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AO LADO DA CRÍTICA

Ao Lado da Critica Volume 1

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AO LADO DA CRÍTICA

Presidente da RepúblicaPresidente da RepúblicaPresidente da RepúblicaPresidente da RepúblicaPresidente da RepúblicaLUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

Ministro da CulturaMinistro da CulturaMinistro da CulturaMinistro da CulturaMinistro da CulturaJUCA FERREIRA

Fundação Nacional de Artes – FunarteFundação Nacional de Artes – FunarteFundação Nacional de Artes – FunarteFundação Nacional de Artes – FunarteFundação Nacional de Artes – FunarteSÉRGIO MAMBERTI

Presidente

Diretoria ExecutivaMYRIAM LEWIN

Diretora

Centro de Programas IntegradosTADEU DI PIETRO

Diretor

Gerência de EdiçõesMARISTELA RANGEL

Gerente

Centro de Artes CênicasMARCELO BONES

Diretor

Coordenação de DançaLEONEL BRUM

Coordenador

Coordenação Geral dePlanejamento e AdministraçãoANAGILSA NÓBREGA

Coordenadora Geral

AO LADO DA CRÍTICAA história recente da dança

carioca através dacrítica jornalística – 1999-2009

VOLUME 11999-2004

Roberto PereiraOrganização

Rio de Janeiro – 2009

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Funarte / Coordenação de Documentação e Informação

Ao lado da crítica : 10 anos de crítica de dança : 1999-2009 / Organização de Roberto Pereira. – Rio de Janeiro, Funarte,2009.

2 v.216 p.; 26cm

ISBN 978-85-7507-123-6 978-85-7507-125-0

1. Dança – Brasil – História e crítica. I. Pereira Roberto.

CDD 792.80981

Ao lado da crítica10 anos de crítica de dança – 1999-2009

© 2009 Roberto Pereira

Todos os direitos reservados

Fundação Nacional de Artes – FunarteRua da Imprensa, 16 – Centro – 20030-120 – Rio de Janeiro – RJ

Tels.: (21) 2279-8053 – (21) [email protected] – www.funarte.gov.br

Produção editorial e projeto gráficoJOSÉ CARLOS MARTINS

Produção gráficaJOÃO CARLOS GUIMARÃES

Assistentes editoriaisSIMONE MUNIZ

SUELEN BARBOZA TEIXEIRA

RevisãoANALUIZA MAGALHÃES

CapaPAULA NOGUEIRA

(recortes do Jornal do Brasil)

Arte-final digitalCARLOS ALBERTO RIOS

Volume 1

Agradeço a todos que meajudaram nesse percurso da crítica.Nayse López, por ter me convidado

a escrever a primeira crítica.A todos os editores e colegasdo Jornal do Brasil com quem

tive o prazer de trabalhar nessesdez anos. Silvia Soter, colega

de ofício, amiga querida.Sonja Gradel, por tudo, disso tudo.

...e que o mesmo signo que eu

tento ler e ser é apenas um possível

ou impossível em mim em mim

em mil em mil em mil...

CAETANO VELOSO

Sumário

Apresentação / 13/ 13/ 13/ 13/ 13JUCA FERREIRA

Ministro da Cultura

Ao lado da crítica / 15/ 15/ 15/ 15/ 15SÉRGIO MAMBERTI

Presidente da Funarte

O ofício da crítica em dose dupla / 1/ 1/ 1/ 1/ 177777(para nossa sorte e deleite)AIRTON TOMAZZONI

Introdução / 19/ 19/ 19/ 19/ 19ROBERTO PEREIRA

19991999199919991999O palco como lugar deação vigorosa e incessante / 27/ 27/ 27/ 27/ 27

Domínio raro dotempo e do espaço em cena / 28/ 28/ 28/ 28/ 28

Duelo entre música, palavra faladae dança na apresentação da Quasar / 29/ 29/ 29/ 29/ 29

Novos significadospara o corpo e para a dança / 31/ 31/ 31/ 31/ 31

Palco de discussão da dança de hoje / 32/ 32/ 32/ 32/ 32

Criadores aprofundampesquisas em cena / 34/ 34/ 34/ 34/ 34

O mito de Antígonaolhado pela metade / 36/ 36/ 36/ 36/ 36

Um bom presente de Natal / 37/ 37/ 37/ 37/ 37

20202020200000000000A hora de sair do corpo / 41/ 41/ 41/ 41/ 41

Encontro de épocas ilustrado pelocontraste entre força e romantismo / 42/ 42/ 42/ 42/ 42

Acertos e ruídos emdois diálogos com o teatro / 43/ 43/ 43/ 43/ 43

A afinação de várias influências / 44/ 44/ 44/ 44/ 44

Crescimento evidente / 45/ 45/ 45/ 45/ 45

Ator descobre a geometria do espaço / 46/ 46/ 46/ 46/ 46

Emoção do flamencoem atmosfera clean / 47/ 47/ 47/ 47/ 47

Genialidadescoreográficas a serviço do amor / 48/ 48/ 48/ 48/ 48

Recursos evidenciamfragilidade da dança / 49/ 49/ 49/ 49/ 49

Danças que coabitammas não se misturam / 51/ 51/ 51/ 51/ 51

Dança feita de ideias,corpos e indignação / 52/ 52/ 52/ 52/ 52

Trilha de Arnaldo Antunes inauguranovos caminhos físicos e urbanos / 53/ 53/ 53/ 53/ 53

A experiência dadança como vertigem / 54/ 54/ 54/ 54/ 54

Plischke sacodea percepção do espectador / 55/ 55/ 55/ 55/ 55

Distintas artes e culturasganham novo território / 56/ 56/ 56/ 56/ 56

Panorama se firma comopalco do debate sobre dança / 57/ 57/ 57/ 57/ 57

Novos balés de Béjart provocamsaudades das criações dos anos 70 / 59/ 59/ 59/ 59/ 59

20202020200000011111Uma dança em buscada emoção imediata / 63/ 63/ 63/ 63/ 63

Tecnologia feita de erros e acertos / 64/ 64/ 64/ 64/ 64

Ana Botafogo é destaque num raroequilíbrio de técnica e interpretação / 66/ 66/ 66/ 66/ 66

Entre o formalismo e a renovação / 67/ 67/ 67/ 67/ 67

Graham dá brilho à noite americana / 69/ 69/ 69/ 69/ 69

Kirov aposta na renovação emromper com a tradição do balé / 70/ 70/ 70/ 70/ 70

Um kirov renovado / 72/ 72/ 72/ 72/ 72

Virtuosismo e sofisticação numaexperiência espetacular do balé / 7/ 7/ 7/ 7/ 744444

Quando a dignidade dança / 75/ 75/ 75/ 75/ 75

Em boa forma / 76/ 76/ 76/ 76/ 76

Construção coreográfica éponto frágil na encenação / 78/ 78/ 78/ 78/ 78

Festival confirmavocação de fazer pensar / 79/ 79/ 79/ 79/ 79

O balé que antecipa o Natal / 82/ 82/ 82/ 82/ 82

Dramas cotidianos emmovimentos coreográficos / 83/ 83/ 83/ 83/ 83

20202020200202020202Uma companhia sem a cara do Rio / 87/ 87/ 87/ 87/ 87

Um projeto ainda frágil / 89/ 89/ 89/ 89/ 89

O encontro do gesto edo movimento no palco / 91/ 91/ 91/ 91/ 91

Passos, música e interatividadeembalam celebração coreográfica / 93/ 93/ 93/ 93/ 93

Rostropovich roubaa cena e faz a sua festa / 95/ 95/ 95/ 95/ 95

Ana Botafogo dominaa cena no Municipal / 97/ 97/ 97/ 97/ 97

Corpo de bailebrilha pela musicalidade / 98/ 98/ 98/ 98/ 98

Corpo de baile rouba a cena / 10/ 10/ 10/ 10/ 1000000

Ilustração de ritmos / 102/ 102/ 102/ 102/ 102

Monólogo de movimentos / 104/ 104/ 104/ 104/ 104

Dança que opera no universo pop / 106/ 106/ 106/ 106/ 106

Um balé marcado peloexcesso de elementos / 108/ 108/ 108/ 108/ 108

Cinderela para virar cult / 110/ 110/ 110/ 110/ 110

Sempre um passo adiante / 111/ 111/ 111/ 111/ 111

Sensualidade debochadaque serve para iluminaro passado do Corpo / 113/ 113/ 113/ 113/ 113

Ações pedagógicas que somam, semse sobrepor à qualidade do produto / 115/ 115/ 115/ 115/ 115

Panorama fez a festada nova plateia carioca / 11/ 11/ 11/ 11/ 1177777

Movimentação a passos largos / 120/ 120/ 120/ 120/ 120

20202020200303030303Parcerias inéditas rendem noitede experiências no palco do SESC / 125/ 125/ 125/ 125/ 125

A simplicidade engole a medusa / 127/ 127/ 127/ 127/ 127

Talentos em versão mal construída / 129/ 129/ 129/ 129/ 129

Movimentos plurais / 131/ 131/ 131/ 131/ 131

O olhar contemporâneode um coreógrafo genial / 134/ 134/ 134/ 134/ 134

Béjart imprime didatismoreligioso à coreografia / 136/ 136/ 136/ 136/ 136

Sobre o espetáculo Madre Teresae as crianças do mundo / 138/ 138/ 138/ 138/ 138

Tradição e história / 139/ 139/ 139/ 139/ 139

O padrão de qualidade de sempre,mas carente de novas referências / 140/ 140/ 140/ 140/ 140

Diálogo entre arte e ciências / 142/ 142/ 142/ 142/ 142

Em busca do movimento do corpo / 143/ 143/ 143/ 143/ 143

Experiências de Carlota Portella / 1/ 1/ 1/ 1/ 14444444444

Sucessão de passos / 146/ 146/ 146/ 146/ 146

Quadros que se perdem em leiturasufanistas, ingênuas e superficiais / 1/ 1/ 1/ 1/ 14848484848

O surpreendente salto da DeAnima / 150/ 150/ 150/ 150/ 150

DeAnima dança William Forsytheutilizando coragem e competência / 152/ 152/ 152/ 152/ 152

Ana Botafogo é diva / 154/ 154/ 154/ 154/ 154

Balé do Municipal encerratemporada em grande estilo / 156/ 156/ 156/ 156/ 156

Os corpos são o lugar da dança / 158/ 158/ 158/ 158/ 158

Balança e dança / 159/ 159/ 159/ 159/ 159

20202020200404040404Dança e reflexão nopalco do Espaço SESC / 165/ 165/ 165/ 165/ 165

Permanências mutantes / 1/ 1/ 1/ 1/ 16767676767

Palco para a reflexão / 1/ 1/ 1/ 1/ 16969696969

Saltos com riscos / 1/ 1/ 1/ 1/ 17171717171

Uma ponte entre o Rio e Sttutgart / 1/ 1/ 1/ 1/ 17373737373

O espaço que (nos) estimula / 1/ 1/ 1/ 1/ 17575757575

Dançando por esporte / 1/ 1/ 1/ 1/ 17777777777

Depois de 50 anos, ainda novasmaneiras de ver e criar dança / 1/ 1/ 1/ 1/ 17878787878

Passos simultâneos à vida / 1/ 1/ 1/ 1/ 18080808080

Lembranças pensadas no presenteque orientam projetos futuros / 181/ 181/ 181/ 181/ 181

Lição de Antonio Gades / 1/ 1/ 1/ 1/ 18383838383

Paixão pelo movimento / 1/ 1/ 1/ 1/ 18484848484

Competência que rendeespetáculo de beleza hipnotizante / 186/ 186/ 186/ 186/ 186

Com prazer e sedução / 188/ 188/ 188/ 188/ 188

Um balé de paixão / 190/ 190/ 190/ 190/ 190

A Tropicália, segundosete criadores / 191/ 191/ 191/ 191/ 191

Mais liberdade para o som dos pés / 193/ 193/ 193/ 193/ 193

O Brasil em Lyon / 1/ 1/ 1/ 1/ 19494949494

Shakespeare condensado / 197/ 197/ 197/ 197/ 197

É tropicalismo, mas semirreverência ou transgressão / 199/ 199/ 199/ 199/ 199

Desafio ainda épolitizar o corpo que dança / 20/ 20/ 20/ 20/ 2011111

Passos tecidos com sabedoria / 203/ 203/ 203/ 203/ 203

Gestos de beleza esuavidade em Márcia Milhazes / 205/ 205/ 205/ 205/ 205

Qualidade técnica à prova / 207/ 207/ 207/ 207/ 207

Driblando obstáculos / 209/ 209/ 209/ 209/ 209

Bibliografia / 213/ 213/ 213/ 213/ 213

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Apresentação

JUCA FERREIRA

Ministro da Cultura

urante o processo de criação artística, o momento de reflexão epesquisa se faz indispensável para o desenvolvimento da obra. A

partir da produção teórica e crítica, a prática é repensada, aperfeiçoa-da e adequada a novos contextos. Ao editar o livro A o lado da crítica :10 anos de crítica de dança – 1999-20 09, o Ministério da Cultura e aFunarte apresentam a artistas, curadores, produtores, pesquisadores e crí-ticos um poderoso instrumento de trabalho e oferecem ao espectador dedança a oportunidade de ampliar seu conhecimento sobre o tema.

O livro reúne críticas, publicadas originalmente em jornais de grandecirculação. Juntas, elas revelam um panorama das ideias, práticas e ex-periências que marcaram a dança brasileira nos últimos dez anos. Osautores analisam em detalhes espetáculos que exploram linguagens di-versas do corpo em movimento. Dessa forma, é possível acompanhar astrajetórias de renomadas companhias, coreógrafos e bailarinos, nacio-nais e internacionais, em busca de inovações técnicas e estéticas quedessem fôlego às suas obras e às suas marcas autorais.

Além disso, são traçados os percursos de alguns dos principais festi-vais brasileiros, que se destacaram por servir de palco a grandes nomesda dança, a novos talentos e coreógrafos de vanguarda, por terem setornado espaços privilegiados de debate de idéias e por ajudarem a for-mar novas plateias para a dança no Brasil. Esta coletânea traz aindatextos teóricos que ajudam a inserir o trabalho do crítico no contextomaior da história da dança.

Com esta publicação, o Ministério da Cultura e a Funarte reafirmamos compromissos de preservar a memória das artes e promover a refle-xão sobre as manifestações da cultura brasileira, investindo assim naformação de consciências críticas e no desenvolvimento do país.

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Ao lado da crítica

SÉRGIO MAMBERTI

Presidente da Funarte

o lado da crítica oferece ao leitor registros minuciosos dos principaisespetáculos de dança apresentados nos palcos cariocas nos últimos

dez anos. A obra, que vem preencher uma lacuna da produção intelectualbrasileira, tão carente de títulos que promovam uma reflexão sobre a dançano país, servirá como ferramenta de pesquisa e referência histórica paratodos aqueles que desejem ampliar seu conhecimento sobre o tema.

A edição deste livro faz parte de um conjunto extenso de ações daFundação Nacional de Artes – Funarte voltadas para o incentivo à dan-ça. Desde 2005, quando o Ministério da Cultura criou o Colegiado Seto-rial de Dança – espaço de debate entre Estado e sociedade civil –, a árearecebeu impulso inédito. Para atender a reivindicações da categoria,foram desenvolvidos programas específicos de estímulo à produção, cir-culação, formação, pesquisa e preservação da memória, contemplandosempre a diversidade criativa dessa linguagem.

Diretores, bailarinos, coreógrafos, produtores, técnicos e outros pro-fissionais ligados à cadeia produtiva da dança encontram, por meio daspolíticas da Funarte, formas de se capacitar, viabilizar projetos, levar seusespetáculos a outros estados e realizar pesquisas.

Com a publicação de livros como A o lado da crítica, que estimulam opensamento sobre a cultura brasileira, a Funarte beneficia artistas, es-tudiosos e espectadores, a um só tempo. Além disso, ratifica a importân-cia de sua atuação como órgão fomentador das artes no país.

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O ofício da crítica em dose dupla(para nossa sorte e deleite)

AIRTON TOMAZZONICoreógrafo, jornalista e diretor do

Centro Municipal de Dança de Porto Alegre

palavra crítica vem do grego krimein, que significa “quebrar”, sentido quetambém influenciou a formação da palavra “crise.” E, provavelmente, es-

tabelecer uma crise seja o papel decisivo de um crítico. Uma crise pode gerar,por sua vez, vários estados: percepção, transformação, e até mesmo choque ereação. Por isso, uma crise, mesmo que em primeira instância possa pareceralgo negativo, tem um papel determinante e fundamental, ainda mais quandose fala em arte, ainda mais quando se fala em dança, num País de pouca memó-ria e tão carente de informação qualificada sobre esta arte.

Por isso, é tão importante e significativa a publicação desta obra, reunindodez anos de produção sistemática dos críticos de dança Roberto Pereira (Jornaldo Brasil) e Silvia Soter (O Globo). Seus textos foram decisivos tanto para fazerum retrato da dança na cidade do Rio de Janeiro, no período de 1999 a 2009,quanto para um refinado exercício de reconhecimento e provocação do que ecomo se produzia, do que se assistia, do que se fazia e se deixava de fazer nospalcos e nos bastidores, na arte e na política do Brasil. Sim, porque o espaçoaberto por estes dois críticos não foi apenas para dar opinião a respeito de es-petáculos e eventos. Ambos estiveram sempre atentos e dispostos a alertar, co-brar, revelar ações e omissões que reverberavam diretamente na dança.

Talvez, por esses motivos, eu fale com certa inveja. Com a inveja de quem atuaem um cenário cultural (de Porto Alegre) que não possui, como outros tantos es-tados desse País, um crítico atuando sistematicamente e com o mínimo conheci-mento e vocação para tal ofício. Talvez por isso eu perceba com maior ênfase afalta que faz o acesso a textos de uma escrita clara e precisa, que analisem a produ-ção de dança, textos com posições devidamente argumentadas, textos que, quandonecessário, se permitem vibrar, amar, odiar, pois são textos de quem vive a dança,conhece a dança e torce pela dança. Esses atributos fazem a diferença em umcenário que, muitas vezes, é o de pseudocríticas de dança redigidas por alguémsem o mínimo conhecimento da história da dança (sim, não apenas temos uma comovárias), de suas referências, de sua realidade local e global e que acha que emitirimpressões com uma escrita “bacaninha” dá conta do recado.

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As críticas de Silvia e Roberto são a constatação da diferença que umapostura consistente faz e traz. Para tal, não precisamos concordar sempre comsuas opiniões, que não estão ali em busca de uma unanimidade, mas sim deuma pequena (pois breve) e necessária porção de alteridade. Alteridade nosentido de também compreender o mundo a partir do olhar outro, sensibiliza-do pela experiência do contato com a(s) obra(s). E aqui não falo apenas doscriadores, “alvo” das críticas, mas de todos os leitores que fazem do exercícioda crítica jornalística uma possibilidade de troca de experiência em dança, enão só o público carioca. Quantas vezes me interessei por coreógrafos sobreos quais li nos textos de Roberto e Silvia, quantas vezes descobri que os des-conhecia, quantas vezes levei seus textos para sala de aula, quantas vezesacolhi apontamentos que serviam como uma luva para o meu trabalho, quan-tas vezes discordei e estabeleci argumentos para “no dia em que eu falar comeles”. Enfim, que coisa mais saudável esta que uma boa crítica produz.

Também por isso a importância desta publicação. Por valorizar um ofício cadavez mais raro. Pela oportunidade de ler esses textos tão fugidios no jornal queno outro dia pode estar enrolando peixe. Pela chance de lê-los em conjunto. Depoder relê-los. De poder lê-los complementarmente a partir de duas perspecti-vas tão singulares e capacitadas. Essa coletânea de críticas é um legado, numcenário ainda árido da produção bibliográfica sobre dança no Brasil e pratica-mente nulo no que se refere à crítica fora dos jornais e sites. Mas, independentede tudo isso, o leitor poderá se deleitar com um generoso exercício de análise ecom o olhar apurado de Roberto e Silvia.

Esta obra também pode ser uma forma de talvez começar a perceber a im-prensa como um dos vértices fundamentais para que uma produção consistentede dança se firme. Esta publicação, enfim, é um retrato de dois profundos co-nhecedores, de dois sensíveis cronistas do seu tempo, donos de um texto perspi-caz e inteligente, de dois apaixonados que fizeram, nesse período, um bocadodaquilo que precisa ser feito, mas poucos se arvoram, pois o ofício da crítica nãoé só feito de louros e exige coragem e rigor. Coragem e rigor que sempre pri-maram tanto Roberto, que nos deixou tão prematuramente e que tanta falta jáfaz, quanto Silvia, que espero que prossiga compartilhando com a gente por maisum bom tempo seus textos.

E que bom que o Roberto teve a ideia desta publicação, bem como a paciên-cia de organizar seu material e o da Silvia, além de digitar todas as críticas.Se ele não tivesse pensado e trabalhado por isso, estas continuariam nos arqui-vos pessoais e não à nossa disposição. E crédito especial à Sonja Gradel, incan-sável até descobrir uma forma de não ver engavetado todo o trabalho já feitopelo Roberto.

Parabéns à Funarte, por assumir essa iniciativa e torná-la possível, com sen-sibilidade e agilidade. Tenho a certeza de que a dança brasileira agradece.

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Introdução

ROBERTO PEREIRA

ez anos de crítica de dança na cidade do Rio de Janeiro. Oferecer ao pú-blico a possibilidade de ter reunidas todas as críticas escritas por mim nesse

período, publicadas ou não, é também traçar um diagrama histórico possível,cujos personagens compartilham com o narrador o mesmo espaço e o mesmotempo. Compartilham a contemporaneidade. Tal fato concede, sem dúvida, umtom peculiar à leitura dos textos que seguem. E corrobora a ideia de que essediagrama não está pronto, e nunca estará, felizmente. Aqui, ele aparece recor-tado, assumindo, de imediato, todas as falibilidades desse recorte.

Reunir críticas jornalísticas em um mesmo volume, em formato de livro, não éuma novidade. Mesmo em dança, trata-se de uma prática que vem sendo disse-minada sobretudo a partir do século passado. A importantíssima produção doséculo XIX, por exemplo, que encontra no nome do poeta Théophile Gautier umade suas maiores expressões, ganhou versão em livro, inclusive em outros idiomasque não apenas o original francês. Sua organização vem facilitando e muito o acessode pesquisadores ao ainda tão presente balé romântico, numa leitura que garan-te, através dos arroubos poéticos de Gautier, uma reconstrução possível de ima-gens do que foi aquele período tão caro à dança cênica ocidental.

Se no caso do poeta mais de 150 anos separam suas primeiras críticas jor-nalísticas de sua organização e posterior publicação, neste livro que ora seapresenta ao público, esse hiato simplesmente não existe. Tingindo a históriarecente da dança carioca com a tinta própria de um olhar crítico que se disse-mina através de um dos mais importantes jornais da cidade, aqui se promoveum diagrama.

Um diagrama que, ao mesmo tempo, resulta numa leitura plenamente si-multânea dessa história, mesmo tendo sido organizado com base em um per-curso absolutamente cronológico, critério assumidamente sintagmático que

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tenta conceder a essa mesma leitura quase um caráter narrativo. E disso, cer-tamente, um sabor especial advém.

Esse sabor, que muitas vezes deve ter causado dissabores também aos per-sonagens que habitam essas páginas, está latente em cada uma de suas linhas,em cada parágrafo. Apenas não se deve esquecer de que, ao retirar essas críti-cas do seu hábitat original e reagrupá-las em outro lugar, estamos falando mesmoquase que de uma aventura romântica de preservação. Jornalismo cultural, quecarrega consigo a noção de cotidiano, do aqui e agora, ganha feições de umaextensão no tempo e no espaço que não fazem parte de sua especificidade.Implicados aí estão ganhos e perdas. O leitor não deve perder isso de vista, jamais.

* * *A crítica de dança que se apresenta aqui é o exercício diário que permitiu mi-nha formação profissional na área. Na verdade, trata-se de um exercício com-partilhado principalmente com minha colega, e antes de tudo, amiga, Silvia So-ter. Escrevemos há dez anos para os dois principais jornais da cidade do Rio deJaneiro, ela para O Globo e eu para o Jornal do Brasil.

No início, o desafio era novo para ela e para mim: o de se fazer entender porum público anônimo, de cuja amplitude não tínhamos qualquer dimensão. O al-cance de cada palavra escrita por nós era algo pouco traçável, nos dois senti-dos: tanto em direção ao artista criticado, quanto em direção ao público.

Nessa tarefa, a aprendizagem do código se tornou quase um enigma a serdecifrado dia a dia, texto a texto. O “como se fazer entender por esse públicoamplo” teria de vir aliado a outras tantas determinações, muitas vezes alheiasà nossa vontade, ou ao que ainda ingenuamente chamávamos de “estilo”. Dei-xar claro de que espetáculo está se falando, quem é o artista, onde e até quan-do ele se apresenta fazia pesar a prática do lead jornalístico quase como umabomba num texto que se queria algumas vezes puramente poético. Negocia-ções começaram a ser feitas. Aqui e ali.

Ou mesmo o tamanho destinado para cada texto determinava a eficácia deseu conteúdo. Dimensionar isso, exatamente, talvez tenha sido a aprendizagemmais demorada para mim. Se o espaço é pequeno, cada palavra começava a valerimediatamente mais. Quase ouro puro. E nada, nada mesmo a tornava substi-tuível por qualquer outra palavra. A saída era ir sempre testando. Até hoje setesta. E não há um resultado, um diagnóstico. Há a prática de quem realiza umofício cuja formação é um amontoado de aptidões: a facilidade em escrever, oolhar aguçado, o incessante pesquisar sobre dança, e mais tantos etcs. pertinen-tes que possam porventura caber aqui.

Outra informação que poucos leitores, e artistas, sabem: não somos nós queescolhemos os títulos e as legendas que acompanham nossos textos. E tambémnão escolhemos as fotos que os ilustram. Algumas vezes, o título é pinçado de

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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alguma passagem de nossa autoria. Outras, ganha um colorido estranho, pró-prio de um título que jamais seria dado por nós. Isso tudo fazia parte do modode acontecer de uma redação de jornal. Tudo. Algo muito simples de se enten-der, mas que fincava de uma só vez uma bandeira que demarcava especificida-des jornalísticas em minha escrita, área em que não sou formado.

Aliás, qual poderia ser minha formação como crítico? Tinha feito muitas emuitas aulas de dança, começando meus estudos numa academia de minha ci-dade natal, São José dos Campos, interior de São Paulo. Como acontecia comtodo rapaz em plena década de 1980, ganhei uma bolsa de estudos de minhaprimeira professora, Damares Antelmo, e me lancei ao balé, ao jazz e ao sapa-teado, mesmo que este último eu tenha abandonado logo de início. Em 1982,lembro ter ficado impressionado ao assistir na televisão a uma jornalista falan-do sobre dança de um modo inteiramente novo para mim. Helena Katz, na T VCultura, comentava o impacto da movimentação de Michael Jackson nos vide-oclipes que acompanhavam o lançamento de seu álbum Thriller. E esse modoreverberou em mim, e o faz até hoje, a certeza de que ali residia uma outrapossibilidade, absolutamente legítima, de se fazer dança também. Fui para acapital paulista, onde me formei em Letras pela PUC/SP, e parei definitivamentede fazer aulas de dança. Comecei, então, a participar do grupo de estudos or-ganizado por Helena. Algumas coisas começaram a se encaixar.

Saí do País, fiz meu mestrado na Universidade de Viena, Áustria, cuja disser-tação tinha como tema uma antiga paixão: o balé Giselle. Voltei ao Brasil, maisespecificamente ao Rio de Janeiro, em 1997, como convidado de minha irmã quejá era quase uma carioca. Nesse mesmo ano, conheci Silvia. Em dezembro, numareunião realizada na sala de ensaio de Lia Rodrigues, localizada no Teatro Villa-Lobos, combinamos a primeira reunião daquele que viria a ser conhecido comoGrupo de Estudos em Dança do Rio de Janeiro. Começaríamos a nos reunir logono dia 19 de janeiro do ano seguinte, no estúdio da Silvia, no Jardim Botânico.

A existência desse grupo foi absolutamente fundamental para meu futuroexercício da crítica. E logo nas primeiras reuniões, realizadas sempre àssegundas-feiras, às 19 horas, começou-se a delinear um núcleo que seguiriaadiante por mais seis anos: além de mim e da Silvia estavam Beatriz Cerbino,Dani Lima e Lia Rodrigues.

As leituras, sempre combinadas de antemão, faziam um percurso sugerido noinício por Helena Katz. Depois, nossos desejos foram sendo naturalmente des-pertos pela própria dinâmica das discussões que se davam nos encontros. Auto-res como Antonio Damasio, Daniel Dennett e Richard Dawkins apresentavamum novo universo a todos nós, que ficávamos incumbidos em traçar paralelos entretoda aquela teoria e a dança. Fazíamos isso, claro, ao nosso modo. E fomos cons-truindo ali uma ética da pesquisa, mas, sobretudo, uma estética do estar junto.

Lá no finzinho de 1999, em outubro, sai a primeira crítica da Silvia no Segun-do Caderno do jornal O Globo. Sua incursão naquele universo complementaria

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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de forma exemplar o espaço dado por esse jornal à dança, sobretudo pelo em-penho da jornalista Adriana Pavlova, responsável pela área até o ano de 2005.Uma parceria e tanto foi construída ali, dia a dia, ano a ano. E o jornal passoua desempenhar um papel fundamental nas questões sobretudo políticas que cir-cundavam a dança carioca. E essa dança ganhou um outro status, diferentedaquele provindo de visitas esporádicas da crítica teatral Bárbara Heliodora aapresentações de dança, geralmente restritas ao Theatro Municipal. A dançavirou uma prática jornalística também.

Logo em seguida, ainda no mês de outubro, Silvia começou a escrever sobreo Panorama RioArte de Dança, um dos mais importantes festivais brasileirosque, naquele momento, era dirigido por sua idealizadora, a coreógrafa Lia Ro-drigues. Eu, desde o ano anterior, desempenhava ao lado dela o ofício de suacuradoria. Pouco mais tarde, fui entendendo que curadoria e crítica eram ape-nas interfaces de uma mesma mediação entre artista, obra e público. Mas comonão havia também nenhuma formação própria para “curador de dança”, tudo oque eu fazia era ao mesmo tempo testado. E as maiores aulas que tive nessesentido vinham da experiência da própria Lia, que também aprendeu fazendoaquele festival, mesmo que a duras penas, desde 1992.

Era uma experiência nova para mim e para Silvia: meu trabalho estava sen-do, de alguma forma, criticado por ela. Curioso. Muito curioso.

Para o bem do Panorama e de toda a classe artística da dança carioca, críti-cas sobre o festival passaram a ser constantes até o ano anterior ao que estelivro contempla. Escritas por Silvia, por Beatriz Cerbino, e mais tarde por mim,quando deixei a curadoria do festival em 2004, todas as edições dos anos pos-teriores, excetuando 2005, foram contempladas com críticas nos dois jornais. Esua leitura, hoje, traça curiosos percursos de um festival que promovia, a cadaano, estranhamentos poderosos num público que vinha lentamente se formando.

Por outro lado, infelizmente, nenhum dos importantes festivais e mostras queexistiram ou ainda existem na cidade do Rio de Janeiro foram contempladoscom críticas nossas desde seu início ou sem interrupções. O saudoso festivalD ança Brasil, por exemplo, teve sua primeira edição em 1997, com curadoriade Leonel Brum, e foi a principal e muitas vezes a única investida em dança doCentro Cultural do Banco do Brasil carioca. Sua última edição foi em 2004,dando fim a um processo interessante de observação de imbricações entre dançae outras linguagens artísticas, recorte eleito para balizar sua curadoria. De suasoito edições, apenas as dos anos de 2000, 2001, 2003 e 2004 ganharam críticaminha ou da Silvia. E uma inversão outra vez curiosa se deu aí: a partir de suasexta edição, Leonel convidou Silvia para dividir com ele a curadoria do festi-val. E eu, como crítico, passei a criticar o trabalho dela, exatamente o inversode como havia acontecido há alguns anos.

E também os Solos de Dança no SESC, mostra de formato inédito entre nós,e um dos principais eventos de dança do primeiro semestre carioca, que havia

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se iniciado em 2000, pelas mãos de Beatriz Radunsky, só ganharam aprecia-ções críticas nossas a partir do ano de 2002. Desde então, até o ano passado,esta passou a ser uma ação ininterrupta, felizmente.

Mas o Rio de Janeiro contava, sim, com crítica de dança antes de começar-mos, eu e Silvia, em 1999. Nayse López, então editora do Caderno B do Jornaldo Brasil, acumulava também a função de escrever críticas para sua editoria. Efoi justamente Nayse quem me convidou para escrever minha primeira crítica(e única daquele ano), que saiu em dezembro de 1999. A partir de então, passeia, timidamente ainda, dividir com ela esse espaço no Jornal do Brasil, até que,depois de sua saída do jornal em abril de 2001, assumi sozinho o ofício.

Bem, não totalmente sozinho. Nessas trocas incessantes de posição, algumasvezes crítico, algumas vezes curador, surgiu a oportunidade de convidar a pes-quisadora Beatriz Cerbino para que me substituísse no Caderno B, em escritassobre o Panorama ou sobre algum espetáculo a que eu não poderia assistir poruma razão ou outra. Beatriz havia sido minha aluna no Curso de Dança daUniverCidade, e na época em que começou a escrever, me substituindo, em 2001,cursava o mestrado em Comunicação e Semiótica da PUC/SP.

Em nosso segundo ano como críticos de dança, Silvia escreveu 15 textos,e eu, o dobro do que havia escrito no ano anterior, ou seja, apenas dois textos.E no ano seguinte, foram dez da Silvia e eu continuava dobrando minha quan-tidade: quatro textos. Esse número passou lentamente a aumentar, para nós dois.E nossa prática passou a ser uma dinâmica.

Começamos a perceber o que representava o fato corriqueiro, por exemplo,de sentarmos lado a lado em uma estreia. Ou como nossos gestos eram lidosdurante ou após os espetáculos. Cada pequeno gesto. E como nossos textos fo-ram demarcando dois estilos tão diferentes de leituras. E ainda, o que significa-va fazer parte de um rol tão restrito no País de críticos de dança atuantes, queencerrou o ano passado contando apenas com Helena Katz, em São Paulo (OEstado de S. Paulo) e Marcelo Castilho Avellar, em Belo Horizonte (O Estadode Minas).

Formação? Ela se dá ainda em continuidade. Silvia concluiu o mestradoem Artes Cênicas pela UniRio em 2005 e eu, o doutorado em Comunicaçãoe Semiótica pela PUC/SP em 2003. Ambos sobre dança. E ambos os resulta-dos foram publicados. Organizamos livros, participamos de festivais, comis-sões, produzimos eventos e continuamos a dar aulas no mesmo curso supe-rior de dança na UniverCidade. Um repertório que se alarga desde quecomeçou a existir. No caso da Silvia, quando ela tinha 13 anos e, no meu, quandotinha 17. Muita dança de lá pra cá. Muita. E num desses mistérios que noscercam, essa quantidade toda, pelo menos quando se enfrenta a tela vaziado computador ao iniciar a escrita de uma nova crítica, se transforma mila-grosamente em qualidade.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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Esse livro reúne críticas escritas por mim em dez anos. Curiosamente, nes-te ano comemorativo de 2009, uma bailarina rasgou em cena a folha de jor-nal que estampava uma crítica minha sobre seu espetáculo. Todas as leiturasde atos que se desdobram: algumas mais elegantes, outras mais emergenciais.Todas legítimas.

Entre tantos erros e acertos, os textos aqui apresentados contam um poucoda história e da percepção dessa história da dança entre nós, moradores da ci-dade do Rio de Janeiro, ou apenas brasileiros. Para tanto, resolvi manter mi-nhas versões originais dos textos. Assim, algumas vezes, temos uma misturainteressante de títulos e legendas tal como figuram nos jornais e textos em ver-sões que muito diferem daqueles publicados. Ou mesmo textos que seriam mes-clados com outros textos de autoria de jornalistas, especialmente em balançosde fim de ano, e que aparecem aqui apenas nas versões escritas por mim. Estaera, finalmente, a (única?) chance de eles serem lidos como foram concebidosoriginalmente. Resolvi também trazer aqui críticas que, por uma razão ou ou-tra, não foram publicadas.

Ao leitor, resta meu pedido de lembrar, sempre, que se trata aqui não maisapenas da crítica de dança, que tem tantas qualidades quando estampada nosuporte do jornal. Mas, antes, trata-se de um registro de um registro e, como tal,só poderia existir admitindo seu recorte e as falibilidades decorrentes dele, assimcomo assumindo as especificidades deste outro suporte, um livro.

Bom diagrama a todos. Um outro jeito absolutamente legítimo de se fazerdança se inicia na página seguinte.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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1999 CRÍTICAS

O GLOBO – 9 DE OUTUBRO DE 1999

O palco como lugar de ação vigorosa e incessanteSILVIA SOTER

O GLOBO – 22 DE OUTUBRO DE1999Domínio raro do tempo e do espaço em cena

SILVIA SOTER

O GLOBO – 25 DE OUTUBRO DE1999Duelo entre música, palavra falada e dança na apresentação da Quasar

SILVIA SOTER

O GLOBO – 29 DE OUTUBRO DE 1999Novos significados para o corpo e para a dança

SILVIA SOTER

O GLOBO – 1 DE NOVEMBRO DE 1999Palco de discussão da dança de hoje

SILVIA SOTER

O GLOBO – 2 DE NOVEMBRO DE 1999Criadores aprofundam pesquisas em cena

SILVIA SOTER

O GLOBO – 10 DE NOVEMBRO DE 1999O mito de Antígona olhado pela metade

SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL – 3 DE DEZEMBRO DE 1999Um bom presente de Natal

ROBERTO PEREIRA

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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O palco como lugarde ação vigorosa e incessante

Coreógrafa é muito literal em alguns momentos,mas realiza seu espetáculo mais completo

SILVIA SOTER

asa, da Cia. Deborah Colker, não é um

“lar, doce, lar”, íntimo espaço de tran-

quilidade. A casa de Deborah Colker é lu-

gar de ação mágica, vigorosa e incessante.

Se em seus espetáculos anteriores o olhar

do espectador era desviado, como que para

amenizar o impacto criado pela arquitetu-

ra, em Casa, a coreógrafa assume a força do

espaço arquitetônico de sua proposta, sem

esvaziá-lo com situações periféricas. É nes-

ta casa-estrutura – excelente realização de

Gringo Cardia, iluminada com primor por

Jorginho de Carvalho – que os bailarinos

constroem sua dança, enquanto a casa se

movimenta, recriando planos, desvendando

entranhas, se reinventando.

Para a coreógrafa, estar em casa é agir,

ação que segue os traços do homem moder-

no de Baudelaire. No corpo de seus bailari-

nos, os gestos do cotidiano de uma casa se

desenrolam, descrevendo os espaços que

ocupam. A ênfase se dá no fazer. No entan-

to, o mergulho da coreógrafa nos gestos ba-

nais do cotidiano de uma casa resulta, em

alguns momentos, numa certa literalidade.

Ao fazer e ao mostrar o que está sendo fei-

to, Deborah restringe-se, mantendo-se exa-

geradamente fiel à sua proposta inicial. O

mesmo acontece com o uso que a coreógra-

fa faz da técnica clássica que surge não como

ferramenta de construção de uma corporei-

dade própria e sim como elemento que se

infiltra para legitimar, desnecessariamen-

te, a evidente capacidade técnica de sua

companhia. Um dos momentos mais fortes

do espetáculo se revela, sem ser exposto:

através da janela, vislumbra-se o belíssimo

duo de Deborah e Jacqueline Mota.

Casa é, sem dúvida, o espetáculo mais com-

pleto desta companhia que confirma que a dan-

ça se faz espetáculo a espetáculo, com compe-

tência, meios de realização e muito trabalho.

C

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 99999 DE OUTUBRO • 1999 DE OUTUBRO • 1999 DE OUTUBRO • 1999 DE OUTUBRO • 1999 DE OUTUBRO • 1999

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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eitraum – The space of time, de Rui

Horta, espetáculo baseado nos traba-

lhos do arquiteto holandês Rem Koolhaas e

em Seis propostas para o próximo milênio,

de Italo Calvino, fala de experiências do

homem com o tempo. Se as dimensões tem-

po e espaço são raramente dissociáveis em

Rui Horta, uma se transforma na outra e o

tempo se materializa no espaço da cena.

É o próprio coreógrafo quem assina a ceno-

grafia e a iluminação do espetáculo.

A cenografia se oferece como partner para

os seis bailarinos e se impõe, hipnoticamente,

aos olhos do espectador. Correndo veloz no

fundo da cena, um rio caudaloso constrói um

eixo horizontal durante todo o espetáculo: o

tempo contínuo. Colunas de alumínio, símbolo

de leveza e tecnologia, são fixadas, pelos baila-

rinos, verticalmente no cenário: o marco do ins-

tante. Em cena, um cubo transparente cheio de

água: desejo humano de aprisionar o tempo,

tentativa de interromper o fluxo deste rio de

continuidade. É em torno dos objetos de cena

que se tecem os laços entre os bailarinos.

Os seis bailarinos constroem trajetó-

rias próprias, deslocando-se em órbitas

PANORAMA/RUI HORTA

Domínio raro do tempoe do espaço em cena

SILVIA SOTER

individuais. As relações entre os bailarinos

se dão a partir de provocações físicas, e as

órbitas se chocam para, em seguida, inte-

ragirem. Por instantes, os bailarinos aban-

donam suas órbitas e, sem perderem seus

caracteres múltiplos, realizam a experiên-

cia da simultaneidade. A movimentação

dos corpos é contínua, como o rio do fundo,

no limiar de um eterno desequilíbrio. Atra-

vés dos corpos dos bailarinos, aos pares

tempo-espaço, natureza-tecnologia, se

associam desequilíbrio-suspensão.

Italo Calvino propôs elementos que acre-

ditava merecem lugar de destaque no mi-

lênio que se anuncia. Leveza, rapidez, exa-

tidão, visibilidade e multiplicidade se apre-

sentam como características a serem perse-

guidas. Rui Horta traz esses elementos para

a dança. Nesta obra, as propostas de Calvi-

no emergem, visivelmente, nas dimensões

tempo e espaço. Talvez menos visíveis, flu-

xo e peso se colocam como dimensões cen-

trais. Merece destaque o domínio que esta

companhia faz do fluxo e do peso. Domínio

raro e absoluto: base da dança contemporâ-

nea e talvez sua tarefa mais difícil.

Z

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE OUTUBRO • 1999RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE OUTUBRO • 1999RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE OUTUBRO • 1999RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE OUTUBRO • 1999RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE OUTUBRO • 1999

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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oreografia para ouvir, da Quasar Cia.

de Dança, foi o espetáculo mais mar-

cante, dentre os brasileiros, nesta primeira

semana do 8° Panorama RioArte de Dança.

Na criação de Henrique Rodovalho, mú-

sica e dança se provocam, como um desa-

fio dos repentistas nas feiras nordestinas,

com execução preciosa de seus quatro

bailarinos. No confronto música, palavra

falada e dança, desfilam as tensões entre

cidade e interior, entre popular e erudito.

O coreógrafo ousou e acertou ao limpar a

cena, livrando-se da ambientação pesada,

que, em geral, acompanha o trabalho de

Rodovalho, e fez uma obra delicada, pre-

cisa e competente.

A noite de quinta-feira foi aberta por

Recorrência: Quasi instante, da Paulo Man-

tuano Cia. de Dança. O coreógrafo busca des-

pertar no espectador a sensação do déjàvu,

se utilizando de imagens gigantescas proje-

tadas no fundo do palco que se repetem e se

fundem à presença dos bailarinos em cena.

Essa ideia, no entanto, vai se dissolvendo e

perde a sua força inicial. Os bailarinos ainda

não parecem se adequar à qualidade de

Duelo entre música, palavra falada edança na apresentação da Quasar

Panorama/Brasileiros: Primeira semana é marcadapor boas ideias nem sempre bem executadas

SILVIA SOTER

movimentação imposta pela coreografia, e

Paulo Mantuano, bailarino vigoroso, aprovei-

ta pouco suas qualidades em cena.

Criaturas, de Michel Groisman, abriu a

noite sexta-feira. Fronteira entre o Body-

Art, a instalação e a dança, a perfomance

sai da galeria e ocupa o palco. Os dois

performers-bailarinos mostram um con-

trole eficiente de seus corpos no difícil

deslocamento imposto pelo aparato de

fios, rodas, metais e lâmpadas. O contato

entre os dois se dá de modo pontual, cri-

ando formas circulares que, ao fecharem

o circuito elétrico, acendem pequenas lâm-

padas. Apesar do forte impacto plástico da

performance, alguns ajustes são necessá-

rios para transportar este trabalho da ga-

leria para o palco.

Neste final de século marcado pelo olhar

feminino na dança, é um prazer assistir a

Adoniran, da Cia. Três de Paus, de São Pau-

lo. Composto de uma sucessão de esquetes

em torno de Adoniran Barbosa, em que o

aspecto cômico é enfatizado, estes três artis-

tas polivalentes combinam com simplicida-

de a dança, a percussão e o teatro, resultando

C

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 25 DE OUTUBRO • 1999RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 25 DE OUTUBRO • 1999RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 25 DE OUTUBRO • 1999RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 25 DE OUTUBRO • 1999RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 25 DE OUTUBRO • 1999

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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num espetáculo não muito regular, porém

despretensioso, agradável e impregnado de

humor masculino.

Os excelentes bailarinos Priscilla Tei-

xeira e André Vidal se convertem em co-

reógrafos e apresentam Um passo a dois.

Uma barra, objeto emblemático das au-

las de balé clássico, vai sendo construí-

da no meio da cena enquanto o espelho

é sugerido pela movimentação simétri-

ca dos bailarinos. Numa tentativa visível

de mergulhar no universo da dança, eles

acabam ficando presos às suas trajetóri-

as pessoais como bailarinos, com refe-

rências explícitas a estilos e a momentos

históricos.

Encerrando a noite de sábado, Lara

Pinheiro e Marcos Gallon visitam a dança-

teatro. O teatro do absurdo, de Ionesco, ser-

ve de pano de fundo para Alice. Uma cena

construída dentro da cena e a iluminação

sugerem um certo distanciamento. No en-

tanto, nesta criação, dança e teatro conta-

minam-se pouco e os bailarinos se

limitam a alternar situações teatrais, sem-

pre ligadas ao texto e aos objetos de cena,

com boas sequências de dança como, por

exemplo, o duo final.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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ão é fácil assistir a Nom donné par

l’auteur de Jérôme Bel, apresentado

quarta-feira no Teatro Carlos Gomes. Em

cena, não se encontram as referências habi-

tuais das situações de representação. Se,

neste século, a dança foi se desligando, pou-

co a pouco, de seus pares históricos como a

música, a ambientação cenográfica ou ainda

a narrativa, o corpo que dança preservou

uma tonicidade particular, um compromisso

específico com o espaço e com o movimento.

Em Nom donné par l’auteur, esta última refe-

rência é, aparentemente, abandonada. O es-

pectador desavisado pode ainda se pergun-

tar se o que vemos é dança, ou simplesmen-

te tentar resolver seu incômodo, classifican-

do o espetáculo como não dança. No entanto,

é na atitude contrária, na busca daquilo que

pertence à dança dentro da obra, que é possí-

vel se aproximar do trabalho de Jérôme Bel.

Com gestos simples, precisos e sem afeta-

ção, os dois bailarinos manipulam diversos

objetos de uso cotidiano. Nada é deixado ao

Novos significados parao corpo e para a dança

Panorama/Jérôme Bel: Objetos são centro da ação

SILVIA SOTER

acaso, há um forte sentido de composição no

agenciamento espacial e na relação dos ob-

jetos entre si. Escolhidos criteriosamente, mais

do que simples partners, os objetos estão no

centro da obra. Mesmo quando em total imo-

bilidade, estão impregnados de movimento.

No vazio da cena, eles ganham posições cam-

biantes e evocam ações potenciais que se as-

sociam. Quando a bola de futebol se relacio-

na com os patins de gelo, por exemplo, rolar e

deslizar se combinam e percebemos que pode

haver dança nesta confrontação imóvel e or-

ganizada. Um bailarino se põe em equilíbrio

instável sobre a bola de futebol, sobre a sua

cabeça pesa, literalmente, um dicionário Le

petit Robert, ícone da língua francesa: movi-

mento e significado. A dança toma corpo nos

objetos, enquanto os objetos tomam empres-

tado do corpo a intimidade com a dança.

Bel é exigente com seu espectador. Para

descobrir a riqueza que há em sua obra é

preciso deixar que o pensamento se organi-

ze em dança.

N

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 29 DE OUTUBRO • 1999 • 29 DE OUTUBRO • 1999 • 29 DE OUTUBRO • 1999 • 29 DE OUTUBRO • 1999 • 29 DE OUTUBRO • 1999

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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participação brasileira na segunda se-

mana do 8° Panorama RioArte de

Dança começou com a apresentação de

Formless, de Martha Soares. Com uma forte

marca do butô, esta obra investiga o corpo

desarticulado. As bailarinas lembram bone-

cas eróticas, marionetes abandonadas pelo

marionetista, tentando desenvolver suas

ações e deslocamentos por conta própria,

enquanto do alto caem fios de seda. É em

cima da segmentação que os movimentos se

constroem, na impossibilidade de se atingir

o equilíbrio vertical para, enfim, ganhar

autonomia. Martha Soares mantém sua pro-

posta até o fim, num espetáculo bem acaba-

do e com densidade dramática.

O exílio está no centro de Terras, de Esther

W eitzman. A coreógrafa apoia sua obra em

um forte sentido de conjunto e respiração. Os

deslocamentos do grupo ganham sentido de

território itinerante enquanto elementos in-

dividuais se afastam e se aproximam. Esther

tem no aproveitamento do espaço o ponto for-

te deste trabalho, mesmo quando a proposta

exige uma capacidade dinâmica que o grupo

não é sempre capaz de garantir.

Palco de discussãoda dança de hoje

Panorama/Brasileiros: Diferentes investigaçõesfemininas marcam a segunda semana do festival

SILVIA SOTER

D(K) IN MC, de Gícia Amorim, são dois

solos em um. No primeiro, Gícia explora o

lugar do acaso na organização, e no segun-

do, mais interessante, ela incorpora a influên-

cia da gestual cotidiana à primeira lingua-

gem. Na forma de composição e na quali-

dade de movimentação, se reconhece a pre-

sença do universo de Merce Cunningham,

referência forte demais que dificulta a

transformação deste material em algo

mais pessoal.

Cristina Moura, presença marcante no

Panorama do ano passado, no Les Ballets C.

de la B., volta este ano como coreógrafa com

Pourquoi c’est toujours moi. Dividindo o

palco com a engraçada Tamayo Okano, Cris-

tina faz um exercício coreográfico aos mol-

des do C. de la B., com passagens delicadas

e divertidas.

Em Alaska, de Andréa Maciel, pela pri-

meira vez nesta semana, homens e mulhe-

res se encontram no palco do Panorama.

Espetáculo desenvolvido a partir do exer-

cício apresentado no ano passado, Alaska

discute em cena o efeito do frio. Ao explo-

rar gestos contidos do corpo congelado,

A

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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Andréa Maciel circula por terreno desco-

nhecido já que sua dança se baseia, em

geral, na sua grande capacidade explosi-

va. Com momentos interessantes, em que

o derreter e o descongelar criam uma bela

qualidade tônica nos bailarinos, o fio con-

dutor de Alaska se encontra mais na am-

bientação cenográfica do que na coreo-

grafia em si.

Nesta oitava versão, o Panorama se afir-

ma como fórum de discussão sobre a dança

que se faz hoje, suas diversas superfícies de

contato e possibilidades de definição. Este

ano, a dança não só esteve presente no pal-

co, mas também nos produtivos encontros

teóricos e workshops. O festival vai encerran-

do o seu oitavo ano, confirmando seu lugar

de destaque no cenário carioca da dança.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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Criadores aprofundampesquisas em cena

Panorama/Noite carioca: Conjunto não decepciona

SILVIA SOTER

esperada Noite carioca não decep-

cionou o público que lotou o Teatro

Carlos Gomes, anteontem, na última noi-

te do 8° Panorama RioArte de Dança. Em

Nato, da Cia. Dani Lima, a coreógrafa se

desliga de referências circenses e mergu-

lha fundo em outras possibilidades de sua

dança nas alturas. Neste trabalho, o tecido

é utilizado como suporte vertical, lugar de

retorno e repouso, cordão umbilical. Os

oito bailarinos, inicialmente presos ao

alto, ao tocarem o chão, buscam no outro a

ilusão da completude, se encontram em

pares, para, em seguida, se recolherem na

solidão do tecido. A música ao vivo, de

Felipe Rocha, aumenta o clima envolvente.

Dos filhos deste solo és mãe gentil, pátria

amada, Brazil, de João Wlamir, começa

como uma provocação em torno do hino e

da bandeira nacional. A pedido de um apre-

sentador, a plateia se levanta para cantar o

hino, enquanto, em cena, a truculência é re-

presentada pelas contorções de um haltero-

filista. Pelo nível da provocação inicial, se

espera um espetáculo à altura deste primei-

ro impacto. No entanto, não há uma propos-

ta clara e o coreógrafo faz um trabalho des-

costurado e gratuito, que desperdiça a bela

presença de Renata Versiani.

O Atelier de Coreografia, companhia

dirigida por João Saldanha, fechou com

competência a última noite do Panorama.

Primeiro foi a vez de Um só trio, coreo-

grafia assinada por Frederico Paredes. Três

bailarinas (Laura Sämi, Olívia Secchin e

Isabel Stewart) partilham o espaço da cena

numa partitura coreográfica bem constru-

ída e muito bem dançada. É interessante

perceber que o coreógrafo, cocriador da

Cia. Ikswalsinats, já possui elementos pró-

prios à sua linguagem gestual, reconhecí-

veis nesta obra.

Três meninas e um garoto, de João Sal-

danha, é um relato delicado e íntimo. Em off,

a presença do jornalista João Saldanha, pai

do coreógrafo, aumenta o clima pessoal do

solo dançado por Marcelo Braga.

A cenografia e a iluminação fecham o

espaço, criando uma mancha vermelha que

delimita as possibilidades de deslocamen-

to do bailarino. Marcelo Braga realiza com

sutileza e inspiração sua dança solitária,

A

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 2 DE NOVEMBRO • 1999• 2 DE NOVEMBRO • 1999• 2 DE NOVEMBRO • 1999• 2 DE NOVEMBRO • 1999• 2 DE NOVEMBRO • 1999

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

3 5

numa coreografia que se apoia na simplici-

dade e na clareza da movimentação.

A Noite carioca mostrou que a criação

coreográfica exige um compromisso sério

e rigoroso, que passa pelo aprofundamento

das questões colocadas em cena e pela com-

preensão de que a dança é algo mais do que

uma simples sucessão de passos.

Durante duas semanas de intenso tra-

balho, 18 companhias desfilaram pelo

palco do Teatro Carlos Gomes, além das

mesas redondas, workshops e master clas-

ses. Apesar do orçamento reduzido deste

ano, o Panorama manteve o compromis-

so com a qualidade dentro da variedade

e trouxe para cena olhares múltiplos e

manifestações diversas. Num ano marca-

do por poucas estreias cariocas, o Pano-

rama concentrou o que há de novo na

dança do Rio de Janeiro.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

3 6

O mito de Antígonaolhado pela metade

Passion: Obadia só mostra a visão de Creonte

SILVIA SOTER

pós 20 anos de parceria na criação

coreográfica, Joëlle Bouvier e Régis

Obadia, pela primeira vez, assinam obras in-

dependentes. Em estúdios separados, com

equipes diferentes, os dois criadores do

L’Esquisse se debruçaram sobre o mito de

Antígona, fechando, assim, um ciclo de pes-

quisa sobre a tragédia de Sófocles. Esta

produção paralela resultou em Fureurs

e Passion, dois espetáculos aparentemente

autônomos, realizados por Bouvier e Obadia,

respectivamente. Apesar da separação no

processo de criação, os dois espetáculos têm

sido apresentados ao público, em sequência,

numa mesma noite. Infelizmente, o público

carioca não foi contemplado com as duas

criações, assistindo somente a Passion, ante-

ontem à noite, no Teatro Odylo Costa Filho,

na Uerj, dentro do Festival de Dança do Rio.

Nesse espetáculo, Obadia discute, atra-

vés de Antígona, a questão do poder e de

suas diferentes formas de abuso. Na concep-

ção do coreógrafo, os homens estão no cen-

tro de Antígona. O palco se transforma em

arena onde Obadia, na pele de Creonte, con-

trola a cena e manipula, literalmente, as

personagens femininas. A ambientação e os

figurinos sugerem o caráter atemporal do

mito, buscando o que pode haver de atuali-

dade em Antígona. O coro de anciãos con-

firma em eco os gestos de Creonte. As dife-

rentes personificações de Antígona surgem

como fantasmas da mente deste Creonte

contemporâneo, mulheres-objeto sem o po-

der da palavra ou do grito, mesmo quando o

microfone lhes é oferecido. A voz do meni-

no Pierre-Jean Camillo serve de contrapon-

to à atmosfera de opressão e é responsável

por belos momentos do espetáculo.

Com exceção da forte presença de Régis

Obadia como Creonte, o elenco masculino

não sustenta sua participação com o vigor

necessário. As três bailarinas imprimem be-

leza e sensualidade aos diferentes momentos

desta Antígona provocante, porém submissa.

O caráter trágico se encontra na impos-

sibilidade de conciliar duas verdades, duas

visões, dois projetos antagônicos. Ao se co-

lar à voz de Creonte, Passion traz apenas

metade da obra. Cabe ao público carioca

imaginar o olhar que oferece Fureurs, a co-

reografia assinada por Joëlle Bouvier.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

3 7

Um bompresente de Natal

ROBERTO PEREIRA

volta do balé O quebra-nozes (em

cartaz mais duas semanas) ao palco

do Theatro Municipal do Rio de Janeiro

garante a possibilidade de contar com um

dos símbolos mais representativos do espí-

rito natalino em quase todo o mundo. Tal

como a já popular árvore de Natal, este balé

já faz parte de um ritual de comemorações

há mais de um século e passa agora também

como uma luva à louvável proposta de Da-

lal Achcar, diretora do teatro e sua coreó-

grafa, de formação de um público para este

tipo de espetáculo.

Sua estreia, na última sexta-feira, foi es-

pecial. Os primeiros bailarinos proporcio-

naram à plateia momentos de perfeição téc-

nica e exata medida de um estilo nobre que

o balé requer. Cecília Kerche e Marcelo

Gomes formaram um par coeso, elegante.

Ela mostra um amadurecimento ímpar e

sua carreira e faz uso de apurada técnica e

de suas belas facilidades físicas para com-

por uma Fada Açucarada perfeita. Já Mar-

celo Gomes, ainda muito jovem, prova que

é dono de um porte nobre imprescindível

aos príncipes dos grandes balés de repertó-

rio e sua dança deixa que se observe a ple-

na potencialidade em vir a ser um grande

primeiro bailarino.

Renata Versiani e Thiago Soares, na

Dança Espanhola do segundo ato, encabe-

çam a lista de ótimos solistas da casa e pro-

vam que novas gerações de primeiros bai-

larinos estão sendo muito bem preparadas

dentro da companhia. Vale ainda citar o

desempenho do corpo de baile e das ótimas

participações dos alunos da Escola Maria

Olenewa, principalmente no primeiro ato

como os ratinhos. Esta sim é uma formação

sólida de bailarinos que desde cedo têm

oportunidade de pisar no palco e conviver

com bailarinos já formados.

Entretanto, tal como a árvore de natal, O

quebra-nozes sempre corre o risco de esva-

ziar-se como símbolo e se tornar mero en-

feite. Causa disso é o excesso. É neste limiar

de figurino e cenário que viram “fantasia”,

para usar um termo empregando indistin-

tamente por pequenas escolas de dança em

seus espetáculos de fim de ano, que trafegam

as criações de Jose Varona. Se acerta no pri-

meiro ato, compondo uma bela sala onde a

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

3 8

festa de natal acontece, e lançando mão de

ótimos efeitos especiais, erra a mão no

segundo ato, tanto no cenário quanto na

maior parte dos figurinos. Principalmente

na tão popular Valsa das flores, o quase

excesso de cores e detalhes chega a compro-

meter a coreografia acertada de Dalal

Achcar. A qui, a exuberância natalina já está

na música e na dança e qualquer outro elemento

cênico deve apenas contribuir para esta coe-

são coreográfica, sem roubar-lhe a atenção.

Sem dúvida este foi um grande presen-

te de Natal para os cariocas. E até mesmo

esses pequenos excessos permitem que se

pergunte se não vale mesmo a pena pro-

porcionar ao público momentos tão mági-

cos, seduzindo-o com cores e formas den-

tro deste imaginário que o Natal recria to-

dos os anos.

Formação de plateia precisa destes

recursos, claro. Mas, tratando-se de esva-

ziamento de símbolos, tal como a árvore

de Natal que vira enfeite, espera-se que

este balé possa servir como um convite

para que os olhos do público se tornem

cada vez mais aguçados para os espetácu-

los de seu Theatro Municipal. E isto, mais

do que qualquer outra coisa, é uma obri-

gação que pode também virar um presen-

te de Natal.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

3 9

2000 CRÍTICAS

JORNAL DO BRASIL – 25 DE MARÇO DE 2000A hora de sair do corpo

ROBERTO PEREIRA

O GLOBO – 8 DE ABRIL DE 2000Encontro de épocas ilustrado pelo contraste entre força e romantismo

SILVIA SOTER

O GLOBO – 8 DE ABRIL DE 2000Acertos e ruídos em dois diálogos com o teatro

SILVIA SOTER

O GLOBO – 22 DE ABRIL DE 2000A afinação de várias influências

SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL – 1 DE MAIO DE 2000Crescimento evidente

ROBERTO PEREIRA

O GLOBO – 6 DE MAIO DE 2000Ator descobre a geometria do espaço

SILVIA SOTER

O GLOBO – 26 DE MAIO DE 2000Emoção do flamenco em atmosfera clean

SILVIA SOTER

O GLOBO – 7 DE JUNHO DE 2000Genialidades coreográficas a serviço do amor

SILVIA SOTER

O GLOBO – 10 DE JUNHO DE 2000Recursos evidenciam fragilidade da dança

SILVIA SOTER

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

4 0

O GLOBO – 4 DE JULHO DE 2000Danças que coabitam mas não se misturam

SILVIA SOTER

O GLOBO – 14 DE JULHO DE 2000Dança feita de ideias, corpos e indignação

SILVIA SOTER

O GLOBO – 17 DE AGOSTO 2000Trilha de Arnaldo Antunes inaugura novos caminhos físicos e urbanos

SILVIA SOTER

O GLOBO – 22 DE SETEMBRO 2000A experiência da dança como vertigem

SILVIA SOTER

O GLOBO – 19 DE OUTUBRO DE 2000Plischke sacode a percepção do espectador

SILVIA SOTER

O GLOBO – 27 DE OUTUBRO 2000Distintas artes e culturas ganham novo território

SILVIA SOTER

O GLOBO – 31 DE OUTUBRO DE 2000Panorama se firma como palco do debate sobre dança

SILVIA SOTER

O GLOBO – 27 DE NOVEMBRO DE 2000Novos balés de Béjart provocam saudades das criações dos anos 70

SILVIA SOTER

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

4 1

A hora de sairdo corpo

Assinatura impressa no outro

ROBERTO PEREIRA

alvez a questão mais pertinente para

quem acompanha a trajetória da bai-

larina e coreógrafa Ana Vitória, colocada

em seu mais novo espetáculo 1, segundo...,

estreado na quinta-feira, seja a questão da

assinatura. Essa é a pergunta que hoje se faz

quando a construção de um vocabulário em

dança esbarra naquilo que facilmente seria

chamado de repetição.

A pesquisa que Ana Vitória traz em sua

dança é uma pesquisa assinada em seu cor-

po. Desde que decidiu não mais trabalhar

em solos e construir sua linguagem de mo-

vimentos em outros corpos, a coreógrafa

experimentou o desafio da tradução: como

aquele outro entende o que antes estava

apenas em mim? Passado o susto, o que se

vê agora é um quase domínio conquistado

de ver o outro dançando sua assinatura. E é

justamente aí que nasce um outro perigo.

A dança, basicamente frontal, mas, mesmo

assim, coreograficamente bem resolvida de

Ana Vitória, traz como marca uma constru-

ção de espaço alojada em seu próprio corpo.

Não é um espaço-fora, é um espaço na exati-

dão muscular, cineticamente preciso, que faz

do corpo que dança o lugar de gestos peque-

nos, milimetricamente eficazes. A coreógrafa

já mostrou saber dominar este recurso, que faz

sua dança ser reconhecida como sua. Talvez

agora seja justamente o momento de ela no-

vamente experimentar o desafio de um não

saber, apenas para ampliar seu vocabulário.

Por isso mesmo um dos pontos altos do

espetáculo seja o solo da bailarina Andréa

Bergallo. Única integrante da formação ini-

cial da companhia, Bergallo movimenta-se

segura pelas minúcias anavitorianas, conse-

guindo agora ter a vantagem de ter como

seu o movimento. Os outros dois bailarinos,

Mariana Lobato e Cláudio Ribeiro, excelen-

tes, carecem justamente deste equilíbrio e

isto, com certeza, é mera questão de tempo.

E este equilíbrio talvez deva se alcança-

do também através de outros elementos

importantes do trabalho desta coreografia,

como a trilha sonora (que um dia deveria

ser especialmente composta para ela) e os

figurinos, cujo grande volume contrasta com

a fineza do movimento.

Hoje, na dança contemporânea, poder

ler no corpo do bailarino a ideia do coreó-

grafo é tarefa que deve levar em conta a

pluralidade coevolutiva deste corpo. E des-

ta ideia, Ana Vitória, neste seu novo espetá-

culo, prova que aprendeu esta lição.

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JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • SÁBADO SÁBADO SÁBADO SÁBADO SÁBADO • 25 DE • 25 DE • 25 DE • 25 DE • 25 DE MARÇOMARÇOMARÇOMARÇOMARÇO • 2000 • 2000 • 2000 • 2000 • 2000

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

4 2

Encontro de épocas ilustrado pelocontraste entre força e romantismo

Balé de Hamburgo: Em Sylvia, Neumeierbusca expandir seu vocabulário

SILVIA SOTER

em sombra de dúvida, o Balé de Ham-

burgo, sob a direção de John Neumeier,

é sinônimo de qualidade. A companhia alia

domínio técnico irretocável com uma bela

presença cênica. A temporada no Municipal

se encerra hoje, com a apresentação de três

coreografias.

Sylvia, primeiro programa da turnê brasi-

leira, apresentado na quinta-feira, é uma re-

leitura do balé homônimo do coreógrafo fran-

cês Louis Mérante, com música de Delibes,

que estreou na Ópera de Paris em 1876. No

original, Sylvia, ninfa de Diana, a caçadora, se

divide entre a fidelidade à castidade guerrei-

ra de Diana e o amor por Aminta. Neumeier,

como já havia realizado em A bela adormeci-

da, traz referências contemporâneas para a

cena e, sem a preocupação de manter-se fiel à

narrativa, transforma a ninfa em atleta que se

divide entre a força e o abandono ao amor. Os

cenários e figurinos de Yannis Kokkos refor-

çam a localização da ação nos dias de hoje.

Em dança, cada vez que uma peça de re-

pertório é remontada, pode-se considerar que

há uma releitura. Por mais fiel que a remon-

tagem se pretenda, são corpos de outros bai-

larinos que serão atravessados pela coreo-

grafia e que traduzirão para o público o en-

contro entre dois tempos: o momento da cri-

ação da peça e o instante da cena. Este tal-

vez seja o ponto mais delicado e o mais inte-

ressante do espetáculo de Neumeier. É evi-

dente que o coreógrafo investe seriamente

na busca da expansão de seu vocabulário

coreográfico. No primeiro ato, a movimenta-

ção das caçadoras e de seus arcos imprime

uma tonicidade especial no trabalho de bra-

ço das bailarinas. O contraste entre a força

do gesto concreto dos arcos e os ports-de-bras

românticos do solo de Diana ilustra este en-

contro de épocas na própria técnica clássica.

No entanto, os cenários despojados não

alcançam a quase abstração pretendida.

Apesar de um belo uso das cores na ilumi-

nação, a presença das árvores e a lua proje-

tada no telão servem, paradoxalmente,

como excesso de referências. Os figurinos,

principalmente nos segundo e terceiro atos,

buscam situar de modo redundante a ação.

Sylvia, de John Neumeier nos mostra, em

vários momentos, que o distanciamento das

referências do balé original é apenas apa-

rente. Ainda existe a busca de traduzir a

história para se fazer compreender. Se, mui-

tas vezes, importantes peças do repertório

clássico tiveram suas entranhas revisitadas

por coreógrafos contemporâneos, em Sylvia

é, sobretudo, na superfície que o novo habita.

S

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

4 3

Acertos e ruídos em doisdiálogos com o teatro

SILVIA SOTER

Dança Brasil investiga neste ano o en-

contro entre a dança e o teatro. Neste

sentido, o programa de estreia é exemplar:

Slices, de Renata Mello, e A solidão procla-

mada, de Sandro Borelli, já apontam para

importantes e arriscados aspectos dessa re-

lação delicada.

Renata Mello abre a noite se dirigindo ao

público e colocando os alicerces da questão

conceitual que se apresenta: quando e como

dança e teatro se articulam. Em Slices, fusão

de dois solos da coreógrafa e intérprete, Re-

nata mergulha mais uma vez na banalidade

das prosaicas situações cotidianas. A utiliza-

ção frontal do espaço da cena cria uma apro-

ximação entre palco e plateia e, aos poucos,

os diferentes solos vão sendo transformados

pela presença de um outro, ora o público cúm-

plice, ora desdobramentos do corpo da intér-

prete. Aqui a palavra falada é tratada ape-

nas como mais um recurso de que a artista se

apropria com segurança, já que é através de

seu corpo que a cena fala. Com humor e pre-

cisão, ela realiza um espetáculo simples e

competente. A tentativa de enquadrar seu

trabalho em dança, teatro ou na fusão de

ambos interessa pouco. O ótimo resultado não

exige explicações.

Já em A solidão proclamada, de Borelli,

em vez de libertador, o diálogo entre dança

e teatro revela seus limites. Um pequeno

aquário em cena, onde dois peixes doura-

dos nadam em círculo, serve como metáfo-

ra da própria obra. A fragilidade do texto e

o compromisso com uma linha narrativa

funcionam como prisão. As intérpretes se

apoiam numa carga dramática que não se

sustenta, e a dança – ou melhor, sequências

coreográficas que se encaixam desajeitada-

mente nos intervalos do texto – se perde.

Aqui, dança e teatro se revezam em cena,

permanecendo universos estanques.

O

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

4 4

A afinação de várias influênciasFulyô/Dos à Deux: Dupla mostra amadurecimentona relação entre teatro, dança, música e mímica

SILVIA SOTER

iversos resultados são produzidos apartir do encontro do teatro com as

outras artes da cena. Na terceira semana doDança Brasil, que este ano investiga as fron-teiras entre a dança e o teatro, Dos à Deux éum exemplo competente de uma possível in-

terface: o Teatro Gestual. O espetáculo tem

apresentações hoje e amanhã no Centro

Cultural do Banco do Brasil.

Fulyô, embrião de um espetáculo comestreia marcada para outubro de 2001, re-

sultado da pesquisa de André Curti e de Ar-

tur Ribeiro em hospitais psiquiátricos, abre a

noite abordando o universo da loucura. Da

caracterização dos intérpretes à ambienta-

ção cenográfica, tudo em Fulyô é cuidadocom requinte. Como intérpretes, André Cur-

ti e Artur Ribeiro exploram seus inúmeros

recursos corporais com domínio absoluto. Por

seus corpos desfilam a mímica, a música, o

sapateado; e a dança surge apenas como mais

um dos elementos investigados.

Mas em Fulyô, o maior impacto se deveao perfeito uso da musicalidade dos gestos,

em que cada movimento, silêncio ou ruído

contribui para a construção de uma bela e

sofisticada partitura gestual. Teatro, dança,

música e mímica tecem interfaces porosas.Depois que Fulyô termina, deixando claroque é apenas um work in progress, fica a sen-sação de que ainda há muito por vir.

Em seguida, é a vez de Dos à Deux, es-petáculo completo, que deu nome à compa-nhia, já tendo sido apresentado em váriospaíses. O fato de assistir aos dois trabalhosem seguida levanta, inevitavelmente, algu-mas questões.

Com referências explícitas a EsperandoGodot, de Beckett, dois vagabundos se pro-vocam enquanto esperam. Em Dos à Deux,há a preocupação de delinear as personagense suas relações. O espetáculo se apoia naexploração exaustiva dos gestos realizadospelas personagens na espera. Nada é gra-tuito, e nada se desvia desta rigorosa pes-quisa. No entanto, em Dos à Deux, uma certaregularidade se instala, sobretudo no uso damúsica, que sempre intervém nos momentosde maior liberdade de movimentação, redu-zindo o impacto que a dupla de criadores eintérpretes imprime na plateia. No promis-sor Fulyô, o perfeito trânsito entre teatro,dança, música e mímica mostra que, feliz-mente, esta questão já pôde ser resolvida.

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

4 5

Crescimento evidente

ROBERTO PEREIRA

uem assistiu ao espetáculo Truveja pra

nóis chorá da Verve Cia. de Dança nes-te fim de semana, dentro do evento DançaBrasil, no Centro Cultural do Banco do Bra-sil, teve a oportunidade de presenciar um dosbons momentos em que informação e talen-to funcionam como dança. Para quem aindaacompanha a jovem carreira da companhia,desde a última vez que esteve na cidadecom o frágil Terral, em 1998, percebe-secomo saltos evolutivos resultam desta mis-tura de informação e talento.

Se o Dança Brasil deste ano aposta nadiscussão sobre as fronteiras borradas deteatro e dança, encontra neste espetáculo umcampo bastante profícuo de análise. Ali es-tão mesmo o teatro, o circo e, sobretudo, ocinema mudo, mas costurados com uma cer-ta dramaturgia ainda ingênua, que denotaum processo de experimentação. Daí a im-portância da informação.

Falar de informação numa cidade comoCampo Mourão, interior do Paraná, é levarem conta todas as intempéries que permeiama distância do famoso eixo Rio-São Paulodo resto do Brasil. Isto, em dança, deve serainda lamentavelmente elevado ao cubo.Por isso mesmo que assistir a um espetácu-

lo como este é, sem dúvida, uma surpresa.Aí, a importância do talento.

Truveja pra nóis chorá aposta nesseespaço fronteiriço entre teatro e dança,mas descobrindo como isso deve ser acimade tudo uma discussão que acontece nocorpo. Desse modo, Fernando Nunes, queassina a concepção e a direção, é tanto maisfeliz quanto mais economiza nos movimen-tos, deixando que aconteça ali, explosiva-mente, a dramaturgia. Justamente por isso,deveria se livrar aos poucos de um resquí-cio de coreografia “moderninha” de con-tato-improvisação que assolou a produçãodas companhias brasileiras nos últimostempos. É no gesto que serve como materi-al de dança que o teatro respira livre, semservir de legenda.

Assim, neste espetáculo, com seus ótimosbailarinos, com cenário e luz certeiros, a cul-tura popular do interior do Brasil, tema de pes-quisa, é tratada com a ingenuidade da qual elamesma é feita. Qualquer material estranho aisso torna-se desnecessário. Mas reparar nis-so, aprimorando materialidades de dança e te-atro no próprio corpo, como já se pode consta-tar numa companhia como a Verve, é pura-mente questão de tempo. Felizmente.

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JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 1 DE MAIO • 2000• SEGUNDA-FEIRA • 1 DE MAIO • 2000• SEGUNDA-FEIRA • 1 DE MAIO • 2000• SEGUNDA-FEIRA • 1 DE MAIO • 2000• SEGUNDA-FEIRA • 1 DE MAIO • 2000

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

4 6

Ator descobre ageometria do espaço

Pra ver do céu: Luiz Carlos Vasconcelos foivisivelmente seduzido pelos encantos da dança

SILVIA SOTER

Dança Brasil este ano vem mostran-do ao público carioca a pluralidade de

manifestações produzidas no momento em quea dança e o teatro abrem mão de suas especi-ficidades e se contaminam em cena. Dentroda diversidade desses resultados, alguns pon-tos de convergência podem ser identificados:a dança se autoriza a explorar o texto e a pa-lavra falada, a narrativa se permite contarcom a expressão do corpo enquanto suporteou ainda dança e teatro se revezam em diálo-gos isolados. Neste sentido, em Pra ver do céu,

Luiz Carlos Vasconcelos trafega na contramão

das propostas até agora vistas nesta edição do

Dança Brasil, que acontece no CCBB. Constru-

ído por encomenda do festival, Pra ver do céu

mostra o namoro de um homem de teatro com

a dança. O diretor, aqui coreógrafo, aceitou se-

riamente a ousada proposta da curadoria do

Dança Brasil e mergulhou no universo da dan-

ça como um novo campo de possibilidades.

Na base de Pra ver do céu está a geome-

tria do espaço. Partindo de uma rigorosa es-

trutura diagramática, os bailarinos Gera

Dias, Verusya Correia e Yaelle Penkhoss

constroem suas danças. A o diretor coube a

tarefa de extrair de cada bailarino suas

marcas pessoais, ressaltando suas qualida-des tônicas particulares. A partir do materi-al dos bailarinos surge, então, um largo vo-cabulário de pequenos e grandes gestos queora se destacam e se afastam, ora se esbar-ram em simultaneidade. Breves momentosde tensão dramática resultam de duos e tri-os. A presença de Gera Dias e Verusya Cor-reia contribui com eficiência para o espetá-culo. Yaelle Penkhoss, menos madura e ex-periente que seus pares, não chega a com-prometer a boa qualidade da interpretação.

Tendo conseguido escapar do risco daredundância entre teatro e dança, Pra ver

do céu esbarra na difícil – embora aparen-temente óbvia – relação entre a dança e amúsica. Ponto mais frágil do espetáculo, atrilha sonora de Raul Teixeira, a partir damúsica original de Vânia Dantas Leite, ser-ve como referência forte demais.

Luiz Carlos Vasconcelos, ator, palhaço ediretor, se deixou, visivelmente, seduzir pe-los encantos da dança. O encontro entredança e teatro se faz aqui, inevitavelmente,na trajetória deste agora coreógrafo. Discus-sões estéreis à parte, Pra ver do céu é umespetáculo de dança, de boa dança.

O

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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Emoção do flamencoem atmosfera clean

Sensaciones: Espetáculo enfatiza sensualidade

SILVIA SOTER

uando as bailarinas do Sara Baras Bal-

let Flamenco entram em cena, a at-

mosfera já está criada pela forte e envolven-

te música que abre Sensaciones. No fundo do

palco, a presença dos músicos reserva para

as bailarinas uma faixa frontal de palco

onde a dança vai se desenvolver. Guitarras

flamencas, percussão, um violino e vozes

dialogam todo o tempo com a música dos

sapatos das bailarinas. São oito músicos e

oito bailarinas, ilustrando a igualdade de

importância entre a música e a dança.

Sara Baras acredita no diálogo entre a

tradição e o contemporâneo. Na primeira

parte do espetáculo, o maior impacto se dá

pela beleza despojada da cena. Na busca

de incorporação de referências contempo-

râneas na dança de Sara Baras, não há lu-

gar para excessos. A coreógrafa parece res-

saltar no flamenco apenas o que considera

essencial: ritmo, dramaticidade, improvisa-

ção e, acima de tudo, sensualidade. Vestidas

de calças negras, as bailarinas revelam força

e tensão logo nas primeiras danças. Nos seus

corpos, masculino e feminino, juventude e

maturidade, tradicional e atual, criam um

contraste interessante.

O uso de tecidos e cores é um dos pontos

centrais de Sensaciones. No preto dos figuri-

nos e na luz branca iniciais, os tecidos e as sai-

as de cor – verdadeiros partners do flamenco

– são progressivamente introduzidos, numa

espiral colorida que explode na última cena.

Sara Baras procura extrair toda plasticidade

possível de cada elemento, numa composição

minuciosa. Os figurinos, embora eficientes na

primeira parte do espetáculo, ganham cores

mas perdem a delicadeza inicial.

Enquanto intérprete, Sara Baras mostra

ter domínio absoluto de seu carisma e de seu

poder de sedução. O público responde à sua

presença em cena, como a orquestra respon-

de ao maestro. Sensaciones funciona e seduz

exatamente pela capacidade de conciliar a

intensidade e a emoção do flamenco com

uma estética clean e atual.

Q

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 26 DE MAIO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 26 DE MAIO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 26 DE MAIO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 26 DE MAIO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 26 DE MAIO • 2000

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

4 8

Genialidades coreográficas aserviço do amor

SILVIA SOTER

orgos Loukos, diretor artístico do Bal-

let da Ópera de Lyon, acertou em

cheio na combinação das duas obras apre-

sentadas, no fim de semana, no Theatro

Municipal. Petite mort, de Jirí Kylián, e Car-

men, de Mats Ek, fazem um belíssimo par,

abordando, com a genialidade destes dois

coreógrafos contemporâneos, os inevitáveis

encontros entre Eros e Thanatos.

Petite mort, metáfora de orgasmo na lín-

gua francesa, já foi vista pelo público cario-

ca dançada pelo NDT, companhia dirigida

pelo coreógrafo. Em cena, seis homens, seis

mulheres, um enorme tecido e seis espadas

desfilam os encontros entre os sexos opos-

tos. Construída com precisão milimétrica e

sujeita à riqueza da música de Mozart, Peti-

te mort é uma obra sensual e exigente, em

que cada movimento deve ser realizado

com o domínio e o risco de uma estocada

fatal. Infelizmente, na noite de sábado, a

companhia demorou a atingir a precisão

imposta pela coreografia de Jirí Kylián.

Já em Carmen, o Ballet da Ópera de

Lyon pôde aproveitar suas inúmeras quali-

dades e não decepcionou. Apoiado na evi-

dência de que a versão de Bizet já faz parte

do imaginário coletivo, Mats Ek se liberta

de qualquer compromisso com a construção

narrativa formal, usando as personagens de

Carmen como verdadeiros arquétipos. Car-

men, como sempre, simboliza sedução, inde-

pendência e liberdade. Porém aqui, o com-

petente Mats Ek transforma estas ideias em

pura dança e as imprime em cada corpo e

em cada gesto dos bailarinos. Se Petite mort

se apoia na precisão dos gestos do amor,

Carmen investe no amor em fluxo livre de

movimento. A obra de Mats Ek prima pela

belíssima ocupação da cena, em que cada

gesto lançado deixa uma marca que se pro-

paga e se prolonga no espaço.

Y

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 7 DE JUNHO • 2000RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 7 DE JUNHO • 2000RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 7 DE JUNHO • 2000RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 7 DE JUNHO • 2000RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 7 DE JUNHO • 2000

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

4 9

Recursos evidenciamfragilidade da dança

Ghazal: Estudo coreográfico em segundo plano

SILVIA SOTER

hazal, que está sendo apresentado até

amanhã no Teatro Carlos Gomes, che-

ga como merecida celebração dos 20 anos

da Companhia Regina Miranda e Atores

Bailarinos. Se hoje ela consta no hall das

companhias apoiadas pela Prefeitura do Rio,

Regina Miranda e seus Atores Bailarinos

resistiram, com coragem e qualidade, a

momentos mais sombrios. Inspirada na

poesia do persa Jelalludin Rumi (século

XIII) e com o apoio da vídeo-instalação de

Shalom Gorewitz, Ghazal joga com a ideia

da permanência através do tempo.

No início do espetáculo, uma cortina

transparente vai, delicadamente, revelando

rostos conhecidos do cenário da dança

carioca. Para este espetáculo-comemoração,

Regina Miranda convidou antigos colabo-

radores para partilhar a cena com seus Ato-

res Bailarinos. A princípio, toda contribuição

se justificaria pela importância da data: as

imagens de Gorewitz, a presença de convi-

dados ou, ainda, a elegância dos figurinos

com inspiração oriental, assinados pela pró-

pria coreógrafa. No entanto, infelizmente, a

dança não acompanha a riqueza dos recur-

sos utilizados em cena. E, em vez de contri-

buir para a festa, tantos aparatos só tornam

mais evidente a fragilidade da coreografia

de Regina.

A presença simultânea dos bailarinos e

das imagens de Gorewitz é uma proposta

arriscada. A desproporcionalidade entre a

tela de fundo e os corpos exigiria que a for-

ça dos intérpretes e da coreografia pudesse

ultrapassar o diferencial de escala. O que

não acontece. Nem Marina Salomon, uma

das melhores intérpretes da dança carioca,

consegue vencer esta barreira. Em muitos

momentos, a vídeo-instalação provoca ruí-

do em cena, e em outros, o vídeo se impõe e

dispensa a presença dos bailarinos.

A ideia interessante de receber baila-

rinos convidados se esvazia logo de parti-

da. Os figurinos marcam, com exagero, a se-

paração das funções entre a companhia,

que dança, e os convidados, que se tornam,

literalmente, figuras de fundo. Com exce-

ção da cena em que Regina Miranda, José

Paulo Corrêa e Marina Salomon dançam

juntos, ao som do piano de Maria Guilher-

mina, mãe da coreógrafa, a presença de

G

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 10 DE JUNHO • 2000 • 10 DE JUNHO • 2000 • 10 DE JUNHO • 2000 • 10 DE JUNHO • 2000 • 10 DE JUNHO • 2000

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

5 0

tantos convidados não se justifica. Este trio

de bailarinos, ícones da companhia, é res-

ponsável pelo único quadro em que a emo-

ção se tece em cena.

A coreógrafa, que usou a internet para

acompanhar, a distância, os trabalhos diá-

rios da companhia, parece ter colocado em

segundo plano o mais importante: aprovei-

tar a maturidade de 20 anos de trabalho

para investir em pesquisa rigorosa com o

objetivo de enriquecer seu vocabulário

coreográfico.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

5 1

Danças que coabitammas não se misturam

O jardim io io ito ito: Comunicação com o público

SILVIA SOTER

companhia Montalvo/Hervieu se

ocupa, há três anos, do único centro

coreográfico nacional da região parisiense.

A convivência de várias raças e culturas –

nem sempre pacífica nos subúrbios de Paris

– se transforma na questão central do espe-

táculo apresentado no Theatro Municipal. O

jardim de io io ito ito é uma festa, como os

bailes que a companhia anima, periodica-

mente, em Crèteil, quando os participantes

mostram a sua dança.

O espetáculo se desenvolve em dois

planos: no fundo, um telão vertical no qual

a realidade é deformada pelo jogo de

sombras, pela ampliação de corpos que de-

safiam a gravidade, pela projeção de se-

res fantásticos. No palco, coabitam lingua-

gens cênicas variadas e bailarinos de ori-

gens diversas, afirmando sua identidade,

fazendo, com virtuosismo, apenas aquilo

que sabem fazer.

Se é fascinante reconhecer tantos es-

tilos e qualidades físicas diferentes é, no

entanto, curioso perceber que estas dan-

ças não se contaminam. Os figurinos

insistem nas cores primárias e servem

como paradigma da própria criação. No

O jardim de io io ito ito não há verde. Não

há cor secundária. Na dança de Montalvo/

Hervieu, não há, de fato, mistura ou mes-

tiçagem. A coabitação de diferentes cul-

turas se dá no palco, mas não se dá na

dança inscrita nos corpos. Enquanto no

palco, a impossibilidade da mestiçagem

se afirma, o suporte tecnológico cria, no

telão, maravilhosos seres híbridos, ima-

gem onírica da fusão das diferenças in-

transponíveis.

Apesar da repetição um pouco cansati-

va da estrutura que alterna imagens proje-

tadas e bailarinos se desafiando no palco,

O jardim de io io ito ito agrada. A facilidade

de comunicação do espetáculo com o pú-

blico em geral parece fazer parte de um

projeto maior: despertar num grande núme-

ro de espectadores o prazer de conviver

com aquilo que não é igual. Em uma França

onde o racismo assume proporções assus-

tadoras, O jardim de io io ito ito insiste em

reafirmar Vive la Différence!

A

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 4 DE JULHO • 2000RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 4 DE JULHO • 2000RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 4 DE JULHO • 2000RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 4 DE JULHO • 2000RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 4 DE JULHO • 2000

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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Dança feita de ideias,corpos e indignação

Aquilo de que somos feitos: Lia Rodrigues acerta

SILVIA SOTER

ão intensas as emoções despertadas nosespectadores de Aquilo de que somos fei-

tos, espetáculo da Cia. Lia Rodrigues, em car-taz no Espaço Cultural Sérgio Porto, até opróximo dia 30. No cruzamento entre a per-formance dos anos 60, as artes plásticas e adança, Lia Rodrigues constrói um espetácu-lo inesquecível.

A nudez dos bailarinos, na primeira par-te do espetáculo, confirma a transparênciada proposta. Do programa, no qual é apre-sentado o balanço financeiro desta compa-nhia apoiada pela prefeitura, à cumplicida-de com o público, estabelecida pelos baila-rinos que orientam a plateia a achar umponto de vista, tudo é claro e pertinente.

Se num primeiro momento, a orientaçãodo público pelos bailarinos parece excessode controle em relação à plateia, em segui-da, torna-se evidente que a escolha de umbom ângulo ajuda o espectador a usufruir dasimagens com mais liberdade. Verdadeirasesculturas vivas, as formas construídas pelosbailarinos nus provocam sensações contra-ditórias, de intimidade e estranhamento.Como diante de um espelho facetado, cabeao espectador construir a integridade doscorpos que ele vê e vesti-los de significado.Aos poucos, a quase abstração dos corpos deAquilo de que somos feitos vai perdendo lu-gar para associações inevitáveis: a não fami-liaridade com um corpo descaracterizado deerotismo, a banalização da violência contra

o corpo, a morte. Numa época de relaçõesvirtuais, o corpo a corpo com estas questõesé inusitado e muito necessário.

Depois do silêncio fértil deste início, nasegunda parte do espetáculo, a dança e osbailarinos se vestem de música, de palavrasde ordem datadas e de slogans. Aqui, o es-pectador se vê bombardeado por frases co-nhecidas, imagens que se associam a outrasimagens, numa colagem de sentidos que ex-põe, com coragem e humor, o mundo contem-porâneo. Aqui, Lia Rodrigues explora peque-nas frases coreográficas e textos que invademe constituem, sem pedir permissão, o imagi-nário do homem neste final de século.

Os sete bailarinos, que assinam a criaçãocoreográfica ao lado de Lia Rodrigues e deDenise Stutz sabem explorar suas variadascompetências. Circulando com segurançaentre frases de movimento, palavra faladae canto, eles sustentam a intensidade neces-sária à proposta e imprimem suas marcaspessoais a cada momento em cena.

A música de Zeca Assumpção, utilizadade forma econômica e eficiente, tem efeitoimpregnante e constrói um elo entre estetrabalho e as criações anteriores da compa-nhia: Ma e Folia.

Resgatando a arte como espaço de inqui-etude, Aquilo de que somos feitos é mais uminvestimento sério desta excelente compa-nhia que lança, sobre o mundo, um olhar car-

regado de poesia e indignação.

S

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 14 DE JULHO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 14 DE JULHO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 14 DE JULHO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 14 DE JULHO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 14 DE JULHO • 2000

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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Trilha de Arnaldo Antunes inauguranovos caminhos físicos e urbanos

O corpo: Sem perder a identidade, companhia mineiraexplora outras possibilidades coreográficas

SILVIA SOTER

maginar o Grupo Corpo como um corpohumano talvez ajude a entender o fun-

cionamento desta companhia, em seu pro-cesso de criação. Como no corpo humano, di-ferentes sistemas trabalham, contribuindo,cada qual com sua especialidade, para o mo-vimento e a manutenção da vida. Associan-do fazeres, sem uma hierarquia que privile-gie funções, o todo é muito mais do que umasimples soma das partes. A cada nova cria-ção, este corpo, composto de Rodrigo Peder-neiras, Paulo Pederneiras, Freuza Zechmeis-ter, Fernando Velloso, pelos 19 bailarinos eoutros colaboradores desta companhia mi-neira, se deixainvadir por um novo afeto: amúsica. Como toda paixão, a música modifi-ca a velocidade dos fluxos e subverte o bati-mento cardíaco e a respiração deste corpo.

O corpo, a mais recente criação desta

companhia, em cartaz em São Paulo e com

estreia marcada para dia 30 de agosto no Rio,

é produto do encontro entre o grupo mineiro

e a música de Arnaldo Antunes. Esta conta-

minação mútua resultou numa coreografia

de contrastes, como o preto dos figurinos so-

bre o vermelho da ambientação. A música e

a poesia de Antunes colocam o corpo como

tema central da trilha, cruzando suas inúme-

ras possibilidades de articulação. O eletrô-

nico e o acústico se combinam, permitindo

que este corpo/organismo descanse e suspi-re. Num pulsar tribal e eletrônico, a músicatransforma a brasileirice da movimentaçãodos quadris – marca registrada desta compa-nhia – em ondulações, às vezes, violentas dostroncos dos bailarinos, propondo novos cami-nhos físicos a serem explorados. Algumas ve-zes autômatos, outras vezes palavras pulsan-do, a coreografia destes corpos se deixa pe-netrar pelo imaginário urbano.

A relação de forte dependência entrea música e a dança é uma característicaconstitutiva do Grupo Corpo. No progra-ma desta temporada, 21 precede O corpo

e deixa claro, de modo quase didático, estaintensa parceria. Cada encontro destacompanhia com um nova composiçãomusical resulta numa experiência coreo-gráfica que é, simultaneamente, única esemelhante, já que guarda, dentro da di-ferença, traços de clara identidade.

Assim, O corpo, como já aconteceu comcriações anteriores do grupo, inaugura umnovo campo de exploração, sem deixar deafirmar, felizmente, sua bela assinatura.Essa assinatura não aprisiona a criação, masgarante qualidade e coerência a cada novaexperiência. Este corpo, arrebatado pela pai-xão, se deixa transformar, mas não abre mão

de ser o que é.

I

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

5 4

A experiência dadança como vertigem

Salt: O coreógrafo Édouard Lock cria um jogode manipulação consentida, lírico e violento

SILVIA SOTER

historiadora Sally Banes associou di-

ferentes estéticas da dança à relação

que estas estabelecem com o chão, expres-

sa na escolha dos sapatos. O balé, na sua

busca da verticalidade, reduz o contato do

pé da bailarina com o chão ao limite, femi-

nino e acetinado, da sapatilha de ponta. Já a

dança moderna despe os pés, ampliando o

contato com a terra, enquanto a dança pós-

moderna garante, pelo uso do tênis, agilida-

de e força a seus impactos e deslocamentos.

Louise Lecavalier, bailarina emblemática

da companhia canadense La La La Human

Steps, hoje afastada (impossível esquecê-la),

foi a grande responsável pela difusão de seus

vertiginosos saltos/giros em trajetória hori-

zontal combinados ao duo botinha/joelheira

que invadiu a cena brasileira da dança con-

temporânea no final dos anos 80.

Mas Salt, último trabalho de Édouard Lock,

é uma prova contundente de que, neste final

de século, a investigação contemporânea em

dança se encontra muito além das classifica-

ções feitas a partir de leituras simples.

Aqui, Lock desbrava o universo de pos-

sibilidades da ponta, espinha dorsal da téc-

nica do balé clássico. Se a técnica da ponta

é recente na pesquisa de Lock, a repetição

à exaustão e a experiência da vertigem,

presentes neste trabalho, são marcas cons-

tantes na obra do coreógrafo.

Salt se organiza, basicamente, em uma

sucessão de duos, em que homens e mulhe-

res se encontram para um jogo de manipu-

lação consentida, ao mesmo tempo eróti-

co, lírico e violento. Sobre as pontas, cada

bailarina responde aos impulsos das mãos

intrometidas de seus partners. Por frações

de segundo, elas experimentam o eixo

para perdê-lo em seguida. A ponta se tor-

na um recurso de eficiência absoluta para

a irreversibilidade dos giros e dos desequi-

líbrios. Com um naipe de bailarinos de pri-

meiríssima linha, é no corpo a corpo que

tudo se joga.

A repetição da estrutura coreográfica

ganha nuances e variações pelas diferentes

intervenções da música, das imagens proje-

tadas, da excelente iluminação e do cená-

rio que, em composição primorosa, tecem

quadros de oposição e casamento entre o

acústico e o elétrico, entre luz e sombra,

entre o corpo longilíneo do clássico e a ver-

tigem contemporânea.

A

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE SETEMBRO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE SETEMBRO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE SETEMBRO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE SETEMBRO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE SETEMBRO • 2000

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

5 5

Plischke sacode apercepção do espectador

SILVIA SOTER

ffects, criação do alemão Tom Plis-

chke, inaugurou os trabalhos da nona

edição do Panorama RioArte de Dança, an-

teontem à noite, no Teatro Carlos Gomes,

trazendo a vanguarda para o centro da cena.

Affects é um rigoroso e metódico experi-

mento laboratorial, organizado a partir de

regras que se tornam previsíveis para o es-

pectador logo de partida. Não há truque ou

sedução.

Em Affects, Plischke traz para o corpo que

dança a tarefa de experimentar diferentes

palavras. Como ponto de partida, o coreó-

grafo vasculhou a memória da dança alemã,

buscando em Afectos humanos, obra da ex-

pressionista Dore Hoyer, não uma simples

referência histórica, mas um modus operan-

di. Nesse conjunto de solos, Hoyer investi-

gou a expressão física de diversas emoções

humanas como a honra, a vaidade, o medo

e o ódio. Em Affects, Plishke mergulha na

experiência física de ideias que afetam o

corpo contemporâneo, nesse final de sécu-

lo. Em cena, as palavras da dança expres-

sionista e aquelas da investigação contem-

porânea criam corporeidades distintas.

Mesmo antes de chegar à plateia, o es-

pectador é retirado da condição passiva de

receptor. A simultaneidade das imagens da

vídeo-instalação no foyer do teatro torna o

ato de escolher inevitável. Apresentando

fragmentos que, na memória, reconstituem

o todo, utilizando a repetição de gestos à

saturação, explorando a participação dos

diferentes sentidos na reconstituição da me-

mória, Plischke sacode a percepção do es-

pectador, provocando um misto de incômo-

do e encantamento.

A

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 19 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 19 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 19 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 19 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 19 DE OUTUBRO • 2000

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

5 6

Distintas artes e culturasganham novo território

SILVIA SOTER

ara a criadora francesa Maguy Marin,

não há mais separação possível entre

o fazer artístico e as ações sociais que ela e

sua companhia realizam junto à comunida-

de. Há três anos instalada em Rillieux-La-

Pape, subúrbio pobre de Lyon, para a Com-

panhia Maguy Marin criar e partilhar sua

dança com aqueles que têm raro acesso à

experiência artística apresenta igual impor-

tância. A tal ponto que no último ano, Ma-

guy Marin decidiu criar diferentes peças,

cada uma com apenas alguns membros de

sua equipe, garantindo, assim, que as ativi-

dades junto à comunidade não cessem nos

períodos de turnê. Quoi qu’il en soit, um quin-

teto de homens criado em 1999 e apresen-

tado no Panorama RioArte de Dança, é

produto direto dessa forma de pensar arte

e sociedade. Construído a partir de relatos

autobiográficos, escritos por cada um dos

intérpretes, a peça trata do exílio, da expe-

riência de ser (ou de se sentir) estrangeiro.

No palco, os cinco intérpretes de nacio-

nalidades diferentes falam de suas trajetó-

rias até aquele momento, se encontram e se

revezam no relato falado, na música e nas

sequências coreografadas de movimento. O

caráter íntimo e pessoal dos depoimentos

deixa o primeiro plano, para dar lugar a uma

espécie de identidade compartilhada. As

diferentes vozes, com seus sotaques e lem-

branças particulares, tecem um texto único.

Nesse texto, no corpo e na dança, memória

e cultura deixam suas inevitáveis marcas

como assinaturas.

Já May B., criação que projetou no mun-

do o nome de Maguy Marin, é um mergulho

fundo no universo banal de Beckett. Hesi-

tações, silêncios, gestos secretos e desloca-

mentos inúteis produzem um espetáculo

impactante pela riqueza de detalhes. Aqui,

é a falta de esperança que mantém as per-

sonagens num exílio sem fim.

Nas criações de Maguy, teatro, dança,

música e literatura borram fronteiras, pro-

duzindo um território no qual conviver com

as diferenças não é só uma possibilidade,

mas a única maneira de dar vida à arte.

P

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 27 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 27 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 27 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 27 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 27 DE OUTUBRO • 2000

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

5 7

Panorama se firmacomo palco do debate sobre dança

Entre pontos altos, ingresso baratoe programação rica

SILVIA SOTER

epois de duas semanas intensas e pro-

dutivas, terminou o Panorama RioAr-

te de Dança. Nessa nona versão do festival,

o Panorama investiu seriamente na constru-

ção de uma relação nova entre os espetácu-

los de dança e o público. Atividades gratui-

tas e ingressos a R$ 5 (R$ 2,50 para estu-

dantes) permitiram que o Teatro Carlos Go-

mes recebesse todas as noites um número

expressivo de frequentadores. Todos saíram

ganhando.

O exercício de pensar a dança hoje vazou

o espaço do palco e invadiu a plateia. Apos-

tando que a troca de informações e de im-

pressões entre artista e espectador é uma

etapa importante para elaboração e assimi-

lação diferenciadas da obra artística, o Pa-

norama organizou as “plateias-foyer”, oca-

sião em que público e criadores se encon-

traram para conversar. A iniciativa, quan-

do o desejo do público superou o cansaço

causado por uma programação às vezes lon-

ga demais, provocou discussões interessantes.

A participação internacional este ano foi

maior do que nas versões anteriores. Hoje,

o Panorama partilha boa parte de sua pro-

gramação com importantes festivais de dan-

ça contemporânea internacionais. Tom Plis-

chke, Xavier Le Roy, Vera Mantero são al-

guns nomes hoje onipresentes nos espaços

de discussão da dança europeia. Diversas

parcerias permitiram que o público carioca

tivesse acesso à vanguarda das danças fran-

cesa, alemã e portuguesa, trazendo alguns

exemplos da diversidade da pesquisa de

ponta da dança internacional. O Panorama,

junto com o festival Danças na Cidade,

evento que já faz parte do calendário ofi-

cial da dança portuguesa, trouxe pela pri-

meira vez ao Rio criadores de países de lín-

gua portuguesa. Antes tarde do que nunca.

Não menos importante, a vinda da Cia.

Maguy Marin brindou os cariocas com duas

obras de qualidade incontestável, deixando

a plateia extasiada.

Como nos anos anteriores, o Panorama

foi também ocasião para a estreia de novas

criações de coreógrafos cariocas. Este ano,

as peças das companhias independentes e

daquelas apoiadas pela Secretaria Munici-

pal de Cultura dividiram a cena com cria-

dores de outros estados.

D

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 31 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 31 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 31 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 31 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 31 DE OUTUBRO • 2000

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

5 8

Os novíssimos, tarde dedicada à apresen-

tação de trabalhos de jovens criadores, lo-

tou o Teatro Cacilda Becker, lembrando os

tempos em que o Panorama servia como

“celeiro” da dança carioca. A boa qualida-

de da maioria dos trabalhos demonstrou que

criar chances para que novos coreógrafos

possam apresentar-se em palcos profissio-

nais é oportuno e necessário. Na tarde do

último domingo, foi a vez de lançar um olhar

sobre a dança feita com jovens de comuni-

dades carentes. Aqui, o caráter espetacular

da dança passou a segundo plano e o inte-

resse se voltou para a função da dança no

contexto da favela.

O Panorama tem aperfeiçoado, a cada

ano, o seu papel de palco de discussão da

criação contemporânea, provocando o pú-

blico com espetáculos polêmicos, estimulan-

do o debate e trazendo importantes exem-

plos da diversidade da pesquisa de ponta da

dança nacional e internacional.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

5 9

Novos balés de Béjart provocamsaudades das criações dos anos 70

Béjart Ballet Lausanne: Programa não foiexpressivo da obra do coreógrafo francês

SILVIA SOTER

o final dos anos 70, o Theatro Mu-

nicipal do Rio de Janeiro acolheu o

Ballet du XXème Siécle por temporadas su-

cessivas. Naquela época, todos aguardavam

ansiosos os próximos passos de Maurice

Béjart, através dos corpos de seus bailari-

nos ícones: Jorge Donn, Shonah Mirk, Ber-

trand Pie ou Yan Le Gac. Sua experiência

de teatro total, expressão que utiliza para

definir uma dança que integra as várias lin-

guagens das artes do espetáculo, influenciou

de maneira decisiva toda uma geração de

coreógrafos e bailarinos e trouxe para o

teatro uma multidão de novos espectadores,

seduzidos pelas criações de forte apelo po-

pular do coreógrafo francês. Maurice Béjart

tem o mérito de ter formado fiéis plateias

pelo mundo.

Béjart está de volta, através do Béjart

Ballet Lausanne, companhia criada em

1987, que apresentou neste fim de semana

dois programas no Theatro Municipal. No

primeiro, A rota da seda e no segundo, Frag-

ments, Le Manteau e Sept Danses Grecques.

Assim como o Ballet du XXème Siècle, o

Béjart Ballet Lausanne prima pela excelên-

cia de seus bailarinos, jovens de diferentes

nacionalidades de quem é exigido o rigoro-

so domínio da técnica clássica. Mas o impac-

to criado pela sua dança não chega nem de

longe à força do Béjart dos anos 70.

Nostalgia assumida, Béjart também não

consegue abrir mão de seus sucessos passa-

dos. Em A rota da seda, criação de 1999, o

coreógrafo passeia pela Ásia. Nessa viagem,

algumas de suas criações anteriores ressur-

gem, se infiltram, como as referências nada

sutis ao inesquecível Bolero ou ao viril Go-

lestan. Em cena, um jovem, misto de Marco

Polo e Tintin (sim, o jornalista belga impe-

rialista das histórias em quadrinho), atraves-

sa as duas horas de espetáculo, maravilha-

do pela sensualidade e pela beleza de cada

país do Oriente. Imagens projetadas e pla-

cas de sinalização garantem didaticamen-

te que cada país visitado possa ser reconhe-

cido pelo espectador. Atrás da seda e do

amor, o jovem realiza sua viagem iniciáti-

ca, partindo de Veneza sob a música de Vi-

valdi, viajando pelo mar e depois de moto

através da Ásia para, obviamente, à Vene-

za retornar numa síntese de sedas coloridas.

N

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 27 DE NOVEMBRO • 2000 • 27 DE NOVEMBRO • 2000 • 27 DE NOVEMBRO • 2000 • 27 DE NOVEMBRO • 2000 • 27 DE NOVEMBRO • 2000

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

6 0

O Oriente sempre interessou ao coreógrafo,

como berço das danças sagradas e da união

entre dança e experiência teatral. No en-

tanto, em A rota da seda, a viagem de Béjart

não vai além da superfície.

Abrindo o segundo programa, Frag-

ments reúne extratos de criações anteriores.

Nessa seleção, apenas Dois estudos para uma

Dama das Camélias se destaca em meio a

peças que não compõem um conjunto

expressivo da obra de Béjart.

Gil Roman, diretor adjunto do Béjart

Ballet Lausanne e colaborador de Béjart

desde 1979, é o ator central de Le Manteau,

outra obra de 1999. A qui o coreógrafo cons-

trói, em narrativa linear, a trajetória de

Akaky Akakievich, personagem de Gogol

que remenda seu casaco com sacrifício até

conseguir um novo casaco que lhe garante o

sucesso. Le Manteau se apoia no talento

clownesco de Roman, bailarino-ator que re-

sume as qualidades do teatro total de Béjart.

Finalmente, Sept Danses Grecques fecha

a noite resgatando o vigor do Béjart de ou-

trora. Apoiada numa bela e simples ilumi-

nação, essa criação de 1983 desenvolve a

geometria e a musicalidade das danças fol-

clóricas gregas e utiliza o conjunto dos bai-

larinos em construções que, em alguns mo-

mentos, recriam as mandalas e a movimen-

tação de Bolero. De novo o passado, mas

agora sentimentos menos nostálgicos.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

6 1

2001 CRÍTICAS

O GLOBO – 26 DE MARÇO DE 2001Uma dança em busca da emoção imediata

SILVIA SOTER

O GLOBO – 4 DE MAIO DE 2001Tecnologia feita de erros e acertos

SILVIA SOTER

O GLOBO – 25 DE MAIO DE 2001Ana Botafogo é destaque em um raro equilíbrio de técnica e interpretação

SILVIA SOTER

O GLOBO – 22 DE JUNHO DE 2001Entre o formalismo e a renovação

SILVIA SOTER

O GLOBO – 20 DE JULHO DE 2001Graham dá brilho à noite americana

SILVIA SOTER

O GLOBO – 3 DE AGOSTO DE 2001Kirov aposta na renovação em romper com a tradição do balé

SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL – 3 DE AGOSTO DE 2001Um Kirov renovado

ROBERTO PEREIRA

O GLOBO – 6 DE AGOSTO DE 2001Virtuosismo e sofisticação em uma experiência espetacular do balé

SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL – 6 DE SETEMBRO DE 2001Quando a dignidade dança

ROBERTO PEREIRA

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

6 2

JORNAL DO BRASIL – 30 DE SETEMBRO DE 2001Em boa forma

ROBERTO PEREIRA

O GLOBO – 3 DE OUTUBRO DE 2001Construção coreográfica é ponto frágil na encenação

SILVIA SOTER

O GLOBO – 14 DE NOVEMBRO DE 2001Festival confirma vocação de fazer pensar

SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL – 27 DE NOVEMBRO DE 2001O balé que antecipa o Natal

ROBERTO PEREIRA

O GLOBO – 22 DE DEZEMBRO DE 2001Dramas cotidianos em movimentos coreográficos

SILVIA SOTER

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

6 3

Uma dança em buscada emoção imediata

Compañia Antonio Márquez: Jogo de sedução

SILVIA SOTER

riada em 1995, a Compañia AntonioMárquez, em cartaz no Theatro Munici-

pal no último fim de semana, inaugurando atemporada da série O Globo em Movimen-to, se apoia na larga experiência de seu cria-dor. Antonio Márquez trabalhou em impor-tantes companhias espanholas e acumula inú-meros prêmios e credenciais, com destaquepara o título de melhor bailarino espanholem 2000. O coreógrafo se orienta na buscadas raízes da dança espanhola, pretendendocircular na contramão da tendência atual dealguns criadores cujas releituras do flamen-co se espalham pelo mundo. O largo sorrisode Antonio Márquez marca, logo de saída, seucampo de diferenças em relação a AntonioGades, por exemplo, um dos mestres que Már-quez acredita superar. O sentimento, presen-te na dança contida e intensa de Gades, nadança de Márquez dá lugar à emoção rasga-da num jogo que seduz grandes plateias.

Em Después de Carmen…, única peça daturnê brasileira coreografada por AntonioMárquez, o criador começa sua históriaonde termina a ópera de Bizet, com a mortede Carmen. O protagonista é Escamillo, in-terpretado por Márquez, enquanto Carmensurge apenas como um espectro na memó-

ria do toureiro desesperado. Uma espéciede Giselle espanhola, sensual porém doce econciliadora, que volta para libertá-lo de seuamor. A narrativa linear, a estrutura da com-posição que alterna momentos de zapatea-

do com outros legendáveis, a ambientaçãocenográfica e o uso dos conjuntos remetemàs históricas influências recíprocas entre adança espanhola e o balé clássico.

Em seguida, Zapateado de Sarasate

permite que Márquez explore todo seuvirtuosismo e escape do lugar-comum.Esta obra exigente, criada por Felipe Sán-chez para o legendário Antonio Ruiz Soler,atende às qualidades do intérprete Már-quez, que traz domínio técnico, precisãoe intensidade no momento mais sóbrio einteressante da noite.

Como não poderia deixar de ser, canto,ritmo e dança se desafiam em cena em Mo-

vimiento Flamenco, passeio por diversosestilos do flamenco, peça que fecha a noite.Mais uma oportunidade para que a compa-nhia confirme sua qualidade e garanta queAntonio Márquez brilhe como grande astropop colocando na mão o público animadoque, no fim da noite de sexta-feira, vibravaem palmas ousando tímidos olés.

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O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 26 DE MARÇO • 2001RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 26 DE MARÇO • 2001RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 26 DE MARÇO • 2001RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 26 DE MARÇO • 2001RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 26 DE MARÇO • 2001

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

6 4

Tecnologia feitade erros e acertos

Paulo Mantuano/Dani Lima: Pesquisas em cena

SILVIA SOTER

o ambiente diverso da dança contem-

porânea, a interação entre a dança e

as novas tecnologias constitui uma impor-

tante vertente de pesquisa e o interesse por

essa área é compartilhado por criadores es-

palhados pelo mundo. A arte tem circulado

no campo da ciência, e o corpo se apresenta

como laboratório privilegiado para este

encontro. Se hoje parece impossível disso-

ciar vida e tecnologia, é preciso lembrar que

há muito as artes vêm incorporando os re-

cursos tecnológicos a serviço da cena. Mis-

turados à técnica, discretamente infiltrados

ou visíveis, os meios tecnológicos de cada

época dialogaram com a dança para ampliar

as possibilidades do corpo. Ou a bailarina

romântica que sobrevoava o palco amarra-

da pela cintura não fazia uso de tecnologia?

Em sua quinta edição, o Dança Brasil

traz para a cena artistas brasileiros cujas

pesquisas incluem o uso da tecnologia. Ou

melhor, obras em que a relação da dança

com a tecnologia se faz visível. Nesta sema-

na de estreia, a Paulo Mantuano Cia. de

Dança e a Cia. de Dança Dani Lima divi-

dem o palco. Duas companhias cariocas que

aceitaram a proposta do evento de deixar

que suas pesquisas fossem atravessadas

pela tecnologia digital.

Em Hoje, amanhã de ontem, Paulo Man-

tuano provoca modificações na percepção

do espectador dentro da linha de investiga-

ção desenvolvida pelo coreógrafo, nos últi-

mos anos. O criador lança mão de diversos

dispositivos como imagens projetadas no

telão com edição prévia, imagens do espe-

táculo captadas em cena, música ao vivo

amplificada pelo sistema surround, para

criar um ambiente sonoro e visual capaz de

trazer o espectador para o centro da obra,

tornando-o coautor. O trabalho corporal se

apoia na repetição de quedas e saltos, opon-

do o peso dos corpos reais às imagens do

telão. Hoje, amanhã de ontem mostra como

o coreógrafo vem amadurecendo sua pes-

quisa ainda que alguns ajustes sejam neces-

sários para melhor dimensionar o papel da

tecnologia, tornando-a, talvez, mais trans-

parente e eficiente.

Já a coreógrafa Dani Lima associa o di-

gital à impressão digital e incorpora a tec-

nologia para investigar diferentes aspectos

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O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FE IRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FE IRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FE IRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FE IRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FE IRA • 4 DE MAIO • 2001 • 4 DE MAIO • 2001 • 4 DE MAIO • 2001 • 4 DE MAIO • 2001 • 4 DE MAIO • 2001

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

6 5

da identidade. É evidente que Digital

Brazuca se divide em dois momentos dis-

tintos, em duas peças autônomas que me-

recem um tratamento diferenciado. No pri-

meiro momento, a identidade é tratada

como construção, mostrando de maneira

delicada, poética e divertida como o olhar

do outro se integra às impressões individu-

ais e deixa marcas. Os dispositivos tecno-

lógicos são empregados apenas para atra-

vessar as diferentes camadas dessa identi-

dade construída, trazendo para a cena fo-

tos de infância, depoimentos da rua e mer-

gulhando no ventre da coreógrafa, grávi-

da de oito meses, para extrair e amplificar

a presença do bebê. As telas construídas

pelas caixas de papelão “esquentam” as

imagens digitais e imprimem intimidade

aos relatos. Na contramão deste primeiro

momento, a tecnologia vira o centro das

atenções na segunda parte do espetáculo.

Aqui, a interatividade, símbolo das possi-

bilidades abertas pelas novas tecnologias,

é explorada na relação entre os dois baila-

rinos e entre bailarinos e espectadores,

entre música e dança. Como uma brinca-

deira, este último duo denuncia a precarie-

dade de alguns recursos ditos de ponta e im-

provisa a partir do erro. Felizmente, espe-

cialidade incorporada pela dança brasileira.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

6 6

Ana Botafogo é destaque em um raroequilíbrio de técnica e interpretação

A megera domada: Cenários e figurinosimprimem tom caricato ao balé

SILVIA SOTER

diálogo entre o teatro e a dança pro-duz resultados diversos. Nos balés de

enredo a história a ser contada através dadança é garantida pela linearidade da es-trutura da narrativa. Momentos de pantomi-ma se alternam a outros de movimentaçãomais abstrata. Algumas criações primamexatamente pelo equilíbrio perfeito entreestes momentos. Em A megera domada, re-montagem feita pelo Ballet do Theatro Mu-nicipal da coreografia de John Cranko a par-tir de Shakespeare, o balé se aproxima tantodo teatro que, por pouco, a dança faria falta.

Para Cranko, o intérprete ideal deveriaconjugar eficiência técnica com personalida-de forte. Não é à toa que A megera domada

foi criada, em 1969, para Marcia Haydée, suabailarina ícone durante os 15 anos em que ocoreógrafo inglês esteve à frente do Balletde Stuttgart. A montagem carioca é assinadapor Marcia, seu ex-parceiro de Stuttgard Ri-chard Cragun e Jane Bourne.

A megera domada é uma obra visivel-mente exigente, impondo aos bailarinosinusitadas finalizações de passos e obrigan-do-os a dosar comicidade e exatidão. Maisdo que em um brilhante desenho coreográ-fico, é nas qualidades teatrais e na presençacênica de seus intérpretes, que essa peça deCranko se apoia. Os solistas do Ballet do

Theatro Municipal dão conta da tarefa. Nor-ma Pinna e Thiago Soares são intépretesseguros nos papéis de Bianca e Lucêncio,garantindo aos pas-de-deux, beleza e preci-são. No fim de semana, o bailarino polonêsFlip Barankiewiecz teve atuação vigorosae competente no papel de Petrúquio.

Alguns bailarinos destacam-se pelo vir-tuosismo na execução técnica; outros são ce-lébres por suas competências teatrais. Ra-ros aqueles que conseguem aliar ambos osatributos. É o caso de Ana Botafogo. Para opúblico habituado a vê-la como Giselle ouCoppélia, sua Katharina é um espetáculo àparte. Seu requinte de interpretação é talque, por vezes, ela não é apenas uma Katha-rina voluntariosa, explosiva e divertida, masparece citar Márcia Haydée. No pas-de-deux

final, uma sensual Ana brilha ao lado de FlipBarankiewiecz, despida da agressividade dapersonagem.

Os cenários e os figurinos contrastamcom a qualidade dos intérpretes, não permi-tirem a agilidade necessária às rápidas tro-cas de cena, e imprimem um tom demasia-damente caricato à ambientação cênica.

O Ballet do Municipal acerta ao recorrer aShakespeare e a Cranko para uma fácil comu-nicação entre obra e grande público, confirman-

do sua política de formação de plateias.

O

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 25 DE MAIO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 25 DE MAIO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 25 DE MAIO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 25 DE MAIO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 25 DE MAIO • 2001

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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Entre o formalismoe a renovação

Balé do Teatro Guaíra /ContemporâneosBrasileiros: Aposta na diversidade

SILVIA SOTER

quilíbrios no limite da irreversibilidade O

corpo que dança é explorado em sua capa-

cidade de desarticulação, e as coordenações

mais óbvias dos gestos são desmontadas

para, em seguida, serem recompostas num

inteligente quebra-cabeça de peças inter-

cambiáveis. Logo nesta primeira obra fica

visível que hoje a competência do Guaíra

vai além da técnica clássica.

Em Trânsito, a música de Claudio

D auesberg e a dança de Ana V itória se

fundem numa viagem pela world music.

Numa coreografia com forte inspiração tri-

bal, a criadora imprime sua “marca regis-

trada” na movimentação precisa e demonstra

que sua pesquisa começa a se flexibilizar e

ganha novas fronteiras. É interessante no-

tar que, apesar de vir investindo em experi-

ências fora do formato solo, território conhe-

cido e dominado por Ana Vitória, em Trân-

sito, o tratamento dos conjuntos ainda não

possui a sofisticação e a sutileza de seus so-

los. Sendo quase injusto destacar atuações

numa companhia tão rica de bailarinos ca-

pazes, a presença de Mariana Rosário se

impõe no belo solo de Trânsito.

esponsável por ter lotado o Maraca-

nãzinho há aproximadamente duas

décadas, a montagem de O grande circo mís-

tico, do Balé do Teatro Guaíra, deixou mar-

cas positivas em terras cariocas. A mistura

eficaz da música de Chico Buarque e Edu

Lobo com uma linguagem apoiada no balé

clássico seduziu plateias e conquistou para

a dança, pelo menos temporariamente, um

público pouco habituado a assisti-la.

O Balé do Teatro Guaíra volta, sob di-

reção de Suzana Braga, e traz ao Teatro

João Caetano, até domingo, obras dos co-

reógrafos Ana Vitória, Tíndaro Silvano,

Roseli Rodrigues e da dupla Chameki &

Lerner, no programa Contemporâneos

Brasileiros. Mais do que uma simples re-

novação de repertório, a escolha destes

artistas é uma aposta na capacidade des-

ta companhia experiente em circular por

linguagens diversas.

Quatro paredes reduzem os limites do

palco e aproximam os bailarinos em Nem

tudo o que se tem se usa, da dupla Chameki

& Lerner. Aqui o peso de cada segmento

corporal é abandonado, provocando dese-

R

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE JUNHO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE JUNHO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE JUNHO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE JUNHO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE JUNHO • 2001

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

6 8

Fechando a noite, O segundo sopro, de

Roseli Rodrigues, resgata elementos de

um Guaíra de outrora e oferece ao públi-

co algo que ele já viu, reconfortando-o

com a familiaridade. Na contramão das

outras obras da noite, O segundo sopro

caminha, sem criatividade, nos trilhos da

dança moderna. Embora pareça inovar

trazendo poeira e água para a cena, o for-

malismo marca o uso desses elementos,

amarrando-os a um vocabulário restrito e

ineficiente. Apesar disso, nesta turnê, o

Balé Guaíra se reafirma, maduro e reno-

vado, no cenário da dança brasileira.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

6 9

Graham dá brilhoà noite americana

3 x América: Ballet do Municipal mostraversatilidade e competência em programa desigual

SILVIA SOTER

lgumas noites se destacam pela qua-lidade excepcional das peças apre-

sentadas, enquanto outras funcionam pela efi-ciência do conjunto das obras. O espetáculo3 x América, em cartaz no Theatro Munici-pal com a companhia da casa, até 22 de ju-lho, encontra-se, certamente, no segundo caso.

A América está aqui representada por trêsobras distintas em estilo e em brilho. Umaquarta coreografia, um pas-de-deux de Tín-daro Silvano, foi acrescida ao programa inicial.

Milontango, de Gustavo Molajolli, atualdiretor da companhia, abre a noite trazendopara a cena os competentes primeirosbailarinos do Theatro Municipal, numa cria-ção que prioriza os conjuntos. Molajolli criaum ambiente estilizado do mundo do tango ar-gentino, no qual não podem faltar sedução,conquista, disputa e humor. Numa composiçãosóbria, porém previsível, o coreógrafo busca ascores de uma latinidade dançada nas pontas.

A dança moderna está representada porum de seus maiores símbolos: MarthaGraham. Maple Leaf Rag, última criação dacoreógrafa é, sem dúvida, o ponto alto danoite. Nesta peça, a morte convive com ovigor da juventude e Graham se debruça,

com carinho e generosidade, sobre sua obra.No meio da cena, um longo banco flexí-

vel serve de pouso temporário e de impulsopara novos movimentos. Bruno Cezário sedestaca, plenamente à vontade na técnicamoderna e na densidade de Graham.

Os recém-premiados Roberta Marquese Thiago Soares, intrusos e muito bem-vindos, dançam Capricho, de Tíndaro Silva-no. Despretensioso e divertido, esse pas-de-

deux brinca com a cumplicidade e a rivali-dade de jovens bailarinos.

Com música de Milton Nascimento, Nas-

cimento, de David Parsons, traz o que há deleve e de não muito consistente na dançaamericana. Há muito admirado pelo públi-co carioca, Parsons se inspira na movimen-tação brasileira através de um olhar bastan-te superficial. No entanto, na inexpressivaNascimento, a boa qualidade de execução eo prazer estampado no rosto dos bailarinosacaba por contagiar e seduzir.

Mas, com certeza, o grande presente que3 x América oferece ao público é poder vera companhia do Ballet do Theatro Munici-pal aproveitada integralmente, com versa-tilidade e competência.

A

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 20 DE JULHO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 20 DE JULHO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 20 DE JULHO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 20 DE JULHO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 20 DE JULHO • 2001

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

7 0

Kirov aposta na renovaçãoem romper com a tradição do balé

Manon: Obra de MacMillan flexibiliza alinguagem clássica e expõe novos ventos no grupo russo

SILVIA SOTER

ela terceira vez em cinco anos, o Rio

de Janeiro recebe o Ballet Kirov, um

dos símbolos de excelência no cenário do

balé clássico mundial. Iniciando sua turnê

brasileira no palco do Theatro Municipal do

Rio, onde se apresenta até domingo, o Ki-

rov abriu a temporada com Manon, coreo-

grafia criada em 1973 pelo inglês Keneth

MacMillan. Um coreógrafo inglês, uma obra

de 1973. Sinal dos tempos.

Para garantir sua permanência no time

das mais importantes companhias de balé

do mundo, a tradição abriu espaço para a

renovação. Makhar Vaziev, diretor da com-

panhia desde 1995, vem investindo com se-

riedade no sentido de trazer obras que ex-

pandam o território de ação do Kirov. Ou-

tros coreógrafos, outros pensamentos orga-

nizados em dança, sem que isso signifique

uma ruptura com a qualidade e com o re-

pertório tradicional. Vaziev percebeu tam-

bém que, para acompanhar essa mudança

estética, era necessário que os bailarinos

recebessem uma formação artística mais

ampla e flexível. A temporada 2001 de-

monstra que o Kirov está em bom caminho.

O inglês Keneth MacMillan pertence a

uma geração de coreógrafos que foi profun-

damente influenciada pelas primeiras tur-

nês das grandes companhias soviéticas pela

Europa. Vale lembrar que o Kirov faz sua

primeira turnê importante no Ocidente em

1961. Sem que haja, obviamente, qualquer

herança direta, é possível, no entanto, detec-

tar laços quase familiares entre o Kirov e a

obra de MacMillan. Manon se integra ao

momento em que coreógrafos revisitam o

balé, trazendo novos temas – que nem sem-

pre desfilam sentimentos nobres – e flexi-

bilizando a linguagem clássica sem, no en-

tanto, colocar em risco os alicerces e os fun-

damentos do balé narrativo.

Manon, balé em três atos baseado no li-

vro do abbé Prévost, século XIII, se constrói,

em termos coreográficos e dramatúrgicos,

sobre os contrastes. A jovem e ambiciosa

Manon é uma heroína contraditória e corrup-

tível. A França pré-revolução serve como

cenário ideal para opor a opulência dos sa-

lões aristocráticos à pobreza e à ambição de

ascensão social. Coreograficamente, MacMi-

llan alterna o lirismo e a nobreza do gestual

P

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 3 DE AGOSTO • 2001 • 3 DE AGOSTO • 2001 • 3 DE AGOSTO • 2001 • 3 DE AGOSTO • 2001 • 3 DE AGOSTO • 2001

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

7 1

de Manon e de Des Grieux, com a picardia e

a comicidade de Lescault e sua amante. Nos

dois casos, os pas-de-deux são eficientes e

criativos. Marca do talento de MacMillan.

Precisão e vigor são qualidades comuns

a toda a companhia. No papel do apaixona-

do Des Grieux, Igor Zelensky prova que é

um bailarino raro. Sem qualquer traço de

afetação ou maneirismo, Zelensky alia ex-

celência técnica, total economia de gestos

ou expressões e presença viril. Na noite de

estreia, Irma Nioradze imprimiu dramati-

cidade levemente exagerada à Manon de

MacMillan. Natalya Sologub se destaca, ilu-

minando a cena com a sua presença, no pa-

pel de amante de Lescault.

Bons ventos trazem o Kirov de volta ao

Rio. Bons ventos o renovam para que per-

maneça encantando suas fiéis plateias e

conquistando outras.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

7 2

Um Kirov renovadoCom Manon, balé russo começa a se desengessar

ROBERTO PEREIRA

Ballet Kirov não é mais o mesmo. Na

noite de quarta-feira, em sua estreia

no Rio, no Theatro Municipal, a mais famo-

sa companhia de balé do mundo pôde mos-

trar que está passando por uma fase de tran-

sição. Seu novo diretor, Makhar Vaziev, ex-

bailarino da companhia, parece estar inje-

tando novas possibilidades cênicas no gru-

po, o que parecia, até então, algo impossível

naquele modelo engessado do balé russo.

Quem assistiu às suas apresentações há três

anos e tiver a oportunidade de rever agora,

vai notar que, finalmente, o Kirov percebeu

que os tempos, e também o balé, são outros.

A escolha de uma obra como Manon

para integrar seu vasto repertório, apresen-

tada em sua estreia na cidade, indicia essa

importante fase de transição. Coreografia

que teve sua estreia em 1974, com o Royal

Ballet, assinada pelo inglês Kenneth Mac-

Millan, Manon é um exemplo de como o

balé pode se utilizar da narrativa sem se

prender meramente à tarefa de contar his-

tória. A dramaturgia que ali se constrói

parece trafegar na definição exata do perfil

de cada personagem dissolvida nas coreo-

grafias que passeiam entre gesto e dança

sem, contudo, demarcar onde termina um

e começa o outro. Os quatro pas-de-deux dos

personagens principais, divididos nos três

atos, são uma aula de como resolver coreo-

graficamente situações dramáticas, sem

necessariamente apelar para a obviedade

com a qual contavam muitos dos balés de

repertório.

O Ballet Kirov estreou Manon há pouco

mais de um ano, o que significa ainda pouco

tempo para uma companhia acostumada a

dançar obras que integram seu repertório

há mais de um século. Nesse sentido, pode-

se observar na atuação dos dois primeiros

bailarinos que essa nova forma de interpre-

tação exigida por MacMillan ainda carece

de ajustes no estilo russo tão marcante. En-

quanto o inteligente Igor Zelensky, na noi-

te de estreia, teve desempenho impecável,

mesclando com rigor seu estilo nobre com

uma economia dramática, Irma Nioradze

parecia ainda guardar resquícios daquele

velho entendimento do que é ser expressi-

vo, o que, para uma personagem como Ma-

non, sempre resvala no perigo de se tornar

O

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 3 DE AGOSTO • 2001 • 3 DE AGOSTO • 2001 • 3 DE AGOSTO • 2001 • 3 DE AGOSTO • 2001 • 3 DE AGOSTO • 2001

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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caricato. Frivolidade e sedução devem

aparecer em pinceladas sutis nessa dama

do século XVIII sem, contudo, ser manei-

rista. Nessa nova fase, então, balés como

Manon funcionam como um belo exercício

de interpretação.

Entretanto, a companhia como um todo

mostra ter aceitado bem o desafio. Com seu

corpo de baile renovado, grandes solistas

(merece destaque Natalya Sologub, na noi-

te de estreia), cenários e figurinos bem cui-

dados, desafio se transformou em compe-

tência, numa noite memorável.

Nesse sentido, aliar tradição, escola e

dinheiro parece ser mesmo a receita para

uma companhia de balé de repertório.

Acrescentando aí uma direção inteligente

e instigante, o Ballet Kirov vem mostrando

que a coragem para a mudança é talvez a

chave para a continuação de uma história

que não deve ficar presa ao passado, mas sim

se lançar com qualidade para o futuro.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

7 4

Virtuosismo e sofisticação em umaexperiência espetacular do balé

O corsário: Balé Kirov se despediu do Rio comuma produção de altíssima qualidade

SILVIA SOTER

Ballet Kirov despediu-se do Rio on-tem em direção a outras capitais bra-

sileiras oferecendo ao público carioca no fimde semana a versão integral de O corsário,de Marius Petipa. Mesmo aqueles que nãosão grandes conhecedores de balé, certa-mente reconhecerão alguns extratos de Ocorsário, como o pas-de-trois de Medora,Conrad e o escravo Ali, no segundo ato,transformado por Tchaboukiani, nos anos 30,em pas-de-deux e eternizado, nos anos 70,por Rudolf Nureiev.

Mas em sua versão integral, com direitoa duas cenas deslumbrantes de prólogo eepílogo – que remetem aos quadros de De-lacroix –, O corsário se veste de luxo, exo-tismo e bravura, bem ao gosto dos balés lon-gos do século XIX.

Marius Petipa, bailarino e coreógrafo fran-cês, migrou para a Rússia em 1847, onde ficouaté sua morte. Criador de mais de 60 balés, Pe-tipa foi mestre em associar o ballet d’action fran-cês ao virtuosismo da escola italiana. O fio nar-rativo é desenvolvido aliando doses equili-bradas de seqüên-cias de inspiração folcló-rica, pantomima e variações virtuosas. Ain-da hoje, as variações femininas e masculi-nas de Petipa servem de termômetro de com-petência de bailarinos étoiles (literalmenteestrelas) de todo o Ocidente.

Dentro dessa estrutura, ao corsário deConrad e à bela Medora, protagonistas datrama, juntam-se outros papéis de destaquecomo Lankedem, o mercador de escravase o escravo Ali. Com algumas variaçõesexigentes, o papel de Conrad se apoia, so-bretudo, na intensidade teatral e Ilya Kuz-netsov dá conta da tarefa com brilho. Opróprio Petipa, intérprete conhecido comoexcelente mímico, destacou-se como Con-rad. A longilínea Svetlana Zakharova ga-rante segurança e brilho às suas variações.No papel de Lankedem, Andrian Fadeevimprime agilidade e precisão. Farukh Ru-zimatov alia, com perfeição, execução téc-nica e devoção à Medora. A relação do tri-ângulo Conrad, Medora e Ali mantém-seintensa até no momento do agradecimen-to, um detalhe que revela a sofisticação damontagem.

Levando em conta que mesmo uma ver-são original é trabalhada pelo tempo e atuali-zada, inevitavelmente, pelos corpos dos bai-larinos de hoje, assistir a O corsário de Petipadançado pelo Kirov é, com certeza, o que háde mais próximo de experimentar uma via-gem no tempo. O virtuosismo dos intérpretesaliado à grandiosidade da música, dos cenári-os, dos figurinos e das danças de conjunto faz

de O corsário exemplo do balé espetacular.

O

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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Quando a dignidade dança

Espetáculo com adolescentes da Maré compensafrágil dramaturgia com coreografia exuberante

ROBERTO PEREIRA

Nesse sentido, se há um descompassoentre uma teatralidade mais exageradada atriz Rosi Campos ao lado de um con-tido Seu Jorge, se há a presença de umadiva como Elza Soares acompanhada pormúsicos competentes, conduzidos de modopreciso por Ana Fridman, há também omodo exuberante como as danças do es-petáculo costuram uma dramaturgia que,por vezes, deixa revelar sua fragilidade,sobretudo no texto.

A competência de Ivaldo Bertazzo re-dimensiona naqueles corpos uma dignida-de capturada no ato de dançar. Apenas omodo que isso é feito, através basicamentede danças orientais, parece sufocar umamovimentação que por vezes escapa emalguns momentos reveladores, como os tre-chos de dança de rua. Talvez buscar umacombinação do que se encontra ainda emestado latente naqueles corpos com habi-lidades próprias do seu meio e o rico ensi-namento que o coreógrafo ali disponibili-za parece ser o desafio que se impõe. En-quanto isso, Folias guanabaras emocionajustamente quando o cidadão-dançante re-afirma uma lição antiga, que tanto a ver-dadeira democracia quanto a dança nas-cem no corpo.

espetáculo Folias guanabaras, queteve sua estreia terça-feira no SESC

Tijuca, representa uma continuação da pes-quisa que o coreógrafo e professor IvaldoBertazzo vem desenvolvendo há 25 anos:a construção de uma dança em corpos depessoas que não a exercem profissional-mente. Essas pessoas, Bertazzo chama decidadãos-dançantes. Neste espetáculo, con-tudo, o fato de que se trata de um grupo de66 crianças de uma comunidade da fave-la da Maré, do Rio, faz com que a conexãocidadão e dançante ganhe dimensões bas-tante peculiares, pois localiza e recuperano corpo que dança a dignidade de expres-são que aqueles corpos comportam.

Este é o segundo espetáculo de Bertazzocom a mesma comunidade. No ano passado,através de Mãe gentil, a primeira convivên-cia do coreógrafo com aquelas crianças in-diciava uma continuidade inevitável e bas-tante profícua. Isso pode ser visto agora,quando competência e uma produção colos-sal garantem um resultado de um profissio-nalismo que já é marca do coreógrafo. No-vamente, a dança aparece dialogando comoutras linguagens cênicas, o que o própriocoreógrafo justifica como uma recuperaçãodo Teatro Musical Brasileiro.

O

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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Em boa formaBalé do Municipal supera desafios

de O lago dos cisnes

ROBERTO PEREIRA

estreia, na última quinta-feira, de

O lago dos cisnes, pelo Ballet do

Theatro Municipal, mostrou, mais uma

vez, que a principal companhia clássica do

País continua em forma para obras de tal

envergadura. Para essa montagem, foi

convidada uma das principais bailarinas

do século XX, a russa Natalia Makarova,

que assina nada menos que a direção, a

concepção e a coreografia.

Parece ser, no entanto, exatamente por

essa assinatura por demais carregada de

Makarova que um hiato entre a ideia de

remontagem de uma obra de repertório e

a de sua recriação emperre o bom desem-

penho dos bailarinos. As linhas perspectí-

vicas construídas com o corpo de baile,

com as quais estamos acostumados a ver

nas obras de Petipa, e que tão bem ensi-

nou ao seu discípulo Ivanov, diluem-se em

Makarova. O resultado é uma certa ina-

bilidade na construção coreográfica dos

desenhos que deveriam estar ali para con-

duzir o olhar do espectador à história de

amor entre o príncipe e a princesa enfei-

tiçada em cisne.

No pas-de-deux do segundo ato, por

exemplo, a moldura fundamental que o

conjunto de cisnes forma ao lado do casal

principal é simplesmente transformada

em uma coreografia em filas, não permi-

tindo, desse modo, que os claros princípios

acadêmicos de construção coreográfica

apareçam. No todo, a montagem de Maka-

rova parece pouco dançante, de certo

modo truncada e, muitas vezes, mal resol-

vida nos conjuntos, flagrante nas danças

nacionais do terceiro ato.

Enquanto o bailarino convidado, o argen-

tino Iñaki Urlezaga, primeiro bailarino do

Royal Ballet em Londres, cumpriu apenas

corretamente sua tarefa como o príncipe

Siegfried, nossa primeira bailarina Cecília

Kerche brindou o público com uma perfor-

mance brilhante. A qualidade de sua dança

encontra em sua conformação física o lugar

exato para o desempenho do papel. Madu-

ra, Cecília provou ser uma bailarina acadê-

mica por excelência, o que a faz construir

uma ótima Odille, o cisne negro, enquanto

sua romântica Odette, o cisne branco, ainda

carece de ajustes.

A

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • DOMINGO • 30 DE SETEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 30 DE SETEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 30 DE SETEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 30 DE SETEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 30 DE SETEMBRO • 2001

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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Marcelo Misailidis acertou no tom

dramático de seu bruxo Rothbart, papel

que exige maturidade, e André Valadão

foi, sem dúvida, a grande estrela do pri-

meiro ato, no papel de Benno. Isso prova

como a companhia está cada vez mais

qualificada para os desafios aos quais ela

se impõe. Tal qualificação apenas espe-

ra uma oportunidade melhor para se dar

a ver. É o que o público carioca também

espera. Nessa recriação assinada por

Makarova, sente-se saudade da pena co-

reográfica dos grandes mestres Petipa e

Ivanov.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

7 8

Construção coreográfica éponto frágil na encenaçãoO lago dos cisnes: Makarova faz montagem

eficiente de peça mítica do balé

SILVIA SOTER

a última quinta-feira, o público cario-

ca lotou o Theatro Municipal para a

esperada estreia de O lago dos cisnes, gran-

de aposta da programação da companhia da

casa, no ano de 2001.

Da criação da música por Tchaikovsky,

no final do século XIX, até hoje, O lago dos

cisnes recebeu diferentes tratamentos com

variações do libreto, mas foi a versão de

Petipa e Ivanov que serviu de estrutura para

as leituras que se popularizaram pelo Oci-

dente. O virtuosismo e a pompa dos primei-

ro e terceiro atos assinados por Petipa con-

trastam, sem que no entanto se perca a uni-

dade, com o lirismo e a geometria das ce-

nas à beira do lago, desenhadas por Ivanov.

Em inúmeras versões posteriores, a coreo-

grafia do segundo ato é mantida, pela efi-

ciência da construção de Ivanov.

A russa Natalia Makarova, uma das

grandes estrelas do balé do século XX, assi-

na, na versão do Municipal, direção, concep-

cão e coreografia. Se a direção de Makaro-

va imprime eficiência e profissionalismo à

montagem, é na construção coreográfica

que O lago possui seu ponto mais frágil.

O visível desequilíbrio entre as variações

masculinas e femininas sugere que a coreó-

grafa apoia-se demasiado na sua trajetória

de intérprete perfeita de Odette/Odile, para

a criação coreográfica. Ao tentar se desviar

da herança de Petipa e Ivanov, a coreogra-

fia de Makarova faz com que os conjuntos

percam parte da força e do sentido.

Na noite de estreia, Cecília Kerche e o

bailarino argentino Iñaki Urlezaga estive-

ram nos papéis principais. Ele, primeiro bai-

larino do Royal Ballet, cumpriu seu

Siegfried com segurança, porém sem bri-

lho. Já Cecília Kerche, sobretudo no tercei-

ro e no quarto atos, explora ao máximo

suas qualidades físicas numa performan-

ce de técnica irretocável. André Valadão

destaca-se como Benno e Marcelo Misaili-

dis constrói um Rothbart com doses preci-

sas de sedução e maldade. O corpo de bai-

le imprime homogeneidade e harmonia,

imprescindíveis aos desenhos de conjunto.

A maturidade da companhia garante

que montagem carioca guarde a magia que

faz com que, há mais de um século, a figura

da bailarina-cisne – cujos tronco e braços

ondulam negando a anatomia ao inventar

articulações – resista no tempo. Se o amor

de Siegfried pode transformar Odette no-

vamente em uma jovem, no imaginário oci-

dental, a bailarina clássica resistirá sem-

pre a se separar da figura mítica do cisne.

N

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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Festival confirmavocação de fazer pensar

Panorama RioArte de Dança:Vanguarda da cena internacionale diversidade da dança carioca

destacaram-se na décima edição do evento

SILVIA SOTER

o último domingo, o Rio despediu-se

do mais importante e intenso even-

to da dança contemporânea carioca. O dé-

cimo Panorama RioArte de Dança, nessa

edição comemorativa, espalhou-se pela

cidade lotando as plateias do Teatro Car-

los Gomes, do Espaço Sérgio Porto e va-

zando para outros locais com programa-

ções de vídeo e de vídeo-instalação de

Maurício Dias e Walter Riedweg, nos Ar-

cos da Lapa. Em quase todas as 12 noites

de festival, a programação foi dobrada,

aumentando a oferta e a possibilidade de

escolha do público e fazendo com que al-

guns espectadores zarpassem de um tea-

tro ao outro, numa maratona cansativa,

mas certamente compensadora. Feliz-

mente, a partir desse ano, a Secretaria das

Culturas garante o Panorama RioArte de

Dança no calendário oficial da cidade.

Aposta acertada, já que é visível que a

estrutura do festival amadureceu nos últi-

mos anos, assim como, paralelamente e de

modo inextrincável, o público cresceu em

número e em interesse, numa política de

formação de plateia que se confirma pela

absoluta eficiência.

Consolidando-se, definitivamente, na

rota dos festivais da vanguarda da dança es-

trangeira, ao partilhar sua programação

com importantes festivais como o holandês

Springdance ou o canadense Nouvelles

Danses, o Panorama trouxe para o Rio cri-

adores que, ao lado de artistas como Jérô-

me Bel e Xavier Le Roy, convidados dos

anos anteriores, fazem parte de uma gera-

ção inquieta e ativa que vem desenhando

os novos contornos da dança contemporâ-

nea. Este ano foi a vez de o público carioca

entrar em contato com os trabalhos do aus-

tríaco Willi Dorner, do alemão Thomas

Lehmen, do francês Boris Charmatz (que

fez um duo com Dimitri Chamblas e ain-

da um trio), do iraniano Hooman Sharifi e

do suíço Gilles Jobin. Mas o que essa ge-

ração tem de tão relevante? Quem são

esses coreógrafos que o Panorama tem

escolhido nos últimos anos?Os anos 90 viram surgir na Europa um

grupo de criadores que, para grande parte

N

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

8 0

da crítica internacional, equivale, em cria-

tividade e importância, à geração da Judson

Church, berço da dança pós-moderna

americana. Ainda que sem uma herança

direta, esses criadores resgatam a ideia da

democracia no corpo e na cena, conceito de

partida que permite que cada elemento que

compõe a representação possua valor equi-

valente, podendo ser explorado sem uma

hierarquia definida. E permite, igualmente,

que o movimento circule pelo corpo sem

respeitar uma ordem estabelecida pela cons-

trução de uma técnica instalada no corpo

que dança. O movimento pode ser apenas

funcional; a identidade do artista, sua bio-

grafia, suas características físicas e cinéti-

cas são sublinhadas e contrabandeadas a

ponto de borrar o corpo real e o construído.

A dança, enquanto linguagem, expõe seus

limites em cena, e outros modos de relação

entre obra e público são convocados para,

finalmente, colocar em xeque a própria

ideia de representação.

Parte dessas questões surge, também, em

algumas obras dos criadores cariocas este

ano. É o caso de A paisagem daqui é outra,

de Márcia Rubin. Nesta peça simples e pre-

cisa, criadora e criatura se confundem, num

jogo de identidades que se revela junto com

a exposição dos descaminhos de um proces-

so de criação. De forma diferente, já que a

dança ainda guarda muitos de seus traços

de identidade, mesmo se borrando com ou-

tras artes, Vaidade, da Cia. Dani Lima, mer-

gulha de forma poética, bem-humorada e

quase melancólica, no olhar do outro como

construção da identidade do sujeito. Eu e meu

coreógrafo no 63, do jovem e competente

Bruno Beltrão, cria para o espectador uma

experiência quase telepática de comunica-

ção entre as construções mentais de um jo-

vem e a movimentação do intérprete, em

simultaneidade. O agora trio Ikswalsinats

continua ressaltando a persona de seus in-

térpretes, tocando o teatro e as artes plásti-

cas num jogo de cena milimetricamente

construído.

No inesquecível The Moebius Strip, a

movimentação dos bailarinos serve de con-

torno para o espaço, a grande estrela da peça

de Gilles Jobin. O espectador é hipnotica-

mente transportado pela repetição dos des-

locamentos e pelo ambiente visual ambíguo

nos modos da Op-Art, numa subversão de

planos e direções.

As parcerias internacionais com o Bri-

tish Council, a Alliance Française, a AFAA,

Consulado Geral da França e o Goethe

Institut permitiram ainda que o Rio assis-

tisse entre os convidados de fora, pela pri-

meira vez, à Compagnie à Fleur de Peau,

de Michael Bugdham e da brasileira De-

nise Namura, residente na França. A re-

trospectiva de cenas dessa dupla confir-

mou a maturidade e a seriedade da pes-

quisa realizada por eles no diálogo entre

dança e teatro. Enquanto a inglesa Rose-

mary Butcher presenteou a plateia do Es-

paço Sérgio Porto, por duas noites conse-

cutivas, com uma demonstração do pro-

cesso de criação e composição de sua pró-

xima peça, logo depois de um interessan-

te e bem dançado Scan.

A presença das companhias cariocas

nessa edição deixa claro que cada criador

caminha em trilhas de investigação bem

delineadas, produzindo uma saudável e ne-

cessária diversidade. Joaquim Maria, de

Márcia Milhazes, preciso e delicado como

uma renda, traz a atmosfera de Machado

de Assis numa movimentação incessante

e prolixa que, aliada à pesquisa musical,

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

8 1

sonoriza e colore a relação do casal em

cena. A Esther Weitzman Cia. de Dança

promoveu em cena o encontro entre três

intérpretes de uma mesma geração, parti-

lhando referências e o prazer da dança.

Palimpsesto, de Paulo Caldas, mergulha

ainda mais fundo no fluxo contínuo de

impulsos que entrelaçam e suspendem no

tempo o encontro amoroso. A Ana Vitória

Cia. de Dança dividiu com o público o

evidentemente ainda embrionário Asè,

investida da coreógrafa nas qualidades de

movimentação dos orixás. Agora em ru-

mos tão claros, resta aos criadores, como

próximo desafio, a busca de um ritmo mais

enxuto para os espetáculos que, muitas

vezes, diluem o conteúdo numa duração

extensa demais.

As discussões da plateia-foyer, oportu-

nidade de troca de impressões entre cria-

dores e público iniciadas na edição do ano

passado, consolidaram-se, ampliando seu

espectro de ação. Os espetáculos Suddenly,

Anyway, Why all this ? While I…, da Impu-

re Company de Hooman Sharifi, e Nina, do

Cena 11 de Florinanópolis, anteciparam as

discussões do seminário Corpo em risco,

encontro de pesquisadores de áreas dife-

rentes, obra e público, que agregou pontos

de vistas diversos às noites de segunda e

terça-feira. As peças assistidas e os criado-

res também colaboraram com seus pontos

de vista.

Além do Cena 11, os coreógrafos-intér-

pretes Martha Soares e Marcelo Gabriel

trouxeram para o Rio os ares da pesquisa

de outros estados. O homem de jasmim, da

criadora paulista, discute de modo obsessivo

o corpo que cria apesar do encarceramento

e do desmantelamento da doença mental. Já

o Útero cromosserial, de Marcelo Gabriel,

circula em terreno perigoso, preso num ema-

ranhado de referências autocentradas.

Os novíssimos, tarde que reúne experi-

mentações de coreógrafos emergentes, teve

sua segunda versão, confirmando sua rele-

vância ainda que necessite encontrar um

ritmo mais ágil para o concentrado de pe-

quenas peças.

A democratização do acesso aos espetá-

culos através de ingressos mais baratos, a

continuidade da política municipal de apoio

à dança, a ampliação do raio de ação do fes-

tival na multiplicação das atividades e dos

espaços de apresentação, associadas às as-

sinaturas de curadoria de Lia Rodrigues e

Roberto Pereira, contribuíram de modo de-

finitivo para o sucesso do evento.

Nesses anos de existência e resistência,

o Panorama se construiu mais de acertos do

que de erros. Definiu uma linha curatorial

coerente sem que isso representasse ausên-

cia de diversidade, o que demonstra que

continuar é preciso. O décimo ano do Pano-

rama confirma que a permanência é condi-

ção fundamental para a transformação.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

8 2

O balé queantecipa o Natal

Atuação do corpo de baile do Municipal emO quebra-nozes renova, com qualidade, a antiga tradição

ROBERTO PEREIRA

montagem de O quebra-nozes na

época do Natal faz parte de uma tra-

dição seguida por várias capitais do mun-

do, com as mais importantes companhias de

dança, em diferentes montagens. Esse balé

de 1892 traz consigo todo o peso de nomes

como Lev Ivanov, seu primeiro coreógrafo,

e Tchaikovski, um dos primeiros composito-

res a emprestar maior dignidade à música

feita especialmente para a dança, até então.

Aqui no Brasil, podemos contar com a

versão de Dalal Achcar, que confere à obra

uma assinatura coreográfica bastante pró-

pria, sem, contudo, fugir da essência da ideia

original. Na nova montagem, que teve sua

estreia no último sábado pelo Ballet do

Theatro Municipal, a cidade do Rio de Ja-

neiro teve a oportunidade de contar, mais

uma vez, com um dos símbolos natalinos

mais fortes e, o que é mais importante, com

a qualidade que ele exige.

Mencionar como a primeira bailarina

Cecília Kerche esteve absolutamente impe-

cável ao lado do bailarino convidado Mar-

celo Gomes, estrela do American Ballet

Theater, parece ser dispensável, quando se

acompanha o momento especial pelo qual

ela vem atravessando em sua carreira. Jun-

tos, os dois viveram respectivamente, a rai-

nha e o príncipe das neves. A produção, que

envolve inúmeros figurinos e cenários, além

de iluminação, também funciona muito bem

dentro do espírito do balé. Mas é o desem-

penho brilhante do corpo de baile que cha-

ma mais atenção, este ano.

A atuação do grupo esteve tão coesa e

segura, que coloca a companhia num nível

de qualidade internacional. Isso pôde ser ob-

servado, por exemplo, na dança dos flocos de

neve e na valsa das flores, momentos emble-

máticos do balé. Mas é, sobretudo, em algu-

mas performances individuais que se pode

vislumbrar futuros solistas e primeiros bai-

larinos, como Wellington Gomes, interpretan-

do o boneco, Ronaldo Martins, na dança rus-

sa, e o trio Regina Ribeiro, Rodrigo Negri e

René Salazar, na dança dos mirlitons.

A montagem desse balé pela nossa prin-

cipal e mais antiga companhia brasileira já

é, sem dúvida, uma tradição. Mas é a quali-

dade de seus bailarinos que faz com que essa

tradição se transforme também num dos

melhores presentes de Natal para a cidade

do Rio de Janeiro.

A

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 27 DE NOVEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 27 DE NOVEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 27 DE NOVEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 27 DE NOVEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 27 DE NOVEMBRO • 2001

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

8 3

Dramas cotidianosem movimentos coreográficos

Rua Alice 75 – Quartos de aluguel:Híbrido de dança, artes visuais e teatro

SILVIA SOTER

ma porta estreita separa a calçada da

Rua Alice do passeio que a Cia. de

Dança Regina Miranda preparou para os es-

pectadores de Rua Alice 75 – Quartos de

aluguel. Durante meses, Regina Miranda e

seus colaboradores colecionaram histórias

e impressões sobre os casarões dessa rua no

bairro de Laranjeiras. A partir das histórias

e de seus personagens, recriaram, na sede

da companhia, o ambiente arquitetônico, so-

noro e afetivo das casas de cômodos. Junto

com a Cia. Regina Miranda, alguns mora-

dores da Rua Alice integram o espetáculo,

borrando a linha entre ficção e realidade. A

aparente simplicidade da estrutura desse

passeio/espetáculo revela, progressivamen-

te, sua riqueza e complexidade.

A partir da antessala, 30 visitantes seguem

o trajeto que se impõe através dos corredores.

Em cada cômodo, uma cena. Pequenos dramas

cotidianos são revelados em quartos/quadros,

expondo intimidades, tornando público o pri-

vado. Cada ambiente é assinado por um artis-

ta, o que reforça o caráter singular das insta-

lações. A Cia. Regina Miranda joga eficiente-

mente com a atração e a curiosidade desper-

tadas pela possibilidade de observar a intimi-

dade alheia. Mas a intimidade revelada não

choca ou agride. Nos quartos/quadros habitam

várias épocas e seus personagens. O passeio

pela casa se transporta no tempo.

Há um roteiro proposto pelos corredores;

no entanto, cabe ao espectador escolher o

tempo de estar em cada cena, indo e vindo,

demorando-se ou atravessando rapidamen-

te as diversas situações separadas pelas pa-

redes frágeis. Assim, não há possibilidade de

linearidade na construção dramatúrgica.

À medida que o passeio avança, alguns

gestos ganham repetições, inversões, dila-

tações no tempo. Destacam-se e começam

a desenhar um tecido coreográfico que

será transformado em sequências de dan-

ça nas duas últimas cenas. Aos poucos, os

gestos cotidianos tornam-se movimento e

coreografia.

Rua Alice 75 – Quartos de aluguel se

constrói na zona de trânsito entre dança,

artes visuais e teatro. Se logo de início essas

linguagens se misturam, no fim aparecem

destacadas, coabitando a cena, mas com con-

tornos bem definidos. A dança passa a exis-

tir, nítida e reconhecível. Com certeza, nos

momentos mais bonitos de Rua Alice 75 –

Quartos de aluguel, não existem paredes

separando linguagens.

U

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE DEZEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE DEZEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE DEZEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE DEZEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE DEZEMBRO • 2001

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

8 4

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

8 5

2002 CRÍTICAS

O GLOBO – 6 DE MARÇO DE 2002Uma companhia sem a cara do Rio

SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL – 9 DE MARÇO DE 2002Um projeto ainda frágil

ROBERTO PEREIRA

O GLOBO – 14 DE MARÇO DE 2002O encontro do gesto e do movimento no palco

SILVIA SOTER

O GLOBO – 19 DE MARÇO DE 2002Passos, música e interatividade embalam celebração coreográfica

SILVIA SOTER

O GLOBO – 25 DE MAIO DE 2002Rostropovich rouba a cena e faz a sua festa

SILVIA SOTER

O GLOBO – 27 DE MAIO DE 2002Ana Botafogo domina a cena no Municipal

SILVIA SOTER

O GLOBO – 17 DE JUNHO DE 2002Corpo de baile brilha pela musicalidade

SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL – 17 DE JUNHO DE 2002Corpo de baile rouba a cena

ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL – 29 DE JUNHO DE 2002Ilustração de ritmos

ROBERTO PEREIRA

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

8 6

JORNAL DO BRASIL – 6 DE JULHO DE 2002Monólogo de movimentos

ROBERTO PEREIRA

O GLOBO – 8 DE JULHO DE 2002Dança que opera no universo pop

SILVIA SOTER

O GLOBO – 18 DE JULHO DE 2002Um balé marcado pelo excesso de elementos

SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL – 20 DE JULHO DE 2002Cinderela para virar cult

ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL – 7 DE SETEMBRO DE 2002Sempre um passo adiante

ROBERTO PEREIRA

O GLOBO – 9 DE SETEMBRO DE 2002Sensualidade debochada que serve para iluminar o passado do Corpo

SILVIA SOTER

O GLOBO – 11 DE SETEMBRO DE 2002Ações pedagógicas que somam, sem se sobreporem à qualidade do produto

SILVIA SOTER

O GLOBO – 13 DE NOVEMBRO DE 2002Panorama fez a festa da nova plateia carioca

SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL – 30 DE DEZEMBRO DE 2002Movimentação a passos largos

ROBERTO PEREIRA E ANA CECÍLIA MARTINS

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

8 7

Uma companhiasem a cara do Rio

O despertar: Grupo oficial da cidade mostratrabalho eficiente, mas que não traduz a

transformação da dança carioca

SILVIA SOTER

surgimento de uma nova companhia

de dança é sempre motivo de come-

moração. Ainda mais quando essa compa-

nhia é encabeçada por nomes como Richard

Cragun e Roberto Oliveira. No entanto, a

estreia da Cia. DeAnima como a companhia

oficial da cidade do Rio de Janeiro, na últi-

ma quinta-feira (a temporada continua esta

semana, de amanhã a domingo, no Teatro Car-

los Gomes), merece algumas considerações.

Na última década, o Rio afirmou-se nos

cenários da dança nacional e internacional

como um polo gerador de produções e pes-

quisa em dança de alta qualidade. À tradi-

ção sempre renovada do nosso Ballet do

Theatro Municipal se associaram diferen-

tes companhias de dança que, juntas, dese-

nharam para a cidade um perfil reconheci-

do pela diversidade, pela competência e

pela multiplicidade. Hoje, no Rio, além de

várias companhias independentes, são 13 as

companhias de dança contemporânea apoi-

adas pela mesma Prefeitura que oferece

agora à cidade uma Companhia Oficial.

Na noite de estreia para convidados do

espetáculo O despertar, o diretor artístico, o

americano Richard Cragun, partner antoló-

gio da brasileira Marcia Haydée no Ballet

de Sttugart, agradeceu à Prefeitura do Rio

de Janeiro a criação da DeAnima. Aprovei-

tou também para dedicar o espetáculo da

noite a todos os bailarinos do Rio, citando o

Theatro Municipal, a Cia. de Dança Debo-

rah Colker e as companhias apoiadas. Nes-

se gesto gentil, Cragun parecia assumir e

tentar responder a surpresa misturada ao

sentimento de constrangimento que boa

parte da classe de dança experimentava

naquela noite. Surpresa e constrangimento

causados pela pergunta que pairava no ar:

Seria aquela a cara do Rio? Associados a

isso, estavam o desconforto provocado pelo

disparate dos recursos financeiros (somas

bastante altas, tratando-se da dança cario-

ca) que dão sustento a esse projeto e a des-

proporção desse orçamento em relação ao

apoio anual oferecido às outras 13 compa-

nhias. Tudo isso aumenta a expectativa quan-

to ao espetáculo assistido. Sem dúvida, é

muita responsabilidade.

O trabalho eficiente realizado nos pou-

cos meses de ensaio da DeAnima se faz vi-

O

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 6 DE MARÇO • 2002RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 6 DE MARÇO • 2002RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 6 DE MARÇO • 2002RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 6 DE MARÇO • 2002RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 6 DE MARÇO • 2002

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

8 8

sível. Limpeza, clareza e precisão se asso-

ciam ao vigor dos jovens bailarinos. Suas

atuações não deixam nada a desejar, por

exemplo, a do convidado especial Pedro

Goucha Gomes, da companhia do espanhol

Nacho Duato. Bem preparados, eles ame-

nizam até certo ponto as diferenças de suas

formações de origem, mesmo que ainda

haja um longo caminho pela frente para

que um maior entrosamento se faça pre-

sente. É natural.

Tehillin, a primeira coreografia da noi-

te funciona como hors-d’oeuvre para

O despertar. Com música de Steve Reich,

essa peça mais curta apresenta as quali-

dades dinâmicas da companhia e introduz,

de modo um pouco forçado, personagens

que serão centrais em O despertar. Esta

última discorre pela solidão no ambiente

urbano, inspirada no filme Asas do desejo,

de W im W enders. O personagem central é

salvo por anjos da opressão e da indife-

rença misturadas ao caos urbano. O cená-

rio funciona como um personagem tam-

bém, colaborando para fechar o espaço do

palco e jogando os bailarinos em confron-

to permanente.

Roberto Oliveira define sua lingua-

gem como balé contemporâneo. Nas pa-

lavras do coreógrafo, um misto de balé

com a dança contemporânea. A flexibili-

zação das linhas do balé permitindo, por

exemplo, a quebra da narrativa e o uso de

elementos externos ao vocabulário clás-

sico, tem sido explorada há muitas déca-

das, com mais ou menos eficiência, no Bra-

sil e no mundo. Na trajetória de Oliveira,

reconhece-se uma boa experiência em

companhias que desenvolvem essa lingua-

gem como, por exemplo, o Béjart Ballet

Lausanne sob direção de Maurice Béjart.

As coreografias de Roberto Oliveira apre-

sentadas nessa noite não parecem, no en-

tanto, somar algo autoral às propostas de

trabalhos em linhas semelhantes.

Ao final do espetáculo, mais pergun-

tas: Será pertinente a existência de uma

companhia oficial? Será coerente com a

política cultural do município do Rio de

Janeiro, que há anos investe no reforço do

caráter plural das criações, a existência

de sua companhia oficial? Ao final do es-

petáculo, uma constatação: a dança do

Rio tem uma cara. E essa cara não se re-

duz, em absoluto, à apresentada naquela

noite. A cara da dança do Rio permane-

ce porque se transforma. Uma identida-

de que se vem construindo, há anos, pela

parceria de diversos criadores e bailari-

nos, aliando a tradição do balé à pesqui-

sa de vanguarda. As cenas nacional e in-

ternacional já sabem disso.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

8 9

Um projeto ainda frágilEstreia do DeAnima mostra os pontos

fracos da companhia oficial do Rio

ROBERTO PEREIRA

ssistir a O despertar, espetáculo de es-

treia da mais nova companhia de dan-

ça da cidade, DeAnima – Ballet da cidade

do Rio de Janeiro, é tarefa que não dispensa

um certo conhecimento do contexto no qual

esse empreendimento da Secretaria Muni-

cipal de Cultura se deu. Questões que tan-

genciam sua existência aparecem também

no palco, em forma de dança.

A primeira questão sobre a DeAnima,

com relação ao seu estatuto, é que ela apa-

receu aos olhos do cidadão carioca como a

primeira companhia oficial da cidade, con-

tando com a direção artística de Richard

Cragun, bailarino que deixou sua marca

definitiva no balé de Stuttgart, ao lado da

brasileira Márcia Haydée.

De antemão, vale mencionar que a pri-

meira companhia oficial da cidade foi o

corpo de baile do Theatro Municipal que,

mais tarde, passou a pertencer ao Estado. Em

comum, esses dois conjuntos têm a utiliza-

ção da técnica clássica de balé como forma-

ção de seus bailarinos. Enquanto a compa-

nhia mais antiga se utiliza disso para mon-

tagens de obras de repertório, a segunda pre-

ocupa-se em construir o que seu coreógrafo,

Roberto de Oliveira, chama de “balé con-

temporâneo”.

Mas o que pode significar o termo “ofi-

cial” para um grupo inserido numa cidade

que conta com tantas outras companhias de

dança, que transformam juntas, cada uma a

seu modo, a diversidade da cena coreográ-

fica carioca? Uma segunda questão refere-

se ao termo utilizado por Roberto de Oli-

veira para definir seu estilo: balé contem-

porâneo. Na verdade, poucos foram os que

conseguiram construir uma identidade co-

reográfica, driblando as amarras que a téc-

nica do balé impõe.

Fazer respirar o que há de novo enquan-

to estética no que há de tão codificado en-

quanto técnica tem sido ainda um desafio –

e nomes essenciais da atualidade, como Jirí

Kylián, William Forsythe, Van Manem e

mesmo o nosso Rodrigo Pederneiras são

exemplos que logo vêm à lembrança. Não

é a simples adjetivação do balé com o ter-

mo “contemporâneo” que legitima uma

ideia coreográfica. Ideia, em dança, precisa

estar no corpo, cenicamente. Roberto de

A

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 9 D E M A R Ç O • 2 0 0 2R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 9 D E M A R Ç O • 2 0 0 2R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 9 D E M A R Ç O • 2 0 0 2R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 9 D E M A R Ç O • 2 0 0 2R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 9 D E M A R Ç O • 2 0 0 2

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

9 0

Oliveira, no entanto, parece ter faltado à

aula onde se ensinou essa lição.

Por fim, uma última questão, que pai-

rava no ar no Teatro Carlos Gomes, no úl-

timo dia 28, data da estreia da DeAnima:

Qual é o projeto de uma política de dança

que concede uma quantia vultuosa a ape-

nas um grupo, se a cidade conta com tan-

tos outros, alguns com preocupações esté-

ticas semelhantes, e que estão na estrada

há anos e ainda não contam com nenhum

apoio financeiro?

Essas questões aparecem, de alguma for-

ma, na obra O despertar, escolhida para lan-

çar a companhia. Coreograficamente, o que

é “oficial” não é a cara do Rio. O que é con-

temporâneo apenas remete a clichês de mo-

vimentos, sem ideia, sem pesquisa, justa-

mente as condições que marcam essa nova

dança de hoje, mesmo que sob a alcunha de

“balé”. E o que falta enquanto projeto se re-

flete na estrutura da montagem do espetá-

culo: os ótimos bailarinos, que apenas pre-

cisam de mais tempo de convívio para me-

lhor afinação, nada ficam a dever ao baila-

rino convidado, fazendo de sua participa-

ção mais uma questão no meio de tantas

outras. Desse modo, o espetáculo de estreia

espelha a fragilidade de concepção tanto

da peça O despertar, quanto do próprio pro-

jeto da companhia.

A seriedade com a qual deve ser enca-

rada essa nova empreitada não concerne

apenas a todos os bailarinos, coreógrafos,

professores e pesquisadores, que há anos

vêm escrevendo a história da dança no Rio

de Janeiro. Ela é tarefa de cada cidadão, em

seu intuito de entender como seus impostos

podem ser, eticamente, transformados em

dança de qualidade.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

9 1

O encontro do gesto edo movimento no palco

Solos de Dança: Projeto do SESC se firmana agenda carioca como um espaço plural de dança

SILVIA SOTER

omo acontece há três anos, O SESC

abre espaço em março para dança.

Em especial, para a produção de solos e

duos, nicho que, apesar de interessante,

tem, tradicionalmente, pouca oportunida-

de de chegar aos palcos. Este ano, a primei-

ra programação incluiu quatro solos, três

inéditos e outro pouco visto pelo público

carioca. Um segundo programa, com solos

criados por Carlota Portella, Paulo Man-

tuano, Bruno Beltrão e Paula Águas, pode-

rá ser visto de hoje a domingo, no mesmo

palco do SESC de Copacabana.

A curadora Bia Radunsky entregou a

Gilberto Gawronski a organização da noi-

te. O diretor montou uma sequência de pe-

ças que permite localizar uma linha con-

dutora que costura as diferentes propos-

tas. Como resultado, o conjunto de obras

do primeiro programa conduz à reflexão

sobre as relações entre o gesto e o movi-

mento na dança. Se essas ideias muitas

vezes se confundem, algumas caracterís-

ticas permitem distingui-las. O gesto seria

o movimento humano com carga simbólica

ou de comunicação, dirigido ao outro e ao

mundo. Já o movimento possuiria sentido

mais amplo, mais próximo da abstração.

Estaria na natureza como na cultura, li-

gado às noções da física como aceleração,

deslocamento ou ainda na alteração de

um sistema.

Na dança, alguns criadores se debruçam

sobre as possibilidades do gesto como ma-

téria-prima para a construção de um voca-

bulário próprio. O gesto cotidiano é investi-

gado, sofre repetições, subtrações, deforma-

ções, chegando a níveis diferentes de efi-

ciência e abstração. Do gesto podem (ou

não) chegar ao movimento.

Corpo provisório, solo de Ana Vitória

que abriu a programação da semana pas-

sada, é um belo exemplo dessa alquimia.

Dos pequenos gestos, que em cena surgem

apenas para lembrar que ainda são possí-

veis, Ana Vitória chega à ideia de um

corpo-máquina, movimento dotado de

clareza, agilidade e admirável precisão. A

proximidade entre palco e plateia afasta

qualquer frieza. A cena circular do SESC

de Copacabana trouxe ganhos para a peça

como a possibilidade de reconhecer no te-

C

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 1414141414 DE MARÇO • 2002 DE MARÇO • 2002 DE MARÇO • 2002 DE MARÇO • 2002 DE MARÇO • 2002

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

9 2

cido coreográfico gestos de comunica-

ção direta com os espectadores.

Em Memória concreta, solo de Sylvio

D ufrayer dançado pela bonita Alessandra

Lofiego, um lençol branco estendido no cen-

tro do palco desenha uma cama como cená-

rio. Em off, a voz da própria intérprete desfi-

la lembranças íntimas de sua infância e ado-

lescência enquanto encena seu corpo rea-

ge à voz, resgatando a memória nele im-

pregnada. A qui, está no texto e menos na

movimentação a necessidade de maior

elaboração para que o sentido transcenda o

de mero relato pessoal.

O encenador Enrique Diaz foi desafia-

do pela curadoria da mostra a criar uma

peça. O trabalho, defendido com competên-

cia por Mariana Lima, trata da construção

de uma cena, e por que não de uma sequên-

cia de dança, a partir do gesto cotidiano. A

atriz parte de gestos como designar, afastar

e negar, associados a sons abstratos, para

tecer uma partitura gestual limpa e intensa,

a qual se junta um texto de Clarice Lispec-

tor. A peça de Diaz, ao mesmo tempo sim-

ples e sofisticada, serve como uma aula de

composição fundamentada no gesto.

Crianças, de Márcia Milhazes, encerrou

a noite. O bailarino, sempre em percurso

circular, segue um tocador de acordeom e

sua música. Aqui, gesto e música criam am-

bientes afetivos diversos. Mesmo ainda bas-

tante embrionária, a peça aponta os novos

e interessantes rumos de investigação da

coreógrafa.

Em sua terceira edição, o projeto So-

los e Duos no SESC se afirma na agenda

cultural da cidade como um espaço de

dança no plural. Há espaço tanto para

estreias como para peças não inéditas,

para criadores que raramente são vistos

em circuitos oficiais e ainda para a promo-

ção de encontros férteis como, por exem-

plo, o de Enrique Diaz com a dança.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

9 3

Passos, música e interatividadeembalam celebração coreográfica

Solos no SESC: Peças eficientes de Mantuano,Beltrão, Carlota e Paula Águas fecham projeto

SILVIA SOTER

segunda semana dos Solos no SESC –

projeto que levou ao teatro do SESC,

em Copacabana, por duas semanas consecu-

tivas, oito solos criados por coreógrafos cari-

ocas – terminou no domingo em clima de

festa, depois da apresentação de um eficien-

te conjunto de pequenas peças que trouxe-

ram a interatividade e a música para o cen-

tro do palco.

Paulo Mantuano apresentou uma nova

versão de Quasi-infinito transformada pela

presença da música ao vivo de Rafael Ro-

cha. Neste solo, inspirado nas construções

espaciais de Escher, Paulo investiga as re-

lações corpo e espaço em dois níveis com-

plementares: a trajetória que seu corpo de-

senha no espaço, indo da vertical, ao chão

e do chão à vertical e o caminho do movi-

mento circunscrito em seu próprio corpo.

Movimento que o espectador vê nascer, a

partir do estímulo sonoro, e que vê percor-

rer cada parte do corpo do criador-intér-

prete para se transformar em breves sus-

pensões que antecipam um novo início.

Paulo Mantuano, com domínio absoluto

dos caminhos de seu corpo, constrói uma

dança sem arestas na qual, como nos dese-

nhos de Escher, o espaço de dentro e o es-

paço de fora se confundem.

Em Uni, du ni…, Carlota Portella joga

com a ideia de um solo dançado por dois

intérpretes que se alternam no palco. Um

casal, cada um em separado, sofre em cena

a ausência do outro. Mas será que um solo é

apenas uma dança feita por um? A repeti-

ção das entradas e saídas dos intérpretes, o

ambiente afetivo da peça e a carga emocio-

nal do próprio gestual incluem o ausente na

cena e transformam a peça em um duo. Nas

quatro noites do evento, quatros diferentes

casais se revezaram, guardando a mesma

estrutura, mas trazendo marcas próprias a

cada relação a dois.

Fones de ouvidos ligam os espectado-

res à frequência da mente de um jovem,

no impactante Eu e meu coreógrafo no 63,

de Bruno Beltrão. O texto, uma conversa

de fim de noite gravada num quarto de

hotel, expõe a intimidade e os descami-

nhos das reflexões de um rapaz, provocan-

do reações que vão do riso a uma certa

angústia. A dissociação das ideias do

A

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 19 DE MARÇO • 2002RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 19 DE MARÇO • 2002RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 19 DE MARÇO • 2002RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 19 DE MARÇO • 2002RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 19 DE MARÇO • 2002

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

9 4

jovem ganha equivalência precisa na mo-

vimentação derivada da linguagem da

dança de rua. Aquilo que se ouve e aquilo

que se vê em cena são pensamentos e mo-

vimentos partidos, gestos reversíveis e in-

terrompidos, produzindo pequenas constru-

ções não lineares.

Encerrando a noite, a coreógrafa e

bailarina Paula Águas propõe uma brin-

cadeira divertida com a plateia. Munida

de vários CDS, Paula convida os especta-

dores a escolherem as músicas a partir das

quais ela irá improvisar. Em Qual é a

música?, cada espectador pode interagir

com a intérprete através desse controle

remoto musical. O espectador torna-se, ao

mesmo tempo, DJ e voyer. O resultado é

bastante interessante. A bailarina não se

deixa cair na relação fácil de ilustrar a

música escolhida, e a ansiedade dos es-

pectadores em contribuir resulta num tex-

to coreográfico picado por cortes prema-

turos produzindo no espectador um misto

de frustração e “gosto de quero mais”.

Embalados pelo jogo de Paula Águas,

ao final da noite, todos os intérpretes vol-

tam ao palco numa festa improvisada, ce-

lebrando a confirmação dos Solos no

SESC como início da temporada carioca

da dança contemporânea.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

9 5

Rostropovich rouba acena e faz a sua festa

Romeu e Julieta: Montagem do clássico de Shakespeareno Municipal mostra desequilíbrio entre a qualidade da

direção musical e a coreografia

SILVIA SOTER

uando a cortina sobe, o único foco ilu-

mina a cabeça de Mstislav Rostro-

povich, no centro do palco. A imagem im-

pactante que inaugura o espetáculo Romeu

e Julieta sintetiza a singularidade da con-

cepção do russo Vassiliev para o mito de

Shakespeare: a música não é apenas uma

peça importante, e sim o elemento central

dessa versão. E a dança está lá para conferir

maior visibilidade à música. “Veja a música

e escute a dança”, sugeria Balanchine.

A presença da orquestra no centro do

palco é apenas uma das formas de dar ma-

terialidade à ideia. Os tradicionais telões de

fundo do cenário foram substituídos por pro-

jeções criadas pelo argentino Tito Egurza,

que ora criam ambientações e localizam a

ação dramática, ora imprimem texturas, de-

talhes e cores, comentando a ação. A movi-

mentação dos bailarinos restringe-se a ape-

nas duas faixas de palco, uma no proscênio

que avança sobre o fosso da orquestra e a

outra ao fundo e acima do plano dos músicos.

Ainda no prólogo, torna-se evidente que

buscar um outro equilíbrio entre música e

dança não é tarefa fácil. Antes que o olhar

do espectador possa se desligar do fascínio

exercido pela figura de Rostropovich à

frente da orquestra, a cena é invadida pe-

los bailarinos em figurinos estilizados, apre-

sentando uma Verona dividida por cores e

fidelidades. Neste e em outros momentos

da noite, a dança parece ser prejudicada

pela quantidade excessiva de estímulos vi-

suais e pela exiguidade do espaço destina-

do aos conjuntos.

O elenco da noite de estreia, encabeça-

do por Roberta Márquez e Thiago Soares,

confirma a competência e o amadurecimen-

to artístico da nova geração do Theatro Mu-

nicipal. É preciso ressaltar a predominân-

cia dos papéis masculinos, defendidos com

brilho e segurança pelos solistas.

Destacam-se as atuações de André Va-

ladão como o brincalhão Mercucio, de Mar-

celo Misailidis, como o viril Teobaldo e, ain-

da, as participações de Rodrigo Negri, Vi-

tor Luiz e René Salazar como Benvólio,

Paris e Gregório, respectivamente. Cláu-

dia Mota imprime severidade e firmeza à

sra. Capuleto, e Lourdja Mesquita realiza

uma ama amorosa e maternal.

Q

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOR I O D E J A N E I R OR I O D E J A N E I R OR I O D E J A N E I R OR I O D E J A N E I R OR I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 2 5 D E M A I O • 2 0 0 2 • S Á B A D O • 2 5 D E M A I O • 2 0 0 2 • S Á B A D O • 2 5 D E M A I O • 2 0 0 2 • S Á B A D O • 2 5 D E M A I O • 2 0 0 2 • S Á B A D O • 2 5 D E M A I O • 2 0 0 2

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

9 6

O desejo de isolamento e intimidade

experimentado pelo casal protagonista é

partilhado pelo espectador. Quando a cena

está vazia, restando apenas (apenas?) Ros-

tropovich, sua orquestra e Roberta e Thia-

go, o espetáculo Romeu e Julieta conhece

seus pontos mais altos. A sobriedade e a

nobreza de Thiago fazem dele um Romeu

preciso, ainda que contido, enquanto as inú-

meras qualidades da jovem Roberta a

transformam numa impecável Julieta.

Ainda que não dê conta de equilibrar a

obra de Prokofiev, sob a batuta de Rostro-

povich, e a dança, na coreografia de Vassi-

liev, o espetáculo guarda surpresas e alguns

momentos que ficam na memória.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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Ana Botafogo dominaa cena no Municipal

Romeu e Julieta: Sabedoria de estrela

SILVIA SOTER

na Botafogo e André Valadão estrea-

ram no sábado nos papéis principais

de Romeu e Julieta, espetáculo dirigido e co-

reografado pelo russo Vladimir Vassiliev, e

com Mistilav Rostropovich comandando

com rigor e brilho a orquestra, subvertendo

os moldes habituais de relação entre músi-

cos e corpo de baile. No Romeu e Julieta de

Vassiliev – que encerra temporada na sex-

ta-feira no Theatro Municipal –, para garan-

tir seu lugar em cena, a dança precisa ser

defendida sem direito a deslizes ou erros, o

que faz necessário maior afinação nas ce-

nas de conjunto do corpo de baile.

Apesar da originalidade da proposta de

levar a orquestra para o palco e tirar a dan-

ça de sua posição privilegiada, a versão de

Vassiliev parece a meio caminho entre uma

leitura mais ousada e a tradição. Sinais des-

sa indecisão manifestam-se no figurino, que

não se define entre a limpeza e a estiliza-

ção de linhas e cores e trajes de época, e na

concepção cenográfica, que substitui os te-

lões de fundo por recursos multimídia. A

ideia de criar uma cenografia virtual respon-

de à necessidade de rapidez das trocas de

cenas, já que a presença da orquestra no

palco impede que haja pausas e respirações

entre os movimentos da música. No entan-

to, a ferramenta multimídia, dotada de pos-

sibilidades quase infinitas, restringe-se, na

prática, a criar digitalmente em telões a ar-

quitetura renascentista. Assim, sem dar con-

ta de optar por um caminho definido, tradi-

ção e ousadia saem perdendo.

A distribuição dos papéis masculinos na

noite de sábado enfraqueceu o trio consti-

tuído por Romeu e seus companheiros. Vi-

tor Luis ainda parece buscar sua interpre-

tação de Mercúcio e só encontra o tom em

sua cena final. André Valadão tem atuação

bastante correta como Romeu, mas sem o

brilho de seu Mercúcio.

Sem ter como suporte um desenho

coreográfico especialmente interessante,

Ana Botafogo usa enorme sabedoria e

constrói sua Julieta na interpretação dra-

mática da personagem. Acerta. Com segu-

rança e tranquilidade de quem se sente à

vontade no palco, a primeira bailarina do

Municipal domina absoluta a cena. Seu ros-

to e gestos desenham com nuances a traje-

tória trágica de Julieta. Sua interpretação

narra cada detalhe da história. Ao longo das

três horas de espetáculo, há alegria inocen-

te, obediência, rebeldia, amor e desespero,

sem maneirismos ou desperdício. É nela que

o mito de Shakespeare respira.

A

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 27 DE MAIO • 2002 SEGUNDA-FEIRA • 27 DE MAIO • 2002 SEGUNDA-FEIRA • 27 DE MAIO • 2002 SEGUNDA-FEIRA • 27 DE MAIO • 2002 SEGUNDA-FEIRA • 27 DE MAIO • 2002

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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Corpo de baile brilhapela musicalidade

Giselle/Balé da Ópera de Paris: Agnèsnão convence em papel-título, enquanto Bart mostra

competência em suas variações

SILVIA SOTER

mas das obras mais expressivas do

balé romântico chegou ao Theatro

Municipal do Rio, no último sábado, defendi-

da pela companhia que a viu nascer. O Balé

da Ópera de Paris elegeu Giselle, na versão

coreográfica de Coralli e Perrot enriquecida

pelas importantes contribuições de Petipa,

como representante da tradição, para essa

turnê brasileira. Na terça e quarta-feira, o Rio

assistirá a Jewels, de George Balanchine,

peça que entrou recentemente no repertório

sempre renovado da companhia.

Inspirada na lenda eslava das wilis, jo-

vens que morrem antes das núpcias e são

condenadas a vagar à noite, obrigando os

rapazes que capturam a dançar até a morte,

Giselle tornou-se um arquétipo do balé ro-

mântico, referência para criação coreográ-

fica e, ao longo de quase dois séculos de

existência, inspirou inúmeras remontagens

e releituras.

Sempre que uma obra de repertório é

remontada há, inevitavelmente, uma relei-

tura. Por mais fiel que a remontagem se pre-

tenda, a coreografia é desenhada por corpos

de outros bailarinos e são eles que traduzi-

rão para o público o encontro entre dois

tempos: o momento da criação da peça e o

instante da cena. Algumas adaptações, mais

ou menos evidentes, buscam ainda atualizar

a obra, produzindo resultados marcados por

singularidades.

Em Giselle da Ópera de Paris, há um

cuidado em não ser excessivo na interpre-

tação dramática. As cenas de pantomima,

responsáveis pelo fio narrativo, são traba-

lhadas de forma econômica, garantindo as

nuances de cada mudança de situação sem

jamais cair no exagero. Já que não será na

ênfase de interpretação que os personagens

irão se desenhar aos olhos do público, a dis-

tribuição dos papéis requer enorme preci-

são para que as características centrais de

cada personagem se façam visíveis.

Na noite de estreia, a estrela Agnès

Letestu, bailarina precisa e segura, mas que

não possui o physique du rôle da personagem,

não convenceu no papel de Giselle. Houve

fragilidade de menos e loucura de menos na

sua composição da jovem camponesa apaixo-

nada por Loys e pela dança, criando, ainda

no primeiro ato, uma distância excessiva

U

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE JUNHO • 2002 • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE JUNHO • 2002 • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE JUNHO • 2002 • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE JUNHO • 2002 • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE JUNHO • 2002

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

9 9

entre público e obra. Estreando como Albre-

cht, Jean-Guillaume Bart, mesmo parecen-

do ainda buscar o equilíbrio entre a nobre-

za inerente ao personagem e o seu disfarce

de camponês, mostrou grande competência

em suas variações, sobretudo no segundo ato.

O corpo de baile, depois de alguns ajus-

tes no início do primeiro ato, brilhou por

sua homogeneidade e musicalidade. No

segundo ato, apesar de momentos de im-

precisão, as cenas de voo das wilis foram

garantidas pela leveza e pela ausência

absoluta de ruído do contato das bailari-

nas com o chão.

Sublinhados por uma bela iluminação,

os cenários e os figurinos, reconstituídos

a partir dos croquis originais e de outros

documentos de época, são um espetáculo

à parte. Ponto sempre delicado nas obras

de repertório, a ambientação da monta-

gem francesa alia grandiosidade e limpeza

de linhas.

Ao final do primeiro ato, uma surpre-

sa: por momentos, a movimentação é sus-

pensa, criando bonitos tableaux vivants,

quando o tempo é esgarçado para dar

visibilidade à hesitação de Giselle em

acreditar no seu trágico destino.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

100

Corpo de bailerouba a cena

Balé da Ópera de Paris surpreende ao fazerdo primeiro ato o destaque de Giselle

ROBERTO PEREIRA

mais antiga companhia de balé do

mundo, a da Ópera de Paris, iniciou sua

turnê pelo Brasil mostrando ao público ca-

rioca no Theatro Municipal, neste último sá-

bado, sua versão para a obra-prima român-

tica dos balés de repertório: Giselle. Trata-

se de um momento especial, já que esse

mesmo balé, desde sua estreia em 1841, pela

mesma companhia, vem sofrendo transfor-

mações: algumas que tentam se aproximar

de um original já distante, outras que radi-

calizam em novas leituras, como a do sueco

Mats Ek. O que há de especial na versão

apresentada aqui é a tentativa de recupe-

rar a montagem que o francês Marius Peti-

pa produziu na Rússia, em 1887, e que trou-

xe de volta o balé à sua primeira casa, atra-

vés da histórica companhia dos Ballets Rus-

sos de Diaghilev, que contava com os mitos

Nijinsky e Karsavna, em 1910.

Assim, enquanto cenários e figurinos são

reconstruídos a partir dos croquis originais

do artista russo Alexandre Benois, a coreo-

grafia prima por trazer de volta à cena as

qualidades românticas do balé. Tal cuidado

pode ser conferido, sobretudo, no primeiro

ato, com certeza o melhor dos dois (algo iné-

dito, na medida em que o segundo ato é sem-

pre o mais famoso pela poeticidade do bal-

let blanc), pois conta com uma pantomima

minuciosa, resultando numa narrativa pre-

cisa, tal como deve mesmo ser. O corpo de

baile aparece aí seguro, coeso, mesmo que

Mélanie Hurel e Jérémie Bélingard, baila-

rinos responsáveis pelo pas-de-deux dos

camponeses, tenham se mostrado um tanto

afoitos, o que se podia ver claramente nas

finalizações de seus passos.

Ao retornar ao palco para segundo ato,

entretanto, esse mesmo corpo de baile não

corresponde à exatidão exigida pela core-

ografia, principalmente na sequência dos

arabesques na famosa cena do baile das

wilis. Isso sem contar no incidente do véu

de uma delas, que, caído no palco, manchou

essa cena tão emblemática. Stéphanie

Romberg, como a rainha Mirtha, estava tão

segura da crueldade de sua personagem,

que parece ter esquecido a sutileza do sor-

riso enigmático que a caracteriza, o que

traz à tona os atritos da dualidade român-

tica de sedução e horror.

A

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE JUNHO • 2002 • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE JUNHO • 2002 • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE JUNHO • 2002 • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE JUNHO • 2002 • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE JUNHO • 2002

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

101

Mesmo com essas desigualdades entre

os dois atos, o corpo de baile parece mes-

mo ter sido a étoile da noite, roubando a

cena de Jean-Guilhaume Bart e Agnès

Letestu, nos papéis principais. Enquanto o

bailarino, em sua estreia como Albrecht, é

impecável em seu desempenho técnico, em

especial nos saltos e baterias, carece ainda

de maturidade dramática, tão importante,

por exemplo, no segundo ato. Já Letestu,

bailarina que surpreende pela sua alta es-

tatura, não acomoda bem em seu corpo a

dualidade da frágil menina do primeiro ato

e sua transformação em um ser etéreo no

segundo. Se é neste último ato em que me-

lhor atua, o desafio confiado às primeiras

bailarinas de transitar entre esses dois

mundos tão distintos parece não ter sido

vencido nessa noite.

Assim, pôde-se comprovar que o intui-

to da companhia era o de uma remonta-

gem cuidadosa, mesmo que se note a au-

sência de alguns detalhes importantes,

como a cena da aparição de Giselle vin-

da do túmulo e, sobretudo, a cena em que

ela leva seu amado para perto da cruz, a

fim de protegê-lo dos poderes satânicos de

sua rainha, ambas no segundo ato, e tão im-

portantes para a compreensão do balé.

Mas, nesse zigue-zague entre novas e ve-

lhas versões, há de se considerar perdas e

ganhos. Para o público brasileiro, num ba-

lanço final, com certeza ganhou-se mais do

que se perdeu.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

102

Ilustração de ritmosCoreografia de O grande circo

místico se rende à música

ROBERTO PEREIRA

ideia era comemorar os 20 anos de

uma obra que, se não permaneceu na

memória do grande público no que se refere

à dança, replicou em sucessos no que se refe-

re às canções, assinadas por dois grandes mi-

tos da MPB: Chico Buarque e Edu Lobo. O

grande circo místico, balé que estreou no

Teatro Odylo Costa Filho, anteontem, pela

companhia do Teatro Guaíra, de Curitiba,

volta à cena comprometido com essa come-

moração, correndo todos os riscos que uma

empreitada desse tipo sempre oferece.

Outra ideia era a de uma nova versão,

já que a coreografia original, de Carlos Trin-

cheira, parecia datada. Para tanto, reuniu-se

um time de artistas que deveria recuperar

o frescor da história mítica de uma família

circense, que havia ficado marcada defini-

tivamente pelo poder que as canções popu-

lares adquirem ao longo do tempo, quando

se trata de belas composições, como é o caso.

Um grande desafio, sem dúvida.

O primeiro problema, entretanto, está na

opção do coreógrafo que assina a nova ver-

são, Luis Arrieta, por percorrer de forma li-

near o que a música sugere. Sob o poder

desta última, a coreografia fica relegada à

mera ilustração de ritmos e, ainda pior, à

legenda das letras. Na dança, a dramaturgia

deve investigar no corpo sua possibilidade

de tradução, e não apenas cair na fácil arma-

dilha de tentar referendar o que está sendo

dito por uma outra linguagem, no caso, a

canção. O resultado, infelizmente, é a previ-

sibilidade, qualidade que impede qualquer

frescor de novas versões, e de comemorações,

portanto. Isso pode ser comprovado, sobre-

tudo, no duo da canção Beatriz, onde Arrieta

faz uso apenas do que ele provou saber fazer

há 20 anos também: um pas-de-deux cheio de

clichês coreográficos, de onde escorre um

açucarado entendimento de uma melodia tão

familiar ao público. Basta fechar os olhos por

uns instantes para adivinhar, sem erro, os mo-

vimentos que ali se atualizam. A coreografia,

mesmo à revelia, ainda continua datada.

Nem mesmo a contribuição de outros

artistas parece poder respirar sob as réde-

as onipotentes de Arrieta, que também as-

sina a direção do espetáculo. Dani Lima,

jovem coreógrafa carioca, responsável pe-

las coreografias aéreas, cumpriu burocra-

A

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 2 9 D E J U N H O • 2 0 0 2• S Á B A D O • 2 9 D E J U N H O • 2 0 0 2• S Á B A D O • 2 9 D E J U N H O • 2 0 0 2• S Á B A D O • 2 9 D E J U N H O • 2 0 0 2• S Á B A D O • 2 9 D E J U N H O • 2 0 0 2

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

103

ticamente o que lhe foi reservado, mesmo

que seja ainda evidente a pouca familia-

ridade dos bailarinos com sua linguagem.

Já Rosa Magalhães, responsável pelos ce-

nários e figurinos, ao optar também pela

ilustração óbvia da música, esqueceu-se

de que se tratava de dança, e investiu numa

encenação carnavalesca, especialidade

sua, que pode ser conferida sobretudo na

cena dos animais que vão sendo retirados

um de dentro do outro como aquelas bo-

nequinhas russas. A semelhança com as re-

centes comissões de frente das escolas de

samba é evidente.

Uma produção cara, ótimos baila-

rinos (parabéns ao trabalho de Elaine de

Markondes) e uma tarefa ingrata de co-

memoração. Ouvir as canções ainda é o

modo mais gratificante de recuperar os

20 anos dessa obra tão especial.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

104

Monólogo de movimentosDiálogo de Deborah Colker comas artes plásticas não se conclui

ROBERTO PEREIRA

novo espetáculo de Deborah Colker

e sua companhia, que estreou no Rio

de Janeiro anteontem, no Theatro Munici-

pal, busca um diálogo entre a dança e as artes

plásticas. Para tanto, a coreógrafa partiu de

quatro trabalhos desenvolvidos por diferen-

tes artistas, resultando em momentos distin-

tos que compõem sua obra intitulada 4 por

4. Na verdade, essa aproximação é algo que

existe na dança há muito tempo, já que as

artes plásticas sempre funcionaram não

apenas como cenários e figurinos, mas tam-

bém interferindo coreograficamente no cor-

po e em seus movimentos. Deborah Colker,

contudo, parece ficar ainda indecisa entre as

tantas possibilidades existentes em tal rela-

ção, o que se reflete em sua coreografia.

Em Cantos, primeiro momento da noite,

o artista plástico Cildo Meireles compare-

ce com seis grandes estruturas desenvolvi-

das no final da década de 1960. A ideia se-

ria a de explorar as qualidades existentes

numa situação espacial bastante específica,

mas Deborah, ao optar por uma excessiva

frontalidade, acabou por achatar o que lá

existia antes como recurso coreográfico.

Como resultado, o que antes poderia ser in-

vestigado em seu caráter de canto, de esqui-

na, transforma-se quase numa parede em

que, ao contrário do jogo de esconder e re-

velar, oferece o explícito e dança desenvol-

vida pelos bailarinos. Esta, aliás, auxiliada

pelo figurino assinado por Yamê Reis, apro-

xima-se muito mais da linguagem da publi-

cidade, ao optar pela representação de uma

sensualidade videoclipada, rápida, quase

que de instantes fotográficos.

Os quatro artistas integrantes do Chel-

pa Ferro foram os responsáveis por um dos

quadros mais interessantes do espetáculo:

Mesa. Objeto metamorfoseado em obra de

arte, essa mesa elaborada por eles ofereceu

à coreógrafa recursos diversos de explora-

ção de espaços, deslocamentos e intensida-

des de movimentos. Entretanto, a dança pa-

receu não compartilhar com o objeto uma

de suas qualidades mais explícitas, que era

o fato de aparecer revelando proposital-

mente suas engrenagens. Era a chance de

mecânicas diversas, da mesa e do corpo,

dialogarem, mesclarem-se, o que efetiva-

mente não ocorre. Já Povinho, desenvol-

O

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O • R I O D E J A N E I R O • R I O D E J A N E I R O • R I O D E J A N E I R O • R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • S Á B A D O • S Á B A D O • S Á B A D O • S Á B A D O • 6 D E J U L H O • 2 0 0 26 D E J U L H O • 2 0 0 26 D E J U L H O • 2 0 0 26 D E J U L H O • 2 0 0 26 D E J U L H O • 2 0 0 2

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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vido a partir de dois grandes painéis assi-

nados por Victor Arruda, foi, com certeza, o

quadro mais problemático da noite. O ges-

to que se quer infantilizado se perde em uma

movimentação enfraquecida em termos de

vocabulário coreográfico, parecendo, antes,

uma homenagem ao jazz, linguagem carac-

terística de uma época da Broadway. O ges-

to, portanto, aparece por demais datado, e

seu diálogo com a pintura não se efetua.

Por fim, em Vasos, Deborah revisita

dois momentos emblemáticos de sua car-

reira. O primeiro deles é sua atuação

como pianista, enquanto duas bailarinas,

excelentes, dançam sobre as pontas. E o

segundo é sua volta, sempre ansiosamen-

te aguardada pelo público, ao risco. Se o

primeiro oferece um feliz momento de

quebra de uma sonoridade excessivamen-

te homogênea desenvolvida por Berna

Ceppas e Kassin, o segundo trabalha com

o perigo de um espaço habitado matemati-

camente por vasos, idealizado por Gringo

Cardia. O desafio é o movimento dos bai-

larinos entre eles, sem danos para ne-

nhum dos lados. Novamente, a coreó-

grafa parece deixar escorrer pelos dedos

a possibilidade de, no corpo e, portanto,

na dança, traduzir tal desafio.

Deborah Colker, em 4 por 4, confirma

sua habilidade impecável de construir

obras que se sustentam sob o registro do

espetacular. Transformar tal habilidade

em uma chance de se fazer pensar é tare-

fa que ela, visivelmente, parece ainda

querer vencer.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

106

Dança que operano universo pop

4 x 4: O que o grande público conhece, desejaver e, quem sabe, deseja possuir e ser

SILVIA SOTER

a última quinta-feira, o público vibrou

com a coreógrafa mais pop do Rio de

Janeiro. A Companhia de Dança Deborah

Colker estreou 4 x 4 para um Theatro Mu-

nicipal lotado como há muito não se via.

Nesta última criação, a coreógrafa trouxe

as artes plásticas como matéria para sua

dança, através das obras de Cildo Meirel-

les, de Vítor Arruda, do grupo Chelpa

Ferro e de Gringo Cardia.

Desde Velox, Deborah vem explorando

diferentes suportes para a dança. A quarta

parede materializada em Velox, a roda gi-

gante emblemática do passeio descompro-

missado que a obra de Deborah se propõe

em Rota e os planos basculantes de Casa

servem de norte para a construção coreográ-

fica. O espaço para Deborah é concreto e

arquitetural. Sua dança responde de forma

precisa e, às vezes, excessivamente rigoro-

sa ao que cada espaço sugere e autoriza.

É nesse registro que se estabelece, quase

o tempo todo, o encontro entre a dança e as

artes plásticas em 4 x 4. Na maior parte dos

quadros, a obra serve de lugar de ação mais

do que de estímulo ou alimento para desvios

e novas possibilidades de investigação. Se há

interação direta entre os bailarinos e as

obras não é no corpo que a mistura se dá, e

sim na coabitação entre a dança marcada por

uma tonicidade ainda pouco cambiante e

cada objeto/ambientação/partner

A primeira peça da noite, Cantos, traz

seis esquinas de Cildo Meirelles para o pal-

co. A sensualidade da luz, da música e dos

belos figurinos é confirmada pela movi-

mentação dos bailarinos. Os três planos

servem, aos moldes de Casa, como suporte

para investigar novos apoios para a dança

e ambientam encontros de uma sedução

elegante. Logo nesse primeiro quadro, tor-

na-se visível a beleza e a competência dos

bailarinos da companhia.

Para Mesa, o sábio grupo Chelpa Ferro

criou um misto de mesa e esteira rolante

sobre a qual os bailarinos se equilibram. A

continuidade do deslocamento da mesa ser-

ve de base para um jogo lento entre o avan-

çar e o recuar, passeios na linha do tempo.

É exatamente quando Deborah experi-

menta uma relação diferente das anterio-

res entre obra e dança, deixando de usá-la

N

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 8 DE JULHO • 2002 SEGUNDA-FEIRA • 8 DE JULHO • 2002 SEGUNDA-FEIRA • 8 DE JULHO • 2002 SEGUNDA-FEIRA • 8 DE JULHO • 2002 SEGUNDA-FEIRA • 8 DE JULHO • 2002

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

107

como lugar para explorá-la como universo

imaginário, que a coreógrafa se coloca em

posição mais frágil. Em Povinho, dois telões

gigantes de Vitor Arruda são esvaziados por

uma leitura bastante rasa em que as cores e

imagens representadas ganham citações nos

gestos infantis. Apesar da busca de amplia-

ção do vocabulário de movimentos, uma

maior elaboração ainda parece necessária.

Abrindo a segunda parte do espetáculo,

As meninas aponta, finalmente, uma nova

trilha a ser percorrida por Deborah. A o pia-

no, a coreógrafa traz Mozart para ambien-

tar a dança nas pontas de duas bonitas bai-

larinas. Talvez o que faz As meninas tão in-

teressante em 4 x 4 seja exatamente o fato

de trazer visível aos olhos do público a dan-

ça em seu momento de elaboração, de ex-

ploração de caminhos e possibilidades. Esse

algo que ainda não está fechado e pronto é

borrado de forma feliz pela distribuição dos

vasos no palco, mais uma vez revelando as

entranhas que a dança de Deborah rara-

mente utiliza como matéria de criação.

Gringo Cardia é a grande estrela em

Vasos, última peça da noite. A precisão

milimétrica da disposição dos 90 vasos de

cerâmica construída diante dos olhos do

público já é um espetáculo à parte. Dan-

çar entre eles, uma experiência circense

que requer a segurança e a agilidade de

um atirador de facas. Mais uma vez aqui

o espaço arquitetural retorna, diagrama-

do pelos vasos.

Quem acompanha a trajetória da co-

reógrafa desde Vulcão, percebe que a dan-

ça de Deborah opera no universo pop. O

glamour, o mundo fashion, a música ele-

trônica, a juventude dourada e sedutora

estão tão aderidas na dança de Deborah

quanto, por exemplo, na publicidade. Sua

dança corresponde ao que o grande públi-

co conhece, deseja ver e, quem sabe, de-

seja possuir e ser.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

108

Um balé marcado peloexcesso de elementos

Cinderela, ser ou...(a)parecer?: Sem nuances

SILVIA SOTER

história de Cinderela inspirou diversos

coreógrafos com resultados bastante

distintos. Nas últimas décadas, a fábula de Per-

rault ganhou leituras variadas como a trans-

posição da história da gata borralheira para

uma loja de brinquedos assinada por Maguy

Marin ou a versão que Rudolf Nureiev criou

em 1986 para a Ópera de Paris em que a fá-

bula se passa em Hollywood. Nesta, Cinde-

rela é uma atriz iniciante por quem o ator prin-

cipal se apaixona. No Rio, no final dos anos

70, Dalal Achcar assinou uma versão de Cin-

derela com música de Donna Summer, em-

balada pela era da discoteca e protagoniza-

da por Ana Botafogo. Na última quinta-feira,

o DeAnima Ballet da cidade do Rio de Ja-

neiro estreou Cinderela…ser ou (a)parecer?,

espetáculo que fica em cartaz até o dia 28 de

julho, no Teatro Carlos Gomes.

A versão de Cinderela assinada por Ro-

berto Oliveira é transportada para o mun-

do da moda. Mas não é na elegância e na

sofisticação que o coreógrafo se apoia e sim

no que há de excessivo, fútil e afetado num

ambiente de competições e vaidades. Sua

leitura é marcada pelo estereótipo e pela

oposição do que é belo e fashion e do que

não o é. Bailarinas-modelos desfilam seus

corpos musculosos em lingeries sedutoras,

enquanto figurantes obesas, também em

roupas de baixo, explicitam esse contrapon-

to sentadas na plateia na cena do desfile. Na

Cinderela de Roberto de Oliveira não há

espaço para nuances.

Em termos coreográficos, Roberto bus-

ca flexibilizar a técnica clássica. Quedas e

rolamentos associam-se a variações sobre

as pontas. Logo no início do espetáculo, duas

bailarinas imitam passos de danças presen-

tes nos programas de televisão. É de se es-

tranhar, no entanto, que a liberdade a que o

criador se autoriza restringe-se ao vocabu-

lário da técnica clássica, mas não à ideia

mesma de balé.

Sobre a partitura de Prokofiev, o co-

reógrafo constrói o que chama de um

balé-história, isto é, uma peça em que o

compromisso com a narrativa linear e com-

preensível está selado, assim como estava

nos grandes balés românticos. Recursos

como o libreto e, sobretudo, a pantomima

são centrais na peça. Historicamente, a

A

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 18 DE JULHO • 2002• QUINTA-FEIRA • 18 DE JULHO • 2002• QUINTA-FEIRA • 18 DE JULHO • 2002• QUINTA-FEIRA • 18 DE JULHO • 2002• QUINTA-FEIRA • 18 DE JULHO • 2002

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

109

pantomima substitui sequüências dançadas

para avançar o fio narrativo, já que a pala-

vra, solução mais imediata, não cabia na tra-

dição do ballet. O curioso é que em Cinde-

rela ser ou (a)parecer palavras e exclama-

ções sonoras têm lugar, e a pantomima per-

de função e torna-se alegoria.

Os bailarinos da atual formação da

companhia dão conta de suas tarefas com

eficiência. A jovem e talentosa Nina

Botkay garante delicadeza ao papel de

Cinderela. Apesar de sua bela figura, falta

a Fernando Bersot mais maturidade para

tornar-se um partner à altura de Nina Botkay.

Fran Mello constrói Tio Fairy com seguran-

ça e bom timing de cena. Ainda que absolu-

tamente submersos no excesso de elemen-

tos visuais, figurantes e participações especi-

ais, os jovens intérpretes do DeAnima são,

sem dúvida, o melhor do espetáculo.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

110

Cinderela para virar cultDeAnima surpreende com versão

trash do conto de fadas e ótimos bailarinos

ROBERTO PEREIRA

uem for assistir ao mais novo espetá-culo da companhia DeAnima Ballet

Contemporâneo, até dia 28 de julho no Tea-tro Carlos Gomes, vai ter a chance de se de-parar com uma qualidade de dança bastan-te interessante. Cinderela – Ser ou a/pare-

cer? não é apenas mais uma versão coreo-gráfica do clássico conto de fadas, agoraambientado no mundo da moda atual, mastrabalha com elementos essenciais de umaestética pós-moderna.

Ao investir no exagero e no caricato, ocoreógrafo Roberto de Oliveira deixa cla-ro que o que lá aparece como balé deve serantes entendido como uma possibilidade nadança daquilo que no cinema e nas artesplásticas já existe: seu aspecto trash (lixo, eminglês), ou seja, algo propositalmente feitopara borrar julgamentos estabelecidos doque é belo, harmonioso e benfeito. O resul-tado como balé se configura assumidamen-te numa dimensão de puro entretenimento,e a relação com o público é imediata.

O design do programa, os cenários extra-vagantes, os figurinos óbvios e de cores estri-dentes (vale até sapatilha de pontas revesti-da de oncinha ou brocado e bobs na cabeça),uma luz sem nuance que oscila entre o pink

e o azul claro e uma pantomima exagerada,todos ao lado da música de Prokofiev, deixamclaro como o que antes operava no registro

do erudito, o balé, agora é transformado empopular, sem concessões. Nesse processo, o ca-nal pós-moderno é explícito.

Para tanto, os ótimos bailarinos da com-panhia parecem ter assumido com compe-tência o que lhes foi proposto. A jovemNina Botkay, responsável pelo papel-títu-lo, apresenta-se como uma bela e promis-sora bailarina, mas que ainda carece dematuridade, enquanto a excelente LaraKacowicz investe sem pudor em algo quese assemelha a um show de transformista,qualidade, aliás, presente em todo o espe-táculo. Apenas Fernando Bersot, como oestilista Prince (até nos nomes as relaçõessão óbvias), erra no tom de seu persona-gem ao compô-lo lírico demais, tal comonos balés românticos, destoando da cari-catura espalhada por todo o elenco.

Mesmo avesso a conceitos, Roberto deOliveira parece trabalhar deliberadamen-te com alguns deles em seu balé. Popular ouerudito, trash ou cult, Cinderela – Ser ou a/parecer? trafega com desenvoltura entre ex-tremos da pós-modernidade. Assistir a essebalé é como estar diante de um filme de JohnWaters, ou até mesmo de uma novela mexi-cana (Betty, a feia, em exibição na Rede TV,é aqui um ótimo exemplo). Se o trash viracult, é apenas uma questão de tempo, e essa

Cinderela, com certeza, tem tudo para isso.

Q

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 2 0 D E J U L H O • 2 0 0 2R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 2 0 D E J U L H O • 2 0 0 2R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 2 0 D E J U L H O • 2 0 0 2R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 2 0 D E J U L H O • 2 0 0 2R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 2 0 D E J U L H O • 2 0 0 2

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

111

Sempre um passo adianteSantagustin marca um avançona trajetória do Grupo Corpo

ROBERTO PEREIRA

ara os olhos desavisados, o mais novo

trabalho do Grupo Corpo, Santagustin,

que teve sua estreia na cidade, na última

quinta-feira no Theatro Municipal, traria, à

primeira vista, apenas os movimentos carac-

terísticos que Rodrigo Pederneiras, seu co-

reógrafo, vem desenvolvendo há um bom

tempo, com outro figurino, outro cenário e

outra música. Ultrapassando as armadilhas

de uma primeira leitura, mais fácil e impres-

sionista, há de se acurar os olhos para per-

ceber ali avanços fundamentais na trajetó-

ria ímpar dessa companhia de dança con-

temporânea brasileira.

Para quem constrói um vocabulário core-

ográfico, coisa rara entre os criadores de dan-

ça, cada nova obra surge como um desafio de

extrair sentidos novos desse vocabulário ou,

mais ainda, de alargá-lo. Para quem assiste,

resta a tarefa minuciosa de perceber onde o

movimento se inaugura como novo a partir

de sua relação com o já conhecido sem, con-

tudo, perder a assinatura de quem os cria. Em

Santagustin, Pederneiras consegue mais uma

vez tal façanha, proporcionando ao público

a oportunidade desse exercício, sobretudo por

ser apresentada após Parabelo, outra obra da

companhia, de 1997.

A temática, que circula entre jogos pos-

síveis de amor e humor, parte da história

do filósofo Santo Agostinho e suas relações

entre os prazeres da carne e a sua conver-

são ao cristianismo. Em dança, esses jogos

aparecem em instigantes duos, que se al-

ternam entre homens e mulheres, homens

e homens, mulheres e mulheres. Coreogra-

ficamente, Pederneiras não só experimen-

ta novos movimentos, o que para ele se

pode chamar de verdadeiros neologismos,

como também recupera outros, mais pró-

ximos do balé, que funcionam aqui quase

como “licenças poéticas”, numa inversão

absolutamente nova.

Dentro desse espírito licencioso, tanto

do filósofo quanto do coreógrafo, vale um

coração despudoradamente rosa, de pelú-

cia, como cenário, sendo texturizado pela

invenção fresca dos figurinos assinados por

Ronaldo Fraga, em sua estreia na equipe

tão coesa do Grupo Corpo. Valem também

versos como “chorar é coisa do amor, amor

coisa do coração”, na voz cortante de Tetê

Espíndola, numa música que transita o tem-

po todo entre os atritos do humor e do amor,

sabiamente inventada por Tom Zé e Gil-

berto Assis. São esses avanços que fazem

de Santagustin um convite ao olhar cuida-

doso, mas nem por isso menos bem humo-

rado. Aí, mais um jogo de alternâncias, que

se espalha para o público.

P

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANE IRO • SÁBADO • 7 DE SETEMBRO • 2002R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 7 DE SETEMBRO • 2002R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 7 DE SETEMBRO • 2002R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 7 DE SETEMBRO • 2002R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 7 DE SETEMBRO • 2002

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

112

O Grupo Corpo é, hoje, nossa maior e

melhor companhia de dança contemporâ-

nea. Tem reconhecimento aqui no Brasil e

também no exterior, e a crítica, nacional e

estrangeira, não o “esnoba”. Essa unanimi-

dade tem uma explicação, talvez a primei-

ra, e ao mesmo tempo a mais simples e com-

plexa: o pensamento de dança que se cons-

trói ali é bom. É muito bom. Basta apenas

que se perceba.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

113

Sensualidade debochada que servepara iluminar o passado do Corpo

Santagustin: Em seu novo trabalho,grupo avança no desenvolvimento

de uma linguagem de dança

SILVIA SOTER

corruptela que batiza a mais nova cria-

ção do Grupo Corpo afirma um modo

de fazer. Corromper, modificar, alterar o

sentido deixando o que é essencial presen-

te e transformado é o jeito de criar dessa

companhia mineira. Santagustin, jeitinho

mineiro de evocar o filósofo do século V que

se dividiu entre o amor carnal e a religião

cristã, trouxe o competente Grupo Corpo

de sempre, sempre em vias de transforma-

ção. A temporada carioca que estreou na

quinta-feira passada, termina esta noite, no

Theatro Municipal.

As peças são, em geral, apresentadas

aos pares. A noite é aberta por uma obra

mais antiga e fechada pela peça de es-

treia. A escolha da peça que antecede a

nova obra jamais é aleatória. Ela ofere-

ce pistas e prepara o olhar do espectador

para a nova criação. Aqueles que acom-

panham os mais de 20 anos de estrada da

companhia têm o raro privilégio de se-

rem testemunhas do desenvolvimento de

uma linguagem de dança. Linguagem

com uma identidade própria que não se

deixa engessar.

A música tem servido de bússola para

Rodrigo Pederneiras. Cada parceria musi-

cal determina as trilhas por onde a criação

coreográfica avançará. O encontro de Ro-

drigo com Tom Zé rendeu as duas peças

apresentadas: o belíssimo Parabelo, parce-

ria de Tom Zé com José Miguel Wisnik, de

1997, e o novo Santagustin, de Tom Zé e

Gilberto Assis.

Santagustin explora a face risível do

amor e a atração entre os corpos. Música,

cenário – a projeção de um imenso cora-

ção de pelúcia cor-de-rosa –, coreografia

e figurino conspiram para que não haja

adesão ao que poderia existir de românti-

co na cena. O figurinista Ronaldo Fraga

acentua o aspecto bufão dos intérpretes.

Cabelos grisalhos, rostos pintados e figu-

rinos verde e rosa sublinhando as “partes

íntimas” provocam o distanciamento e a

impessoalidade procurados. Na voz das

cantoras, o amor é, simultaneamente, der-

ramado e criticado.

Em Santagustin, os duos são exercícios

de análise combinatória. Para amar é pre-

ciso apenas ter um outro. Seja ele homem

A

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE SETEMBRO • 2002RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE SETEMBRO • 2002RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE SETEMBRO • 2002RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE SETEMBRO • 2002RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE SETEMBRO • 2002

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

114

ou mulher. Mas sempre que o outro apare-

ce, os corpos se unem, em geral pelos qua-

dris. Uma atração veloz e ritmada, como que

provocada por um ímã. A ondulação do tron-

co que em Parabelo aparece em um fluxo

contínuo, sempre do chão para o alto, está

presente em Santagustin. Ela é a mesma e é

outra, já que uma espécie de violência se

instala e interrompe bruscamente o fluxo de

movimento. Em O corpo, criação de 2000

com música de Arnaldo Antunes, essa vio-

lência já havia sido explorada. Nuances de

um vocabulário de movimento que está sem-

pre em processo.

Se as peças mais antigas apontam cami-

nhos para leitura das mais recentes, cada

nova criação do Grupo Corpo ilumina as

peças anteriores. A sensualidade debocha-

da de Santagustin mostra como, de forma

menos explícita, a sensualidade sempre es-

teve presente e produtiva naqueles corpos

que dançam. E como dançam!

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

115

Ações pedagógicas que somam, semse sobreporem à qualidade do produto

Dança das marés: Trabalho confirma oamadurecimento do grupo formado

no Complexo da Maré

SILVIA SOTER

encontro do educador do movimento

e coreógrafo paulista Ivaldo Bertazzo

com os jovens e as crianças do Centro de

Estudos e Ações Solidárias da Maré ren-

deu seu terceiro fruto. Dança das marés,

em cartaz no Ginásio do SESC Tijuca até

o fim de setembro, é resultado do amadu-

recimento evidente do Corpo de Dança da

Maré, um grupo com mais de 60 jovens

habitantes do Complexo da Maré, capi-

taneado por uma equipe multidisciplinar,

tenaz e competente. No cruzamento entre

projeto social e criação artística, o espetá-

culo torna-se eixo norteador para as ações

pedagógicas que somam, sem se sobrepo-

rem, à qualidade do produto que chega ao

palco. Um palco que o SESC criou em res-

peito à especificidade do produto.

Em Mãe gentil, primeiro espetáculo de

Bertazzo com “cidadãos dançantes” oriun-

dos de setores populares, a visão de um Bra-

sil contraditório servia de tema e de pano

de fundo para os jovens dançarinos cerca-

dos de convidados especiais. Corpo-país.

O foco foi se fechando do Brasil para

o Rio, e Folias guanabaras trouxe o Com-

plexo da Maré, uma quase cidade den-

tro da cidade, como alegoria para a ação.

Corpo-cidade. A presença de Elza Soa-

res, Rosy Campos e Seu Jorge apoiava e

protegia o corpo de dança num espetá-

culo grandioso.

Nesse terceiro passo, o zoom de Ival-

do trouxe para o centro da cena cada jo-

vem do corpo de dança. Corpo-casa. His-

tórias íntimas desses cidadãos são costu-

radas por Drauzio Varella, resultando

num texto que relata o que há de univer-

sal e de particular na experiência da in-

fância e da adolescência daqueles que

vivem hoje na Maré. Com o passar

do tempo, momentos leves e cômicos

cedem espaço à densidade e à consciên-

cia quase trágica do impacto da violên-

cia no curso da vida de cada um. Mesmo

que bastante apropriados, não é sempre

que os textos recebem, por parte dos in-

térpretes, um tratamento natural.

Em Dança das marés não há convi-

dados especiais. Há, no entanto, uma

parceria fértil com o grupo mineiro

Uakti. Sua presença discreta garante

O

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUARTRIO DE JANEIRO • QUARTRIO DE JANEIRO • QUARTRIO DE JANEIRO • QUARTRIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA A-FEIRA A-FEIRA A-FEIRA A-FEIRA • 1• 1• 1• 1• 11 DE SETEMBRO • 2001 DE SETEMBRO • 2001 DE SETEMBRO • 2001 DE SETEMBRO • 2001 DE SETEMBRO • 20022222

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

116

culos anteriores, são acompanhadas por

momentos de solos e duos. O coro de dan-

ça é, muitas vezes, desmembrado, dei-

xando emergir a singularidade de cada

dançarino. Corpos diferentes num ritmo

comum.

Ao deixar a tarefa da cena apenas

para o corpo de dança, Bertazzo arrisca e

acerta. A continuidade e a qualidade da

informação recebidas pelos jovens garan-

tem um espetáculo delicado, preciso e

cheio de esperança.

brilho e criatividade à música. Um espe-

táculo à parte.

Na primeira cena da peça, um pêndu-

lo inaugura o ritmo, elemento central na

dança de Ivaldo. A dança indiana, devi-

damente incorporada pelos jovens a pon-

to de ganhar nuances bastante pessoais,

exige complexas divisões rítmicas que

são defendidas com segurança pelo cor-

po de dança.

Em Dança das marés, as bonitas dan-

ças de conjunto, marca dos dois espetá-

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

117

Panorama fez a festada nova plateia carioca

Ingressos a R$1 democratizaram 11ª ediçãodo festival de dança, marcada pela

participação do público

SILVIA SOTER

décima primeira edição do Panorama

RioArte de Dança foi marcada por uma

nova relação entre o festival e seu público.

Nesses 11 anos de atividades, o Panorama

amadureceu e realizou movimentos bem

determinados nessa direção. Esses movi-

mentos não representaram, da parte da di-

reção e da curadoria, concessões na progra-

mação no sentido de facilitar a digestão da

informação que ele faz circular, mas desper-

taram a curiosidade pelo novo, fazendo com

que o desconforto diante de algumas obras

não mais significasse algo negativo, e sim a

convocação a outros modos de relação en-

tre espectador e obra.

Uma parcela especial e estruturante do

Panorama, artistas e estudantes de dança,

foi beneficiada com a realização de resi-

dências com artistas estrangeiros. O ale-

mão Thomas Lehmen, o inglês Gary Ste-

vens e o francês Jérôme Bel partilharam

experiências e provocaram a criatividade

dos brasileiros em oficinas. AND, resulta-

do da residência de Gary Stevens, foi apre-

sentado como uma instalação no Centro de

Artes Hélio Oiticica, e o resultado da resi-

dência com Lehmen ganhou o palco do

Teatro do Jockey.

A busca de uma atitude mais ativa por

parte do público estendeu-se à escolha das

obras estrangeiras. As peças The show must

go on, de Jérôme Bel, Deluxe Joy Pillow, do

alemão Félix Ruckert, e Distanzlos, de Tho-

mas Lehmen, solicitaram, cada uma de sua

maneira, uma postura ativa do espectador.

Humor, generosidade e crítica estão em

perfeita harmonia em The show must go on,

que explora a imersão no universo pop e a

relação entre música e imagem. Uma se-

leção de músicas que habitam o imaginá-

rio ocidental serve de estímulo para as

experiências realizadas pelos atores.

A identificação entre espectadores e ato-

res se dá de maneira imediata. Não há

figurino especial, não há cenário, não há

virtuosismo. A literalidade dos refrões é le-

vada à risca, e espectadores e atores cons-

tatam partilhar de imagens comuns, mui-

tas vezes de uma obviedade desconcertan-

te. Em alguns momentos, o palco comple-

tamente vazio permite a cada espectador

projetar a imagem que faz daquela música

A

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 13 DE NOVEMBRO • 2002• 13 DE NOVEMBRO • 2002• 13 DE NOVEMBRO • 2002• 13 DE NOVEMBRO • 2002• 13 DE NOVEMBRO • 2002

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

118

e da cena, desenhando o espetáculo a seu

modo, já que o show deve continuar.

Os espectadores de Deluxe Joy Pillow

recebem coordenadas antes do espetáculo.

Dependendo de onde o espectador se colo-

car, a relação que estabelecerá com a peça

será diferente. A queles que se instalam nas

camas pequenas espalhadas pelo espaço

podem ser integrados de forma ativa na

peça, os que ficam nas camas de casal po-

dem ser manipulados pelos bailarinos e os

que quiserem apenas assistir (caretas, tími-

dos, cansados e voyeurs) devem sentar-se nas

poltronas azuis ou na arquibancada. Os bai-

larinos improvisam a partir do contato en-

tre eles e entre eles e espectadores. O que

se inicia como uma aparente estrutura aber-

ta e um jogo de provocação sensorial ganha,

aos poucos, um único e cansativo ritmo. Pa-

radoxalmente, o espectador que está inte-

ragindo fisicamente não parece de fato ati-

vo, mas submetido a um jogo de cartas mar-

cadas em que apenas um tipo de estímulo e

resposta tem lugar, o do jogo sexual.

Em Distanzlos, Lehmem, sozinho em

cena, fala de si e discorre sobre uma peça

que poderia realizar. Descreve cenas, con-

ta histórias, faz perguntas e responde, reve-

lando inquietações. A distância entre o que

ocorre em cena e o que é construído pelo

discurso do artista dependerá apenas da

imaginação do espectador. As ideias de re-

presentação e de espetáculo são colocadas

em xeque nessa obra.

A inda dialogando com a plateia, Andréa

Jabor provocou o público com bom humor e

improvisou com o cotidiano em I-eu, solo

armado, um pré-texto para a improvisação.

A identidade foi outra ideia nuclear do

Panorama 2002. Uma identidade traficada,

revelada entre autobiografia e ficção, ser-

viu de fio condutor para muitas obras. An-

gel Vianna e Maria Alice Poppe, mestra e

pupila, encontraram-se em Impromptus, de

Alexandre Franco, outro colaborador de

Angel. Impossível dissociar as intérpretes

de suas histórias, o que carrega de densida-

de e delicadeza a peça. Cenas que recortei e

guardei no bolso da memória ou lembran-

ças que chegaram com o Baile Perfumado,

de Rubens Barbot, traz memórias da infân-

cia do coreógrafo. A bailarina Cristina Mou-

ra fala de si e de outras possíveis identida-

des em Like an idiot. Dando ainda mais vi-

sibilidade à questão da identidade, o festi-

val convidou cinco criadores cariocas a dan-

çarem seus autorretratos. Patrícia Nieder-

meyer misturou texto, bom humor e dança

em Não se fala com os muros; Giselda Fer-

nandes construiu o bonito Castelo d’água,

dialogando com uma peça de Suzanne

Linke; Alexandre Franco, intérprete compe-

tente, mostrou A casa dos ossos; e Henrique

Schuller evocou Nijinsky, ao criar uma at-

mosfera delirante que mistura presente e a

memória da dança. Fechando a noite, Paula

Águas brincou com seu nome e a solidão.

Ainda no sentido de investir na forma-

ção e no estímulo a novos criadores, Os no-

víssimos, espaço da programação do Pano-

rama que apresenta novos coreógrafos, ga-

nhou um formato diferente e mais eficien-

te este ano. Em diálogo direto com as

faculdades de dança, o festival convidou

três estudantes para fazerem a curadoria

das obras. Os jovens curadores elegeram 12

peças curtas, construindo uma noite diver-

sa. Vale lembrar que Os novíssimos resga-

ta o frescor de origem do festival, que nos

seus primeiros anos serviu de celeiro para

a criação carioca. Hoje, uma nova geração

cheia de integrantes ou ex-integrantes de

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

119

companhias cariocas que lançaram suas

pesquisas no próprio Panorama experimen-

ta-se criador e deixa clara a influência de

seus caminhos de origem.

Minas Gerais, Santa Catarina, Brasília

e São Paulo também estiveram presentes

nos palcos do Panorama. Thembi Rosa

experimentou a marca dos criadores minei-

ros Rodrigo Pederneiras e Dudude Herr-

mann em seu corpo em movimento, em

Ajuntamento. Que nome daremos a nossos

pares apresentou o competente Wagner

Schwartz ao público carioca. Renata Fer-

reira trouxe Estudo sobre o tempo para a

noite composta pelos criadores (agora cu-

radores) Frederico Paredes e Gustavo

Ciríaco. A noite, que contou ainda com a

participação de Imagens, de Marcela Levy,

e Dressed dance, da alemã Katjia Watcher,

teve como foco a nudez que pode ser tra-

vestida no corpo que dança.

Em Oito trigramas, o Kaiowas Grupo de

Dança, formado por jovens ex-integrantes

do Cena 11, avançou na estrada aberta pela

companhia catarinense. O Basirah Grupo

de Dança mostrou em Uroboros que, nesse

momento, a investigação de Giselle Rodri-

gues apresenta-se menos teatral e mais

apoiada na exploração das circulações do

movimento no corpo.

Centrados nas possibilidades e nas im-

possibilidades do movimento, o carioca

Paulo Mantuano e a australiana Kylie-

Jane Wilson exploraram suas diferenças

promovendo encaixes mesmo a distância

em Duo, enquanto Middle high tones, do

paulista radicado na Bélgica Christian

Duarte com Shani Granot, investigou a

autonomia do corpo e a busca de novos

modos de articulação.

Fechando o Panorama 2002, a companhia

de Marcia Rubin, em sua nova formação,

brindou o público com Um estudo. A literatu-

ra, antes presença garantida na obra da cria-

dora, retira-se e cede espaço para a prazero-

sa exploração entre música e movimento.

O compromisso selado pelo Panorama

e seus parceiros com a difusão da criação

contemporânea da dança nacional e

internacional no ambiente carioca acon-

teceu em mão dupla. A programação ofi-

cial, as performances da noite de abertu-

ra e os resultados das oficinas foram

acompanhados de perto por inúmeros e

incansáveis programadores de festivais

internacionais, o que faz com que o Pano-

rama sirva de vitrine da criação brasileira

aos olhos do mundo.

A imagem do pastel, logomarca do even-

to, serve de emblema para postura do festi-

val: deseja tornar-se cada vez mais popular,

democratizando o acesso através do ingres-

so de R$ 1 e não garante que, necessaria-

mente, o recheio agradará o freguês. Esco-

lha acertada, já que o importante é a irriga-

ção de informações em via dupla que, a

cada ano, o Panorama RioArte de Dança

garante ao solo da dança carioca.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

120

Movimentaçãoa passos largos

Com festivais, atrações isoladas e experiênciascriativas, Rio se firma como polo de dança no País

ROBERTO PEREIRA E ANA CECÍLIA MARTINS

s famigerados balanços de final de

ano são sempre ávidos por catalo-

gar novidades. Para a dança, que movi-

mentou a cidade do Rio de Janeiro em

2002, o que aconteceu de mais expressivo,

entretanto, foi justamente a sedimentação

de estruturas. E, claro, dentro dessas estru-

turas, a possibilidade do novo e da quali-

dade emergirem.

Nesse sentido, os três mais importantes

festivais da cidade parecem exemplares: os

Solos de Dança do SESC, em sua terceira

edição; o Dança Brasil, em sua sexta edi-

ção, no Centro Cultural do Banco do Brasil,

e o Panorama RioArte de Dança, em sua

edição. O primeiro deu oportunidade ao

público carioca de conhecer melhor a dan-

ça da excelente bailarina Paula Águas, com

seu sábio improviso em Qual é a música?,

e também de rever Eu e meu coreógrafo no

63, diálogo entre as danças contemporânea

e a de rua experimentado pelo jovem

talento Bruno Beltrão. Já o Dança Brasil,

inspirado nas propostas do escritor Italo

Calvino, fez brotar um dos mais instigantes

espetáculos do ano: Formas breves, de Lia

Rodrigues, que, curiosamente, mesclou as

ideias do escritor cubano com a estética

de Oskar Schlemmer, da Bauhaus. E mos-

trou ainda a bailarina e coreógrafa Ana

Vitória apontando novidades em sua ma-

triz coreográfica em Leveza, uma das qua-

tro qualidades de Calvino desenvolvidas

por ela. O Panorama RioArte de Dança, o

mais antigo dos três festivais, conseguiu

em duas intensas semanas promover re-

flexões e estranhamentos no público. Sem

dúvida, o francês Jérôme Bel, com seu The

show must go on, foi a grande atração, ar-

rebatando um Teatro Carlos Gomes lota-

do, que sucumbiu às discussões sutis do co-

reógrafo sobre a cultura pop, a autoria e a

própria dança. Há de se mencionar ainda

o bem-vindo retorno de Marcia Rubin,

com sua nova e competentíssima compa-

nhia, num trabalho de alta sofisticação co-

reográfica, batizado Um estudo, a beleza

do solo de Giselda Fernandes e suas cita-

ções de Suzanne Linke, Castelo d’água, e

a terceira edição da mostra Os novíssimos,

pequeno panorama do que vem ainda por

aí de novos talentos cariocas.

O

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 30 DE DEZEMBRO •RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 30 DE DEZEMBRO •RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 30 DE DEZEMBRO •RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 30 DE DEZEMBRO •RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 30 DE DEZEMBRO • 20022002200220022002

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

121

Já fora dos festivais, as companhias cari-

ocas também compareceram. A injustificá-

vel DeAnima mostrou sua injustificável

versão para Cinderela, numa injustificável

produção caríssima. Deborah Colker es-

treou seu 4x, reafirmando sua tendência ao

universo pop através do espetacular. E o

Ballet do Theatro Municipal abriu o ano

com sua superprodução de Romeu e Julie-

ta, convidando até Rostropovich para a di-

reção musical, e acabou amargando uma

Gala Tchaikovsky, com uma imperdoável

e borrada Serenade, de Balanchine, além

de requentados trechos de balés de Petipa.

Sem dúvida, aqui, a falta de uma política

efetiva foi a responsável, num ano de tran-

sição eleitoral.

Constrastando com esse painel das

grandes companhias, as investidas de no-

vos coreógrafos foram mais saborosas:

Esther W eitzman, em passos seguros de

pesquisa coreográfica e de estruturação

de sua companhia, o novo grupo de Paulo

Mantuano e as aventuras de improvisa-

ção propostas por Andréa Jabor foram im-

portantes para traçar novos contextos de

dança na cidade.

E como dança não é apenas espetáculo

que se vê no palco, há de se registrar dois

grandes acontecimentos: o Encontro Laban,

promovido por Regina Miranda, movimen-

tando uma série de bailarinos e pesquisado-

res de todo o mundo em torno de seu tema, e

o lançamento da bem cuidada revista Gesto,

pelo RioArte. Em ambos, a preocupação de

que dança se faz com reflexão, sempre.

Fechando o ano, um dos maiores pre-

sentes de natal para o público de dança

carioca: Danças de porão, dos bailarinos

e coreógrafos Paula Nestorov e João Sal-

danha. Trânsito livre entre estruturas de

aula, ensaio e espetáculo, os dois desve-

laram o ato de coreografar numa sabe-

doria tão sofisticada e ao mesmo tempo

tão simples, que o resultado impressiona.

Ali, história se vê no corpo. Não qualquer

história, mas aquela que sedimenta estru-

turas de onde emergem o novo e a quali-

dade. Isso faz da dança do Rio de Janei-

ro, hoje, ímpar. E faz do balanço do fim

de 2002 uma constatação de que vivemos

um momento especial para a dança atra-

vés de uma de suas mais importantes

características: sua diversidade.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

122

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

123

2003 CRÍTICAS

O GLOBO - 16 DE MARÇO DE 2003Parcerias inéditas rendem noite de experiências no palco do SESC

SILVIA SOTER

O GLOBO – 23 DE MARÇO DE 2003A simplicidade engole a medusa

SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL – 21 DE ABRIL DE 2003Talentos em versão mal construída

ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL – 29 DE ABRIL DE 2003Movimentos plurais

ROBERTO PEREIRA

O GLOBO – 15 DE JUNHO DE 2003O olhar contemporâneo de um coreógrafo genial

SILVIA SOTER

O GLOBO – 30 DE JUNHO DE 2003Béjart imprime didatismo religioso à coreografia

SILVIA SOTER

CRÍTICA NÃO PUBLICADASobre o espetáculo Madre Teresa e as crianças do mundo

ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 8 DE JULHO DE 2003Tradição e história

ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 24 DE AGOSTO DE 2003O padrão de qualidade de sempre, mas carente de novas referências

SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 28 DE AGOSTO DE 2003Diálogo entre arte e ciências

ROBERTO PEREIRA

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

124

O GLOBO - 30 DE AGOSTO DE 2003Em busca do movimento do corpo

SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 9 DE SETEMBRO DE 2003Experiências de Carlota Portella

ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 7 DE OUTUBRO DE 2003Sucessão de passos

ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 08 DE OUTUBRO DE 2003Quadros que se perdem em leituras ufanistas, ingênuas e superficiais

SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 22 DE NOVEMBRO DE 2003O surpreendente salto da DeAnima

ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 27 DE NOVEMBRO DE 2003DeAnima dança William Forsythe utilizando coragem e competência

SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 9 DE DEZEMBRO DE 2003Ana Botafogo é diva

ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 11 DE DEZEMBRO DE 2003Balé do Municipal encerra temporada em grande estilo

SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 15 DE DEZEMBRO DE 2003Os corpos são o lugar da dança

ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 25 DE DEZEMBRO DE 2003Balança e dança

ROBERTO PEREIRA E ANA CECÍLIA MARTINS

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

125

Parcerias inéditas rendem noite deexperiências no palco do SESC

Solos de Dança no SESC: Surpresase excessos na primeira série do evento

SILVIA SOTER

á quem diga que não é o bailarino que

escolhe a dança que faz, mas a dança

que escolhe o bailarino. Por afinidade, o es-

tilo do bailarino, entendendo estilo como um

colorido especial, um jeito particular de li-

dar com um vocabulário coreográfico, viria

ao encontro ao estilo de um criador ou de

uma linguagem. Essa adequação de estilos

pode ser sentida dentro, por exemplo, de uma

companhia de dança permanente. O conví-

vio, a impregnação de uma forma particu-

lar de abordar os parâmetros de movimen-

to e a experiência partilhada ajudam a cons-

truir a identidade da companhia e permitem

que o espectador reconheça a “cara” da

dança desse coreógrafo, ou da companhia

em questão.

Muitas vezes, nas experiências de dança

em solo, o bailarino é, ao mesmo tempo,

criador e intérprete de sua criação. Nesses

casos, não há, evidentemente, distância

entre material e estilo. Mas nem sempre é

assim. Ao experimentar no seu corpo a pro-

posta do outro, do coreógrafo, cada bailari-

no irá filtrar, decantar e transformar à sua

maneira o que poderíamos imaginar como

o material “original”. É essa a questão tra-

zida ao centro do palco, na quarta edição

dos Solos de Dança no SESC.

Na primeira semana do evento que, nos

últimos anos, tem inaugurado a temporada

anual da dança carioca, quatro intérpretes

convidaram quatro coreógrafos ou direto-

res com quem nunca haviam trabalhado

anteriormente para criarem as peças que

compõem a noite.

O bailarino André Vidal chamou

Matheus Nachtergaele para essa ousada

empreitada. A performance Gema, resul-

tado dessa frutífera parceria, abre a noite.

No centro do palco, um corpo aguarda, iner-

te, entre centenas de ovos. A morte é tra-

tada pela sua outra ponta, o nascimento.

Na tentativa, nem sempre bem-sucedida,

de erguer-se, André destrói as cascas e é

coberto pelo conteúdo dos ovos. Na difi-

culdade e na repetição de achar uma bi-

pedia humana, os ovos se travestem de ou-

tros fluidos corporais como lágrimas, suor

ou o verniz do nascimento. Gema parece

inaugurar novas e interessantes possibili-

dades para o experiente André Vidal.

H

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOR IO DE JANE IRO • DOMINGO • 16 DE MARÇO • 2003R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 16 DE MARÇO • 2003R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 16 DE MARÇO • 2003R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 16 DE MARÇO • 2003R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 16 DE MARÇO • 2003

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

126

Guardadas em você, coreografia de Alex

Neoral para Nina Botkay, é marcada por

uma energia de juventude. Nina é precisa,

veloz, vigorosa e dá conta, perfeitamente,

das exigências da coreografia do promissor

Alex. No entanto, essa juventude também se

manifesta num desejo de fazer muito. Há

um certo excesso, tanto nas músicas que

compõem a trilha, quanto na própria escri-

ta coreográfica. Não há silêncio ou pausa

que dê tempo para que as ideias apontadas

se desenvolvam. Ajustes que certamente

acontecerão com o tempo.

Talvez o encontro mais inusitado da noi-

te, justamente pela diferença dos estilos das

duas, é o de a Soraya Bastos com a coreó-

grafa Ana Vitória. Ana Vitória é, reconhe-

cidamente, uma criadora-intérprete de so-

los. Seu corpo pequeno, ágil e preciso, é pon-

to partida e destino de seu vocabulário co-

reográfico. Mas Soraya Bastos, bailarina

grande, de gestos amplos e líricos, mergu-

lhou com rigor no universo de movimentos

da coreógrafa para construir Silêncio. O bo-

nito resultado revela a transformação e o en-

riquecimento do material da coreógrafa, no

corpo da intérprete.

Frederico Paredes, da dupla Ikswalsinats,

coreografou Se eu estivesse aqui agora, para

Andréa Maciel. A teatralidade com toques

surrealistas da Ikswalsinats não é matéria

de fácil incorporação. Apoiada no jogo en-

tre intérprete e público, Andréa apresenta

ainda um certo desconforto, natural eviden-

temente, nas situações mais teatrais, com-

pensado por momentos de domínio absolu-

to nas variações espaciais.

Semana que vem, os coreógrafos Regi-

na Miranda, Paulo Caldas, Esther Weitzman

e Henrique Schuller convidam quatro intér-

pretes e propõem outras misturas no palco

do mesmo teatro.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

127

A simplicidadeengole a medusa

Solos de Dança no Sesc: Série é marcadapela irregularidade; coreografias

simples saíram-se melhor

SILVIA SOTER

segunda semana dos Solos de Dança

no SESC foi marcada por acertos e de-

sacertos. Este ano, a curadoria propôs encon-

tros inéditos entre intérpretes e criadores.

Dessa vez, diretores e coreógrafos convida-

ram artistas com quem nunca haviam traba-

lhado anteriormente para novas investidas.

A primeira imagem de Hologênese, per-

formance dirigida por Henrique Schuller

para a atriz Marilena Bibas, é promissora.

No centro do palco, uma grande medusa de

plástico transparente pulsa, mudando de cor

a partir da iluminação. O diretor pretende,

com o trabalho, refletir sobre a interface

entre mundo orgânico e mundo digital. No

entanto, a evolução da proposta desperdi-

ça a beleza da imagem inicial. O diretor

usa e abusa de recursos como projeções de

vídeo, digitalização da voz da atriz, gritos,

sussurros, esgarçando o tempo no limite do

suportável e nem assim consegue dar con-

sistência à ideia que aponta. A construção

gestual da atriz cai, imediatamente, no

exagero e na ilustração rasa do texto com-

posto de extratos descosturados de autoria

de Friedrich Nietzsche.

No caminho oposto da primeira peça,

Fragmento para coreografismos, de Paulo

Caldas para Alexandre Franco, é marcada

pela eficiência e pela simplicidade. Aqui é

possível reconhecer as sutilezas necessá-

rias para a costura entre o estilo do coreó-

grafo e o do intérprete. Paulo Caldas tra-

balha sobre elementos identificadores de

sua linguagem como o investimento do tor-

so a partir da movimentação circular dos

braços e a contração e a expansão do espa-

ço operadas pela iluminação. A coreogra-

fia opõe os diversos círculos desenhados

pela parte alta do corpo ao quadrado re-

cortado pela luz que serve de diagrama

para o deslocamento do bailarino. No cor-

po de Alexandre Franco, a dança de Paulo

Caldas ganha novas nuances.

Aproximações, peça dirigida e coreogra-

fada por Regina Miranda para Rafaela

Amado, é construída como uma cena de pla-

teia. Com a luz acesa, Rafaela se dirige aos

espectadores, confessando suas dificuldades

diante da tarefa de dançar e de ser o centro

das atenções. Ainda que a ideia seja interes-

sante, para que uma proposta como essa fun-

A

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOR IO DE JANE IRO • DOMINGO • 23 DE MARÇO • 2003R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 23 DE MARÇO • 2003R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 23 DE MARÇO • 2003R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 23 DE MARÇO • 2003R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 23 DE MARÇO • 2003

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

128

cione bem, é preciso que haja uma certa

ambiguidade entre o interpretar e o estar dis-

ponível para apenas reagir aos estímulos, a

de fato improvisar. O que pouco acontece.

Salvo em alguns momentos, como naquele

em que a atriz brinca com sua identidade e

seus atributos físicos, um certo excesso na te-

atralidade e a preocupação de mostrar o que

se está fazendo de simplesmente fazer, com-

prometem o equilíbrio entre o improvisar e

o interpretar, enfraquecendo a proposta.

Em Alguma coisa de novo, o jovem Ro-

drigo Gondim é coreografado por Esther

W eitzman. A qui, a forma circular e a ilumi-

nação também são elementos centrais. Es-

ther explora, com o apoio da luz, a circulari-

dade do espaço e do tempo, jogando com o

silêncio, a suspensão e os movimentos de re-

cuar e avançar. Alguma coisa de novo, ainda

que um esboço, revisita elementos explora-

dos pela coreógrafa em suas peças anterio-

res e apresenta o promissor Rodrigo Gondim.

Num projeto como Solos de Dança no

SESC, a duração de cada peça se impõe

como questão fundamental. Cada noite é

composta pelo conjunto dos trabalhos, e

cada peça, criada de maneira independen-

te por autores diferentes, está, aos olhos do

público, inevitavelmente comprometida

com a que a precede ou a seguinte. Assim,

o bom timing de cada parte é fator impor-

tantíssimo para o sucesso da noite.

Os Solos de Dança no SESC termina

hoje seu quarto ano consecutivo, consoli-

dando seu importante lugar na temporada

da dança carioca. A irregularidade dos

resultados não compromete em nada a

relevância da proposta de promover encon-

tros inéditos e inusitados entre criadores e

intérpretes. Ela faz parte do risco inerente

à ideia. Com certeza, o amadurecimento

das parcerias oferecerá, em breve, novos

e interessantes desdobramentos ao públi-

co carioca.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

129

Talentos em versãomal construída

ROBERTO PEREIRA

Ballet do Theatro Municipal do Rio

de Janeiro escolheu, para a abertu-

ra de sua temporada do ano 2003, uma das

obras mais importantes do repertório in-

ternacional: Giselle, símbolo do romantis-

mo na dança. Entretanto, mais do que a

escolha desse balé, o que marca esse iní-

cio de atividades da companhia no ano é

a qualidade de seus integrantes que se

revezam nos papéis principais e a promis-

sora gestão do novo diretor artístico,

Richard Cragun.

A versão assinada pelo inglês Peter

W right, que já pertence ao teatro desde

1982, não é, certamente, a melhor. Perso-

nagens mal construídos, assim como equí-

vocos cênicos e coreográficos (algumas

informações contidas no programa se in-

cluem aí também, infelizmente) fazem

com que o balé perca muito de sua coe-

rência. Uma pena, principalmente por se

tratar de uma obra que possui tantos re-

gistros e uma bibliografia tão vasta. Mas

isso não é, claro, culpa da companhia, mas

de seus diretores que simplesmente tei-

mam em escolher essa versão e não se

orgulhar com a da mestra Tatiana Leskova,

prata da casa.

Mas não é para a personagem Giselle

que as atenções se voltam nessa montagem

e sim para quem a representa e, nesse senti-

do, Ana Botafogo confirma mais uma vez

porque é uma de nossas mais importantes

bailarinas. A sabedoria e a maturidade de

sua dança emprestam ao papel-título uma

fidelidade ao modo romântico de se dançar

e um colorido todo próprio de quem domi-

na com precisão cada elemento cênico do

balé. Já a qualidade da interpretação de

Roberta Márquez vem do frescor de uma

bailarina tão jovem, mas que responde bri-

lhantemente às exigências técnicas (que

não são poucas) da obra, conferindo uma

interpretação toda sua, digna de uma pri-

meira bailarina. Cláudia Mota, tendo ven-

cido dignamente o desafio a ela proposto,

mostrou-se, por hora, mais afinada com o

papel de Myrtha, do que propriamente com

o de Giselle. No naipe masculino, Vítor Luiz

desempenha o primeiro papel seguro e ele-

gante, enquanto Marcelo Misailidis e Fran-

cisco Timbó, com a maturidade de ambos,

O

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 21 DE ABRIL • 2003RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 21 DE ABRIL • 2003RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 21 DE ABRIL • 2003RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 21 DE ABRIL • 2003RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 21 DE ABRIL • 2003

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

130

contribuem mais no papel de Hilarion.

Quem, contudo, se destaca pela qualidade

de sua dança é Rodrigo Negri, excelente

bailarino que atrai toda a atenção do públi-

co ao participar do pas-de-six do primeiro

ato, assim como a competente solista Már-

cia Jaqueline. O corpo de baile, muito afi-

nado, sobretudo na cena das wilis do segun-

do ato, fez esquecer a péssima impressão

deixada no final do ano passado com a Gala

Tchaikovsky.

A direção de Cragun aparenta ser

promissora. Enfim, dentro de uma compa-

nhia com a qual possui uma identificação

de estilo, o bailarino americano já se

mostrou empenhado em revelar talentos,

dando oportunidades a jovens bailarinos,

em récitas vespertinas, voltadas às esco-

las públicas. Muito bem-vinda sua políti-

ca de formação de primeiros bailarinos

e solistas, sem dispensar atenção devida

ao corpo de baile.

A recém-inaugurada iluminação do te-

atro, orçada em US$1 milhão, que deveria

ser também uma das estrelas da tempora-

da, aparenta ser, entretanto, bastante inade-

quada. Desajustes como um palco pouco ilu-

minado e cheio de sombras no primeiro ato

e uma lua distante quase dois metros do foco

de luz no segundo ato são imperdoáveis nes-

se contexto.

A mais antiga companhia de dança do

País começa muito bem seu ano. Mas já que

valoriza seus bailarinos, deveria também

valorizar as versões e o repertório que fa-

zem sua história. Este poderia ser um novo

desafio que Cragun, com certeza, saberia

vencer com toda a sua competência.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

131

Movimentos pluraisDança Brasil recebe trabalhos diversos

e afirma sua vocação investigativa

ROBERTO PEREIRA

omo faz em todas as suas edições,

quando discute a relação da dança

com diferentes linguagens artísticas, o

Dança Brasil, mostra promovida pelo

Centro Cultural do Banco do Brasil, ele-

geu, neste ano, a música. Trata-se de uma

escolha nada fácil, pois sua relação (qua-

se) óbvia com a dança permite, muitas

vezes, conceituações equivocadas sobre

como esse diálogo vem sendo travado ao

longo da história dessas duas linguagens.

E é encarar esse desafio, justamente, que

a madura curadoria de Leonel Brum e

Silvia Soter se impôs como tarefa para se

conceituar todo um evento, também ma-

duro. Em sua sétima edição, o Dança Bra-

sil recebeu durante o mês de abril seis

companhias.

Na primeira semana, a estreia do even-

to se fez junto a mais duas outras, todas

muito importantes para a dança carioca.

A coreógrafa e bailarina Márcia Rubin,

acostumada a trabalhar com atores em

cena, mostrou sua nova companhia, agora

composta apenas de bailarinos. Essa esco-

lha indicia uma nova direção na pesquisa

coreográfica de Márcia, revelando-se

como outra estreia importante: deixando

de lado sua habitual preocupação com o

texto literário, dessa vez a investida se dá

na construção de uma dança apenas (e so-

bretudo) vinculada às questões do próprio

movimento. Essa pesquisa, que apareceu

ainda como forma de Um estudo, no últi-

mo Panorama RioArte de Dança, resulta

em Tempo de valsa, moderado com elegân-

cia. Há de se dizer que elegância, aqui, não

aparece apenas no título, mas em toda a

cena. Se suas influências são claras, e a

coreógrafa Anne Teresa de Keersmaecker

deve ser citada (as rosas que aparecem

projetadas ao fundo também podem ser

lidas como citações do próprio nome da

companhia belga, Rosas), isso não é, de

algum, um problema, mas apenas alarga,

ainda mais, a discussão sobre autoria em

dança contemporânea. Mas, como todo

novo projeto, Márcia tem pela frente a ta-

refa de burilar suas ideias e transformá-

las em vocabulário mais rico de movimen-

to, quase que construindo ali neologismos.

Nesse sentido, a bailarina Renata Rei-

C

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • • • • • 222229 DE ABRIL • 20039 DE ABRIL • 20039 DE ABRIL • 20039 DE ABRIL • 20039 DE ABRIL • 2003

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

132

nheimer parece representar o lugar ade-

quado onde Márcia tem a chance de visu-

alizar seus intentos.

A Cia. Vatá, da cearense Valéria Pinhei-

ro, e o Grupo de Rua de Niterói, dirigido

pelo jovem Bruno Beltrão, compuseram um

belo programa na segunda semana da mos-

tra, embora com propostas estéticas tão di-

versas. Bagaceira, cana e engenho pode ser

visto como resultado ainda embrionário de

uma fusão bastante difícil a que Valéria tem

se proposto em sua pesquisa coreográfica: o

sapateado, técnica e estética de origem

americana, e as danças populares nordesti-

nas devem passar pelo filtro generoso da

dança contemporânea. Nesse desafio, há

ainda ajustes a serem feitos nos corpos que

carregam informações por vezes apenas

justapostas. Mas o espetáculo consegue

apontar para o ineditismo dessa hibridiza-

ção de técnicas e estéticas de maneira ho-

nesta e a cena é carregada de uma força

impactante. A música, executada pelos pró-

prios bailarinos em cena, com instrumen-

tos, além, é claro, do próprio sapateado, é

um dos elementos vitais, e faz com que esse

espetáculo seja um dos que melhor respon-

dem à proposta da mostra como um todo.

Se o mesmo não acontece com o Grupo

de Rua de Niterói, isso não parece ser, aqui,

um problema. Telesquat, criação do coreó-

grafo-revelação Bruno Beltrão, é, com cer-

teza, o espetáculo mais instigante de todo o

D ança Brasil. A ideia era discutir o impac-

to da televisão na contemporaneidade, mas

o resultado vai muito além disso. Referên-

cias as mais diversas do mundo pop estão

lá, numa convivência nem sempre pacífica.

Mas são os atritos provocados pela mistura

proposta por Bruno o que mais interessa:

citações de obras de coreógrafos como Jé-

rôme Bel e Lia Rodrigues dividem a cena,

por exemplo, com televisão, cinema, video

game, Revista Caras, ficção científica, ain-

da que tudo isso aparece com a referência

estética à qual o coreógrafo se propõe: a

dança de rua. A discussão sobre a ideia de

legenda e o que ela representa em termos

de significação para o mundo, hoje, resolve-

se com exatidão no uso de recursos tecnoló-

gicos, o que faz rever de forma determinan-

te o uso quase óbvio que a dança contempo-

rânea vem fazendo da tecnologia, sobretu-

do no Brasil. Vale ainda ressaltar, dentro do

excelente grupo de bailarinos da compa-

nhia, a atuação de Eduardo Hermanson, cuja

inteligência e timing podem ser vistos em

seu corpo e em sua narração durante o es-

petáculo.

É possível dizer que a terceira semana

do Dança Brasil foi a que mais se adequou

à proposta dos curadores de se investigar a

relação entre música e dança. E, curiosa-

mente, essa relação apareceu de forma di-

versa nos dois trabalhos que compunham a

noite. O primeiro deles, D.A.M., assinado

pelo paulista Roberto Ramos, vem a ser o

resultado, segundo o programa, de uma téc-

nica própria desenvolvida pelo coreógrafo:

“desenvolvimento anímico do movimento”.

Sua demasiada pretensão, entretanto, que se

auto intitula autodidata, resulta numa pes-

quisa escolar, cujo parco vocabulário de mo-

vimentos, sempre muito óbvios, encontra

pouco espaço para a exploração de sonori-

dades. Felizmente, para borrar a excessiva

simetria e a previsibilidade desse trabalho,

Maria Clara Villa-Lobos, brasileira residen-

te na Bélgica há mais de dez anos, apresen-

ta, em seguida, seu Trio. Nele, a bailarina di-

vide a cena com Peter Jacquemyn e seu con-

trabaixo. Na verdade, pode-se dizer que essa

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

133

obra faz lembrar as investigações de músi-

ca erudita experimental de décadas atrás.

Mas a novidade está na interferência da

bailarina, que usa a improvisação para cos-

turar, ou antes, descosturar, relações possí-

veis entre a fisicalidade dos três elementos

em cena e a música que disso resulta.

Cristina Moura fecha a mostra na quarta

semana, dando oportunidade ao público

carioca de rever seu solo Like an idiot,

apresentado no ano passado. Nele, a bai-

larina revisita questões sociais e políticas,

dissolvidas em suas reminiscências. A pes-

soalidade com que essas questões são tra-

tadas parece ser o filtro para que sua dan-

ça explore, com precisão e força, as quali-

dades físicas da bailarina e sua relação

com os objetos de cena. Já em IM-Pulso,

seu segundo trabalho da noite, essa mes-

ma relação parece não estar bem resolvi-

da. Se a ideia era investigar como a dança

e a voz podem interagir, o que se vê é um

bloco espesso de referências que carece

ainda de ser trabalhado. Fica a vontade de

ver essa grande bailarina e irrequieta co-

reógrafa traduzir suas ideias mais em seu

próprio corpo e menos nos recursos cêni-

cos demasiadamente utilizados por ela,

que resultam em truques fáceis e conhe-

cidos de dança contemporânea.

O Dança Brasil, ao mapear criadores

brasileiros, sabiamente percebeu que esse

“brasileiro” deve ser encarado como uma

via de mão dupla entre o que se faz aqui e

o que se faz no resto do mundo. E a dança

pode ser um lugar privilegiado para se

observar esse trânsito tão eloquente de

referências mútuas. Assim, sendo mesmo o

único evento de dança do CCBB, o Dança

Brasil faz com que sua maturidade e sua

aceitação sejam o aval mais que suficien-

te para que ele ganhe um teatro maior e

mais digno de sua importância na história

da dança brasileira.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

134

O olhar contemporâneo deum coreógrafo genial

Ballet Frankfurt: Peças de William Forsythe mostramcaminhos de um inventor de espaços

SILVIA SOTER

ntes tarde do que nunca. Na quinta e

na sexta-feira, o Rio de Janeiro teve o

prazer de conhecer a dança de William For-

sythe à frente do Ballet Frankfurt. A estreia

carioca faz parte da última turnê confirma-

da de Forsythe com a companhia. Ameaças

de corte de verba associadas à nostalgia de

uma dança mais amena e tradicional pare-

cem também pairar sobre as terras alemãs.

Tendo o balé como ponto de partida,

a dança de Forsythe sintetiza ideias fun-

dadoras de uma perspectiva contemporâ-

nea da dança. A difusão de centros moto-

res pelas diferentes partes do corpo,

fazendo com que o movimento se inicie

a partir de pontos diferentes, produz uma

polissemia estonteante. O espaço, gran-

de estrela da dança de Forsythe, inexiste

antes de ser investido pelo movimento

dos bailarinos. Ele não está lá, desenha-

do pelas linhas imaginárias da perspec-

tiva euclidiana. A cada novo arranjo de

corpos, o espaço se produz. Uma vez fun-

dado, torna-se partner, atraindo e repelin-

do cada corpo e, assim, provocando o mo-

vimento. É o corpo em movimento que

funda o espaço e, paradoxalmente, muitas

vezes, os corpos parecem movidos de fora.

É justamente nessa tensão que a dança de

Forsythe se materializa.

Nessa turnê brasileira, três peças apre-

sentam diferentes momentos do criador.

Abrindo a noite, (N.N.N.N.), a mais recente

(2002), apresenta os códigos da dança de

Forsythe, oferecendo pistas para que o es-

pectador possa desfrutar do que virá a se-

guir. Do presente, Forsythe nos orienta para

olhar o passado. Quatro bailarinos (e que

bailarinos!) dão visibilidade às etapas de

instauração do movimento em seus corpos

e no espaço, instalam pontos fixos e pontos

móveis e fazem legível o que o coreógrafo

americano conceituou como ghosting: o bai-

larino deve conectar-se ao espaço como se

perseguisse seu próprio fantasma, o rastro

que sua dança deixa e que ele revisita sem

cessar. A conectividade dos corpos se dá

através de um fluxo contínuo de movimen-

to que atravessa, desorganiza e propõe no-

vos arranjos de corpos.

Em Enemy in the figure (1989), uma

parede sinuosa divide o palco que é, ao

A

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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

135

mesmo tempo, atravessado por uma cor-

da. Esses dois elementos, associados à ilu-

minação, parceira poderosa do criador, re-

cortam na cena diferentes campos de ação.

É impossível para o espectador acompa-

nhar tudo o que acontece. A dança se insi-

nua, emerge e desaparece, veloz e simul-

tânea, criando um ambiente caótico que

aumenta de tensão até a vertigem. O es-

paço parece tecido por redes elétricas, e

os bailarinos são sugados por verdadeiros

turbilhões. Sem referência aos códigos

mais banais da relação da dança com o

teatro, como a narrativa ou o gestual

expressivo, Enemy in the figure é de uma

teatralidade impressionante.

Quintett (1993), talvez a mais poética

das três obras, fechou a noite. Para alívio

daqueles que esperavam formas do balé,

em Quintett, ele está mais presente. Nessa

peça, criada por Forsythe às vésperas da

morte de sua mulher, cinco bailarinos são

mais uma vez atravessados por um fluxo de

movimento que não pára, mesmo quando

cada um se ausenta. Em solos, duos e trios,

fluxo contínuo, encontros e desencontros

constroem uma emocionante, ainda que

evidente, metáfora da vida.

Sem dúvida alguma, a contribuição ma-

dura e competente do Ballet Frankfurt im-

prime ainda mais brilho à dança desse co-

reógrafo genial.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

136

Béjart imprime didatismoreligioso à coreografiaMadre Teresa e as crianças do mundo:

Balé carregado de uma ingenuidade desconcertante

SILVIA SOTER

coreógrafo Maurice Béjart percebeu

muito cedo que, para dar conta de suas

ambições como criador, seria preciso, para-

lelamente, investir em jovens talentos que

pudessem desenvolver as qualidades neces-

sárias para serem intérpretes de sua dança.

A multidisciplinar Mudra, escola criada por

Béjart nos anos 70, agregando diferentes

linguagens artísticas, foi um importante cen-

tro de referência para a dança europeia.

Desde 1992, em Lausanne, é o atelier-esco-

la Rudra que continua essa tarefa. Foi de lá

que saíram os jovens componentes da Com-

pagnie M, que esteve em cartaz no Theatro

Municipal neste fim de semana, trazendo

Madre Teresa e as crianças do mundo. Nessa

peça, a juventude é acompanhada pela ex-

periência, já que é Márcia Haydée quem

interpreta Madre Teresa de Calcutá.

A obra de Maurice Béjart é vasta e va-

riada, tanto nas escolhas temáticas quan-

to na qualidade. A música, a literatura, o

Oriente, temas da atualidade como a AIDS,

por exemplo, serviram ao longo desses anos

como fonte de inspiração para o criador.

Suas peças são de fácil comunicação e têm

o mérito de lotar os teatros de um largo pú-

blico. Ao longo de sua carreira, Béjart vem

perseguindo um teatro total, incorporando

às suas coreografias diferentes linguagens

artísticas, como o teatro, a música e a lite-

ratura. Místico e fascinado pela filosofia

oriental, Béjart se inspirou em Madre

Teresa para falar do amor como meio de

aplacar o sofrimento dos excluídos. A pre-

sença de Marcia Haydée na pele de Madre

Teresa reforça a analogia proposta por

Béjart entre o amor e a dedicação a Deus

e o amor e a dedicação à dança. A dança

para Béjart é próxima do sacerdócio.

No entanto, cheia de bons sentimentos, a

peça Madre Teresa e as crianças do mundo é

carregada de uma ingenuidade desconcer-

tante. Impossível dissociar o criador Béjart

do pensador Béjart. A forma como as pala-

vras de Madre Teresa de Calcutá ganham a

cena imprime à peça um didatismo próxi-

mo ao de um culto religioso sem nenhuma

sutileza. Aqui, a preocupação com a fácil co-

municação impede que esse amor ao outro

ganhe alguma transcendência. Sobretudo

num país como o Brasil de 2003, onde a

O

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 30 DE JUNHO • 2003• SEGUNDA-FEIRA • 30 DE JUNHO • 2003• SEGUNDA-FEIRA • 30 DE JUNHO • 2003• SEGUNDA-FEIRA • 30 DE JUNHO • 2003• SEGUNDA-FEIRA • 30 DE JUNHO • 2003

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

137

consciência da complexidade que cerca a

exclusão se faz, a cada dia, mais aguda, a

simplicidade da abordagem impressiona.

Coreograficamente, Béjart se apoia na

agilidade e na flexibilidade de seus jovens

intérpretes. Pernas altas, saltos, movimentos

acrobáticos e uma fartura de grand-écarts

apresentam as qualidades dos egressos de

Rudra. Infelizmente, a agilidade e o vigor

juvenis ainda não são acompanhados de

grande precisão, o que fica evidente, por

exemplo, na cena dos bastões. Uma grata

surpresa: W illiam Pedro, o jovem e compe-

tente brasileiro da Compagnie M, seduz a

plateia com sua presença sorridente e tea-

tral. A brasileira Márcia Haydée, com do-

mínio absoluto de cena, dá credibilidade, ge-

nerosidade e delicadeza à sua personagem.

Com Madre Teresa e as crianças do mun-

do, a Compagnie M cumpre seu papel, ofe-

recendo a seus jovens integrantes a oportu-

nidade (rara nos dias hoje) de partilhar a

cena com uma personalidade como Márcia

Haydée. O experiente educador Maurice

Béjart sabe que um bailarino só irá de fato

se formar com a prática do palco mediante

convívio saudável e necessário com outras

gerações e outras experiências.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

138

Sobre o espetáculo Madre Teresae as crianças do mundo

ROBERTO PEREIRA

m dança, o tema escolhido para uma

obra pode se inscrever na estrutura

coreográfica, descobrindo nela novas mo-

dulações que esse canal oferece ao criador.

Sem dúvida, um grande desafio para gran-

des coreógrafos. Mas existe também a pos-

sibilidade de tratar desse tema a partir de

sua literariedade, numa espécie de conti-

nuação do balé que se fazia há mais de dois

séculos. É a essa última linhagem que pa-

rece pertencer o coreógrafo francês Mau-

rice Béjart e que comprova isso com seu es-

petáculo Madre Teresa e as crianças do

mundo, apresentado nesse último fim de

semana no Theatro Municipal do Rio de Ja-

neiro. Aqui, o tema é tão imponente que

acaba circundando a dança, em justaposi-

ções mal alinhavadas de citações da per-

sonagem principal, no caso Madre Teresa,

e a dança, propriamente. O resultado é es-

colar, didático, beirando a ingenuidade.

As citações são basicamente feitas pela

bailarina convidada, a brasileira Márcia

Haydée. Sua conhecida dramaticidade, no

entanto, é comprometida pela mera repro-

dução de frases e posturas da personagem

central, que, hora nenhuma, encontra em seu

corpo e em sua dança uma tradução possí-

vel. Quando se vê Márcia ajoelhada, esfre-

gando o chão, dá saudades de atuações suas

como em Romeu e Julieta, de John Cranko.

A palavra para ela não era necessária.

Já a dança, nos momentos que lhe é de-

terminado aparecer, mostra estruturas co-

reográficas de uma elementariedade cons-

trangedora, transbordando em clichês. A

frontalidade exibicionista com que cada

bailarino mostra seus dotes resvala num

show de egos que parece ter pouco a ver

com as doutrinas de Madre Teresa. É desse

mal que sofre o grande talento brasileiro

William Pedro, infelizmente, como, aliás,

toda a excelente M Compagnie, composta

de jovens bailarinos tão capazes.

Maurice Béjart parece ter sucumbindo

diante da grandiosidade de seu tema. As-

sim, optou por uma aparente simplicidade

em cenários e figurinos, mas que não está

traduzida no gesto, no corpo do bailarino e

na coreografia. Se a literariedade é o re-

curso escolhido para se tratar de um tema

em dança, há de se levar em conta os riscos

que essa dança impõe enquanto mídia.

Nesse sentido, o mestre Béjart parece ter

esquecido mesmo o significado da palavra

“metáfora”.

E

CRÍTICAS NÃO PUBLICADASCRÍTICAS NÃO PUBLICADASCRÍTICAS NÃO PUBLICADASCRÍTICAS NÃO PUBLICADASCRÍTICAS NÃO PUBLICADASRIO DE JANEIRO • 200RIO DE JANEIRO • 200RIO DE JANEIRO • 200RIO DE JANEIRO • 200RIO DE JANEIRO • 20033333

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

139

Tradição e históriaO lago dos cisnes resgata

história do Ballet do Municipal

ROBERTO PEREIRA

transmissão de um balé de uma gera-

ção a outra, mesmo em um mundo

marcado por evoluções tecnológicas, ainda

se faz principalmente pela tradição oral. No

caso de O lago dos cisnes, que teve sua estreia

no último dia 4, com o Ballet do Theatro Mu-

nicipal do Rio de Janeiro, essa tradição tem

um nome: Eugenia Feodorova. Responsável

pela primeira montagem dessa obra-prima

do balé pós-romântico nas três Américas, ain-

da em 1959, nesta mesma cidade, com esta

mesma companhia, Feodorova imprime a

marca da história numa arte onde é difícil

falar em original, mas apenas em versões.

Nesse sentido, essa recente montagem

muito difere, felizmente, daquela de 2001,

assinada pela conterrânea de Feodorova,

a russa Natalia Makarova. Mais simples, e

mais bem acabada, há nessa versão uma

aproximação evidente com a estética

coreográfica original, assinada pela dupla

Petipa/Ivanov e que encontra eco muito sa-

tisfatório no desempenho da companhia.

Na noite da estreia, Cecília Kerche teve

grande oportunidade em mostrar porque po-

deria ser uma perfeita Odile/Odete, mas

optou por cumprir burocraticamente seu pa-

pel, sobretudo no segundo ato, quando pouco

interage com seu partner e com o corpo de

baile. O jovem Vítor Luiz, responsável pelo

papel do príncipe, deixou clara sua imaturi-

dade ao dançar ao lado de tão experiente

bailarina, o que provocou um descompasso

ainda maior em todo o espetáculo. Resulta-

do: a noite foi de André Valadão, excelente

num papel secundário, “o bobo da corte”, rou-

bando para si todas as atenções.

Na récita seguinte, o mesmo Valadão

dividiu a cena com Roberta Márquez, bai-

larina ímpar na história dessa companhia.

Ainda jovem, Roberta empresta à dualida-

de dos cisnes branco e negro um colorido

próprio, acomodado em uma técnica perfei-

ta. E ambos souberam compartilhar com

todo o corpo de baile a sintonia exigida nes-

se estilo coreográfico.

Mais que meramente contar a história

da princesa metamorfoseada em cisne,

essa montagem de O lago dos cisnes assi-

nada por Feodorova resgata a própria his-

tória de uma companhia de dança, neste

caso, a primeira do Brasil. E ao fazer isso,

recupera sua tradição, ideia fundamental

quando se fala de balé.

A

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANEIRO • TERÇA-FE IRA • 8 DE JULHO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FE IRA • 8 DE JULHO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FE IRA • 8 DE JULHO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FE IRA • 8 DE JULHO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FE IRA • 8 DE JULHO • 2003

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

140

O padrão de qualidade de sempre,mas carente de novas referências

Divíduo: Tema e coreografia no novo trabalho da Quasar

SILVIA SOTER

sobrevivência de uma companhia de

dança por 15 anos, numa cidade dis-

tante do eixo Rio-São Paulo, é um aconteci-

mento raro no panorama da dança brasilei-

ra e merece comemoração. Quando essa

companhia consegue atingir um padrão de

excelência como é o caso da Quasar Cia. de

Dança, dirigida por Henrique Rodovalho, as

razões para comemorar multiplicam-se.

Hoje, sem dúvida, a Quasar é referência de

seriedade, de produção impecável e de óti-

mos bailarinos para o público e os profissio-

nais de dança do País. Divíduo, em cartaz até

hoje no Teatro Odylo Costa Filho, chega ao

Rio como parte das comemorações dos 15

anos da companhia.

A solidão urbana é o tema central do

espetáculo. A cena é dividida em quatro

áreas, quatro cômodos recortados pela luz

no palco que abriga cada um, um bailari-

no. Os dois espaços do fundo da cena es-

tão separados por uma parede e insinu-

am ambientes de uma casa. A inda que os

bailarinos não fiquem isolados em cada

um dos ambientes, a tônica dos desloca-

mentos se dá pelo não encontro, com

ênfase nos solos ou em duos e trios cuja

coincidência da movimentação se faz

com aquele que está distante ou apenas

virtualmente presente, como na cena em

que uma das bailarinas dança com um

partner que aparece numa projeção de

vídeo, em outro cômodo.

É assim ao longo de toda a peça que

Rodovalho reforça o tratamento que dá ao

seu tema: desfilando ícones da solidão e do

individualismo urbanos, como o assistir à

televisão como ato solitário, o telessexo, a

câmera polaroide que fotografa os móveis

da casa, o comer para preencher o vazio da

solidão etc. Referências explícitas e de rá-

pida identificação com o público. A cena do

entregador de pizza, por exemplo, cria uma

ponte interessante e divertida entre o tea-

tro e a cidade, reforçando a cumplicidade

entre a cena e a plateia.

Mas à medida que o espetáculo avan-

ça, Divíduo acaba, infelizmente, sucum-

bindo ao mesmo mal que tanto esmiúça:

isola o tratamento temático e o material

coreográfico em dois planos distantes, sem

ao menos provocar tensão ou diálogo

A

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 24 DE AGOSTO • 2003• DOMINGO • 24 DE AGOSTO • 2003• DOMINGO • 24 DE AGOSTO • 2003• DOMINGO • 24 DE AGOSTO • 2003• DOMINGO • 24 DE AGOSTO • 2003

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

141

entre os dois. O afinco com que Rodova-

lho busca deixar claro para o espectador

sua ideia de solidão e os resultados de sua

pesquisa sobre o tema não é acompanha-

do pela forma como a ideia se materia-

liza no corpo. O tema serve apenas como

um lugar onde, nesse momento, a mesma

dança do Quasar acontece. Em momento

algum, o tema chega a contaminar, de fato,

o tecido coreográfico.

Nesses 15 anos, a Quasar construiu um

trabalho sólido através de uma linguagem

coreográfica interessante e vigorosa que

identifica a companhia como uma assinatu-

ra. Talvez agora, o próximo passo desse ca-

minho seja flexibilizar essa marca, deixan-

do-a ser permeada por novas referências

para que não se engesse. Tarefa de que Ro-

dovalho dará conta, com tranquilidade,

como a sua trajetória confirma.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

142

Diálogo entre arte e ciênciasDani Lima cria método com nova coreografia

ROBERTO PEREIRA

ara a ciência, tão importante quantoo resultado de uma descoberta, é o seu

processo de investigação: um bom método depesquisa pode ser sempre usado novamente,para outras possíveis descobertas. A coreó-grafa e bailarina carioca Dani Lima, em seunovo trabalho Falam as partes do todo?, queteve sua estreia na sexta-feira no EspaçoCultural Sérgio Porto, parece transportar essaideia para um outro lugar que não apenas oda descoberta, mas também o da criação. Oprocesso de investigação ao qual Dani e seusbailarinos se dedicaram nesses últimos tem-pos aparece em forma de espetáculo, formaque é apenas uma entre tantas possíveis paraum pensamento de dança em plena ativida-de. A generosidade com que o processo é des-velado aos olhos do público, além de mostrarsem receios suas fontes, mostra-se corajosa-mente como um método que pode, muitasvezes, ser reutilizado-por ela mesma ou poroutros criadores.

Pensando na relação entre o todo e aspartes, Dani Lima elege alguns procedimen-tos cênicos que ajudam a pensar que, naspartes de qualquer organismo, estão asinformações do todo. Para a tradução dessaideia em dança, o diálogo com as esculturas/instalações da artista plástica Tatiana Grin-berg parece ter sido a chave para outros tan-tos diálogos que aparecem em cena. A rela-

ção sinuosa entre espaço e tempo ali sugeri-da trafega na subversão de perspectivas, im-plodidas em sons advindos de diversas par-tes do teatro, em potências também diversas.Impossível falar em trilha sonora e cenário:existem apenas (e sobretudo) continuaçõesdos corpos que ali dançam. Uma dança acon-tece entre o público e não para ele, apenas.

Um possível mapa da investigação queaqui aparece em forma de espetáculo podeser traçado, para quem acompanha os tra-balhos da coreógrafa: a residência do coreó-grafo alemão Thomas Lehmen, no últimoPanorama RioArte de Dança, a obra de LiaRodrigues, que Dani se dedica a estudar emsua pesquisa de mestrado, a curiosidade so-bre a dança pós-moderna americana, entretantas outras informações. Mas levando emconta a falibilidade de todo mapa, mais ins-tigante parece ser prestar atenção em comoessa investigação é partilhada por seus bai-larinos, tão jovens e vigorosos. As ideias in-quietas de Dani parecem encontrar abri-go, sobretudo na qualidade e no frescor dadança de Monica Burity, que desfila filigra-nas de pensamentos em seus movimentos.

Para Dani Lima, “viver sem certezas éviver em movimento constante de reaprendi-zagem”. Sua generosidade e coragem emmostrar isso fazem de seu processo sua cria-

ção. E faz dialogar sem clichês arte e ciência.

P

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 2828282828 DDDDDE AGOSTO • 2003E AGOSTO • 2003E AGOSTO • 2003E AGOSTO • 2003E AGOSTO • 2003

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

143

Em busca do movimento do corpoFalam as partes do todo?: Dani Lima mostraamadurecimento da linguagem coreográfica

SILVIA SOTER

ão é por acaso que o título do últimotrabalho da Cia. de Dança Dani Lima,

em cartaz até amanhã no Espaço SérgioPorto, organiza-se como uma pergunta. Fa-

lam as partes do todo? tem o cuidado de não

ser uma afirmação para poder abrir a cada

espectador uma possibilidade de reflexão,

uma experiência interessante e delicada,

alimentada pela dança, pelas obras da ar-

tista plástica Tatiana Grinberg e pela am-

bientação sonora de Felipe Rocha.

Falam as partes do todo? não é exata-

mente um espetáculo. O que talvez seja ines-

perado para o público que tem acompanha-

do a trajetória de Dani Lima, ex-integrante

da Intrépida Trupe. Até então, o nome da

coreógrafa esteve associado à dança aérea

com cores do pop e ao universo feminino,

suas marcas mais fortes.

Se não é um espetáculo, também não é

um work in progress no sentido de apresen-

tar ao público o processo no lugar do resul-

tado. O olhar do público é central nesse tra-

balho de Dani Lima. Na maioria das vezes,

quando é dada ao espectador a possibilida-

de de acompanhar o processo de criação de

uma obra, esse espectador tem a certeza de

que é generosamente recebido num espaço

do qual não faz parte. Ele é voyeur da inti-

midade do artista. Parte do interesse de co-

nhecer as entranhas da criação se dá exata-

mente pelo fato de que aquele momento é

único, íntimo e fechado a estranhos. Mas o

que acontece em Falam as partes do todo?

é de outra ordem.O espectador não é de fato voyeur ou

intruso. É a ele que a pergunta se destina jáque se trata de investigar a dança a partirda recepção, daquilo que cada espectadorpode (ou não) captar. Sem o espectador,Falam as partes do todo? não existiria.

O encontro entre os trabalhos e as inquie-tações de Dani Lima e Tatiana Grinbergresultou num produto envolvente. A contri-buição de Felipe Rocha é também funda-mental para criar o espaço sonoro, visual e,às vezes, tátil, em que o espectador é mer-gulhado, sendo obrigado a se deslocar paraescolher o que acompanhar, ainda assimsem dar conta de apreender o todo.

Os objetos construídos por Tatiana Grin-berg serviram, visivelmente, como o ele-mento detonador de toda a reflexão da peça,ganhando correspondência na dança que sóé vista parcialmente e na música que se es-palha, aos pedaços, pelo espaço. No entanto,o trabalho da artista plástica está tão pre-sente que, em alguns momentos, o ressurgi-mento das peças se faz redundante.

Em Falam as partes do todo?, Dani Limase afasta de suas referências anteriores parase aproximar de uma dança que se faz no

corpo, buscando no movimento os caminhospara suas ideias, o que revela o amadureci-mento da linguagem coreográfica dessacompetente companhia.

N

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOR IO DE JANE IRO • SÁBADO • 30 DE AGOSTO • 2003R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 30 DE AGOSTO • 2003R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 30 DE AGOSTO • 2003R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 30 DE AGOSTO • 2003R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 30 DE AGOSTO • 2003

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

144

Experiências deCarlota Portella

Espetáculo ressalta o carisma da mestra

ROBERTO PEREIRA

m dos maiores méritos da coreógrafa

e professora Carlota Portella ao lon-

go de sua carreira na dança brasileira é a

qualidade que imprime em seus bailarinos.

E é justamente essa qualidade que salta aos

olhos de quem assiste ao mais novo espetá-

culo de sua Cia. Carlota Portella Vacilou

Dançou, que teve sua estreia no último dia

4, no Espaço Cultural Sérgio Porto, sob o

vago título de Memórias. A qui, novamente,

o grupo formado por três rapazes e duas

moças mostra habilidade ímpar em sua re-

lação com o espaço, com a técnica e com

uma coesão, onde as particularidades de

cada bailarino funcionam apenas como in-

terfaces de um todo vigoroso, disponível a

cada desafio. Para este espetáculo, portanto,

Carlota elaborou esse desafio entregando

a tarefa da coreografia para o experiente

Mário Nascimento e para o jovem Clébio

Oliveira, um de seus bailarinos.

A iniciativa de possibilitar que jovens

pesquisadores comecem a exercitar sua

prática coreográfica em uma companhia

de dança profissional é digna de ser men-

cionada. Entretanto, há que se levar sem-

pre em conta todos os riscos que tal emprei-

tada traz consigo. A responsabilidade de-

signada ao excelente bailarino Clébio re-

sulta em Tia Robenize, trabalho que pro-

cura resgatar reminiscências infantis do

coreógrafo. O grande problema está no

excesso de referências usadas para tanto,

típicas de uma imaturidade que se lança

com muita sede ao pote. Todos os recursos

cênicos parecem borrar uma pesquisa qua-

se artesanal de movimentos que, por si só,

poderiam traduzir muito bem as intenções

de Clébio. Talvez o momento mais repre-

sentativo disso seja o duo dançado pelo

próprio com a bailarina Dani Rodrigues,

em que se pode observar que o movimento

e sua dramaturgia ganham lugar e tempo

apropriados nos dois bailarinos, em seus

corpos, e nada mais. Sendo Clébio Oliveira

um inquieto pesquisador, que alia sua prá-

tica artística ao exercício de pensar a dan-

ça também em sua carreira universitária,

essa oportunidade concedida a ele gene-

rosamente por Carlota Portella significa,

com certeza, apenas o início promissor de

um futuro coreógrafo.

U

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 9 DE RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 9 DE RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 9 DE RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 9 DE RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 9 DE SETEMBRO SETEMBRO SETEMBRO SETEMBRO SETEMBRO • 2003• 2003• 2003• 2003• 2003

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

145

A segunda obra da noite é assinada pelo

onipresente Mário Nascimento, que vem

trabalhando com diversas companhias por

todo o Brasil. Dono de uma movimentação

vigorosa, fruto da mistura de sua herança

do jazz com sua atual pesquisa de dança

contemporânea, Mário parece ainda tatear

o que poderia ser uma assinatura coreográ-

fica. Isso fica por demais evidenciado em

Jogo do olho, onde claras referências apa-

recem não em forma de citação, mas são

simplesmente tragadas, colocadas lado a

lado, sem que tenham oportunidade de se-

rem tingidas pelo ofício do coreógrafo.

A cena final, quando tijolos são arremes-

sados pelos bailarinos, funciona como

exemplo, quando remete a Weight of a hand,

do belga Win Wandekeybus. E a teatrali-

dade que se busca nesse trabalho parece

estar ainda perdida entre os excessos de

movimentos e de recursos, como se essa

teatralidade tivesse a obrigatoriedade de

existir para legitimar uma ideia.

Em Memórias, de Carlota Portella, a

qualidade de seus bailarinos faz dos dois tra-

balhos apresentados apenas lugares para

que ela apareça, absoluta. E é essa qualida-

de, sem dúvida, a grande estrela da noite.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

146

Sucessão de passosClichês prejudicam a coreografia de Terra Brasilis

ROBERTO PEREIRA

espetáculo Terra Brasilis, de Fernan-

do Bicudo, que teve sua estreia sexta-

feira no Teatro João Caetano, coloca para si

uma tarefa das mais difíceis: a de fazer um

grande mapeamento histórico das danças

populares brasileiras. Tarefa que se transfor-

ma rapidamente em armadilha, já que o que

se consegue nesse espetáculo é uma mera

sucessão de cartões-postais que oferecem ao

espectador apenas recortes de um rico uni-

verso que ficou longe de ser ali abordado.

Como qualquer cartão-postal, o convite é

para que se tenha um olhar de turista e não

de pertencimento, e é nesse lugar de turista

que se produz e que se assiste ao que se pas-

sa no palco.

Tudo se complica a partir do entendimen-

to envelhecido que se tem de história: crono-

lógico, causal, como se a vida fosse apenas

uma sucessão de fatos. Como, por exemplo, se

dá a rápida passagem do tempo dos dinos-

sauros que, literalmente (e inacreditavel-

mente), invadem a cena, para o tempo se-

guinte, em que se dançava um lundu ou um

maculelê, é uma questão que parece pouco

importar. Evolução ali é entendida como pro-

gresso, infelizmente. E tudo vira um arrazoa-

do de pastiches de quem pouco se importou

em se debruçar minimamente sobre tudo o

que já se estudou tanto sobre evolução, quan-

to sobre as próprias danças populares, um

universo tão rico e tão particular. O resulta-

do beira o leviano, como se esse universo

pudesse ser resumido a mero entretenimen-

to, o que faz esse espetáculo ganhar antes um

caráter de show para estrangeiros de um ho-

tel cinco estrelas, do que propriamente de um

espetáculo de dança.

A coreografia, isto é, a sucessão de pas-

sos assinada por Antonio Gaspar reduz-se ao

excesso de frontalidade e simetria costura-

das por um excesso de clichês de movimen-

tos. O resultado é uma pasteurização das di-

ferenças que achata justamente a diversida-

de que se anseia retratar: a pluralidade de

corpos e danças brasileiros. A música e a ce-

nografia, assinadas pelos experientes Silvio

Barbato e Hélio Eichbauer, respectivamen-

te, funcionam como legendas óbvias, que ape-

nas carregam no tom de previsibilidade, qua-

lidade, aliás, que perpassa todo o espetáculo.

E os elementos que surgem na cena, como os

O

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 7 DE OUTUBRO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 7 DE OUTUBRO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 7 DE OUTUBRO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 7 DE OUTUBRO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 7 DE OUTUBRO • 2003

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

147

animais pré-históricos, a motocicleta e o he-

licóptero, sugerem um arremedo canhestro

de musicais da Broadway, que faz assinalar

ainda mais uma tendência para cópia que se

arrasta desde os idos anos de 1940, com nos-

sas chanchadas e nossos musicais de cassinos.

O grupo de bailarinos, bastante hetero-

gêneo ao misturar profissionais e iniciantes,

parece ainda estar pouco familiarizado com

a proposta, e mesmo as sequências mais sim-

ples são mal executadas, necessitando visi-

velmente de ensaios.

Há uns sessenta anos, quando a dança

cênica ainda intentava ser brasileira, quan-

do o País vivia um processo de aceitação de

sua mestiçagem, em pleno projeto estado-

novista, as mesmas preocupações de se re-

tratar o Brasil pelo filtro do balé estavam

lá. Hoje, ao se assistir a Terra Brasilis e ao

se ler o texto ufanista de Fernando Bicudo

em seu programa, uma questão se impõe: ao

propor, hoje, o entendimento do brasileiro

como resultado de uma “síntese do melhor

de todas as raças”, esse espetáculo parece

mesmo acreditar nas duas palavrinhas que

estampam a bandeira brasileira. A mesma

crença de décadas atrás. Isso, em estudos de

evolução, tem outro nome.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

148

Quadros que se perdem em leiturasufanistas, ingênuas e superficiais

Terra Brasilis: Criação de Fernando Bicudose limita ao folclore mais previsível

SILVIA SOTER

a última sexta-feira, estreou com ares

de superprodução o espetáculo Terra

Brasilis, de Fernando Bicudo. Nas palavras

do diretor, essa peça “luta por um resgate

de nossas raízes culturais – as mais valiosas

do planeta”. Projeto ambicioso que pretende

apresentar em uma hora uma possível essên-

cia do povo brasileiro através de sua dança,

do norte ao sul, do bigbang às festas raves.

O fascínio exercido em diversos criado-

res pela diversidade e pela riqueza das ma-

nifestações populares regionais tem produ-

zido resultados diferentes. Um dos exemplos

de inspiração e pesquisa séria em torno de

ritmos e danças do nordeste culminou na

peça Chegança, de 1998, jóia rara assinada

pela coreógrafa Paula Nestorov. Em Che-

gança, os ritmos nordestinos são a tela de

fundo onde a dança da coreógrafa é tecida.

Eles estão diluídos, foram retrabalhados e

transformados pela mão da artista.

Outro exemplo que parte em direção

diametralmente oposta à anterior, mas com

igual seriedade, é o Ballet Folclórico da

Bahia, que transforma assumidamente ma-

nifestações regionais em show para turistas,

trazendo para a cena o que se encontra nos

terreiros ou nas rodas de capoeira.

Mas o caminho pelo qual Bicudo se en-

vereda parece estar mais próximo do movi-

mento folclorista. Historicamente, o interes-

se desse movimento pelas culturas ditas tra-

dicionais está ligado a uma postura românti-

ca de recusa à urbanização e à industrializa-

ção. No século XIX, as ideias folcloristas fo-

ram incorporadas pelos regimes totalitários,

exatamente na busca das raízes populares da

alma de um povo, caracterizando-o para des-

tacá-lo diante de uma cultura internacional

e das elites. É sabido que, durante o Estado

Novo, o balé, no Brasil, realizou incursões

nesse sentido. O curioso é que, em diferentes

países, esse movimento parte dos meios ur-

banos e intelectuais que projetam nos seus

objetos de estudo seus pontos de vista, pela

incapacidade de compreendê-los de dentro.

De fora, sem se misturar ou se deixar afetar,

de fato, por seu objeto de interesse, a leitura

de Bicudo é ufanista, ingênua e superficial.

Terra Brasilis estrutura-se rigorosa e pre-

visivelmente, numa sucessão de quadros que

vão, literalmente, dos dinossauros aos dias

N

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA• 8 DE OUTUBRO • 2003RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA• 8 DE OUTUBRO • 2003RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA• 8 DE OUTUBRO • 2003RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA• 8 DE OUTUBRO • 2003RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA• 8 DE OUTUBRO • 2003

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

149

de hoje. A virtualidade do cenário de Hélio

Eichbauer dá apenas velocidade às trocas

de cada quadro, sem, no entanto, propor nada

que vá além do telão pintado dos tradicio-

nais cenários de balé. Cada quadro corres-

ponde a um ritmo que é superficialmente

explorado pela coreografia limitada, assi-

nada por Antonio Gaspar, que busca tradu-

zir e, sobretudo mostrar, através de uma co-

lagem de passos, citações e referências, a

dança em questão.

Assim seguem os 29 quadros do espetá-

culo. Para cada um, uma ambientação espa-

cial, um grupo de bailarinos e um desfile de

figurinos. A coreografia de Antonio Gaspar

passa uma régua nas diferenças e deixa para

o telão e para os figurinos a tarefa de carac-

terizar o que no corpo não está presente.

Infelizmente, Terra Brasilis desperdiça

igualmente o que ainda poderia trazer qua-

lidade ao espetáculo: o conjunto de 54 bai-

larinos, alguns ótimos e experientes. Na noite

de estreia, no Teatro João Caetano, era visí-

vel a falta de ensaio e de entrosamento en-

tre o conjunto.

Para terminar, não poderia deixar de

citar mais uma vez as palavras do diretor:

“Apesar de nosso passado de injustiças so-

ciais, somos o povo mais feliz do mundo, o

que melhor sabe viver, o que mais cultua seu

amor à vida. Somos o povo do perdão e da

esperança. Somos o país do belo.” Resta sa-

ber de que lugar Fernando Bicudo olha o

Brasil, de que país, de que povo ele está fa-

lando e como brasileiro perguntar: “Nós

quem, cara pálida?”.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

150

O surpreendentesalto da DeAnima

Parceria entre a companhia e Forsythe dá frutos

ROBERTO PEREIRA

que existe de William Forsythe, um

dos mais importantes coreógrafos da

atualidade, no espetáculo forsythe@deanima,

que o DeAnima Ballet Contemporâneo

estreou anteontem no Teatro Villa-Lobos,

resume-se a apenas dois pas-de-deux. O

apenas se refere apenas à quantidade de

obras e não à sua qualidade. Slingerland e

Herman Schmerman são dois ótimos

exemplos da sabedoria deste coreógrafo

americano, que há quase 20 anos está à

frente do Frankfurt Ballet.

Nas duas obras, Forsythe parece levar os

ensinamentos de Balanchine, outro grande

nome da história da dança cênica, às últimas

consequências. O resultado são intrincadas

relações entre dança e música, num tecido

coreográfico que aponta no corpo dos bai-

larinos noções de tempo e espaço sempre

outras, sempre novas. E, talvez, o que mais

nos interessa aqui é sua execução, perfeita,

pela companhia carioca. Trata-se de um

grande mérito, já que o desafio a que se pro-

põe não é o dos mais fáceis.

Herman Schmerman é, com certeza, o

melhor momento da noite. A qualidade co-

reográfica aparece nítida nos corpos da ex-

celente bailarina Paula Maracajá e do bai-

larino, e também coreógrafo da companhia,

Roberto de Oliveira, em ótima forma, brin-

dando o público carioca com a precisão e o

vigor de sua dança.

Já os dois trabalhos que abrem e fecham

o espetáculo apresentam ainda fragilidades

nesta empreitada de se dedicar uma noite

ao coreógrafo americano. 9.All Stars carre-

ga consigo os problemas que persistem na

relação entre trabalho social e criação artís-

tica. Criada para a companhia e também para

os Jovens do Programa Social DeAnima, essa

obra denuncia que falta ainda a Forsythe

entender as tramas (e talvez armadilhas) que

esse tipo de produção apresenta. Talvez, um

tempo de convivência maior que apenas uma

semana poderia ajudá-lo a, contextualmen-

te, perceber o que significa sua atuação nes-

se lugar tão complexo entre projeto social,

criação artística e, por que não, educação.

Encerrando a noite, Uma semana com

Bill(y), assinada por Roberto de Oliveira,

é, segundo o coreógrafo, fruto da experiên-

cia desse convívio de uma semana entre a

O

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE NOVEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE NOVEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE NOVEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE NOVEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE NOVEMBRO • 2003

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

151

companhia e Forsythe. Se a vontade era a

de traduzir esse encontro tão promissor,

parece que a escolha do coreógrafo foi, no-

vamente, a utilização da narrativa, quase

balé, o que se torna pouco forsytheano nes-

se sentido. Oliveira padece ainda da lite-

rariedade, usando-a como único recurso

para construir suas obras, deixando de lado

a oportunidade de se lançar aos desafios da

pura construção coreográfica, marca do co-

reógrafo americano.

O espetáculo forsythe@deanima parece

revelar novos ares na companhia dirigida

por Richard Cragun. A escolha de um nome

como Forsythe pode ser um ótimo índice de

que existe a vontade de transformá-la em

uma companhia de repertório contemporâ-

neo. Que essa parceria continue e que ou-

tras se estabeleçam.

A qualidade dos bailarinos permite tal

avanço, e o público carioca só teria o que

agradecer.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

152

DeAnima dança William Forsytheutilizando coragem e competência

forsythe@deanima: Referência para o diálogo entrea técnica clássica e a criação contemporânea

SILVIA SOTER

lguns criadores sacudiram as ideias

sobre o balé clássico, investigando

novos caminhos técnicos e consequente-

mente estéticos. No último século, o balé não

foi o mesmo depois de Balanchine. E a téc-

nica clássica ganhou certamente novo fôle-

go a partir de coreógrafos como, por exem-

plo, William Forsythe, cujo trabalho à fren-

te do Ballet de Frankfurt foi apresentado ao

público carioca em junho passado. Forsythe

é hoje referência quando a técnica clássica

dialoga com a criação contemporânea.

Em junho deste ano, depois da tempora-

da do Ballet de Frankfurt no Rio, o coreógra-

fo americano esteve em residência no De

Anima Ballet Contemporâneo, companhia

dirigida por Richard Cragun e Roberto de

Oliveira. Durante uma semana, Forsythe tra-

balhou com os dois grupos que dão conta das

ações do DeAnima: a companhia profissio-

nal e os jovens do Programa Social DeAni-

ma. O espetáculo forsythe@deanima que es-

treou no último dia 21 no Teatro Villa-Lobos

apresenta o resultado dessa parceria.

A dança de Forsythe tem as marcas da

técnica do balé clássico revigorada pela

instabilidade dos apoios, sempre no limite

do desequilíbrio e da desarticulação, em

busca de novas e inesperadas linhas. A assi-

natura de Forsythe ganha contornos diferen-

tes em cada uma das quatro peças que com-

põem a noite.

Em 9. All Stars, foi especialmente criado

por Forsythe para o grupo de jovens do Pro-

grama Social. A coreografia se inicia com

uma partitura de gestos de braços, sob a mú-

sica de Bach, e, em seguida, explora a dança

de rua, ao som do grupo americano N.O.R.E.

Aqui, a sabedoria e a generosidade de For-

sythe estão a serviço de possibilitar a orga-

nização eficiente do material trazido pelos

jovens participantes do projeto. A coreogra-

fia se adapta às possibilidades (ainda restri-

tas, o que é natural) dos jovens iniciantes, mes-

mo que não vá muito além disso.

Mas é nos dois pas-de-deux que se se-

guem que a assinatura de Forsythe ganha,

de fato, visibilidade. Slingerland, um extra-

to da peça em quatro atos de mesmo nome

criada em 1989 para o Ballet de Frankfurt,

é retomado aqui, com precisão e seguran-

ça, por Alessandra Salamonde e Fernando

A

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA• 27 DE NOVEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA• 27 DE NOVEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA• 27 DE NOVEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA• 27 DE NOVEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA• 27 DE NOVEMBRO • 2003

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

153

Bersot. A desarticulação dos corpos cria uma

dança angulosa que joga entre as linhas do

clássico e a movimentação de aranhas.

Herman Schmerman, criada para New

York City Ballet, é o ponto alto da noite. Os

ótimos Roberto de Oliveira e Paula Mara-

cajá, com entrosamento perfeito, trazem o

jogo para a cena, com o humor e a criativi-

dade de Forsythe.

Fechando a noite, é a vez de Roberto de

Oliveira, agora como coreógrafo, dialogar

com a dança do coreógrafo americano. Uma

semana com Bill(y) é produto do convívio

com Forsythe durante a semana da residên-

cia. No entanto, há um tênue limite entre o

diálogo cênico com o criador e a citação do

que antes foi mostrado, e Oliveira, ao se

apegar demais à ideia de narrar o que acon-

teceu nesse encontro, acaba por criar uma

camisa de força para sua dança. Balanchi-

ne já havia dito que, quando fosse importan-

te contar algo, mandar uma carta seria mais

eficiente do que criar uma coreografia. Tal-

vez a lição desse mestre não se aplique a

todos os casos, mas no caso de Forsythe, vale

ser lembrada.

Vale também lembrar que dançar Forsythe

não é tarefa fácil. Tarefa que o DeAni-

ma Ballet Contemporâneo enfrenta com

coragem e competência.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

154

Ana Botafogo é divaBailarina brilha no Onegin do Ballet do Municipal

ROBERTO PEREIRA

em dúvida nenhuma, Onegin, balé de

John Cranko, inspirado em obra homô-

nima do poeta russo Alexander Pushkin, re-

presenta um marco importante para a his-

tória do Ballet do Theatro Municipal do Rio

de Janeiro. Onegin, que estreou no último

dia 5, ganhou aqui uma versão absoluta-

mente condizente com as necessidades im-

postas por esse tipo de encenação. Embora

seja um balé tipicamente de ação, que exi-

ge dos intérpretes uma construção dramáti-

ca refinada e por isso mesmo muito difícil,

existem nele passagens coreográficas alta-

mente técnicas, sobretudo nos intricados

pas-de-deux, presentes em todos os três atos.

Assim, o duplo desafio de atender a tais

exigências representa a possibilidade de

crescimento e maturidade que deve ser ex-

perienciada por toda grande companhia de

balé, e a nossa teve êxito nessa empreitada.

O elenco escalado para a estreia corres-

pondeu muito bem a tais exigências. Marce-

lo Misailidis conseguiu dar um tom preciso

de dramaticidade ao seu Onegin, enquanto

Vítor Luiz construiu um Lenski de acordo

com o perfil de poeta do personagem. Mas

era o privilégio de ver dividindo a cena as

bailarinas Ana Botafogo e Roberta Márquez,

como Tatiana e Olga, respectivamente, que

se transformou em um dos grandes momen-

tos da noite. Duas gerações de primeiras bai-

larinas, cada uma a seu modo, teciam cenica-

mente um diálogo eloquente de dança, uma

soma de competências. A personagem Olga

parece ter sido construída especialmente

para Roberta, tal era a afinação que se podia

observar em sua performance.

Já na segunda récita, esse mesmo entro-

samento não foi alcançado. Cecília Kerche,

talvez abalada pelos últimos acontecimen-

tos que envolveram seu nome nos bastido-

res do teatro, não conseguiu imprimir à sua

Tatiana as sutilezas dramáticas que carac-

terizam a personagem. E ainda não pôde

interagir bem com o bailarino Francisco

Timbó, bastante frágil tecnicamente como

Onegin. Resultado, a grande estrela foi a

novata Cristiane Quintan, como Olga. Já o

corpo de baile, assim como toda a produção

de cenários e figurinos, correspondiam com

perfeição à estrutura cênica imposta pela

obra de Cranko.

S

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 9 DE DEZEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 9 DE DEZEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 9 DE DEZEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 9 DE DEZEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 9 DE DEZEMBRO • 2003

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

155

Se Onegin representa uma prova de

fogo para a companhia, que foi aprovada

em muitos de seus quesitos, representa tam-

bém (e, talvez, sobretudo) um grande mo-

mento na carreira da bailarina Ana Bota-

fogo. Maturidade, sabedoria, técnica e dra-

maticidade são elementos dissolvidos em

sua dança que se espalha por toda a cena,

por todo o teatro. Tatiana, assim como Gi-

selle, embora personagens tão distintos, já

pode ganhar o estatuto de papel consagra-

dor em sua carreira. Sua interpretação é

perfeita, madura, sutil. Consegue modular

com minúcia as diferenças de sua persona-

gem entre os atos, partindo de uma Tatiana

jovem e ingênua para chegar a uma outra

mais velha, dramática, no último ato. Sua

cena final impressiona. E faz o público sair

do teatro com uma certeza: Ana Botafogo

é uma diva.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

156

Balé do Municipalencerra temporada

em grande estiloOnegin: Ana Botafogo se destaca,

demonstrando mais uma vez a técnicae a interpretação repleta de

nuances que caracterizam uma estrela

SILVIA SOTER

Ballet do Theatro Municipal encerra

sua temporada de 2003 presenteando

o público carioca com a ótima montagem de

Onegin, coreografia de John Cranko, a par-

tir do romance em versos de Alexander

Pushkin. Depois de um longo período de

“vacas magras”, a companhia volta em gran-

de estilo. Coreografia, música, cenários, fi-

gurinos ajudam a fazer de Onegin um gran-

de momento do Theatro.

Em três atos, a história do desencontro

amoroso do distante e blasé Onegin e da ro-

mântica Tatiana é contada dentro da estru-

tura do balé de ação, em que o fio narrativo

é garantido, ainda que intercalado por mo-

mentos de dança mais abstrata.

A coreografia de Cranko é exemplar da

possibilidade de imbricar narração e dan-

ça. A primeira cena do segundo ato é ma-

gistralmente construída nesse sentido: os

acontecimentos e os conflitos entre os diver-

sos personagens que desencadearão a ação

acontecem, literalmente, entrelaçados na

dança dos casais durante o baile de aniver-

sário de Tatiana. Não há, nesse caso, como

separar a dança da narrativa.

Em uma peça como Onegin, os persona-

gens possuem tons reais, humanos, em que

as contradições, as dúvidas, as ambivalên-

cias e os arrependimentos não podem ser

garantidos por exageros da pantomima.

Não são emoções em estado bruto. A neces-

sidade de revelar, sem palavras, a comple-

xidade do mundo interior dos personagens

torna-se, então, tarefa árdua para os intér-

pretes. E os bailarinos do Theatro Munici-

pal se saem muito bem.

Na noite da estreia, Marcelo Misaili-

dis compôs, com técnica e precisão, seu

Onegin, equilibrando doses de sedução

e de frieza de emoções nos dois primei-

ros atos, e sensualidade e desespero no

ato final. Vítor Luiz emprestou sua ju-

ventude e sua bonita presença a Lenski,

confirmando o seu lugar de destaque na

companhia. A jovem primeira bailarina

O

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • QUINT• QUINT• QUINT• QUINT• QUINTA-FEIRA• 1A-FEIRA• 1A-FEIRA• 1A-FEIRA• 1A-FEIRA• 11 DE DEZEMBRO • 20031 DE DEZEMBRO • 20031 DE DEZEMBRO • 20031 DE DEZEMBRO • 20031 DE DEZEMBRO • 2003

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

157

Roberta Marquez, como Olga, brindou o

público com mais uma atuação impecá-

vel. O bom entrosamento do corpo de

baile garantiu brilho às cenas de conjun-

to, especialmente criativas no desenho

coreográfico.

Ana Botafogo, perfeita no papel de

Tatiana, destila diante dos olhos do pú-

blico suas qualidades dramáticas. Sua in-

terpretação é repleta de surpresas, nuan-

ces e hesitações. A cena do último encon-

tro de Tatiana e Onegin é uma dessas

imagens que ficam impregnadas na me-

mória do espectador. Ana Botafogo car-

rega o público com ela. Coloca-o na pele

de Tatiana.

Onegin é mais uma oportunidade de

confirmar a rara capacidade da bailari-

na em tornar legível em seu corpo, em seu

rosto, o texto dramático. A dança de Ana,

mais uma vez, faz vibrarem as palavras

dos poetas.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

158

Os corpos são olugar da dança

Lia Rodrigues faz dos bailarinos sua cena

ROBERTO PEREIRA

dança talvez seja um dos lugares mais

privilegiados para se observar as con-

taminações mútuas entre natureza e cultu-

ra. Nesse zigue-zague frenético de troca de

informações, o corpo que dança promove

pactos renovados entre sua materialidade

e o lugar em que está inserido. Os dois espe-

táculos apresentados pela Lia Rodrigues

Companhia de Danças, no Teatro Villa-Lo-

bos, fazem dessa via de mão dupla seu sen-

tido: o ambiente da dança, a cena, é desve-

lado no corpo e apenas nele, por ele.

Em Aquilo de que somos feitos, a ideia é

revelar como as informações do ambiente se

incrustam num corpo-suporte, quase um ou-

tdoor, que, desnudo, deixa-se etiquetar pelos

slogans do dia. Assim, o espetáculo recupera

a imprevisibilidade da performance, instau-

rando nela o engajamento político-social. O

espetáculo é uma constatação: o corpo, qual-

quer corpo – inclusive de quem assiste ao

espetáculo – contaminado pela informação

é mídia de ideias. Os corpos dos bailarinos

não permanecem mais nus. Cabe ao público,

lançado sobre o palco sem cadeiras, dissolvi-

do numa relação quase epidérmica com a

cena, revesti-los de outros figurinos. Em um

determinado momento, esses mesmos corpos

nus avançam pela plateia em espasmos pelo

chão e se amontoam contra uma parede: a

carne que havia ganhado significações tor-

na-se simplesmente carne. O espetáculo de

Lia Rodrigues é um manifesto.

A construção da cena no corpo, e somen-

te nele, torna-se ainda mais radical em For-

mas breves. A brevidade sugerida no título

vem das ideias de Italo Calvino. Assim, a

obra é composta de fragmentos quase ro-

mânticos: cada um com a inteireza de um

porco-espinho, diria Schlegel, ou onde “tudo

é apenas semente”, diria Novalis. Nessa apro-

priação pós-moderna de formatos, a propos-

ta era reler Schlemmer, coreógrafo e um

dos fundadores do movimento Bauhaus. A

tarefa é cumprida a ferro e fogo, fazendo do

movimento um bisturi que modifica o cor-

po, que opera nele a ideia. Um figurino do

Balé triádico do coreógrafo alemão, por

exemplo, é traduzido em um corpo nu. O que

há de germânico explode num duo de for-

mas altivas, apolíneas, assépticas.

Lia Rodrigues faz dos corpos de seus

excelentes bailarinos sua cena. Ao público

cabe o desafio de afinar os olhos e transfor-

má-los em lente quase cirúrgica de decupa-

ção. E perceber que aquela dança é apenas

sintoma dos novos entendimentos possíveis

de natureza e cultura.

A

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 1• SEGUNDA-FEIRA• 1• SEGUNDA-FEIRA• 1• SEGUNDA-FEIRA• 1• SEGUNDA-FEIRA• 155555 DE DEZEMBRO • 2003 DE DEZEMBRO • 2003 DE DEZEMBRO • 2003 DE DEZEMBRO • 2003 DE DEZEMBRO • 2003

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

159

Balança e dançaDança carioca encontra em festivais e mostras

terreno sólido para a sua produção em 2003

ROBERTO PEREIRA E ANA CECÍLIA MARTINS

ara a dança, olhar para o ano de 2003

representa reconhecer que, embora

persistam grandes problemas, como a evi-

dente falta de política voltada para a área,

sua produção compensou esse caráter nega-

tivo com uma qualidade que brota como

força de resistência, quase que “tirando lei-

te de pedra”. No Rio de Janeiro, cidade que

já se quis nomear “capital brasileira da dan-

ça”, não foi diferente.

Embora todas as faltas, todas as promes-

sas vazias, embora os apoios da Prefeitura às

companhias de dança contemporânea não

tenham saído como deveriam, que o Centro

Coreográfico só tenha acumulado datas

possíveis de inauguração, embora não haja

pauta para a dança nos teatros, que vivem

sob ameaça de se tornarem arremedo de

Broadway e de só exibirem uma versão

tupiniquim de musicais, a dança carioca

foi criando seus anticorpos e fez deles

sua marca.

O primeiro anticorpo, talvez o mais for-

te e resistente, é o dos festivais. O Rio agre-

ga alguns dos mais importantes festivais do

Brasil, e talvez por isso a cidade tenha hoje

um perfil tão peculiar que a distingue de

qualquer outra capital brasileira. Os Solos

de Dança no SESC, em sua quarta edição,

abriu o ano confirmando seu lugar ímpar na

cena carioca. Assinado por Beatriz Ra-

dunsky, e consultoria da coreógrafa Márcia

Rubin, o encontro vem experimentando,

desde sua primeira edição, novas configu-

rações. Nesse ano, como a ideia era promo-

ver encontros inéditos entre bailarinos e co-

reógrafos, alguns solos foram particularmen-

te instigantes pela originalidade desses en-

contros, como as parcerias estabelecidas

entre o excelente bailarino André Vidal e o

ator/diretor Matheus Nachtergaele, e a da

bailarina Soraya Bastos com a coreógrafa

Ana Vitória. Nesta mesma ideia de solos, o

evento ainda brindou o público com uma ex-

posição de raras litografias de Isadora Dun-

can, com curadoria de Silvia Soter e Rober-

to Pereira.

O Dança Brasil comemorou seus sete

anos provando que, embora seja, inacredi-

tavelmente, o único evento de dança do

Centro Cultural do Banco do Brasil, e mes-

mo assim ainda não conte com o teatro

maior, é um dos mais importantes festivais

de dança brasileiros. Com curadoria de Leo-

nel Brum e Silvia Soter, esse evento promo-

ve, ao optar por linhas temáticas, olhares

sempre renovados sobre a dança contem-

porânea que se faz por aqui. Neste ano, a

P

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • QUINTA-FEIRA • QUINTA-FEIRA • QUINTA-FEIRA • QUINTA-FEIRA • 25 DE DEZEMBRO • 2003• 25 DE DEZEMBRO • 2003• 25 DE DEZEMBRO • 2003• 25 DE DEZEMBRO • 2003• 25 DE DEZEMBRO • 2003

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

160

relação música/dança foi eleita. Este senti-

do, dois trabalhos aparecem como funda-

mentais: o de Márcia Rubin, que estreou

uma nova possibilidade coreográfica em

sua carreira em Tempo de valsa moderado

com elegância, e o furacão jovem chamado

Bruno Beltrão, com os atritos que provoca

ao fazer dialogarem a dança de rua e a con-

temporânea. Beltrão, com seu inteligente Te-

lesquat, foi, com certeza, um dos grandes mo-

mentos da dança em 2003.

O terceiro importante festival de dança

carioca é o veterano Panorama RioArte de

Dança, que alcançou algo bastante signifi-

cativo no cenário brasileiro hoje: sua déci-

ma segunda edição. Com a direção artística

de Lia Rodrigues, esse evento funciona

como uma espécie de mapa da dança con-

temporânea carioca ou, até mesmo, sua ár-

vore genealógica. Em 2003, sua marca foi

mostrar como seus projetos ganharam cor-

pos e tiveram prolongamentos tão frutífe-

ros. Trabalhos desenvolvidos em residên-

cias em 2002 foram apresentados nesse ano,

mostrando o papel fundamental desse fes-

tival como fomentador de pesquisa de dan-

ça na cidade. Nesse sentido, os trabalhos de

Frederico Paredes e Denise Stutz são ótimos

exemplos de processos cuja ignição foi o

próprio festival. Contando com outros pro-

jetos, como a quarta edição de Os novíssi-

mos, mostra de pesquisa de jovens coreógra-

fos, curadores e, agora também, críticos, o Pa-

norama continua como talvez a única pos-

sibilidade de apresentar importantes com-

panhias estrangeiras a preços realmente

acessíveis. Nesse ano, tão parco de atrações

internacionais, poder ver a mais recente cri-

ação da coreógrafa francesa Maguy Marin,

Les applaudissements ne se mangent pas, foi

um presente.

Outras mostras se agregam a este cená-

rio de resistência: o Projeto Dança em Foco,

uma das atividades do superprodutivo Es-

paço SESC (outro anticorpo a ser mencio-

nado), que investiga aproximações entre ví-

deo e dança, assinado por Paulo Caldas e

Leonel Brum; o Dança em trânsito, da Se-

cretaria das Culturas, que investiga a rela-

ção entre dança e paisagens urbanas; o Pro-

jeto raio X, da UniverCidade, que revelou

o processo criativo de oito importantes com-

panhias cariocas, em ensaios abertos, sob a

curadoria de Roberto Pereira; e o 4º Circui-

to Carioca que, embora tenha a boa inten-

ção de ser uma palheta da vasta produção

de dança da cidade, em seus mais diversos

estilos, ainda sofre por não contar com uma

curadoria mais cuidadosa, que se preocupe

também com a formação de plateias. Enten-

der esses festivais e mostras como anticor-

pos é talvez o modo mais interessante de se

notar, antes de tudo, o caráter formativo

deles, num ambiente que se nutre se infor-

mações, muitas vezes tão escassas. Informa-

ção, aqui, também é formação.

As companhias cariocas, muitas delas

vivendo atualmente os percalços de falta de

organização dos poderes públicos em rela-

ção à subvenção disponibilizada, também

são fortes anticorpos que lutam pela saúde

da dança que se faz nesta cidade. Dani Lima

apresentou um dos trabalhos mais maduros

de sua carreira, Falam as partes do todo?,

investigando identidade numa cena e em

corpos bastante diferentes do que até então

era conhecida como sua marca; Carlota

Portella mostrou seus excelentes bailarinos

em novos trabalhos assinados por coreó-

grafos convidados e estreantes; a DeAni-

ma Ballet Contemporâneo abriu o ano,

logo em janeiro, com um mal estruturado

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

161

projeto de residência coreográfica, mas

mostrou, no segundo semestre, alguns frutos

de uma parceria com o genial coreógrafo

americano William Forsythe, revelando ao

público carioca que Roberto de Oliveira,

sem dúvida alguma, tem na sua prática

como bailarino sua melhor faceta; e Lia

Rodrigues, encerrando o ano, que pôde

revelar aqui porque sua pesquisa interessa

tanto aos importantes festivais internacio-

nais, sempre com grande sucesso, como no

Nouvelle Danse, FIND, do Canadá, onde

ganhou o prêmio de melhor espetáculo

dado pelo público, deixando em segundo

lugar ninguém menos que Forsythe. Aliás, o

mesmo Forsythe foi, para nós, a única visi-

ta estrangeira, fora do âmbito dos festivais,

de relevância. Num ano em que as empre-

sas se viram fadadas a cancelar temporadas,

como infelizmente aconteceu com a de

Merce Cunningham, da série Antares, assis-

tir ao Ballet de Frankfurt foi uma experiên-

cia ímpar, por sua qualidade, por sua inteli-

gência, pela marca atualíssima forsytheana.

O Ballet do Theatro Municipal também

enfrentou dificuldades de toda sorte: a fal-

ta de verba agregada a uma direção polê-

mica de Richard Cragun tornou o ano da-

quela companhia pouco produtivo. Após

requentadas remontagens de Giselle e O

lago dos cisnes, e uma constrangedora

Gala, apresentada em novembro, Onegin,

de John Cranko, foi seu grande momento.

Ana Botafogo, Marcelo Misailidis, André

Valadão e o jovem talento Roberta

Márquez formam, sem dúvida, um elenco

de primeira linha na mais importante com-

panhia de balé brasileira.

O ano de 2003, para a dança, embora

abalado pela falta evidente de estrutura,

criou mecanismos de produção que tor-

nam o Rio de Janeiro, com certeza, uma

cidade com um perfil bastante peculiar

quando se observa os grandes centros cul-

turais brasileiros. Aqui, arregaçar as man-

gas é a palavra de ordem. E aprender com

o próprio corpo como resistir, como com-

bater, criando anticorpos vivos, ativos, in-

teligentes, concede à sua dança um cará-

ter que ultrapassa a dimensão estética. É,

antes de tudo, um procedimento ético, de

sobrevivência.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

162

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

163

2004 CRÍTICAS

O GLOBO - 15 DE JANEIRO DE 2004Dança e reflexão no palco do Espaço SESC

SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 18 DE JANEIRO DE 2004Permanências mutantes

ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 7 DE MARÇO DE 2004Palco para a reflexão

ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 13 DE MARÇO DE 2004Saltos com riscos

ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 21 DE MAIO DE 2004Uma ponte entre o Rio e Sttutgart

SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 2 DE MAIO DE 2004O espaço que (nos) estimula

ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 5 DE JULHO DE 2004Dançando por esporte

ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 12 DE JULHO DE 2004Depois de 50 anos, ainda novas maneiras de ver e criar dança

SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 12 DE JULHO DE 2004Passos simultâneos à vida

ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 16 DE JULHO DE 2004Lembranças pensadas no presente que orientam projetos futuros

SILVIA SOTER

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

164

JORNAL DO BRASIL - 24 DE JULHO DE 2004Lição de Antonio Gades

ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 10 DE AGOSTO DE 2004Paixão pelo movimento

ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 13 DE AGOSTO DE 2004Competência que rende espetáculo de beleza hipnotizante

SILVIA SOTER

O GLOBO - 3 DE SETEMBRO DE 2004Com prazer e sedução

SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 4 DE SETEMBRO DE 2004Um balé de paixão

ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 17 DE SETEMBRO DE 2004A Tropicália, segundo sete criadores

ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 24 DE SETEMBRO DE 2004Mais liberdade para o som dos pés

SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 2 DE OUTUBRO DE 2004O Brasil em Lyon

ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 3 DE OUTUBRO DE 2004Shakespeare condensado

ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 8 DE OUTUBRO DE 2004É tropicalismo, mas sem irreverência ou transgressão

SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 9 DE NOVEMBRO DE 2004Desafio ainda é politizar o corpo que dança

ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 22 DE NOVEMBRO DE 2004Passos tecidos com sabedoria

ROBERTO PEREIRA

O GLOBO - 27 DE NOVEMBRO DE 2004Gestos de beleza e suavidade em Márcia Milhazes

SILVIA SOTER

JORNAL DO BRASIL - 6 DE DEZEMBRO DE 2004Qualidade técnica à prova

ROBERTO PEREIRA

JORNAL DO BRASIL - 30 DE DEZEMBRO DE 2004Driblando obstáculos

ROBERTO PEREIRA

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

165

Dança e reflexão nopalco do Espaço SESC

Afirmações intencionais – Acidentes:Em seu novo espetáculo, João Saldanha divide maisuma vez com o público as entranhas do ato de criar

SILVIA SOTER

temporada de dança contemporânea

chegou mais cedo em 2004. O Espa-

ço SESC, que há quatro anos inaugurava

em março a temporada carioca com seus

solos e duos, abriu, neste ano, as portas em

janeiro para o coreógrafo João Saldanha

dividir com o público seu Afirmações inten-

cionais – Acidentes.

Como o coreógrafo explica no programa,

esse trabalho vem em consequência de

mudanças provocadas em sua companhia, o

Atelier Coreográfico, pela não renovação

em 2003 do apoio da Secretaria Municipal

das Culturas que mantinha há anos suas ati-

vidades. O coreógrafo decidiu, então, traba-

lhar com bailarinos de outras companhias

com as quais já colaborava como dramatur-

go ou professor. Estão em cena, além do pró-

prio João, um dream-team que reúne Laura

Samy e Marcelo Braga, dois parceiros de

João de longa data, Micheline Torres e Thi-

ago Granato, da Lia Rodrigues Companhia

de Danças, e Danielle Rodrigues e Alex

Senna, da Cia. Carlota Portella. Ótimos bai-

larinos que colaboram com suas bagagens

diversas para a peça.

Assim como acontecia em Danças de

porão, trabalho de João Saldanha e de Pau-

la Nestorov, que esteve em cartaz em 2002,

as entranhas e a intimidade do ato de dan-

çar e de criar sequências com a dança que

surge em cena são reveladas ao público.

Por exemplo, uma mesma movimenta-

ção é iniciada por um dos bailarinos e ex-

perimentada pelos outros, gerando sequên-

cias. A cada encontro de movimento e bai-

larino, a partir dos corpos que atravessam,

essas frases ganham diferentes qualidades.

Desse modo, nascem células coreográficas

que são combinadas e compostas diante dos

olhos do público. A seleção e a ordem das

frases a serem trabalhadas são diferentes a

cada noite. O acidente é esperado e bem-

vindo. O espetacular cede espaço ao proces-

so, como vem acontecendo numa vertente

importante da dança contemporânea.

O ponto mais delicado de propostas

como esta está na criação de um autêntico

ambiente de experimentação diante dos

olhos do público. Ainda que, ao abrir a

noite, João Saldanha tente quebrar com a re-

lação formal entre cena e plateia, pedindo,

A

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • • • • • QUINTA-FEIRA QUINTA-FEIRA QUINTA-FEIRA QUINTA-FEIRA QUINTA-FEIRA • 15 DE JANEIRO • 2004 • 15 DE JANEIRO • 2004 • 15 DE JANEIRO • 2004 • 15 DE JANEIRO • 2004 • 15 DE JANEIRO • 2004

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

166

por exemplo, que algumas pessoas do pú-

blico troquem de lugar e avisando que

aquilo não é um espetáculo, na noite de es-

treia ficou evidente que a presença do

público é um fator de influência para o

rendimento dos intérpretes/criadores, para

o bem e para o mal, e não pode ser des-

considerado.

Em alguns momentos da noite, os baila-

rinos descansam, comentam o que percebe-

ram de suas experiências, dividem frustra-

ções, ouvem as opiniões e sugestões do co-

reógrafo. Aquilo que poderia parecer como

um momento de pausa da dança é o que tem

de mais interessante nesse trabalho de João

e que já estava apontado em Danças de

porão: a possibilidade de confrontar o que o

público experimenta, ainda que sem neces-

sariamente formular, com as impressões dos

bailarinos e do coreógrafo. A peça é tecida

a partir de idas e voltas entre a dança e a

reflexão. Em Afirmações intencionais –

Acidentes, as palavras do dramaturgo fran-

cês Bernard Dort são confirmadas diante

dos olhos do público: a dramaturgia é uma

consciência e uma prática.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

167

Permanências mutantesEspetáculo de João Saldanha analisa o paradoxo da dança

ROBERTO PEREIRA

título do novo trabalho do coreógrafo

e bailarino João Saldanha, Afirmações

intencionais – Acidentes, em temporada

até hoje no Espaço SESC, talvez indicie

uma senha possível para seu entendimen-

to: enquanto a expressão “afirmações in-

tencionais” resguarda a qualidade de per-

manência, do que é, o termo “acidentes”

redimensiona esse estado, instaurando a

ideia de acaso, de movimento, do que

muda. Antiga questão filosófica, a relação

entre permanência e mudança parece de-

senhar um mapa, dinâmico e sempre novo,

sobre o qual a dança ali construída é for-

çada a se desconstruir a cada dia, ou seja,

é forçada a mostrar-se sempre como pro-

cesso e não como produto acabado. O que

é vocabulário de movimentos do coreó-

grafo encontra abrigo incerto, e por isso

mesmo tão rico, em corpos que se inaugu-

ram como um grupo, compartilhando a in-

constância da cena.

Assim, a tradução dessa relação propos-

ta por João Saldanha faz submergir a quali-

dade da dança e de suas especificidades nos

acasos que a envolvem: a cada dia, sequên-

cias de movimentos, quem as executa e em

que ordem, além da própria trilha sonora,

são escolhidos pouco antes ou mesmo du-

rante a apresentação. O frescor do momen-

to quase improvisado contrasta com o vigor

do construído, do ensaiado, convidando o

espectador a travar ali uma relação quase

de voyeur com o que se tece entre os baila-

rinos. Não à toa, antes de começar o espetá-

culo, o público é convidado a se levantar

para que os bailarinos possam observá-lo, e

não apenas o contrário.

Aliás, a escolha dos seis excelentes bai-

larinos (Micheline Torres e Thiago Grana-

to, da Lia Rodrigues Companhia de Dan-

ças, Danielle Rodrigues e Alex Senna, da

Cia. Carlota Portella, e ainda outros dois que

já trabalham há tempos com João, Laura

Sämy e Marcelo Braga) parece obedecer

à mesma lógica de permanência e mudan-

ça. O que cada um traz, das diferenças pes-

soais e da linguagem de cada companhia

às quais pertencem, permanece, ao mesmo

tempo em que se mescla, num novo conjun-

to, numa nova linguagem. O que se deixa

ver é a dança de João em diálogo com a de

O

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANE IRO • DOMINGOR IO DE JANE IRO • DOMINGOR IO DE JANE IRO • DOMINGOR IO DE JANE IRO • DOMINGOR IO DE JANE IRO • DOMINGO • 18 DE JANEIRO • 2004 • 18 DE JANEIRO • 2004 • 18 DE JANEIRO • 2004 • 18 DE JANEIRO • 2004 • 18 DE JANEIRO • 2004

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

168

seus colegas coreógrafos, num jogo intri-

gante de vice-versas.

O grande mestre de todos, o coreógrafo

russo George Balanchine, comparava seu

ofício de coreógrafo e professor ao de um

jardineiro, também um de seus hobbies fa-

voritos: a atenção ao crescimento de suas

plantas e a consciência do ambiente em que

cresciam davam-lhe a certeza da constru-

ção de um processo. No texto do programa,

João Saldanha comenta sua atividade do-

méstica de “jardineiro-jardinando”. Na cren-

ça popular, aquele que possui a habilidade

de fazer vingar uma planta em seu jardim

ao plantá-la tem o que chamam de “mão

boa”. Essa mesma mão, dissolvida na sabe-

doria de um corpo inteiro, faz de João mais

do que um mero “orientador”: ele é mesmo

aquele que sabe fazer florescer seu canteiro

de dança, colocando a mão em sua terra, cul-

tivando-a. E faz torcer para que a estação da

dança carioca seja sempre primavera.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

169

Palco para a reflexãoDenise Stutz arrebata o público na série

Solos de Dança, em cartaz no SESC

ROBERTO PEREIRA

onfirmando-se como um dos mais im-

portantes eventos do calendário da

dança carioca, a série Solos de Dança no

SESC, em sua quinta edição, dá continuida-

de à proposta de instigar novos olhares a

partir de novas misturas. Com curadoria as-

sinada por Beatriz Radunsky e consultoria

do coreógrafo João Saldanha, a mostra ini-

ciou sua primeira parte na quinta-feira, co-

locando no mesmo palco qualidades muito

distintas de dança, que, juntas, refletem tan-

to a rica pluralidade de pesquisas em dança

contemporânea na cidade, como também a

generosa possibilidade de convívio dessas

linguagens num mesmo ambiente. Resulta-

do: a série Solos de Dança no SESC traça

um diagrama de potencialidades que se efe-

tivam entre nossos artistas.

Como curadoria traduz um modo de

olhar o objeto artístico, interferindo inclu-

sive a partir da sequência em que os traba-

lhos são apresentados, um dos momentos

mais especiais da noite é justamente a pas-

sagem entre os dois primeiros solos, que pro-

voca um estranhamento mais que legítimo

no público. Abrindo a noite, a experiente

bailarina Denise Stutz apresenta seu DeCor,

lugar que ela inaugura em sua carreira

para deixar aflorar a memória de dança

abrigada em seu corpo. A sabedoria e a

maturidade com que essa questão é ali tra-

tada deixam vazar a qualidade de uma his-

tória que se tece em movimentos, que se

imprime na carne, contando suas experiên-

cias com coreógrafos diversos, mostrando

um corpo que é um corpo de bailarina, no

sentido mais puro desta palavra. Denise

deixa o palco e o público arrebatados por

sua história, por sua identidade construída

de modo tão íntegro em sua dança. Em se-

guida, o solo O dia em que ela vai me ver

dançar, da jovem Milene Pimentel, impac-

ta à primeira vista justamente pelo frescor

e a fragilidade de alguém que ainda come-

ça tenuamente a construir sua história em

dança. O contraste evidente entre as duas

bailarinas, entre os dois trabalhos, exige do

público que afie seu olhar para o que é con-

tado ali, confirmando que a ordem dos fato-

res, nesse caso, altera sempre o produto. Mi-

lene faz sua dança do seu tamanho, sem a

ansiedade característica de jovens coreó-

C

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R OR I O D E J A N E I R OR I O D E J A N E I R OR I O D E J A N E I R OR I O D E J A N E I R O • DOM INGO • 7 DE MARÇO • 2004 • DOM INGO • 7 DE MARÇO • 2004 • DOM INGO • 7 DE MARÇO • 2004 • DOM INGO • 7 DE MARÇO • 2004 • DOM INGO • 7 DE MARÇO • 2004

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

170

grafos, mostrando que o que ela aprendeu

em seu curso universitário de dança pode

ser transformado em investigação própria

de movimento. Duas trajetórias, Denise e

Milene são dois vetores que nos fazem lem-

brar que história não se conta de forma li-

near, – da esquerda para a direita, – princi-

palmente quando a linguagem escolhida

para contá-la é a dança.

O terceiro solo da noite marca um encon-

tro inédito entre o bailarino Marcellus Fer-

reira e o coreógrafo Paulo Caldas. A elegân-

cia com que tudo se constrói, já a partir do

título do trabalho, Basse danse, uma referên-

cia a um modo de se fazer dança antes que

ela se tornasse cênica no Ocidente, carece

ainda de ajustes típicos de encontros como

estes. Dono de uma pesquisa de movimento

bastante apurada, que vem sendo burilada

há muito tempo, Paulo parece não investir

nas novas possibilidades que a excelência

da dança de Marcellus sugere. O resultado

que se vê é muito mais um esforço do baila-

rino em se aproximar do coreógrafo e não

um jogo entre vice-versas que poderia ser

instigante.

Por fim, no último solo da noite, Marcelo

Braga e Paula Nestorov transformam o pú-

blico em um voyeur que perscruta a fina

relação entre artistas amigos ou, antes, en-

tre amigos artistas. Jacaré, peixe e cachorro

é uma fresta que se abre para que se obser-

ve o que se tece, em seu próprio exercício

de tecer. A belíssima voz de Paula, que can-

ta ao vivo uma trilha composta especialmen-

te por Antonio Saraiva, se refaz na movi-

mentação de Marcelo. O convívio e a cum-

plicidade que se desvelam no palco são

transformados em dança e em música e no

que há de mais belo entre essas duas artes.

É nos atritos entre misturas que a série

Solos de Dança no SESC promove reflexão.

Essa é uma das principais tarefas que se

impõe a um evento como esse. A julgar por

essa primeira parte, a tarefa parece ter sido

plenamente cumprida.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

171

Saltos com riscosApesar de positivo, Solos de Dança revela fragilidades

ROBERTO PEREIRA

segunda e última semana dos Solos

de Dança no SESC deixa aparente,

ao promover encontros inéditos entre core-

ógrafos e bailarinos, tanto as riquezas quan-

to as fragilidades quase inevitáveis em um

projeto como este. O que resulta cenicamen-

te das relações ali inauguradas deve ser

antes observado como um ponto pinçado de

um processo, e deve, portanto, ser lido como

tal. Nesse exercício, cabe a generosidade do

olhar em busca de novas tramas, pelo fres-

cor que a própria (nova) relação inspira.

O primeiro trabalho da noite clama por

essa leitura de modo flagrante. Priscilla

Teixeira convidou a atriz Mariana Lima

para assinar a “direção” e a “concepção” de

Mare lunae, e não sua “coreografia”. Os ter-

mos indicam, nesse caso, que a dramaturgia

assinada por Mariana trafega rente a estru-

turas teatrais, deixando que a dança, em pura

potencialidade no corpo da excelente bai-

larina, permaneça em segundo plano. Assim,

a narrativa buscada ali, com o auxílio de

elementos cênicos, parece esquecer as es-

pecificidades da narrativa própria do corpo

que dança. A equação desses dois modos de

construção cênica está por ser feita e é isso

que salta aos olhos.

Já em Oculto, essa relação entre “dire-

ção dramatúrgica”, assinada por Gilberto

Gawronsky, e “direção coreográfica”, assina-

da por Alex Neoral, para o bailarino Rober-

to de Oliveira, parece estar melhor acomo-

dada, embora sofra pelo excesso de referên-

cias. A ideia submerge em texto, luz, figuri-

no, deixando pouco espaço para a interes-

sante construção coreográfica que apenas

se esboça. A rica disponibilidade do corpo

do bailarino poderia ter sido melhor explo-

rada, podendo ter sido transformada, na

própria cena, no lugar de diálogo entre o

coreógrafo e o dramaturgo.

O terceiro trabalho da noite se oferece

como bom exemplo de como esses novos

encontros entre bailarino e coreógrafo po-

dem ser extremamente frágeis. Em Dobra,

ao voltar-se para a própria tessitura coreo-

gráfica, Thiago Granato não consegue im-

primir à cena ou ao corpo da bailarina Lau-

ra Sämy a coesão necessária para se ler o

texto que ali se delineia. O processo de

metalinguagem, ao ser tratado como tema

A

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 1 3 D E M A R Ç O • 2 0 0 4R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 1 3 D E M A R Ç O • 2 0 0 4R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 1 3 D E M A R Ç O • 2 0 0 4R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 1 3 D E M A R Ç O • 2 0 0 4R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 1 3 D E M A R Ç O • 2 0 0 4

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

172

em dança, traz consigo armadilhas que tal-

vez apenas a maturidade na lida coreográ-

fica possa desarmar, desafio que o jovem

Thiago ainda tem pela frente.

Por fim, um reencontro entre os expe-

rientes Carolina Wiehoff e Renato Vieira

parece trafegar justamente na mão con-

trária do trabalho anterior. Em Mulher so-

zinha no palco, pode-se observar como es-

truturas coreográficas são familiares à

bailarina e ao coreógrafo, como se os dois

falassem um dialeto que é trazido à tona

depois de algum tempo sem ser praticado.

Mas esse conforto, próprio do que já é co-

nhecido, não incita, infelizmente, um avan-

ço na investigação coreográfica. Mesmo

com o terreno já preparado e bastante fér-

til, o que nasce são frases feitas na movi-

mentação, na música e, sobretudo, na ilu-

minação e no figurino. Nessa conversa que

se retoma, Renato e Carolina, com a sa-

bedoria dos dois, poderiam ter se lançado

a criar neologismos.

Os Solos de Dança no SESC funcionam

como provocações: nos atritos de novas re-

lações, desviam os olhos do público dos au-

tomatismos, redirecionando-os para estru-

turas não conhecidas. E essa parece mes-

mo ser a função primordial de uma mos-

tra como esta.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

173

Uma ponte entreo Rio e Sttutgart

Tríptico – Ballet do Theatro Municipal:Vertente contemporânea alarga o leque estético

SILVIA SOTER

naugurando a temporada de 2004 do Bal-

let do Theatro Municipal, Tríptico es-

treou na última sexta-feira e prossegue até

amanhã. O programa é composto de peças

do alemão Uwe Scholz, do americano Glen

Tetley e do brasileiro Roberto de Oliveira.

Uma perspectiva bastante particular

costura e justifica a seleção das obras que

compõem a noite: as três peças revelam a

escolha afetiva do diretor do Ballet, Richard

Cragun, personagem importante da rela-

ção histórica do Ballet de Sttutgart com o

Brasil. Cragun foi primeiro bailarino nes-

sa companhia alemã e partner da estrela

brasileira Márcia Haydée. Todas as três

peças estão relacionadas, de um modo ou

de outro, com a passagem de Cragun e de

brasileiros por Sttutgart.

Sétima sinfonia, de Uwe Scholz, coreó-

grafo e também ex-bailarino de Sttutgart,

criada para outra brasileira, a bailarina

Beatriz de Almeida, abre a noite. A aborda-

gem de Scholz em relação ao espaço e à

música remete aos balés sinfônicos de Mas-

sine, no que se refere à busca de uma trans-

posição plástica da música. A coreografia de

Scholz incorpora elementos modernos à téc-

nica acadêmica e tem a qualidade de jogar

com silêncios da movimentação para dei-

xar respirar a música de Beethoven. A peça,

defendida com correção pelos bailarinos

da casa, necessita ainda de pequenos ajus-

tes para garantir a precisão que certamen-

te trará mais brilho à interpretação. A pre-

sença da própria Beatriz de Almeida na

noite de estreia reforçou o caráter de ho-

menagem da noite.

Criada pelo americano Glen Tetley,

no Ballet de Stuttgart, em homenagem a

John Cranko, Voluntaries estreou em 1973 e

seguiu carreira com Márcia Haydée e Ri-

chard Cragun nos papéis principais. Trans-

cendência e espiritualidade estão no centro

dessa obra de interpretação difícil, com

música de Francis Poulenc. Infelizmente, o

impacto e a beleza de Voluntaries não atin-

gem seu auge. Talvez a obra requeira intér-

pretes mais maduros para dar conta da for-

ça que Tetley propõe.

De inspiração nitidamente forsytheana,

M.E.T.A.F.Í.S.I.C.A, de Roberto de Oliveira,

colaborador de Cragun e também ex-baila-

I

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANE IRO • R IO DE JANE IRO • R IO DE JANE IRO • R IO DE JANE IRO • R IO DE JANE IRO • SEXTA-FE IRASEXTA-FE IRASEXTA-FE IRASEXTA-FE IRASEXTA-FE IRA• 21 DE MAIO • 2004• 21 DE MAIO • 2004• 21 DE MAIO • 2004• 21 DE MAIO • 2004• 21 DE MAIO • 2004

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

174

rino do Ballet de Sttutgart, fecha a noite. A

iluminação de Milton Giglio cria efeitos em

linhas que cruzam o palco e se dirigem para

o foco de energia ao fundo da cena, de onde

e para onde a movimentação caótica dos

bailarinos se orienta. Gestos angulares,

desarticulados e repetitivos se estruturam de

forma análoga à música, recriando as elipses

propostas por Philip Glass. Como uma citação,

a luz recria imagens de nuvens que se acele-

ram no céu, como no filme Koyaanisqatsi,

de Godfrey Reggio, com música de Glass.

Roberto de Oliveira consegue, em alguns

momentos, tocar a vertigem e o caos a que

se propõe, ainda que pareça não confiar ple-

namente nas possibilidades de sua própria

dança, insistindo em se apoiar em diferen-

tes elementos cênicos para explicitar suas

intenções. Oliveira aproveita de forma efi-

ciente as qualidades físicas e técnicas de

todo o elenco, com destaque para Bettina do

Dalcanale.

Esta não é a primeira vez (e espera-se que

não seja a última) que o Ballet do Theatro

Municipal explora uma vertente mais con-

temporânea. É sempre interessante para

uma companhia alargar seu leque de possi-

bilidades estéticas, investindo em outras

corporeidades, o que faz com que iniciati-

vas como o Tríptico sejam bem-vindas. Mas

a composição do programa deveria ser nor-

teada pelas qualidades intrínsecas das

obras, aliada à certeza de adequação ao

perfil dos intérpretes da casa. Não é o que

acontece em Tríptico. É uma pena que o

programa da noite não faça da estreia da

temporada de 2004 um momento inesque-

cível. Saudades de Oneguin.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

175

O espaço que (nos) estimulaDança Brasil encerra temporada firmando-secomo palco das tendências contemporâneas

ROBERTO PEREIRA

Dança Brasil, realizado durante todo

o mês de abril no Centro Cultural do

Banco do Brasil, e reunindo sete diferentes

trabalhos, é hoje, ao lado dos Solos de Dan-

ça no SESC e do Panorama RioArte

de Dança, um dos mais importantes even-

tos de dança da cidade do Rio de Janeiro.

Com direção artística de Leonel Brum, que

divide a curadoria com a pesquisadora e

crítica Silvia Soter, o Dança Brasil, a cada

ano, elege um elemento sobre o qual tra-

tam todos os trabalhos ali reunidos ou que se

transforma num viés possível de leitura des-

ses mesmos trabalhos pelo público. Neste ano,

sob o título O espaço que (nos) inspira, trans-

formou a relação espaço-tempo, vital para

a dança, em matéria-prima para o foco do

olhar da curadoria, tendo como desafio ele-

ger coreografias que apresentassem, de al-

guma forma, essa preocupação.

Dividido em quatro encontros, sendo

que três deles reuniam dois trabalhos numa

mesma noite, o Dança Brasil apresentou

um mapa muito interessante de como esse

espaço é tecido pelas diferentes tendênci-

as da dança contemporânea. No primeiro

programa, Basirah, companhia de Brasília,

apresentou Eu só existo quando ninguém

me olha, utilizando-se de um tempo esgar-

çado para tentar representar o espaço da

intimidade. Avançando na pesquisa de

movimentos dentro do histórico dessa com-

panhia, esse espetáculo, entretanto, ainda

necessita da coragem e da meticulosidade

de esgarçar no próprio corpo esse tempo,

despindo-se da necessidade de elementos

cênicos, como cenário e música, para alcan-

çar a singularidade do espaço íntimo. Já a

segunda companhia da noite, o Kaiowas

Grupo de Dança, de Florianópolis, em

Pausa, pretendeu explorar a espacialida-

de pictórica de Mondrian. Utilizando-se

de uma técnica de quedas desenvolvida por

Alejandro Ahmed em seu grupo Cena 11,

do qual a coreógrafa faz parte, Kaiowas

parece ter investido pouco na especificida-

de do tema que pretendia abordar, pecan-

do pelo excesso de frontalidade e deixan-

do que a riqueza de elementos a serem

explorados no espaço representado por

Mondrian se transformasse apenas em ce-

nário e em adereço.A segunda semana foi um dos acertos de

curadoria do festival. Reunindo dois traba-lhos de Minas Gerais, mostrou um progra-ma coeso e que muito dialoga com a ques-tão do espaço proposto pelo evento. Lucia-na Gontijo e Margô Assis apresentaram, emIn situ, uma tradução poética da relação quese estabelece entre o ambiente e o corpo,

O

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O • • • • • D O M I N G OD O M I N G OD O M I N G OD O M I N G OD O M I N G O • 2 D E M A I O • 2 0 0 4• 2 D E M A I O • 2 0 0 4• 2 D E M A I O • 2 0 0 4• 2 D E M A I O • 2 0 0 4• 2 D E M A I O • 2 0 0 4

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

176

mostrando em planos e suportes diferentescomo esse corpo reage e interfere nessasnovas texturas de espaço. A beleza com aqual essa questão é tratada com carinhopelas duas bailarinas-coreógrafas é, de cer-ta forma, continuada na noite através do tra-balho de Thembi Rosa, em seu Ajuntamen-

to. Nele, três diferentes coreógrafos inscre-

vem no corpo da bailarina sua noção de es-

paço que se acomoda como podem, ao lon-

go do tempo, em sua qualidade de dança. O

interessante é justamente observar como se

inaugura um outro amálgama entre compo-

sição de três assinaturas diferentes no espa-

ço de um único corpo, entendido aqui como

mídia dessas assinaturas. Entre o espaço-cor-

po de Luciana e Margô e o corpo-espaço de

Thembi, esse programa possibilitou a decu-

pagem das novas relações que a dança con-

temporânea promove ao (re)criar, a cada

atualização, sua própria noção de espaço.

A Cia. Carlota Portella – Vacilou Dançou

e Celina Portella & Flavia Costa compuse-

ram o terceiro programa, todo carioca. A

mestra Carlota mostrou um trabalho que in-

triga se entendido dentro de uma dimensão

histórica. Em Espaço de luz, a pesquisa esté-

tica da coreógrafa aponta duas setas: uma que

avança e outra que retrocede em busca do

resgate de um vocabulário que lhe é famili-

ar. A o deixar de lado a tarefa de tratar a dan-

ça como suporte de narrativas, ela recupera

com propriedade a movimentação de jazz

que lhe ocupou tantos anos de sua carreira

para redimensioná-la em um outro contexto.

A chave para seu entendimento é observar,

sem pré-conceitos, como essa dimensão his-

tórica faz do trabalho, a um só tempo, resgate

e avanço, citação e criação, metalinguagem

e descoberta. Já o segundo trabalho da noite,

Volume, de Celina Portella & Flavia Costa,

tem a competência do entretenimento, mas

mostra que suas idealizadoras não aprende-ram ainda o sentido da palavra metáfora.Escolar, frontal, óbvio, perpassado por umhumor pasteurizado e de gosto americanoi-de, não se habilita a explorar o que o sapate-ado e tantas pesquisas ali apenas iniciadas(mas nunca acabadas) podem render comodiversas criações diferentes. O problema,entretanto, mais do que a escolha “estética”de suas jovens coreógrafas, é entender suapresença neste festival, cujo perfil investiga-tivo de dança contemporânea parece nãocondizer com a proposta apresentada.

Por fim, única companhia a ter toda umanoite para si, o Zikzira Physical Theatre, quetrabalha entre Brasil e Inglaterra, mostrouVerissimilitude. Este não é o primeiro conta-to do Rio de Janeiro com essa companhia. Noano passado, por exemplo, foi possível ver naprogramação do Panorama o longa-metra-gem Cinzas de Deus, realizado por ela. Emcomum, os dois trabalhos constroem um cor-po foucaultiano para falar de sentidos e rea-lidade. O tom sépia que reveste a cena cos-tura em sinestesias o corpo que dança e aque-le que o assiste, em trocas sensoriais que re-metem a um corpo comum, aquele tratadopelo filósofo como lugar de discurso de po-der. A competência com que tal relação étecida se espalha desse corpo que dança, àcena, para, então, invadir a plateia, impreg-nando o lugar de uma mesma atmosfera.

Assim, a edição deste ano do DançaBrasil fala, de algum modo de si mesma,na medida em que o festival agrega, emseu próprio nome, duas noções de espa-ço: tanto a dança quanto o nosso País sãomapas culturais de entendimentos diver-sos de tempos e de espaços que, a todoinstante e em qualquer lugar, transfor-mam o corpo em movimento em seu abri-

go de reflexão.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

177

Dançando por esporteKatakló: Movimentos óbvios na misturade balé com tênis, futebol e ginástica

ROBERTO PEREIRA

Katakló Athletic Dance, companhia

que se apresentou nesse último

fim de semana no Theatro Municipal e

que continua sua turnê pelo Brasil, ao

propor uma “união artística” entre es-

porte e dança, convida o espectador a

pensar de que lugar é feita essa propos-

ta como pressuposto para se entender

todo o espetáculo.

Os corpos que ali se movimentam, to-

dos de ex-ginastas, carregam consigo a

informação de treinamento que é da com-

petência do esporte, mas não conseguem

dar o passo adiante de entender a si mes-

mos como corpos que dançam. A dança,

propriamente, fica apenas como um ob-

jetivo, sem jamais ser atingido. Ou como

pretexto para que aqueles corpos possam

ocupar um outro lugar, como os palcos,

por exemplo.

O próprio modo como a cena se confi-

gura a partir desse corpo atlético confir-

ma que a questão ali nem de longe se pre-

tende uma questão estética. O primeiro

número da noite (sim, um número!), que

trata do “torcedor”, tem até arquibancada.

O segundo, sobre tênis, tem raquete, o de

ciclismo, tem bicicleta, e assim sucessiva-

mente até o fim dos intermináveis deze-

nove quadros. A obviedade não deixa es-

paço para qualquer resquício de metáfo-

ra: se se fala de futebol, por exemplo, tem

bola e trave em cena.

O que se esboça de “coreográfico” ali é

primário, numa relação puramente causal

com o tema, com a música e com o figurino.

E de onde se parte, do esporte, muitas ve-

zes fica o sabor de que nem mesmo os ex-

ginastas se levam muito a sério, apresen-

tando caricaturas de si mesmos e que se

pretendem engraçadas.

Assim, o show da Katakló é nada mais

que puro entretenimento, e mesmo como

tal deixa a desejar pela inabilidade cêni-

ca e, muitas vezes, pela falta de originali-

dade. Os números com efeitos visuais já

foram testados há décadas e com melho-

res resultados por nomes como Alwin Ni-

kolais e Momix, por exemplo, e até mes-

mo a cena do boxe já foi feita, tal e qual,

na década de 1980 pelo extinto grupo pau-

listano Marzipan.

Num país como o Brasil, onde ainda se

indaga se a Educação Física pode mes-

mo supervisionar o ensino da dança, as-

sistir ao Katakló Athletic Dance Theatre

apenas reforça a resposta que parece

muito simples e óbvia: não, não pode.

O corpo do esporte não é o mesmo corpo

que dança.

A

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 5 DE JULHO • 2004RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 5 DE JULHO • 2004RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 5 DE JULHO • 2004RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 5 DE JULHO • 2004RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 5 DE JULHO • 2004

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

178

Depois de 50 anos, ainda novasmaneiras de ver e criar dança

Merce Cunningham Dance Company:Coreógrafo confirma sua revolução no Municipal

SILVIA SOTER

Merce Cunningham Dance Company,

conduzida há 50 anos por uma das len-

das da dança contemporânea americana,

ofereceu momentos inesquecíveis ao pú-

blico carioca no fim de semana. Em meio

século de atividade criativa, Cunningham

segue inaugurando novos modos de com-

preender, ver e criar dança. No programa

dessa turnê brasileira, duas obras apontam

características desse americano que fize-

ram com que a dança não fosse a mesma

depois de sua passagem.

Como declarou, cabe à psicanálise tra-

tar de afetos e da expressão individual.

Cunningham não se preocupa com gestos

e expressividade, mas com o movimento.

Biped, peça de 1999 que abriu a noite no

Theatro Municipal, revela um criador que,

com o avançar dos anos, depurou, ao limite

da sofisticação, sua capacidade de aproxi-

mar a cena e o movimento humano daque-

le impresso na organização caótica dos

eventos naturais.

A ambientação de Biped é composta

de projeções de imagens de corpos dan-

çantes que Cunningham desenvolve nas

suas pesquisas com simuladores de movi-

mento humano, no computador. Linhas si-

nuosas, retas e pontos, que atravessam a

cena sem fluxo ou sentido regulares, con-

tribuem para a leitura dos corpos que

estão em cena, reais e virtuais, a partir de

suas geometrias. O espaço, estrela da peça,

pulsa em todas as suas dimensões.

Com o desenvolvimento de Biped, tor-

na-se estranho o fato de que os bailarinos

sejam prisioneiros do chão. A submissão à

força da gravidade é o último traço que dis-

tingue os bailarinos de todos os outros cor-

pos que dançam, aproximando-se e repe-

lindo-se no espaço. A música envolvente de

Gavin Bryars, os magníficos figurinos e a

iluminação precisa são decisivos para sua

beleza hipnotizante.

Numa viagem ao passado, 24 anos se-

param Sounddance, a segunda peça da noi-

te, de Biped. Criada em 1974, a peça que,

em suas outras montagens contava com a

presença do próprio Cunningham, já insi-

nuava alguns aspectos que depois as novas

tecnologias ajudariam o coreógrafo a en-

fatizar. No fundo do palco, de uma cortina

A

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 12 DE JULHO • 2003RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 12 DE JULHO • 2003RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 12 DE JULHO • 2003RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 12 DE JULHO • 2003RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 12 DE JULHO • 2003

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

179

mostarda, destacam-se os bailarinos. Os fi-

gurinos, da mesma cor do tecido do fundo,

ajudam a caracterizá-los como partículas

desse ambiente sonoro e espacial. Mais

uma vez e agora de forma nervosa, acele-

rada e até bem humorada, os corpos transi-

tam de maneira aparentemente errática,

sem se fixarem em figuras, esboçando de-

senhos que imediatamente se desmancham.

Tudo que é sólido desmancha no ar, cabe

lembrar aqui.

A impermanência de suas figuras só

pode, no entanto, ser garantida pela regu-

laridade com que esse artista insistiu em

não se acomodar com os passos que deu.

Assisti-lo é confirmar que mais cinquenta

anos continuariam a trazer para dança be-

leza, frescor e risco.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

180

Passos simultâneos à vidaCompanhia de Merce Cunningham sintetiza

em dois balés as pesquisas do genial coreógrafo

ROBERTO PEREIRA

sutileza que separa e une, ao mesmotempo, técnica e tecnologia torna-se

matéria-prima nas mãos de artesão do co-reógrafo americano Merce Cunningham. Oque era ação fabricadora regida de acordocom regras específicas é transformado emforma de conhecimento: técnica e tecnolo-gia, portanto. No corpo e na cena.

Quem esteve no Theatro Municipal nasexta-feira e no domingo últimos teve aoportunidade de observar como a dançaconstruída pelo mestre inaugura nessasduas instâncias, no corpo e na cena, o que aprópria vida e sua complexidade já nosmostram desde sempre. Simultaneidadesfazem explodir a herança renascentista deum mundo construído em perspectiva pararealocar o olho de quem assiste num outroparadigma: não há hierarquia no corpo quedança, nem na cena. Para tanto, Cunnin-gham teve antes que enfrentar a difícil ta-refa de burilar uma técnica. E depois (ouao mesmo tempo) construir sua cena, comauxílio, sempre, da tecnologia.

As duas peças apresentadas nessa tur-nê pelo Brasil mostram esse trajeto demodo flagrante. Biped, de 1999, que abrea noite, revela um Cunningham atentocom o presente e seu revestimento tec-nológico. O corpo construído por ele estálá, despido do que comumente se chamade emoção, para ser apenas, e sobretudo,

movimento. Um gesto às avessas dialogacom a cena não de modo causal, mas inun-dado por uma questão de ordem: o corpo,a cena, o figurino e a música, tudo se re-laciona de modo desierarquizado. O re-sultado é um convite para que se afie apercepção, ao longo da peça, para filigra-nas cada vez mais sutis das conexões te-cidas entre os bailarinos.

Já Sounddance, obra de 1975 e estrate-gicamente apresentada depois de Biped, nosmostra que tudo estava lá, há quase 30 anos.Como um arco e uma flecha tesos aponta-dos para o futuro, é ali que se observa comoo tempo para Cunningham não pode sercompreendido como estrutura linear. Se éno neologismo tempo-espaço que ele cons-trói sua dança, o que se apresenta na primeiraobra está potencializado na segunda.

Assistir a Merce Cunningham DanceCompany hoje, no Brasil, é ainda, infeliz-mente, um privilégio para poucos. Funci-onando quase como uma cartilha básicapara todos aqueles que um dia aventarama possibilidade de coreografar, assisti-ladeveria ser tarefa obrigatória. E, para opúblico em geral, é a oportunidade de con-firmar que dança não é uma sucessão depassos, mas ideia. Para o genial coreógra-fo, artesão de técnica e tecnologia, essaideia é o tempoespaço. Simultaneidadesem dança. Simultaneidades da vida.

A

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 12 DE JULHO • RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 12 DE JULHO • RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 12 DE JULHO • RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 12 DE JULHO • RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 12 DE JULHO • 20042004200420042004

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

181

Lembranças pensadasno presente que

orientam projetos futurosMemórias do corpo: Renato Vieiraexplora o corpo como receptáculo

de experiência de vida

SILVIA SOTER

esmo quando a memória não é o

tema central de uma criação, é inevi-

tavelmente sobre ela que a dança se apoia.

A memória é sempre o suporte e, por que

não dizer, o ponto de partida do corpo que

dança, mesmo quando aspectos autobiográ-

ficos não são privilegiados. Vale lembrar

que o próprio processo de instalação de uma

técnica no corpo, qualquer que ela seja, se

estrutura nos mecanismos da memória. É da

possibilidade do corpo como receptáculo

das experiências da vida que trata Memóri-

as do corpo, o novo espetáculo da Renato

Vieira Companhia de Dança, em cartaz no

Teatro Carlos Gomes, até domingo.

Renato consegue escapar de uma visão

da memória como narrativa linear de

eventos e lembranças. No fundo do palco,

em planos diferentes, os bailarinos surgem

e desaparecem, como flashes. Nessa peça,

não cabe descrever, resgatar ou recons-

truir episódios marcantes, mas sim evocar

imagens sonoras, visuais e sinestésicas.

Para o coreógrafo, a memória parece se

desenhar em duas camadas: a das técnicas

e referências estéticas que constroem o

corpo de seus bailarinos e a das lembran-

ças de momentos marcantes que são tra-

zidos para o palco. A primeira se explicita,

por exemplo, pela citação dos movimen-

tos do balé do tango, instalados no corpo

daqueles que dançam. A segunda, pela

recorrência de algumas imagens e per-

sonagens. É exatamente na articulação

entre esses dois níveis, o do vocabulário

técnico e o das imagens evocadas, que

Memória do corpo encontra sua maior

dificuldade.

Seria esperado que a investigação sobre

algo tão íntimo e pessoal, como a memória

do corpo, afetasse de fato o corpo em sua

materialidade, deixando, por exemplo, emer-

gir a tonicidade particular de cada bailari-

no, a cada imagem. No entanto, o tratamen-

to dado à dança, na opção por um vocabulá-

rio coreográfico codificado em excesso, aca-

ba por criar homogeneidade onde a diferen-

ça seria bem-vinda. A trilha musical com-

posta, em cena, pelo DJ Nino Carlo ajuda a

reforçar essa unidade, pela base eletrônica

que atravessa o espetáculo de ponta a pon-

ta. Essa regularidade se acentua igualmen-

M

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • • • • • SEXTA-FEIRASEXTA-FEIRASEXTA-FEIRASEXTA-FEIRASEXTA-FEIRA• 16 DE JULHO • 2004• 16 DE JULHO • 2004• 16 DE JULHO • 2004• 16 DE JULHO • 2004• 16 DE JULHO • 2004

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

182

te na ausência de silêncio na movimenta-

ção e na música, dificultando o trânsito en-

tre as imagens construídas em cena e as

memórias que aquelas imagens poderiam

despertar no espectador. Ainda assim, em

alguns instantes, uma gestual menor conse-

gue se insinuar num desenho de cena que,

escapando da narrativa, aponta para novas

possibilidades de construção dramatúrgica.

Não parece por acaso que esse expe-

riente coreógrafo tenha escolhido tratar da

memória do corpo nesse momento de sua

carreira. Pensada a partir do presente, a

memória pode orientar os projetos futuros.

Nesse espetáculo fica visível que Renato, ao

se voltar para trás, começa a tocar em pro-

missores caminhos a serem trilhados com

sua competente companhia.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

183

Lição de Antonio GadesO bailarino que contou histórias da Espanha no palco

ROBERTO PEREIRA

dança perdeu, na terça-feira, um de

seus mitos: Antonio Gades, bailarino

espanhol que ofereceu ao mundo um novo

modo de observar como a cultura se inscre-

ve no corpo e como isso é transformado em

cena, através da ação do bailarino.

Nascido numa província de Alicante, em

Elda, em 1936, decidiu que a dança seria seu

ofício de vida quando assistiu a uma apresen-

tação de um dos grandes nomes do flamen-

co: Pilar Lopes. Buscou rapidamente apren-

der aquilo que o encantou e, em 1960, já via-

java com a companhia da mestra ao Japão

como primeiro bailarino. Foi ela, inclusive,

que o batizou artisticamente com o nome

pelo qual ficou conhecido mundialmente: ao

se tornar Antonio Gades, Antonio Esteve

Ródenas ainda não intuía que também tor-

naria a dança de seu país uma outra dança.

Fundou, em 1964, sua própria compa-

nhia, foi primeiro bailarino e maître de balé

do Scala de Milão e, mais tarde, chegou a

ser diretor do Ballet Nacional da Espanha.

Em sua dança, balé e flamenco se mistura-

vam para se tornarem apenas matéria-pri-

ma de sua invenção. De sua criação.

Gades ficou ainda mais conhecido, sem

dúvida, pelas memoráveis participações na

trilogia de filmes concebida pelo cineasta

Carlos Saura: Bodas de sangue (1981), Car-

men (1983) e El amor brujo (1986). Na cena

tecida a quatro mãos pelo cineasta e pelo

coreógrafo, oferecia-se um duplo desafio: fa-

zer da dança flamenca um texto dramatúrgi-

co capaz de funcionar como um roteiro e, ao

mesmo tempo, executar essa própria dança

como algo inteiramente novo, sem as arma-

dilhas do exótico que transformam danças

populares em entretenimento para turistas.

Gades conseguiu essa façanha. Sua visão

de dança era a de um corpo político que ti-

nha consciência de sua tarefa no mundo. E

provou que, com sabedoria e responsabilida-

de, a dança de seu país poderia ser uma dan-

ça que narra histórias, que propõe ideias e,

também por isso, encanta por sua beleza.

Esta é uma lição fundamental para nós,

quando ainda perguntamos sobre uma possí-

vel “dança brasileira”. Esta é uma lição para

o mundo que, globalizado, ainda deve olhar

para o quintal de seus corpos, e aprender como

ali se planta, no mesmo jardim, ética e estética.

A

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SÁBADO • 24 DE JULHO • 2004RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 24 DE JULHO • 2004RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 24 DE JULHO • 2004RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 24 DE JULHO • 2004RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 24 DE JULHO • 2004

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

184

Paixão pelo movimentoNovo espetáculo dePaulo Caldas revela

resultados de sua obsessivabusca de precisão

ROBERTO PEREIRA

ma página em branco recebe as inscri-

ções de um habilidoso calígrafo: essa é

a imagem que salta aos olhos do público

ao assistir ao novo espetáculo assinado

pelo coreógrafo Paulo Caldas, para sua

companhia Staccato Dança Contemporâ-

nea, que estreou na sexta-feira no Teatro

Carlos Gomes e que continua em tempo-

rada neste fim de semana. Em Coreogra-

fismos, é a habilidade da grafia que se

transforma em dramaturgia do movimen-

to. Uma grafia elaborada por aquele que

se dedica às suas especificidades, por aque-

le que escreve e reescreve até chegar ao

termo exato, em processo quase obsessi-

vo de precisão.

Coreografismos representa um momen-

to especial na obra de Caldas. A qui, o traba-

lho que começou a ser desenvolvido com

sua mais antiga parceira, a bailarina Maria

Alice Poppe, apresentado na edição passa-

da do Panorama RioArte de Dança, e que

já apontava novos caminhos na pesquisa

coreográfica desse artista, se consolida. O

que permanece como sua assinatura dialo-

ga com perfeição e impecabilidade ímpar

com o que se transforma. Paulo Caldas pro-

move o novo. Ele cria.

O antigo duo agora se espraia na cena

em cinco bailarinos. Tem-se a oportunidade

de observar como a qualidade de movimen-

to promovida pelo coreógrafo se instaura

em outros corpos, que deixam transparecer

generosamente a ideia do criador. Nesse

trânsito entre coreógrafo e bailarino, torna-

se um privilégio perseguir com os olhos a

movimentação precisa de Natasha Mesqui-

ta, por exemplo.

O espaço delimitado pelo quadrado bran-

co de quatro metros e reafirmado pela eco-

nômica e precisa iluminação de José Geral-

do Furtado é apenas desafio para a criação.

Tal espaço é redimensionado por dois ele-

mentos fundamentais na obra de Paulo Cal-

das: primeiro, pelo próprio movimento, teci-

do a partir de um vocabulário conciso e tam-

bém delimitado, ao mesmo tempo em que vai

inaugurando ao longo da obra, em simulta-

neidades, uma espacialidade entre- corpos; e,

segundo, no atrito que se estabelece com o

tempo, propositadamente dilatado para dar

chance de se captar a complexidade que ali

U

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRARIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRARIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRARIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRARIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 10 DE • 10 DE • 10 DE • 10 DE • 10 DE AGOSTOAGOSTOAGOSTOAGOSTOAGOSTO • 2004 • 2004 • 2004 • 2004 • 2004

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

185

se desvela. Um tempo colorido pela música

executada ao vivo por Chris Lancaster, que

respeita o silêncio, e que se move junto e não

justaposta aos bailarinos.

Em Coreografismos, pode-se observar

menos uma ação dramática, a que per-

meava as obras anteriores de Caldas e mais

a excelência do que é específico da dança:

seu espaço, seu tempo, sua qualidade de

movimento e, sobretudo, sua ideia traduzi-

da na cena. Idéia aqui funcionando como

puro ato da grafia, como processo. Página

em branco tingida pela vontade do apuro

técnico. Não a destreza, mas a paixão por

encontrar a palavra exata. Ou, nesse caso,

o movimento exato.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

186

Competência que rendeespetáculo de beleza hipnotizante

Coreografismos: Staccato Companhia de Dançasegue sua investigação com coragem, sem abandonar

sua trajetória, mas sem deixar acomodar

SILVIA SOTER

ma das características mais raras na

dança contemporânea é encontrar

criadores que possuam uma certa esta-

bilidade nas questões que os movem e na

forma de abordá-las. Esse é o caso de Paulo

Caldas. O trabalho do coreógrafo, à frente da

Staccato Dança Contemporânea, vem se

construindo sobre ideias perseguidas com

afinco e até obsessão, de obra em obra. No

corpo, a escrita de Paulo se apoia na constru-

ção de linhas circulares e espirais, em fluxo

contínuo, fazendo com que o movimento

jamais se congele ou se interrompa abrupta-

mente. A iluminação, central nas peças da

Staccato, funciona como um diafragma que

deixa que essa dança contínua chegue aos

olhos do espectador com maior ou menor

nitidez, recortando a cena, num jogo de trans-

parência e sombra, fazendo o espaço pulsar.

Na escrita, em que todos esses elementos se

articulam, Paulo desenvolve suas ideias de

cabo a rabo, com o rigor de um cientista, sem

fazer concessões. Essa competência se mate-

rializa na beleza hipnotizante de Coreogra-

fismos, em cartaz até domingo no Teatro

Carlos Gomes.

Assim como aconteceu em Fragmento

para coreografismos 1 e 2, suas peças ante-

riores, um campo dentro do palco é criado

por um quadrado branco. O espaço demar-

cado se contrapõe a uma dança sem arestas

ou ângulos. O movimento que se inicia len-

to e sinuoso no corpo de Natasha Mesquita

deixa de pertencer ao corpo da bailarina e

ganha o espaço, contaminando os outros cor-

pos que se deixam atravessar por espirais,

em intensidades e velocidades diferentes.

Entre o corpo que dança e o espaço, um jogo

de alternância se faz, provocando aproxima-

ções e simultaneidades que dispensam,

muitas vezes, o contato entre os corpos. A

música, composta e executada em cena por

Chris Lancaster reforça a circularidade e a

sensação de perpetuação do movimento.

Desde o início de sua criação, a Staccato

teve com núcleo estável o coreógrafo e sua

bela partner Maria Alice Poppe. Os duos fo-

ram a tônica de grande parte dos trabalhos

da companhia. O entrosamento entre os dois

intérpretes é tamanho que parecia difícil

imaginar que a dança da Staccato pudesse ser

experimentada em outros corpos. Dessa vez,

U

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA• 13 DE RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA• 13 DE RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA• 13 DE RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA• 13 DE RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA• 13 DE AGOSAGOSAGOSAGOSAGOSTO • 2004TO • 2004TO • 2004TO • 2004TO • 2004

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

187

o coreógrafo se lançou ao desafio de trabalhar

com um grupo maior. Além de Paulo e Maria

Alice, estão em cena Carolina Wiehoff,

Natasha Mesquita e Toni Rodrigues. Esses

experientes bailarinos e novos integrantes da

companhia colaboram de maneira diversa

para a corporeidade da Staccato. Natasha se

integra à fluidez dos gestos de Maria Alice e

Paulo, enquanto Carolina e Toni agregam ao

trabalho qualidades menos fluídas e mais

densas. No corpo de cada um, a dança da Stac-

cato só tem a ganhar.

Se algumas criações anteriores do coreó-

grafo dialogaram com o cinema, Coreogra-

fismos ganha qualidades plásticas próximas

das artes visuais. O grafismo do título mere-

ce ser destacado. Paulo Caldas investe tão

radicalmente no jogo entre as linhas do qua-

drado e a circularidade dos corpos, brincan-

do com as inúmeras combinações entre os

cinco bailarinos, que a escrita da dança se

faz desenho e pintura. Como o próprio coreó-

grafo lembra no programa, a cena toca de

perto o expressionismo abstrato.

Coreografismos mostra que a Staccato se-

gue sua investigação com coragem, sem aban-

donar sua trajetória, mas também sem se dei-

xar acomodar. Ponto para a dança carioca.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

188

Com prazer e seduçãoLecuona: Rodrigo Pederneiras criou coreografia deexceção na trajetória do Grupo Corpo, provocando

envolvimento dos bailarinos e do público

SILVIA SOTER

ecuona, a mais recente criação de Ro-

drigo Pederneiras e do Grupo Corpo,

em cartaz até segunda-feira no Theatro

Municipal, é uma peça de exceção. Ela

representa um desvio, salutar e descom-

prometido, na história do Grupo Corpo.

Apaixonado pela música do cubano Er-

nesto Lecuona, Pederneiras convenceu

a companhia a trabalhar a partir de uma

trilha musical não inédita e de um músi-

co estrangeiro, o que não acontecia há

muitos anos. Rodrigo inova também ao

flertar com uma dança menos brejeira e

mais latina. Inevitavelmente, novas

marcas se imprimem na movimentação

da companhia.

Mas nem tudo é novidade. Ainda man-

tendo a tradição, uma peça do repertório

anterior da companhia abre a noite, ser-

vindo de entrada apetitosa à coreografia

que estreia. A escolha dessa peça jamais

é aleatória. Nela, Pederneiras oferece pis-

tas para que a outra obra possa ser desven-

dada em todos os seus detalhes. Nazareth,

com música de José Miguel Wisnik, a par-

tir da obra de outro Ernesto, o Nazareth,

contemporâneo de Lecuona, brinca no fi-

gurino com o marfim e o ébano das teclas

do piano, transformando os bailarinos em

notas musicais que se associam, justa-

põem-se e se desencontram, recriando em

seus corpos os tangos e os chorinhos apon-

tados por Nazareth. Dois pianos que pro-

duzem, no corpo, gestos bem diversos.

Lecuona é composta de 12 duos e um

grandfinale. Cada duo funciona como um

quadro, destacado dos demais. O piano

de Ernesto Lecuona alimenta as danças

dos pares: sempre um homem e uma

mulher. Eles de preto e elas de salto alto,

com vestidos decotados, esvoaçantes e

coloridos. Entre o bolero, o tango ou a valsa,

Pederneiras desliza, sutilmente, das dan-

ças de salão para as danças de alcova.

A sensualidade dos encontros ganha qua-

lidades e cores diferentes, a cada quadro,

a cada música.

O amor e a atração entre os corpos, ma-

nifestados em duos, foram também a tônica

de Santagustin, criação anterior do Grupo

Corpo. No entanto, em Santagustin, o amor

era visto com distanciamento e humor. Era

L

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • • • • • SEXTA-FEIRASEXTA-FEIRASEXTA-FEIRASEXTA-FEIRASEXTA-FEIRA• 3 DE SETEMBRO • 2004• 3 DE SETEMBRO • 2004• 3 DE SETEMBRO • 2004• 3 DE SETEMBRO • 2004• 3 DE SETEMBRO • 2004

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

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um amor risível. Já em Lecuona, tudo é se-

dução e envolvimento. Pederneiras usa e

abusa de sua competência para ganhar a

plateia com seu amor rasgado, sensual, viril

e glamouroso. A não originalidade da trilha

musical parece ter autorizado Pederneiras

a também se apropriar de outras referên-

cias e influências, trazendo, por exemplo,

para a cena, os musicais de Hollywood e até

uma citação rasgada à peça de Twyla Tharp,

Nine Sinatra songs, no último quadro.

Os bailarinos do Corpo, que vemos aqui

destacados em suas singularidades, parecem

experimentar um momento prazeroso, car-

regando com teatralidade as canções de

Lecuona. Prazer esse que transborda para

o público que, entregue e seduzido, deixa-

se levar pela dança.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

190

Um balé de paixãoGrupo Corpo tira o fôlego da plateia com o

arrebatamento e a permissividade de Lecuona

ROBERTO PEREIRA

á cerca de 20 anos, o coreógrafo resi-dente do Grupo Corpo, Rodrigo Pe-

derneiras, apaixonou-se perdidamente pe-las passionais canções do cubano ErnestoLecuona (1895-1963) e, desde então, sem-pre sonhou em coreografá-las. O resultadodessa paixão avassaladora pode ser vistoneste fim de semana, no espetáculo de suacompanhia que estreia hoje, no TheatroMunicipal, cujo título traz simplesmente onome do compositor.

Como não poderia deixar de ser, a qua-lidade que permeia Lecuona é a da paixão.E, como toda paixão nunca pede licençapara chegar, esse espetáculo traz consigo aimpetuosidade do arrebatamento e da per-missividade, a começar pelo fato de rompercom uma tradição do Corpo que, há 12 anos,apenas se utiliza apenas de trilhas sonorasespecialmente compostas para o grupo. Éclaro que esse fato chama a atenção paraquem acompanha sua carreira, porque háque se permitir ouvir um outro som e, aindamais intrigante, ver um outro movimentoque não aquele que tem sido construídocomo vocabulário de Pederneiras.

Doze pas-de-deux em doze canções sejustapõem numa cena delimitada apenaspela luz: um quadrado no chão sugere umapista de dança. Sim, uma pista de dança naqual casais recuperam situações amorosasatravés de coreografias que se permitem

trafegar entre a própria dança de salão, alémde deixar vazar, inevitavelmente, aqui e ali,a assinatura do coreógrafo. Apenas no finaltodos os casais dançam juntos uma valsa,assim como apenas ali um cenário é utiliza-do, trazido num momento em que toda a pla-teia, já quase sem fôlego, é ainda surpreen-dida por espelhos e bailarinas trajando ves-tidos brancos esvoaçantes. Tudo é um suspi-ro, um rodopio, uma vertigem.

Não há como não se lembrar da hoje jáclássica obra de Twyla Tharp, Nine Sinatra

songs, de 1982. Utilizando-se de oito cançõesde Frank Sinatra, a coreógrafa americanatambém justapõe casais que representam si-tuações amorosas muito parecidas (inclusi-ve com figurinos semelhantes). Ao final, tam-bém todos os casais entram em cena juntosao som de My way e globos de espelhos des-cem do teto. Se não há como não se lembrar,não há também como não dar de ombros edizer consigo, baixinho: “ah, tudo bem...”

Lecuona é permissivo. Permite quebraruma tradição da companhia, permite(re)experimentar movimentos, permitelembrar de Twyla Tharp. Um pacto é esta-belecido logo no primeiro momento, no pri-meiro pas-de-deux. À plateia nada resta,senão aceitar esse pacto. E, sucumbida,entender que é na qualidade da paixão, e de sua permissividade, que se deve assistir

a esse novo espetáculo.

H

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANE IRO R IO DE JANE IRO R IO DE JANE IRO R IO DE JANE IRO R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 4 DE SETEMBRO • 2004• SÁBADO • 4 DE SETEMBRO • 2004• SÁBADO • 4 DE SETEMBRO • 2004• SÁBADO • 4 DE SETEMBRO • 2004• SÁBADO • 4 DE SETEMBRO • 2004

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

191

A Tropicália, segundo sete criadoresEstreia da El Paso se desenvolve em

torno dos conceitos do balé e do show

ROBERTO PEREIRA

espetáculo de estreia da Companhia

Jovem El Paso de Dança, Superbaca-

na – Dançando a Tropicália, que estreia hoje

e fica um mês em temporada no Teatro Vi-

lla-Lobos, traz à tona uma antiga questão es-

tética que continua ainda bastante pertinen-

te: como a dança consegue pode tratar de

um tema específico.

Essa companhia, que reúne 22 jovens e

excelentes bailarinos, já vinha desenvolven-

do trabalhos há um certo tempo e agora

passa a trazer em seu nome a marca do seu

patrocinador. Assinando esse padrão de

qualidade, estão os nomes de Dalal A chcar

e Mariza Estrella, tradições de ensino e de

um pensamento de dança no Rio de Janeiro.

O que de imediato salta aos olhos no es-

petáculo dessa então “nova companhia” é o

modo pelo qual se convida o espectador a

assisti-lo: balé e show tornam-se duas pala-

vras-chave para seu entendimento. A o mes-

mo tempo, o tema eleito, o movimento cultu-

ral conhecido como a Tropicália, absoluta-

mente desafiador, parece indagar o tempo

todo sobre a adequação dessas duas palavras-

chave no diálogo com sua questão estética.

Reunindo sete diferentes coreógrafos,

a própria Dalal A chcar, Renato Vieira,

Tíndaro Silvano, Luís Arrieta, Ivonice

Satie, Janice Botelho e Carlinhos de Jesus,

esse espetáculo é claramente construído

sob a alcunha do passo de dança, herança

direta do balé clássico. Excetuando Carli-

nhos de Jesus, que contribui com seus co-

nhecimentos de dança de salão, todos os

outros coreógrafos compartilham dessa

ideia coreográfica de passo, o que os tor-

nam não tão diferentes assim entre si e o

que confere ao espetáculo uma homoge-

neidade mínima. Justapõem-se as canções,

alternam-se os coreógrafos. Dalal, que

assina também sua direção, bastante sábia,

soube escolher aqueles que falam uma

mesma língua de dança. E os bailarinos

parecem ter aprendido essa língua de for-

ma competente, sem qualquer sotaque.

A questão do show aparece com a eti-

queta da dupla Charles Moeller e Cláudio

Botelho, que vem se destacando no cenário

carioca por suas produções mais voltadas

para o formato do musical. Em Superbaca-

na – Dançando a Tropicália, essa qualidade

de show não fica de fora. Por exemplo, há o

excesso de frontalidade e um anseio sobre-

humano em conceder a toda estrutura um

caráter narrativo. Esses dois elementos apa-

recem de forma tão evidente, que às vezes

impedem que estruturas coreográficas inter-

nas possam ser melhor desenvolvidas. O

cenário, que pouco dialoga com o tema, che-

gando a poluir visualmente a cena, e o figu-

rino, que muitas vezes sublinha os textos das

O

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA• 17 DE SETEMBRO • 2004RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA• 17 DE SETEMBRO • 2004RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA• 17 DE SETEMBRO • 2004RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA• 17 DE SETEMBRO • 2004RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA• 17 DE SETEMBRO • 2004

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

192

canções, funcionando quase como legendas,

ambos assinados por Moeller, são resquíci-

os desse modo narrativo, próprio do musi-

cal, de conceber um espetáculo.

Como balé e show se juntam para falar

de Tropicália, momento muito especial não

apenas da música, mas da cultura brasilei-

ra, fica como questão. Momentos de virtuo-

sismo técnico irrompem sem qualquer com-

promisso com a ideia que ali se pretende

desenvolver, por exemplo. Altamente dis-

pensáveis, uma vez que a qualidade dos

bailarinos é evidente, esses momentos tiram

do foco o que se deveria ter tomado como

tarefa, ou seja, como tratar do tema escolhi-

do: fala-se a partir da Tropicália ou sobre a

Tropicália? Nesse sentido, as canções Baby

e Divino maravilhoso, coreografadas por

Ivonice Satie e Renato Vieira, respectiva-

mente, parecem apontar para essa questão

central, construindo no corpo que dança qua-

se uma ideia tropicalista. Sem dúvida, dois

momentos especiais em todo o espetáculo.

Colocar 22 jovens bailarinos em cena,

numa estrutura de peso e qualidade inegá-

vel é tarefa que só poderia ser plenamente

cumprida através da competência de Dalal

Achcar, espécie de versão brasileira de

Diaghilev, mitológico empresário e ideali-

zador dos Ballets Russos. A experiência que

esses jovens adquirem a cada contato com

um diferente criador e com o esmero da

qualidade técnica imprime neles algo que,

por si só, já merece todo nosso apreço: o res-

peito pelo ofício da dança. É nesse lugar que

a Companhia Jovem El Paso de Dança tra-

balha. E é desse respeito que a dança no

Brasil parece ainda necessitar.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

193

Mais liberdadepara o som dos pés

Sensorial: Um diálogo entreo sapateado e a dança contemporânea

SILVIA SOTER

sapateador e coreógrafo Steven Har-per avança em suas investigações so-

bre as possibilidades de flexibilizar a estru-tura do sapateado. Sensorial, em cartaz noTeatro Carlos Gomes até este domingo, re-pete a parceria da companhia com o coreó-grafo Mário Nascimento, na busca de fazerdialogar o sapateado com a dança contem-porânea. Sincopizante, sua última criação, jácaminhava nesse sentido.

A música produzida pelo corpo quedança, base fundamental do sapateado dequalquer tempo e em diferentes culturas,ganha, em Sensorial, o apoio de outros ins-trumentos de percussão tocados pelos pró-prios dançarinos. Os cinco integrantes dacompanhia se alternam entre os instrumen-tos, o som dos pés e, algumas vezes, jogamcom os dois. Diversos suportes são explo-rados, fazendo com que o metal dos sapa-tos produza sonoridades diferentes.

Na primeira parte do espetáculo, Harper,fiel à ideia, segue à risca sua proposta, dei-xando a música nascer em cena entre o rit-mo dos sapatos, os ruídos e a percussão,garantindo bons momentos em que a afini-dade do grupo atinge um groove. A ilumina-ção, os figurinos e o despojamento da cenacarregam a atenção e os sentidos do espec-tador para aquilo que parece essencial nes-

se trabalho: o diálogo rítmico entre o tap e osinstrumentos de percussão. Uma ressalva, noentanto: em geral, a mixagem privilegia osinstrumentos musicais em detrimento do somproduzido pelos ótimos dançarinos que ain-da não dominam os instrumentos com a se-gurança com que sapateiam!

Num segundo momento do espetáculo, sur-preendentemente, Harper abandona o rigor desua investigação inicial e dispersa o foco dapeça ao fazer com que o sapateado tenha quecompetir com uma profusão de efeitos sonorose visuais que, apesar de sedutores, saturam acena. Nessa disputa, quem perde é a dança.

Na tentativa de dialogar com a dança con-temporânea, além de adotar a investigaçãopara trafegar pelo sapateado, Harper buscaassimilar um vocabulário de passos identifi-cados como dança contemporânea. Nem sem-pre a tentativa de integrar esse vocabulárioagrega, de fato, novas possibilidades ao traba-lho. Na maior parte das vezes, parece atrapa-lhar, servindo como um apêndice e restringin-do a exuberância do próprio sapateado.

Sensorial demonstra que Harper e suacompetente companhia já dominam os ca-minhos da investigação para ir fundo naspossibilidades intrínsecas do sapateado.Confiando em seus próprios passos, em seuspróprios pés. Literalmente.

O

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • • • • • SEXTA-FEIRA•SEXTA-FEIRA•SEXTA-FEIRA•SEXTA-FEIRA•SEXTA-FEIRA• 24 DE SETEMBRO • 2004 24 DE SETEMBRO • 2004 24 DE SETEMBRO • 2004 24 DE SETEMBRO • 2004 24 DE SETEMBRO • 2004

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

194

O Brasil em LyonSe a Bienal de Dança na cidade

francesa impulsionou a arte no Rio, sua 11ª ediçãomostra que a mão inversa também se deu

ROBERTO PEREIRA

á exatamente oito anos, a Bienal de

Dança de Lyon deixou de ser, para a

dança brasileira e, sobretudo, para a dan-

ça carioca, apenas um evento internacio-

nal que reúne os mais significativos gru-

pos e tendências na pequena cidade fran-

cesa, durante três semanas. Em 1996, sem-

pre temática, a bienal se dedicou exclusi-

vamente à dança brasileira. Para a dança

contemporânea do Rio de Janeiro em par-

ticular, isso representou um divisor de

águas num movimento que se iniciava e

que logo se tornou histórico na cidade, es-

pecialmente a partir da segunda metade

dos anos 90. Explicitamente inspirada no

festival criado e dirigido por Lia Rodri-

gues, o Panorama RioArte de Dança, uma

noite da bienal foi batizada de “Panora-

ma Carioca”, revelando a importância vi-

tal desse evento como um fomentador do

que se produz por aqui e que passou a ser-

vir de vitrine para programadores inter-

nacionais. Responsável pelo conceito que

permeava a bienal, estava um apaixona-

do pelo Brasil e por sua cultura, o curador

francês Guy Darmet.

Se a Bienal conseguiu imprimir na dan-

ça carioca um impulso fundamental em seu

desenvolvimento, a mão inversa deste per-

curso também se deu. Encantado com os

desfiles das escolas de samba durante o car-

naval, Darmet resolveu experimentar, num

formato adequado à realidade europeia, um

desfile que percorresse as margens do rio

Rhône, em Lyon, durante a tarde de um do-

mingo cravado no meio de sua bienal. O

primeiro desfile se deu, como era de se es-

perar, durante a edição dedicada à dança

brasileira, sob o título Aquarela do Brasil.

Desde então, novos desfiles vêm acontecen-

do, sempre inspirados nos temas que balizam

cada edição do evento: Mediterrâneo – um

círculo aberto sobre o mundo, de 1998, As

rotas da seda – Rotas do sonho, rotas de di-

álogo, de 2000 e Terra latina – Do Rio

Grande à terra do fogo, sobre os caminhos

da liberdade, de 2002.

Neste ano de 2004, em sua 11ª edição,

que se encerra amanhã, o tema da Bienal é

a Europa. O olhar do europeu Guy Darmet

se volta para seu ambiente, para sua origem.

Ou, como ele próprio explica, essa Bienal é

H

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANE I RO • SÁBADO• 2 DE OUTUBRO • 2004R IO DE JANE I RO • SÁBADO• 2 DE OUTUBRO • 2004R IO DE JANE I RO • SÁBADO• 2 DE OUTUBRO • 2004R IO DE JANE I RO • SÁBADO• 2 DE OUTUBRO • 2004R IO DE JANE I RO • SÁBADO• 2 DE OUTUBRO • 2004

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

195

“uma declaração de fé nos homens e sobre-

tudo nos artistas” que pertencem a um con-

tinente que ele chama de “puzzle de lingua-

gens e de culturas”.

Os números que fazem desse evento um

dos mais importantes festivais de dança do

mundo remetem mesmo à ideia de puzzle:

700 artistas envolvidos, 40 companhias con-

vidadas, 21 países europeus participantes, 13

criações para o ano de 2004, e 7 coprodu-

ções da própria Bienal.

Dentro deste rico universo de tantos

países e culturas, a curadoria de Guy Dar-

met vem marcada pela generosidade do

olhar sobre a diversidade de estilos de dan-

ças. Assim, dança de rua (que, sintomatica-

mente, abriu o festival) e danças populares,

por exemplo, dividem a cena em pé de igual-

dade com grandes companhias europeias,

como o próprio Ballet da Ópera Nacional

de Lyon, o Nederlands Dance Theatre e o

Ballet du Grand Théâtre de Genève, e com

artistas mais experimentais, como a portu-

guesa Sónia Baptista, o belga Jan Fabre, ou

ainda umas das melhores surpresas do fes-

tival, o grego Andonis Foniadakis e sua com-

panhia francesa Apotosoma.

Toda essa diversidade apenas traça um

mapa possível do que se produz de dança na

Europa hoje, sem deixar de arranhar um

pouco as expectativas de quem busca na

Bienal apenas dança contemporânea. Guy

D armet se arrisca nos atritos de linguagens.

E o público, que lota todos os 24 teatros en-

volvidos, em todos os espetáculos, percebe

que neste caldeirão o que se cozinha é um

tempero europeu de um corpo que dança:

um corpo que traz consigo sua cultura, ao

mesmo tempo que dialoga com a de seu vi-

zinho. A cada apresentação, uma pitada faz

modificar o gosto do conjunto. E essa deve

ser uma das tarefas de um festival: fazer

saborear a singularidade a partir do plural

que o envolve.

Nesse sentido, o desfile, que aconteceu

no dia 19 de setembro, levando o título A

Europa das grandes narrativas, faz um retra-

to desse continente. Reunindo 4.500 parti-

cipantes em 22 grupos de regiões circunvi-

zinhas a Lyon, além de 2 grupos convidados

da Romênia, o Défilé narra grandes históri-

as em coreografias para grandes massas: o

mito do Fausto, Romeu e Julieta, o Danúbio,

Cassandra e o cavalo de Tróia são alguns

dos temas abordados.

Para nós brasileiros, esse desfile se tor-

na, sem dúvida, algo bastante curioso, já que

saiu daqui a ideia de sua concepção. Entre-

tanto, o olhar brasileiro, ao observá-lo, deve

levar consigo a informação de que ali se

inicia uma possibilidade de dança que ain-

da carece de tempo para se transformar

numa tradição, ao contrário do que aconte-

ce por aqui.

Subvencionados pelas prefeituras locais,

os integrantes de cada “bloco” não pagam

nada por seus figurinos e a Bienal fica res-

ponsável pelos cachês dos coreógrafos e dos

artistas plásticos envolvidos. Num processo

de ensaio que pode durar de 6 meses a 1 ano,

esses cidadãos dançantes são pessoas co-

muns, de idades e classes sociais as mais di-

versas. Embutida nessa ideia, a carnavali-

zação da cultura e da sociedade é evidente.

Mas uma carnavalização europeia, que tal-

vez possa aprender (conosco?) como preen-

cher uma rua inteira de espetáculo, de en-

redo, de coesão e de ritmo, para dar conta

de uma narrativa. Não à toa, o segundo gru-

po a desfilar neste ano, e que mereceu aplau-

sos mais entusiasmados pela sua performan-

ce, foi o coreografado por um brasileiro, o

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

196

bailarino mineiro Rui Moreira, que perten-

ceu ao Grupo Corpo. O Brasil está em Lyon,

mesmo quando a Bienal é sobre a Europa.

E, no ano que vem, ano do Brasil na Fran-

ça, essa pequena cidade ainda será palco de

mais dança brasileira. Graças ao mesmo

Guy Darmet, que dirige um belo teatro es-

pecialmente dedicado à dança, o Maison de

la Danse, várias companhias daqui se apre-

sentarão por lá, uma a cada mês do ano. Bru-

no Beltrão, Quasar e Grupo Corpo serão

algumas delas. Lia Rodrigues estará na ci-

dade por duas vezes: uma em março, no

Centro Cultural Le Toboggan, convidada

para desenvolver um trabalho a partir das

fábulas de La Fontaine, ao lado de mais dois

coreógrafos, uma francesa e um africano, e

outra para o fim do ano, para apresentar seu

mais novo trabalho, com coprodução de vá-

rias instituições como o Centre National de

la Danse, o Festival d’Autonne de Paris, La

Ferme de Buisson e o próprio Maison de La

Danse.

Inclusive, na frente deste teatro pode-se

ver um enorme cartaz exibindo os próximos

espetáculos a serem ali exibidos. Nomes

como Merce Cunningham, Carolyn Carlson,

Maguy Marin, Maurice Béjart e Sankai

Juku aparecem na lista. Entre eles, figura

também o da carioca Márcia Milhazes. Para

um brasileiro que se sente um flaneur em

plena Lyon, neste momento, fica praticamen-

te impossível não sentir o coração se encher

de orgulho. O Brasil dança em Lyon.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

197

Shakespeare condensadoBallet do Scala de Milão faz bela homenagem

ao centenário do coreógrafo Balanchine

ROBERTO PEREIRA

ma das mais tradicionais e importan-

tes companhias de balé do mundo, o

Ballet do Teatro Scala de Milão, concedeu

ao público carioca a oportunidade de conhe-

cer uma obra bastante curiosa do grande co-

reógrafo russo George Balanchine (1904-

1983): Sonho de uma noite de verão, basea-

da na peça de Shakespeare. Em temporada

no Brasil, a companhia italiana se apresen-

ta até hoje no Theatro Municipal, trazendo

mais de 70 bailarinos e provando sua exce-

lência no cenário internacional do balé.

A curiosidade em torno dessa obra de

Balanchine fica por conta da dificuldade

em se reconhecer a famosa assinatura

desse coreógrafo, sobretudo no primeiro

ato. Estreado em 1962, e criado para sua

companhia, o New York City Ballet, Sonho

de uma noite de verão mostra um Balan-

chine pouco habilidoso com a narrativa,

um dos princípios mais básicos de um balé.

Talvez seja por esse motivo que ele tenha

optado por contar toda a história shakes-

peariana de forma condensada no primei-

ro ato, para poder deixar seu estilo correr

solto no segundo.

Assim, se o público de início é convi-

dado a perseguir os intrincados jogos amo-

rosos de diversos personagens nesse pri-

meiro ato, pode se deleitar no estilo balan-

chiniano que o consagrou como um cria-

dores de uma “dança abstrata”, no segun-

do. Esse estilo pode ser observado sobre-

tudo no pas-de-deux de Titânia, primoro-

so em seus encadeamentos coreográficos

e belamente executado por Marta Romag-

na, sem dúvida a bailarina de toda a com-

panhia que mais se adequa às exigências

estilísticas do coreógrafo.

Toda a companhia parece correspon-

der com competência ao desafio que é

montar uma peça de Balanchine, criada

basicamente para sua própria companhia

em Nova York, formada, estética e tecni-

camente, de acordo com seu estilo. Venci-

do o desafio, o Ballet do Scala de Milão

deixa a lição de que remontagem é sem-

pre promover um novo olhar sobre uma

obra histórica, rara oportunidade ao públi-

co carioca, que não teve chances de come-

morar ainda o centenário de nascimento

de Balanchine.

U

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANE IRO •R IO DE JANE IRO •R IO DE JANE IRO •R IO DE JANE IRO •R IO DE JANE IRO • DOMINGO• 3 DE OUTUBRO • 2004 DOMINGO• 3 DE OUTUBRO • 2004 DOMINGO• 3 DE OUTUBRO • 2004 DOMINGO• 3 DE OUTUBRO • 2004 DOMINGO• 3 DE OUTUBRO • 2004

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

198

Vale ainda mencionar a perfeita parti-

cipação das 24 crianças da Escola do Tea-

tro Bolshoi, da pequena cidade de Joinville,

Santa Catarina. Motivo de orgulho para nós

brasileiros, essas crianças desempenharam

com apuro técnico e sobretudo musical o

que lhes foi proposto.

No ano que Balanchine completaria seu

centenário, assistir ao Ballet do Scala de

Milão dá-nos a sensação de que a tempora-

da de balé finalmente se iniciou nos palcos

cariocas, mesmo que um tanto atrasada.

Belo início e uma justa homenagem que nós

ainda não fomos capazes de prestar.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

199

É tropicalismo, mas semirreverência ou transgressão

Superbacana:Nova companhia de dança no Villa-Lobos

SILVIA SOTER

om produção caprichada, jovens e ta-

lentosos bailarinos, financiamento de

companhia de primeira linha e o know-how

de nomes como Dalal Achcar e Mariza Es-

trella como diretoras, está completando

temporada de um mês no Teatro Villa-Lo-

bos, Superbacana com a Cia. Jovem El Paso

de Dança. As duas diretoras, conhecidas pelo

olho de lince para identificar talentos em

dança e neles investir, conseguiram dar ares

cada vez mais profissionais ao projeto de

uma companhia composta apenas por jo-

vens promissores. Não há dúvida de que

criar oportunidades para a formação de jo-

vens já justifica o título do espetáculo. Mas

todos esses elementos combinados não fo-

ram suficientes para fazer dessa estreia o

acontecimento esperado.

Superbacana carrega ainda a assinatu-

ra da dupla onipresente nos palcos cariocas,

Cláudio Botelho e Charles Moeller, na di-

reção cênica e nos cenários e figurinos, res-

pectivamente. As 20 músicas que compõem

o espetáculo foram coreografadas por sete

diferentes artistas: a própria Dalal, Luis

Arrieta, Ivonice Satie, Janice Botelho,

Renato Vieira, Tíndaro Silvano e Carlinhos

de Jesus. Esse time de criadores já aponta

para a aposta da companhia no eclético.

Nessa linha, o tropicalismo, tema escolhi-

do para esse espetáculo de estreia, atende

ao desejo das diretoras de misturar lingua-

gens e aliar o popular e o erudito. No caso

da companhia, permite articular o balé, que

surge não só pela técnica, mas também pelo

jeito em que muitos desses coreógrafos tra-

balham com as ferramentas da dança, e a

música popular brasileira. É curioso, no en-

tanto, que do tropicalismo estão em cena

somente essa possibilidade de mistura e ain-

da um certo tom de brincadeira. Irreverên-

cia e uma certa liberdade transgressora fi-

cam de fora de Superbacana.

Fica evidente que duas estratégias se

combinam no modo como a música e a co-

reografia dialogam no espetáculo, a primei-

ra abafando a outra. Como linha mestra, a

direção-geral de Dalal Achcar parece ori-

entar para uma abordagem quase narrati-

va, em que a coreografia se limita a descre-

ver as letras das músicas. Os figurinos de

Charles Moeller desferem o golpe mortal na

C

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • • • • • SEXTA-FEIRA• 8 DE OUTUBRO • 2004SEXTA-FEIRA• 8 DE OUTUBRO • 2004SEXTA-FEIRA• 8 DE OUTUBRO • 2004SEXTA-FEIRA• 8 DE OUTUBRO • 2004SEXTA-FEIRA• 8 DE OUTUBRO • 2004

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

200

coreografia, levando essa literalidade a

momentos de redundância absoluta como

no caso das músicas Três caravelas, na voz

de Caetano Veloso e Gilberto Gil e Super-

bacana, de Caetano.

A poesia das letras, ponto forte e ino-

vador do movimento tropicalista, perde,

assim, todo seu impacto. Felizmente, es-

capando em outra direção, os coreógra-

fos Renato Vieira em Divino maravilho-

so, Tíndaro Silvano em Parque industrial

e Ivonice Satie em Baby conseguem fa-

zer com que a dança proponha sua pró-

pria poesia.

Talvez o maior desafio dessa compa-

nhia seja encontrar uma dança feita por jo-

vens e para jovens, que não caia numa abor-

dagem superficial e infantil. Como a Cia.

Jovem El Paso de Dança está apenas nas-

cendo, espera-se que a juventude no nome

possa contaminar a ideia de dança que está

por trás de suas criações. Se ainda não foi

dessa vez, com esse time de primeira será,

com certeza, da próxima.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

201

Desafio ainda épolitizar o corpo que dança

Boas ideias e pouco aprofundamento marcam a 13ª ediçãodo festival Panorama com seu excesso de performances

ROBERTO PEREIRA

13ª edição do festival Panorama Rio-

Arte de Dança, que se encerrou no do-

mingo, após nove dias em cartaz em vários

pontos da cidade, pode ser vista quase como

um tratado político sobre a proxêmica, a

área da antropologia que estuda o uso hu-

mano do espaço para fins de comunicação.

Como a relação desse espaço com o homem

é marcada pela cultura, dança e política po-

dem, a uma só vez, ser vistas como interfa-

ces dessa relação. E é aí, neste lugar, que

trafega a curadoria deste ano do festival.

O corpo político que dança tem como

desafio colocar uma questão para o mundo,

sendo ao mesmo tempo mídia dessa ques-

tão. Quanto mais se modula essa condição

de mídia, em cena, esse corpo se aproxima

mais da dança ou de outras linguagens que

dela se avizinham. No caso do Panorama

RioArte de Dança, deixou-se claro que a

escolha, que ainda reina como possibilida-

de, foi antes a performance, deixando a dan-

ça como um mero lugar que a acolhe, ou,

quase, que a legitima.

Para a proxêmica, o termo distância ín-

tima designa a proximidade da presença do

outro, fazendo com que os sentidos se agu-

cem para dar conta de uma relação ao mes-

mo tempo tão física e tão invasora. Essa dis-

tância íntima, (re)inaugurada entre perfor-

mer e público, tornou-se o palco de grande

parte da programação do festival. E acabou

se sobrepondo, de forma ainda incipiente, ao

desafio de se construir no corpo uma ideia,

uma questão, e de marcar um território para

que esse público tivesse espaço para lê-la.

Na verdade, toda essa corrente, por ve-

zes tão maneirista, que lança mão da per-

formance e investe sobretudo na cena (e na

preferência pelo uso de espaços não tradi-

cionais) e nos objetos cênicos (sempre em

excesso, quase que denunciando a incapa-

cidade de traduzi-los no corpo) pode ser vis-

ta, no caso específico do Rio de Janeiro,

como um sintoma do que o próprio Panora-

ma RioArte de Dança vem disseminando

ao longo principalmente dos últimos quatro

anos. Nesse sentido, devem ser citados artis-

tas e teóricos como Jérôme Bel, Thomas

Lehmen, Xavier Le Roy e Christophe Wa-

velet, entre outros, que aqui estiveram. E

esse sintoma não deve ser visto como resul-

A

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 9 DE RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 9 DE RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 9 DE RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 9 DE RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 9 DE NOVEMBRONOVEMBRONOVEMBRONOVEMBRONOVEMBRO • 2004 • 2004 • 2004 • 2004 • 2004

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

202

tado, mas antes como processo. Assim como

se deve torcer para que esse processo, se se

for lembrar de dança, leve suas questões de

volta ao corpo, num outro momento.

Como um festival é uma lupa que reve-

la o que se produz e como essa produção traz

consigo marcas de seu ambiente, identida-

de e memória foram matéria-prima também

de grande parte do que foi apresentado. Os

olhos atentos de Nayse López e Eduardo

Bonito, que assinam agora a curadoria do

Panorama, organizaram para o público ca-

rioca o que cabia nessa lupa tão temática.

Como tudo o que é aumentado, qualidades

e fragilidades ficaram evidentes: havia

muitas ideias, mas muito pouco aprofunda-

mento. Ou seja, havia algumas boas ideias

que não pareciam ter surgido como neces-

sidade, ficando, desse modo, abafadas umas

pelas outras.

Curiosamente, as três únicas obras de

todo o festival que levaram a cabo sua ques-

tão, corajosamente, dignamente, sem fazer

concessão alguma ao que impera como vi-

gente, foram aquelas que, talvez não por

coincidência, aconteceram no palco, na ve-

lha estrutura que separa artista do público.

Samba do crioulo doido, de Luiz de Abreu,

Elemento bruto e raio X, da Membros Com-

panhia de Dança, e Les morts pudiques, de

Rachid Ouramdane têm em comum o em-

bate político no corpo que dança, desafio

nada fácil e que não se maquia de perfor-

mance para chegar ao ponto. Uma dança

que funciona quase como um bisturi afia-

do que nos revela onde está a questão, per-

seguindo-a, perscrutando-a. O novo, todos

sabemos, pode estar também no lugar do

tradicional, corrompendo-o pelas beiradas,

sutil e sabiamente.

O Panorama RioArte de Dança, em seu

13º ano, mostra, sem medo, aquilo que aju-

dou a construir. Uma construção que não

tem um fim, mas funciona como índice de

rotas, como estruturas de investigação, como

mapas de ideias. Assim como na ciência,

métodos que ajudam a revelar podem ser

mais úteis do que aquilo que foi revelado.

A cidade do Rio de Janeiro e sua dança

vêm construindo, a seu modo, esses méto-

dos e isso muito se deve ao Panorama. E

muito também se deve à sua idealizadora

e diretora artística, Lia Rodrigues, que

numa determinação quase insuportável

(como diria a coreógrafa Paula Nestorov),

persegue essa tarefa como parte de sua

existência no mundo.

Numa atitude míope, a Secretaria das

Culturas inacreditavelmente diminuiu em

50% a verba destinada a esse festival. Que

bom que outros parceiros e apoiadores con-

tinuaram a entender e a reconhecer o que o

Panorama promove. Formaram, assim, um

corpo. Um corpo político, tal como aquele

da performance e da dança. E num festival

entendido como lupa que tudo aumenta, fica

claro o que, nesse corpo, ainda padece de

alguma doença.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

203

Passos tecidos com sabedoriaEm Tempo de verão, a coreógrafa Márcia Milhazes

intensifica sua pesquisa de movimentos

ROBERTO PEREIRA

qualidade que distingue o trabalho de

um artesão do de um artista parece ser

a matéria-prima com que a coreógrafa Már-

cia Milhazes trabalha suas obras. Em Tem-

po de verão, que finalmente estreou no Rio

de Janeiro, na última sexta, no Teatro Nel-

son Rodrigues, e que fica em temporada até

o dia 28, a habilidade do tecer artesanal re-

veste-se com a sabedoria do fazer artístico.

Assim, pensamento transforma-se em algo

como rendas: rendas de passos, de músicas,

de imagens.

Dando continuidade a sua pesquisa de

movimentos, a carioca Márcia Milhazes pos-

sui a determinação e a coragem de uma in-

vestigadora quase obsessiva por encontrar o

gesto exato na singularidade de cada frase

coreográfica. Essa determinação, que nunca

se rende a modismos, deve ser vista como

aprofundamento de vocabulário e pode ser

acompanhada, sobretudo, a partir de sua obra

anterior, Joaquim Maria. Em dança, criado-

res que constróem um vocabulário de movi-

mentos é coisa rara: pressupõe-se, antes de

mais nada, o desejo de se resolver no corpo

que dança suas questões, o seu problema para

o mundo. Neste sentido, não existe mais se-

paração entre corpo e cena: o corpo é a cena

onde se passa a ação. E no caso de Márcia,

artesã paciente e artista inquieta, esse corpo

desmancha-se em minúcias, em detalhes, tal

qual mesmo uma renda.

Em Tempo de verão, essa construção

pode ser vista de forma exemplar. Há que

se afiar os olhos para apreender ali o que se

intensifica como pesquisa. Neste movimen-

to de leitura que decupa, há também o pra-

zer de perseguir as descobertas coreográfi-

cas que ali residem. Os três excelentes bai-

larinos em cena desvelam, a cada fraseio, a

qualidade que degusta o espírito sugerido a

cada valsa tocada, produzindo diferentes

climas que se encadeiam harmoniosamen-

te ao longo do espetáculo.

Ana Amélia Vianna e Al Crisppinn,

que já trabalham há mais tempo com a co-

reógrafa, dominam a facilidade do gesto

assinado por ela, ao mesmo tempo que

possuem a sabedoria em conservar o que

é próprio de cada um em suas danças. Já a

bailarina Pim Boonprakob, que mais recen-

temente se juntou ao grupo, compõe com

A

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 22 DE NOVEMBRO • 2004 • 22 DE NOVEMBRO • 2004 • 22 DE NOVEMBRO • 2004 • 22 DE NOVEMBRO • 2004 • 22 DE NOVEMBRO • 2004

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

204

eles uma relação triádica coesa, como se ela

já estivesse, potencialmente, desde sempre,

em outras obras de Márcia. Sua dança, des-

lumbrante, faz com que a cena se preencha

com singularidades gestuais que dialogam

com os outros bailarinos. Isso pode ser visto,

sobretudo, no duo com Al Crisppinn, que im-

pressiona pelo que ali carrega de técnica e

de densidade dramática.

Nas criações de Márcia Milhazes, músi-

ca se transforma em trilha sonora, processo

nem sempre entendido por muitos coreógra-

fos contemporâneos. Desta vez, valsas foram

escolhidas para compor com o figurino e

com o lustre assinado por sua irmã, a artista

plástica Beatriz Milhazes, um todo cuja ele-

gância também se dá a partir do que ali se

constrói como pensamento de dança.

A última cena, ao som de uma das

Valsas de esquina, de Francisco Migno-

ne, arremata (e arrebata) o que vem sendo

destilado por todo o espetáculo. Depois des-

te momento, o que era renda de artesão vira

questão de sobrevivência do artista.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

205

Gestos de beleza e suavidadeem Márcia Milhazes

SILVIA SOTER

coreógrafa Márcia Milhazes cultiva

suas criações com tempo e rigor. As-

sim, quando uma de suas peças chega à cena,

traz sempre as marcas de um trabalho de-

purado e perseguido com afinco. Três anos

depois de Joaquim Maria, sua última cria-

ção à frente da Márcia Milhazes Compa-

nhia de Dança, Tempo de verão estreou para

ficar em cartaz no Teatro do Conjunto Cul-

tural da Caixa, até domingo.

Em Joaquim Maria, a literatura de Ma-

chado de Assis era acompanhada da músi-

ca como fonte e alicerce de criação. Já em

Tempo de verão, as referências sonoras, as

valsas brasileiras e o som das águas que jor-

ram, funcionam como princípios sobre os

quais o tecer coreográfico se estrutura.

As valsas que atravessam a peça, não

se restringem a uma dança de casal. Elas

se desdobram em suas facetas musicais e

dinâmicas. Em cena, em Tempo de verão es-

tão três intérpretes, ao invés de dois, como

acontecia em Joaquim Maria. O número de

intérpretes parece se referir ao ternário

simples da valsa. Um tempo de verão que

se constitui, como na valsa, pela presença

de três, como os três tempos do compasso.

O êxtase e o transe provocados pelos

rodopios infinitos das valsas não estão nos

deslocamentos espaciais, mas nos cor-

pos dos intérpretes que são atravessados

por fluxos incessantes de movimento em cír-

culos e espirais. A corporeidade construída

pela dança de Márcia Milhazes é prolixa e

verborrágica. A dança não se congela em

formas. Ela jorra como a água, escorre e se

exaure nos corpos dos bailarinos. Nessa valsa

a três, há espaço para encontros em pares.

O terceiro elemento cria o contraponto para

que o foco não se restrinja aos duos. Em

ciclos, cada encontro é passageiro.

Os três bailarinos traduzem, cada um de

seu jeito, a dança de Márcia Milhazes. Ana

Amélia Vianna parece ser movida de fora,

sua familiaridade com a dança de Márcia

faz com que seu corpo seja veículo transpa-

rente para a escrita da coreógrafa. Pim

Boomprakob, outra excelente intérprete e

nova integrante da companhia, contrapõe

com mais peso a leveza de Ana Amélia.

Vendo-as juntas é possível confirmar que

não há acaso no aparente descontrole da

A

O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SÁBADO• 27 DE NOVEMBRO • 2004RIO DE JANEIRO • SÁBADO• 27 DE NOVEMBRO • 2004RIO DE JANEIRO • SÁBADO• 27 DE NOVEMBRO • 2004RIO DE JANEIRO • SÁBADO• 27 DE NOVEMBRO • 2004RIO DE JANEIRO • SÁBADO• 27 DE NOVEMBRO • 2004

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

206

movimentação incessante dos corpos. Em

Tempo de verão parece existir apenas uma

mulher desdobrada nas duas.

Al Crisppinn, a única presença masculi-

na na peça, serve como esteio para os cor-

pos das bailarinas. Ele é o pivot para a cir-

cularidade da movimentação. Ele é a ânco-

ra para que as duas não partam nos ares por

seus movimentos centrífugos.

Sobre as cabeças dos três, um lustre-es-

cultura de Beatriz Milhazes, feito de brilhos,

flores e rosáceas, compõe magnificamente

a cena. As sombras desenhadas pela ilumi-

nação de Glauce Milhazes mereceriam, no

entanto, um contraponto solar. Terminada a

peça, quando as luzes invadem o palco, per-

cebe-se que, infelizmente, a escultura de

Beatriz Milhazes não é bem aproveitada

como fonte irradiadora do verão.

No quase apagar das luzes da tempora-

da 2004 de dança, Tempo de verão é bem-

vindo. A peça brinda o público carioca com

beleza e suavidade, frutos da competência

e da tenacidade dessa coreógrafa carioca.

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

207

Qualidade técnica à provaRemontagem de La fille mal gardée exige o

máximo do corpo de baile do Municipal

ROBERTO PEREIRA

ncerrando um ano muito pobre em

sua programação, o Ballet do Theatro

Municipal finalmente apresenta uma obra

à sua altura: La fille mal gardée, na versão

do inglês Frederick Ashton, que estreou sex-

ta-feira e permanece em temporada até o

dia 19. Trata-se de uma boa oportunidade

de se averiguar como está a qualidade da

única e mais antiga companhia brasileira

dedicada ao balé clássico de repertório.

Essa oportunidade se dá justamente por

ser essa obra uma combinação perfeita en-

tre pantomima e dança, desafio que deve ser

enfrentado por todo bailarino clássico que

se preze. Único balé do século XVIII ainda

vivo, sua permanência se deve muito pela

competência que nele se criou de contar

uma história, talvez a maior preocupação da

dança cênica ocidental naqueles tempos.

Quanto mais banal fosse essa história, mais

a dificuldade da narrativa se instaurava,

pois era na química de gestos codificados

com a qualidade na execução dos passos

que estava o segredo do sucesso.

Sendo assim, nossa companhia carioca

ainda precisa se acostumar com esse modo

de dançar, pois reside em La fille mal gar-

dée a sutileza da expressão, que demanda

um apuro técnico impecável. Portanto, nada

melhor para aprender essa lição do que a

chance de executá-lo.

Se na estreia os primeiros papéis foram

entregues a Ana Botafogo e Vitor Luiz, na

segunda récita, anteontem, Teresa Augusta

e Bruno Rocha formaram um interessante

casal que mescla a experiência da bailari-

na com o vigor de estreante do jovem ra-

paz. Ainda que insegura como Lise, Teresa

soube cumpri-lo com honestidade, embora

faltasse em sua dança a graciosidade pró-

pria que o papel demanda. Já Bruno Rocha,

promissor investimento da companhia, tal-

vez precisasse se preocupar mais com a

construção pantomímica de seu personagem

e, sobretudo, com o acabamento dos passos,

que ainda são executados com uma força

pouco comedida. Para os dois, nada como o

exercício de estar em cena para sanar esses

pequenos problemas.

Mas a noite ficou entregue à qualidade

de dois artistas em papéis não menos im-

portantes: o primeiro foi César Lima, per-

E

JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 6 DE RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 6 DE RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 6 DE RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 6 DE RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 6 DE DEZEMBRODEZEMBRODEZEMBRODEZEMBRODEZEMBRO • 2004 • 2004 • 2004 • 2004 • 2004

AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009

208

feito como a mãe Simone, mostrando que

sua carreira dentro daquela companhia ba-

lizou-o para esse grande desafio; e o segun-

do foi Rodrigo Negri, bailarino que vem se

destacando pela qualidade que imprime

em sua dança, agora experimentando um

outro modo de estar em cena, como o cari-

cato Alain.

O corpo de baile precisa de ajustes eviden-

tes. As cenas de conjunto ainda precisam de

burilamento, e isso fica claro logo no início, na

dança do galo e das galinhas. O cenário, além

de carregado pelas fortes cores que mais lem-

bram ilustrações de livros infantis, o que lhe

confere um caráter pouco verossímil, deveria

ser melhor construído para não parecer que

pode desabar a qualquer momento, como acon-

tece especialmente no primeiro ato. A ilumi-

nação também merece maior atenção, para

acertar os tons sutis que o balé requisita em

sua tarefa de contar uma história.

Talvez o maior mérito na remontagem

de La fille mal gardée esteja no fato de que

foi assinada pela excelência de conhecimen-

tos de um brasileiro, Emilio Martins, um dos

únicos autorizados neste ofício para a ver-

são de Ashton. Curioso é que o Brasil assis-

tiu a este balé, pela primeira vez, no mesmo

teatro, em 1928, quando foi dançado pela

russa Anna Pavlova e sua companhia. Emi-

lio, em uma de suas remontagens pelo mun-

do, foi consagrado ao ser convidado pelo

Ballet Bolshoi há dois anos. Isso prova que,

no fluxo da história, Rússia e Brasil, por

exemplo, podem aprender sempre um com

o outro. E prova também que, para nós, ter

um profissional desse quilate é motivo de

grande orgulho.

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JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 30 DE DEZEMBRO • 2004• QUINTA-FEIRA • 30 DE DEZEMBRO • 2004• QUINTA-FEIRA • 30 DE DEZEMBRO • 2004• QUINTA-FEIRA • 30 DE DEZEMBRO • 2004• QUINTA-FEIRA • 30 DE DEZEMBRO • 2004

Driblando obstáculosDiante da ausência de políticas públicas para a área,

dança do Rio depende de festivais para aparecer

ROBERTO PEREIRA

dança carioca, neste ano de 2004, po-

deria ser tomada como uma amostra

perfeita da situação da dança no Brasil hoje:

a sua rica pluralidade e a qualidade de seus

artistas ainda se debatem com um de seus

maiores problemas, ou seja, a falta de uma

política pública eficiente e que entenda as es-

pecificidades da área. Tanto aqui no Rio de

Janeiro quanto no resto do País, a saída tem

sido criar estratégias de sobrevivência para

que se possa continuar a ousar fazer da dan-

ça um ofício possível, como qualquer outro.

Uma dessas estratégias, e talvez a mais

eficaz ainda no momento, são os festivais de

dança, que permitem a circulação de com-

panhias, além de dar visibilidade aos nossos

artistas para programadores nacionais e in-

ternacionais. Nesse sentido, o Rio continua

sendo uma cidade privilegiada, pois possui

três importantes festivais que, neste ano, pro-

varam sua eficiência dentro desse parco

ambiente de infraestrutura para dança. O

primeiro deles a acontecer na agenda anual,

logo no mês de março, é o Solos de Dança no

SESC que, em sua quinta edição, comprovou

a ação singular que o Espaço SESC vem de-

senvolvendo junto não apenas à dança mas

às artes cênicas como um todo. Dirigido por

Beatriz Radunsky e com consultoria de João

Saldanha, o evento vem provocando atritos

sempre instigantes ao promover encontros

inéditos entre coreógrafos e bailarinos.

Neste ano, vale citar Basse danse, que re-

sultou da parceria entre o excelente baila-

rino Marcellus Ferreira e o coreógrafo Pau-

lo Caldas, além do solo autoral de Denise

Stutz, DeCor, que emocionou o público ao

visitar a memória física do percurso profissi-

onal desta intérprete/criadora.

O segundo importante festival, que acon-

teceu logo no mês seguinte, foi o Dança Bra-

sil, único importante evento de dança desen-

volvido no Centro Cultural do Banco do

Brasil, e que conta com a preciosa curado-

ria de Leonel Brum e Silvia Soter. Propon-

do, nesta sua oitava edição, a ideia de espa-

ço como fio condutor, reuniu trabalhos de

vários estados brasileiros que apresentavam

diferentes abordagens sobre o tema. Se a

dupla mineira formada por Luciana Gonti-

jo e Margô Assis, em In situ, foi a que mais

se ateve ao uso do espaço como questão

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estética, vale, entretanto, chamar a atenção

para Espaço de luz, trabalho assinado pela

veterana Carlota Portella, que revisitou com

propriedade aquilo do qual é uma das mais

sérias representantes no País, o jazz, numa

feliz fusão com a dança contemporânea.

Fechando o ano, o Panorama RioArte

de Dança, festival criado pela coreógrafa

Lia Rodrigues, foi um grande provocador de

discussões, ao colocar em ambientes comuns

dança e performance. Suscitar novas ques-

tões, tanto nos artistas como no público, já

faz parte de sua tradição, e a questão da vez

foi como essas duas linguagens podem en-

contrar espaços comuns num corpo transfor-

mado em mídia. Neste ano, revigorado pela

curadoria de Nayse López e Eduardo Boni-

to, o Panorama apresentou trabalhos impor-

tantes como O samba do crioulo doido, de

Luiz de Abreu, e Les morts pudiques, de

Rachid Ouramdane, além de diversas per-

formances em locais pouco usuais, como o

antigo hospital da Beneficência Portugue-

sa, na Glória. O descaso da Secretaria das

Culturas, junto com o Instituto RioArte, cor-

tando pela metade o orçamento desse festi-

val, tornou-se, portanto, inexplicável, permi-

tindo que as parcerias conquistadas com ou-

tras entidades, nacionais e internacionais,

fossem as grandes promotoras desse even-

to histórico, que já está em sua 13ª edição.

A cidade ainda contou com outros fes-

tivais e mostras, como o Projeto Dança em

Foco, que discute as imbricações entre as

linguagens de dança e vídeo, além de Cor-

reios em Movimento e Dança em Trânsi-

to, dois festivais que buscam uma linha de

curadoria mais precisa.

Ainda falando sobre dança contemporâ-

nea, três espetáculos, distribuídos ao logo do

ano, formaram, sem dúvida, o conjunto de

estreias mais expressivas do que se produz

na área no Rio: Afirmações intencionais, de

João Saldanha, Coreografismos, de Paulo

Caldas, e Tempo de verão, de Márcia Milha-

zes. Em comum entre os três, observa-se uma

pesquisa acurada que constrói no corpo, co-

reograficamente, a ideia que cada um des-

ses importantes coreógrafos quer trabalhar.

Outras estreias merecem também ser

citadas, como Memória do corpo, de Renato

Vieira, Sensorial, de Steven Harper, Mais

simples, de Ana Vitória, além do novato

Carlos Laerte, com seu Caminhos. Já Dalal

Achcar apresentou sua Companhia Jovem

Elpaso de Dança em Superbacana, priman-

do, como sempre, e sobretudo, pela qualida-

de técnica de seus bailarinos.

A mesma qualidade de produção da dan-

ça contemporânea, entretanto, não pôde ser

vista na área do balé clássico, representado

aqui pela única companhia brasileira dedi-

cada a esse estilo: o Balé do Theatro Muni-

cipal. Contando com uma direção artística

capenga, abriu seu ano com um programa

reunindo obras de três coreógrafos (Uwe

Scholz, Glen Tetley e Roberto de Oliveira),

intitulado Tríptico, que, além de absurda-

mente caro, nada acrescentou ao repertório

dessa companhia, devido à sua fragilidade

estética, sobretudo nos trabalhos de Tetley

e Oliveira. Depois desse desastroso come-

ço de ano, a companhia reapresentou mon-

tagens da temporada passada, como o óti-

mo Onegin, de Cranko, além de um apressa-

do Les sylphides, feito de última hora. O que

salvou o ano foi, sem dúvida, o balé La fille

mal gardée, com remontagem primorosa

assinada por Emílio Martins.

Das poucas companhias estrangeiras

que visitaram a cidade, apenas duas foram

destaque: a de Merce Cunningham, que

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apresentou dois marcos de sua histórica tra-

jetória, Biped, de 1999, e Sounddance, de

1975; e o Ballet du Grand Théâtre de

Genève, que apresentou para um teatro da

Uerj semivazio obras impecáveis como

Selon désir, do grego Andonis Foniadakis.

Motivo de orgulho para nós, Bruno Cezá-

rio, um dos integrantes brasileiros da com-

panhia, mostrou porque é um dos melho-

res bailarinos da atualidade.

Das ações políticas na cidade, vale ci-

tar a importante contribuição do projeto

Cahiers de la Danse, dirigido por Lia

Rodrigues e Silvia Soter, em parceria com

o Serviço Cultural do Consulado-Geral da

França. Além de ter promovido encontros

para discutir políticas para a dança, entre

os meses de outubro e novembro, reunindo

movimentos como o Dança Niterói e o

Contágio Coletivo, foi sede de residências

coreográficas de artistas como Márcia

Milhazes e Ana Vitória, cumprindo com

um papel na cidade que não deveria ser

apenas seu. Um dos lugares que poderiam

exercer essa função, o Centro Coreográfi-

co da Cidade do Rio de Janeiro, finalmen-

te inaugurado em agosto, na Tijuca, ainda

tateia uma linha de ação que possa conju-

minar arte e política com eficiência, e que

possa também reverberar para além dos

limites do bairro em que foi implantado.

A dança carioca, no ano de 2004, deixou

claro que muito ainda deve ser feito para

que se forme um pensamento político vol-

tado para a área, e que seja realmente efi-

caz não apenas na cidade do Rio de Janeiro,

mas em todo o País. Apenas assim, a dança

não fará mais uso de estratégias de sobre-

vivência, mas será, além de uma arte, uma

profissão tão digna e respeitada como as

outras. Tomando a qualidade da dança ca-

rioca como amostra, esse é, sem dúvida, um

desafio que a dança brasileira pode, em

breve, vencer.

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Este livro foi produzidona cidade do Rio de Janeiro

pela Fundação Nacional de Artes – Funartee impresso na Imo’s Gráfica e Editora, Rio de Janeiro – RJ

no quarto trimestre de dois mil e novecom fotolitos fornecidos pela Funarte