Antropologia e Poder Pires Do Rio Caldeira Teresa

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  • 8/11/2019 Antropologia e Poder Pires Do Rio Caldeira Teresa

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    Antropologia e Poder:

    Uma Resenha de Etnografias Americanas Recentes

    Teresa Pires do Rio Caldeira

    Atualmente os antroplogos, apesar deter as mais diferentes perspectivas de an-lise, parecem concordar que as discussestericas da disciplina caracterizamse poruma razovel dose de instabilidade. Os maisnostlgicos expressam um claro malestar esentem saudades dos tempos em que asdiscusses podiam se orientar em relao a

    trs paradigmas clssicos: o funcionalestruturalismo britnico, o culturalismoamericano e o estruturalismo francs.Outros vem no caos um sina l de v igor parauma disciplina que h algum tempo temeuestar perdendo seu objeto. Escrevendo, em1984, um balano sobre a teoria antropol-gica dos anos 60 aos 80, Sherry Ortnerafirmou que era possvel reconhecer sin-tomas clssicos de liminaridade confu-so de categorias, expresses de caos e deantiestrutura (1984:127). Dois anos maistarde, George Marcus e Michael Fischer, aoresenharem a produo antropolgica con-tempornea, diagnosticaram um estado decrise na disciplina e nas cincias humanasem geral, segundo eles marcado pelo aban-

    dono de paradigmas, pelo ecletismo e poruma intensa experimentao nas tentativasde descrever culturas. Mais recentemente,foi a vez de Clifford Geertz analisar o es-tgio atual das discusses tericas em An-tropologia, caracterizandoo como marcado

    p o r um ner vo si sm o gen er al iz ad o so bre to daa questo de se pretender explicar outrosenigrmticos com base na alegao de que

    voc esteve com eles no seu habitat natu-ral, ou vasculhou os escritos daqueles queestiveram (1988:130131). Se para Ortnerainda era possvel identificar um smbolochave orientando as discusses tericasemergentes e apontando caminhos de reso-luo o smbolo da pr t ica , paraMarcus e Fischer (1986) no parece mais

    haver nenhuma fora unificadora, e isto, aoinvs de ser considerado um problema, sentido como uma virtude. Julgamento como qua l Geer tz no consegue compart i lhar .

    Um trao marcante nas discusses te-ricas da Antrop olog ia america na rece nte sobre a qual me deterei aqui pareceser uma atitude bastante crt ica em relaos tradies da disciplina. claro um es-foro em questionar, desconstruir (para nodizer demolir) os procedimentos tericose metodolgicos que deram forma produ-o de conhecimento antropolgico at pelomenos meados dos anos 70. A desconstruo da prtica passada vem se fazendoacompanhar de tentativas de incorporaode novos temas, novos objetos e novas ma-

    neiras de pesquisa e anlise. Essas tenta-tivas, contudo, no tm uma refernciacomum, uma linha explcita de orientaoterica ou metodolgica seriam experi-mentos, no dizer de Marcus e Fischer(1986). Entretanto, penso que possvelidentificar certas questes, interesses oupr ti ca s re co rr en te s. A part e de sses pon to scomuns que se refere a questes marcada

    BIB, Rio de Janeiro, n. 27, pp. 350, 1. semestre de 1989 3

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    mente epistemolgicas e metodolgicas nos e r t r a ta d a a q u i .1 Te n ta re i m e o c u p a r d eaiguns pontos temticos.

    Um dos temas que parece vir ganhandoespao na Antropologia americana recente o das relaes de poder. O bviamente, nose trata de um tema estranho disciplinaque, pelo menos desde os anos 40, reco-nheceu a Antropologia polt ica como umade suas importantes subreas. No entanto,as discusses atuais sobre a questo dopod er, ao in v s de se estr u tu ra re m em um asubrea especfica, parecem recortar estu-dos, sobre os mais variados aspectos davida social, alm de praticamente no guar-darem relao com a Antropologia polt icatradicional. O que vou tentar fazer aqui pe rc or re r al gu m as etn og ra fia s am er ican as

    p ro d uz id as nos lt im os 10 an os e qu e t mcomo tema central a anlise de relaes de

    p od er, de m odo a ca ra c te ri za r os v rioscontextos em que este tema se insere, eos vrios tratamentos que vem recebendo.

    N es sa te n ta ti v a, n o m in ha pre te ns o se rexaustiva e completa na abordagem da li te-ra tura cer tamente vr ios estudos impor-tantes sero deixado de lado ou apenasmencionados de passagem , 2 mas simtentar identificar alguns ncleos recorren-tes de discusso, privilegiando ainda aque-les estudos que me pareceram ser repre-sentativos de determinados tipos de abor-dagem.

    Na in tr oduo que se se gu e p ro cu ro , de

    um lado, resumir as principais diferenasentre os estudos contemporneos de rela-es de poder e a antropologia polt ica tra-dicional (dos anos 40 aos 60). De outrolado, procuro de l inear um a s r ie de mudan-as temticas, de modo a formar um qua-dro de referncia em relao ao qual asvrias etnografias analisadas a seguir podemser situadas.

    Finalmente, vale enfatizar que a discus-so que se segue est restrita ao mbitoda antropologia produzida atualmente nosEstados Unidos. Os poucos trabalhos noamericanos analisados foram incorporadospel o fa to de ex er ce re m in fl un ci a nas di s-

    cusses americanas. Apesar dessa escolhaser subjetiva, parece haver um consenso deque, no momento presente, os EstadosUnidos se constituem talvez no centro maisimportante de crt ica terica em Antropo-logia, de modo a justificar uma atenoespecial aos caminhos a que esto levandoa sua produo etnogrfica.

    Um Quadro das Mudanas

    Como j sugeri, uma distncia razovelsepara a Antropologia contempornea queanalisa relaes de poder dos estudos, so-b re tu d o in gles es , q u e se rv ir am p a ra es ta -be le ce r a A nt ro po lo gi a po l ti ca co m o umcampo especfico de estudos. O livro consi-derado como o fundador da subrea daAntropologia polt ica, e que influenciou os

    pes quis ad ore s de ss a r ea d os ano s 40 ao s60, a coletnea de ensaios A fr ic a n Poli- t ical Systems, organizada por Fortes eEvansPritchard e publicada em 1940.3 Oscolaboradores desse volume estavam inte-ressados no estudo de sistemas polt icosque, segundo eles, no poderiam ser estu-dados com o instrumenta l desenvolvido

    pe la Ci nc ia Pol t ic a: Est ad os prim it iv os ousociedades sem Estado. Apesar das formasserem diferentes daquelas encontradas nassociedades ocidentais, a preocupao cen-tral na fundao da Antropologia polt icaera com instituies polt icas, e ela se re-fletia na nfase em temas como estruturase sistemas polt icos, coeso e funo, etipos de autoridade constituda.

    N os es tu dos co nte m po r neo s, es sa p re o -cupao e esses temas praticamente desa-

    par ec er am , ou fo ra m po st os em u m a po si -o bastante marginal ficaram defini-tivamente a cargo da Cincia Poltica. Osnovos estudos enfocam sobretudo relaesde poder, ao invs de instituies polticas,

    legitimao da autoridade, poder local etc.E relaes de poder so encontrveis nosmais variados lugares, ao invs de se vin-cularem apenas ao exerccio da autoridadeconstituda. A l m di ss o, re la es de poderpod em se ex pre ss ar das m an ei ra s m ai s su tis ,no necessitando da referncia ao uso dafora fsica, que era um tema constantena antropologia polt ica tradicional de ins-p ir a o bri t n ic a.

    Em suma, atualmente os antroplogospar ec em est ar m en os in te re ssa dos no es tu -do antropolgico da polt ica, e mais volta-dos para as vrias dimenses polt icas dassociedades e culturas; menos preocupadoscom tipos de organizao polt ica do que

    com os temas da dominao, resistncia,luta e conflito. Na base dos estudos comen-tados a seguir existe o pressuposto nonecessariamente explcito de que as rela-es sociais so marcadas das mais varia-das maneiras por desigualdades de poder,isto , por relaes de dominao. Estasrelaes, por sua vez, no so totalitrias

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    ou encontrveis sob forma fixa e explcita.

    A dominao coexiste com a resistncia dominao, e as culturas atuam na defini-o, transformao e reproduo dessasrelaes de fora. O que est em jogo, ento, a dinmica das prticas culturais no seuembricamento com relaes de poder, nasmais variadas formas em que estas se ma-nifestem, e nos mais diferentes contextosda vida social (em movimentos religiosos,na famlia , nas relaes sexuais, na produ-o de conhecimento, em relaes de classee assim por diante).

    A mudana na maneira de se concebero foco da Antropologia polt ica se que a inda se pode fa la r de uma subreacom esse nome vem sendo acompanhadap o r v rias o u tr as m udan as que a com -p le m en ta m . U m a se gu nd a m u dan a cl ar a fo ido estudo de sociedades e povos tribais (oudo estudo de sociedades sem estado ou deestados primitivos) para o estudo da cons-t i tu io do mundo moderno. Trs temasso importantes aqui: o encontro colonial;as interconexes de grupos e culturas; e oestudo de sociedades e culturas contempo-rneas no chamado te rce i ro mundo. Namaioria das vezes em que esses temas so

    Ianalisados, existe uma referncia ao con-texto internacional do capitalismo indus-trial , definido em termos de desigualdadee dominao.

    A conscincia crescente a respeito daquesto colonial, marcada pela publica-o de livros como o de Asad (1973), trans-formou a desigualdade de poder envolvidan o encontro colonial num problema pol -tico mais importante de ser tratado pelosantroplogos do que as investigaes sobresistemas polticos nativos, todos eles jmodificados em razo das relaes com osagentes sociais ocidentais. Nesse sentido,uma Antropologia dos encontros coloniaistende a explorar no s as relaes de do-minao e desigualdade entre os coloniza-dores ocidentais e os povos colonizados doterceiro mundo, mas a produo de situa-es e culturas especficas como resultado

    desses encontros. Focalizamse, portanto,novas formas sociais e culturais produzidaspor tr an sfo rm a es e re el ab ora es de el e-mentos tomados tanto das culturas capita-listas ocidentais, quanto das culturas nati-vas . Em outras pa lavras, uma Antropolo-gia dos encontros coloniais tenta analisaras relaes de poder e de dominao quemoldam, de um lado, os encontros propr ia -mente ditos e, de outro, seus produtos, as

    vrias formas geradas por combinao eque existem hoje em dia no chamado te r-ceiro mundo. Com relao a estas socieda-des, os antroplogos tm estudado, porexemplo, relaes de classe, movimentos so-ciais, constituio de novas subjetividadesetc.

    Uma te rce i ra mudana , in t imamente re -lacionada anterior, a tendncia de algunsantroplogos de passarem de estudo de so-ciedades distantes e estranhas, para o estu-do de suas prprias sociedades, e algumasvezes seus prprios grupos, como o casoda Antropologia da mulher , num processocaracterizado por Marcus e Fischer (1986:111) como repatriamento da Antropolo-gia. Nesses casos, as anlises tm se vol-tado para temas como relaes interpessoais,relaes de gnero, estudos de prticas pro-fissionais, estudos de grupos tnicos e assimpo r d ia nte .

    Uma quarta mudana, que no se refereapenas aos estudos de relaes de poder, da nfase nas anlises sincrnicas paraanlises histricas. De fato, a crt ica aofuncionalismo e ao estruturalismo foiacompanhada pe la busca de modelos deanlise dinmicos e processuais. Relaesde poder e de dominao passaram a se r ,assim, tomadas a partir da perspectiva desua constituio: elas so produtos histri-cos, cujos processos de formao tm que

    ser reconstitudos de modo a permitir oseu entendimento e interpretao. Quasenenhuma das novas e tnograf ias sobre re -laes de poder, mesmo aquelas sobre ospovos sem histr ia , de ixam de te r umacontextualizao e uma reconstituio his-trica.

    A quin ta mudana va i na d i reo de umaAntropologia que toma de maneira crt icaa sua prpria prtica, focalizando as rela-es de poder envolvidas na produo doconhecimento antropolgico.4 Um dosaspectos dessa crt ica foi a elucidao docontexto imperialista no qual a Antropolo-gia foi moldada, e como isso influenciousuas anl ises (ver por exemplo Asad 1973,

    1986). Atualmente, contudo, essa crt icatem se ampl iado enormemente de modo adiscutir questes tais como: a relao do

    p esq uis ador co m os in fo rm an te s de outr asculturas enquanto perpassadas por relaesde poder (Dumont, 1978, Dwyer, 1982, Rab in ow , 1977 ); de fo rm a e s n a re p re se nta -o do outro nas etnografias manifestas,

    p o r ex em plo , n a neg a o d a co nt em po ra neidade de sujeito e objeto do conhecimen

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    pre st ad o at en o cr es ce nte pro d u o detextos etnogrficos, apontando todo o tipode dispositivos usados para constituir aautoridade etnogrfica (por exemplo,Clifford, 1983). Nesta linha, os antroplo-gos tm ainda experimentado novas formasde texto que os distanciem do estilo rea-lista predominante nas etnografias clssicas(Marcus e Cushman, 1982). Apesar dessacrtica e de uma crescente nfase na neces-

    sidade de se reinventar a etnografia, nosestudos sobre relaes de poder que serocomentados a seguir o estilo realista ainda o modo textua l predominante , emboraexistam inovaes nos temas e nas aborda-gens.

    Antes de entrar na anlise das etnogra-fias, gostaria de acrescentar um ltimocomentrio geral. Se o estruturalfuncionalismo foi a referncia terica central daAntropologia polt ica tradicional, a refern-cia mais importante dos estudos americanosrecentes sobre questes de poder pareceser o marxismo. Isso no significa que amaioria das etnografias sejam marxistas,mas s im que o marxismo a re fe rnc ia

    geral, tanto para aqueles que o adotamde maneira direta ou indireta, quanto paraaqueles que o crit icam e rejeitam. Pelomenos duas razes podem ser lembradas

    para ex pli car a im port n ci a do m ar xi sm ona Antropologia polt ica americana contem-por ne a.

    Primeiro, como argumenta Marcus (1986),o marxismo um dos referenciais tericosmais sofisticados e coerentes para a anlisede sociedades modernas.

    Explorar os significados culturais dapro d u o da fo r a de tr ab a lh o ou dofetichismo da mercadoria fornece meiostextuais para trazer a ordem mais

    abrangente para dentro do espao dae tnograf ia . . . O imaginr io do sis temamarxista continua a ser a refernciamais conveniente e abrangente paraatrelar etnografias locais economiapol ti ca . (M ar cu s 1986:173)

    Por outro lado, o marxismo foi umareferncia terica que ensinou os cientistas

    sociais a pen sa re m as d if er enas so ci ai s emtermos de poder e de desigualdade, e a

    pen sa re m os si st em as sim bl ic os em te rm osde dominao (atravs da noo de ideo-logia). Foi tambm o marxismo que enfati-zou a viso das relaes sociais em termosda sua constituio histrica, e em termosde conflito e luta. Mesmo considerandoseque o tratamento marxista de todas essasquestes tem sido objeto de fortes crt icasda parte de cientistas sociais e filsofos,e mesmo levandose em conta que etnogra-fias tm fornecido importantes crt icas eadaptaes teoria marxista do desenvol-vimento capitalista , o fato que ele con-tinua a ser a referncia em relao , q ual

    a maior parte das crt icas da Antropologiapol t ic a am eri ca n a te m se des en vol vid o . Emoutras palavras, se muitos dos pressupostose dos conceitos marxistas tm sido aban-donados, o seu imaginrio continua a sercentral nos estudos sobre questes de domi-nao e resistncia, como veremos na an-lise dos estudos etnogrficos.5

    A Perspectiva do Sistema Mundial

    Um dos tipos de estudo enfocando rela-es de poder em que fica clara a influn-cia marxista aquele que tenta associar anlise antropolgica e localizada de socie-dades do te rce i ro mundo uma viso dofuncionamento do capitalismo a nvel inter-

    nacional. Nas discusses americanas recen-tes, essa perspectiva tem sido denominadade sistema mundial (world system) ou deeconomia polt ica, uma expresso que vriasvezes serve de sinnimo para marxismo.Essa perspectiva tem a vantagem de que-b ra r co m ve lh os h b it o s an trop ol g ic os,como o de descrever culturas como se elasfossem isoladas, o de enfatizar a descri-o de culturas antes do encontro colonial,ou o de ignorar processos de mudanaengendrados pela realidade colonial. No en-tanto, as anlises feitas a partir da pers-pec tiva do si st em a m u n d ia l ap re sen ta mvrios problemas, que tentarei caracterizara seguir.

    Um dos problemas do uso da perspectivado sistema mundial em etnografias6 ocarter basicamente alusivo e referencial deque ele se reveste. As sociedades estudadasso associadas a uma ordem capitalistainternational que ligaria de maneira desi-gual as naes do mundo, de modo a expli-car o seu noisolamento. No entanto, nose focaliza o funcionamento dessa ordem,

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    no se aprofunda a discusso terica desuas caractersticas e nem se discute os

    pr oc es so s q u e es ta be le ce m as lig a e s entr enaes. De fato, talvez a questo centrala ser refletida no contexto das discussesde como fazer etnografias que no repre-sentem falsamente culturas como sendoisoladas ou autnomas seja a de como seconstituem as relaes entre histrias epro ce ss os lo ca is e o des en vol vi m en to docapitalismo a nvel internacional, e comoessas relaes podem ser explicadas e des-critas. a essa questo central que osantroplogos que adotam a perspectiva dosistema mundial no tm conseguido darresposta. A meu ver, essa incapacidade est

    relacionada, de um lado, maneira comoa imagem de uma ordem in te rnac iona lentra nas anlises e , de outro, verso te-rica especfica do sistema mundial que osantroplogos americanos tm util izado:aquela elaborada por Immanuel Wallersteinno comeo dos anos 70 (1974).

    Tomando como re fe rnc ia o t raba lho deFernand Braudel, Wallerstein insistiu naidia de elaborao de uma teoria geralda ordem capitalista . Para ele, qualquerhistria local teria que ser entendida emrelao histria de longa durao da eco-nomia capitalista mundial em desenvolvi-mento desde o sculo XVI. Esse desenvol-vimento teria que ser estudado interdisci

    p li narm en te e co m a a te n o vo lt ad a parapr oc es so s lo ca is . N o en ta n to , p a ra constr u iro quadro de uma ordem in te rnac iona l ,W allerstein (1979) centrou a discusso emtendncias estruturais de longa durao,deixando de lado diferenas e enfatizando

    po nto s co m un s. Com o co nse q nci a, d i-fcil articular o quadro geral por ele for-mulado a anlises locais, de modo a ajudaro entendimento de processos episdicos oude curta durao. Essa dificuldade fica evi-dente na maneira pela qual os etngrafosapropriaram essa perspectiva geral na suaanlise de dados especficos: ela tomadade uma maneira vaga e no explicativa,mais como algo que pode servir para contextualizar do que para explicar. No entan-

    to, parece que o carter vago e genricodas formulaes de Wallerstein, ao invsde ser considerado problemtico, foi algu-mas vezes considerado como um a vantagem

    pelos an trop lo go s am er ic an os.

    A perspec t iva do sis tema mundia l de fato uma macroviso da socie-dade e da histria, mas a sua atrao

    vem de suas formulaes tericas sim-pl es (e s ve ze s si m pl is ta s) , co ntr ast a -das com sua nfase em trabalhar seusconceitos atravs da interpretao dodetalhe histrico. Ela serve, ento,menos como teoria plenamente desen-volv ida , que como enquadramento

    para deb at es e d is c u ss e s .. . A o in v sdc enfatizar o dogma ou um estilo dc

    para dig m a do s anos 50 , a cha m ad ateoria do sistema mundial sobrevivehoje basicamente como uma orientaogenrica que floresce nos estudos deta-lhados de regies e perodos histri-cos. . . . O sta tus a tua l da teor ia dosis tema mundia l como uma moldura

    efetiva para pesquisas metodologica-mente flexveis em economia polt ica um exce lente exemplo da correntesuspenso de paradigmas em favor dojogo livr e co m co nce itos e m t od os , eda ateno aos microprocessos semnegar a importncia de reter algumtipo de viso de questes histricomundiais mais amplas. (Marcus eFischer, 1986:8081)

    Descrevendo a maneira pela qual o ima-ginrio do sistema mundial tem sido apro-p ri ad o re ce nte m en te po r et ngra fo s, M ar cu se Fischer apontam a questo central encap-sulada no seu uso atual: como estabelecer

    ou descrever as l igaes entre um sistemacapitalista internacional e formaes sociaisespecficas e locais? Creio, contudo, queo carter potencialmente criativo da apro-p ri a o e a in dic a o de u m a cr is e m ai sampla nas cincias sociais no so razessuficientes para aceitarmos essas idias semdeixar de levantar algumas questes. Porque manter essa imagem vaga e geral seseu carter explicativo reduzido? Por quemanter as aluses, geralmente no discuti-das, a uma teoria largamente crit icada efreqentemente considerada como simplis-ta? Se os antroplogos no podem estabe-lecer associaes significativas entre as his-trias e processos locais de curta duraoque eles estudam e a viso de uma ordeminternacional apreendida em termos delonga durao, por que insistir em afirmaras associaes? Essa tentativa de manteruma ligao com um paradigma geral noseria exatamente uma indicao das difi-culdades em se abandonar esse tipo de para-digma?

    Alm disso, seria o modo alusivo amelhor maneira de lidar com relaes de

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    p oder e des ig ua ld ad e a n v el in te rn ac io nal ? a perspectiva de uma ordem capitalistainternacional em geral a melhor disponvelp ar a e n q u ad ra r de sc ri es de pr oc esso slocais? Como se sabe, os tericos do enfo-que da dependncia responderiam de ma-neira negativa a esta ltima questo, masesse enfoque continua largamente ignoradope lo s an troplo gos am eri cano s.7

    Os tericos da dependncia assumem quea anlise e a compreenso de situaes dedependncia requerem uma armao te-rica especial que interprete a partir de um p onto de vi sta esp ec fico a organizao deuma ordem capitalista internacional, e ques pode ser til para a anlise de um certo

    tipo de sociedade (Ver Cardoso e Faletto,1979 Prefcio Edio Americana). essa perspectiva especial que o enfoque dadependncia tentou oferecer. Ele argumen-tava que, apesar da existncia de umaordem capitalista internacional conectandode maneira desigual naes do primeiro, dosegundo e do terceiro mundo, a dependn-cia s poderia ser entendida em situaes

    ; especficas do p onto de vista histrico enacional, j que a expanso do capitalis-mo no te rce i ro mundo ocorre ra em dife -rentes momentos, sob formas diversas,encontrando em cada contexto foras eobstculos especficos.

    Conseqentemente, os resultados foramdiferentes, e em funo disso que, paraCardoso e Faletto, no existe uma formaIgeral de dependncia que permeie todos ostipos de situao no terceiro m un do .8 Almdisso, o entendimento dessas situaes dedependncia deveria levar em consideraono apenas ou principalmente o papel deagentes externos; ao contrrio, ele dependeda reconstituio d o modo pelo q ual asrelaes de classe foram moldadas local ehistoricamente. Em outras palavras, estudosde situaes de dependncia deveriam re-constituir a interconexo de foras inter-nas e externas de dominao nas histriaslocais. Ela uma interpretao da ordemcapitalista internacional a partir da pers-pe ct iv a dos pa s es de pe nd en te s, is to , a

    p ar ti r da per sp ec tiva d a si tu a o de ss espa s es que s o estr u tu ra lm en te explo ra dose dominados nessa ordem. Isso diferenteda formulao que explica o mesmo sistemada perspectiva dos pases centrais: ela sse aplica a pases dependentes. Um dosresultados do uso dessa perspectiva paraanalisar as histrias de pases dependentes, por exemplo, a produo de periodiza-

    es que diferem daquelas obtidas atravsda reconstituio da ordem capitalista dape rs pec tiva das ec on om ia s ce ntr ai s. (C f.Cardoso e Faletto, 1970)

    Apesar da teoria da dependncia er sidocriticada de diversas maneiras, a sua de-monstrao da necessidade de vrias pers-pe ct iv as de an l is e (m es mo den tr o do re -ferencial marxista e admitindose a existn-cia de uma ordem internacional) para oestudo de diferentes situaes estruturais

    l ainda p arece co nvincen te. Nesse sentid o, se verdade que existe uma ordem capitalistainternacional, no verdade que casos par-ticulares possam ser explicados e analisa-dos a partir de apenas uma perspectiva

    geral, como a teoria do sistema mundialp ar ec e pr es su por . Ao n o re co nh ec er em essanecessidade de se adotar mais diretamente

    per sp ec tivas lo ca is p a ra an al is a r os ef ei to sda ordem internacional, os antroplogos ouficam perdidos em aluses a essa ordemnuma tentativa de contextualizar suas etno-grafias, ou deixam que uma perspectivamacrossocial elaborada a partir da ticaeuropia do desenvolvimento capitalista do-mine as suas anlises. Este ltimo pareceser o caso dos estudos recentes de Wolf ede Mintz.

    O livro de Eric Wolf E u ro pe an d th e P eo ple W it h o u t H is to ry (1982) exemplifi-ca a adoo da perspectiva do sistema mun-dial de uma maneira tal que as perspectivaslocais acabam ficando num apagado segun-do plano. Tratase de uma tentativa expl-cita de construir uma histria do capita-lismo mundial, enfatizando as conexes queligam as mais diversas sociedades e o papeldos perdedores nessa histria, isto , dospovos sem histria. O livro tambmuma tentativa

    ( . . . ) de de l inear o processo gera ldo desenvolvimento mercantil e capi-talista , seguindo, ao mesmo tempo, seusefeitos nas micropopulaes estudadaspe lo s et no h is to ri ad or es e an trop l og os .A minha viso desses processos e dosseus efeitos histrica, mas entenden-dose histria com uma avaliao ana-lt ica do desenvolvimento de relaesmateriais, que se movem simultanea-mente ao nvel do sistema encompassador e ao nvel micro. (1982:23)

    Podese questionar, contudo, o sucesso deWolf em fazer essa reconstituio histricaem dois nveis, ressaltando o que, para ele,

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    par ec e te r si do la rg am en te ig nor ad o at ento: interconexes. Ao contrrio, o quepre dom in a o n v el m ac ro , aq uel e do sis -tema de origem europia no s no quediz respe i to economia , mas tambm forma de pensar. De fato, ao invs de apre-sentar histrias plurais formuladas a partirde diferentes perspectivas, Wolf formula,apenas uma nica histria, cuja lgicase submetem todas as experincias diversasque continuam a ser, assim, no entendidasna sua especificidade e subrepresentadasou, na melhor das hipteses, representadasa partir da perspectiva e de acordo com ape ri od iz a o que fa z sen tido para os pa sescentrais. Ao invs de mltiplos processos,

    discursos e representaes, ele apresenta ums processo e um s discurso organizandotodas as sociedadss e representaes; em vez de vrios objetos diferentes, s um.Deste modo, os povos sem histria conti-nuam sem suas histrias especficas e suaspr pri as re pre se nta es so bre su as h is t ri as .A nica histria que lhes permitida ada sua dominao e subjugao lgicaeuropiaocidental. 9

    Outro autor que se util iza da perspectivado sistema mundial Sidney Mintz no seulivro Sweetness and Power The Placeof Sugar in Modem History (1985). Comono caso de Wolf, o que predomina nesselivro uma perspectiva geral, embora ele

    enfoque um objeto especfico, o acar,mas com o objetivo de entender o que elepo de re vel ar so bre um m u ndo m ais am pl o ,vinculando uma longa histria de relaescambiantes entre povos, sociedades e subs-tncias (1 9 8 5 :xx i v / xxv) .

    Como no caso de Wolf , Mintz a f i rmaque e le tem um bias numa direo hist-rica (1985:xxx). Ele acredita que olharp ar a tr s no s per m it e v e r co m o as re la esentre as partes desse sistema adquiriramsua forma caracterstica atravs do tempo(1985:180). Mas a perspectiva da histriade Mintz tambm macro e formulada a

    p a rt ir do ce ntr o d o si st em a ca pi ta li s ta .Mintz faz uma reconstituio histrica

    tentando mostra r o pape l da produo deacar no c resc imento do mundo capi ta -lista e no modelamento das relaes entrepa s es ce ntr ai s e pe ri f ri co s. E le m os tr acomo o consumo de acar na Europa nopod e se r en te nd id o sep ara d o da s fo rm asde sua produo colonial. Mas se olha parao comrcio internacional e a produo deacar na periferia , faz isso da perspectivada oiqiieslniyno brilAnica da ordem inter-

    nacional. A histria do acar escrita ap a rt ir d a pe rs pec tiva das co l nia s di fe -rente.

    Seguramente que se escrever a histriada produo colonial de acar a partirda tica britnica no algo crit icvel emsi mesmo: esta uma abordagem possvel.O problema do livro de Mintz est emque a sua perspectiva macro. no. lhe per-mite explicar a questo que realmente lheinteressa: como a produo de produtoscoloniais fnterferiu nos hbitos cotidianosde alimentao de diferentes grupos euro-pe us . A d is t nc ia que se par a os n ve is eos lugares considerados no nunca resol-vida no livro, e se Mintz bem sucedidoao analisar fenmenos macro como a

    pro du o co lo nia l d e a car b as ea da n amodeobra escrava e sua relao com odesenvolvimento do capitalismo internacio-nal , no consegue se sair to bem p arademonstrar como as prticas cotidianasestavam ligadas a isso. Assim, repete mui-tas vezes que a produo colonial de acaresteve associada a mudanas nos hbitosde consumo europeus, mas a sua afirma-o t ransformada em mote de que a in t ro-duo do acar na xcara de ch da classetrabalhadora inglesa foi um sinal de gran-des transformaes (1985:214), permaneceno livro como uma frmula vazia. Emoutras palavras, embora Mintz quisesse

    explicar processos culturais que acontece-ram em pases centrais e no em pasesper if r ic os , co m o W olf , fo i ta m b m in ca pazde explicar processos locais ao adotar a

    per sp ec tiva do si st em a m und ia l.N o co nte xt o do s no vos ex per im en to s em

    anlise cultural nos Estados Unidos, EdwardSaid (1985) formulou uma das crt icas maisexplcitas perspectiva do sistema mun-dial. Ele sugere que as explicaes fonpuladas com esse referencial so etnocntricas. Elas dependem de um esquema dahistria mundial homogeneizador e incorp o ra d o r q ue assim ila a si m es m o de se n-volvimentos nosincrnicos, histrias, cul-turas e povos (1985:11). Dito de outra

    maneira, ela assimila a uma nica lgica,e que tem sent ido da perspectiva das eco-nomias centrais, histrias diferentes e ml-tiplas. Segundo Said, a alternativa paraessa assimilao seria quebrar com o uni-versalismo, e criar um novo tipo de an-lise de objetos plurais, ao invs de singu-lares (1985:11).

    A crtica de Said indica as i luses con-tidas nas tentativas de explicar o mundo

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    inteiro e concomitantemente evitar o etnocentrismo. Na base dessa iluso est a falhaem entender que, se verdade que existeum sistema capitalista internacional, tam-b m verd ad e q ue el e s ex is te so b fo r-mas especficas que tm que ser explicadasem seus termos e historicidades prprios.N es se se ntido , poder a m os d iz er q u e a pers -pec tiva pol ti ca e h is t ri ca p ara antr oplo -gos preocupados com uma Antropologiacrtica no estaria cm contextualizar associedades que estudam simplesmente alu-dindo a um genrico sistema mundial, oque revela pouco at mesmo a respeito de

    pro ce ss os de dom in a o a n v el in te rn a-cional, j que estes se efetivam sempre de

    maneiras especficas. Ao contrrio, ela con-sistiria em enfocar diferentes processos his-tricos, diferentes maneiras pelas quaisrelaes de poder e desigualdade se cons-tituem e se configuram em distintos tiposde encontros e de sociedades. Como indicaSaid (1985), a alternativa seria a constru-o de representaes especficas que note r iam que se r submet idas a nenhum mo-delo geral ou unificador. Histrias plurais,ao invs de uma nica referncia geral. Evale dizer que a proposta de Said aindamais radica l que a do enfoque da depen-dncia, que tinha claramente a perspectivade trazer as reconstituies de processoslocais para dentro de esforos de desenvol-

    vimento de uma teoria geral, preocupan-dose com a ' unid ade do diverso (Car-doso 1980:68).

    A anlise concreta de situaes dedependncia requer que novas formasde relaes entre classes, estados enaes se incorporem ao conhecimen-to, sntese, cxplicitandose a articula-o existente entre elas e mostrandoseo movimento que as gerou, redefinindoas relaes anteriores. (Cardoso 1980:68)

    Para Said, e para muitos antroplogosamericanos contemporneos, a busca dessasntese, de articulaes que configurem umatotalidade, no pode ser conseguida a noser de forma mistificadora o que existe de fato pluralidade.

    N o en ta n to , no n a d a sim ples o p ro -cesso de se analisar e representar diferen-as, desconstruindo discursos gerais derepresentaes ancoradas em relaes dedominao, evitandose ao mesmo tempohomogeneizaes, como o livro Orientalism

    (1979) de Said sugere. A instigante crt icaque ele elabora ao mod o pelo qual osestudiosos ocidentais vm representando oOriente, a associao desse imaginrio aoimperia l ismo oc identa l , dominao doOriente e ao modo pe lo qua l e le fo iuma imagem necessr ia para a const i tu ioda cul tura oc identa l moderna est e lamesma baseada e m simpl if icaes e homo-geneizaes. Co m o mo stra Clifford (1988)em uraa^ longa e interessante resenha dol ivro , Sa id toma o s estudos sobre o mundoislmico como se constitussem todo o uni-verso de estudos orientalistas, desconhecediferenciaes e conflitos dentro dessecampo de estudos e, alm disso, acaba re-

    p re se nta nd o o O c id e n te p el o m es m o pro -cesso homogeneizador que ele crit ica nosestudos do O rien te . Sa id rec lama aos domi-nados o direito d e se autorepresentaremd o se u p r p rio m o d o , m a s n o a b a n d o n aum hum anismo universalista (Clifford,1988) e nem de ixa de reproduz ir o proce-dimento de representa r seu obje to (os estu-dos oc identa is sobre o or iente , e a prpr iacultura ociden tal) de um a maneira irreal,reduc ionista e homogene izadora .

    A homogene izao embut ida na an l isede Sa id, apesar d e sua consc inc ia c r t icadesse problema e m re lao s representa -es simplificadoras do Oriente, indica asdificuldades de se lidar com as intercone

    xes de perspectivas gerais e realidadesespecficas. O u tra s dificuldades podem serpe rc eb id as ao se e n fo c a r m an ei ra s al te rn a-tivas de olhar, a pa rtir de outros pontosde v is ta , para a m esm a histr ia que Wolfe Mintz tentaram jeconstituir.

    Uma dessas a l te rna t ivas o l ivro de JuneN as h, W e Ea t t h e i in es a n d th e Mines Eat US D e p e n d e n c y an d E xp lo ta ti o n in Bo li- v i a n T i n M i n e s (1979) , que tem como re fe -rnc ia ter ica o enfoque da dependnc ia . Asua perspectiva a da histria boliviana,espec ia lmente a h is tr ia da explorao dosmine iros de estanho da Bol v ia . A ordemcapi ta l i s ta in te rnac iona l est presente , mass na medida em que e la molda a s i tua-

    o boliviana. E s s a histria especfica opa no d e fu nd o e m re la o ao qual Nas htenta_entender seu objeto central: a cons-cincia social d o s mineiros do estanho,bas ea da em ra z es in dg en as e en tr eco rt ad apo r so fi st ic ad as id eo lo gi as d e cl as se (1979:3) . Nash ana l isa , de um lado, o pro-cesso de traba lho nas m inas de estanho,marcado por lutas trabalhis tas e pela inter-ferncia de foras sobren aturais, sobretudo

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    o d iabo Tio que medeia todo o pro-cesso de explorao das minas. De outrolado, enfoca a comunidade de mineiros, suahistria, organizao familiar e sociabilida-de, seus rituais e sistemas de crenas. Umdos aspectos mais interessantes do livro a demonstrao de como crenas herdadasdo perodo prcolonial servem para moldar

    !a interpretao da explorao presente e seconstituem numa fonte de resistncia e opo-sio. Assim, no processo de trabalho nasminas, as crenas no diabo ajudam a ci-menta r uma sol idar iedade entre os t raba-lhadores; e na histria dos mineiros boli

    3 vianos, as grandes revoltas e greves tendema ocorrer em pocas especficas, todas elas

    associadas a importantes rituais relaciona-dos a crenas herdadas do perodo prcolo-nial. (Cap. 5).

    Apesar de no concordar com mui tosaspectos da anlise de Nash especial-mente a sua abordagem da comunidade dosmineiros como sendo homognea e solid-ria , apesar dos dados em contrrio queela mesma fornece, e o seu tratamento daquesto da conscincia de classe, para oqual voltarei depois seu tratamento daquesto das interrelaes de uma ordeminternacional com uma local bastante sa-tisfatrio, uma vez que a histria bolivianano apresentada como um caso genricode economia perifrica a ser descrito deacordo com as caractersticas principais dodesenvolvimento das economias centrais.Ao contrrio, a sua subordinao aos pa

    j ses ce ntr ai s apre sen ta d a do po n to de vist adas conseqncias das interferncias impe-rialistas na conformao da realidade boli-viana. A ordem internacional est presen-te todo o tempo, mas na maneira espec-fica pela qual ela influencia e molda arealidade boliviana, que nica, mesmo secomparada com outros pases latinoameri-canos.

    Essa perspectiva de se fazer Histria eAntropologia a que tem conseguido me-lhores resultados no estudo de relaes de

    p o de r ori g in ad os a n ve l in te rn ac io nal emanifestas localmente, e vou considerla

    mais detalhadamente adiante. Antes, con-tudo, gostaria de comentar sobre um livrogeralmente identificado com a perspectivado sistema mundial, ou com o que se temchamado de world historical polit ical eco-nomy (Marcos e Fischer 1986), mas quea meu ver no cabe nessa classificao, ano ser que ela seja tomada como umsinnimo de marxismo. Tratase de Th e

    D evil an d C om m odit y Fet is hi sm in Sou th A m eri ca (1980), de Michael Taussig. Pro-vavelmente uma das nicas caractersticasque associa o livro de Taussig aos outrosmencionados anteriormente o seu refe-renc ia l marxista . No entanto , o uso queTaussig faz dessa referncia terica bas-tante diferente.

    Do meu ponto de v is ta , o l ivro de Taus-sig basicamente um ensaio marxista, cen-trado em uma discusso epistemolgcasobre a produo de conhecimento em so-ciedades capitalistas. Apesar dele fazer umareconstituio histrica das p la nta ti ons naColmbia, e apesar de enfocar as visesde mundo de camponeses colombianos e

    mineiros bolivianos (usando neste ltimocaso a anlise de Nash), esses no so ospo nto s ce ntr ai s do en sa io , m as s p a rt e doseu argumento. Como o prprio Taussigformulou numa resposta recente s crt icasao seu livro,

    a nfase, seno todo o objetivo dessainterpretao, est no que essas hist

    rias tem a d izer para ns, em oposioao que ns temos a dizer para elas ao,

    p o r exem plo , en ca ps ul la s co m o ta nto sexemplos seguros e sem vida de esp-c ies bem conhec idas. . . Em outraspal av ra s, a n fa se fo i dec id id am en teem maneiras de encontrar o equiva-lente na monograf ia /ensa io ant ropol-gico ao Ver f remd u n g se f f ek t de BertoltBrecht, idia de se estranhar o nor-mal, tornandoo desconcertante, senoestonteante e cheio de surpresa.(1987b:12)

    N es se se ntido , se to m ar m os a cl as si fi ca -o de Marcus e Fischer (1986) dos novosexperimentos em etnografia, o l ivro deTaussig teria qu e ser colocado entre as ' ten-tativas de desenvolver novas tcnicas decrtica cultural prpria sociedade do an-troplogo, ou repatriao da antropolo-gia, ao invs de junto aos experimentosbas ea dos nu m a al us o ao si st em a m un di al .E importante notar que, para Taussig, o

    foco no que as experincias locais tm adizer para ns (ou seja, a sociedade doantroplogo) a nica modalidade possvelpar a a A nt ro pol og ia .

    Explicao e interpretao dosignificado da histria do pacto com odiabo, por exem plo tornamse,ento, crucialmente e da maneira maisradical algo distinto do que est envol

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    vido nos esforos de estrangeiros, comoos antroplogos, em localizar a estriaem uma suposta rede de funes estri-tamente locais. A estria p o r ne ce ss idade tambm para ns e a ta-refa do antroplogo, nessa era de per-sistente imperialismo, l-la enquanto ta l . No pode existir outra maneira,p orq ue o an troplo go nu nca co n-frontado diretamente pelo Outro, masp el o con ta to do eu co m o O u tr o . Is sosignifica que o texto antropolgico na sua essncia um texto mediandodiferena as sombras na pgina embra nco fo rm ad as pe lo O u tr o a par ti r

    do modo como iluminado pelaluz ocidental {profissional de classem dia). (1987b: 13)

    Em suma, a inteno de Taussig con-trasta claramente com as perspectivastanto de Nash, quanto de Wolf e Mintz.Ele nem est interessado em reconstituiruma histria do ponto de vista local, nempe nsa em co nsid er a r o si st em a m un dia l emgeral como molde para a sua anlise. Pre

    [tende, ao invs disso, que as experinciasdos camponeses e mineiros que analisa, esobretudo a crt ica que eles desenvolvem introduo do capitalismo no seu mundoatravs de elaboraes sobre a figura dodiabo e sua associao economia mone-tria e de mercado, sirvam como um con-traponto que permita ao antroplogo estra-nhar e crit icar modos de pensar (inclusiveos outros) prprios de sua sociedade. Osoutros so, assim, pretextos para uma cr-tica s sociedades ocidentais e sua maneirade fazer cincia.

    Apesar de no ser minha inteno dispu-tar a concepo de Taussig da relao daAntropologia com o outro, considero suaanlise sobre os camponeses colombianos emineiros bolivianos problemtica. Se ele foicapaz de criticar as sociedades ocidentaise o seu modo de pensar, isso foi conse-guido s custas de simplificao tanto doseu material etnogrfico, quanto da teoria

    marxista. A sua anlise do caso colombianoenfatiza um contraste entre um modo depro duo cap it al is ta e u m no c ap it al is ta ,en t re um modo de produo de va lor detroca e um modo de produo de valorde uso. O problema que a Colmbia est

    j h u m bom te m po , im er sa n a ord em depro duo ca pit al is ta , e Tau ss ig te v e qu econstruir esse modo prcapitalista ou depro duo de val or es de uso co mo alg o

    que existia antes. Nessa construo, con-tudo, Taussig naturaliza, o m odo de pro-duo campons, e o considera de maneirahomogeneizadora, simplificadora e ideali-zada, num procedimento similar queleadotado por muitos antroplogos descre-vendo sociedades pri m it iv as un te s do contato com o colonialismo europeu. Comono caso de Said, uma crt ica aguda a modosocidentais de pensar foi conseguida graasa homogeneizao e apagamento de nuanccs e complexidades em um lado do mo-delo, o que s enfraquece a crtica.

    Resumindo, vimos at aqui pelo menosquatro maneiras distintas de se analisar a

    histria e a experincia de povos domina-dos do terceiro mundo em relao a umaordem capitalista internacional. Primeiro, oque pode de fa to se r chamado de umaconcepo de sistema mundial, representa-da nos trabalhos de Wolf e Mintz. Segun-do, o foco em histrias locais (o que nosignifica histrias isoladas) tomadas dasper sp ec tiva s de pa ses dep en den te s masmantendo como referncia o desenvolvi-mento do capitalismo a nvel internacional,como no caso de Nash. Terceiro, a pers-pec tiva de re co nst it ui o de h is t ri as p lu -rais e no necessariamente interconectadasou referidas a um nico sistema, como nocaso de Said. Quarto, a suposio da im-

    poss ib il id ad e de an trop lo gos oc id en ta isescreverem histrias locais de pases doterceiro mundo o que eles poderiamfazer seria analisar a mediao de diferen-as entre o eu (ocidental) e o outro, comono caso de Taussig. As questes envolvi-das nessas perspectivas so vrias, e tenta-rei tratar algumas delas nas prximassees.

    Histrias e Encontros

    Certas etnografias americanas recentes,alm de procurarem contextualizar as cul-turas que so objeto de estudo em relaoao capitalismo internacional, tm comomarca uma nfase na anlise de processos

    dinmicos. Essa anlise obtida freqente-mente atravs do uso combinado de duasp er sp ec tivas q ue def in em o obj et o d a pe s-quisa e da anlise: o foco em encontroscoloniais e a reconstituio histrica.

    Como afirmei anteriormente, o foco nodinamismo do encontro colonial substituinas etnografias contemporneas a perspec-tiva funcionalista que tomava as culturaschamadas primitivas como totalidades auto

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    contidas que se tentava perceber em seuestgio original, ou seja, anterior ao con-tato com os agentes ocidentais. Por outrolado, porque se trata de um encontro colonial, est quase sempre presente na anlisea idia de relaes de poder: tratase deum encontro assimtrico. Alm disso, comomostra Asad (1973, 1986), um encontrodesigual no qual a Antropologia, como dis-ciplina ocidental, vem tomando parte de

    'lima maneira ambgua: falando do domi-nado de uma perspectiva que lhe simp-tica, mas com a linguagem e as refernciasdos pases dominantes. Estudos etnogrfi-cos recentes de pases do terceiro mundotendem a mostrar conscincia de ambasdesigualdades de poder: aquela entre pa-

    ses centrais e perifricos, e aquela presentena produo de conhecimento sobre o outrofeita por antroplogos ocid enta is.10

    A imagem de um encontro dinmica.Seu uso substitui noes como a de con-quista para enfatizar que, apesar do encon-tro colonial ser assimtrico, os dominadosno tm nele um papel totalmente passivo,nem suas culturas simplesmente sucumbemao impacto com o colonizador. Estudos re-centes no vem os encontros coloniaiscomo sendo apenas destrutivos, como aimposio de uma nova forma sobre ascinzas de uma outra, original. Ao contr-rio, os encontros coloniais tm sido vistoscomo produtivos, uma vez que eles geram,de um lado, novos pases e culturas sincrticas atravs de um processo de transfor-mao, assimilao e recusa e, de outrolado, todo um corpo de conhecimento sobreeles. Para entender essa produo e a suatransformao no tempo, os antroplogosse voltaram, quase que por necessidade,p ara a an l is e h is t ri ca, a fim de re co ns -tituir processos de mudana e entender ascondies presentes dos povos que elesencontram. No se pode mais supor a exis-tncia de povos isolados, sem memria dasua histria, e sem um passado diferentedo seu presente. nesse contexto, e noapenas no contexto de discusses sobre umsistema mundial, que a questo de comoanalisar as histrias de outros povos adqui-re sentido mais eom pleto .11

    O estudo de encontros coloniais e suashistrias tem sido tratado de diferentesmaneiras por antroplogos. Os trabalhosrecentes de Marshall Sahlins (1981, 1985 e1988) representam tentativas de reconciliaranlise estrutural e histria, ao mesmo tem-po em que fo ca li za m di fe re nte s en co nt ro s

    que el e ch am a de in te rc ult ura is en trepo vo s do te rc ei ro m undo e fo r as cap it a-listas ocidentais. Criticando a perspectivado sistema mundial que, segundo ele, negaaos povos do terceiro mundo a autoria desua prpria histria, Sahlins afirma que

    no que diz respeito ao encontro intercultural, deveremos examinar como

    po vo s in d ge na s te n ta m in te g ra r a ex -p er i nci a d o sist em a m und ia l em alg oque lgica e ontologicamente maisinclusivo: seu prprio sistema domundo. (1988:3)

    Para Sahlins (1985 e 1988), se o capita-lismo pode ser chamado de um sistema

    mundial, suas formas concretas de realiza,o esto longe de ser uniformes, uma vezque os efeitos especficos de suas~fors1materiais vo depender das diversas manei-ras pelas quais elas so mediadas em esque-mas culturais locais. Prova disso sua an-lise (1988) sobre os modos totalmente dis-tintos pelos quais os chineses, os havaianose os Kwakiutl incorporaram a presena dosbe ns e age nte s im pe ri al is ta s en tr e m ea do sdo sculo XVIII e meados do sculo XIX.E as diferenas no se referem apenas aosaspectos materiais dos encontros coloniais:ao contrrio do que parece assumir a pers-

    p ec ti va do si st em a m undia l, Sah lin s p ro -cura mostrar que as historicidades resul-tantes de cada encontro intercultural

    variam. Como diz ele, diferentes culturas,diferentes historicidades' (1985:x).

    Tambm a questo da explorao e dadestruio das culturas nativas vista emoutros termos por Sahlins (1988). No hdvida que esses povos foram exploradospe lo cap ital is m o in te rn ac io nal , m as par aele essa explorao pode significar um enri-quecimento dos sistemas locais que, comoresultado do encontro, apropriaram bensde extraordinrio valor social em quantida-des sem precedentes, revitalizaram seusrituais e trocas internas e, como isso sig-nifica uma acumulao mxima de benef-cios divinos com poderes sociais humanos,~o processo, em sua totalidade, um desen

    volvimento, nos termos da cultura em ques-to (1988:6). Isso no significa que asculturas no tenham sofrido transformaesp ro fu n das , m as sim que ex is te ta m bm um acontinuidade em relao cultura original,e a maior continuidade pode consistir na.lgica da mudana cultural (1988:6). Estalgica predominantemente a do sistemanativo.

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    Do ponto de vista terico, o objetivocentral de Sahlins mostrar algumas ma-neiras pelas quais a histria organizadap o r estr u tu ra s de si gni fica o (1 98 1: 8) , eentender as relaes entre evento e estru-tura, mudana e repetio.

    O grande desaf io para uma antro-pol og ia h is t ri ca n o si m ples m en tesaber como os eventos so ordenados

    pe la s cu ltura s , m as como.,. n es se pro.cesso, a cultura e~reordenada. Como areproduo de uma est ru tura se t rans-forma na sua transformao? (1981:8)

    Para enfrentar essa questo, Sahlins ana-

    lisa principalmente documentos sobre oencontro do Capito Cook com os havaia-nos no final do sculo XVIII. No ensaioH is to ri ca l M et ap ho rs an d M yth ic al Re ali -ties Structure in the Early History ofthe Sandwich Is lands Kingdom (1981) elemostra como o Capito Cook e os ingleses,ao invs de simplesmente conquistarem,foram de fato assimilados pelos havaianos

    v na estrutura de significado dada pela sua.estrutura mtica cclica, e como essa assi-mi lao , o assassina to 'do Capi to Cook eos eventos que se seguiram a isso acaba-ram transformando aquela estrutura. Nessecaso, foi a repetio ou reproduo deformas culturais, atravs de uma prtica

    .que explorou as ambigidades disponveisna estrutura de significado nativa, que per-mitiu no apenas a assimilao dos ingle,ses, mas distores nointencionais, inver-ses e mudanas na estrutura.

    Em Is la nd s o f H is to ry (1985), Sahlinstoma como referncia suas anlises anterio-res sobre os havaianos para desenvolver oque ele chama de uma possvel teoria dahistria, fazendo explodir o conceito dehistria com a experincia antropolgica dacul tura , ao mesmo tempo em que a expe-rincia histrica vai tambm certamenteexplodir o conceito antropolgico de cul-tura (1985:xvii). A possvel teoria da his-tria enunciada por Sahlins tem duas pro

    po si c es bs ic as . A p ri m eir a a de qu e t ransformao de uma cul tura um

    ' [_modo da sua reprodu o . A segunda, quena ao ou no mundo tecnicamente, ematos de referncia as categorias cultu.rais adquirem novos valores funcionais.Impregnados com o mundo, os significa-dos culturais so, portanto, alterados. Se-guese que a relao entre as categorias

    mudam: a est ru tura t ransformada (1985:138).

    N o es qu em a de Sah lins (1 98 1) , as ex pl i-caes para transformaes so, assim, pen-sadas em relao prtica. Seu argumento que a prtica no tem que se fazer contraarranjos estruturais para transformlos: oque comea como reproduo pode te rmi-nar como transformao (198:87). A pr-tica pode ser transformaliva porque nela ascategorias culturais (associadas estrutura)so submetidas a riscos empricos

    Se a cul tura , como querem os an-troplogos, uma ordem significativa, naao, entretanto, os significados estosempre em r isco . . . . A cul tura um

    jo go ar ri sca do co m a na tu re za n o cu rs odo qual, de maneira proposital ou no

    p ro p osi ta l, os velhos nom es q u e ai n daesto nos lbios de todos adquiremconotaes bastante diferentes do seusignificado original. Esse um dos pro-cessos histricos que estarei chaman-do de reavaliao funcional de cate-gorias/' (1985 :ix)

    Ou seja, a prtica pode ser transformativa porque ela tem uma dinmica prpriaque define contextualmente e de maneirassem precedentes pessoas e objetos e suasinterrelaes. Valores contextuais, definidos

    na prtica, tm a capacidade de fazer re-ver te r sua ao sobre est ru turas convenc io-nais de significado, transformandoas.

    Essas consideraes vm junto com umamudana na maneira de se conceber a re -lao entre evento e estrutura ou sistema,na verdade uma oposio que Sahlins con-sidera perniciosa e que precisaria ser aban-donada. Para ele, um evento no simples-mente um acontec imento no mundo, masuma relao entre um acontecimento euma estrutura (ou estruturas): um encom

    pas sa m en to do fe n men oem s i co m o umvalor significativo, do que se segue suaespecfica eficcia histrica. (I985:xv)

    Como um fenmeno, o acontecimento

    p ode te r su a d in m ic a p r p ri a, in d ep en d en -te dos significados dados por um sistemasimblico, mas a verdade queele s significativo como projeo de algum es-quema cul tura l . O evento um acontec i -mento interpretado (1985:153), Alm disso,p ara se en te nd er a re la o entr e ev en to eestrutura necessrio interpor um terceirotermo, que a sntese situacional entreambos: uma est ru tura da conjuntura .

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    Por estrutura da conjuntura euentendo a realizao prtica de cate-gorias culturais num contexto histricoespecfico, do modo como expresso naao interessada de agentes histricos,incluindo a microssociologia da suainterao (1985:x/V)

    A noo de est ru tura da conjuntura iden-tificase com a de pr ax is e , como uma des-crio do comportamento social e da rea-valiao funcional dos significados em ao,ela permitiria analisar a dinmica da vidacultural e da transformao estrutural nos em encontros interculturais, mas emqualquer descrio cultural, quando se tem

    que entender a estrutura como necessaria-mente temporal (1985:x vi) .A anlise de Sahlins no crit ica apenas

    a oposio eventoestrutura, mas se estendetambm a uma maneira oc identa l correntede se entender a histria e a ordem cultu-ral com base nas oposies entre histriae estrutura, mudana e estabilidade. A par-tir da anlise do encontro de havaianos cingleses, Sahlins tenta mostrar que essasoposies no se sustentam, e que a cul-tura func iona como uma s n te se de estabi-lidade e mudana, passado e presente, diacronia e sincronia. Toda mudana prtica t am b m u m a re p ro d u o c u l tu ra l . . . To d a

    :reproduo da cultura uma alterao(1985:144).

    -----

    Sherry Ortner crit ica Sahlins (1981) afir-mando que e le faz a mudana parecer umpou co f ci l dem ais (1 98 4:15 6) . Com o el adiz,

    existem provavelmente muito maisligaes e muito mais possibilidadesde derrapagens no caminho de vol tada prtica para a estrutura do que aavaliao de Sahlins permite ver. Noentanto , se o percurso da mudanaestrutural mais difcil do que eledeixa transparecer, Sahlins apresentauma avaliao convincente de comoele pode ser mais fcil do que algunsquereriam (1984:157).

    Um outro problema com a anlise deSahlins o quase total desaparecimentoem seu esquema de noes de poder, hie-rarquia e dominao. Ele crit ica a perspec-tiva do sistema mundial p or ter pensadoem termos de dominao total e ter nega-do aos povos perifricos a autoria da suahistria. Podese dizer, contudo, que Sahlinspare ce te r ch eg ad o po si o op os ta . O

    encontro intercultural pensado por elecomo ocorrendo entre partes .iguais, oumelhor, como um encontro entre lgicasdiferentes, mas no necessariamente entre-meado por relaes de poder. Sahlins noignora a existncia de relaes de poder ehierarquia, mas essas so analisadas comoelementos que configuram a estrutura nati-va, ou seja, de um ponto de vista interno,e nunca do ponto de v is ta do encontrointerc ultu ral.12

    Se sua anlise tem o mrito de mostrarque a incorporao do capitalismo no ter-ceiro mundo se d sempre de acordo coma lgica cultural nativa, gerando resultadosculturais distintos em cada caso, no foi

    capaz de explicar porque nesses encontrosinterculturais sempre o capitalismo que incorporado. e nunca os sistemas nativosque impem a sua cultura dos pasescentrais.

    O livro de Jean Comaroff Body o f Pow erand Spirit of Resistance The Cul ture andH is to ry o f a S outh A fr ic a n Peop le (1985),que em vrios momentos util iza o esquemade Sahlins, incorpora explicitamente a di-menso do poder anlise. Comaroff ana-lisa o encontro da cultura Tshidi da fricado Sul com os colonizadores britnicos, eos processos de transformao e criaoresultantes desse encontro que , por defi-nio, marcado por relaes de poder e dedominao. O estudo dividido em trspar te s: a p ri m ei ra te n ta re co nsti tu ir a or de mpr co lo nial do s T sh id i, ou se ja , a su a estr u -tura antes do encontro com os ingleses; asegunda enfatiza o encontro propriamentedito e como o sistema prcolonial se im-br ic a co m as fo r as do ca pital is m o in dus-trial europeu representada por missionrioscristos, transformandose; a terceira ap a rt e et no gr fi ca : at ra vs d a an l is e deduas variantes de um culto religioso Zionismo Comaroff ten ta mostra r comoos Tshidi tentam dar sentido sua expe-rincia recente de marginalizao e domi-nao.

    Comaroff compartilha com Sahlins apre ocu pa o d e en te n d er a h is t ri a co mo

    uma interao entre prtica e estrutura. Elaconcebe a estrutura como a dimensoconstitutiva da ordem social, e a prticacomo as formas manifestas de organizao,experincia e ao que so suas realizaeshistricas (1985:44). Tanto a estruturaquanto a prtica so mutuamente consti-tutivas, e uma age sobre a outra. Como emSahlins, a prtica, ao repetir conjuntural

    Cyi)

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    mente a estrutura, pode determinar trans-formaes estruturais.N o ca so de C om ar of f, con tu do , a di m en -

    so das interrelaes entre prtica e estru-tura sempre mediadas pelo universosimblico no a nica n o seu esque-ma, j que ela concebe a histria como umpr oc es so d ia l ti co n um d uplo se ntido : op ro d u to da in te ra o entr e a o hum an ae constrangimento (constraint) estrutural; eentre o dominante e o subordinado no en-contro colonial (1985:1). Neste sentido, adimenso da relao desigual de poder noencontro colonial, eclipsada na anlise deSahlins, vem para o centro da interpreta-o da histria Tshidi feita por Comaroff.

    Alm disso, ao invs de lidar apenas comdocumentos do passado, ela combina re-constituio histrica e anlise etnogrfica;ao invs de lidar s com a histria ao nvellocal, ela olha para foras locais e globais,sem perder a perspectiva de um sistemasocial especfico.

    A anlise histrica, tal como feita porComaroff da perspectiva de transformaesestruturais atravs da prtica, enfoca basi-camente momentos diferentes para salien-tar transformaes. A anlise se faz peloestabelecimento de plos opostos (global elocal, prcolonial e colonial, colonizador ecolonizado, etc.) que se engajam para pro-duzir a especificidade do caso Tshidi emdiferentes momentos. A realidade histrica

    , na anlise de Comaroff, sempre um re-sultado sincrtico. um retrabalhar de prin-cpios e experincias contraditrias. Assimsendo, fazer uma anlise histrica , deum lado, estabelecer os elementos que seencontram, contrastandoos e revelando assuas lgicas e, de outro, revelar a sua arti-culao, decompondo a sntese em seus ele-mentos constitutivos. Essa sntese descritap o r C om ar off at ra v s d a m et fo ra do brico-

    ' lage.

    Em situaes como a de colonizaosurgem novas ordens simblicas atra-vs de um processo de reorganizao.Tratase de um bricolage que no ape-

    nas altera relaes existentes entresignos, mas que tambm os integra a.outros que so portadores de formase foras de origem externa. Comple-xos de signos so, assim, desengajadosde seus contextos anteriores e assumemsignificados transformados em suasnovas associaes um processo re-pe tido co ns ta nte m en te em re la o a

    circunstncias materiais transformadas(1985:119120).

    A metfora do bricolage descrita acimaem termos bastante semelhantes aos util i-zados por Sahlins, no a nica usada porComaroff para explicar as transformaeshistricas dos Tshidi, uma vez que no dconta das relaes de poder que moldamas articulaes de significados. A anlisehistrica teria ainda que revelar as assime-trias e relaes de poder embutidas na lgi-ca da produ o 'do resultado sincrtico.

    A viso de Comaroff das relaes dep o d er te n ta en fa ti za r a co m ple xid ad e da ssuas formas, sublinhando os espaos decontradio e resistncia que as caracteri-zam. A nfase nessa complexidade apareceem diferentes momentos da anlise e emrelao a diferentes temas. Ela tambminformada por diferentes perspectivas te-ricas.

    Uma das situaes em que a complexi-dade das relaes de poder enfatizada na anlise da ordem prcolonial. AquiComaroff elabora uma anlise estruturalbas ta nt e ort od oxa. Ao li dar co m a o rg an i-zao social dos' Tshidi antes dos temposcoloniais, ela enfatiza o papel da casa comoum tomo de estrutura em relao aos paresde oposio agnao e matril inearidade,masculino e feminino, domesticado e sel-vagem, agricultura e pastoreio, etc. Os ele-

    mentos opostos so articulados de umamaneira hierrquica, com tudo aquilo que associado ao universo masculino encompa ss an do os el em en to s as so ci ad os ao uni-verso feminino. O poder aqui expressonesse encompassamento. A anlise de Comaroff , neste ponto, bastante similarquela desenvolvida por Bourdieu para acasa Kabyle (1972).

    Uma outra noo usada por Comaroffpara car act e ri za r as re la es d e p oder edominao a de hegemonia. Ela aparece,po r ex em pl o, na an l is e de co sm olog ia eritual. Comaroff presta ateno especial aoritual, o modo de prtica mais potenteem sua capacidade transformativa (1985:

    80), e sua ao sobre o corpo humanopara con st ru ir atore s so ciais . O ri tu a l se riao produto de uma realidade mais ou menosconflit iva. e poderia ser usado para enfren-tar conflitos ou para reorganizar significa-dos em uma situao nova. Analisandoritos, Comaroff tenta mostrar como elesenfrentam e reenfrentam conflitos sistmi-cos, com a sua forma potica impondo um

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    conjunto de significados dominantes sobreexperincias de paradoxo (1985:118). Cla-ramente , aqui o poder no uma foraou simples imposio de vontade, tambmno a articulao hierrquica de ladosopostos, mas sim hegemonia (Gramsci omodelo explcito), a capacidade do domi-nante de articular significados e enfrentarconflitos sociais globais. Essa articulao designificados no um processo passivo, jque traz resistncia dentro de si . No

    , tambm um processo de dom inao totai,uma vez que os significados dominados noso apagados, mas reproduzidos com a re-

    p ro d u o d a e st ru tu ra . C on se qe nt em en te ,a dominao (hegemonia) no total, mas

    sempre incom pleta. 13A identificao de poder e dominao

    com encompassamento e hegemonia (enten-dida como articulao de viso de mundo)no se coaduna com uma viso de podercomo alguma coisa existindo previamentee que imposta a outros. A rejeio dessaconcepo especialmente clara na concep-o de Comaroff do encontro colonial. Este t ra tado como um encontro em que ambasas foras se transformam.

    Tanto o sistema local quanto o glo-ba l s o ao m es m o te m po sist em t ic ose contraditrios; e eles se engajam emrelaes caracterizadas tanto por sim-

    bi os e q u an to p o r lu ta . a co nfigu ra -o especfica dessas formas e forasno caso Tshid i sua par t icu la r mot i -vao que me preocupa aqui e , ine-vitavelmente, isso tem caractersticastanto nicas quanto mais gerais.(1985:34)

    Do mesmo modo que Sahl ins, um dosargumentos centrais de Comaroff o deque, apesar do encontro colonial ser mol-dado por foras globais, estas no conse-guem explicar o que acontece no caso doTshid i , que um resul tado nico , produtodo modo pelo qual a lgica local se enga-

    jo u co m a do ca pi ta li sm o. Fal an do emoutros termos: a perspectiva do sistemamundial no seria suficiente para expliclo. O que necessrio entender a formasincrtica especfica em cada caso. No en-tanto, diferentemente de Sahlins, Comaroffconsidera que se deve entendla num con-texto de relaes de poder.

    A questo do encontro entre foras glo-ba is e lo ca is e d a co nst itu i o de um aexperincia especfica abordada da pers-

    pec tiva m ar xis ta p o r Ju ne N as h em W e E at th e M in es and th e M in es Eat Us (1979).N as h u ti li za docu m ent os e dad os et no gr -ficos mas, em contraste com Comaroff,tambm reconstitui histrias a partir domodo como elas aparecem na viso demundo de trabalhadores de minas de esta-nho da Bolvia. Essa perspectiva leva a en-frentar outros problemas analt icos. Quan-do documentos e etnohistrias so coloca-dos lado a lado, ou quando vises domi-nantes e dominadas so contrastadas,mesmo uma histria local perde sua unici-dade. Existem, de fato, muitas histrias rela-cionadas, que podem ser apreendidas aose mudar a perspectiva pela qual se olha

    p ara o m es m o univ er so so cial . Sa hl ins(1985) considera que cada cultura tem suahistoricidade e, como Said (1985), tambmdesenvolve a tese de que as histrias sopl ura is . O livro de N as h (e so bre tu do aque-les analisados na prxima seo) levam aver, contudo, que a pluralidade pode ser\f reqentemente encontrada dentro de umanica cultura.

    O problema de Nash foi o de tentar redu-zir essas diferenas a um nico modelo.Ela estrutura sua interpretao sobre aviso da histria dos mineiros bolivianoscom base em referncias marxistas que sso relativamente explicitadas no penlti-mo captulo do livro (cap. 8). Ao ouvir as

    memrias dos mineiros, ela encontrou dife-rentes verses do passado, associadas a dife-rentes experincias de gnero, gerao eocupao. Essas diferenas, no entanto, noforam relacionadas a caractersticas inter-nas da sociedade estudada, e sim interpre-tadas em relao a um modelo terico nicoe externo o modelo marxista de cons-cincia de classe, nunca explicitado (o queassume um consenso sobre o seu signifi-cado que, de fato, no existe) mas semprealudido. Na verdade, Nash julga as dife-rentes verses do passado expressas pelosmineiros, e as classifica como modelos demais ou menos conscincia de classe. Em-b ora el a a rg um en te que aqu ilo q ue as pe s-

    soas recordam est relacionado com o im-p ac to do s ev en to s n a v id a de cad a um , el avaloriza aquelas memrias associadas comexperincias de ao coletiva em nome daclasse. De acordo com seus julgamentos,Efraim tem uma conscincia mais desen-volvida do mundo no qual ele vive do queAlejandro (1978:31). A experincia deEfraim de contato com alguns padres des-viouo dos elementos centrais da luta de

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    classes (1979:53). O contato prximo deAlejandro com tcnicos estrangeiros deulheum sentido falso de segurana a ser obtidaatravs de laos paternalistas (1979:54).Baslia t inha uma conscincia de trabalha-dora que no estava ligada classe(1979:54). E assim por diante.

    Em suma, e para repe t i r uma das c r t i -cas a anlises marxistas que comum noBrasil e na Amrica Latina, onde esse mo-delo foi muito mais util izado do que nosEstados Unidos, o uso do marxismo paraanalisar vises de mundo problemticopo is ele te m em butido em si u m m od elode como as coisas devem ser no casode Nash, do que o contedo da conscincia

    deveria ser. Podese argumentar, por exem-pl o, que na m ed id a em que el a ti n ha um aidia prvia do que deveria esperar encon-trar nas memrias dos mineiros, pode ternegligenciado especificidades de suas visesda histria, selecionando apenas o que erasignificativo em termos do seu modelo.Alm disso, Nash dissolveu diferentes expe-rincias culturais e histricas num quadro

    pre det er m in ad o, fr u st ra n do su a te n ta ti va dereconstituir uma histria do ponto de vistalocal, j que os dados particulares acaba-ram sendo enquadrados sob a lgica de ummodelo preexistente.

    Outros estudos usando etnohistrias pa-recem ir na direo oposta de Nash, umavez que eles tentam exatamente seguir algica especfica dos depoimentos orais, eentendlos em relao s formaes sociaise histricas de que fazem parte.

    Histrias, Memrias e Contra-histrias

    N o novi dad e entr e hi st o ri adore s o de -bat e so b re as pos si bi lid ad es da h is t ri a or al .Para aqueles que pretendem reconstituirobjetivamente fatos passados, a histria oralpar ec e se r um in st ru m en to pro ble m t ic o , eno apenas ou basicamente por causa dasfalhas na memria humana. A questo que a memria, base dos depoimentosorais, no alguma coisa fechada e crista-lizada; ela interpretao associada expe-

    rincias e vises de mundo e, conseqente-mente, varivel e parcial.

    Os antroplogos, acostumados a investi-gar como as pessoas do sentido s suasexperincias vividas e interpretam seumundo, parecem ficar menos incomodadosdo q ue h istoriadores positivistas com a idiade se considerar memrias como interpreta-es. 14 No e ntanto , como sa bido, os a ntro -

    p lo go s cu st ar am m ai s a en te n d er qu emesmo as chamadas sociedades primiti-vas tm memria e passado, e a procurarentend er suas lgicas especficas. Dito destamaneira, isso pode soar como um lugarcomum nas discusses da Antropologia con-tempornea. No entanto, as conseqnciasque podem derivar desse reconhecimento

    p a ra a an l is e d e pr oc es so s de dom in a oesto apenas comeando a ser discutidas.

    Etnohistrias so tentativas de recons-tituir o passado com base em depoimentosorais, ou seja, apoiados na memria. Elasrevelam dois t ipos de informao. Primeiro,como a forma da memria construdasocialmente, quais so as vrias maneiras

    de lembrar, como o conhecimento sobre op as sa do org ani za do e co ntr o la do. Se gu n-do, em relao ao contedo da memria,como diferentes verses do passado estoembutidas em relaes sociais, e como umadelas pode tornarse dominante. Em ambosos casos, o que est no centro da discussoso relaes de poder. Poder de fazer opas sa do , de m ol dar o ac es so s su as im a-gens, de transformar uma viso em domi-nante. Essas questes so tratadas clara-mente nos livros de Renato Rosaldo e Richard Price.

    Em Il on got H ead huntin g 188 3-1974 A Study in Society and History (1980) Rena-to Rosa ldo pre tende pr o tempo na est ru-tura social e perceber mudanas passadasda sociedade dos Ilongot das Filipinas. Seu

    p ro je to , no en ta n to , te m pouco em co m umcom o de Sahlins (1981, 1985), j que nose trata de uma tentativa de dialogar como estruturalismo, mas de rejeitlo. Na ver-dade, um livro concebido, de um lado,explicitamente contra o tipo de uso danoo de tempo pelo funcionalismo estru-tural, as anlises sincrnicas e as concepesde estabilidade social que marcaram boa

    part e da s an l ises de so ci ed ad es prim it i-vas. De outro lado, ele concebido contraa caracterizao estruturalista (LviStrauss)de sociedades frias, isto , sociedades nasquais as pessoas produziriam vises estti-cas de suas estruturas societais.

    Opondose ao hbito relativamentecomum entre ant roplogos de ignorar ahistoricidade de povos primitivos, Rosal-do coletou e analisou histrias, muitas dasquais ele nunca solicitou e no estava muitointeressado em ouvir os Ilongot lheimpu seram suas hist rias e con struiuuma narrativa dessas narrativas. Ele tentourevelar a maneira cultural especfica pela

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    qual essas histrias eram construdas: umasrie de episdios relativamente autnomosunidos por movimentos cont nuos a t ravsdo espao. Quase todas as histrias pode-riam ser expressas de acordo com o se-guin te padro de reconta r movimentos noespao:

    medida em que as pessoas andampe lo s cam in hos , elas fr eq en te m en tecontam histrias sobre o passado, en-quanto apontam para os vrios lugaresem que uma casa ou hor ta estava loca-lizada, um cervo ou um porco selva-gem foi morto, uma cabea foi tomada,ou o que quer que seja. De fato, os

    I longot se preocupam profundamentecom a seqncia relativa de uma suces-so de eventos, mas essas excurses ao

    p ass ado s o m et ic ul osa m en te m ap ea da sna paisagem, e no em um calendrio.Um leitor sem conhecimento detalhadoda paisagem local e sua mirade denomes de lugares certamente infeririaque falta narrativa dos Ilongot umadimenso histrica. (1980:48)

    A dife rena na maneira de recordar dosIlongot e dos ocidentais cria um problemade representao, que Rosaldo tenta resol-ver traduzindo a memria espacial dosIlongot para uma ordem cronolgica.

    Alm de revelar a forma cultural espec-fica pela qual as histrias se organizam,Rosaldo mostra como os Ilongot percebema sua histria: avanos irregulares em umalinha, com algumas mudanas imprevistasde direo. Vidas e histrias no ocorremde acordo com regras e normas, mas comoimprovisaes. Os caminhos so individuaisc freqentemente divergentes, mas suaforma recorrente, repetindo a si mesmaatravs de ciclos de casamento e residncia.

    As interpretaes dos Ilongot sobre oseu passado so variadas e conflitantes, umavez que cada posio polt ica implica eiuma interpretao, e alinhamentos polt icosmudam freqentemente. Seguindo essasdiferenas e conflitos, decifrando o idioma

    cm que a memria dos I longot se est ru-tura, Rosaldo foi capaz de recuperar a suaviso da sua histria, e de perceber mudanus, apesar desta viso ser inscrita emminiatura, escrita de modo to tnue queseus ritmos moventes podem perfeitamentenos iludir (1980:27).

    Rosaldo mostra que a sociedade Ilongotuo era nem esttica, nem isolada. A sua

    cultura tem estado em contato com outrospo vos e cu ltura s , e es se s con ta to s s o p ar teda sua histria. Eventos externos, comoa invaso das Filipinas pelos japoneses em1945, moldaram a histria dos Ilongot efazem par te das memrias de cada um. Em-b ora R os al do m ost re es sa s lig a e s e n tr e asociedade local e eventos internacionais, eleno se refere a nenhuma teoria para expli-car a maneira pela qual essas ligaes ocor-rem, e no est interessado em reconstituiresses eventos externos por outros meiosque no as memrias dos membros dogrupo. Em outras pa lavras, o mundo exte r-no parte da anlise, mas s no modope lo qua l in co rp ora d o na s re pre se nta es

    da histria dos Ilongot.O interesse de Rosaldo em seguir a forma

    cultural em que as histrias se moldam,suas preocupaes ao traduzir memriasespaciais em ordenaes cronolgicas, a suasubmisso s histrias contadas pelos Ilongot, so todos aspectos que indicam comoo tratamento de Rosaldo da conscinciahistrica contrasta com o procedimento deN as h de e n q u a d ra r e ju lg ar as m em r iasdos mineiros bolivianos de acordo com ummodelo prvio e genrico de conscincia declasse. Rosaldo tenta representar a cons-cincia da histria dos Ilongot; Nash ar-ranja os relatos histricos dos mineiros emrelao a um modelo externo preexistente.

    N a an l is e de R osa ld o s o cl ar as as su asdvidas sobre como representar conscin-cias histricas estranhas sua. As mesmasdvidas aparecem no livro de Richard Price

    F ir s -T im e The Historical Vision of an A fr o-A m eri can Peo pl e (1983), mas de umamaneira ainda mais dramtica. No caso dosSaramaka, descendentes de escravos quefugiram das p la nta i ons e que v ivem noSuriname, o conhecimento sobre o passado associado de maneira mais explcita aquestes de p od er. 15 O co nhecimento dopas sa do pr iv ilg io de algu ns ve lh os e algo que no pode ser contado indiscrimi-nadamente. As histrias mais importantesno podem ser reveladas porque so peri-gosas. So histrias de fugas e lutas porliberdade e h sempre o risco de que, aose contar a histria, ao entregla paraoutros, eles entreguem tambm a sua liber-dade. S se contam fragmentos, e as pes-soas interessadas em histria, sobretudo nahistria do FirstTime o perodo quecompreende a fuga dos escravos das pla n- tations em que viviam, sua contnua resis-tncia a tentativas de reescravizao e, fi

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    nalmente , a Grande Paz que se lo u a su a l ibertao em 1762 , tm que juntar frag-mentos dispersos oferecidos em diferentesmomentos pelos velhos. No existe nenhu-ma verso oficial ou completa desse pas-sado.

    O relato de Price sobre o FirstTime dosSaramaka est baseado em dois t ipos defontes. De um lado, ele util iza os fragmen-tos da histria do sculo X V II I preserva-dos coletivamente sob a forma de canes,lendas, histrias e encantamentos transmi-tidos oralmente e de maneira ritualzada.De outro lado, ele usa fontes escritas pro-duzidas pelos colonizadores holandeses.Cada uma dessas fontes representa uma

    seleo, uma interpretao do passado.A preocupao dos Saramaka com o co-

    nhecimento sobre o passado est l igada adois t ipos de questo. De um lado, elesacreditam que tm que proteger o quesabem, ou o seu conhecimento vai ser usadopo r ou tros , es pec ia lm en te os bra nc os , co n-tra eles. A fora principal subjacente suamaneira de relembrar o passado umaidia de nunca mais, uma preocupaode impedir que a escravido possa ocorrerde novo. Nesse sentido, memria e histriasobre o FirstTime so importantes emtermos da preservao da identidade dogrupo e de seu senso de autorespeito: elacontm as razes do que realmente signi-fica ser Saramaka. De outro lado, foi atra-vs dessa proteo do conhecimento sobreo passado que as histrias sobre o FirstTime foram preservadas oralmente comuma considervel riqueza de detalhes pordois sculos.

    Ao escrever Fir st -T im e, Price teve queenfrentar questes impostas pelo prprioobjeto de anlise similares s defrontadasp o r Ros aldo . Ele ta m bm te ve q u e de sc o-b r ir a fo rm a cu ltu ra l es pe c fi ca pel a qualo conhecimento sobre o passado trans-mitido. E as formas dos Saramaka e dosIlngot so similares. No caso dos Sara-maka, o conhecimento sobre o passado

    pr es er va do em re la o pai sa gem e aoespao em que eles vivem, no nome de

    lugares e reas geogrficas, e nos fatosassociados a esses lugares . 16 Em ambos oscasos, e tambm no caso dos Weyna daIndonsia analisado por Kuipers (1984), oconhecimento associado a lugares polit i-camente importante nos processos de legi-timao de autoridade, de propriedade daterra e de tradies de cls. Por exemplo,muitos desses grupos lembrar histrias de

    migrao com riqueza de detalhes sobredeslocamentos espaciais porque elas soimportantes no reconhecimento da posse deterritrios. Neste sentido, o conhecimentodo passado representa direta e claramentep o d e r .17

    Mas Price teve que enfrentar outros pro-bl em as , e o m ai s im p o rt an te de les se re fe -re a agrupar um conhec imento que supos-tamente deveria ser mantido em fragmen-tos, e revelar o que considerado perigosoe supostamente deve ser mantido em segre-do. De Saramaka fa la ram com Price sobreo FirstTime s depois de nove anos det raba lho de campo e de um esforo pro-longado de provar sua credibilidade, mas

    essa no foi a principal razo. De um lado,Price s foi informado sobre o FirstTimequando os ve lhos o considera ram prontop a ra isso . N es sa co nsi der a o in te rf e ri u ofato de que Price havia estudado a hist-ria dos Saramaka nos arquivos coloniaisholandeses e t inha em seu poder certosconhecimentos ignorados pelo grupo. E eleestava consciente da relao de poder a serento estabelecida, e de quanto ele ia , as-sim, in te rfe r i r no prpr io ca r te r do conhe-cimento sobre o FirstTime. De outro lado,quando Price obteve as informaes por

    p ar te do s Sara m aka e fo i so lici ta do pe lo svelhos para ser uma espcie de cronista, asociedade dos Saramaka estava sofrendomudanas irreversveis, a tradio estavamorrendo e os velhos decidiram que opou co co nhe ci m en to qu e eles a in d a ti nh amdeveria ser preservado. Mas ao deixarem oseu conhecimento ser agrupado e escrito,eles mesmos mudaram irreversivelmente ocarter desse conhecimento.

    N um a sit ua o co m o e st a, em q u e o an -troplogo se transforma com toda clarezaem um agente de interferncia na socie-dade estudada e qua lquer coisa que faarepresenta uma opo tica e polt ica, no de se estranhar que Price tenha refletidosobre o seu prprio poder e o papel deseu t raba lho enquanto antroplogo. Suasdvidas e as decises que tomou fazem

    p ar te do livr o .A primeira questo era a de identificar

    ou no os informantes. Price decidiu iden-tificlos publicando uma foto de cada umdos velhos que lhe falaram sobre o FirstTime, seguidas de seus nomes e uma pe-quena biografia. A deciso, que Price dizde sua total responsabilidade, assentase naidia de incorporar os Saramaka como co

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    autores em sua tentativa de contar a suahistria.

    Uma segunda questo era a do possvelimpacto do livro no sistema de conheci-mento dos Saramaka. Ele sabia que o queescrevia era parcial, uma seleo da hist-ria , mas que corria o risco de, ao ser publi-cada, se transformar em cnone, em versocom mais autoridade. Minha deciso de

    p u b li ca r dz Pri ce fo i to m ad a co nsi -derando a for te percepo da rapidez comque o conhecimento sobre o FirstTime estdesaparecendo, a certeza de que os prin-c ipa is par t ic ipantes no meu aprendizadoaprovaram a publicao, e a expectativa(baseada em experincia anterior) de que

    o contedo do livro s muito gradualmentee parcialmente vai penetrar junto aos velhosque participam mais diretamente no siste-ma de conhecimento (1983:23).

    Outras questes ticas e polt icas refe-riamse ao fato de que, depois de publi-cadas, as histrias iam cruzar fronteirastradicionais de cls, alm do fato bvio deque todas as histrias estavam sendo apre-sentadas, imediata e concomitantemente, abra n co s e ne gro s d e outros g ru pos, os in i-migos tradicionais dos Saramaka. SegundoPrice, nenhum dos dilemas que ele enfren-tou tem resposta fcil , e as solues ado-tadas so de sua inteira responsabilidade.Mas ele tambm acha que os possveis lei-tores do seu livro tm algumas responsa-b il id ad es . Aos le it ore s Sara m aka ele pe deque no leiam o livro como uma bblia ,mas que considerem que se trata de uma tentativa incompleta e inicial de conhecero passado Saramaka , publ icada como umacelebrao dessa tradio historiogrficaque guardou coletivamente e por tantotempo informaes sobre o FirstTime. Aleitores de grupos externos aos Saramakaque possive lmente ent rem em conta to comeles, Price relembra que o contedo dolivro no deve ser discutido com os Sara-maka: isso requereria um cdigo e umaetiqueta especial e um conhecimento realda lngua. Aos leitores em geral, finalizaPrice, este estudo tem a inteno de ser

    um t r ibuto d ignidade (dos Saramaka) emface da opresso, e sua contnua recusaem deixar com que fossem definidos comobjetos (1983:24).

    A esta altura j deve estar claro comocada detalhe do livro foi decidido cons-cientemente por Price considerando seuspo ss v ei s ef ei to s e as re la es d e fo r as emque o conhecimento estava sendo gerado.

    Uma das decises mais importantes refe-riuse ao estilo do texto propriamente dito.Price concebeu seu livro co mo u ma expe-rincia textual. O texto dividido em dois,e a pgina separada em duas partes. Nap a rt e su per io r en co ntram s e as h is t ri as ta iscomo reveladas pelos Saramaka: so frag-mentos, frases, canes, lendas, encantamen-tos etc., agrupados por temas, obviamentede acordo com a seleo feita por Price.N a p a rt e de ba ix o , es t o os re su lt ad os da sp es qui sa s em arq uiv os, re ve la nd o a vi s odo colonizador da mesma histria e a inter-

    p re ta o d e P ri ce . C ad a p a rt e re pre se ntauma verso (ou mais de uma), e Priceconvida o leitor a fazer a sua prpria inter-

    pre ta o e a ir e vo lt ar n a le it u ra , re le ndoos fragmentos depois de ler a interpretao.O que impressiona no livro de Price

    no s o fato dele mostrar como umconhecimento histrico sobre o sculoXVIII pode se r mant ido v ivo ora lmente ,mas tambm o de deixar claro o carterseletivo e parcial da memria de cada grupo(os Saramaka e os colonizadores), e a rela-tividade da verdade histrica ou antro-po l gica . N o en ta n to , se le ti v id ad e e re la -tividade em relao a vises do passadono significam arbitrariedade. O que estem qu esto aqu i o. carter social da me-mria e o carter polt ico das reinterpretaes do passado.

    A memria de um grupo soc ia l produ-zida socialmente. No se trata apenas deuma produo coletiva; ela associa tantoao pa ss ad o qu a n to ao pre se nte experinciasdo grupo que interpreta e reinterpreta opas sa do e u sa essa s in te rp re ta es para da rsentido sua experincia presente e paralegitimar diferentes interesses. Assim sendo,as vises sociais do passado no so fixas,mas sujeitas a reinterpretaes medidaem que o presente e as condies sociaisdo grupo mudam.

    Memria , por definio, umtermo que dirige a nossa ateno noao passado, mas relao passado--presente. porque o passado tem

    essa existncia viva e ativa no presenteque ele importa tanto polit icamente.Como o passado morto , ido ouapenas sub sum id o no pre se nte eleimporta mui to menos. (Popula r Me-mory Group 1982:211)

    Isso pocfe ser claramente exemplificadop o r to do s os es tu do s m en ci ona do s ac im a

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  • 8/11/2019 Antropologia e Poder Pires Do Rio Caldeira Teresa

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    e que lidam com etnohistrias. O sentido

    que um grupo a t r ibui ao seu passado importante para construir a sua identidadecoletiva e para legitimar vrias pretensespre se nt es . Ess e o ca so , po r ex em pl o , da sreivindicaes de propriedade da terra, he-rana, arranjos matrimoniais e relaes clnicas feitas pelos Ilongot, pelos Saramakae pelos Weyna (Kuipers 1984). Esse tam

    bcm o ca so d a id ia de nu n ca m ai s do sSaramaka: eles controlam o conhecimentosobre a sua escravizao e libertao comouma fonte de resistncia a qualquer poss-vel ameaa de reescravizao. Controlar umconhecimento especfico e contar uma his-tria so aes definidas num campo deforas, o que tambm assegura a sua din-

    mica e o seu carter noesttico. Nestesentido, o caso dos Saramaka um exem-p lo de co m o m ud am as re la es com oconhecimento do passado. Na conjunturade foras presentes, quando sua sociedadese desintegra e a urbanizao avana, osvelhos Saramaka sentiram que era maisapropriado contar as histrias que sabiamdo que mantlas em segredo, como elesfizeram por sculos.

    Em suma, memria social, histria e pol-tica esto intimamente associadas. nessesent ido que o Popula r Memory Group doCenter for Contemporary Cultural Studiesinsiste que a atividade polt ica um pro-cesso de argumentao e definio hist-rica (1982:213). Grupos tentando mobili-zar polit icamente desenvolvem um discursomarcado por construes do passado e dofuturo. Vises do passado esto no centrodas lutas polticas.

    A dominao polt ica envolve defi-nio histrica. A histria em par-t icu la r a memria popula r est em

    jo go na lu ta const an te p o r he ge m on ia .A relao entre h istria e polt ica, comoa relao entre passado e presente, ,conseqentemente, uma relao interna: e la diz respeito polt ica da histriae s dimenses histricas da polt ica.(Popular Memory Group 1982:213)

    Se a memria de um grupo uma cons-truo social associada s suas experinciascoletivas, e se os grupos tm diferentesexperincias sociais e esto