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PB - 33 Chegada do homem ao território americano é alvo de pesquisas e polêmica Antes de Colombo ARQUEOLOGIA EVANILDO DA SILVEIRA IB / USP Ao desembarcar na praia de uma ilha do Caribe, numa manhã ensolarada de uma sexta-feira, dia 12 de outubro de 1492, Cristóvão Colombo foi recebido por um povo amistoso, os tainos, que ele estava convencido serem indianos. O navegador genovês a serviço da Espa- nha não sabia, mas sua chegada mar- cou, na verdade, o reencontro de duas linhagens evolutivas do Homo sapiens, que estavam separadas havia pelo me- nos 50 mil anos, a sua própria, europeia, e a dos americanos de então, mongo- loides, aparentados com os povos asiá- ticos. Desde então, persiste o mistério: como as populações encontradas por Colombo chegaram a este novo mundo descoberto por ele, mais tarde batizado de América? Dois trabalhos recentes de pesquisadores brasileiros (um livro e um artigo científico) são uma tentati- va de responder, pelo menos em parte, a essa questão. As duas respostas não convergem, no entanto. Na verdade, elas aumentam a controvérsia que cerca o assunto há muito tempo. No livro O Povo de Luzia – Em Busca dos Primeiros Americanos, seus autores, o bioantropólogo Walter Alves Neves e o geógrafo Luís Beethoven Piló, ambos da Universidade de São Paulo (USP), apresentam sua teoria para a che- gada do homem à América. Eles a cha- mam de Dois Componentes Biológicos Principais, porque, segundo essa tese, houve duas levas migratórias iniciais, a primeira há 14 mil anos e a segunda há 11 mil, vindas da Ásia pelo estreito de Bering. A mais remota seria composta Caio Guatelli / Folha Imagem Walter Alves Neves em laboratório na Dinamarca: duas levas Fóssil de mulher encontrado no Piauí

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Ao desembarcar na praia de umailha do Caribe, numa manhã ensolaradade uma sexta-feira, dia 12 de outubro de1492, Cristóvão Colombo foi recebidopor um povo amistoso, os tainos, que eleestava convencido serem indianos. Onavegador genovês a serviço da Espa-nha não sabia, mas sua chegada mar-cou, na verdade, o reencontro de duaslinhagens evolutivas do Homo sapiens,que estavam separadas havia pelo me-nos 50 mil anos, a sua própria, europeia,e a dos americanos de então, mongo-loides, aparentados com os povos asiá-ticos. Desde então, persiste o mistério:como as populações encontradas porColombo chegaram a este novo mundodescoberto por ele, mais tarde batizadode América? Dois trabalhos recentes depesquisadores brasileiros (um livroe um artigo científico) são uma tentati-va de responder, pelo menos em parte,a essa questão.

As duas respostas não convergem, noentanto. Na verdade, elas aumentam acontrovérsia que cerca o assunto há

muito tempo. No livro O Povo de Luzia –Em Busca dos Primeiros Americanos, seusautores, o bioantropólogo Walter AlvesNeves e o geógrafo Luís Beethoven Piló,ambos da Universidade de São Paulo(USP), apresentam sua teoria para a che-gada do homem à América. Eles a cha-mam de Dois Componentes BiológicosPrincipais, porque, segundo essa tese,houve duas levas migratórias iniciais, aprimeira há 14 mil anos e a segunda há11 mil, vindas da Ásia pelo estreito deBering. A mais remota seria composta

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por uma população com traços que lem-bram os dos africanos e aborígines aus-tralianos. “A segunda era de mongo-loides, semelhantes aos asiáticos e ín-dios americanos atuais”, explica Neves.

O artigo, por sua vez, de autoria detrês geneticistas brasileiros e um antro-pólogo argentino e que foi publicadoem junho de 2008 na versão on-line doAmerican Journal of Physical Anthro-pology, não nega a existência dessa di-versidade de traços entre os primeirosamericanos. A diferença é que os auto-res defendem que houve uma leva mi-gratória principal, que chegou ao conti-nente há 18 mil anos. Antes disso, apartir de 25 mil atrás até a saída para aAmérica, os ancestrais dos migranteshaviam ficado “presos” na Beríngia,região que unia o Alasca ao nordeste daSibéria e que naquela época não estavasubmersa (era o auge do último perío-do glacial e o mar estava 120 metrosabaixo do nível atual). “Essa populaçãoera morfologicamente diversificada e

abrigava desde tipos semelhantes aosafricanos até os parecidos com os índiosatuais”, explica Maria Cátira Bortolini,da Universidade Federal do Rio Gran-de do Sul, uma das autoras do trabalho.

Cruzando o AtlânticoUma outra teoria brasileira sobre a

ocupação da América, bem mais polê-mica, foi proposta pela arqueóloga NièdeGuidon, com base em suas descobertasem vários sítios arqueológicos na regiãodo município de São Raimundo Nonato,no sul do Piauí. Segundo ela, o homemchegou à região há mais de 100 mil anos,vindo diretamente da África pelo Atlân-tico. Niède também considera que, nes-sa época, o planeta estava num períodoglacial, com o mar 120 metros abaixo donível atual. “O número de ilhas entre acosta euro-africana e a costa sul-ameri-cana era bem maior”, diz. “Além disso,as correntes marítimas favoreciam a pas-sagem para leste, para o Caribe e para olitoral norte do Brasil.”

As teorias dos pesquisadores brasilei-ros não são as únicas que tentam explicara chegada do homem à América. Na ver-dade, elas são apenas as mais recentes eestão tentando se impor diante de outrasexplicações mais antigas e consagradas,propostas principalmente por arqueólo-gos norte-americanos. A mais velha erenitente delas é o modelo conhecido eminglês como Clovis-first (Clóvis-primei-ro). Esse nome se deve a um sítio ar-queológico assim denominado, descober-to em 1939, no Novo México, nos EstadosUnidos. Nesse local, foram encontradosartefatos de pedra lascada, datados de11,4 mil anos, com destaque para as fa-mosas pontas de flecha e de lança.

Segundo os defensores desse modelo,objetos como esses teriam dado origem a

todas as demais formas de fabricar arte-fatos de pedra do continente. Além dis-so, de acordo com o livro de Neves e Piló,nessa teoria está implícito que houveapenas uma via de entrada para essespioneiros, o estreito de Bering, e queteriam chegado representantes de ape-nas um grande estoque biológico huma-no, quer dizer, membros de um mesmopovo – aquele conhecido popularmentecomo mongoloide e que hoje dominaquase completamente a Ásia. A chegadateria ocorrido há cerca de 12 mil anos enenhum ser humano teria colocado ospés no continente antes dessa data. “Emrazão do peso intelectual dos EstadosUnidos na produção científica mundial,Clóvis-primeiro foi imposto de formamais ou menos unilateral por profissio-nais da América do Norte para todo ocontinente”, diz Neves.

Dogma enterradoHá ainda uma teoria chamada Modelo

das Três Migrações, proposta em 1983pelo norte-americano Christy Turner, quese baseou num amplo levantamento dadiversidade dentária, incluindo análisesde populações pré-históricas da Austrá-lia e da Melanésia, do sul, leste e nordes-te da Ásia, além das três Américas. Dian-te dos resultados obtidos, ele concluiuque houve três levas migratórias daSibéria para a América. A primeira, há11 mil anos, teria dado origem a todosos índios das Américas Central e do Sule à esmagadora maioria dos povos nati-vos norte-americanos. A segunda teriachegado há 9 mil anos e originou osíndios de língua na-dene, ancestrais

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de apaches e navajos, representadossobretudo na costa pacífica dos Esta-dos Unidos e do Canadá. A últimaseria bem mais recente – de cerca de4 mil anos atrás –, e era compostapelos ancestrais dos esquimós e dospovos aleutas (do arquipélago dasAleutas, no Círculo Polar Ártico).

Em 1986, essa tese foi reforçada pordados da genética e da linguística levan-tados por dois colegas de Turner, StephenZegura e Joseph Greenberg. Essa novaexplicação não contraria a teoria Clóvis-primeiro. Na verdade dá suporte a ela.“Do ponto de vista biológico, as ideiasde Turner e associados dominaram todoo cenário acadêmico ligado à questão daocupação do Novo Mundo durante gran-de parte dos anos 1980 e 90”, diz Neves.“Elas têm sido usadas intensivamentepelos clovistas para dar sustentação aomodelo Clovis-first e ajudaram a torná-lo quase inexpugnável.”

Por isso, Neves diz que o debate que setravava até há pouco tempo sobre quan-do os primeiros humanos chegaram àAmérica podia ser facilmente divididoem dois grupos distintos de pesquisado-res: de um lado os clovistas, de outro ospré-clovistas. “Poucas discussões naárea da arqueologia e da antropologiaatingiram temperaturas tão altas quan-to essa no mundo acadêmico”, escreveele em O Povo de Luzia. “Clovistas ferre-nhos recusavam-se até mesmo a exami-nar com seriedade qualquer possibili-dade de que poderia ter havido huma-nos no continente americano antes dosfatídicos 11,4 mil anos, que marcam oinício da cultura Clóvis na América do

Norte. Já os pré-clovistas acreditam queexistem evidências mais que suficien-tes, sobretudo na América do Sul, paraque o dogma clovista seja definitiva-mente enterrado.”

Isso de fato começou a ocorrer em1997, quando Tom Dillehay, da Univer-sidade de Kentucky, nos Estados Uni-dos, publicou um livro em que relata emdetalhes os resultados de suas escava-ções no sítio de Monte Verde, localizadoa apenas 60 quilômetros da costa doPacífico, próximo à cidade de PuertoMontt, no sul do Chile. “Para muitos,incluindo vários clovistas empederni-dos, os dados minuciosamente apresen-tados por Dillehay não deixaram mar-gem a dúvidas: o homem estava mesmopresente em Monte Verde havia pelomenos 12,3 mil anos”, diz Neves.

Provas contra ClóvisDescobertas em outros sítios arqueo-

lógicos da América do Sul reforçaramessa constatação e a posição dos pré-clovistas. Entre esses sítios estão Taima-Taima, na Venezuela, onde foram en-contrados indícios de presença humanade 15 mil anos; Piedra Museo e Los Tol-dos, na Argentina, com vestígios de 13mil anos, além de Tibitó, na Colômbia, eQuebrada Jaguay e Pachamachay, noPeru, com datações antigas de até 11,8mil anos. No Brasil, uma descobertaimportante foi relatada em 1996, na re-vista Science, por Anna Roosevelt, entãoligada ao Museu Field, de Chicago, dan-do conta de uma ocupação humana emplena floresta amazônica datada de 11,3mil anos. Diante de tantas evidências,em março de 1998, a Sociedade Norte-Americana de Arqueologia, a maior de-fensora de Clóvis, reconheceu MonteVerde como o povoamento mais antigoda América.

É nesse contexto que se inserem asdescobertas dos brasileiros e as teoriasque elaboraram a partir delas. Em seulivro, Neves e Piló contam a história demais de 150 anos de pesquisas nas gru-tas e abrigos calcários da região de La-goa Santa, em Minas Gerais. Iniciadasem 1835 pelo dinamarquês Peter Lund,as escavações feitas por vários cientistasao longo desse tempo todo desenterra-ram provas de ocupações passadas, tan-to do homem como da chamada mega-fauna do Pleistoceno – período geológi-co que se estende de 2 milhões até 10 milanos atrás –, composta de animais hojeextintos, como tatus e preguiças-gigan-tes e tigres-dentes-de-sabre.

A obra, lançada em abril do ano passa-do, também traz à luz a história dostrabalhos realizados nas últimas duas

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Serra da Capivara, noPiauí (no detalhe, pinturarupestre): vários sítios

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décadas pelos autores na mesma regiãoestudada por Lund. Neves e Piló rela-tam como foi feita a reconstituição dorosto de Luzia a partir de seu crânio,descoberto em 1974 pela arqueóloga fran-cesa Annette Laming-Emperaire no sítiochamado Lapa Vermelha IV, em LagoaSanta. Durante mais de 20 anos, os restosdesse indivíduo jovem, do sexo femini-no, ficaram guardados no Museu Nacio-nal do Rio de Janeiro. Em 1995, Nevesfez medidas antropométricas do crânioe apresentou os resultados preliminaresem 1998, num congresso da AssociaçãoNorte-Americana de Antropologia Físi-ca. Os dados mostravam que Luzia tinhamais a ver com os africanos do que comos índios atuais.

Traços ancestraisEssa análise ganhou mais força no ano

seguinte, quando foi apresentada a re-construção da fisionomia de Luzia, feitapelo especialista britânico RichardNeave, por encomenda da rede de co-municação BBC, que estava produzindoum documentário sobre a chegada dohomem ao continente americano. “Areconstrução facial realizada por Neave,sem ter nenhuma informação prévia so-bre o assunto, convergiu totalmente comestudos que havíamos realizado ante-riormente com base no crânio seco: Lu-zia não era mongoloide.”

O resultado deu mais visibilidade àteoria de Neves, segundo a qual os pri-meiros americanos podem ter partidoda Ásia, apesar de sua semelhança comafricanos, rumo à América pelo estreitode Bering. A diferença dessa ideia com

outras que dizem o mesmo é que essedeslocamento teria ocorrido antes queessa população evoluísse até adquirir aaparência asiática. Quer dizer, esse povomantinha os traços de seus ancestrais,que haviam deixado a África cerca de 60mil anos antes. “Assim, conseguimosexplicar a existência de uma morfologianão-mongoloide no continente america-no sem apelar para modelos pirotécnicosinsustentáveis, como o das viagenstransoceânicas”, diz Neves.

O pesquisador da USP se refere à teo-ria proposta por Niède Guidon. Segun-do essa arqueóloga paulista que fez car-reira na França, retornou ao Brasil e des-de 1978 realiza escavações no sul doPiauí, os primeiros homens passaramdas ilhas e da costa africana para a Amé-rica entre 150 mil e 110 mil anos atrás.Essa passagem se fez para o Caribe epara a costa norte do Brasil, com umponto de chegada próximo ao atual rioParnaíba, então muito grande. “Depois,ao longo de milênios, esses seres huma-nos se espalharam pelo continente, mi-grando inclusive para o norte, onde seencontraram, muito mais tarde, com osasiáticos que entraram pelo estreito deBering”, explica Niède.

Durante muito tempo essa ideia foi ri-dicularizada pela comunidade arqueo-lógica. As provas apresentadas por Niède– ferramentas de pedra e restos de fo-gueiras descobertos pela pesquisadoraem São Raimundo Nonato – nunca fo-

ram aceitas. Suspeitava-se que ambasnão fossem obra do homem, mas daprópria natureza. Em 2006, no entanto,Niède marcou um tento importante naluta para que sua teoria seja aceita. Umaanálise feita por Eric Boëda, da Universi-dade de Paris, considerado um dos maio-res especialistas do mundo em tecnologialítica (de pedra) pré-histórica, mostrouque os artefatos foram mesmo produzi-dos por humanos. “O que se está discu-tindo agora é como esses homens chega-ram aqui”, diz Niède.

Modelo integradoAssim como outros pesquisadores, o

grupo binacional composto por um ar-gentino e três brasileiros acredita ter aresposta para isso. Para elaborar suaexplicação de como se deu a ocupaçãoda América, eles se basearam em dadosda genética, da morfologia craniana, daarqueologia e da linguística. O grupoanalisou 10 mil amostras de dados gené-ticos e as características anatômicas de576 crânios de populações extintas eatuais do continente americano. “Nossotrabalho é o primeiro em muitos anos apropor um modelo com essa integraçãode dados em um cenário coerente”, dizSandro Bonatto, da Pontifícia Universi-dade Católica do Rio Grande do Sul(PUC-RS), um dos membros do grupo.

Por essa teoria, com o aumento gra-dual da temperatura após o auge doperíodo glacial, as geleiras foram derre-tendo e abriram as portas da Américapara o povo que estava “preso” naBeríngia. Uma parte dele migrou pelacosta do Pacífico e iniciou uma rápidacolonização do continente, a princípiopelo litoral, tendo alcançado o sul doChile mais de 12,3 mil anos atrás.

A diversidade morfológica dessesmigrantes explica por que, apesar de serde fato mais parecida com os aboríginesda Austrália ou com os africanos do que

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Índios,aborígines (foto à esquerda)e africanos (à direita):diversidade morfológica

Luzia reconstruída:não era mongoloide

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com os índios atuais, Luzia não repre-senta uma onda migratória separada,que teria chegado ao continente antesdos asiáticos típicos (mongoloides).“Também sugerimos que mais recente-mente, alguns milhares de anos atrás,deve ter ocorrido alguma migração en-tre a Sibéria e o Alasca, o que explicariaa morfologia altamente diferenciada dosesquimós americanos e asiáticos atuais”,acrescenta Bonatto.

Seja como for, esses três modelos sãotentativas diferentes de contar uma his-tória que, como lembra Maria Cátira, éúnica. Quer dizer, o fato é que o homemchegou à América num dia do passado ea povoou. Resta descobrir quando, deonde e como veio. Na visão dos propo-nentes de cada uma das teorias, as ou-tras têm falhas. Na opinião de Niède,nenhuma proposta, exceto a sua, explicaa antiguidade de suas descobertas. Àmedida que as escavações progrediramno sítio da Pedra Furada, em SãoRaimundo Nonato, as datações foramficando cada vez mais recuadas, chegan-

do, no caso das ferramentas de pedralascada, a 58 mil anos pela técnica docarbono 14. A fogueira mais antiga seriade 100 mil anos atrás, conforme estabe-lecido por meio de termoluminescência– recurso que no entanto é questionado.De acordo com Maria Cátira, a propostade Niède não é aceita porque é frágil.“Não há ossos [fósseis] datados desseperíodo, apenas supostos artefatos”, cri-tica. “É uma ideia extraordinária queprecisa de provas incontestáveis paraser aceita. Como esses povos chegaram?Por onde? Onde estão as outras linhas deevidência? Onde estão os fósseis?”

Vencendo resistênciasNeves, que por mais de duas décadas

foi adversário intelectual e crítico con-tundente das ideias de Niède, hoje émenos cético em relação à proposta dela.Já admite que a arqueóloga possa ter defato encontrado artefatos feitos pelo ho-mem, mas no máximo com até 32 milanos, que é o limite de datação precisapelo método do carbono 14. “Estou99,9% convencido disso, mas não tenhonenhuma explicação sobre como esseshumanos chegaram aqui em data tãoantiga”, diz.

Quanto ao trabalho do quarteto ar-gentino-brasileiro, Neves está preparan-do um artigo como resposta, a ser publi-cado no mesmo American Journal ofPhysical Anthropology, mas diz que nãopode adiantar seus argumentos. Limita-se a afirmar que a proposta do grupo éuma tentativa precipitada de espremeros dados de várias ciências para encaixá-

los no modelo da biologia molecular.“Eles sacrificam coisas essenciais dasoutras áreas para que caibam na teoriade migração única defendida pela maio-ria – não a totalidade – dos biólogosmoleculares”, diz.

O antropólogo argentino RolandoGonzález-José, do Centro NacionalPatagónico, membro do quarteto, res-ponde a Neves, mas evita polemizar.“Em nosso artigo não atacamos nenhumdos modelos anteriores, mas apenas osflexibilizamos”, explica. “A teoria deNeves, por exemplo, deve ser modifica-da para que não se recorra a duas ondasmigratórias, mas sim a uma populaçãoancestral heterogênea somada a um flu-xo genético circum-ártico.”

Na verdade, o estudo dos quatro pes-quisadores tenta conciliar as teorias an-teriores existentes. “Nossa análise per-mitiu demonstrar que é compatível ahistória contada por ossos humanos an-tigos do continente (como os de Luzia)com os dados do DNA de povos indíge-nas modernos”, explica outro integranteda equipe, Fabrício Santos, da Universi-dade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Controvérsias à parte, o que se temcomo certo sobre a dispersão do Homosapiens pelo planeta é que ele surgiu naÁfrica entre 200 mil e 100 mil anos atráse dali saiu em época bastante remota emdireção ao que hoje é a Europa e a Ásia,tomando rumos evolutivos diversos,que levaram às diferenças de aparênciaque se podia notar entre Colombo e ospovos que o receberam nas praiasensolaradas do Caribe.

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Arqueólogosem ação:busca deprovas