

lore

sta,

co

m p

úb

lico

de

5 m

il ca

mp

on

eses

, qu

ilom

bo

las,

índ

ios

e

pes

cad

ore

s. F

oto

: Lu

ara

del

Ch

iavo

n

Duas peças são emblemáticas desse período, por trazerem como protagonistas a luta operária e a luta camponesa como matéria central das obras: Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, escrita em 1958, e encenada pelo Teatro de Arena, e Mutirão em Novo Sol, escrita por Nelson Xavier, Augusto Boal, Dalton Trevisan e Modesto Carone, em 19613. Os casos são exemplares da procura dos trabalhadores do teatro pelo chão histórico, pelos sujeitos e espaços das lutas do período.

Page 115: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

3 - A tese de doutorado Teatro político e questão agrária: 1955-1965. Contradições, avanços e impasses de um momento decisivo, de Rafael Villas Bôas, aborda o contexto de produção da peça e o significado estético da obra. Disponível em: http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/4435/1/2009_RafaelLitvinVillasBoas.pdf. Acesso em: 26 jul. 2016. E, posteriormente, o Laboratório de Investigação Teatro e Sociedade da USP publicou o livro Mutirão em Novo Sol, com extensa pesquisa sobre a peça (São Paulo: Expressão Popular, 2015).

Page 116: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 116 Temáticas e explorações estéticas urgentes

O volume de contradições se acumulava para a forma do teatro como espetáculo, vendido como mercadoria: o sujeito das lutas não frequentava os aparelhos teatrais convencionais, posicionados nos centros das capitais, pequenos; a matéria social das lutas não encontrava na tradição do realismo dramático o suporte necessário como forma de expressão e começava a transbordar os limites do drama; ao se colocarem em movimento em busca do povo, os grupos precisam reorganizar sua dinâmica coletiva, financeira e política, pois vão ao encontro de um público-povo não pagante, mas em luta; e quando encontra este público organizado em movimentos sociais, os grupos vão percebendo que as demandas são maiores do que a reivindicação do momento de fruição estética; os trabalhadores demandam a socialização dos meios de produção.

Ao começarem a circular pelo Brasil, os grupos encontram movimentos com articulações entre as esferas da Cultura e da Política muito sofisticados, como o Movimento de Cultura Popular (MCP)4, de Pernambuco, cuja aliança entre professores, artistas, estudantes, com financiamento do governo municipal e depois estadual, sob a vigência dos governos de Miguel Arraes como prefeito e depois como governador, permitiu a construção de metodologias de educação popular e formação política da classe trabalhadora até então inusitadas no Brasil, sobretudo, pela questão da escala.

Page 117: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

117 | Notas para retomada do debate sobre teatro e revolução no Brasil

4 - A principal referência é COELHO, Germano. MCP: história do Movimento de Cultura Popular. Recife: Ed. do Autor, 2012.

Esse conhecimento de organizações da classe trabalhadora em luta, a participação do teatro nos espaços de formação e decisão, como a apresentação de Mutirão em Novo Sol no 1º Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, em 1961, a circulação dos coletivos teatrais pelo circuito dos sindicatos, das Ligas Camponesas, pelas praças e pelos espaços de alto fluxo de trabalhadores vai interferindo nas condições de produção do trabalho teatral, na carpintaria da dramaturgia, na concepção de interpretação e relação com o público, enfim, vai politizando ambos os polos da experiência.

Page 118: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 118 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Os Centros Populares de Cultura (CPCs)5 foram, a seu modo, a expressão mais avançada do processo, como organização de trabalhadores com objetivo de produção de arte política diretamente voltada para segmentos da classe trabalhadora. Gestado como síntese dialética das contradições de grupos profissionais e de movimentos como o MCP, o CPC foi a organização cultural que mais rapidamente se espalhou pelo País e, fugindo aos padrões tradicionais da dinâmica da arte como mercadoria, conseguiu montar uma estrutura de produção de baixo custo em diversas linguagens.

Portanto, o teatro desempenhou o papel de meio de comunicação e intervenção vinculado organicamente às demandas dos segmentos engajados na luta de classes, operando por meio da mediação dialética entre a matéria do processo social e a forma estética, uma leitura crítica da experiência brasileira em andamento, que não se dava a ver em outras manifestações de linguagem, como a forma notícia e os documentos político-partidários.

Page 119: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

119 | Notas para retomada do debate sobre teatro e revolução no Brasil

5 - De fortuna crítica mais ampla e polêmica que o MCP indicamos como referências básicas as obras: Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde, 1960/70, de Heloisa Buarque de Hollanda (São Paulo: Brasiliense, 1980); As imagens de um teatro popular, de Julian Boal (São Paulo: Hucitec, 2000); CPC: uma história de paixão e consciência, de Jalusa Barcellos (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994); e o livro de Iná Camargo Costa, A hora do teatro épico no Brasil, já mencionado.

3.O teatro não tinha a TV como concorrente

A mídia do período, tão parcial e conservadora quanto é hoje, era, entretanto, menos poderosa, porque a televisão como meio de comunicação de massa era ainda incipiente, restrita às casas da elite brasileira. A popularização do meio ocorre de forma estratégica, com suporte do governo militar, para que fosse o principal meio a expressar a propaganda do regime autoritário, ao mesmo tempo que potencializava como nunca antes a venda de mercadorias, das concretas às simbólicas, para uma população ainda majoritariamente rural, porém em alto e violento fluxo migratório para os centros urbanos, portanto, ciosa em adquirir novos hábitos, valores e padrões de consumo que melhor lhe garantissem a inserção no mundo do trabalho urbano. De modo que o teatro político daquele período não se defrontou com o poder da TV privada no Brasil como meio ideológico de manipulação e distorção em massa.

Page 120: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Bri

gad

a S

emea

do

res

de

Ag

itp

rop

do

MS

T,

em in

terv

ençã

o c

on

jun

ta c

om

Co

leti

vo

Inte

rvo

zes,

na

fren

te d

o M

inis

téri

o d

as

Co

mu

nic

açõ

es, e

m B

rasí

lia.

Foto

: Raf

ael V

illas

as

Os dispositivos acionados com o golpe empresarial e militar de 1964 não foram desativados com o retorno à democracia depois de 21 anos de ditadura. A contrarrevolução preventiva deixou consolidado no bloco histórico hegemônico a poderosa estrutura da indústria cultural que, por meio da articulação com os setores mais conservadores da sociedade brasileira, é capaz de neutralizar o potencial democrático da Constituição de 1988, impedindo a consolidação da Reforma Agrária, e a quebra do monopólio dos meios de comunicação de massa no Brasil, além de chancelar a tortura e o extermínio da juventude negra como prática corrente do sistema repressivo.

Page 121: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo
Page 122: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo
Page 123: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

123 | Notas para retomada do debate sobre teatro e revolução no Brasil

4. Avanços e limites que tivemos da década de 1980 ao momento atual

Desde a década de 1980 surgem na cena política brasileira novos partidos, centrais sindicais e movimentos sociais. Os novos instrumentos políticos recolocam a possibilidade de socialização dos meios de produção para a classe trabalhadora. No caso teatral, possivelmente o exemplo com maior capilaridade no território nacional tenha sido a parceria de Augusto Boal e o Centro do Teatro do Oprimido com o MST que, por meio da socialização dos meios de produção da linguagem teatral, permitiu a formação de um grupo de multiplicadores do Teatro do Oprimido que foi responsável pela criação de mais de quarenta grupos de teatro no MST. E, mais que o foco específico na quantidade de grupos e seus repertórios de peças, esses militantes coringas da Brigada Nacional de Teatro do MST encontraram diversas funções para a linguagem teatral no MST: teatro como ação direta de Agitprop em ações de massa; Teatro do Oprimido em trabalho de educação popular e formação política com comunidades rurais e urbanas; uso de técnicas teatrais como o Teatro Imagem e o Teatro Fórum em inúmeros cursos de formação, como processo avaliativo por meio dos núcleos de base; pesquisa com formas cênicas populares regionais; trabalho com as peças didáticas de Brecht em processos de formação sobre o materialismo histórico dialético, etc.A

ug

ust

o B

oal

, du

ran

te a

5a e

tap

a d

e

form

ação

da

Bri

gad

a N

acio

nal

do

Teat

ro

do

MS

T P

atat

iva

do

Ass

aré

com

o

Cen

tro

do

Teat

ro d

o O

pri

mid

o d

o

Rio

de

Jan

eiro

, em

200

5.

Foto

: Raf

ael V

illas

as

Page 124: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 124 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Cabe, pelo viés dessas duas dentre outras frentes abertas do teatro político, analisar o efeito da retomada do processo de socialização dos meios de produção sobre as consequências dos efeitos de retardamento causado pela ditadura militar-empresarial: o contexto não tem mais no horizonte a perspectiva de formação da nação, de radicalização da estrutura democrática. O projeto se consolida num momento em que o povo é inserido não como sujeito, mas como massa consumidora, num ambiente cujos marcos de continuidade do processo histórico impactado pela ditadura são maiores do que os traços de ruptura. Segundo Paulo Arantes:

A partir da década de 1990 o trabalho de coletivos de teatro político se intensifica, sobretudo, em São Paulo, e algumas vitórias são obtidas, como a Lei do Fomento a produção, pesquisa e circulação do trabalho teatral, o que permitiu a abertura de um horizonte não mediado pelas expectativas de mercado e supostas demandas de público pagante consumidor de teatro.

Page 125: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

125 | Notas para retomada do debate sobre teatro e revolução no Brasil

6 - ARANTES, Paulo Eduardo. A Lei do Tormento. In: Teatro e vida pública: o fomento e os coletivos teatrais da cidade de São Paulo. São Paulo: Hucitec, Cooperativa Paulista de Teatro, 2012.

O golpe de 64 foi tão profundo e traumático, que a retomada de agora pode, sem dúvida, relembrar os momentos decisivos daquela construção interrompida, porém apenas na forma de escombros colecionados: uma outra herança sem testamento. [...] Daí a nota dissonante do período: o atual terceiro ciclo de politização [do teatro político brasileiro] é menos uma reação ofensiva, do que uma maneira radical de sobreviver na adversidade6.

Page 126: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 126 Temáticas e explorações estéticas urgentes

O fato de termos herdado o fardo de derrotas históricas sucessivas tem consequências para a capacidade de organização do teatro político: se evidencia na situação paradoxal da multiplicação de focos aglutinados pela identidade setorial que, entretanto, não convergem para uma ação estratégica que tenha como alvo a totalidade do sistema ao qual pretendem se contrapor. O que talvez permaneça, das lutas da década de 1960, como potencial aprendizado ainda não absorvido e refuncionalizado pelos coletivos e movimentos atuais é a perspectiva da práxis.

Os coletivos que decidem viver de teatro precisam se especializar no ofício de produção de projetos, disputa de editais, e sobreviver habilmente sabendo obter essas verbas provisórias e incertas, saber gastar o recurso de forma eficaz para não se complicar na prestação de contas e, além de tudo isto, fazer o trabalho que cabe aos grupos, produzir suas peças, apresentá-las, fazer oficinas, etc.

Page 127: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

127 | Notas para retomada do debate sobre teatro e revolução no Brasil

Os circuitos de espaços culturais do sistema financeiro tornam-se um espaço atraente para mostras, festivais e para apresentações desses grupos. De modo que, com a dinâmica da circulação por esses espaços, os coletivos de teatro político acabam por legitimar os mecanismos de mercantilização da cultura por meio do capital financeiro, que aparece como o mecenas moderno, promovendo para seu público restrito, a classe média cliente dos bancos, frequentadora dos espaços, uma oferta cultural variada.

Como a Lei Rouanet transfere a responsabilidade do Estado para as empresas decidirem quais trabalhos artísticos devem ser aprovados, o universo de possibilidades dos grupos fica bastante limitado.

Page 128: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 128 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Na outra ponta, os movimentos sociais padecem da dificuldade de inserir a cultura como elemento central na estratégia das organizações, potencializando as dimensões de formação, articulação e organização. Sem condições de circulação com o repertório e de formação permanente, os grupos formados têm, em geral, vida curta.

Nas universidades, a forma do espetáculo ainda predomina e as experiências do teatro político, quando muito, e salvo exceções, entra como objeto de análise em pesquisas esporádicas.

Page 129: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

129 | Notas para retomada do debate sobre teatro e revolução no Brasil

5. Desafios e perspectivas do teatro político

Todavia, ao menos nesses três polos de experiências e sobrevivências do teatro político, nos últimos anos os grupos e movimentos parecem ter chegado coletivamente à percepção crítica dos pontos de saturação que delimitam, de um lado, os gargalos da vida precária do teatro político e, de outro, a distância de nosso trabalho em relação à dinâmica da luta de classes.

Pensar nas possibilidades de fortalecimento do poder de intervenção formativa e organizativa do teatro político implica pensá-lo não a partir de suas contradições internas, mas da articulação da dinâmica do teatro político com a perspectiva de construção de um projeto de poder popular em chave anticapitalista.

Page 130: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 130 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Nesse sentido, está em andamento a construção de redes que integrem e intercambiem experiências dos coletivos no âmbito da produção e circulação de seus trabalhos envolvendo coletivos profissionais, grupos de pesquisa e movimentos sociais, como a Rede Teatro e Sociedade, que reúne organizações, coletivos e movimentos do Brasil, da Argentina e do Uruguai, até o momento.

A pesquisa sobre o teatro político desenvolvida por grupos nas universidades ou por militantes de movimentos sociais está avançando em passos largos e disponibilizando informações que desfazem preconceitos, erros de compreensão. Cito, como exemplo, os livros produzidos pelo Laboratório de Investigação Teatro e Sociedade (LITS), coordenado por Sérgio de Carvalho, da USP7; o livro Agitprop: cultura política, produzido a partir da demanda da militância do MST8; as produções do grupo Modos de Produção e Antagonismos Sociais e do Coletivo Terra em Cena da UnB9; e os livros elaborados pelos coletivos de teatro político de São Paulo, como os Cadernos de Erros, da Brava Companhia, a Revista Contrapelo, da Cia Kiwi, a Vintém, da Cia do Latão, o Caderno de Ensaios, do Teatro de Narradores, a Revista Metáxis, do Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro, e o blog do Instituto Augusto Boal10, dentre tantos outros.

Page 131: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

131 | Notas para retomada do debate sobre teatro e revolução no Brasil

7 - VIANNA FILHO, Oduvaldo. Peças do CPC: A mais valia vai acabar, seu Edgar e Mundo enterrado. São Paulo: Expressão Popular, 2016 / Primeira Feira Paulista de Opinião. São Paulo: Expressão Popular, 2016 / Além do já mencionado livro Mutirão em Novo Sol.

8 - COSTA, Iná Camargo et al (Org.). Agitprop: cultura política. São Paulo: Expressão Popular, 2015.

9 - Cadernos 2 do Residência Agrária da UnB Cultura, Arte e Comunicação e 4 Teatro Político, formação e organização social. Disponíveis no blog www.matrizesprodutivasda vidanocampo.wordpress.com

10 - www.institutoaugustoboal.org

Temos pela frente inúmeros desafios, como dar conta dos circuitos que emergem em consequência das lutas posteriores às crepitações de julho de 2013, como as ondas de escolas públicas ocupadas pela juventude. Temos ainda que nos aliar àqueles que fazem a luta pela democratização dos meios de comunicação, de forma estratégica e tática, não apenas tomando como alvo o efeito ideológico da produção dos bens simbólicos hegemônicos, mas considerando o ataque à estrutura econômica e política do monopólio, que é ligado à estrutura de poder conservadora que tomou de assalto o parlamento brasileiro com caixa dois e tradicional política de favores do “sistema cordial” brasileiro.

Cabe a nós inventar novos circuitos e novas condições de sobrevivência e inserção do teatro político nas lutas sociais que possam reconstruir uma plataforma de esquerda radical, anticapitalista. Há um mundo pelo interior do País, de pequenas e médias cidades ocupadas por igrejas e botecos como alternativas culturais, há o circuito dos centros de formação dos potentes movimentos sociais do campo brasileiro (o MST tem mais de trinta centros de formação, e temos no Brasil mais de setenta movimentos do campo, além dos atingidos pelas Barragens – MAB – dos atingidos pela Mineração – MAM – etc.), além dos territórios quilombolas e indígenas, em plena luta deflagrada contra o setor violento e arcaico hoje chamado com o nome moderno de ‘agronegócio’.

Page 132: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 132 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Vale, nesse sentido, recuperar a avaliação de Brecht (1967, p.103):

Fernando Kinas (2013, p.36), da Kiwi Companhia de Teatro, aponta uma perspectiva:

Aos artistas e grupos de teatro caberia, então, neste novo contexto, que, entretanto, mantém em funcionamento velhos hábitos e antigas estruturas, “não recuar diante da realidade”, tal como pedia Piscator e como fizeram muitos de nossos antecessores durante a ditadura: escrevendo e montando peças, inventando formas, propondo agitprops, assinando e divulgando manifestos, organizando debates e publicando suas ideias.11

A existência do teatro épico pressupõe, além de determinados padrões técnicos, um poderoso movimento social que tenha interesse na livre manifestação de questões vitais com a finalidade de encontrar soluções e que possa defender este interesse contra todas as tendências contraditórias.12

Page 133: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

133 | Notas para retomada do debate sobre teatro e revolução no Brasil

11 - KINAS, Fernando. Teatro, verdade e poder. In: Revista aParte XXI nº6: revista do teatro da universidade de São Paulo. São Paulo: TUSP, 2013.

12 - BRECHT, Bertolt. Teatro dialético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

Portanto, no desafio de romper com as velhas estruturas da tradição da conciliação como forma de fazer política, da permanente pactuação com a classe dominante, sempre traída quando os detentores de poder se sentem ameaçados, temos a aprender também com as experiências estrangeiras, de coletivos e movimentos com os quais estamos nos articulando, como no recente Encontro Internacional de Teatro do Oprimido que ocorreu na Escola Nacional Florestan Fernandes, em que a experiência da Escola de Teatro Político do Movimento Popular La Dignidad foi relatada, entusiasmando os coletivos e movimentos do Brasil e do Uruguai a criar juntamente com a Argentina uma Escola Latino-americana de Teatro Político e Audiovisual. Ou, como o Jana Sanskriti, um coletivo enorme de praticantes do Teatro do Oprimido da Índia, que reúne trinta grupos montando o mesmo repertório, com cada grupo atuando em dez cidades, abrangendo um total de trezentas cidades e atingindo diretamente mais de duzentas mil pessoas.

Recolocar o teatro político no horizonte estratégico da revolução é um desafio tão urgente quanto necessário.

Page 134: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Sara Rojo 2

(BELO HORIZONTE/MG)UFMG/CNPQ*

1 - Algumas das ideias presentes neste texto estão mais bem trabalhadas

no livro Teatro latino-americano em diálogo: produção e visibilidade.

Belo Horizonte: Editora Javali, 2016.

O TEATRO NA URGÊNCIA: COMO PENSAR O POLÍTICO NO INTERIOR DO CAMPO TEATRAL?1

Page 135: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

2 - Sara Rojo (MG) é chilena radicada em Belo Horizonte.

Professora, pesquisadora e diretora teatral. Possui

graduação em Letras pela Pontificia Universidad Católica

de Chile, mestrado em artes pela State University of

New York e doutorado em Literaturas Hispânicas pela

State University of New York. Realizou pós-doutorados

na Università degli Studi di Bologna e na Universidad

de Chile. Atualmente é bolsista de produtividade do

CNPq, professora Titular da UFMG e diretora do Grupo

Mayombe de Teatro.

O TEATRO NA URGÊNCIA: COMO PENSAR O POLÍTICO NO INTERIOR DO CAMPO TEATRAL?1

Page 136: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 136 Temáticas e explorações estéticas urgentes

DESDE QUE ERA ESTUDANTE na Universidade Católica do Chile, e fui convidada a participar de um grupo teatral pela primeira vez, o ato de pesquisar e o de fazer teatro estiveram inter-relacionados e perpassados pela questão política. O professor-coordenador desse grupo, Ignacio Ossa Galdames (1943-1975), foi assassinado pela ditadura militar chilena no centro de tortura Villa Grimaldi (localizado em Santiago de Chile)3. Portanto, entrei no teatro no marco de um regime autoritário e de um sistema de universidade pago. Posteriormente, estudei direção teatral em um curso livre, em pós-graduações orientadas para teatro e participei ativamente de diversos tipos de grupos tanto no Chile quanto no Brasil. Desde 1995 até o presente tenho o prazer de ser professora de uma universidade pública, a Universidade Federal de Minas Gerais. Nesse contexto, em 1995, nasceu o Mayombe Grupo de Teatro4, do qual sou diretora. Minha experiência nesse coletivo, que tem mais de 20 anos de exercício resistente em nossa cidade, abrange desde a montagem de textos dramáticos latino-americanos até a direção de criação de textos coletivos ou de autoria de integrantes do grupo. A pequenina América e sua avó $ifrada de escrúpulos, estreada em 2010, foi um ícone de nosso grupo na procura por uma imagem resistente que falasse da América Latina:

Page 137: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

137 | O Teatro na Urgência: Como pensar o político no interior do campo teatral?

3 - Seus torturadores foram o coronel Marcelo Moren Brito; o tenente Miguel Krassnoff Martchenko; o suboficial Bazclay Zapata Reyes; e o civil Osvaldo Romo Mena.

4 - O grupo nasceu dependente da Faculdade de Letras da UFMG e com caráter amador, mas adquiriu vida própria e hoje está constituído por atores e atrizes profissionais.

A p

equ

enin

a A

mér

ica.

Foto

: To

mas

Art

hu

zzi.

Page 138: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 138 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Em 2014, comecei a trabalhar, também como diretora, com um segundo coletivo nascido do Curso de Teatro da Escola de Belas Artes, Mulheres Míticas, formado por jovens críticos e utópicos que me ajudam a seguir em frente.

Esta reflexão, que nasce no calor de uma hora em que as urgências culturais, sociais e políticas parecem nos levar a agir sem ter o tempo necessário ao pensamento, é produto desse percurso brevemente esboçado nas linhas anteriores. As ações coletivas criam sonhos de utopias, as práticas vão traçando o roteiro desse campo conceitual, mas é necessário parar para ver que práticas são essas. Dessa forma, eu agradeço o convite para fazer essa parada e refletir sobre alguns pontos relevantes do fazer e do pensamento teatral. Eu desenho as coordenadas quase como um roteiro escolar que sirva para disparar dardos e estimular respostas, sem a pretensão de “verdades”.

Page 139: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

139 | O Teatro na Urgência: Como pensar o político no interior do campo teatral?

Alguns apontamentos sobre a prática teatral

Produção - As maneiras de realizar uma obra envolvem determinadas éticas de produção (JAMESON, 2013, p.75). Não é viável pensar que, com uma estrutura de produção baseada na sociedade de consumo, poderemos transformar os valores desta sociedade. Portanto, “o que fazemos” está relacionado diretamente com “o que somos”, isto é uma questão ontológica. Em um exercício de imaginação pensemos que estamos frente a um grupo (em referência a Belo Horizonte, terra frutífera em agrupamentos teatrais): a forma em que se divide o coletivo e o que cada um faz nele, ou, como diria Rancière (2005), onde se dá a partilha, são determinantes na proposta defendida por este grupo. Como se estabelece a divisão entre as partes componentes do todo define tanto o processo de criação quanto seu resultado e é neste lugar que se encontra o político. Não é viável acreditar que uma estrutura hierárquica e conservadora possa gerar um trabalho renovador e revolucionário. Esse trabalho exige uma procura por formas de interagir democráticas e efetivas.

Page 140: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 140 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Agrupamento - Desde o momento em que nasce um coletivo até como se constrói a forma de agrupamento, de divisão do trabalho e da maneira em que se realiza a procura pela inserção no circuito (festivais, mostras, programação, etc.) existe uma questão política. O processo envolve relações humanas e visibilidades resultantes, ambas com um peso ético iniludível. Como inserimos essas visibilidades numa dinâmica maior determinada pelo fluxo ou refluxo do movimento artístico num determinado lugar, isto requer uma análise do dispositivo (contexto, subjetividades, posições, objetivos, afetos) para criar a metodologia que o grupo deseje e possa assumir. A maneira de organizar um grupo, a forma de trabalhar e de estruturar um processo criativo são, desta forma, questões de metapolítica porque, como diz Rancière, elas “intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com maneiras de ser e formas de visibilidade” (RANCIÈRE, 2005, p.17).

Page 141: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

141 | O Teatro na Urgência: Como pensar o político no interior do campo teatral?

Imagem/visibilidade - O ponto anterior conduz até os eixos centrais da criação que são a imagem e a questão da “visibilidade”: assumir que trabalhar com determinadas imagens que envolvem certas questões é excluir outras, que as visibilidades sempre geram invisibilidades e que esta escolha não é ou não deveria ser arbitrária é uma questão artística, mas também ética. Portanto, não deveria estar pautada nem pelos editais nem pelas regras impostas pelo consumo. Mas, atenção, isso não significa que proponho uma escolha pautada apenas pelos desejos pessoais. Entendo que o artista vive num tempo e num lugar determinados e não deveria se abstrair deste fato, das pulsões comunitárias que o envolvem. Uma peça que, sem dúvida, responde às urgências raciais e genéricas que vivemos no Brasil e ilustra bem os eixos de imagem e visibilidade é Madame Satã, do Grupo dos Dez, dirigida por João das Neves, e que teve sua estreia em 2015 dentro do projeto Oficinão, do Galpão Cine Horto.

Page 142: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Mad

ame

Sat

ã.

Foto

: Gu

to M

un

iz.O espectador - As práticas grupais respondem não apenas a comandos ideológicos dos integrantes, mas também a subjetividades coletivas e individuais que nascem dentro do próprio fazer dos artistas com o público, criando zonas criativas espaço-temporais. A cultura do abuso está minando nossa existência. Hoje acredito que devemos criar cumplicidades resistentes que possibilitem olhar o mundo que estamos habitando e como estamos inseridos nele. Esse caráter de cumplicidade com o público se realiza com grande efetividade na peça de rua À Tardinha no Ocidente, do grupo belo-horizontino Primeira Campainha.

Page 143: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

143 | O Teatro na Urgência: Como pensar o político no interior do campo teatral?

Page 144: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo
Page 145: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

À Ta

rdin

ha

no

Oci

den

te.

Foto

: Gu

to M

un

iz.

A imagem e sua dupla condição Segundo Rancière (2011, p.47), a imagem tem uma dupla condição e responde a duas ordens diferentes (a da arte e a do imaginário). Essa condição, a partir de meu olhar, exige dos artistas não só uma atuação formal-estética, como também uma responsabilidade social. Isso significa romper de uma vez e para sempre com a divisão entre forma e conteúdo. As imagens falam de duas coisas simultaneamente e o artista deve tentar responder a elas com a mesma eficácia. Uma peça ativa o(s) imaginário(s) e o(s) ativará com linguagens, portanto o artista transita em ambos os campos. Eles estão entrelaçados, não é possível separá-los.

Page 146: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 146 Temáticas e explorações estéticas urgentes

A imagem crítica - A importância das imagens dialéticas (tensionadas temporal, espacial e socialmente) tem a ver com a entrega de visões múltiplas e em tensão, portanto críticas, inclusive de si mesmas. Uma peça que questiona o discurso sobre o fazer artístico e, portanto, é uma crítica sobre si mesma, é Ignorância, do Quatroloscinco Teatro do Comum, dirigida por Assis Benevenuto e Marcos Coletta, estreada em 2015.

É necessário saber, até onde seja possível (sabemos que existe um campo não controlado), o que colocamos em tensão e por que. É válido para isso recorrer a topografias em atrito ou ao conceito de anacronia de Didi-Huberman (2011), que remete a temporalidades em tensão no interior da imagem. Acredito que as imagens críticas exigem tanto do artista quanto do espectador um pensamento aberto e ativo, definindo um tipo de relação e um tipo de imersão na subjetividade caracterizada pela horizontalidade.

Page 147: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

147 | O Teatro na Urgência: Como pensar o político no interior do campo teatral?

Ign

orâ

nci

a.

Foto

: Gu

to M

un

iz.

Page 148: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 148 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Entre as ferramentas possíveis para todos esses desafios destaco as temporalidades diferentes presentes numa imagem; o olhar como um ato que se configura no passado e no presente projetando um futuro; a intermitência da imagem teatral; a anacronia presente como sintoma dialético; a imagem crítica, a relação entre o fazer e a visibilidade; o papel crítico do espectador no teatro atual; a necessidade de diferentes tipos de visibilidade; e o estímulo do pensamento dialético.

Uma pequena reflexão sobre a crítica

O teatro na América Latina sempre contou com agentes críticos e espaços que procuraram o reconhecimento do território no qual se situa a criação e da condição artística e reflexiva existente em cada momento histórico. Não obstante, sempre foram (e seguem sendo) insuficientes. A complexidade dos fenômenos sociais, culturais e artísticos requer um esforço pela criação de ferramentas e agentes específicos para o campo crítico. Walter Benjamin (2009, p.728) dizia: “Em época alguma a arte respondeu a exigências puramente estéticas”, porque sempre existiram, por detrás da arte, outros interesses, sejam econômicos, seja de poder. Nosso interesse por assumir que a necessidade do fortalecimento desse campo tem um caráter que também se relaciona com uma questão de poder - poder exercer a prática artística e a reflexão estético-política dentro de um espaço democrático - abre as comportas de uma cidadania plena.

Page 149: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

149 | O Teatro na Urgência: Como pensar o político no interior do campo teatral?

Hoje faltam veículos especializados na mídia regular para exercer a crítica; as revistas indexadas são somente para especialistas e a internet, mesmo tendo aberto novos espaços, continua sendo restrita. Sem interlocutores massivos, e, às vezes, sem um diálogo com os artistas, a crítica pode cair em um tecnicismo vazio, em análises de tipo formal ou estrutural sem um compromisso afetivo do enunciador com o objeto enunciado. Isso é complexo, pois criar consciência crítica é criar condições de transformação social.

Segundo minha leitura, o diálogo entre a crítica e a obra passa pelas decisões políticas e estéticas presentes tanto no artista quanto no crítico. Existem redes e circunstâncias que colocam determinadas questões no tapete. A crítica não é alheia a essas redes nem aos dispositivos nos quais surgem, não é um discurso isolado e descontaminado por essas constantes. Por isso não é possível separar o que se quer dizer da forma como se diz, o extraestético do estético. O tempo, as subjetividades, o espaço em que se vive determinam o campo crítico de interesse e o que faço com ele – e este último aspecto é uma questão ética.

Page 150: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 150 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Segundo Didi-Huberman (2010, p.246): “Portamos o espaço diretamente na carne. Espaço que não é uma categoria ideal do entendimento, mas o elemento despercebido, fundamental, de todas as nossas experiências sensoriais ou fantasmáticas”. Acredito, por isso, que temos de restabelecer a importância de ver além do que está à nossa frente em cada abordagem crítica, conectar de maneira consciente nosso corpo sensorial com nossa reflexão e com nossas experiências de toda ordem. Dessa maneira, reafirmo as colocações de Walter Benjamin (2009, p.728) já mencionadas sobre a arte não ser produto só das necessidades estéticas. É importante assumir a impossibilidade do entendimento da imagem (seja esta dentro de uma obra artística ou dentro de uma reflexão conceitual) separada de suas formas e condições de reprodução. Portanto, não é possível pensar em nada separado do dispositivo no qual foi criado ou das ressonâncias que o mesmo produz. De acordo com minha leitura, a última obra do Grupo Galpão, Nós, dirigida por Márcio Abreu, alcança múltiplas ressonâncias pelo contexto social e político no qual estamos inseridos e pela subjetividade presente na trama que escolhe a atriz Teuda Bara para ser “expulsa” do coletivo:

Teu

da

Bar

a em

s.

Foto

: Gu

to M

un

iz.

Page 151: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Dessa forma, não posso pensar numa crítica separada do objeto a ser analisado ou do dispositivo dentro do qual foi criada, e é isto o que desejo compartilhar neste texto.

Page 152: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 152 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Referências teóricas:

BENJAMIN, Walter. Passagens. Tradução do alemão Irene Aron, do francês Cleonice Pães Barreto Mourão. Belo Horizonte e São Paulo: Editora UFMG, Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2009. 1168 p.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo. Traducción de Oscar Antonio Oviedo Funes. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2011. 394 p.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2010. 260 p.

JAMESON, Frederic. Brecht e a questão do método. Tradução Maria Silva Betti. São Paulo: Cosac Naify, 2013. 256 p.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: Editora 34, 2005. 72 p.

RANCIÈRE, Jacques. El destino de las imágenes. Traducción de Pablo Bustinduy Amador. Pontevedra: Politopías, 2011. 146 p.

RANCIÈRE, Jacques. El espectador emancipado. Traducción de Ariel Dilon. Pontevedra: Ellago Ensayo, 2010. 134 p.

ROJO, Sara. Teatro latino-americano em diálogo: Produção e visibilidade. Belo Horizonte: Editora Javali, 2016. 230 p.

Page 153: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

153 | O Teatro na Urgência: Como pensar o político no interior do campo teatral?

Referências de espetáculos teatrais citados:

GRUPO DOS DEZ. Madame Satã, dramaturgia de Marcos Fábio de Faria e Rodrigo Jerônimo, direção de João das Neves, 2015.=

GRUPO GALPÃO. Nós, dramaturgia de Eduardo Moreira e Márcio Abreu, direção de Márcio Abreu, 2016.

MAYOMBE GRUPO DE TEATRO. A pequenina América e sua avó $ifrada de escrúpulos, texto de Éder Rodrigues, Marcos Coletta e Marina Viana, direção de Sara Rojo, 2010.

PRIMEIRA CAMPAINHA. À Tardinha no Ocidente, dramaturgia de Marina Viana, direção coletiva, 2014.

QUATROLOSCINCO - TEATRO DO COMUM. Ignorância, texto e direção de Assis Benevenuto e Marcos Coletta, 2015.

Page 154: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Fernando Yamamoto 1(NATAL/RN)

NORDESTE, BRASIL, LATINOAMÉRICA

Page 155: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

NORDESTE, BRASIL, LATINOAMÉRICA

1 - Fernando Yamamoto (RN)  é diretor, professor e

pesquisador teatral. Integrante e cofundador do grupo

Clowns de Shakespeare, no qual dirigiu diversas obras.

Como pesquisador, desenvolveu a Cartografia do Teatro

de Grupo do Nordeste. Atualmente dirige o Departamento

de Programas, Projetos e Eventos da Secretaria de

Cultura de Natal, e coordena o projeto de idealização da

Escola Livre de Teatro dos Clowns de Shakespeare.

Page 156: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 156 Temáticas e explorações estéticas urgentes

I. PRIMEIRO PRÓLOGO

O ensaísta mexicano Adolfo Reyes propõe que o drama latino-americano é composto por um palco, um coro e uma personagem. O palco seria o andamento cadenciado da sua caminhada, de quem acabou chegando tarde “ao banquete da civilização europeia” e, assim, vive a saltar etapas para tentar acelerar seu amadurecimento compensatório, nos possibilitando um gosto pela improvisação e pela audácia, geradas pela falta de compromisso com a tradição. O coro é essa miscigenação das mais diferentes etnias, gerando todas as virtudes e os problemas dessa miscigenação tão ampla e variada. A personagem, por fim, seria uma inteligência própria, peculiar.

Page 157: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

157 | Nordeste, Brasil, Latinoamérica

II. SEGUNDO PRÓLOGO

O pesquisador paraibano Durval Muniz de Albuquerque Jr. defende que o Nordeste, como espaço de identidade regional, é uma invenção que começa a ganhar força no início do século XX, como artifício para a manutenção do poder da elite local após a perda de poder econômico e político, com o fim do ciclo da cana-de-açúcar. Com o advento da política do “café com leite”, o declínio dessa aristocracia faz com que se crie um espaço de saudosismo aos tempos de glória da região, com um projeto que sempre aponta para o passado. Esse imaginário opta pelo retrocesso, pela miséria, pela seca, como forma de manutenção do poder por parte desses grupos que, de elite rural, passou a manter as mesmas estruturas de poder, agora num âmbito urbano. A produção artística e cultural da região acaba, até hoje, reforçando esse clichê como verdade absoluta, insistindo na simbologia do chão rachado, do chapéu de couro, dos vilarejos com seus delegados, coronéis, padres e cangaceiros, como única faceta da região, sem uma reflexão mais cuidadosa, e reforçando conceitos sexistas e de violência. O Nordeste urbano, litorâneo, contemporâneo, é relegado a um lugar que coloca essas elites – da região e do País –, em situação de conforto para perpetuarem a relação de dominação.

Page 158: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 158 Temáticas e explorações estéticas urgentes

III. A LATINOAMÉRICA É O NORDESTE DO MUNDO

Em suma, essas duas narrativas evidenciam que a Latinoamérica e o Nordeste vivem forçados à manutenção de um lugar simbólico de retrocesso, forçados à manutenção desse lugar de subalternidade, mas que lutam e buscam caminhos fora da curva para encontrar seus espaços de afirmação.

Page 159: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

159 | Nordeste, Brasil, Latinoamérica

Quando falamos em América Latina, pensamos em um conjunto de países com idiomas de origem latina, porém de difícil definição de um conceito que dê conta de abarcá-la. No aspecto geográfico, temos três continentes, porém nenhum em sua totalidade: a Guiana e o Suriname, na América do Sul, e Belize, na América Central, não se reconhecem como Latinoamérica. O México, por sua vez, é o único país norte-americano a integrá-la, por mais que tenha uma identificação cultural muito maior com os países do centro-sul. A língua também não unifica, uma vez que seus membros falam espanhol, português e até francês – e, por outro lado, o Canadá é francófono, porém não se encaixa nessa categoria. A formação étnica também diverge, muito mais que converge. Além das inúmeras civilizações originais indígenas, cada país apresenta uma diversidade de populações migratórias das mais diferentes origens, notadamente europeias e africanas. Dessa forma, o que nos resta é o autorreconhecimento, movido pelo sentimento de pertencimento, pelo desejo de ser latino-americano, por mais que existam tantas diferenças, mas como uma identidade de quem não se assume como apêndice da Europa ou da América Latina.

Na diversidade que compõe o Nordeste, região com mais estados da federação, que inclui do Maranhão e sua forte matriz amazônica a Salvador e sua identidade afro, o sentimento de pertencimento também surge como um raro caminho possível de unificação identitária. A Latinoamérica, portanto, me parece o Nordeste do mundo.

Page 160: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 160 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Esp

etác

ulo

Nu

estr

a S

enh

ora

de

las

Nu

ven

s, m

on

tage

m d

o g

rup

o

Clo

wn

s d

e S

hak

esp

eare

, 201

4.

Foto

: Raf

ael T

elle

s.

IV. OS CLOWNS, A AMÉRICA LATINA E O TEATRO DE GRUPO BRASILEIRO

Na última década, os Clowns de Shakespeare, grupo do qual sou integrante e fundador, vem incursionando pela América Latina nas mais diferentes formas: circulando com espetáculos, realizando projetos de pesquisa através de intercâmbios, residências e laboratórios com grupos de diversos países, conhecendo grupos estrangeiros em festivais pelo Brasil, e até mesmo em viagens a passeio. A resultante disso foi um crescente desejo de aproximação e aprofundamento desses encontros, de mergulhar nesse universo que nos é tão próximo, e ao mesmo tempo tão distante, ao sentirmos na pele todo o eurocentrismo que sabíamos que temos, mas só constatamos in loco. Assim surgiu o projeto Latino(-)americano, que envolve ações nas mais diversas frentes – criação, formação, pensamento –, cujo primeiro fruto foi a Trilogia Latino(-)americana, formada pelas obras Nuestra Senhora de las Nuvens, texto de Arístides Vargas e minha direção; Abrazo, criação dramatúrgica coletiva coordenada por César Ferrario e direção de Marco França; e Dois Amores y um Bicho, do venezuelano Gustavo Ott, com direção do carioca Renato Carrera.

Page 161: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo
Page 162: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 162 Temáticas e explorações estéticas urgentes

A trilogia surge a partir de 2014, na ocasião dos cinquenta anos do golpe civil e militar de 1964, como uma tentativa de resposta à discrepância de preservação da memória dos anos de chumbo no Brasil e em outros países do continente, como Argentina e Chile. Enquanto ainda temos os arquivos militares mantidos em sigilo, e uma comissão da verdade que anda a passos tímidos, nos nossos vizinhos a memória está impressa nas ruas, nas peles, nos museus, nos discursos, numa empenhada postura para evitar que isso volte a acontecer. Foi nesse exato intuito que surgiu a nossa trilogia, sem a ideia de que, em menos de dois anos, estaríamos vivenciando semelhante situação de exceção, com o golpe legislativo-midiático-jurídico de 2016. Por mais irônico que seja, o golpe ascendeu os espetáculos a outro patamar de urgência, de necessidade.

Page 163: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

163 | Nordeste, Brasil, Latinoamérica

Após o afastamento da presidenta Dilma Roussef, ao circularmos pelo País com nossas obras, pudemos observar que uma série de outros espetáculos, anteriores ao golpe, já indicavam o futuro bicudo que despontava, mesmo que, em alguns casos (como no nosso), inconscientemente. É o caso, por exemplo, de À Tardinha no Ocidente, com a Primeira Campainha, e Rosa Choque, do Coletivo Os Conectores, ambos de Belo Horizonte (MG). Seja pelo viés da deliciosa literalidade lúdica do primeiro, convidando as crianças para um exercício interativo de reflexão política, seja numa racional organização de um pensamento acumulado acerca da questão da mulher e de gênero do segundo, é fato que, de alguma forma, os grupos já anteviam o que poderia vir a acontecer.

Para onde esses trabalhos, esses grupos, e nosso posicionamento artístico e político vão agora?

Page 164: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo
Page 165: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Esp

etác

ulo

Ab

razo

, mo

nta

gem

do

gru

po

Clo

wn

s d

e S

hak

esp

eare

, 201

4.

Foto

: Cac

á D

iniz

.

Page 166: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 166 Temáticas e explorações estéticas urgentes

V. EPÍLOGO OU (RE)PRÓLOGO: GOLPE E DESAFIOS

Essas e outras questões estiveram na roda no III Congresso Brasileiro de Teatro, realizado entre 11 e 14 de agosto de 2016, em Goiânia. Coletivos e artistas de 20 estados brasileiros se reuniram para discutir o contexto da articulação política do teatro em tempos de golpe, tentando ainda dar fôlego aos ecos das ocupações dos espaços do Ministério da Cultura nos 26 estados e no Distrito Federal – que resultou na primeira derrota imposta ao governo ilegítimo –, e fundou a Frente Brasileira de Teatro.

O panorama que se apresenta é de um cenário ainda mais nebuloso do que já estamos vivendo, com o desmonte nos atropelando a largos passos. Com a efetivação do governo usurpador, pensar no lugar do diálogo, sua forma, e sua efetividade é o desafio mais imediato. Por outro lado, apesar de já termos mostrado força no episódio das ocupações, a esperança de algum tipo de política pública para o teatro de grupo e de pesquisa é nula.

Assim, me parece que o que nos resta é um ataque em frentes paralelas. De um lado, a mobilização para a disputa de pensamento, encontrando o lugar de diálogo/confrontação com esse governo. Do outro, correr atrás do tempo perdido para a criação de alternativas que prescindam do financiamento público, dando vazão ao que temos de mais genuíno, a criatividade.

Page 167: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

167 | Nordeste, Brasil, Latinoamérica

Isso toca em um ponto delicado da nossa formação, que é a transição do chamado “teatro amador” dos anos 1970 e 1980 para o “teatro de grupo” que entendemos hoje. Por mais que a linha hereditária seja natural, lógica, a transformação que o mundo sofreu desde então, quando o termo amador deixou de ser motivo de orgulho e ganhou conotação pejorativa, negativa, criou uma cisão mal resolvida. Algumas experiências desse teatro de inclinação coletiva conseguiram, graças aos avanços sociais do País da última década, sentir o doce gosto da sobrevivência, da “profissionalização”. No entanto, a precariedade que trazemos na nossa medula não nos fez antecipar o que estaria por vir e aproveitar o ambiente favorável para criar estratégias que caminhassem paralelamente à dependência do financiamento público, como Marcelo Flecha discorre com muita apropriação no blog da sua Pequena Cia. de Teatro, de São Luís: http://pequenacompanhiadeteatro.blogspot.com.br/2016/08/entretecendo-teia-da-revolucao.html

Page 168: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 168 Temáticas e explorações estéticas urgentes

O jogo está posto. Trabalhar ainda mais, buscar outras soluções, reinventar a nossa existência, numa atitude propositiva, discutindo éticas, estéticas, e jamais esquecendo o afeto – a potência de afetarmos e sermos afetados – que é elemento constitutivo mais puro do nosso DNA. Ir ao encontro do público e ao encontro uns dos outros, artistas.

E talvez ampliar os laços com os hermanos latino-americanos, de tantos problemas e potências semelhantes aos nossos.

Page 169: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Esp

etác

ulo

Do

is A

mo

res

y U

m

Bic

ho

, mo

nta

gem

do

gru

po

Clo

wn

s d

e S

hak

esp

eare

, 201

5.

Foto

: Raf

ael T

elle

s

Page 170: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Hugo Cruz e Irene Serafino 1(PORTO/PORTUGAL)

1 - Hugo Cruz (Porto/Portugal) é criador, programador

cultural e professor na Escola Superior de Música, Artes

e Espetáculo – Porto. Cofundador da PELE, pesquisador

no Instituto de Estudos de Literatura Tradicional –

Universidade Nova de Lisboa. Consultor Artístico do

Festival de Teatro de Almada. Leciona em diversas

instituições nacionais e internacionais no âmbito das

Práticas Artísticas Comunitárias. Coordenou o livro Arte e

Comunidade, editado pela Fundação Calouste Gulbenkian.

Irene Serafino (Porto/Portugal) é Mestre em Políticas

Sociais e Serviço Social pela Universidade de Bolonha

(UNIBO), Doutoranda em Sociologia na Faculdade de

Letras da Universidade do Porto (FLUP) com bolsa de

estudo SFRH/BD/100168/2014, pela Fundação para a

Ciência e Tecnologia (FCT), e Investigadora integrada do

Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (ISUP).

A CRIAÇÃO TEATRAL EM PORTUGAL NO CONTEXTO DAS PRÁTICAS ARTÍSTICAS COMUNITÁRIAS

Page 171: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

A CRIAÇÃO TEATRAL EM PORTUGAL NO CONTEXTO DAS PRÁTICAS ARTÍSTICAS COMUNITÁRIAS

Page 172: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 172 Temáticas e explorações estéticas urgentes

1. INTRODUÇÃO

No panorama cultural português e europeu assistimos a um fenômeno em contínua expansão no que diz respeito às práticas performativas, e que se pode propor como uma deslocação da arte para espaços caracterizados pela heterogeneidade. Emergem inúmeras experiências locais, nacionais e internacionais de práticas artísticas com fortes ligações aos contextos comunitários, entre as quais as práticas teatrais, associadas a questões sociais e que revelam preocupações sociopolíticas. Nesse quadro, destacam-se projetos teatrais, por exemplo, nos estabelecimentos prisionais, no âmbito dos serviços de saúde mental, com migrantes e em territórios socialmente desfavorecidos (por exemplo, áreas rurais e industriais desertificadas, regiões urbanas com elevada concentração de problemáticas socioeconômicas). Paralelamente, multiplicam-se também os festivais, as áreas de programação específicas em diferentes estruturas, encontros temáticos, investigações e publicações sobre o assunto. No mesmo sentido também se inserem as diretrizes legislativas das políticas públicas da União Europeia e os financiamentos daí decorrentes, com eco na definição das políticas portuguesas, que incentivam ações de caráter cultural integradas com o setor social, da educação e da saúde. Essa integração tem o propósito de alcançar objetivos transversais entre instituições com diferentes matrizes, conforme o veiculado na legislação.

Page 173: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

173 | A criação teatral em Portugal no contexto das práticas artísticas comunitárias

Assente neste breve enquadramento, propomos uma reflexão inicial sobre as práticas artísticas comunitárias atuais em Portugal, com destaque no teatro, centrando nos casos concretos que possuem um maior enfoque sociopolítico nos seus conteúdos e ações, trazendo alguns exemplos de temas que se têm destacado nas dramaturgias e nos posicionamentos éticos e estéticos. Após uma breve contextualização das práticas artísticas comunitárias em Portugal, abordamos o percurso que a PELE - Espaço de Contacto Social e Cultural tem construído na cidade do Porto, propondo-se como um espaço de criação teatral que assume “a criação artística como uma alavanca para o desenvolvimento comunitário, social e econômico, contribuindo para a coesão social e territorial” (PELE, s/d).

Este texto, escrito a quatro mãos, resulta do encontro de duas visões distintas e complementares sobre o percurso da PELE, com o objetivo de incentivar uma aproximação efetiva entre a pesquisa acadêmica e as práticas neste domínio. Por um lado, a experiência na primeira pessoa de quem sempre teve um papel ativo na fundação da associação e na direção dos projetos artísticos, por outro lado, a observação sistemática cientificamente orientada de uma investigadora na área da sociologia que vem acompanhando e pesquisando o trabalho desenvolvido pela PELE nos últimos dois anos.

Page 174: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 174 Temáticas e explorações estéticas urgentes

2.Contextualização das práticas artísticas comunitárias

Os processos de criação coletiva em teatro que convocam a participação das comunidades enquadram-se no campo mais vasto das práticas artísticas comunitárias. Estas assumem-se em notável expansão nos mais diversos contextos mundiais, nomeadamente no contexto dos países ibero-americanos. Apesar de não serem uma realidade nova, estando fortemente ligadas aos movimentos artísticos e de transformação social dos anos 1960, essas práticas integram hoje novos formatos e redefinem-se num contínuo desenvolvimento de acordo com as complexas realidades atuais. Interessa ter presentes as diferentes influências nessa área como o Teatro do Oprimido (BOAL, 2005), inspirado pela Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire (FREIRE, 1987), e pelo Teatro Épico de Bertolt Brecht (BRECHT, 1964). Mais recentemente, também na América Latina, o movimento do teatro comunitário argentino (BIDEGAIN, 2007) assume um forte destaque com bases no desenvolvimento do Teatro Popular e Político. Devemos igualmente considerar a influência do devising theatre (ODDEY, 1994) ou do living theatre, e também da arte participativa na Inglaterra, que emerge no início dos anos 1990 como tentativa de despolitização da arte comunitária e, antes disto, na França, a importante ação e animação sociocultural resultante do movimento de educação popular francês (PUPO, 2015).

Page 175: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

175 | A criação teatral em Portugal no contexto das práticas artísticas comunitárias

Atualmente, é possível, recorrendo às várias definições que se inscrevem na área das práticas artísticas comunitárias, reunir uma série de elementos comuns a essa realidade em permanente construção (p.ex.: quem é envolvido, de que forma, qual é o material-base de pesquisa, o tipo de relação entre artistas e comunidades, entre outros) (BOEHM & BOEHM, 2003; COHEN-CRUZ, 2005; ERVEN, 2001; PRENTKI & PRESTON, 2009). Com base nos diversos elementos e no seu cruzamento, consideram-se as práticas artísticas comunitárias como:

um campo próprio de ação e pensamento que destaca a participação nos processos de criação artística coletivos activados pelas culturas, identidades, histórias, tradições de pessoas e lugares que artisticamente trabalhadas, sustentam o desenho de uma dramaturgia e permitem uma projecção alternativa colectiva no futuro. É de esperar de um processo desta natureza qualidade estética e uma vivência comunitária significativa numa tensão construtiva entre o tradicional e o contemporâneo. (CRUZ, 2015, p.56)

Page 176: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 176 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Particularmente no caso de Portugal, tendo em consideração as suas características culturais, sociais, econômicas, políticas e ambientais, é muito interessante destacar a proximidade à América Latina, nomeadamente no funcionamento comunitário e no sentido de pertencimento, também motivado pelos processos pós-revolucionários assentes em princípios de Educação Popular (p.ex.: F.A.O.J. – Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis). Por outro lado, é de destacar, do ponto de vista formal e estético, a influência europeia, nomeadamente da Inglaterra e da Europa Central. Assume assim Portugal, também pelo seu lugar no sul da Europa, um espaço privilegiado e estratégico de diálogo no contexto atual em que vivemos. Uma prova disso é também o interesse que Eugene Erven, da Utrech University (Holanda), uma das maiores referências mundiais neste campo de estudo, tem pelo fenômeno das práticas artísticas comunitárias que se desenvolve em Portugal.

Page 177: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

177 | A criação teatral em Portugal no contexto das práticas artísticas comunitárias

Esp

etác

ulo

En

trad

o, d

irig

ido

po

r

Hu

go C

ruz

e p

rota

gon

izad

o p

or

recl

uso

s d

o E

stab

elec

imen

to

Pri

sio

nal

do

Po

rto.

201

0.

Foto

: Pau

la P

reto

.

Page 178: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 178 Temáticas e explorações estéticas urgentes

3. Uma breve apresentação do percurso da PELE no âmbito da criação artística comunitária

A PELE, presente no território portuense desde 2007, surgiu num contexto de conjunturas nacionais e internacionais específicas marcado por problemáticas multidimensionais que passam pelas questões econômicas, mas também sociais e políticas. Referimo-nos às dinâmicas destacadas por estudos sociológicos relacionadas com o aumento das desigualdades sociais, confirmadas também pelo quadro descrito através do índice de Gini2 e que apresenta valores mais elevados nos países do sul da Europa, como Portugal, ao enfraquecimento dos sistemas clássicos de suporte informais como a família e a comunidade local, à individualização e à fragmentação da sociedade, à crise dos mercados financeiros, que se enfatizou após o ano de 2008 e que ainda parece permanecer, associada a uma fase de deslegitimação política e de enfraquecimento dos Estados-Providência europeus, principalmente os inseridos no modelo corporativo, ou, no mais específico do da Europa do Sul3, no qual Portugal se insere. Mas também é um contexto caraterizado por uma nova facilidade de interação internacional e de novas propostas de ações coletivas espontâneas que parecem possuir uma nova centralidade em nível estratégico na estruturação das sociedades modernas, e que podem ser inseridas em uma visão glocal das dinâmicas sociais (BECK, 2000). Nessa perspectiva, as ações coletivas podem mostrar-se como redes de apoio, mas também como espaços de participação cívica e política, e é neste duplo sentido que se insere a proposta da PELE, que atua no espaço de diálogo entre o socioeducativo e o artístico (PELE, s/d). Esse posicionamento rejeita a discussão entre a ideia da “arte pela arte” e da “arte com função de transformação social” de forma antagônica, colocando o foco na tensão que se gera entre as dimensões artística e política e como estas se interpenetram de forma complementar. O real necessita do poético para se inspirar no sentido das mudanças e o poético pede um real como terreno inesgotável de criação. É exatamente no espaço entre o real e o poético, o fatual e o imaginado, o individual e o coletivo que se produz o distanciamento necessário à criação de outras realidades possíveis. Esse é o espaço do estranhamento onde se podem experimentar outras formas de funcionamento do ponto de vista individual, coletivo e institucional (CRUZ, 2015; BOEHM & BOEHM, 2003; BISHOP, 2011; RANCIÈRE, 2005).

Page 179: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

179 | A criação teatral em Portugal no contexto das práticas artísticas comunitárias

2 - Instrumento de medição estatística que indica o grau de concentração de renda em determinado grupo. Apresenta valores de 0 a 1, em que 0 representa a igualdade da distribuição da riqueza e 1, a concentração de toda a riqueza em um único grupo, configurando uma situação de desigualdade extrema.

3 - Sobre a perspetiva do modelo corporativo, ver Esping-Andersen (1994). Para o modelo da Europa do Sul, ver Adão e Silva (2002).

Page 180: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 180 Temáticas e explorações estéticas urgentes

A partir da análise dos quarenta e cinco projetos desenvolvidos pela PELE até a data atual, podem ser identificadas quatro áreas específicas de atuação: 1) projetos teatrais com as comunidades; 2) projetos com grupos populacionais que apresentam caraterísticas homogêneas (p.ex.: pessoas reclusas, pessoas surdas, pessoas em situação de sem abrigo); 3) projetos de Teatro do Oprimido; 4) formação.

Analisando diacronicamente a trajetória da associação, é possível identificar um percurso caraterizado por linhas de trabalho que se mantiveram ao longo do tempo, mas que deram espaço também à inovação através da construção do “fazer teatral” e da reflexão sobre este fazer, concretizada também através de publicações de livros e documentários centrados nos processos criativos. Cada projeto e o seu desenvolvimento dependem de peculiaridades circunstanciais e têm objetivos específicos, mas inserem-se nos propósitos gerais da associação que propõe afirmar o teatro como espaço privilegiado de diálogo e criação coletiva (PELE, s/d).

Page 181: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

181 | A criação teatral em Portugal no contexto das práticas artísticas comunitárias

Afunilando para o âmbito dos processos criativos coletivos de Teatro Comunitário no qual se concentra este texto, a PELE desenvolveu até hoje dezoito projetos, abrangendo cerca de quinhentos participantes. Pelas próprias caraterísticas que constituem as práticas artísticas comunitárias, em que a criação é partilhada num movimento de colaboração, e pelas conjunturas estruturais de cada contexto em que são desenvolvidas, torna-se difícil pensar esses projetos como um todo homogêneo. As caraterísticas próprias das comunidades com que se trabalha, e das quais emergem as temáticas e os seus desenvolvimentos, oferecem leques diferenciados de narrativas e de expressões artísticas. Além disso, os enquadramentos institucionais e financeiros proporcionam tipos de resultados distintos. Assim, encontramos projetos com caraterísticas muito diferentes no que diz respeito à duração, à prossecução do acompanhamento dos grupos e aos âmbitos das apresentações, criando um continuum entre diferentes graus de institucionalização e de continuidade (SERAFINO, 2015). Mas existem aspectos peculiares transversais às práticas de criação coletiva comunitária e, de forma mais específica, aos trabalhos da PELE, como a inclusão de narrativas que atravessam diferentes esferas da vida e com uma forte presença das especificidades locais, a heterogeneidade interna dos grupos, a experimentação, a proposta de momentos de diálogo e o questionamento e a abertura de outras possibilidades de acesso ao circuito cultural da cidade.

Page 182: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 182 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Esp

etác

ulo

MA

PA –

O jo

go d

a

cart

og

rafi

a, d

irig

ido

po

r H

ugo

Cru

z e

pro

du

zid

o p

ela

PE

LE

– E

spaç

o d

e C

on

tact

o S

oci

al

e C

ult

ura

l. 20

14.

Foto

: Pat

ríci

a Po

ção.

Page 183: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

183 | A criação teatral em Portugal no contexto das práticas artísticas comunitárias

Page 184: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 184 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Esses projetos propõem-se como um estímulo à colaboração, visando a objetivos comuns na tentativa de contrastar os impulsos de competição que permeiam a nossa sociedade. A dinâmica dos processos criativos leva a abordar assuntos significativos e urgentes para as pessoas envolvidas naqueles momentos específicos. Ao longo dos projetos da PELE, podem ser identificados alguns temas recorrentes que se assumem como inspirações na escrita das dramaturgias (p.ex.: o emprego e a falta dele; os processos de desindustrialização que marcam os equilíbrios familiares e o ordenamento urbano; a viabilidade urbana e a dificuldade de acesso a determinadas áreas da cidade; as lógicas de segregação social, de gentrificação e de negligência de determinados territórios por parte do poder político; os ciclos migratórios: do rural ao urbano, internos à própria malha metropolitana e de nível internacional; a violência doméstica, de gênero e entre gerações; o resgate de tradições, de rituais e de identidades; a construção de narrativas alternativas que visem à superação de estereótipos; a importância do acesso ao teatro e à arte; a possibilidade de cada pessoa poder ser inserida e fazer parte na construção de experiências culturais, participativas e afetivas).

Page 185: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

185 | A criação teatral em Portugal no contexto das práticas artísticas comunitárias

4.Algumas considerações

Este texto propôs uma breve reflexão, que pretende continuar inacabada, sobre a produção e o fazer teatral num sentido comunitário. Em síntese destacamos como aspectos essenciais das práticas artísticas comunitárias: a ligação ao lugar; a relevância da continuidade e autonomia dos grupos; o trabalho com grupos heterogêneos e diversos; uma dramaturgia baseada nas memórias, histórias, identidades, culturas, em suma, nas características específicas que tornam única e “irrepetível” cada comunidade; o foco nos processos participativos de criação coletiva; o envolvimento da comunidade em todas as fases do processo criativo; uma participação voluntária e sem recorrer a seleção; a aceitação de diferentes formas de participação no processo; e trabalhar de forma contínua o equilíbrio frágil entre ética, estética e empoderamento.

Page 186: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 186 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Esp

etác

ulo

MA

PA –

O jo

go d

a

cart

og

rafi

a, d

irig

ido

po

r H

ugo

Cru

z

e p

rod

uzi

do

pel

a P

ELE

– E

spaç

o d

e

Co

nta

cto

So

cial

e C

ult

ura

l. 20

14.

Foto

: Pat

ríci

a Po

ção.

Pelas questões aqui levantadas, parece-nos que as práticas artísticas comunitárias podem adquirir a forma de uma ação emancipatória assente num movimento colaborativo que incentiva o debate estético e ético em torno das possibilidades de atuação na realidade, da criação de novas narrativas e das representações alternativas à visão dominante da sociedade. As produções teatrais caraterizadas por processos coletivos e que se integram neste âmbito podem representar a reivindicação de uma independência em relação aos modelos expressivos da indústria cultural e podem-se inserir em lógicas de políticas de caráter comunitário. No entanto, torna-se fundamental entender e levar em consideração as dinâmicas de apropriação intrínsecas ao sistema no qual estamos inseridos, para não perspectivar de forma ingênua as práticas artísticas comunitárias, uma vez que podem existir apropriações políticas e institucionais das mesmas, que tendencialmente as descaracterizam e englobam em dinâmicas controversas.

Page 187: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo
Page 188: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 188 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Bibliografia

BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo global. Madrid: siglo XXI, 2000.

BIDEGAIN, Marcela. Teatro Comunitário: Resistencia y transformación social. Buenos Aires: Atuel, 2007.

BISHOP, Claire. Participation and Spectacle: Where Are We Now? Lecture for Creative Time’s Living as Form, 2011, p.7.

BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

BOEHM, Amnoon; BOEHM, Esther. Community Theatre as a means of empowerment in social work: A case study of women’s community theatre. Journal of Social Work, 3 (3), 2003, pp.283 – 300.

BRECHT, Bertolt. Brecht on theatre. New York: Hill na Wang, 1957/1964.

COHEN-CRUZ, Jan. Local Acts: Community-based Performance in the United States. London: Rutgers University Press, 2005.

CRUZ, Hugo (Coord.). Arte e Comunidade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015.

ERVEN, Eugene van. Community Theatre: Global Perspectives. London: Routledge, 2001.

Page 189: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

189 | A criação teatral em Portugal no contexto das práticas artísticas comunitárias

ESPING-ANDERSEN, Gøsta. O futuro do Welfare State na nova ordem mundial. Lua Nova, 35 (95), 73-204, 1994.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

ODDEY, Alison. Devising Theatre: a practical and theoretical handbook. London: Routledge, 1994.

PELE – Espaço de Contacto Social e Cultural. (s/d). Disponível em: http://www.apele.org> Acesso em: 30 jun. 2016.

PRENTKI, Tim; PRESTON, Sheila. (Org.). The Applied Theatre Reader. London and New York: Routledge, 2009.

PUPO, Maria Lucia. Para alimentar o desejo de teatro. São Paulo: Hucitec Editora, 2015.

RANCIÈRE, Jacques. Estética e Política: a partilha do sensível. Porto: Dafne Editora, 2005.

SERAFINO, Irene. The theatre in the places of social exclusion: preliminary analysis of the Pele – Espaço de Contacto Social e Cultural association activities. KISMIF Book of proceeding, 2015, pp.203-208.

SILVA, Pedro Adão e. O modelo de Welfare da Europa do Sul: Reflexões sobre a utilidade do conceito. Sociologia, problemas e práticas, 38, 25-59, 2002.

Page 190: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Santiago Sanguinetti 2(MONTEVIDÉU/URUGUAI)

1 - Este texto conjuga as ideias expostas em dois artigos diferentes. Em primeiro

lugar, Entre lo sublime y lo espurio, publicado na Revista Conjunto (Casa de

las Américas, La Habana, Cuba, n. 173, out.-dez. 2014, p. 83-87); em segundo

lugar, o artigo Una trilogía de la revolución como alternativa al principio de no

contradicción, publicado na Revista Apuntes de Teatro, n. 139, 2014, ISSN 0716-4440

©Escuela de Teatro – Pontificia Universidad Católica de Chile.

ENTRE O SUBLIME E O ESPÚRIO: UMA BREVE EXPOSIÇÃO SOBRE O CONCEITO DE JUSTAPOSIÇÃO

COMO PROCEDIMENTO DE MONTAGEM POLÍTICA1

Page 191: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

2 - Santiago Sanguinetti (Montevidéu/Uruguai) é ator,

dramaturgo, diretor e professor, egresso da Escola

Multidisciplinar de Artes Dramáticas. Estudou em

Avignon, Barcelona, Nottingham, Santiago, Buenos

Aires e Montpellier. Vencedor de diversos prêmios, entre

eles o Prêmio Nacional de Literatura do Uruguai. Seus

textos foram encenados em nove países. Autor dos livros

Dramaturgia imprecisa (2009), Sobre la teoría del eterno

retorno aplicada a la revolución en el Caribe (2013) e

Trilogía de la revolución (2015).

Page 192: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 192 Temáticas e explorações estéticas urgentes

PAUL AUSTER, em seu livro Diário de Inverno, conta que James Joyce, de passagem por uma festa na noite da Paris dos anos vinte, foi abordado por uma mulher, que lhe pediu um aperto na mão que havia escrito Ulisses. “Permita-me recordá-la, senhora, que esta mão também fez muitas outras coisas”, respondeu Joyce (AUSTER, 2012, p.176)3. O valor cultural suposto pelo fato de ter conhecido Joyce, ter lido Ulisses e apertado a mão do escritor que revolucionou a narrativa do século XX logo se viu contrastado com a inevitável escatologia da imaginação mais perversa: um produto cultural de elite se misturando com possíveis limpadas de bunda, masturbações – próprias ou alheias –, assoadas de nariz, retiradas de remelas dos olhos e cera dos ouvidos, espremidas de espinhas e limpezas de penugem do umbigo. Caso Joyce tivesse aceitado, sem mais, apertar a mão da mulher em questão, o ato comunicativo teria sido encerrado. No entanto, e aqui está a genialidade, Joyce amplia seu sentido, abrindo mais um jogo na dinâmica da linguagem. Ele mesmo se torna uma imagem de justaposição. Sua mão, a mesma mão, passa a ser lida como mãos diferentes, com referências a dois campos semânticos aparentemente contrários. Joyce une em si dois opostos: o sublime e o espúrio, tudo num mesmo instante e num mesmo corpo. “Fair is foul, and foul is fair”, tal como afirmam as bruxas de Macbeth, de William Shakespeare, no início do primeiro ato.

Page 193: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

193 | Entre o sublime e o espúrio:uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)

3 - Do original: “Permítame recordarle, señora, que esta mano también ha hecho muchas otras cosas”. Tradução nossa.

4 - Do original: “El arte es el pensamiento por medio de imágenes”. Tradução nossa.

5 - Do original: “Todo el trabajo de las escuelas poéticas no es otra cosa que la acumulación y revelación de nuevos procedimientos para disponer y elaborar el material verbal, y consiste mucho más en la disposición de las imágenes que en su creación”. Tradução nossa.

Víktor Shklovski (1991, p. 55), no começo de seu artigo A arte como artifício, lembra que “a arte é o pensamento por meio de imagens”4, e complementa: “Todo o trabalho das escolas poéticas não é outra coisa senão a acumulação e a revelação de novos procedimentos para dispor e elaborar o material verbal, e consiste muito mais na disposição das imagens que em sua criação”5 (SHKLOVSKI, 1991, p. 56).

Essa concepção da arte como “revelação de novos procedimentos” (SHKLOVSKI, 1991, p. 56) ilumina nosso caminho para entender, no que toca ao teatro político, qual pode vir a ser a relação entre cena e contexto social. Por que não pensar em conteúdos ideológicos claros, porém apresentados sob o obscurecimento da forma?

Page 194: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 194 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Como um dos tantos procedimentos de manipulação de imagens, a justaposição de elementos dissonantes produz a multiplicação de seus sentidos. A percepção sofre um impacto, a provocação surte efeito, a recepção se desautomatiza. Os exemplos abundam, e não apenas na literatura. Pensemos no filme de Bertolucci Último tango em Paris e em Maria Schneider masturbando Marlon Brando debaixo da mesa de um bar enquanto sussurra: “não quero te ver mais, nossa relação acabou”. O objeto devém, se recria e se instala no terreno do desconhecido e do irreconhecível. Deixa de ter nome.

A finalidade da arte é dar uma sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; os procedimentos da arte são os da singularização dos objetos, o que consiste no obscurecimento da forma, no aumento da dificuldade e da duração da percepção. O ato da percepção é, na arte, um fim em si e deve ser prolongado. A arte é um meio de experimentar o devir do objeto: o que já está realizado não interessa para a arte.6 (SHKLOVSKI, 1991, p. 60)

Page 195: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

195 | Entre o sublime e o espúrio:uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)

6 - Do original: “La finalidad del arte es dar una sensación del objeto como visión y no como reconocimiento; los procedimientos del arte son los de la singularización de los objetos, y el que consiste en oscurecer la forma, en aumentar la dificultad y la duración de la percepción. El acto de la percepción es en arte un fin en sí y debe ser prolongado. El arte es un medio de experimentar el devenir del objeto: lo que ya está realizado no interesa para el arte”. Tradução nossa.

A teorização acerca da relação entre o teatro e a política foi, e segue sendo, problemática, ainda mais quando não são poucos os que restringem o uso da locução “teatro político” unicamente ao teatro didático portador de uma “mensagem”. São vários os pontos de partida para se pensar o político no teatro. Estrear uma obra fora dos centros hegemônicos, seja qual for seu tema, é, por si só, um ato político de resistência. Cobrar ingressos populares, “passar o chapéu”, permitir o acesso gratuito e livre são, também, atos políticos. É um ato político estrear peças de autores latino-americanos e não clássicos europeus. Gerar procedimentos de criação horizontais e cooperativos é um ato político. Sair dos teatros para trabalhar em espaços não convencionais é um ato político. Subverter e deslocar o funcionamento da apresentação nos teatros convencionais é também um ato político. E também o são seus contrários: estrear em centros hegemônicos, evitar a periferia – geográfica e autoral –, cobrar preços elevados, fazer publicidade nesse ou naquele jornal. São todos atos políticos, mas o são em sua forma, não no conteúdo. Ao falar de conteúdo, falamos necessariamente das ideias que vão além da própria teatralidade. Falamos das ideias sobre as quais se sustenta o mundo real. No meu ponto de vista, é justamente aí, na interação entre o âmbito da representação e o âmbito puramente extrateatral, onde acontece o jogo da relação entre teatro e política.

Page 196: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 196 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Dessas afirmações se originam algumas perguntas: o teatro é algo mais que ele mesmo? Há teatralidade, como essência do dramático – se é que isto existe –, fora do teatro? O teatro é mais do que puro procedimento e soma de regras? O teatro é um meio ou um fim? A questão geral a ser resolvida é, definitivamente e sem minúcias epistêmicas, qual é a relação entre o mundo real e o mundo da cena.

Rafael Spregelburd (2003, p.142-143) aborda a problemática sem duvidar em evitar a construção de verdades apriorísticas na composição dramática. Em seu teatro, pelo menos na teoria, o procedimento vem antes do símbolo.

Page 197: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

197 | Entre o sublime e o espúrio:uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)

7 - Do original: “El teatro más vivo, más interesante que se hace hoy en Buenos Aires […] es un teatro que huye del símbolo como de la peste. […] Su “verdad” radica más en el procedimiento lúdico de construcción de sentidos a posteriori, que en la mostración de verdades conocidas a priori. […] El teatro que nos enfrenta a las cosas del mundo sin orientar su significación”. Tradução nossa.

O teatro mais vivo, mais interessante que se faz hoje em Buenos Aires […] é um teatro que foge do símbolo como da peste. […] A sua “verdade” radica mais no procedimento lúdico de construção de sentidos a posteriori do que na exposição de verdades conhecidas a priori. […] O teatro que nos coloca de frente com as coisas do mundo sem orientar suas significações.7

Muito antes, outros teóricos parecem ter-se inquietado pelas mesmas questões, chegando a reflexões similares. Vsevolod Meyerhold (2010, p.61) cita duas correntes opostas, as quais chamou de “pressão literária” – teatro como meio – e “pressão teatral” – teatro como fim.

Page 198: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 198 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Em todas as épocas e em todos os lugares, o teatro experimentou a pressão de duas forças da dramaturgia: a literária e a teatral. O predomínio, no drama, de elementos literários emergia à superfície do palco sempre que o teatro deixava de ser um objetivo para converter-se em meio. Um púlpito do qual se pode pronunciar com comodidade. […] Os mestres do diálogo em romances e contos vão ao teatro depois de se desprenderem do tempo dedicado aos romances e contos. […] Dessas entranhas, brota o repugnante fedor do teatro tendencioso e do teatro de conversação8, nos quais o autor utiliza o palco para expor uma série de opiniões sobre a sociologia, as relações entre casais e, inclusive, sobre a medicina. Na Rússia, França, Itália, Inglaterra, Suécia e Noruega, no final do século XIX, observamos uma mesma tendência: os teatros buscam a dramaturgia dos propagandistas, dos romancistas ou, simplesmente, dos homens de negócios.9

Page 199: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

199 | Entre o sublime e o espúrio:uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)

8 - Do original: “teatro de conversación”. Tradução nossa.

9 - Do original: “En todas las épocas y en todos los lugares el teatro ha experimentado la presión de dos fuerzas de la dramaturgia: la literaria y la teatral. El predominio en el drama de elementos literarios ha emergido a la superficie del escenario siempre que el teatro ha dejado de ser un objetivo para convertirse en un medio. Un púlpito desde el que se puede predicar con comodidad. […] Los maestros del diálogo en novelas y relatos van al teatro tras desprenderse del tiempo empleado en novelas y relatos. […] De estas entrañas brota el repugnante hedor del teatro tendencioso y del teatro de conversación, en los que el autor utiliza el escenario para exponer toda una serie de opiniones sobre la sociología, las relaciones de pareja e incluso la medicina. En Rusia, Francia, Italia, Inglaterra, Suecia y Noruega a finales del siglo XIX observamos una misma tendencia: los teatros buscan la dramaturgia de los propagandistas, de los novelistas o, sencillamente, de los hombres de negocios”. Tradução nossa.

É possível afirmar, então, que o teatro deve existir unicamente por e para si? Se examinarmos as seguintes palavras de Peter Brook (1973, p.50), afirmando a existência de valores próprios da cena – em oposição àqueles valores que lhe são alheios –, tenderíamos a pensar assim.

Page 200: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 200 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Se partimos da premissa de que um palco é um palco – e não o lugar adequado para desenvolver um romance, uma conferência, uma história ou um poema teatralizados –, a palavra dita nesse palco existe, ou deixa de existir, somente em relação às tensões que cria em dito palco e dentro das circunstâncias determinadas pelo lugar. Em outras palavras, ainda que o dramaturgo dê à obra sua vida, que se nutre da vida que a rodeia – um palco vazio não é uma torre de marfim –, as escolhas que faz e os valores que observa têm força somente em proporção ao que criam na linguagem teatral. Exemplos disso acontecem sempre que um autor, por razões morais ou políticas, tenta fazer com que sua obra seja portadora de alguma mensagem. Seja qual for o valor de tal mensagem, apenas surtirá efeito caso caminhe de acordo com os valores próprios da cena.10

Page 201: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

201 | Entre o sublime e o espúrio:uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)

10 - Do original: “Si partimos de la premisa de que un escenario es un escenario –no el lugar adecuado para desarrollar una novela, una conferencia, una historia o un poema escenificados–, la palabra dicha en ese escenario existe, o deja de existir, sólo en relación con las tensiones que crea en dicho escenario y dentro de las circunstancias determinadas de ese lugar. En otras palabras, aunque el dramaturgo traslada a la obra su propia vida, que se nutre de la vida circundante –un escenario vacío no es una torre de marfil–, la elección que hace y los valores que observa sólo tienen fuerza en proporción a lo que crean en el lenguaje teatral. Ejemplos de esto se dan siempre que un autor, por razones morales o políticas, intenta que su obra sea portadora de algún mensaje. Sea cual fuera el valor de dicho mensaje, únicamente surtirá efecto si marcha acorde con los valores propios de la escena”. Tradução nossa.

No entanto, há algo que ainda nos provoca estranhamento, pois, quais seriam, então, esses valores? Como o teatro pensado como fim e não como meio deve apresentar sua matéria semântica? Quais são os procedimentos que resultam no “teatral”? Como se mede a tensão que a palavra dramática – não a narrativa ou a poética – exerce em cena? Como deixar de lado o político-temático a partir de uma ótica ideológica emancipatória que não negue o teatral, mas, tampouco, o restrinja à sua versão didática?

Enfrentando essas perguntas, comecei a esboçar procedimentos de direção cênica que abordem certo universo de ideias, promovendo, ao mesmo tempo, sua combustão espontânea. Apresentando um argumento semântico e o seu contra-argumento referencial, numa espécie de palimpsesto ideologicamente incômodo, se consegue ampliar e defender, por partes, as opções de discussão, instalando, assim, um debate sério, um cruzamento argumentativo maduro e não linear, antecipado ou guiado.

Page 202: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 202 Temáticas e explorações estéticas urgentes

A justaposição – assim chamaremos esse procedimento de montagem política – permitirá que entendamos alguns aspectos da sinuosa relação que costuma se estabelecer entre a política e as artes cênicas no meio teatral contemporâneo. Manteremos o foco em algumas estreias montevideanas recentes, tomando como exemplo central o projeto Trilogia da revolução, composto pelas peças Argumento contra a existência de vida inteligente no Cone Sul (Teatro Solís, 2013), Sobre a teoria do eterno retorno aplicada à revolução no Caribe (Teatro Solís, 2014) e Breve apologia do caos por excesso de testosterona nas ruas de Manhattan (Teatro Circular de Montevideo, 2014)11.

Entenderemos a justaposição como um tipo particular de montagem, conceito abordado por Peter Bürger (1997) em sua Teoria da vanguarda como uma das categorias de estudo da obra de arte vanguardista. Da colagem cubista de princípios do século XX às fotomontagens políticas de John Heartfield, criados como denúncia na Alemanha nazista, a justaposição entendida como coexistência de elementos dissímeis em uma mesma imagem, num mesmo golpe de recepção, supõe, de fato, uma recusa ao realismo. Implica, também, uma construção poética da realidade e propõe uma alternativa ao cotidiano; mas se limita a isso.

Page 203: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

203 | Entre o sublime e o espúrio:uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)

11 - No original: “Trilogía de la revolución – Argumento contra la existencia de vida inteligente en el Cono Sur; Sobre la teoría del eterno retorno aplicada a la revolución en el Caribe; y Breve apología del caos por exceso de testosterona en las calles de Manhattan”. Tradução nossa.

É claro que os procedimentos tomados em si não possuem conteúdos semânticos imanentes. As montagens dos futuristas italianos, associados ao fascismo de Mussolini, carecem do mesmo recorte ideológico que as dos futuristas da União Soviética posteriores à Revolução de 1917. Negando toda a síntese, renunciando a qualquer tentativa de sincretismo ou definição, a superposição de imagens, longe de estabelecer limites para a compreensão racional, parece estar fundada na irrepresentabilidade conceitual da matéria artística tratada.

O sentido não é anulado, simplesmente se torna difuso, ampliado, quase inatingível. Uma vez assim apresentada, a obra de arte assume a contradição em si mesma e estabelece um novo método de recepção e de crítica, que deve se encontrar na metade do caminho entre o estudo do procedimento como tal – método formal – e a captação do sentido – método hermenêutico. Basicamente, trata-se de um pesadelo para aqueles que pretendem encontrar uma única mensagem numa obra de arte ou, como é o nosso caso, numa obra de teatro.

Page 204: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Arg

um

ento

co

ntr

a a

exis

tên

cia

de

vid

a in

telig

ente

no

Co

ne

Su

l,

pri

mei

ro e

spet

ácu

lo d

o p

roje

to T

rilo

gia

da

Rev

olu

ção

, tex

to e

dir

eção

de

San

tiag

o S

ang

uin

etti

. 201

2.

Foto

: Ale

jan

dro

Per

sich

etti

.

Page 205: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo
Page 206: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 206 Temáticas e explorações estéticas urgentes

A justaposição como procedimento de montagem nega a possibilidade de descoberta de um único significado. Essas montagens não admitem a tradução, tampouco guardam outro discurso a ser revelado. Elas obscurecem a pretensão de se encontrar uma mensagem única.

Tal mecanismo sustenta as encenações das peças que compõem a Trilogia da Revolução. Em Argumento…, quatro jovens estudantes pretendem executar um atentado em três universidades do Cone Sul como ação direta inaugural para a transformação social. Em seu apartamento, referências permanentes à cultura pop de herança norte-americana dos oitenta e noventa se cruzam com tópicos emblemáticos da esquerda revolucionária latino-americana de meados do século XX. De um lado, Taxi Driver, Wonder Woman, Beetlejuice, E.T., Wolverine; de outro, José Carlos Mariátegui, Carlos Quijano, Che Guevara, Fidel Castro. O episódio de maior amplitude semântica, e de maior repercussão crítica na margem extensa do leque político local, consistiu numa filmagem improvisada, ao modo de plataforma reivindicativa em vídeo, que mostrava as personagens lendo artigos de revistas paradigmáticas do pensamento socialista latino-americano (a peruana Amauta e a uruguaia Marcha) com seus rostos cobertos pelas máscaras de Wakko, Yakko e Dot, as protagonistas do desenho animado Animaniacs, da Warner Brothers. Por um lado, houve quem viu essa cena como uma ridicularização dos ideais revolucionários, e, por outro, quem a viu como uma atualização temática de abordagem política pouco comum no meio local e, por conseguinte, uma reivindicação de figuras e de ideias que voltavam a ser encenadas; que voltavam a ser recordadas, comentadas e debatidas.

Page 207: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

207 | Entre o sublime e o espúrio:uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)

Em Sobre a teoria..., quatro capacetes azuis da ONU, cumprindo uma missão de paz em Porto Príncipe, são submetidos a um violento assédio por parte do povo haitiano, que, manifestando plena consciência das injustiças da ordem econômica global que fizeram de seu país o mais pobre da América, decidiu empreender um levante armado. Os soldados descobrem, no entanto, que eles mesmos foram os culpados pela rebelião, já que levaram consigo uma bibliografia revolucionária – Marx, Engels, Lenin –, que compartilharam com os locais. O paroxismo do ridículo: um largo monólogo no qual um dos soldados explica a seus companheiros, por meio de desenhos infantis num quadro negro, o funcionamento da “Dialética do senhor e do escravo”, tal como a comenta Hegel em sua Fenomenologia do espírito. Entre bonecas infláveis, preservativos, bolsas de água quente, ursos de pelúcia, posters da Madonna e bonecos de Vudu que emergem das caixas de ajuda humanitária que compõem a cena, Hegel – e em seguida Nietzsche... – aparece na boca de um soldado raso. Esses elementos – materiais e conceituais – simplesmente não deveriam estar juntos.

Page 208: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 208 Temáticas e explorações estéticas urgentes

A peça que completa a trilogia, Breve apologia do caos…, apresenta um jovem que, junto a seu avô, viaja para Manhattan para propagar um vírus que havia criado e que, ao combinar DNA de gorila com testosterona, tem por efeito tornar os seres humanos extremamente violentos. A epidemia planejada irá provocar um apocalipse sistêmico que permitirá que as utopias revolucionárias se tornem realidade, quando tudo começar outra vez do zero. E tal como antes foram Mariátegui, Quijano e Hegel, agora será a vez de Trotsky. O avô, velho trotskista, fundamentará a ação do grupo apoiando-se no conceito de revolução permanente e, para isto, recorre ao mapa naïf do tabuleiro do jogo WAR. Tanto a obra A revolução permanente como o jogo infantil são atravessados, provocando puro ruído semântico, pura estática de sentido.

Page 209: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

209 | Entre o sublime e o espúrio:uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)

So

bre

a t

eori

a d

o e

tern

o

reto

rno

ap

lica

da

à re

volu

ção

no

Car

ibe,

seg

un

do

esp

etác

ulo

do

pro

jeto

Tri

log

ia d

a R

evo

luçã

o,

text

o e

dir

eção

de

San

tiag

o

San

gu

inet

ti. 2

012.

Foto

: Ale

jan

dro

Per

sich

etti

.

Page 210: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 210 Temáticas e explorações estéticas urgentes

A peça de dois dias consecutivos Bem-vindo à casa12, dirigida por Roberto Suárez, em 2012, com a companhia Pequeño Teatro de Morondanga, é, em si, um grande exemplo de justaposição. Sua primeira parte cria a ilusão, enquanto a segunda a destrói ao evidenciar o artifício. Seria Joyce escrevendo Ulisses com uma mão enquanto coça o umbigo com a outra.

A justaposição, dissemos, é a convivência de elementos dissonantes, a presença de uma contradição quase sem salvação. Mas não todas as justaposições têm o mesmo impacto; não todas são dramáticas, se pensarmos bem. A meu ver, de todos os tipos possíveis de justaposição, o mais interessante é o que implica uma discussão de sentidos, entendendo por “sentido” toda a construção linguística que privilegia o uso cognitivo ou de conteúdos proposicionais de todo ato comunicativo – em detrimento de seu uso pragmático ou força ilocucionária. O tipo de justaposição ao qual me refiro é o que mostra sentidos contraditórios convivendo em cena. E não falo de qualquer sentido, mas de um sentido político. O sublime e o espúrio no político. Pensemos novamente em Heartfield; pensemos no stencil encontrado em uma rua de Buenos Aires que mostra Che Guevara com o rosto de Marilyn Monroe; pensemos – cruel convivência – na moeda de um dólar equatoriana, que mostra, de um lado, uma mãe indígena carregando seu bebê e, de outro, a águia norte-americana junto aos dizeres “in God we trust”.

Page 211: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

211 | Entre o sublime e o espúrio:uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)

12 - No original: “Bienvenido a casa”. Tradução nossa.

13 - Do original: “[…] es el único arte cuyo solo tema es el hombre en su relación con los demás”. Tradução nossa.

Destaco que, ao tocar no político, não estou me referindo ao relacionamento mínimo cotidiano das pessoas, mas penso nos objetos de estudo da Filosofia Política ou das Teorias Sociais: as características globais das inter-relações, os macrorrelatos que sustentam e determinam os vínculos, as normas que afetam o contato entre pares, as regras de convivência, os acordos e desacordos sobre o modo de organização imperante, as características do marco amplo que habilita a vida coletiva, as formas nas quais o poder é exercido em uma sociedade.

Aristóteles, no livro I da Política, diz duas coisas fundamentais sobre o homem. A primeira: o homem é por natureza um animal político (1989, p.135); a segunda: o homem é o único ser dotado de logos, linguagem, através da qual é capaz de expressar o bem e o mal (1989, p.136). Isso supõe, como recupera Hannah Arendt (2009) em A condição humana, que a vida política é uma vida que privilegia o discurso sobre todas a coisas; é a vida dos homens preocupados, antes de mais nada, por falarem entre si. Para Arendt (2009, p. 211), o teatro é justamente a arte política por excelência, já que “é a única arte cujo assunto é, exclusivamente, o homem nas suas relações com outros homens”13.

Page 212: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 212 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Bre

ve a

po

log

ia d

o c

aos

po

r

exce

sso

de

test

ost

ero

na

nas

ru

as

de

Man

hat

tan

, ter

ceir

o e

spet

ácu

lo

do

pro

jeto

Tri

log

ia d

a R

evo

luçã

o,

text

o e

dir

eção

de

San

tiag

o

San

gu

inet

ti. 2

014.

Fo

to: A

leja

nd

ro

Pers

ich

etti

.

Page 213: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

213 | Entre o sublime e o espúrio:uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)

Page 214: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 214 Temáticas e explorações estéticas urgentes

É a partir desse ponto de vista que considero que as justaposições de sentido político são mais dramáticas que outras. As últimas peças de Gabriel Calderón são bons exemplos. Recordemos duas: OR – talvez a vida seja ridícula, estreada no Teatro Circular de Montevidéu em 2010, codirigida por Gabriel Calderón e Ramiro Perdomo; e EX – que se explodam os atores14, estreada no Teatro La Gringa em 2012, também dirigida por Calderón. Na primeira, uma menina, que acreditavam estar desaparecida em razão da ditadura, reaparece anos depois para revelar que sua desaparição foi resultado de uma abdução extraterrestre. Na segunda, um jovem inventa uma máquina do tempo para permitir que sua namorada reconstrua sua história pessoal, trazendo do passado familiares já mortos, protagonistas do golpe de Estado.

Em ambas, o político – com o sentido que já determinamos – se intercala com a ficção científica, mesclando dois universos referenciais antagônicos, colocando em debate duas linguagens opostas, ampliando sentidos de interpretação, gerando novas ideias nascidas a partir do confronto entre mundos cujos vínculos simplesmente não correspondem. Esse procedimento, certamente iconoclasta, amplia o horizonte do possível através da provocação, leva a questionamentos não apenas sobre os temas abordados, mas sobre o fim da arte em si. É uma sacudida, em termos de recepção, aos alcances das abordagens com pretensões miméticas.

Page 215: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

215 | Entre o sublime e o espúrio:uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)

14 - Do original: “OR – tal vez la vida sea ridícula e EX – que revienten los actores”. Tradução nossa.

O que em Calderón é um procedimento de construção global, em outros casos é um procedimento de montagem de cenas particulares. Recordemos a cena final de Antígona Oriental, escrita por Marianella Morena a partir de Sófocles e depoimentos de ex-presas políticas, e dirigida por Volker Losch, que estreou no Teatro Solís em 2012. Nessa peça, Antígona se apresenta ao coro de ex-presas trajando um exuberante e justo vestido vermelho e, caminhando com dificuldade até o proscênio com sapatos de salto, esboça um largo sorriso intencionalmente falso para cantar uma espécie de murga, cujo estribilho afirma: “e agora no sistema estou, no sistema”. Vemos, assim, corpos insurgentes adaptados ao sistema, como a mãe indígena na moeda de um dólar equatoriana. Estabelece-se uma justaposição política que desconstrói o relato histórico.

Page 216: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 216 Temáticas e explorações estéticas urgentes

A m

etad

e d

e D

eus,

tex

to

e d

ireç

ão d

e G

abri

el

Cal

der

ón

. 201

3.

Foto

: Kev

in To

ro.

De tudo isso, surge uma pergunta inevitável: por que defender esse palimpsesto semântico como maneira particular de abordar o político, cheia de amplitude e de multiplicação de sentidos, que pode se prestar a interpretações às vezes antagônicas? Por que não ser mais claro com o que se pode encenar? Por que os autores e/ou diretores que procedem com esse modo habilitam leituras que podem ir contra as próprias convicções políticas? A razão é simples. Apresentar uma ideia e o seu contrário coexistindo na mesma imagem implica naturalmente um questionamento imediato das razões de semelhante convivência. A justaposição forçada aborrece e produz uma comoção frente ao que não pode ficar indiferente, como não fica indiferente quem assiste a uma espécie de missa macabra com um padre grávido e um papa violador – me refiro à peça A metade de Deus, escrita e dirigida por Gabriel Calderón, estreada pelo grupo Comédia Nacional no Teatro Solís, em 2013. O incômodo nascido da provocação habilita um diálogo e um cruzamento de argumentos imediatos, e justamente este diálogo e este cruzamento de argumentos, segundo Hannah Arendt, são a essência da política e a essência do teatro.

Page 217: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Trata-se de ver no teatro um diálogo compreendido como ação comunicativa entre iguais e não como ação estratégica – esta que o autor e/ou diretor, em cima de um hipotético pedestal, induz os espectadores, deliberadamente e sem se importar com os meios, à aceitação de uma verdade prévia pensada dentro de um escritório. Nesse caso não haveria debate nem diálogo possíveis.

Page 218: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

O Teatro Político no Agora | 218 Temáticas e explorações estéticas urgentes

Já Javier Daulte (2004), em seu artigo Jogo e compromisso, faz uma distinção similar, diferenciando o teatro lúdico – o qual defende – do teatro comprometido com o social – o qual chama de “ditatorial”. Ainda que a sua abordagem global pareça mais que acertada, seu artigo padece de um problema fundamental: ignora a importância da produção de sentido. Daulte deixa de fora o tratamento da matéria política por medo de uma abordagem unidirecional e didática. Parece claro que o teatro não deve ser didático – como o foi na Grécia Antiga – dado que a verticalidade da didática, fundada na transposição daquele que detém o saber para aquele que não o detém, não condiz com a horizontalidade do diálogo teatral proposto nas poéticas contemporâneas – esse que conduz à horizontalidade do pensamento. Felizmente, podemos afirmar que há maneiras de tratar o político a partir de uma ótica não linear, não óbvia, não didática. Teatro e política estão unidos por definição. Cabe somente se perguntar sobre os procedimentos para abordar tal relação.

Falar da recuperação da função política é falar da reinvenção de sua função de ágora, de assembleia, de debate dos assuntos políticos. A justaposição de sentidos – ou palimpsesto ideológico – é uma intuição poética e um procedimento estético de montagem que gera uma ocasião oportuna para a abertura semântica, para o encontro dialógico público e para a desautomatização perceptiva através do impacto e da ampliação do horizonte de expectativas do espectador.

Page 219: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

219 | Entre o sublime e o espúrio:uma breve exposição sobre o conceito de justaposição (...)

Obras citadas:

ARENDT, Hannah. La condición humana. Buenos Aires: Paidós, 2009. Impresso.

ARISTÓTELES. Política. Bogotá: Publicaciones del Instituto Caro y Cuervo, 1989. Impresso.

AUSTER, Paul. Diario de invierno. Barcelona: Anagrama, 2012. Impresso.

BROOK, Peter. El espacio vacío. Barcelona: Península, 1973. Impresso.

BÜRGER, Peter. Teoría de la vanguardia. Barcelona: Península, 1997. Impresso.

DAULTE, Javier. Juego y compromiso: el procedimiento. EOLIA – Escola Superior d’Art Dramàtic. Recurso eletrônico. Julho, 2004.

MEYERHOLD, Vsevolod. Conferencia Nº2: Introducción a la escenificación, 28 de julio de 1918. Lecciones de dirección escénica. Ed. Jorge Saura. Madrid: Publicaciones de la Asociación de Directores de Escena de España, 2010. Impresso.

SHKLOVSKI, Víktor. El arte como artificio. Teoría de la literatura de los formalistas rusos. Ed. Tzvetan Todorov. México: Siglo XXI, 1991. p. 55-70. Impresso.

SPREGELBURD, Rafael. Prólogo. Un momento argentino. Nuevo teatro argentino. Ed. Jorge Dubatti. Buenos Aires: Interzona, 2003. p. 133-179. Impresso.

Page 220: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

GALPÃO EM FOCO

Page 221: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

GALPÃO EM FOCO

Page 222: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Eduardo Moreira 1(BELO HORIZONTE/MG)

NÓS E A APOSTA NO RISCO

Page 223: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

NÓS E A APOSTA NO RISCO

1 - Eduardo Moreira (MG) é ator, dramaturgo, diretor

e um dos fundadores do Grupo Galpão. Autor da

dramaturgia do espetáculo Nós (2016), junto com o

diretor Marcio Abreu.

Page 224: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Cine Horto em Foco | 224

Não há nada senão vários “nós”, potências eminentemente situadase sua capacidade para estender as ramificações no seio do cadáver social que se decompõe e recompõe sem parar. Comitê invisível em “Crise e insurreição”

Page 225: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

225 | Nós e a aposta no risco

O Grupo Galpão se aproxima de completar, agora no final de 2016, trinta e quatro anos de trabalho teatral contínuo e ininterrupto. Foram vinte e três espetáculos montados e, certamente, mais de três mil apresentações, por todo o Brasil e em dezoito países do mundo. A marca, por si só expressiva, se encorpa ainda mais se considerarmos a frequente ocorrência de multidões espremidas nas ruas, a exaltação do público e da crítica e a afluência de jovens atores que prestigiam as jornadas de encontros e oficinas realizadas pelo Grupo em suas viagens pelos mais diversos recantos do País e do mundo ocidental.

Esse histórico de conquistas traz consigo, para o bem e para o mal, uma tendência à institucionalização. Todo novo trabalho vem precedido de grandes e naturais expectativas: pela aprovação generalizada, pelo retorno do público, pela sanção da crítica, pelo reconhecimento dos amigos e companheiros de classe, parceiros e patrocinadores. Espera-se, em suma, corresponder a todas as demandas projetadas sobre um trabalho que se tornou, de certa maneira, emblemático.

Page 226: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Cine Horto em Foco | 226

Não se trata, de maneira alguma, de negar ou desprezar essas circunstâncias, mas de, reconhecendo-as, saber romper o perigoso círculo de expectativas que pode muito facilmente se tornar uma prisão. Nesse sentido, ao pensar um novo projeto, o grande desafio continua a ser a busca de horizontes desconhecidos, o encontro com possíveis riscos, uma desconexão com toda a experiência anterior. Um esvaziar-se purificador, para que novos caminhos nos reponham em sintonia com o teatro como um lugar de permanente aprendizado e de aprimoramento espiritual.

Não é coisa de fácil realização. Exige vontade e persistência, coragem de fazer escolhas e de assumir consequências. Ter a humildade de saber que, no ofício do ator, estamos sempre de volta à estaca zero. Percorrendo o fio da navalha. Olhando de frente para o espelho, sem reconhecer o próprio rosto. Encarando constantemente o exercício do vazio, como retornar ao espaço familiar da sala de ensaio e dali extrair matéria insuspeitada, que seja visceral e fresca.

Esse tem sido nosso princípio norteador, que nem sempre se concretiza. Ou que consegue ser menos ou mais efetivo, conforme a conjuntura do grupo, sempre associado ao estado de crise a que o teatro está constantemente submetido. Manter a tensão entre o institucional e esse estado de crise, necessário ao fazer artístico, parece ser o desafio permanente de um grupo como o Galpão.

Page 227: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

227 | Nós e a aposta no risco

Det

alh

e d

o e

spet

ácu

lo N

ós.

Dir

eção

de

Mar

cio

Ab

reu

. 201

6.

Foto

: Ad

alb

erto

Lim

a.

Page 228: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Cine Horto em Foco | 228

Delineado esse pano de fundo, cabe agora uma reflexão sobre os rumos da criação e da montagem do nosso último projeto artístico, Nós, com direção de Marcio Abreu: como foi que a escolha, a gestação e o processo criativo se articularam com esses princípios que perseguimos, como se inseriram nessa conjuntura e, por fim, até onde conseguimos chegar.

O caminho foi longo. Na virada de 2014 para 2015, em nossas intermináveis discussões sobre que projeto artístico abraçar, o nome do Marcio afluía como uma constante, não só pela qualidade de seus espetáculos, mas também por sua visão de teatro, que conhecemos e aprendemos a admirar nos inúmeros contatos que já havíamos feito, tanto no Cine Horto como na sede da Companhia Brasileira de Teatro, em Curitiba.

De um ponto de vista mais superficial, a obra dele guardaria uma espécie de antítese da linguagem teatral mais popular, reconhecível no trabalho do Galpão. Mas esse já poderia ser, em si, um bom ponto de partida para chegarmos a algo desafiador. Um desvio do caminho sempre pode ser muito estimulante e, por isso mesmo, enriquecedor.

Page 229: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

229 | Nós e a aposta no risco

Em nosso primeiro encontro oficial, perguntei ao Marcio que tipo de espetáculo ele imaginava montar com o Galpão. A resposta veio de bate-pronto: um espetáculo político. O entendimento desse termo tão amplo e complexo foi se dando aos poucos. Num primeiro momento, ele nos enviou uma série de provocações que questionavam as relações do “dentro” e do “fora”. Como um corpo reage no espaço do dentro, na esfera íntima, no estar em casa, escondido e resguardado? E, por outro lado, como o corpo reage ao espaço de fora, onde está desprotegido, exposto ao inesperado?

Com o intuito de criar um discurso coletivo multifacetado e polifônico, Marcio nos sugeriu a criação de um manifesto pessoal, em que cada um tentasse expressar o que está bem e o que está mal no mundo e como reagimos a essa ação do mundo sobre nós. A partir daí foram surgindo novas questões referentes ao público e ao privado, ao indivíduo em relação ao coletivo, à possibilidade de convívio entre as diferenças, à tolerância e à intolerância. A ideia de uma refeição coletiva também constava das primeiras indicações propostas pelo diretor.

Page 230: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Det

alh

e d

o e

spet

ácu

lo N

ós.

Dir

eção

de

Mar

cio

Ab

reu

. 201

6.

Foto

: Ad

alb

erto

Lim

a.

Page 231: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Grupo de atores que sempre trabalhou com diretores diferentes, o Galpão sustenta, há um bom tempo, a prática de elaboração interna de cenas a serem apresentadas ao diretor. Debruçamo-nos, então, sobre as provocações propostas pelo Marcio, no intuito de construir ideias que servissem ao desenvolvimento do trabalho. O momento coincidiu com nosso fértil encontro com a diretora Miwa Yanagizawa. A diretora paulista, que dava em Belo Horizonte os primeiros passos de uma parceria com o grupo Luna Lunera, nos ministrou uma oficina sobre a escuta do ator.

Page 232: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Cine Horto em Foco | 232

Nesse caldeirão de ideias e de encontros, surgiram os improvisos que resultariam na cena da expulsão de uma pessoa que não quer sair e é brutalmente excluída de um espaço interno. Em seguida, improvisamos o reverso disso: a mesma pessoa quer sair e é violentamente impedida pelo coletivo, que não admite essa possibilidade.

Outro eixo de nossos improvisos foi a ideia da “última sopa”, cujo preparo em comum emolduraria a exposição das razões de cada participante para que fosse aquela a sua última refeição ali compartilhada.

Page 233: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

233 | Nós e a aposta no risco

Entre os meses de outubro e novembro, já sob o comando do diretor, trabalhamos os manifestos pessoais, em que cada ator expunha a questão do “como eu reajo diante da ação do mundo em mim”. Esses manifestos foram muito importantes para que cada ator encontrasse o seu chão dentro do trabalho. Além disso, na elaboração final, extratos de manifestos, como o da Teuda com a lama, o do Paulo André expondo a dificuldade de encontrar um começo, a dança da Lydia sobre a mesa e o meu homem-bomba, migraram quase integralmente para a versão definitiva do texto.

Os chamados exercícios do “fora” (retirar alguém à força de um determinado lugar) e do “dentro” (não deixar que esse alguém saia) foram apresentados ao Marcio e se firmaram, desde então, como o eixo do nosso projeto dramatúrgico. Além desses dois momentos, teríamos também a cena da preparação da sopa, em que diferentes assuntos viriam à tona, como se aqueles “personagens”, encarnações tênues de nós mesmos, reproduzissem, como ecos, as vozes que se multiplicam pelas ruas.

Page 234: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Cine Horto em Foco | 234

Det

alh

e d

o e

spet

ácu

lo N

ós.

Dir

eção

de

Mar

cio

Ab

reu

. 201

6.

Foto

: Ad

alb

erto

Lim

a.

Outro momento fecundo do processo com o Marcio foi o da experimentação em presença do público. Abrimos a sala de ensaio do Galpão para que espectadores compartilhassem e discutissem conosco as cenas que estavam sendo improvisadas. Todo o material desenvolvido foi apresentado e reapresentado, disposto em combinações diferentes, a cada uma das quatro noites. Vencer o desafio de desnudar diante do público aquele rascunho ainda tão frágil foi fundamental para que entendêssemos o limite sutil construído pelo teatro do Marcio entre uma forma teatral e um ato performático.

Page 235: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

235 | Nós e a aposta no risco

Depois de uma pausa de férias, voltamos para os três meses finais de concentração, quando de fato montamos a dramaturgia e o espetáculo. O texto foi sendo construído e desconstruído ao longo de exaustivas repetições, em que nós, paradoxalmente, buscávamos, dentro do rigor, o frescor cotidiano dos diálogos – diálogos simultâneos e cruzados, cuja sequência obedecia ao desenho de uma partitura musical extremamente precisa.

Page 236: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Cine Horto em Foco | 236

A partir daí, novos desafios se apresentaram, como, por exemplo, a possibilidade de nos surpreendermos sempre com o texto. Trabalhá-lo como algo que nasce e acontece no aqui e agora, a salvo do padrão e da forma que se repetem automaticamente na boca do ator. A isso Marcio se refere como a “exumação de um cadáver” e procura incessantemente extirpar da fala de seus atores. É exatamente essa busca de uma atuação no aqui e agora que turva, no seu teatro, os limites entre a representação e a performance, algo a que o ator deve atribuir forma e rigor, ao mesmo tempo que precisa esquecer.

Dentro de uma dramaturgia de rupturas, em que os atores precisam se ater mais ao ato de estar em cena do que ao desenvolvimento de um enredo, a interpretação deveria buscar muito mais o exercício de escuta de uma peça coral do que se prender a intenções e psicologismos.

Page 237: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

237 | Nós e a aposta no risco

Essa premência do teatro como ato do aqui e agora continua sendo a provocação mais incisiva do nosso encontro com o teatro de Marcio Abreu. A estrutura da peça não pode se assentar, ganhar sedimento. Ela precisa ser repetida, mas também esquecida. Desconstruída num permanente encontro com os diferentes públicos, em espaços diversos, e que devem alterar constantemente o estado de presença do ator. O jogo entre representação e performance nos empurra para um lugar de desafiante indefinição. A tarefa do ator é deslocar o público da acomodação com que recebe o ato teatral. É surpreender.

Depois de um ano de troca de impressões e de sugestões, quatro meses e meio de ensaios concentrados e mais de quarenta apresentações de Nós, esse desafio continua mais presente e vivo do que nunca. Tão potente e arriscado que, hoje, o Grupo não tem dúvida de que nossa próxima montagem deve ser outra parceria com Marcio Abreu. Talvez como uma forma de “entender” e digerir melhor todos os riscos com que ainda nos defrontamos. E também, é claro, buscar trajetórias artísticas inesperadas.

Page 238: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Cen

a d

o e

spet

ácu

lo N

ós.

Dir

eção

de

Mar

cio

Ab

reu

.

2016

. Fo

to: A

dal

ber

to L

ima.

2017 será um ano festivo para uma companhia que, no Brasil, completará 35 anos de existência. Em comemoração a essa marca histórica, cuidaremos para que nosso teatro continue a nos propiciar novas surpresas, encontros enriquecedores e desafios estimulantes, para alegria nossa e do público, que sempre nos brinda com seu aplauso e com seu inestimável prestígio.

Page 239: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo
Page 240: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

CINE HORTO EM FOCO

Page 241: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

CINE HORTO EM FOCO

Page 242: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Marcos Coletta 1(BELO HORIZONTE/MG)

FESTIVAL CENAS CURTAS DO GALPÃO CINE HORTO: A LIBERDADE CRIATIVA COMO ATITUDE POLÍTICA

Page 243: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

1 - Marcos Coletta (Belo Horizonte/MG) é formado

pelo Curso Técnico de Formação de Atores do Teatro

Universitário da UFMG; licenciado pelo Curso de

Graduação em Teatro da UFMG; Mestre em Artes/Artes

Cênicas pela EBA/UFMG. Desenvolve trabalhos como

ator, diretor, dramaturgo, improvisador e pesquisador. É

integrante e cofundador do Grupo Quatroloscinco – Teatro

do Comum. Atua como dramaturgo e dramaturgista para

outros grupos e coletivos mineiros. Desde 2014, coordena

o Centro de Pesquisa e Memória do Teatro do Galpão Cine

Horto. Integrou a equipe de curadoria do Festival de Cenas

Curtas do Galpão Cine Horto nos anos de 2015 e 2016 e

coordenou os Debates do Dia Seguinte, dentro do Festival.

FESTIVAL CENAS CURTAS DO GALPÃO CINE HORTO: A LIBERDADE CRIATIVA COMO ATITUDE POLÍTICA

Page 244: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Cine Horto em Foco | 244

FOI NO ÚLTIMO ANO DO SÉCULO PASSADO, em 2000, que se realizou a primeira edição do Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, espaço aberto para que os artistas de Belo Horizonte pudessem experimentar ideias e práticas cênicas com muita liberdade e pouco dinheiro. Naquela época, o Galpão Cine Horto, fundado há pouco mais de um ano, ainda buscava conquistar seu lugar como um centro cultural de referência, impulsionado pela já consagrada trajetória do Grupo Galpão. O Oficinão havia acabado de estrear sua segunda edição2 e outros projetos importantes na história da casa como Cena 3x4, Pé na Rua e Galpão Convida ainda não tinham saído do papel. A Escola de Belas Artes da UFMG abria o seu Curso de Graduação em Artes Cênicas (hoje Teatro), criando um novo campo de estudo e formação para o artista cênico belo-horizontino.

Page 245: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

245 | Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto: a liberdade criativa como atitude política

2 - A primeira edição do Oficinão realizou o espetáculo Noite de Reis, direção de Chico Pelúcio, estreado em janeiro de 1999. A segunda edição do projeto realizou o espetáculo Caixa Postal 1500, direção de Júlio Maciel, estreado em janeiro de 2000.

3 - Integrante do Grupo Galpão e Diretor Geral do Galpão Cine Horto.

Em 2000, FHC estava em seu segundo mandato e um enorme blecaute atingia onze estados brasileiros, prenunciando a crise energética dos anos seguintes, conhecida como a “crise do apagão”, metáfora pertinente para a complicada situação política e econômica do País na época. Na contramão do seu contexto, o Galpão Cine Horto acendeu todas as luzes e abriu as suas portas para receber uma demanda represada de artistas em busca de espaço para concretizar seus projetos. Em um ato quase irresponsável, Chico Pelúcio3 decidiu anunciar no boletim informativo do centro cultural: “Não percam! No segundo semestre o 1º Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto”, ainda que ninguém, nem mesmo ele, soubesse ao certo o que seria este evento. Com 66 inscrições e 16 cenas selecionadas para se apresentarem ao longo de quatro dias, a primeira edição do Festival Cenas Curtas chamou a atenção por seu despojamento e irreverência. Sua abrangência local movimentou a classe artística belo-horizontina, reunindo criadores de diferentes estéticas e gerações, proporcionando encontros até mesmo inusitados e alimentando expectativa e interesse para a segunda edição. Mantendo grande abertura e o desejo de um diálogo cada vez mais polifônico, o Cenas Curtas cresceu junto com o centro cultural. Reconhecido como celeiro de grupos e espetáculos, o Cine Horto fez do festival um ambiente privilegiado para o risco, a experimentação e o encontro de artistas (na cena e na plateia), atingindo um perfil cada vez mais popular e abrangente – se, na primeira edição, o Festival recebeu inscrições apenas de Minas Gerais, em 2014, por exemplo, vieram propostas de 16 estados brasileiros.

Page 246: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Cine Horto em Foco | 246

Pla

teia

do

Fes

tiva

l Cen

as

Cu

rtas

em

201

6.

Foto

: Gu

to M

un

iz.

A curadoria do festival também se aperfeiçoou ao longo das edições. Se, nos primeiros anos, a pluralidade de linguagens e a praticidade técnica das montagens guiavam a seleção, aos poucos o olhar curatorial se tornou mais aguçado e mais atento às questões artísticas, políticas e sociais de cada presente. O próprio crescimento no número de inscrições e a crescente qualidade dos projetos exigiram uma seleção mais criteriosa. É importante destacar que o festival soube aproveitar bem a limitação de recursos financeiros, já que sempre contou com um orçamento enxuto, e tanto sua organização quanto as próprias cenas souberam encontrar soluções criativas de grande inventividade e baixo custo. Levando isso em conta, a curadoria sempre se manteve atenta a propostas estéticas diversificadas que não exigissem grandes demandas técnicas. Tal realidade ajudou a moldar a identidade do festival ao apresentar cenas focadas no trabalho do ator, no uso da metáfora e dos signos, na relação com o espectador e na exploração da teatralidade. A equipe de seleção costuma ser composta por membros do Galpão Cine Horto e artistas convidados, vindos de diferentes áreas, garantindo assim um olhar variado e heterogêneo. A cada ano essa equipe sofre alterações para que novos olhares sejam somados ao conceito curatorial e contribuam para sua renovação e atualização. Como a seleção é realizada a partir de projetos escritos sem a obrigação de que a cena esteja pronta, não há garantia de que a qualidade da cena apresentada corresponda à proposta inicial, o que, de certa forma, alimenta o caráter de risco, exposição e experimentação do Festival e aguça a expectativa do público, da equipe e dos demais artistas participantes. Surpresas (boas e ruins) já fazem parte do evento e são esperadas com ansiedade pela plateia.

Page 247: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo
Page 248: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Cine Horto em Foco | 248

Não é possível analisar o Festival Cenas Curtas sem lançar um olhar sobre seu público – o coração do projeto. Reunindo o espectador mais cativo do Galpão Cine Horto, mas também ampliando, a cada ano, seu alcance, a plateia do Teatro Wanda Fernandes4 é calorosa, espontânea e reativa. A venda de bebida alcoólica durante as cenas, o bar após as apresentações e a realização de entreatos garantem o clima festivo e esportivo que dá ares de arena ao teatro. O público é o grande protagonista do Festival não só por votar em sua cena preferida, mas por ser, durante toda a sua participação, o termômetro do evento, o que ajuda a balizar a avaliação posterior feita pelo Galpão Cine Horto a cada edição. Não raramente, recebemos retornos dos artistas participantes elogiando a energia do público e o clima amistoso do evento. O público cativo do Cenas Curtas espera assistir, numa mesma noite, a cenas leves, dramáticas, abstratas, engraçadas, provocativas, e consegue passear por tantos universos com rapidez e naturalidade. Graças ao público, o Festival cresceu e se tornou talvez a principal vitrine da produção teatral contemporânea realizada na cidade, mobilizando uma parte considerável da classe artística belo-horizontina. Em seus 17 anos, o Cenas Curtas recebeu diversas gerações de artistas e proporcionou encontros que geraram os mais diversos frutos. Grupo Espanca!, Grupo Quatroloscinco, Teatro 171, Zula Cia de Teatro e Primeira Campainha são alguns dos coletivos surgidos a partir de cenas apresentadas no Festival.

Page 249: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

249 | Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto: a liberdade criativa como atitude política

4 - O teatro do Galpão Cine Horto.

A reverberação crescente de cada edição fez com que o Galpão Cine Horto lançasse o projeto Cena Espetáculo que, entre 2008 e 2014, selecionou uma cena a ser fomentada financeiramente para a criação de um espetáculo de longa duração. Também culminou na realização, em 2013, do Festival Cena Espetáculo que apresentou 15 espetáculos belo-horizontinos criados a partir de cenas experimentadas em diferentes edições do Cenas Curtas, exibindo um rico panorama da influência do Festival na produção teatral da cidade. Ao mesmo tempo, a vida útil das cenas curtas tornou-se cada vez mais possível a partir do surgimento de um circuito de festivais específicos para o gênero em diversos estados do Brasil, movimento bastante influenciado pelo sucesso e pela perseverança do nosso Cenas Curtas. Podemos citar, entre outros, o Festival Breves Cenas, em Manaus (AM); o Festival Dulcina de Cenas Curtas, em Brasília (DF); o Festival de Esquetes de Cabo Frio (RJ) e o Niterói em Cena (RJ). Com pequenas alterações a cada edição, o festival consolidou seu formato tradicional que termina com uma festa de encerramento no último dia de apresentações, na qual são anunciadas as cenas mais votadas pelo público. Estas são reapresentadas na Temporada das mais votadas, que costuma acontecer no próprio Galpão Cine Horto, uma semana após o Festival, e propicia aos artistas o contato com outro perfil de público. Em alguns anos, a Temporada das Mais Votadas também ocorreu fora de BH, como em Araxá e Ipatinga (MG), em parcerias ocasionais com outros festivais e instituições. A escolha por não existir um prêmio em dinheiro tem por objetivo não salientar o caráter competitivo do festival, mas a potência dos encontros, a experiência convivial e a possibilidade de se apresentar mais de uma vez. Também evitamos títulos como “melhor cena”, “melhor atuação” e deixamos para o público a escolha democrática daquilo que mais o cativou.

Page 250: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Cine Horto em Foco | 250

Cen

a R

uim

(M

G).

2015

. Fo

to:

Dila

Pu

ccin

i.

As últimas edições do Cenas Curtas deram ainda mais foco à potência política do festival. Primeiro, por seu já reconhecido espaço de liberdade criativa, e, segundo, pela ação de resistência de um evento que há 17 anos vem se mantendo firme e em constante renovação, mesmo quando enfrenta dificuldades de patrocínio. A cooperação entre artistas e coletivos de Belo Horizonte tem ajudado a viabilizar a sobrevivência do projeto e a criar uma rede de parceiros que fortalece a sua realização. A curadoria vem se mostrando ainda mais atenta ao espírito da época e aos contextos sociais e políticos que motivam as propostas artísticas de cunho cada vez mais questionador e crítico. Nesse sentido, o Festival impulsionou a criação de uma comunidade que, a cada ano, se empenha e se mobiliza para a realização do projeto. Também os funcionários fixos do Galpão Cine Horto extrapolam suas funções e se reconfiguram em uma equipe multifuncional, que vai da distribuição de material gráfico à contagem de votos do público. Do seu planejamento à sua execução, podemos reconhecer a construção de uma micropolítica própria do Festival, uma microssociedade alinhada em torno de uma missão e guiada por uma ética de trabalho em comum, bastante parecida com a coletividade do teatro de grupo, característica herdada do Grupo Galpão.

Page 251: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

251 | Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto: a liberdade criativa como atitude política

Page 252: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Litt

le B

oxes

(M

G).

2015

.

Foto

: Dila

Pu

ccin

i.

Page 253: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

2015: Diversos sempre fomos

Pela primeira vez integrando a equipe de organização e curadoria do Festival, pude experimentar na prática a complexidade de eleger 16 projetos dentre quase 300 propostas vindas de todo o País. Cada inscrição trazia em si um desejo e um universo próprios. Em meio a tantas possibilidades, a equipe curatorial precisou ser rigorosa ao propor um recorte que não fosse incoerente com a tradição do Festival, mas que lançasse olhares novos e também mais arriscados. Com o tema “Diversos sempre fomos”, a 16ª edição frisou a palavra diversidade representada não apenas no pluralismo estético, já tão praticado pelo Festival, mas reverberando discussões sobre diversidade sexual, de gênero, raça e cultura que tanto têm ocupado o centro dos debates atuais e ganhado visibilidade na mídia e na política. A informatização do processo de seleção, agora realizado apenas em plataforma digital, também contribuiu para o aumento no número das inscrições, já que o custo de impressão e postagem de um projeto pode desestimular muitos proponentes. Ganhamos em democratização. Esse processo também padronizou o formato dos projetos e permitiu uma análise mais focada no conteúdo e no conceito das propostas.

Page 254: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Cine Horto em Foco | 254

Em 2015, a curadoria acordou um conceito comum para a escolha das cenas sem desconsiderar o lugar de fala e as preferências artísticas pessoais de cada integrante, o que gerava consensos e dissensos, embates e discussões. Ao chegarmos aos 40 projetos finalistas, as análises e defesas de projetos se tornaram ainda mais acaloradas, explicitando o interesse e o envolvimento da equipe em montar uma programação que realmente respondesse ao tema proposto. Ao fim, as 16 cenas escolhidas formaram um mosaico artístico bastante heterogêneo, passando pelo registro dramático, contemporâneo, teatro-dança, cordel, street dance, manipulação de boneco, técnica circense, performance e outras formas híbridas. A pluralidade de discursos postos em cena também revelou um desejo quase geral de reafirmar a vocação política e crítica da arte. A presença de artistas e coletivos inéditos ou pouco recorrentes no Festival também balizou a curadoria, buscando abrir o espaço do Galpão Cine Horto para propostas pouco frequentes e rostos menos familiares ao seu público cativo. Expandimos o olhar para cenas que habitavam fronteiras entre o teatro e manifestações artísticas vistas como “marginais”, como a cena Feita de som e fúria (BH), que trouxe para o Teatro Wanda Fernandes a dança de rua e a cultura hip-hop e cujo elenco não era composto por nenhum ator profissional, mas por b-boys. Também se destacou a cena-manifesto Rolezinho - nome provisório, proposta pelo artista belo-horizontino Alexandre de Sena, uma vigorosa ocupação performática de corpos negros que fez urgir a discussão sobre visibilidade e desigualdade racial, colocando a

pessoa negra no centro do evento teatral, que ainda é majoritariamente branco e elitizado, referindo-se diretamente aos “rolezinhos” que ocuparam os noticiários e arranharam o bem-estar social da classe média conservadora. Como aponta a crítica e jornalista Soraya Belusi, “o que tanto assustava a classe média brasileira, a presença de um grupo de jovens negros e de periferia usufruindo o direito de frequentar espaços antes a eles negados, de se tornarem visíveis onde ninguém os queria ver, era, assim como se dá na cena, uma performance sobre poder – poder ser, poder existir, poder se fazer ver” 5. Outras cenas que se destacaram pela contundência temática foram Little Boxes (MG), que problematizou os absurdos do universo dito feminino construído a partir dos estereótipos da mulher e dos padrões socialmente impostos, e Sala de Espera (SP), que evidenciou a cultura da competição, a reificação do trabalhador e a desumanização das relações de trabalho no sistema neoliberal.

Page 255: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

255 | Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto: a liberdade criativa como atitude política

5 - Crítica publicada na revista eletrônica AGORA. Disponível em: http://www.agoracriticateatral.com.br/criticas/50/o-que-n%C3%A3o-vaza-%C3%A9-pele,-n%C3%A3o-conte-comigo-para-proliferar-mentiras,-rolezinho.

Nesse ano de 2015, outra novidade importante se deu na proposição de uma programação voltada para a rua. Vale lembrar que, em edições passadas, o Cenas Curtas já havia experimentado uma mostra de cenas para a rua em caráter não competitivo, mas desde 2009 o Festival limitou suas atividades dentro das dependências do Galpão Cine Horto. Em 2015, no sábado, penúltimo dia do Festival, fechamos um quarteirão da Rua Pitangui (onde se localiza o centro cultural) e realizamos uma feira de publicações independentes, acompanhada de música, food-truck e apresentações de b-boys, que durou até o início da noite, pouco antes da mostra das cenas. Essa experiência confirmou a potência e a necessidade de reabrir o Festival para o entorno do Galpão Cine Horto e dialogar mais diretamente com a rua, seus passantes e sua profusão de informações e acontecimentos – o que culminaria na proposta do ano seguinte.

Page 256: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Cine Horto em Foco | 256

Page 257: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

257 | Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto: a liberdade criativa como atitude política

Feit

o d

e so

m e

ria

(MG

). 20

15.

Foto

: Dila

Pu

ccin

i.

Page 258: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Cine Horto em Foco | 258

2016 – Que lugar você ocupa?

Mais uma vez como parte da equipe de curadoria do festival, agora integrada por novos artistas convidados, pude desenvolver um trabalho à luz da experiência do ano anterior. Nessa décima sétima edição, o Cenas Curtas parecia desejar um tom mais sóbrio, firme, monocromático, que pudesse dialogar com os tempos sombrios que pareciam ameaçar a democracia brasileira no ano de 2016. A crise política e institucional e o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff contribuíram para um clima de instabilidade que acirrou relações de ódio, preconceito e agressão, principalmente na internet e nas redes sociais, onde quase tudo é discutido de maneira polarizada e superficial. Na primeira reunião para decidir o tema do Festival surgiu a pergunta: “Que lugar você ocupa?”, soada como uma provocação, uma incitação a fazer dessa edição um espaço de afirmação artística e política, uma ação de guerrilha. Ainda que as propostas de cenas enviadas não soubessem previamente do tema, em sua maioria os projetos vieram ao encontro do nosso objetivo de montar uma programação essencialmente provocativa. O tema também nos fez refletir sobre o próprio lugar do Galpão Cine Horto como centro cultural em um bairro periférico na Zona Leste de Belo Horizonte que, mais recentemente, vem “concorrendo” com novos equipamentos culturais de grande porte, localizados em regiões mais nobres ou centrais da cidade (como CCBB, SESC Palladium, Cine Theatro Brasil Vallourec, entre outros). Qual é a missão e qual é a importância de um espaço como o Cine Horto? Qual é o seu diferencial, a sua essência? O que mudou de 1999 para cá? Que público o frequenta? Que tipo de artistas e pesquisadores nos procuram? Que perfil de alunos se formam nos nossos cursos? E, por fim, que lugar queremos ocupar a partir de agora? Nesse sentido, a pergunta-tema foi feita tanto para dentro quanto para fora e definiu não apenas a grade de programação, mas a própria estrutura do evento.

Page 259: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

259 | Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto: a liberdade criativa como atitude política

Motivados pela experiência em 2015, enfatizamos a ocupação da rua e o diálogo com os espaços culturais parceiros que se localizam no nosso entorno: Gruta! – Casa de Passagem, Teatro 171 e Zona Last, espaços que já se tornaram referência para uma geração jovem e alternativa da cidade ligada a movimentos artísticos, políticos e sociais. A parceria deu origem à convocatória “Rolê”, destinada a apresentações cênicas e performáticas de formato livre em uma programação paralela para ocorrer antes ou depois das cenas e que emendava no bar do festival, pela primeira vez realizado fora do Cine Horto, ocupando os espaços parceiros e atravessando a madrugada. A efetivação de um corredor cultural movimentou a vizinhança e expandiu o alcance do evento, mobilizando um número de público há algum tempo não visto no Cenas Curtas. Em suas diversas formas e estéticas, os “Rolês” enfatizaram universos marginais como o queer e o grafite, prevalecendo o tom de manifesto sem perder o bom humor e o clima festivo do Festival. Também expandimos a Feira de Publicações ocorrida na tarde de sábado, dessa vez acrescida pelo Slam Clube da Luta, uma competição de poesias autorais faladas que vem conquistando reconhecimento e público em Belo Horizonte desde 2014, e que também se destaca por seu caráter político-performático ao agregar vozes marginais e periféricas.

Page 260: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Cine Horto em Foco | 260

Mov

imen

taçã

o d

o p

úb

lico

no

s “R

olê

s” d

o C

enas

Cu

rtas

. 201

6.

Foto

: Gab

riel

Au

gu

sto.

A identidade visual criada para a 17ª edição do Cenas Curtas também dialogou diretamente e fortaleceu o tema proposto. Desenvolvida pelo Espaço Lampejo, que desde 2012 trabalha junto ao Cine Horto, estabelecendo um diálogo íntimo com os projetos da casa, o conceito visual do festival se deu a partir de bandeiras pretas e brancas estampadas com um grande X e conduzidas por diversos espaços públicos da cidade, onde eram fotografadas para composição das peças gráficas, sugerindo a ideia de demarcação, combate e manifesto. Essas bandeiras também foram estendidas na fachada do Galpão Cine Horto durante o festival e muitas vezes transportadas nas ruas pelas mãos de artistas e do público durante os “Rolês”.

Page 261: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

261 | Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto: a liberdade criativa como atitude política

Page 262: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo
Page 263: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Imag

em p

rod

uzi

da

par

a a

iden

tid

ade

visu

al d

o 1

Fest

ival

Cen

as C

urt

as. 2

016.

Foto

: Ath

os

So

uza

.

Page 264: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Cine Horto em Foco | 264

As cenas apresentadas nessa edição, oriundas de cinco estados brasileiros, abordaram diretamente diversos temas urgentes como o machismo, a homofobia, a invisibilidade social de pessoas em condição de rua e a falta de ética e escrúpulos da grande política, além de refletirem fatos reais que mobilizaram o País, como as manifestações de 2013, as ações black bloc e o próprio impeachment. Mas também houve espaço para propostas mais existenciais, universos oníricos e linguagens poéticas, todas com algum grau de crítica social. Para além das cenas, público e artistas transpiraram uma efervescência política e contestadora que frequentemente explodia em gritos de ordem e manifestações espontâneas. A tradicional festa de encerramento do Cenas Curtas foi mantida dentro do Cine Horto, no Teatro Wanda Fernandes, que rapidamente se reconfigura após as cenas de domingo para receber a celebração de finalização. Essa última confraternização mistura artistas participantes, equipe do festival e público para juntos comemorarem mais uma edição realizada com muito suor e afeto e confirmar a potência de um projeto que, a cada ano, se reinventa e se fortalece na cena teatral brasileira. Para a jornalista e crítica teatral Joyce Athiê, que nessa última edição realizou a cobertura crítica do Festival, o que se viu durante a programação foi “uma mostra de trabalhos potentes em suas linguagens, com alto nível de habilidades técnicas, formas e discursos. No público, percorrem os burburios da dificuldade de votar, uma grata indecisão. A pergunta ‘Que lugar você ocupa?’, que guiou o pensamento curatorial do festival presenteou o público com trabalhos que refletem temáticas políticas que também traduzem as variadas formas do como fazer teatro político nos dias de hoje. Os discursos e as reflexões geradas trouxeram a indagação sobre as fricções que causamos com o posicionamento em cena, como também modos de potencializar o encontro e o atrito. Para quem estamos abrindo uma conversa sobre aquilo que queremos falar? Se, na política, o embate e o conflito são potencialidades da cidadania, estamos também no teatro promovendo conexões com saberes distintos, pensamentos e ideologias contrastantes ou falamos para nossos pares? Se o discurso é antifascista, para quem deve levá-lo a ouvir?”6

Au

tocu

rad

ori

a:

um

a d

ram

atu

rgia

de

atit

ud

e (M

G).

2016

.

Foto

: Gu

to M

un

iz.

Page 265: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

6 - Trecho da crítica escrita no dia 17/09/2016, pela jornalista e crítica teatral Joyce Athiê. Disponível em: http://galpaocinehorto.com.br/no-calor-da-cena-17-09/

Page 266: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Cine Horto em Foco | 266

Para onde o Festival Cenas Curtas caminha e de que forma ele se realizará em 2017 ainda não sabemos, uma vez que todos os projetos do Galpão Cine Horto dependem da disponibilidade de patrocínios para se manterem e se aperfeiçoarem. A lógica do incentivo por meio de isenção fiscal de empresas, a desatualização das leis de fomento e o desmonte de diversas políticas culturais e sociais conquistadas nos últimos anos apontam para panoramas futuros de incerteza e apreensão a todo o setor artístico e cultural. De qualquer maneira, a equipe do Galpão Cine Horto se mantém firme em seu projeto de continuidade e resistência, contando com a força de muitos braços que reconhecem a importância deste lugar como espaço de experimentação, troca, discussão e liberdade.

Page 267: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

267 | Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto: a liberdade criativa como atitude política

Cab

aré

Vo

ltei

Osw

ald

i Ub

u (

PR

). 20

16.

Foto

: Gu

to M

un

iz.

Page 268: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Cine Horto em Foco | 268

UM BALANÇO DAS AÇÕES REALIZADAS PELO GALPÃO CINE HORTO EM 2015

Page 269: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Em 2015 foram realizados 13 projetos para um público maior que 41 mil pessoas, dentre os quais:

Festival de Cenas Curtas: 16ª edição: 262 inscrições de 16 estados brasileiros e apresentação de 16 cenas selecionadas. Público: mais de 1.500 pessoas.

Projeto Sabadão: Seis edições – com Grupo Bagaceira (CE), Teatro Commune (SP), Eduardo Moreira (MG), Eid Ribeiro (MG), Cristiano Araújo (MG) e Grupo Armatrux (MG).

Cursos Livres de Teatro: 470 alunos, divididos em 27 módulos. Público: mais de 1.000 pessoas nas Mostras dos Cursos (1º e 2º Semestres).

Núcleos de Pesquisa: Cinco módulos de Núcleos de Pesquisa nas áreas de Figurino, Cenografia, Teatro para Educadores, Jornalismo Cultural e Dramaturgia, totalizando 128 alunos pesquisadores.

Curso de Gestão Cultural – O Avesso da Cena: realizado em Sabará (MG) para 30 alunos.

Oficinas de Verão: Oficinas “Papel e sombra do boneco”, com Tião Vieira (MG), e “Eu-personagem”, com Joaquim Elias (MG). Total de 20 participantes.

Cine Horto na Estrada: mais de 600 espectadores em cidades do interior de Minas Gerais.

Page 270: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Projeto Conexão: 101 apresentações. Público: 8.400 crianças de escolas públicas.

Ações Formativas: participação de 95 professores.

Biblioteca do CPMT: mais de 250 novos itens adquiridos e catalogados. 51 novos usuários cadastrados. Mais de 600 empréstimos de materiais. Público: mais de 1.500 pessoas.

Portal Primeiro Sinal de Teatro: 37 mil visualizações de página. 58 novos conteúdos publicados (artigos, vídeos, exposições, entrevistas, periódicos).

E mais 33 espetáculos ocuparam o Teatro Wanda Fernandes, totalizando 118 apresentações para um público de 10.200 pessoas.

Page 271: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo
Page 272: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

EQUIPE GRUPO GALPÃO

Page 273: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Atores |

Antonio EdsonArildo de BarrosBeto FrancoChico PelúcioEduardo MoreiraFernanda Vianna

Inês PeixotoJúlio MacielLydia Del PicchiaPaulo AndréSimone OrdonesTeuda Bara

Conselho executivo | Beto Franco, Eduardo Moreira, Fernando Lara, Gilma Oliveira e Lydia Del Picchia

Gerência executiva | Fernando LaraCoordenação de produção | Gilma Oliveira

Produção executiva | Beatriz RadicchiCoordenação de planejamento | Aline Pereira

Assistente de planejamento | Soraya MonteiroCoordenação de comunicação | Beatriz França

Analista de comunicação | Ana Carolina DinizCoordenação administrativa | Wanilda D’artagnan

Assistente administrativa | Andréia OliveiraAssistentes financeiros | Cláudio Augusto e Cleber BordinhonRecepção | Cídia Edvania SantosServiços gerais | Andréa Pereira

Coordenação técnica e iluminação | Rodrigo MarçalCenotécnico | Helvécio IzabelSonorização | Fábio SantosAuxiliar técnico | William Teles

Consultoria de planejamento | Romulo AvelarAssessoria jurídica | Drummond & Neumayr AdvocaciaGestão financeira de projetos | Artmanagers Drummond Consultores AssociadosAssessoria contábil | Infogrupo – Maurício Silva

Page 274: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

EQUIPE GALPÃO CINE HORTO

Page 275: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Direção Geral: Chico PelúcioConselho Gestor: Beto Franco, Chico Pelúcio, Gisele Milagres, Lydia Del Picchia e Romulo Avelar.Coordenação geral: Gisele MilagresCoordenação de Produção: Graziella MedradoProdução Executiva: Bernardo GondimCoordenação Técnica: Orlan Torres (Sabará)Técnicos: Wellington Santos (Baiano) e Jésus LatalizaComunicação: Daniel BandeiraCriação gráfica: Estúdio LampejoCoordenação de Planejamento: Fernanda DinizCoordenação de Centro de Pesquisa e Memória do Teatro (CPMT): Marcos ColettaBibliotecário do Centro de Pesquisa e Memória do Teatro (CPMT): Tiago CarneiroAssistente do Centro de Pesquisa e Memória do Teatro (CPMT): Bárbara RibeiroEstagiários: Igor Cerqueira e Larissa L.O. RodriguesCoordenação Pedagógica: Lydia Del PicchiaCoordenação Pedagógica dos Cursos, Oficinas e Projetos Especiais: Fábio FurtadoCoordenação Pedagógica dos Núcleos de Pesquisa: Ana Luísa SantosSecretaria de Cursos: José JuniorEquipe Pedagógica: Camila Morena, Fábio Furtado, Gláucia Vandeveld, Juliana Martins, Kelly Crifer, Leandro Acácio e Letícia CastilloCoordenação do Projeto Sociocultural Conexão Galpão: Reginaldo SantosAtores-Monitores: Dayane Lacerda, Fabiano Lana e Mariana BlancoCoordenação Administrativo-Financeira: Maria José dos SantosAuxiliar Administrativo: Leandro DiasCoordenação Operacional: Ricelli PivaRecepcionista: Dayane NonatoPorteiro: Eberton PereiraServiços Gerais: Juarez Pereira e Rita Aparecida Rosa da SilvaAssistente de Planejamento e Projetos: Tania AraujoAssessoria Contábil: Infogrupo – Maurício Silva

Page 276: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Familia Tipográfica utilizada: UniversGalpão Cine HortoNovembro de 2016

Page 277: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo
Page 278: Ano XIII Nov 16 Número 12 - galpaocinehorto.com.brgalpaocinehorto.com.br/wp-content/uploads/subtexto12_pt.pdf · infinitas classes dentro de cada classe. O século XXI trouxe consigo

Ministério da Cultura e

Governo de Minas Gerais

apresentam

CA 0506/001/2014

Patrocínio

Apoio