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Presidente da RepúblicaPresidente da RepúblicaPresidente da RepúblicaPresidente da RepúblicaPresidente da RepúblicaLUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Ministro da CulturaMinistro da CulturaMinistro da CulturaMinistro da CulturaMinistro da CulturaJUCA FERREIRA
Fundação Nacional de Artes – FunarteFundação Nacional de Artes – FunarteFundação Nacional de Artes – FunarteFundação Nacional de Artes – FunarteFundação Nacional de Artes – FunarteSÉRGIO MAMBERTI
Presidente
Diretoria ExecutivaMYRIAM LEWIN
Diretora
Centro de Programas IntegradosTADEU DI PIETRO
Diretor
Gerência de EdiçõesMARISTELA RANGEL
Gerente
Centro de Artes CênicasMARCELO BONES
Diretor
Coordenação de DançaLEONEL BRUM
Coordenador
Coordenação Geral dePlanejamento e AdministraçãoANAGILSA NÓBREGA
Coordenadora Geral
AO LADO DA CRÍTICAA história recente da dança
carioca através dacrítica jornalística – 1999-2009
VOLUME 11999-2004
Roberto PereiraOrganização
Rio de Janeiro – 2009
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Funarte / Coordenação de Documentação e Informação
Ao lado da crítica : 10 anos de crítica de dança : 1999-2009 / Organização de Roberto Pereira. – Rio de Janeiro, Funarte,2009.
2 v.216 p.; 26cm
ISBN 978-85-7507-123-6 978-85-7507-125-0
1. Dança – Brasil – História e crítica. I. Pereira Roberto.
CDD 792.80981
Ao lado da crítica10 anos de crítica de dança – 1999-2009
© 2009 Roberto Pereira
Todos os direitos reservados
Fundação Nacional de Artes – FunarteRua da Imprensa, 16 – Centro – 20030-120 – Rio de Janeiro – RJ
Tels.: (21) 2279-8053 – (21) [email protected] – www.funarte.gov.br
Produção editorial e projeto gráficoJOSÉ CARLOS MARTINS
Produção gráficaJOÃO CARLOS GUIMARÃES
Assistentes editoriaisSIMONE MUNIZ
SUELEN BARBOZA TEIXEIRA
RevisãoANALUIZA MAGALHÃES
CapaPAULA NOGUEIRA
(recortes do Jornal do Brasil)
Arte-final digitalCARLOS ALBERTO RIOS
Volume 1
Agradeço a todos que meajudaram nesse percurso da crítica.Nayse López, por ter me convidado
a escrever a primeira crítica.A todos os editores e colegasdo Jornal do Brasil com quem
tive o prazer de trabalhar nessesdez anos. Silvia Soter, colega
de ofício, amiga querida.Sonja Gradel, por tudo, disso tudo.
...e que o mesmo signo que eu
tento ler e ser é apenas um possível
ou impossível em mim em mim
em mil em mil em mil...
CAETANO VELOSO
Sumário
Apresentação / 13/ 13/ 13/ 13/ 13JUCA FERREIRA
Ministro da Cultura
Ao lado da crítica / 15/ 15/ 15/ 15/ 15SÉRGIO MAMBERTI
Presidente da Funarte
O ofício da crítica em dose dupla / 1/ 1/ 1/ 1/ 177777(para nossa sorte e deleite)AIRTON TOMAZZONI
Introdução / 19/ 19/ 19/ 19/ 19ROBERTO PEREIRA
19991999199919991999O palco como lugar deação vigorosa e incessante / 27/ 27/ 27/ 27/ 27
Domínio raro dotempo e do espaço em cena / 28/ 28/ 28/ 28/ 28
Duelo entre música, palavra faladae dança na apresentação da Quasar / 29/ 29/ 29/ 29/ 29
Novos significadospara o corpo e para a dança / 31/ 31/ 31/ 31/ 31
Palco de discussão da dança de hoje / 32/ 32/ 32/ 32/ 32
Criadores aprofundampesquisas em cena / 34/ 34/ 34/ 34/ 34
O mito de Antígonaolhado pela metade / 36/ 36/ 36/ 36/ 36
Um bom presente de Natal / 37/ 37/ 37/ 37/ 37
20202020200000000000A hora de sair do corpo / 41/ 41/ 41/ 41/ 41
Encontro de épocas ilustrado pelocontraste entre força e romantismo / 42/ 42/ 42/ 42/ 42
Acertos e ruídos emdois diálogos com o teatro / 43/ 43/ 43/ 43/ 43
A afinação de várias influências / 44/ 44/ 44/ 44/ 44
Crescimento evidente / 45/ 45/ 45/ 45/ 45
Ator descobre a geometria do espaço / 46/ 46/ 46/ 46/ 46
Emoção do flamencoem atmosfera clean / 47/ 47/ 47/ 47/ 47
Genialidadescoreográficas a serviço do amor / 48/ 48/ 48/ 48/ 48
Recursos evidenciamfragilidade da dança / 49/ 49/ 49/ 49/ 49
Danças que coabitammas não se misturam / 51/ 51/ 51/ 51/ 51
Dança feita de ideias,corpos e indignação / 52/ 52/ 52/ 52/ 52
Trilha de Arnaldo Antunes inauguranovos caminhos físicos e urbanos / 53/ 53/ 53/ 53/ 53
A experiência dadança como vertigem / 54/ 54/ 54/ 54/ 54
Plischke sacodea percepção do espectador / 55/ 55/ 55/ 55/ 55
Distintas artes e culturasganham novo território / 56/ 56/ 56/ 56/ 56
Panorama se firma comopalco do debate sobre dança / 57/ 57/ 57/ 57/ 57
Novos balés de Béjart provocamsaudades das criações dos anos 70 / 59/ 59/ 59/ 59/ 59
20202020200000011111Uma dança em buscada emoção imediata / 63/ 63/ 63/ 63/ 63
Tecnologia feita de erros e acertos / 64/ 64/ 64/ 64/ 64
Ana Botafogo é destaque num raroequilíbrio de técnica e interpretação / 66/ 66/ 66/ 66/ 66
Entre o formalismo e a renovação / 67/ 67/ 67/ 67/ 67
Graham dá brilho à noite americana / 69/ 69/ 69/ 69/ 69
Kirov aposta na renovação emromper com a tradição do balé / 70/ 70/ 70/ 70/ 70
Um kirov renovado / 72/ 72/ 72/ 72/ 72
Virtuosismo e sofisticação numaexperiência espetacular do balé / 7/ 7/ 7/ 7/ 744444
Quando a dignidade dança / 75/ 75/ 75/ 75/ 75
Em boa forma / 76/ 76/ 76/ 76/ 76
Construção coreográfica éponto frágil na encenação / 78/ 78/ 78/ 78/ 78
Festival confirmavocação de fazer pensar / 79/ 79/ 79/ 79/ 79
O balé que antecipa o Natal / 82/ 82/ 82/ 82/ 82
Dramas cotidianos emmovimentos coreográficos / 83/ 83/ 83/ 83/ 83
20202020200202020202Uma companhia sem a cara do Rio / 87/ 87/ 87/ 87/ 87
Um projeto ainda frágil / 89/ 89/ 89/ 89/ 89
O encontro do gesto edo movimento no palco / 91/ 91/ 91/ 91/ 91
Passos, música e interatividadeembalam celebração coreográfica / 93/ 93/ 93/ 93/ 93
Rostropovich roubaa cena e faz a sua festa / 95/ 95/ 95/ 95/ 95
Ana Botafogo dominaa cena no Municipal / 97/ 97/ 97/ 97/ 97
Corpo de bailebrilha pela musicalidade / 98/ 98/ 98/ 98/ 98
Corpo de baile rouba a cena / 10/ 10/ 10/ 10/ 1000000
Ilustração de ritmos / 102/ 102/ 102/ 102/ 102
Monólogo de movimentos / 104/ 104/ 104/ 104/ 104
Dança que opera no universo pop / 106/ 106/ 106/ 106/ 106
Um balé marcado peloexcesso de elementos / 108/ 108/ 108/ 108/ 108
Cinderela para virar cult / 110/ 110/ 110/ 110/ 110
Sempre um passo adiante / 111/ 111/ 111/ 111/ 111
Sensualidade debochadaque serve para iluminaro passado do Corpo / 113/ 113/ 113/ 113/ 113
Ações pedagógicas que somam, semse sobrepor à qualidade do produto / 115/ 115/ 115/ 115/ 115
Panorama fez a festada nova plateia carioca / 11/ 11/ 11/ 11/ 1177777
Movimentação a passos largos / 120/ 120/ 120/ 120/ 120
20202020200303030303Parcerias inéditas rendem noitede experiências no palco do SESC / 125/ 125/ 125/ 125/ 125
A simplicidade engole a medusa / 127/ 127/ 127/ 127/ 127
Talentos em versão mal construída / 129/ 129/ 129/ 129/ 129
Movimentos plurais / 131/ 131/ 131/ 131/ 131
O olhar contemporâneode um coreógrafo genial / 134/ 134/ 134/ 134/ 134
Béjart imprime didatismoreligioso à coreografia / 136/ 136/ 136/ 136/ 136
Sobre o espetáculo Madre Teresae as crianças do mundo / 138/ 138/ 138/ 138/ 138
Tradição e história / 139/ 139/ 139/ 139/ 139
O padrão de qualidade de sempre,mas carente de novas referências / 140/ 140/ 140/ 140/ 140
Diálogo entre arte e ciências / 142/ 142/ 142/ 142/ 142
Em busca do movimento do corpo / 143/ 143/ 143/ 143/ 143
Experiências de Carlota Portella / 1/ 1/ 1/ 1/ 14444444444
Sucessão de passos / 146/ 146/ 146/ 146/ 146
Quadros que se perdem em leiturasufanistas, ingênuas e superficiais / 1/ 1/ 1/ 1/ 14848484848
O surpreendente salto da DeAnima / 150/ 150/ 150/ 150/ 150
DeAnima dança William Forsytheutilizando coragem e competência / 152/ 152/ 152/ 152/ 152
Ana Botafogo é diva / 154/ 154/ 154/ 154/ 154
Balé do Municipal encerratemporada em grande estilo / 156/ 156/ 156/ 156/ 156
Os corpos são o lugar da dança / 158/ 158/ 158/ 158/ 158
Balança e dança / 159/ 159/ 159/ 159/ 159
20202020200404040404Dança e reflexão nopalco do Espaço SESC / 165/ 165/ 165/ 165/ 165
Permanências mutantes / 1/ 1/ 1/ 1/ 16767676767
Palco para a reflexão / 1/ 1/ 1/ 1/ 16969696969
Saltos com riscos / 1/ 1/ 1/ 1/ 17171717171
Uma ponte entre o Rio e Sttutgart / 1/ 1/ 1/ 1/ 17373737373
O espaço que (nos) estimula / 1/ 1/ 1/ 1/ 17575757575
Dançando por esporte / 1/ 1/ 1/ 1/ 17777777777
Depois de 50 anos, ainda novasmaneiras de ver e criar dança / 1/ 1/ 1/ 1/ 17878787878
Passos simultâneos à vida / 1/ 1/ 1/ 1/ 18080808080
Lembranças pensadas no presenteque orientam projetos futuros / 181/ 181/ 181/ 181/ 181
Lição de Antonio Gades / 1/ 1/ 1/ 1/ 18383838383
Paixão pelo movimento / 1/ 1/ 1/ 1/ 18484848484
Competência que rendeespetáculo de beleza hipnotizante / 186/ 186/ 186/ 186/ 186
Com prazer e sedução / 188/ 188/ 188/ 188/ 188
Um balé de paixão / 190/ 190/ 190/ 190/ 190
A Tropicália, segundosete criadores / 191/ 191/ 191/ 191/ 191
Mais liberdade para o som dos pés / 193/ 193/ 193/ 193/ 193
O Brasil em Lyon / 1/ 1/ 1/ 1/ 19494949494
Shakespeare condensado / 197/ 197/ 197/ 197/ 197
É tropicalismo, mas semirreverência ou transgressão / 199/ 199/ 199/ 199/ 199
Desafio ainda épolitizar o corpo que dança / 20/ 20/ 20/ 20/ 2011111
Passos tecidos com sabedoria / 203/ 203/ 203/ 203/ 203
Gestos de beleza esuavidade em Márcia Milhazes / 205/ 205/ 205/ 205/ 205
Qualidade técnica à prova / 207/ 207/ 207/ 207/ 207
Driblando obstáculos / 209/ 209/ 209/ 209/ 209
Bibliografia / 213/ 213/ 213/ 213/ 213
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
1 3
Apresentação
JUCA FERREIRA
Ministro da Cultura
urante o processo de criação artística, o momento de reflexão epesquisa se faz indispensável para o desenvolvimento da obra. A
partir da produção teórica e crítica, a prática é repensada, aperfeiçoa-da e adequada a novos contextos. Ao editar o livro A o lado da crítica :10 anos de crítica de dança – 1999-20 09, o Ministério da Cultura e aFunarte apresentam a artistas, curadores, produtores, pesquisadores e crí-ticos um poderoso instrumento de trabalho e oferecem ao espectador dedança a oportunidade de ampliar seu conhecimento sobre o tema.
O livro reúne críticas, publicadas originalmente em jornais de grandecirculação. Juntas, elas revelam um panorama das ideias, práticas e ex-periências que marcaram a dança brasileira nos últimos dez anos. Osautores analisam em detalhes espetáculos que exploram linguagens di-versas do corpo em movimento. Dessa forma, é possível acompanhar astrajetórias de renomadas companhias, coreógrafos e bailarinos, nacio-nais e internacionais, em busca de inovações técnicas e estéticas quedessem fôlego às suas obras e às suas marcas autorais.
Além disso, são traçados os percursos de alguns dos principais festi-vais brasileiros, que se destacaram por servir de palco a grandes nomesda dança, a novos talentos e coreógrafos de vanguarda, por terem setornado espaços privilegiados de debate de idéias e por ajudarem a for-mar novas plateias para a dança no Brasil. Esta coletânea traz aindatextos teóricos que ajudam a inserir o trabalho do crítico no contextomaior da história da dança.
Com esta publicação, o Ministério da Cultura e a Funarte reafirmamos compromissos de preservar a memória das artes e promover a refle-xão sobre as manifestações da cultura brasileira, investindo assim naformação de consciências críticas e no desenvolvimento do país.
D
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
1 5
Ao lado da crítica
SÉRGIO MAMBERTI
Presidente da Funarte
o lado da crítica oferece ao leitor registros minuciosos dos principaisespetáculos de dança apresentados nos palcos cariocas nos últimos
dez anos. A obra, que vem preencher uma lacuna da produção intelectualbrasileira, tão carente de títulos que promovam uma reflexão sobre a dançano país, servirá como ferramenta de pesquisa e referência histórica paratodos aqueles que desejem ampliar seu conhecimento sobre o tema.
A edição deste livro faz parte de um conjunto extenso de ações daFundação Nacional de Artes – Funarte voltadas para o incentivo à dan-ça. Desde 2005, quando o Ministério da Cultura criou o Colegiado Seto-rial de Dança – espaço de debate entre Estado e sociedade civil –, a árearecebeu impulso inédito. Para atender a reivindicações da categoria,foram desenvolvidos programas específicos de estímulo à produção, cir-culação, formação, pesquisa e preservação da memória, contemplandosempre a diversidade criativa dessa linguagem.
Diretores, bailarinos, coreógrafos, produtores, técnicos e outros pro-fissionais ligados à cadeia produtiva da dança encontram, por meio daspolíticas da Funarte, formas de se capacitar, viabilizar projetos, levar seusespetáculos a outros estados e realizar pesquisas.
Com a publicação de livros como A o lado da crítica, que estimulam opensamento sobre a cultura brasileira, a Funarte beneficia artistas, es-tudiosos e espectadores, a um só tempo. Além disso, ratifica a importân-cia de sua atuação como órgão fomentador das artes no país.
A
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
1 7
O ofício da crítica em dose dupla(para nossa sorte e deleite)
AIRTON TOMAZZONICoreógrafo, jornalista e diretor do
Centro Municipal de Dança de Porto Alegre
palavra crítica vem do grego krimein, que significa “quebrar”, sentido quetambém influenciou a formação da palavra “crise.” E, provavelmente, es-
tabelecer uma crise seja o papel decisivo de um crítico. Uma crise pode gerar,por sua vez, vários estados: percepção, transformação, e até mesmo choque ereação. Por isso, uma crise, mesmo que em primeira instância possa pareceralgo negativo, tem um papel determinante e fundamental, ainda mais quandose fala em arte, ainda mais quando se fala em dança, num País de pouca memó-ria e tão carente de informação qualificada sobre esta arte.
Por isso, é tão importante e significativa a publicação desta obra, reunindodez anos de produção sistemática dos críticos de dança Roberto Pereira (Jornaldo Brasil) e Silvia Soter (O Globo). Seus textos foram decisivos tanto para fazerum retrato da dança na cidade do Rio de Janeiro, no período de 1999 a 2009,quanto para um refinado exercício de reconhecimento e provocação do que ecomo se produzia, do que se assistia, do que se fazia e se deixava de fazer nospalcos e nos bastidores, na arte e na política do Brasil. Sim, porque o espaçoaberto por estes dois críticos não foi apenas para dar opinião a respeito de es-petáculos e eventos. Ambos estiveram sempre atentos e dispostos a alertar, co-brar, revelar ações e omissões que reverberavam diretamente na dança.
Talvez, por esses motivos, eu fale com certa inveja. Com a inveja de quem atuaem um cenário cultural (de Porto Alegre) que não possui, como outros tantos es-tados desse País, um crítico atuando sistematicamente e com o mínimo conheci-mento e vocação para tal ofício. Talvez por isso eu perceba com maior ênfase afalta que faz o acesso a textos de uma escrita clara e precisa, que analisem a produ-ção de dança, textos com posições devidamente argumentadas, textos que, quandonecessário, se permitem vibrar, amar, odiar, pois são textos de quem vive a dança,conhece a dança e torce pela dança. Esses atributos fazem a diferença em umcenário que, muitas vezes, é o de pseudocríticas de dança redigidas por alguémsem o mínimo conhecimento da história da dança (sim, não apenas temos uma comovárias), de suas referências, de sua realidade local e global e que acha que emitirimpressões com uma escrita “bacaninha” dá conta do recado.
A
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
1 8
As críticas de Silvia e Roberto são a constatação da diferença que umapostura consistente faz e traz. Para tal, não precisamos concordar sempre comsuas opiniões, que não estão ali em busca de uma unanimidade, mas sim deuma pequena (pois breve) e necessária porção de alteridade. Alteridade nosentido de também compreender o mundo a partir do olhar outro, sensibiliza-do pela experiência do contato com a(s) obra(s). E aqui não falo apenas doscriadores, “alvo” das críticas, mas de todos os leitores que fazem do exercícioda crítica jornalística uma possibilidade de troca de experiência em dança, enão só o público carioca. Quantas vezes me interessei por coreógrafos sobreos quais li nos textos de Roberto e Silvia, quantas vezes descobri que os des-conhecia, quantas vezes levei seus textos para sala de aula, quantas vezesacolhi apontamentos que serviam como uma luva para o meu trabalho, quan-tas vezes discordei e estabeleci argumentos para “no dia em que eu falar comeles”. Enfim, que coisa mais saudável esta que uma boa crítica produz.
Também por isso a importância desta publicação. Por valorizar um ofício cadavez mais raro. Pela oportunidade de ler esses textos tão fugidios no jornal queno outro dia pode estar enrolando peixe. Pela chance de lê-los em conjunto. Depoder relê-los. De poder lê-los complementarmente a partir de duas perspecti-vas tão singulares e capacitadas. Essa coletânea de críticas é um legado, numcenário ainda árido da produção bibliográfica sobre dança no Brasil e pratica-mente nulo no que se refere à crítica fora dos jornais e sites. Mas, independentede tudo isso, o leitor poderá se deleitar com um generoso exercício de análise ecom o olhar apurado de Roberto e Silvia.
Esta obra também pode ser uma forma de talvez começar a perceber a im-prensa como um dos vértices fundamentais para que uma produção consistentede dança se firme. Esta publicação, enfim, é um retrato de dois profundos co-nhecedores, de dois sensíveis cronistas do seu tempo, donos de um texto perspi-caz e inteligente, de dois apaixonados que fizeram, nesse período, um bocadodaquilo que precisa ser feito, mas poucos se arvoram, pois o ofício da crítica nãoé só feito de louros e exige coragem e rigor. Coragem e rigor que sempre pri-maram tanto Roberto, que nos deixou tão prematuramente e que tanta falta jáfaz, quanto Silvia, que espero que prossiga compartilhando com a gente por maisum bom tempo seus textos.
E que bom que o Roberto teve a ideia desta publicação, bem como a paciên-cia de organizar seu material e o da Silvia, além de digitar todas as críticas.Se ele não tivesse pensado e trabalhado por isso, estas continuariam nos arqui-vos pessoais e não à nossa disposição. E crédito especial à Sonja Gradel, incan-sável até descobrir uma forma de não ver engavetado todo o trabalho já feitopelo Roberto.
Parabéns à Funarte, por assumir essa iniciativa e torná-la possível, com sen-sibilidade e agilidade. Tenho a certeza de que a dança brasileira agradece.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Introdução
ROBERTO PEREIRA
ez anos de crítica de dança na cidade do Rio de Janeiro. Oferecer ao pú-blico a possibilidade de ter reunidas todas as críticas escritas por mim nesse
período, publicadas ou não, é também traçar um diagrama histórico possível,cujos personagens compartilham com o narrador o mesmo espaço e o mesmotempo. Compartilham a contemporaneidade. Tal fato concede, sem dúvida, umtom peculiar à leitura dos textos que seguem. E corrobora a ideia de que essediagrama não está pronto, e nunca estará, felizmente. Aqui, ele aparece recor-tado, assumindo, de imediato, todas as falibilidades desse recorte.
Reunir críticas jornalísticas em um mesmo volume, em formato de livro, não éuma novidade. Mesmo em dança, trata-se de uma prática que vem sendo disse-minada sobretudo a partir do século passado. A importantíssima produção doséculo XIX, por exemplo, que encontra no nome do poeta Théophile Gautier umade suas maiores expressões, ganhou versão em livro, inclusive em outros idiomasque não apenas o original francês. Sua organização vem facilitando e muito o acessode pesquisadores ao ainda tão presente balé romântico, numa leitura que garan-te, através dos arroubos poéticos de Gautier, uma reconstrução possível de ima-gens do que foi aquele período tão caro à dança cênica ocidental.
Se no caso do poeta mais de 150 anos separam suas primeiras críticas jor-nalísticas de sua organização e posterior publicação, neste livro que ora seapresenta ao público, esse hiato simplesmente não existe. Tingindo a históriarecente da dança carioca com a tinta própria de um olhar crítico que se disse-mina através de um dos mais importantes jornais da cidade, aqui se promoveum diagrama.
Um diagrama que, ao mesmo tempo, resulta numa leitura plenamente si-multânea dessa história, mesmo tendo sido organizado com base em um per-curso absolutamente cronológico, critério assumidamente sintagmático que
D
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
2 0
tenta conceder a essa mesma leitura quase um caráter narrativo. E disso, cer-tamente, um sabor especial advém.
Esse sabor, que muitas vezes deve ter causado dissabores também aos per-sonagens que habitam essas páginas, está latente em cada uma de suas linhas,em cada parágrafo. Apenas não se deve esquecer de que, ao retirar essas críti-cas do seu hábitat original e reagrupá-las em outro lugar, estamos falando mesmoquase que de uma aventura romântica de preservação. Jornalismo cultural, quecarrega consigo a noção de cotidiano, do aqui e agora, ganha feições de umaextensão no tempo e no espaço que não fazem parte de sua especificidade.Implicados aí estão ganhos e perdas. O leitor não deve perder isso de vista, jamais.
* * *A crítica de dança que se apresenta aqui é o exercício diário que permitiu mi-nha formação profissional na área. Na verdade, trata-se de um exercício com-partilhado principalmente com minha colega, e antes de tudo, amiga, Silvia So-ter. Escrevemos há dez anos para os dois principais jornais da cidade do Rio deJaneiro, ela para O Globo e eu para o Jornal do Brasil.
No início, o desafio era novo para ela e para mim: o de se fazer entender porum público anônimo, de cuja amplitude não tínhamos qualquer dimensão. O al-cance de cada palavra escrita por nós era algo pouco traçável, nos dois senti-dos: tanto em direção ao artista criticado, quanto em direção ao público.
Nessa tarefa, a aprendizagem do código se tornou quase um enigma a serdecifrado dia a dia, texto a texto. O “como se fazer entender por esse públicoamplo” teria de vir aliado a outras tantas determinações, muitas vezes alheiasà nossa vontade, ou ao que ainda ingenuamente chamávamos de “estilo”. Dei-xar claro de que espetáculo está se falando, quem é o artista, onde e até quan-do ele se apresenta fazia pesar a prática do lead jornalístico quase como umabomba num texto que se queria algumas vezes puramente poético. Negocia-ções começaram a ser feitas. Aqui e ali.
Ou mesmo o tamanho destinado para cada texto determinava a eficácia deseu conteúdo. Dimensionar isso, exatamente, talvez tenha sido a aprendizagemmais demorada para mim. Se o espaço é pequeno, cada palavra começava a valerimediatamente mais. Quase ouro puro. E nada, nada mesmo a tornava substi-tuível por qualquer outra palavra. A saída era ir sempre testando. Até hoje setesta. E não há um resultado, um diagnóstico. Há a prática de quem realiza umofício cuja formação é um amontoado de aptidões: a facilidade em escrever, oolhar aguçado, o incessante pesquisar sobre dança, e mais tantos etcs. pertinen-tes que possam porventura caber aqui.
Outra informação que poucos leitores, e artistas, sabem: não somos nós queescolhemos os títulos e as legendas que acompanham nossos textos. E tambémnão escolhemos as fotos que os ilustram. Algumas vezes, o título é pinçado de
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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alguma passagem de nossa autoria. Outras, ganha um colorido estranho, pró-prio de um título que jamais seria dado por nós. Isso tudo fazia parte do modode acontecer de uma redação de jornal. Tudo. Algo muito simples de se enten-der, mas que fincava de uma só vez uma bandeira que demarcava especificida-des jornalísticas em minha escrita, área em que não sou formado.
Aliás, qual poderia ser minha formação como crítico? Tinha feito muitas emuitas aulas de dança, começando meus estudos numa academia de minha ci-dade natal, São José dos Campos, interior de São Paulo. Como acontecia comtodo rapaz em plena década de 1980, ganhei uma bolsa de estudos de minhaprimeira professora, Damares Antelmo, e me lancei ao balé, ao jazz e ao sapa-teado, mesmo que este último eu tenha abandonado logo de início. Em 1982,lembro ter ficado impressionado ao assistir na televisão a uma jornalista falan-do sobre dança de um modo inteiramente novo para mim. Helena Katz, na T VCultura, comentava o impacto da movimentação de Michael Jackson nos vide-oclipes que acompanhavam o lançamento de seu álbum Thriller. E esse modoreverberou em mim, e o faz até hoje, a certeza de que ali residia uma outrapossibilidade, absolutamente legítima, de se fazer dança também. Fui para acapital paulista, onde me formei em Letras pela PUC/SP, e parei definitivamentede fazer aulas de dança. Comecei, então, a participar do grupo de estudos or-ganizado por Helena. Algumas coisas começaram a se encaixar.
Saí do País, fiz meu mestrado na Universidade de Viena, Áustria, cuja disser-tação tinha como tema uma antiga paixão: o balé Giselle. Voltei ao Brasil, maisespecificamente ao Rio de Janeiro, em 1997, como convidado de minha irmã quejá era quase uma carioca. Nesse mesmo ano, conheci Silvia. Em dezembro, numareunião realizada na sala de ensaio de Lia Rodrigues, localizada no Teatro Villa-Lobos, combinamos a primeira reunião daquele que viria a ser conhecido comoGrupo de Estudos em Dança do Rio de Janeiro. Começaríamos a nos reunir logono dia 19 de janeiro do ano seguinte, no estúdio da Silvia, no Jardim Botânico.
A existência desse grupo foi absolutamente fundamental para meu futuroexercício da crítica. E logo nas primeiras reuniões, realizadas sempre àssegundas-feiras, às 19 horas, começou-se a delinear um núcleo que seguiriaadiante por mais seis anos: além de mim e da Silvia estavam Beatriz Cerbino,Dani Lima e Lia Rodrigues.
As leituras, sempre combinadas de antemão, faziam um percurso sugerido noinício por Helena Katz. Depois, nossos desejos foram sendo naturalmente des-pertos pela própria dinâmica das discussões que se davam nos encontros. Auto-res como Antonio Damasio, Daniel Dennett e Richard Dawkins apresentavamum novo universo a todos nós, que ficávamos incumbidos em traçar paralelos entretoda aquela teoria e a dança. Fazíamos isso, claro, ao nosso modo. E fomos cons-truindo ali uma ética da pesquisa, mas, sobretudo, uma estética do estar junto.
Lá no finzinho de 1999, em outubro, sai a primeira crítica da Silvia no Segun-do Caderno do jornal O Globo. Sua incursão naquele universo complementaria
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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de forma exemplar o espaço dado por esse jornal à dança, sobretudo pelo em-penho da jornalista Adriana Pavlova, responsável pela área até o ano de 2005.Uma parceria e tanto foi construída ali, dia a dia, ano a ano. E o jornal passoua desempenhar um papel fundamental nas questões sobretudo políticas que cir-cundavam a dança carioca. E essa dança ganhou um outro status, diferentedaquele provindo de visitas esporádicas da crítica teatral Bárbara Heliodora aapresentações de dança, geralmente restritas ao Theatro Municipal. A dançavirou uma prática jornalística também.
Logo em seguida, ainda no mês de outubro, Silvia começou a escrever sobreo Panorama RioArte de Dança, um dos mais importantes festivais brasileirosque, naquele momento, era dirigido por sua idealizadora, a coreógrafa Lia Ro-drigues. Eu, desde o ano anterior, desempenhava ao lado dela o ofício de suacuradoria. Pouco mais tarde, fui entendendo que curadoria e crítica eram ape-nas interfaces de uma mesma mediação entre artista, obra e público. Mas comonão havia também nenhuma formação própria para “curador de dança”, tudo oque eu fazia era ao mesmo tempo testado. E as maiores aulas que tive nessesentido vinham da experiência da própria Lia, que também aprendeu fazendoaquele festival, mesmo que a duras penas, desde 1992.
Era uma experiência nova para mim e para Silvia: meu trabalho estava sen-do, de alguma forma, criticado por ela. Curioso. Muito curioso.
Para o bem do Panorama e de toda a classe artística da dança carioca, críti-cas sobre o festival passaram a ser constantes até o ano anterior ao que estelivro contempla. Escritas por Silvia, por Beatriz Cerbino, e mais tarde por mim,quando deixei a curadoria do festival em 2004, todas as edições dos anos pos-teriores, excetuando 2005, foram contempladas com críticas nos dois jornais. Esua leitura, hoje, traça curiosos percursos de um festival que promovia, a cadaano, estranhamentos poderosos num público que vinha lentamente se formando.
Por outro lado, infelizmente, nenhum dos importantes festivais e mostras queexistiram ou ainda existem na cidade do Rio de Janeiro foram contempladoscom críticas nossas desde seu início ou sem interrupções. O saudoso festivalD ança Brasil, por exemplo, teve sua primeira edição em 1997, com curadoriade Leonel Brum, e foi a principal e muitas vezes a única investida em dança doCentro Cultural do Banco do Brasil carioca. Sua última edição foi em 2004,dando fim a um processo interessante de observação de imbricações entre dançae outras linguagens artísticas, recorte eleito para balizar sua curadoria. De suasoito edições, apenas as dos anos de 2000, 2001, 2003 e 2004 ganharam críticaminha ou da Silvia. E uma inversão outra vez curiosa se deu aí: a partir de suasexta edição, Leonel convidou Silvia para dividir com ele a curadoria do festi-val. E eu, como crítico, passei a criticar o trabalho dela, exatamente o inversode como havia acontecido há alguns anos.
E também os Solos de Dança no SESC, mostra de formato inédito entre nós,e um dos principais eventos de dança do primeiro semestre carioca, que havia
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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se iniciado em 2000, pelas mãos de Beatriz Radunsky, só ganharam aprecia-ções críticas nossas a partir do ano de 2002. Desde então, até o ano passado,esta passou a ser uma ação ininterrupta, felizmente.
Mas o Rio de Janeiro contava, sim, com crítica de dança antes de começar-mos, eu e Silvia, em 1999. Nayse López, então editora do Caderno B do Jornaldo Brasil, acumulava também a função de escrever críticas para sua editoria. Efoi justamente Nayse quem me convidou para escrever minha primeira crítica(e única daquele ano), que saiu em dezembro de 1999. A partir de então, passeia, timidamente ainda, dividir com ela esse espaço no Jornal do Brasil, até que,depois de sua saída do jornal em abril de 2001, assumi sozinho o ofício.
Bem, não totalmente sozinho. Nessas trocas incessantes de posição, algumasvezes crítico, algumas vezes curador, surgiu a oportunidade de convidar a pes-quisadora Beatriz Cerbino para que me substituísse no Caderno B, em escritassobre o Panorama ou sobre algum espetáculo a que eu não poderia assistir poruma razão ou outra. Beatriz havia sido minha aluna no Curso de Dança daUniverCidade, e na época em que começou a escrever, me substituindo, em 2001,cursava o mestrado em Comunicação e Semiótica da PUC/SP.
Em nosso segundo ano como críticos de dança, Silvia escreveu 15 textos,e eu, o dobro do que havia escrito no ano anterior, ou seja, apenas dois textos.E no ano seguinte, foram dez da Silvia e eu continuava dobrando minha quan-tidade: quatro textos. Esse número passou lentamente a aumentar, para nós dois.E nossa prática passou a ser uma dinâmica.
Começamos a perceber o que representava o fato corriqueiro, por exemplo,de sentarmos lado a lado em uma estreia. Ou como nossos gestos eram lidosdurante ou após os espetáculos. Cada pequeno gesto. E como nossos textos fo-ram demarcando dois estilos tão diferentes de leituras. E ainda, o que significa-va fazer parte de um rol tão restrito no País de críticos de dança atuantes, queencerrou o ano passado contando apenas com Helena Katz, em São Paulo (OEstado de S. Paulo) e Marcelo Castilho Avellar, em Belo Horizonte (O Estadode Minas).
Formação? Ela se dá ainda em continuidade. Silvia concluiu o mestradoem Artes Cênicas pela UniRio em 2005 e eu, o doutorado em Comunicaçãoe Semiótica pela PUC/SP em 2003. Ambos sobre dança. E ambos os resulta-dos foram publicados. Organizamos livros, participamos de festivais, comis-sões, produzimos eventos e continuamos a dar aulas no mesmo curso supe-rior de dança na UniverCidade. Um repertório que se alarga desde quecomeçou a existir. No caso da Silvia, quando ela tinha 13 anos e, no meu, quandotinha 17. Muita dança de lá pra cá. Muita. E num desses mistérios que noscercam, essa quantidade toda, pelo menos quando se enfrenta a tela vaziado computador ao iniciar a escrita de uma nova crítica, se transforma mila-grosamente em qualidade.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Esse livro reúne críticas escritas por mim em dez anos. Curiosamente, nes-te ano comemorativo de 2009, uma bailarina rasgou em cena a folha de jor-nal que estampava uma crítica minha sobre seu espetáculo. Todas as leiturasde atos que se desdobram: algumas mais elegantes, outras mais emergenciais.Todas legítimas.
Entre tantos erros e acertos, os textos aqui apresentados contam um poucoda história e da percepção dessa história da dança entre nós, moradores da ci-dade do Rio de Janeiro, ou apenas brasileiros. Para tanto, resolvi manter mi-nhas versões originais dos textos. Assim, algumas vezes, temos uma misturainteressante de títulos e legendas tal como figuram nos jornais e textos em ver-sões que muito diferem daqueles publicados. Ou mesmo textos que seriam mes-clados com outros textos de autoria de jornalistas, especialmente em balançosde fim de ano, e que aparecem aqui apenas nas versões escritas por mim. Estaera, finalmente, a (única?) chance de eles serem lidos como foram concebidosoriginalmente. Resolvi também trazer aqui críticas que, por uma razão ou ou-tra, não foram publicadas.
Ao leitor, resta meu pedido de lembrar, sempre, que se trata aqui não maisapenas da crítica de dança, que tem tantas qualidades quando estampada nosuporte do jornal. Mas, antes, trata-se de um registro de um registro e, como tal,só poderia existir admitindo seu recorte e as falibilidades decorrentes dele, assimcomo assumindo as especificidades deste outro suporte, um livro.
Bom diagrama a todos. Um outro jeito absolutamente legítimo de se fazerdança se inicia na página seguinte.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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1999 CRÍTICAS
O GLOBO – 9 DE OUTUBRO DE 1999
O palco como lugar de ação vigorosa e incessanteSILVIA SOTER
O GLOBO – 22 DE OUTUBRO DE1999Domínio raro do tempo e do espaço em cena
SILVIA SOTER
O GLOBO – 25 DE OUTUBRO DE1999Duelo entre música, palavra falada e dança na apresentação da Quasar
SILVIA SOTER
O GLOBO – 29 DE OUTUBRO DE 1999Novos significados para o corpo e para a dança
SILVIA SOTER
O GLOBO – 1 DE NOVEMBRO DE 1999Palco de discussão da dança de hoje
SILVIA SOTER
O GLOBO – 2 DE NOVEMBRO DE 1999Criadores aprofundam pesquisas em cena
SILVIA SOTER
O GLOBO – 10 DE NOVEMBRO DE 1999O mito de Antígona olhado pela metade
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL – 3 DE DEZEMBRO DE 1999Um bom presente de Natal
ROBERTO PEREIRA
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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O palco como lugarde ação vigorosa e incessante
Coreógrafa é muito literal em alguns momentos,mas realiza seu espetáculo mais completo
SILVIA SOTER
asa, da Cia. Deborah Colker, não é um
“lar, doce, lar”, íntimo espaço de tran-
quilidade. A casa de Deborah Colker é lu-
gar de ação mágica, vigorosa e incessante.
Se em seus espetáculos anteriores o olhar
do espectador era desviado, como que para
amenizar o impacto criado pela arquitetu-
ra, em Casa, a coreógrafa assume a força do
espaço arquitetônico de sua proposta, sem
esvaziá-lo com situações periféricas. É nes-
ta casa-estrutura – excelente realização de
Gringo Cardia, iluminada com primor por
Jorginho de Carvalho – que os bailarinos
constroem sua dança, enquanto a casa se
movimenta, recriando planos, desvendando
entranhas, se reinventando.
Para a coreógrafa, estar em casa é agir,
ação que segue os traços do homem moder-
no de Baudelaire. No corpo de seus bailari-
nos, os gestos do cotidiano de uma casa se
desenrolam, descrevendo os espaços que
ocupam. A ênfase se dá no fazer. No entan-
to, o mergulho da coreógrafa nos gestos ba-
nais do cotidiano de uma casa resulta, em
alguns momentos, numa certa literalidade.
Ao fazer e ao mostrar o que está sendo fei-
to, Deborah restringe-se, mantendo-se exa-
geradamente fiel à sua proposta inicial. O
mesmo acontece com o uso que a coreógra-
fa faz da técnica clássica que surge não como
ferramenta de construção de uma corporei-
dade própria e sim como elemento que se
infiltra para legitimar, desnecessariamen-
te, a evidente capacidade técnica de sua
companhia. Um dos momentos mais fortes
do espetáculo se revela, sem ser exposto:
através da janela, vislumbra-se o belíssimo
duo de Deborah e Jacqueline Mota.
Casa é, sem dúvida, o espetáculo mais com-
pleto desta companhia que confirma que a dan-
ça se faz espetáculo a espetáculo, com compe-
tência, meios de realização e muito trabalho.
C
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 99999 DE OUTUBRO • 1999 DE OUTUBRO • 1999 DE OUTUBRO • 1999 DE OUTUBRO • 1999 DE OUTUBRO • 1999
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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eitraum – The space of time, de Rui
Horta, espetáculo baseado nos traba-
lhos do arquiteto holandês Rem Koolhaas e
em Seis propostas para o próximo milênio,
de Italo Calvino, fala de experiências do
homem com o tempo. Se as dimensões tem-
po e espaço são raramente dissociáveis em
Rui Horta, uma se transforma na outra e o
tempo se materializa no espaço da cena.
É o próprio coreógrafo quem assina a ceno-
grafia e a iluminação do espetáculo.
A cenografia se oferece como partner para
os seis bailarinos e se impõe, hipnoticamente,
aos olhos do espectador. Correndo veloz no
fundo da cena, um rio caudaloso constrói um
eixo horizontal durante todo o espetáculo: o
tempo contínuo. Colunas de alumínio, símbolo
de leveza e tecnologia, são fixadas, pelos baila-
rinos, verticalmente no cenário: o marco do ins-
tante. Em cena, um cubo transparente cheio de
água: desejo humano de aprisionar o tempo,
tentativa de interromper o fluxo deste rio de
continuidade. É em torno dos objetos de cena
que se tecem os laços entre os bailarinos.
Os seis bailarinos constroem trajetó-
rias próprias, deslocando-se em órbitas
PANORAMA/RUI HORTA
Domínio raro do tempoe do espaço em cena
SILVIA SOTER
individuais. As relações entre os bailarinos
se dão a partir de provocações físicas, e as
órbitas se chocam para, em seguida, inte-
ragirem. Por instantes, os bailarinos aban-
donam suas órbitas e, sem perderem seus
caracteres múltiplos, realizam a experiên-
cia da simultaneidade. A movimentação
dos corpos é contínua, como o rio do fundo,
no limiar de um eterno desequilíbrio. Atra-
vés dos corpos dos bailarinos, aos pares
tempo-espaço, natureza-tecnologia, se
associam desequilíbrio-suspensão.
Italo Calvino propôs elementos que acre-
ditava merecem lugar de destaque no mi-
lênio que se anuncia. Leveza, rapidez, exa-
tidão, visibilidade e multiplicidade se apre-
sentam como características a serem perse-
guidas. Rui Horta traz esses elementos para
a dança. Nesta obra, as propostas de Calvi-
no emergem, visivelmente, nas dimensões
tempo e espaço. Talvez menos visíveis, flu-
xo e peso se colocam como dimensões cen-
trais. Merece destaque o domínio que esta
companhia faz do fluxo e do peso. Domínio
raro e absoluto: base da dança contemporâ-
nea e talvez sua tarefa mais difícil.
Z
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE OUTUBRO • 1999RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE OUTUBRO • 1999RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE OUTUBRO • 1999RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE OUTUBRO • 1999RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE OUTUBRO • 1999
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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oreografia para ouvir, da Quasar Cia.
de Dança, foi o espetáculo mais mar-
cante, dentre os brasileiros, nesta primeira
semana do 8° Panorama RioArte de Dança.
Na criação de Henrique Rodovalho, mú-
sica e dança se provocam, como um desa-
fio dos repentistas nas feiras nordestinas,
com execução preciosa de seus quatro
bailarinos. No confronto música, palavra
falada e dança, desfilam as tensões entre
cidade e interior, entre popular e erudito.
O coreógrafo ousou e acertou ao limpar a
cena, livrando-se da ambientação pesada,
que, em geral, acompanha o trabalho de
Rodovalho, e fez uma obra delicada, pre-
cisa e competente.
A noite de quinta-feira foi aberta por
Recorrência: Quasi instante, da Paulo Man-
tuano Cia. de Dança. O coreógrafo busca des-
pertar no espectador a sensação do déjàvu,
se utilizando de imagens gigantescas proje-
tadas no fundo do palco que se repetem e se
fundem à presença dos bailarinos em cena.
Essa ideia, no entanto, vai se dissolvendo e
perde a sua força inicial. Os bailarinos ainda
não parecem se adequar à qualidade de
Duelo entre música, palavra falada edança na apresentação da Quasar
Panorama/Brasileiros: Primeira semana é marcadapor boas ideias nem sempre bem executadas
SILVIA SOTER
movimentação imposta pela coreografia, e
Paulo Mantuano, bailarino vigoroso, aprovei-
ta pouco suas qualidades em cena.
Criaturas, de Michel Groisman, abriu a
noite sexta-feira. Fronteira entre o Body-
Art, a instalação e a dança, a perfomance
sai da galeria e ocupa o palco. Os dois
performers-bailarinos mostram um con-
trole eficiente de seus corpos no difícil
deslocamento imposto pelo aparato de
fios, rodas, metais e lâmpadas. O contato
entre os dois se dá de modo pontual, cri-
ando formas circulares que, ao fecharem
o circuito elétrico, acendem pequenas lâm-
padas. Apesar do forte impacto plástico da
performance, alguns ajustes são necessá-
rios para transportar este trabalho da ga-
leria para o palco.
Neste final de século marcado pelo olhar
feminino na dança, é um prazer assistir a
Adoniran, da Cia. Três de Paus, de São Pau-
lo. Composto de uma sucessão de esquetes
em torno de Adoniran Barbosa, em que o
aspecto cômico é enfatizado, estes três artis-
tas polivalentes combinam com simplicida-
de a dança, a percussão e o teatro, resultando
C
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 25 DE OUTUBRO • 1999RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 25 DE OUTUBRO • 1999RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 25 DE OUTUBRO • 1999RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 25 DE OUTUBRO • 1999RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 25 DE OUTUBRO • 1999
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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num espetáculo não muito regular, porém
despretensioso, agradável e impregnado de
humor masculino.
Os excelentes bailarinos Priscilla Tei-
xeira e André Vidal se convertem em co-
reógrafos e apresentam Um passo a dois.
Uma barra, objeto emblemático das au-
las de balé clássico, vai sendo construí-
da no meio da cena enquanto o espelho
é sugerido pela movimentação simétri-
ca dos bailarinos. Numa tentativa visível
de mergulhar no universo da dança, eles
acabam ficando presos às suas trajetóri-
as pessoais como bailarinos, com refe-
rências explícitas a estilos e a momentos
históricos.
Encerrando a noite de sábado, Lara
Pinheiro e Marcos Gallon visitam a dança-
teatro. O teatro do absurdo, de Ionesco, ser-
ve de pano de fundo para Alice. Uma cena
construída dentro da cena e a iluminação
sugerem um certo distanciamento. No en-
tanto, nesta criação, dança e teatro conta-
minam-se pouco e os bailarinos se
limitam a alternar situações teatrais, sem-
pre ligadas ao texto e aos objetos de cena,
com boas sequências de dança como, por
exemplo, o duo final.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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ão é fácil assistir a Nom donné par
l’auteur de Jérôme Bel, apresentado
quarta-feira no Teatro Carlos Gomes. Em
cena, não se encontram as referências habi-
tuais das situações de representação. Se,
neste século, a dança foi se desligando, pou-
co a pouco, de seus pares históricos como a
música, a ambientação cenográfica ou ainda
a narrativa, o corpo que dança preservou
uma tonicidade particular, um compromisso
específico com o espaço e com o movimento.
Em Nom donné par l’auteur, esta última refe-
rência é, aparentemente, abandonada. O es-
pectador desavisado pode ainda se pergun-
tar se o que vemos é dança, ou simplesmen-
te tentar resolver seu incômodo, classifican-
do o espetáculo como não dança. No entanto,
é na atitude contrária, na busca daquilo que
pertence à dança dentro da obra, que é possí-
vel se aproximar do trabalho de Jérôme Bel.
Com gestos simples, precisos e sem afeta-
ção, os dois bailarinos manipulam diversos
objetos de uso cotidiano. Nada é deixado ao
Novos significados parao corpo e para a dança
Panorama/Jérôme Bel: Objetos são centro da ação
SILVIA SOTER
acaso, há um forte sentido de composição no
agenciamento espacial e na relação dos ob-
jetos entre si. Escolhidos criteriosamente, mais
do que simples partners, os objetos estão no
centro da obra. Mesmo quando em total imo-
bilidade, estão impregnados de movimento.
No vazio da cena, eles ganham posições cam-
biantes e evocam ações potenciais que se as-
sociam. Quando a bola de futebol se relacio-
na com os patins de gelo, por exemplo, rolar e
deslizar se combinam e percebemos que pode
haver dança nesta confrontação imóvel e or-
ganizada. Um bailarino se põe em equilíbrio
instável sobre a bola de futebol, sobre a sua
cabeça pesa, literalmente, um dicionário Le
petit Robert, ícone da língua francesa: movi-
mento e significado. A dança toma corpo nos
objetos, enquanto os objetos tomam empres-
tado do corpo a intimidade com a dança.
Bel é exigente com seu espectador. Para
descobrir a riqueza que há em sua obra é
preciso deixar que o pensamento se organi-
ze em dança.
N
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 29 DE OUTUBRO • 1999 • 29 DE OUTUBRO • 1999 • 29 DE OUTUBRO • 1999 • 29 DE OUTUBRO • 1999 • 29 DE OUTUBRO • 1999
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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participação brasileira na segunda se-
mana do 8° Panorama RioArte de
Dança começou com a apresentação de
Formless, de Martha Soares. Com uma forte
marca do butô, esta obra investiga o corpo
desarticulado. As bailarinas lembram bone-
cas eróticas, marionetes abandonadas pelo
marionetista, tentando desenvolver suas
ações e deslocamentos por conta própria,
enquanto do alto caem fios de seda. É em
cima da segmentação que os movimentos se
constroem, na impossibilidade de se atingir
o equilíbrio vertical para, enfim, ganhar
autonomia. Martha Soares mantém sua pro-
posta até o fim, num espetáculo bem acaba-
do e com densidade dramática.
O exílio está no centro de Terras, de Esther
W eitzman. A coreógrafa apoia sua obra em
um forte sentido de conjunto e respiração. Os
deslocamentos do grupo ganham sentido de
território itinerante enquanto elementos in-
dividuais se afastam e se aproximam. Esther
tem no aproveitamento do espaço o ponto for-
te deste trabalho, mesmo quando a proposta
exige uma capacidade dinâmica que o grupo
não é sempre capaz de garantir.
Palco de discussãoda dança de hoje
Panorama/Brasileiros: Diferentes investigaçõesfemininas marcam a segunda semana do festival
SILVIA SOTER
D(K) IN MC, de Gícia Amorim, são dois
solos em um. No primeiro, Gícia explora o
lugar do acaso na organização, e no segun-
do, mais interessante, ela incorpora a influên-
cia da gestual cotidiana à primeira lingua-
gem. Na forma de composição e na quali-
dade de movimentação, se reconhece a pre-
sença do universo de Merce Cunningham,
referência forte demais que dificulta a
transformação deste material em algo
mais pessoal.
Cristina Moura, presença marcante no
Panorama do ano passado, no Les Ballets C.
de la B., volta este ano como coreógrafa com
Pourquoi c’est toujours moi. Dividindo o
palco com a engraçada Tamayo Okano, Cris-
tina faz um exercício coreográfico aos mol-
des do C. de la B., com passagens delicadas
e divertidas.
Em Alaska, de Andréa Maciel, pela pri-
meira vez nesta semana, homens e mulhe-
res se encontram no palco do Panorama.
Espetáculo desenvolvido a partir do exer-
cício apresentado no ano passado, Alaska
discute em cena o efeito do frio. Ao explo-
rar gestos contidos do corpo congelado,
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 1 DE NOVEMBRO • 1999RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 1 DE NOVEMBRO • 1999RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 1 DE NOVEMBRO • 1999RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 1 DE NOVEMBRO • 1999RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 1 DE NOVEMBRO • 1999
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
3 3
Andréa Maciel circula por terreno desco-
nhecido já que sua dança se baseia, em
geral, na sua grande capacidade explosi-
va. Com momentos interessantes, em que
o derreter e o descongelar criam uma bela
qualidade tônica nos bailarinos, o fio con-
dutor de Alaska se encontra mais na am-
bientação cenográfica do que na coreo-
grafia em si.
Nesta oitava versão, o Panorama se afir-
ma como fórum de discussão sobre a dança
que se faz hoje, suas diversas superfícies de
contato e possibilidades de definição. Este
ano, a dança não só esteve presente no pal-
co, mas também nos produtivos encontros
teóricos e workshops. O festival vai encerran-
do o seu oitavo ano, confirmando seu lugar
de destaque no cenário carioca da dança.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Criadores aprofundampesquisas em cena
Panorama/Noite carioca: Conjunto não decepciona
SILVIA SOTER
esperada Noite carioca não decep-
cionou o público que lotou o Teatro
Carlos Gomes, anteontem, na última noi-
te do 8° Panorama RioArte de Dança. Em
Nato, da Cia. Dani Lima, a coreógrafa se
desliga de referências circenses e mergu-
lha fundo em outras possibilidades de sua
dança nas alturas. Neste trabalho, o tecido
é utilizado como suporte vertical, lugar de
retorno e repouso, cordão umbilical. Os
oito bailarinos, inicialmente presos ao
alto, ao tocarem o chão, buscam no outro a
ilusão da completude, se encontram em
pares, para, em seguida, se recolherem na
solidão do tecido. A música ao vivo, de
Felipe Rocha, aumenta o clima envolvente.
Dos filhos deste solo és mãe gentil, pátria
amada, Brazil, de João Wlamir, começa
como uma provocação em torno do hino e
da bandeira nacional. A pedido de um apre-
sentador, a plateia se levanta para cantar o
hino, enquanto, em cena, a truculência é re-
presentada pelas contorções de um haltero-
filista. Pelo nível da provocação inicial, se
espera um espetáculo à altura deste primei-
ro impacto. No entanto, não há uma propos-
ta clara e o coreógrafo faz um trabalho des-
costurado e gratuito, que desperdiça a bela
presença de Renata Versiani.
O Atelier de Coreografia, companhia
dirigida por João Saldanha, fechou com
competência a última noite do Panorama.
Primeiro foi a vez de Um só trio, coreo-
grafia assinada por Frederico Paredes. Três
bailarinas (Laura Sämi, Olívia Secchin e
Isabel Stewart) partilham o espaço da cena
numa partitura coreográfica bem constru-
ída e muito bem dançada. É interessante
perceber que o coreógrafo, cocriador da
Cia. Ikswalsinats, já possui elementos pró-
prios à sua linguagem gestual, reconhecí-
veis nesta obra.
Três meninas e um garoto, de João Sal-
danha, é um relato delicado e íntimo. Em off,
a presença do jornalista João Saldanha, pai
do coreógrafo, aumenta o clima pessoal do
solo dançado por Marcelo Braga.
A cenografia e a iluminação fecham o
espaço, criando uma mancha vermelha que
delimita as possibilidades de deslocamen-
to do bailarino. Marcelo Braga realiza com
sutileza e inspiração sua dança solitária,
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 2 DE NOVEMBRO • 1999• 2 DE NOVEMBRO • 1999• 2 DE NOVEMBRO • 1999• 2 DE NOVEMBRO • 1999• 2 DE NOVEMBRO • 1999
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
3 5
numa coreografia que se apoia na simplici-
dade e na clareza da movimentação.
A Noite carioca mostrou que a criação
coreográfica exige um compromisso sério
e rigoroso, que passa pelo aprofundamento
das questões colocadas em cena e pela com-
preensão de que a dança é algo mais do que
uma simples sucessão de passos.
Durante duas semanas de intenso tra-
balho, 18 companhias desfilaram pelo
palco do Teatro Carlos Gomes, além das
mesas redondas, workshops e master clas-
ses. Apesar do orçamento reduzido deste
ano, o Panorama manteve o compromis-
so com a qualidade dentro da variedade
e trouxe para cena olhares múltiplos e
manifestações diversas. Num ano marca-
do por poucas estreias cariocas, o Pano-
rama concentrou o que há de novo na
dança do Rio de Janeiro.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
3 6
O mito de Antígonaolhado pela metade
Passion: Obadia só mostra a visão de Creonte
SILVIA SOTER
pós 20 anos de parceria na criação
coreográfica, Joëlle Bouvier e Régis
Obadia, pela primeira vez, assinam obras in-
dependentes. Em estúdios separados, com
equipes diferentes, os dois criadores do
L’Esquisse se debruçaram sobre o mito de
Antígona, fechando, assim, um ciclo de pes-
quisa sobre a tragédia de Sófocles. Esta
produção paralela resultou em Fureurs
e Passion, dois espetáculos aparentemente
autônomos, realizados por Bouvier e Obadia,
respectivamente. Apesar da separação no
processo de criação, os dois espetáculos têm
sido apresentados ao público, em sequência,
numa mesma noite. Infelizmente, o público
carioca não foi contemplado com as duas
criações, assistindo somente a Passion, ante-
ontem à noite, no Teatro Odylo Costa Filho,
na Uerj, dentro do Festival de Dança do Rio.
Nesse espetáculo, Obadia discute, atra-
vés de Antígona, a questão do poder e de
suas diferentes formas de abuso. Na concep-
ção do coreógrafo, os homens estão no cen-
tro de Antígona. O palco se transforma em
arena onde Obadia, na pele de Creonte, con-
trola a cena e manipula, literalmente, as
personagens femininas. A ambientação e os
figurinos sugerem o caráter atemporal do
mito, buscando o que pode haver de atuali-
dade em Antígona. O coro de anciãos con-
firma em eco os gestos de Creonte. As dife-
rentes personificações de Antígona surgem
como fantasmas da mente deste Creonte
contemporâneo, mulheres-objeto sem o po-
der da palavra ou do grito, mesmo quando o
microfone lhes é oferecido. A voz do meni-
no Pierre-Jean Camillo serve de contrapon-
to à atmosfera de opressão e é responsável
por belos momentos do espetáculo.
Com exceção da forte presença de Régis
Obadia como Creonte, o elenco masculino
não sustenta sua participação com o vigor
necessário. As três bailarinas imprimem be-
leza e sensualidade aos diferentes momentos
desta Antígona provocante, porém submissa.
O caráter trágico se encontra na impos-
sibilidade de conciliar duas verdades, duas
visões, dois projetos antagônicos. Ao se co-
lar à voz de Creonte, Passion traz apenas
metade da obra. Cabe ao público carioca
imaginar o olhar que oferece Fureurs, a co-
reografia assinada por Joëlle Bouvier.
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 10 DE NOVEMBRO • 1999RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 10 DE NOVEMBRO • 1999RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 10 DE NOVEMBRO • 1999RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 10 DE NOVEMBRO • 1999RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 10 DE NOVEMBRO • 1999
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
3 7
Um bompresente de Natal
ROBERTO PEREIRA
volta do balé O quebra-nozes (em
cartaz mais duas semanas) ao palco
do Theatro Municipal do Rio de Janeiro
garante a possibilidade de contar com um
dos símbolos mais representativos do espí-
rito natalino em quase todo o mundo. Tal
como a já popular árvore de Natal, este balé
já faz parte de um ritual de comemorações
há mais de um século e passa agora também
como uma luva à louvável proposta de Da-
lal Achcar, diretora do teatro e sua coreó-
grafa, de formação de um público para este
tipo de espetáculo.
Sua estreia, na última sexta-feira, foi es-
pecial. Os primeiros bailarinos proporcio-
naram à plateia momentos de perfeição téc-
nica e exata medida de um estilo nobre que
o balé requer. Cecília Kerche e Marcelo
Gomes formaram um par coeso, elegante.
Ela mostra um amadurecimento ímpar e
sua carreira e faz uso de apurada técnica e
de suas belas facilidades físicas para com-
por uma Fada Açucarada perfeita. Já Mar-
celo Gomes, ainda muito jovem, prova que
é dono de um porte nobre imprescindível
aos príncipes dos grandes balés de repertó-
rio e sua dança deixa que se observe a ple-
na potencialidade em vir a ser um grande
primeiro bailarino.
Renata Versiani e Thiago Soares, na
Dança Espanhola do segundo ato, encabe-
çam a lista de ótimos solistas da casa e pro-
vam que novas gerações de primeiros bai-
larinos estão sendo muito bem preparadas
dentro da companhia. Vale ainda citar o
desempenho do corpo de baile e das ótimas
participações dos alunos da Escola Maria
Olenewa, principalmente no primeiro ato
como os ratinhos. Esta sim é uma formação
sólida de bailarinos que desde cedo têm
oportunidade de pisar no palco e conviver
com bailarinos já formados.
Entretanto, tal como a árvore de natal, O
quebra-nozes sempre corre o risco de esva-
ziar-se como símbolo e se tornar mero en-
feite. Causa disso é o excesso. É neste limiar
de figurino e cenário que viram “fantasia”,
para usar um termo empregando indistin-
tamente por pequenas escolas de dança em
seus espetáculos de fim de ano, que trafegam
as criações de Jose Varona. Se acerta no pri-
meiro ato, compondo uma bela sala onde a
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRASEXTA-FEIRASEXTA-FEIRASEXTA-FEIRASEXTA-FEIRA • • • • • 33333 DE DE DE DE DE DEZEMBRODEZEMBRODEZEMBRODEZEMBRODEZEMBRO • • • • • 19991999199919991999
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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festa de natal acontece, e lançando mão de
ótimos efeitos especiais, erra a mão no
segundo ato, tanto no cenário quanto na
maior parte dos figurinos. Principalmente
na tão popular Valsa das flores, o quase
excesso de cores e detalhes chega a compro-
meter a coreografia acertada de Dalal
Achcar. A qui, a exuberância natalina já está
na música e na dança e qualquer outro elemento
cênico deve apenas contribuir para esta coe-
são coreográfica, sem roubar-lhe a atenção.
Sem dúvida este foi um grande presen-
te de Natal para os cariocas. E até mesmo
esses pequenos excessos permitem que se
pergunte se não vale mesmo a pena pro-
porcionar ao público momentos tão mági-
cos, seduzindo-o com cores e formas den-
tro deste imaginário que o Natal recria to-
dos os anos.
Formação de plateia precisa destes
recursos, claro. Mas, tratando-se de esva-
ziamento de símbolos, tal como a árvore
de Natal que vira enfeite, espera-se que
este balé possa servir como um convite
para que os olhos do público se tornem
cada vez mais aguçados para os espetácu-
los de seu Theatro Municipal. E isto, mais
do que qualquer outra coisa, é uma obri-
gação que pode também virar um presen-
te de Natal.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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2000 CRÍTICAS
JORNAL DO BRASIL – 25 DE MARÇO DE 2000A hora de sair do corpo
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO – 8 DE ABRIL DE 2000Encontro de épocas ilustrado pelo contraste entre força e romantismo
SILVIA SOTER
O GLOBO – 8 DE ABRIL DE 2000Acertos e ruídos em dois diálogos com o teatro
SILVIA SOTER
O GLOBO – 22 DE ABRIL DE 2000A afinação de várias influências
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL – 1 DE MAIO DE 2000Crescimento evidente
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO – 6 DE MAIO DE 2000Ator descobre a geometria do espaço
SILVIA SOTER
O GLOBO – 26 DE MAIO DE 2000Emoção do flamenco em atmosfera clean
SILVIA SOTER
O GLOBO – 7 DE JUNHO DE 2000Genialidades coreográficas a serviço do amor
SILVIA SOTER
O GLOBO – 10 DE JUNHO DE 2000Recursos evidenciam fragilidade da dança
SILVIA SOTER
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
4 0
O GLOBO – 4 DE JULHO DE 2000Danças que coabitam mas não se misturam
SILVIA SOTER
O GLOBO – 14 DE JULHO DE 2000Dança feita de ideias, corpos e indignação
SILVIA SOTER
O GLOBO – 17 DE AGOSTO 2000Trilha de Arnaldo Antunes inaugura novos caminhos físicos e urbanos
SILVIA SOTER
O GLOBO – 22 DE SETEMBRO 2000A experiência da dança como vertigem
SILVIA SOTER
O GLOBO – 19 DE OUTUBRO DE 2000Plischke sacode a percepção do espectador
SILVIA SOTER
O GLOBO – 27 DE OUTUBRO 2000Distintas artes e culturas ganham novo território
SILVIA SOTER
O GLOBO – 31 DE OUTUBRO DE 2000Panorama se firma como palco do debate sobre dança
SILVIA SOTER
O GLOBO – 27 DE NOVEMBRO DE 2000Novos balés de Béjart provocam saudades das criações dos anos 70
SILVIA SOTER
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
4 1
A hora de sairdo corpo
Assinatura impressa no outro
ROBERTO PEREIRA
alvez a questão mais pertinente para
quem acompanha a trajetória da bai-
larina e coreógrafa Ana Vitória, colocada
em seu mais novo espetáculo 1, segundo...,
estreado na quinta-feira, seja a questão da
assinatura. Essa é a pergunta que hoje se faz
quando a construção de um vocabulário em
dança esbarra naquilo que facilmente seria
chamado de repetição.
A pesquisa que Ana Vitória traz em sua
dança é uma pesquisa assinada em seu cor-
po. Desde que decidiu não mais trabalhar
em solos e construir sua linguagem de mo-
vimentos em outros corpos, a coreógrafa
experimentou o desafio da tradução: como
aquele outro entende o que antes estava
apenas em mim? Passado o susto, o que se
vê agora é um quase domínio conquistado
de ver o outro dançando sua assinatura. E é
justamente aí que nasce um outro perigo.
A dança, basicamente frontal, mas, mesmo
assim, coreograficamente bem resolvida de
Ana Vitória, traz como marca uma constru-
ção de espaço alojada em seu próprio corpo.
Não é um espaço-fora, é um espaço na exati-
dão muscular, cineticamente preciso, que faz
do corpo que dança o lugar de gestos peque-
nos, milimetricamente eficazes. A coreógrafa
já mostrou saber dominar este recurso, que faz
sua dança ser reconhecida como sua. Talvez
agora seja justamente o momento de ela no-
vamente experimentar o desafio de um não
saber, apenas para ampliar seu vocabulário.
Por isso mesmo um dos pontos altos do
espetáculo seja o solo da bailarina Andréa
Bergallo. Única integrante da formação ini-
cial da companhia, Bergallo movimenta-se
segura pelas minúcias anavitorianas, conse-
guindo agora ter a vantagem de ter como
seu o movimento. Os outros dois bailarinos,
Mariana Lobato e Cláudio Ribeiro, excelen-
tes, carecem justamente deste equilíbrio e
isto, com certeza, é mera questão de tempo.
E este equilíbrio talvez deva se alcança-
do também através de outros elementos
importantes do trabalho desta coreografia,
como a trilha sonora (que um dia deveria
ser especialmente composta para ela) e os
figurinos, cujo grande volume contrasta com
a fineza do movimento.
Hoje, na dança contemporânea, poder
ler no corpo do bailarino a ideia do coreó-
grafo é tarefa que deve levar em conta a
pluralidade coevolutiva deste corpo. E des-
ta ideia, Ana Vitória, neste seu novo espetá-
culo, prova que aprendeu esta lição.
T
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • SÁBADO SÁBADO SÁBADO SÁBADO SÁBADO • 25 DE • 25 DE • 25 DE • 25 DE • 25 DE MARÇOMARÇOMARÇOMARÇOMARÇO • 2000 • 2000 • 2000 • 2000 • 2000
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Encontro de épocas ilustrado pelocontraste entre força e romantismo
Balé de Hamburgo: Em Sylvia, Neumeierbusca expandir seu vocabulário
SILVIA SOTER
em sombra de dúvida, o Balé de Ham-
burgo, sob a direção de John Neumeier,
é sinônimo de qualidade. A companhia alia
domínio técnico irretocável com uma bela
presença cênica. A temporada no Municipal
se encerra hoje, com a apresentação de três
coreografias.
Sylvia, primeiro programa da turnê brasi-
leira, apresentado na quinta-feira, é uma re-
leitura do balé homônimo do coreógrafo fran-
cês Louis Mérante, com música de Delibes,
que estreou na Ópera de Paris em 1876. No
original, Sylvia, ninfa de Diana, a caçadora, se
divide entre a fidelidade à castidade guerrei-
ra de Diana e o amor por Aminta. Neumeier,
como já havia realizado em A bela adormeci-
da, traz referências contemporâneas para a
cena e, sem a preocupação de manter-se fiel à
narrativa, transforma a ninfa em atleta que se
divide entre a força e o abandono ao amor. Os
cenários e figurinos de Yannis Kokkos refor-
çam a localização da ação nos dias de hoje.
Em dança, cada vez que uma peça de re-
pertório é remontada, pode-se considerar que
há uma releitura. Por mais fiel que a remon-
tagem se pretenda, são corpos de outros bai-
larinos que serão atravessados pela coreo-
grafia e que traduzirão para o público o en-
contro entre dois tempos: o momento da cri-
ação da peça e o instante da cena. Este tal-
vez seja o ponto mais delicado e o mais inte-
ressante do espetáculo de Neumeier. É evi-
dente que o coreógrafo investe seriamente
na busca da expansão de seu vocabulário
coreográfico. No primeiro ato, a movimenta-
ção das caçadoras e de seus arcos imprime
uma tonicidade especial no trabalho de bra-
ço das bailarinas. O contraste entre a força
do gesto concreto dos arcos e os ports-de-bras
românticos do solo de Diana ilustra este en-
contro de épocas na própria técnica clássica.
No entanto, os cenários despojados não
alcançam a quase abstração pretendida.
Apesar de um belo uso das cores na ilumi-
nação, a presença das árvores e a lua proje-
tada no telão servem, paradoxalmente,
como excesso de referências. Os figurinos,
principalmente nos segundo e terceiro atos,
buscam situar de modo redundante a ação.
Sylvia, de John Neumeier nos mostra, em
vários momentos, que o distanciamento das
referências do balé original é apenas apa-
rente. Ainda existe a busca de traduzir a
história para se fazer compreender. Se, mui-
tas vezes, importantes peças do repertório
clássico tiveram suas entranhas revisitadas
por coreógrafos contemporâneos, em Sylvia
é, sobretudo, na superfície que o novo habita.
S
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SÁBADO • 8 DE ABRIL • 2000RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 8 DE ABRIL • 2000RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 8 DE ABRIL • 2000RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 8 DE ABRIL • 2000RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 8 DE ABRIL • 2000
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Acertos e ruídos em doisdiálogos com o teatro
SILVIA SOTER
Dança Brasil investiga neste ano o en-
contro entre a dança e o teatro. Neste
sentido, o programa de estreia é exemplar:
Slices, de Renata Mello, e A solidão procla-
mada, de Sandro Borelli, já apontam para
importantes e arriscados aspectos dessa re-
lação delicada.
Renata Mello abre a noite se dirigindo ao
público e colocando os alicerces da questão
conceitual que se apresenta: quando e como
dança e teatro se articulam. Em Slices, fusão
de dois solos da coreógrafa e intérprete, Re-
nata mergulha mais uma vez na banalidade
das prosaicas situações cotidianas. A utiliza-
ção frontal do espaço da cena cria uma apro-
ximação entre palco e plateia e, aos poucos,
os diferentes solos vão sendo transformados
pela presença de um outro, ora o público cúm-
plice, ora desdobramentos do corpo da intér-
prete. Aqui a palavra falada é tratada ape-
nas como mais um recurso de que a artista se
apropria com segurança, já que é através de
seu corpo que a cena fala. Com humor e pre-
cisão, ela realiza um espetáculo simples e
competente. A tentativa de enquadrar seu
trabalho em dança, teatro ou na fusão de
ambos interessa pouco. O ótimo resultado não
exige explicações.
Já em A solidão proclamada, de Borelli,
em vez de libertador, o diálogo entre dança
e teatro revela seus limites. Um pequeno
aquário em cena, onde dois peixes doura-
dos nadam em círculo, serve como metáfo-
ra da própria obra. A fragilidade do texto e
o compromisso com uma linha narrativa
funcionam como prisão. As intérpretes se
apoiam numa carga dramática que não se
sustenta, e a dança – ou melhor, sequências
coreográficas que se encaixam desajeitada-
mente nos intervalos do texto – se perde.
Aqui, dança e teatro se revezam em cena,
permanecendo universos estanques.
O
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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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A afinação de várias influênciasFulyô/Dos à Deux: Dupla mostra amadurecimentona relação entre teatro, dança, música e mímica
SILVIA SOTER
iversos resultados são produzidos apartir do encontro do teatro com as
outras artes da cena. Na terceira semana doDança Brasil, que este ano investiga as fron-teiras entre a dança e o teatro, Dos à Deux éum exemplo competente de uma possível in-
terface: o Teatro Gestual. O espetáculo tem
apresentações hoje e amanhã no Centro
Cultural do Banco do Brasil.
Fulyô, embrião de um espetáculo comestreia marcada para outubro de 2001, re-
sultado da pesquisa de André Curti e de Ar-
tur Ribeiro em hospitais psiquiátricos, abre a
noite abordando o universo da loucura. Da
caracterização dos intérpretes à ambienta-
ção cenográfica, tudo em Fulyô é cuidadocom requinte. Como intérpretes, André Cur-
ti e Artur Ribeiro exploram seus inúmeros
recursos corporais com domínio absoluto. Por
seus corpos desfilam a mímica, a música, o
sapateado; e a dança surge apenas como mais
um dos elementos investigados.
Mas em Fulyô, o maior impacto se deveao perfeito uso da musicalidade dos gestos,
em que cada movimento, silêncio ou ruído
contribui para a construção de uma bela e
sofisticada partitura gestual. Teatro, dança,
música e mímica tecem interfaces porosas.Depois que Fulyô termina, deixando claroque é apenas um work in progress, fica a sen-sação de que ainda há muito por vir.
Em seguida, é a vez de Dos à Deux, es-petáculo completo, que deu nome à compa-nhia, já tendo sido apresentado em váriospaíses. O fato de assistir aos dois trabalhosem seguida levanta, inevitavelmente, algu-mas questões.
Com referências explícitas a EsperandoGodot, de Beckett, dois vagabundos se pro-vocam enquanto esperam. Em Dos à Deux,há a preocupação de delinear as personagense suas relações. O espetáculo se apoia naexploração exaustiva dos gestos realizadospelas personagens na espera. Nada é gra-tuito, e nada se desvia desta rigorosa pes-quisa. No entanto, em Dos à Deux, uma certaregularidade se instala, sobretudo no uso damúsica, que sempre intervém nos momentosde maior liberdade de movimentação, redu-zindo o impacto que a dupla de criadores eintérpretes imprime na plateia. No promis-sor Fulyô, o perfeito trânsito entre teatro,dança, música e mímica mostra que, feliz-mente, esta questão já pôde ser resolvida.
D
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE ABRIL • 2000RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE ABRIL • 2000RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE ABRIL • 2000RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE ABRIL • 2000RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE ABRIL • 2000
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Crescimento evidente
ROBERTO PEREIRA
uem assistiu ao espetáculo Truveja pra
nóis chorá da Verve Cia. de Dança nes-te fim de semana, dentro do evento DançaBrasil, no Centro Cultural do Banco do Bra-sil, teve a oportunidade de presenciar um dosbons momentos em que informação e talen-to funcionam como dança. Para quem aindaacompanha a jovem carreira da companhia,desde a última vez que esteve na cidadecom o frágil Terral, em 1998, percebe-secomo saltos evolutivos resultam desta mis-tura de informação e talento.
Se o Dança Brasil deste ano aposta nadiscussão sobre as fronteiras borradas deteatro e dança, encontra neste espetáculo umcampo bastante profícuo de análise. Ali es-tão mesmo o teatro, o circo e, sobretudo, ocinema mudo, mas costurados com uma cer-ta dramaturgia ainda ingênua, que denotaum processo de experimentação. Daí a im-portância da informação.
Falar de informação numa cidade comoCampo Mourão, interior do Paraná, é levarem conta todas as intempéries que permeiama distância do famoso eixo Rio-São Paulodo resto do Brasil. Isto, em dança, deve serainda lamentavelmente elevado ao cubo.Por isso mesmo que assistir a um espetácu-
lo como este é, sem dúvida, uma surpresa.Aí, a importância do talento.
Truveja pra nóis chorá aposta nesseespaço fronteiriço entre teatro e dança,mas descobrindo como isso deve ser acimade tudo uma discussão que acontece nocorpo. Desse modo, Fernando Nunes, queassina a concepção e a direção, é tanto maisfeliz quanto mais economiza nos movimen-tos, deixando que aconteça ali, explosiva-mente, a dramaturgia. Justamente por isso,deveria se livrar aos poucos de um resquí-cio de coreografia “moderninha” de con-tato-improvisação que assolou a produçãodas companhias brasileiras nos últimostempos. É no gesto que serve como materi-al de dança que o teatro respira livre, semservir de legenda.
Assim, neste espetáculo, com seus ótimosbailarinos, com cenário e luz certeiros, a cul-tura popular do interior do Brasil, tema de pes-quisa, é tratada com a ingenuidade da qual elamesma é feita. Qualquer material estranho aisso torna-se desnecessário. Mas reparar nis-so, aprimorando materialidades de dança e te-atro no próprio corpo, como já se pode consta-tar numa companhia como a Verve, é pura-mente questão de tempo. Felizmente.
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JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 1 DE MAIO • 2000• SEGUNDA-FEIRA • 1 DE MAIO • 2000• SEGUNDA-FEIRA • 1 DE MAIO • 2000• SEGUNDA-FEIRA • 1 DE MAIO • 2000• SEGUNDA-FEIRA • 1 DE MAIO • 2000
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Ator descobre ageometria do espaço
Pra ver do céu: Luiz Carlos Vasconcelos foivisivelmente seduzido pelos encantos da dança
SILVIA SOTER
Dança Brasil este ano vem mostran-do ao público carioca a pluralidade de
manifestações produzidas no momento em quea dança e o teatro abrem mão de suas especi-ficidades e se contaminam em cena. Dentroda diversidade desses resultados, alguns pon-tos de convergência podem ser identificados:a dança se autoriza a explorar o texto e a pa-lavra falada, a narrativa se permite contarcom a expressão do corpo enquanto suporteou ainda dança e teatro se revezam em diálo-gos isolados. Neste sentido, em Pra ver do céu,
Luiz Carlos Vasconcelos trafega na contramão
das propostas até agora vistas nesta edição do
Dança Brasil, que acontece no CCBB. Constru-
ído por encomenda do festival, Pra ver do céu
mostra o namoro de um homem de teatro com
a dança. O diretor, aqui coreógrafo, aceitou se-
riamente a ousada proposta da curadoria do
Dança Brasil e mergulhou no universo da dan-
ça como um novo campo de possibilidades.
Na base de Pra ver do céu está a geome-
tria do espaço. Partindo de uma rigorosa es-
trutura diagramática, os bailarinos Gera
Dias, Verusya Correia e Yaelle Penkhoss
constroem suas danças. A o diretor coube a
tarefa de extrair de cada bailarino suas
marcas pessoais, ressaltando suas qualida-des tônicas particulares. A partir do materi-al dos bailarinos surge, então, um largo vo-cabulário de pequenos e grandes gestos queora se destacam e se afastam, ora se esbar-ram em simultaneidade. Breves momentosde tensão dramática resultam de duos e tri-os. A presença de Gera Dias e Verusya Cor-reia contribui com eficiência para o espetá-culo. Yaelle Penkhoss, menos madura e ex-periente que seus pares, não chega a com-prometer a boa qualidade da interpretação.
Tendo conseguido escapar do risco daredundância entre teatro e dança, Pra ver
do céu esbarra na difícil – embora aparen-temente óbvia – relação entre a dança e amúsica. Ponto mais frágil do espetáculo, atrilha sonora de Raul Teixeira, a partir damúsica original de Vânia Dantas Leite, ser-ve como referência forte demais.
Luiz Carlos Vasconcelos, ator, palhaço ediretor, se deixou, visivelmente, seduzir pe-los encantos da dança. O encontro entredança e teatro se faz aqui, inevitavelmente,na trajetória deste agora coreógrafo. Discus-sões estéreis à parte, Pra ver do céu é umespetáculo de dança, de boa dança.
O
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SÁBADO • 6 DE MAIO • 2000RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 6 DE MAIO • 2000RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 6 DE MAIO • 2000RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 6 DE MAIO • 2000RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 6 DE MAIO • 2000
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Emoção do flamencoem atmosfera clean
Sensaciones: Espetáculo enfatiza sensualidade
SILVIA SOTER
uando as bailarinas do Sara Baras Bal-
let Flamenco entram em cena, a at-
mosfera já está criada pela forte e envolven-
te música que abre Sensaciones. No fundo do
palco, a presença dos músicos reserva para
as bailarinas uma faixa frontal de palco
onde a dança vai se desenvolver. Guitarras
flamencas, percussão, um violino e vozes
dialogam todo o tempo com a música dos
sapatos das bailarinas. São oito músicos e
oito bailarinas, ilustrando a igualdade de
importância entre a música e a dança.
Sara Baras acredita no diálogo entre a
tradição e o contemporâneo. Na primeira
parte do espetáculo, o maior impacto se dá
pela beleza despojada da cena. Na busca
de incorporação de referências contempo-
râneas na dança de Sara Baras, não há lu-
gar para excessos. A coreógrafa parece res-
saltar no flamenco apenas o que considera
essencial: ritmo, dramaticidade, improvisa-
ção e, acima de tudo, sensualidade. Vestidas
de calças negras, as bailarinas revelam força
e tensão logo nas primeiras danças. Nos seus
corpos, masculino e feminino, juventude e
maturidade, tradicional e atual, criam um
contraste interessante.
O uso de tecidos e cores é um dos pontos
centrais de Sensaciones. No preto dos figuri-
nos e na luz branca iniciais, os tecidos e as sai-
as de cor – verdadeiros partners do flamenco
– são progressivamente introduzidos, numa
espiral colorida que explode na última cena.
Sara Baras procura extrair toda plasticidade
possível de cada elemento, numa composição
minuciosa. Os figurinos, embora eficientes na
primeira parte do espetáculo, ganham cores
mas perdem a delicadeza inicial.
Enquanto intérprete, Sara Baras mostra
ter domínio absoluto de seu carisma e de seu
poder de sedução. O público responde à sua
presença em cena, como a orquestra respon-
de ao maestro. Sensaciones funciona e seduz
exatamente pela capacidade de conciliar a
intensidade e a emoção do flamenco com
uma estética clean e atual.
Q
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 26 DE MAIO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 26 DE MAIO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 26 DE MAIO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 26 DE MAIO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 26 DE MAIO • 2000
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Genialidades coreográficas aserviço do amor
SILVIA SOTER
orgos Loukos, diretor artístico do Bal-
let da Ópera de Lyon, acertou em
cheio na combinação das duas obras apre-
sentadas, no fim de semana, no Theatro
Municipal. Petite mort, de Jirí Kylián, e Car-
men, de Mats Ek, fazem um belíssimo par,
abordando, com a genialidade destes dois
coreógrafos contemporâneos, os inevitáveis
encontros entre Eros e Thanatos.
Petite mort, metáfora de orgasmo na lín-
gua francesa, já foi vista pelo público cario-
ca dançada pelo NDT, companhia dirigida
pelo coreógrafo. Em cena, seis homens, seis
mulheres, um enorme tecido e seis espadas
desfilam os encontros entre os sexos opos-
tos. Construída com precisão milimétrica e
sujeita à riqueza da música de Mozart, Peti-
te mort é uma obra sensual e exigente, em
que cada movimento deve ser realizado
com o domínio e o risco de uma estocada
fatal. Infelizmente, na noite de sábado, a
companhia demorou a atingir a precisão
imposta pela coreografia de Jirí Kylián.
Já em Carmen, o Ballet da Ópera de
Lyon pôde aproveitar suas inúmeras quali-
dades e não decepcionou. Apoiado na evi-
dência de que a versão de Bizet já faz parte
do imaginário coletivo, Mats Ek se liberta
de qualquer compromisso com a construção
narrativa formal, usando as personagens de
Carmen como verdadeiros arquétipos. Car-
men, como sempre, simboliza sedução, inde-
pendência e liberdade. Porém aqui, o com-
petente Mats Ek transforma estas ideias em
pura dança e as imprime em cada corpo e
em cada gesto dos bailarinos. Se Petite mort
se apoia na precisão dos gestos do amor,
Carmen investe no amor em fluxo livre de
movimento. A obra de Mats Ek prima pela
belíssima ocupação da cena, em que cada
gesto lançado deixa uma marca que se pro-
paga e se prolonga no espaço.
Y
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 7 DE JUNHO • 2000RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 7 DE JUNHO • 2000RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 7 DE JUNHO • 2000RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 7 DE JUNHO • 2000RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 7 DE JUNHO • 2000
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Recursos evidenciamfragilidade da dança
Ghazal: Estudo coreográfico em segundo plano
SILVIA SOTER
hazal, que está sendo apresentado até
amanhã no Teatro Carlos Gomes, che-
ga como merecida celebração dos 20 anos
da Companhia Regina Miranda e Atores
Bailarinos. Se hoje ela consta no hall das
companhias apoiadas pela Prefeitura do Rio,
Regina Miranda e seus Atores Bailarinos
resistiram, com coragem e qualidade, a
momentos mais sombrios. Inspirada na
poesia do persa Jelalludin Rumi (século
XIII) e com o apoio da vídeo-instalação de
Shalom Gorewitz, Ghazal joga com a ideia
da permanência através do tempo.
No início do espetáculo, uma cortina
transparente vai, delicadamente, revelando
rostos conhecidos do cenário da dança
carioca. Para este espetáculo-comemoração,
Regina Miranda convidou antigos colabo-
radores para partilhar a cena com seus Ato-
res Bailarinos. A princípio, toda contribuição
se justificaria pela importância da data: as
imagens de Gorewitz, a presença de convi-
dados ou, ainda, a elegância dos figurinos
com inspiração oriental, assinados pela pró-
pria coreógrafa. No entanto, infelizmente, a
dança não acompanha a riqueza dos recur-
sos utilizados em cena. E, em vez de contri-
buir para a festa, tantos aparatos só tornam
mais evidente a fragilidade da coreografia
de Regina.
A presença simultânea dos bailarinos e
das imagens de Gorewitz é uma proposta
arriscada. A desproporcionalidade entre a
tela de fundo e os corpos exigiria que a for-
ça dos intérpretes e da coreografia pudesse
ultrapassar o diferencial de escala. O que
não acontece. Nem Marina Salomon, uma
das melhores intérpretes da dança carioca,
consegue vencer esta barreira. Em muitos
momentos, a vídeo-instalação provoca ruí-
do em cena, e em outros, o vídeo se impõe e
dispensa a presença dos bailarinos.
A ideia interessante de receber baila-
rinos convidados se esvazia logo de parti-
da. Os figurinos marcam, com exagero, a se-
paração das funções entre a companhia,
que dança, e os convidados, que se tornam,
literalmente, figuras de fundo. Com exce-
ção da cena em que Regina Miranda, José
Paulo Corrêa e Marina Salomon dançam
juntos, ao som do piano de Maria Guilher-
mina, mãe da coreógrafa, a presença de
G
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 10 DE JUNHO • 2000 • 10 DE JUNHO • 2000 • 10 DE JUNHO • 2000 • 10 DE JUNHO • 2000 • 10 DE JUNHO • 2000
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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tantos convidados não se justifica. Este trio
de bailarinos, ícones da companhia, é res-
ponsável pelo único quadro em que a emo-
ção se tece em cena.
A coreógrafa, que usou a internet para
acompanhar, a distância, os trabalhos diá-
rios da companhia, parece ter colocado em
segundo plano o mais importante: aprovei-
tar a maturidade de 20 anos de trabalho
para investir em pesquisa rigorosa com o
objetivo de enriquecer seu vocabulário
coreográfico.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Danças que coabitammas não se misturam
O jardim io io ito ito: Comunicação com o público
SILVIA SOTER
companhia Montalvo/Hervieu se
ocupa, há três anos, do único centro
coreográfico nacional da região parisiense.
A convivência de várias raças e culturas –
nem sempre pacífica nos subúrbios de Paris
– se transforma na questão central do espe-
táculo apresentado no Theatro Municipal. O
jardim de io io ito ito é uma festa, como os
bailes que a companhia anima, periodica-
mente, em Crèteil, quando os participantes
mostram a sua dança.
O espetáculo se desenvolve em dois
planos: no fundo, um telão vertical no qual
a realidade é deformada pelo jogo de
sombras, pela ampliação de corpos que de-
safiam a gravidade, pela projeção de se-
res fantásticos. No palco, coabitam lingua-
gens cênicas variadas e bailarinos de ori-
gens diversas, afirmando sua identidade,
fazendo, com virtuosismo, apenas aquilo
que sabem fazer.
Se é fascinante reconhecer tantos es-
tilos e qualidades físicas diferentes é, no
entanto, curioso perceber que estas dan-
ças não se contaminam. Os figurinos
insistem nas cores primárias e servem
como paradigma da própria criação. No
O jardim de io io ito ito não há verde. Não
há cor secundária. Na dança de Montalvo/
Hervieu, não há, de fato, mistura ou mes-
tiçagem. A coabitação de diferentes cul-
turas se dá no palco, mas não se dá na
dança inscrita nos corpos. Enquanto no
palco, a impossibilidade da mestiçagem
se afirma, o suporte tecnológico cria, no
telão, maravilhosos seres híbridos, ima-
gem onírica da fusão das diferenças in-
transponíveis.
Apesar da repetição um pouco cansati-
va da estrutura que alterna imagens proje-
tadas e bailarinos se desafiando no palco,
O jardim de io io ito ito agrada. A facilidade
de comunicação do espetáculo com o pú-
blico em geral parece fazer parte de um
projeto maior: despertar num grande núme-
ro de espectadores o prazer de conviver
com aquilo que não é igual. Em uma França
onde o racismo assume proporções assus-
tadoras, O jardim de io io ito ito insiste em
reafirmar Vive la Différence!
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 4 DE JULHO • 2000RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 4 DE JULHO • 2000RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 4 DE JULHO • 2000RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 4 DE JULHO • 2000RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 4 DE JULHO • 2000
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Dança feita de ideias,corpos e indignação
Aquilo de que somos feitos: Lia Rodrigues acerta
SILVIA SOTER
ão intensas as emoções despertadas nosespectadores de Aquilo de que somos fei-
tos, espetáculo da Cia. Lia Rodrigues, em car-taz no Espaço Cultural Sérgio Porto, até opróximo dia 30. No cruzamento entre a per-formance dos anos 60, as artes plásticas e adança, Lia Rodrigues constrói um espetácu-lo inesquecível.
A nudez dos bailarinos, na primeira par-te do espetáculo, confirma a transparênciada proposta. Do programa, no qual é apre-sentado o balanço financeiro desta compa-nhia apoiada pela prefeitura, à cumplicida-de com o público, estabelecida pelos baila-rinos que orientam a plateia a achar umponto de vista, tudo é claro e pertinente.
Se num primeiro momento, a orientaçãodo público pelos bailarinos parece excessode controle em relação à plateia, em segui-da, torna-se evidente que a escolha de umbom ângulo ajuda o espectador a usufruir dasimagens com mais liberdade. Verdadeirasesculturas vivas, as formas construídas pelosbailarinos nus provocam sensações contra-ditórias, de intimidade e estranhamento.Como diante de um espelho facetado, cabeao espectador construir a integridade doscorpos que ele vê e vesti-los de significado.Aos poucos, a quase abstração dos corpos deAquilo de que somos feitos vai perdendo lu-gar para associações inevitáveis: a não fami-liaridade com um corpo descaracterizado deerotismo, a banalização da violência contra
o corpo, a morte. Numa época de relaçõesvirtuais, o corpo a corpo com estas questõesé inusitado e muito necessário.
Depois do silêncio fértil deste início, nasegunda parte do espetáculo, a dança e osbailarinos se vestem de música, de palavrasde ordem datadas e de slogans. Aqui, o es-pectador se vê bombardeado por frases co-nhecidas, imagens que se associam a outrasimagens, numa colagem de sentidos que ex-põe, com coragem e humor, o mundo contem-porâneo. Aqui, Lia Rodrigues explora peque-nas frases coreográficas e textos que invademe constituem, sem pedir permissão, o imagi-nário do homem neste final de século.
Os sete bailarinos, que assinam a criaçãocoreográfica ao lado de Lia Rodrigues e deDenise Stutz sabem explorar suas variadascompetências. Circulando com segurançaentre frases de movimento, palavra faladae canto, eles sustentam a intensidade neces-sária à proposta e imprimem suas marcaspessoais a cada momento em cena.
A música de Zeca Assumpção, utilizadade forma econômica e eficiente, tem efeitoimpregnante e constrói um elo entre estetrabalho e as criações anteriores da compa-nhia: Ma e Folia.
Resgatando a arte como espaço de inqui-etude, Aquilo de que somos feitos é mais uminvestimento sério desta excelente compa-nhia que lança, sobre o mundo, um olhar car-
regado de poesia e indignação.
S
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 14 DE JULHO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 14 DE JULHO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 14 DE JULHO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 14 DE JULHO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 14 DE JULHO • 2000
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Trilha de Arnaldo Antunes inauguranovos caminhos físicos e urbanos
O corpo: Sem perder a identidade, companhia mineiraexplora outras possibilidades coreográficas
SILVIA SOTER
maginar o Grupo Corpo como um corpohumano talvez ajude a entender o fun-
cionamento desta companhia, em seu pro-cesso de criação. Como no corpo humano, di-ferentes sistemas trabalham, contribuindo,cada qual com sua especialidade, para o mo-vimento e a manutenção da vida. Associan-do fazeres, sem uma hierarquia que privile-gie funções, o todo é muito mais do que umasimples soma das partes. A cada nova cria-ção, este corpo, composto de Rodrigo Peder-neiras, Paulo Pederneiras, Freuza Zechmeis-ter, Fernando Velloso, pelos 19 bailarinos eoutros colaboradores desta companhia mi-neira, se deixainvadir por um novo afeto: amúsica. Como toda paixão, a música modifi-ca a velocidade dos fluxos e subverte o bati-mento cardíaco e a respiração deste corpo.
O corpo, a mais recente criação desta
companhia, em cartaz em São Paulo e com
estreia marcada para dia 30 de agosto no Rio,
é produto do encontro entre o grupo mineiro
e a música de Arnaldo Antunes. Esta conta-
minação mútua resultou numa coreografia
de contrastes, como o preto dos figurinos so-
bre o vermelho da ambientação. A música e
a poesia de Antunes colocam o corpo como
tema central da trilha, cruzando suas inúme-
ras possibilidades de articulação. O eletrô-
nico e o acústico se combinam, permitindo
que este corpo/organismo descanse e suspi-re. Num pulsar tribal e eletrônico, a músicatransforma a brasileirice da movimentaçãodos quadris – marca registrada desta compa-nhia – em ondulações, às vezes, violentas dostroncos dos bailarinos, propondo novos cami-nhos físicos a serem explorados. Algumas ve-zes autômatos, outras vezes palavras pulsan-do, a coreografia destes corpos se deixa pe-netrar pelo imaginário urbano.
A relação de forte dependência entrea música e a dança é uma característicaconstitutiva do Grupo Corpo. No progra-ma desta temporada, 21 precede O corpo
e deixa claro, de modo quase didático, estaintensa parceria. Cada encontro destacompanhia com um nova composiçãomusical resulta numa experiência coreo-gráfica que é, simultaneamente, única esemelhante, já que guarda, dentro da di-ferença, traços de clara identidade.
Assim, O corpo, como já aconteceu comcriações anteriores do grupo, inaugura umnovo campo de exploração, sem deixar deafirmar, felizmente, sua bela assinatura.Essa assinatura não aprisiona a criação, masgarante qualidade e coerência a cada novaexperiência. Este corpo, arrebatado pela pai-xão, se deixa transformar, mas não abre mão
de ser o que é.
I
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 17 DE AGOSTO • 2000RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 17 DE AGOSTO • 2000RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 17 DE AGOSTO • 2000RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 17 DE AGOSTO • 2000RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 17 DE AGOSTO • 2000
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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A experiência dadança como vertigem
Salt: O coreógrafo Édouard Lock cria um jogode manipulação consentida, lírico e violento
SILVIA SOTER
historiadora Sally Banes associou di-
ferentes estéticas da dança à relação
que estas estabelecem com o chão, expres-
sa na escolha dos sapatos. O balé, na sua
busca da verticalidade, reduz o contato do
pé da bailarina com o chão ao limite, femi-
nino e acetinado, da sapatilha de ponta. Já a
dança moderna despe os pés, ampliando o
contato com a terra, enquanto a dança pós-
moderna garante, pelo uso do tênis, agilida-
de e força a seus impactos e deslocamentos.
Louise Lecavalier, bailarina emblemática
da companhia canadense La La La Human
Steps, hoje afastada (impossível esquecê-la),
foi a grande responsável pela difusão de seus
vertiginosos saltos/giros em trajetória hori-
zontal combinados ao duo botinha/joelheira
que invadiu a cena brasileira da dança con-
temporânea no final dos anos 80.
Mas Salt, último trabalho de Édouard Lock,
é uma prova contundente de que, neste final
de século, a investigação contemporânea em
dança se encontra muito além das classifica-
ções feitas a partir de leituras simples.
Aqui, Lock desbrava o universo de pos-
sibilidades da ponta, espinha dorsal da téc-
nica do balé clássico. Se a técnica da ponta
é recente na pesquisa de Lock, a repetição
à exaustão e a experiência da vertigem,
presentes neste trabalho, são marcas cons-
tantes na obra do coreógrafo.
Salt se organiza, basicamente, em uma
sucessão de duos, em que homens e mulhe-
res se encontram para um jogo de manipu-
lação consentida, ao mesmo tempo eróti-
co, lírico e violento. Sobre as pontas, cada
bailarina responde aos impulsos das mãos
intrometidas de seus partners. Por frações
de segundo, elas experimentam o eixo
para perdê-lo em seguida. A ponta se tor-
na um recurso de eficiência absoluta para
a irreversibilidade dos giros e dos desequi-
líbrios. Com um naipe de bailarinos de pri-
meiríssima linha, é no corpo a corpo que
tudo se joga.
A repetição da estrutura coreográfica
ganha nuances e variações pelas diferentes
intervenções da música, das imagens proje-
tadas, da excelente iluminação e do cená-
rio que, em composição primorosa, tecem
quadros de oposição e casamento entre o
acústico e o elétrico, entre luz e sombra,
entre o corpo longilíneo do clássico e a ver-
tigem contemporânea.
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE SETEMBRO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE SETEMBRO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE SETEMBRO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE SETEMBRO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE SETEMBRO • 2000
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
5 5
Plischke sacode apercepção do espectador
SILVIA SOTER
ffects, criação do alemão Tom Plis-
chke, inaugurou os trabalhos da nona
edição do Panorama RioArte de Dança, an-
teontem à noite, no Teatro Carlos Gomes,
trazendo a vanguarda para o centro da cena.
Affects é um rigoroso e metódico experi-
mento laboratorial, organizado a partir de
regras que se tornam previsíveis para o es-
pectador logo de partida. Não há truque ou
sedução.
Em Affects, Plischke traz para o corpo que
dança a tarefa de experimentar diferentes
palavras. Como ponto de partida, o coreó-
grafo vasculhou a memória da dança alemã,
buscando em Afectos humanos, obra da ex-
pressionista Dore Hoyer, não uma simples
referência histórica, mas um modus operan-
di. Nesse conjunto de solos, Hoyer investi-
gou a expressão física de diversas emoções
humanas como a honra, a vaidade, o medo
e o ódio. Em Affects, Plishke mergulha na
experiência física de ideias que afetam o
corpo contemporâneo, nesse final de sécu-
lo. Em cena, as palavras da dança expres-
sionista e aquelas da investigação contem-
porânea criam corporeidades distintas.
Mesmo antes de chegar à plateia, o es-
pectador é retirado da condição passiva de
receptor. A simultaneidade das imagens da
vídeo-instalação no foyer do teatro torna o
ato de escolher inevitável. Apresentando
fragmentos que, na memória, reconstituem
o todo, utilizando a repetição de gestos à
saturação, explorando a participação dos
diferentes sentidos na reconstituição da me-
mória, Plischke sacode a percepção do es-
pectador, provocando um misto de incômo-
do e encantamento.
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 19 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 19 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 19 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 19 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 19 DE OUTUBRO • 2000
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
5 6
Distintas artes e culturasganham novo território
SILVIA SOTER
ara a criadora francesa Maguy Marin,
não há mais separação possível entre
o fazer artístico e as ações sociais que ela e
sua companhia realizam junto à comunida-
de. Há três anos instalada em Rillieux-La-
Pape, subúrbio pobre de Lyon, para a Com-
panhia Maguy Marin criar e partilhar sua
dança com aqueles que têm raro acesso à
experiência artística apresenta igual impor-
tância. A tal ponto que no último ano, Ma-
guy Marin decidiu criar diferentes peças,
cada uma com apenas alguns membros de
sua equipe, garantindo, assim, que as ativi-
dades junto à comunidade não cessem nos
períodos de turnê. Quoi qu’il en soit, um quin-
teto de homens criado em 1999 e apresen-
tado no Panorama RioArte de Dança, é
produto direto dessa forma de pensar arte
e sociedade. Construído a partir de relatos
autobiográficos, escritos por cada um dos
intérpretes, a peça trata do exílio, da expe-
riência de ser (ou de se sentir) estrangeiro.
No palco, os cinco intérpretes de nacio-
nalidades diferentes falam de suas trajetó-
rias até aquele momento, se encontram e se
revezam no relato falado, na música e nas
sequências coreografadas de movimento. O
caráter íntimo e pessoal dos depoimentos
deixa o primeiro plano, para dar lugar a uma
espécie de identidade compartilhada. As
diferentes vozes, com seus sotaques e lem-
branças particulares, tecem um texto único.
Nesse texto, no corpo e na dança, memória
e cultura deixam suas inevitáveis marcas
como assinaturas.
Já May B., criação que projetou no mun-
do o nome de Maguy Marin, é um mergulho
fundo no universo banal de Beckett. Hesi-
tações, silêncios, gestos secretos e desloca-
mentos inúteis produzem um espetáculo
impactante pela riqueza de detalhes. Aqui,
é a falta de esperança que mantém as per-
sonagens num exílio sem fim.
Nas criações de Maguy, teatro, dança,
música e literatura borram fronteiras, pro-
duzindo um território no qual conviver com
as diferenças não é só uma possibilidade,
mas a única maneira de dar vida à arte.
P
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 27 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 27 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 27 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 27 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 27 DE OUTUBRO • 2000
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
5 7
Panorama se firmacomo palco do debate sobre dança
Entre pontos altos, ingresso baratoe programação rica
SILVIA SOTER
epois de duas semanas intensas e pro-
dutivas, terminou o Panorama RioAr-
te de Dança. Nessa nona versão do festival,
o Panorama investiu seriamente na constru-
ção de uma relação nova entre os espetácu-
los de dança e o público. Atividades gratui-
tas e ingressos a R$ 5 (R$ 2,50 para estu-
dantes) permitiram que o Teatro Carlos Go-
mes recebesse todas as noites um número
expressivo de frequentadores. Todos saíram
ganhando.
O exercício de pensar a dança hoje vazou
o espaço do palco e invadiu a plateia. Apos-
tando que a troca de informações e de im-
pressões entre artista e espectador é uma
etapa importante para elaboração e assimi-
lação diferenciadas da obra artística, o Pa-
norama organizou as “plateias-foyer”, oca-
sião em que público e criadores se encon-
traram para conversar. A iniciativa, quan-
do o desejo do público superou o cansaço
causado por uma programação às vezes lon-
ga demais, provocou discussões interessantes.
A participação internacional este ano foi
maior do que nas versões anteriores. Hoje,
o Panorama partilha boa parte de sua pro-
gramação com importantes festivais de dan-
ça contemporânea internacionais. Tom Plis-
chke, Xavier Le Roy, Vera Mantero são al-
guns nomes hoje onipresentes nos espaços
de discussão da dança europeia. Diversas
parcerias permitiram que o público carioca
tivesse acesso à vanguarda das danças fran-
cesa, alemã e portuguesa, trazendo alguns
exemplos da diversidade da pesquisa de
ponta da dança internacional. O Panorama,
junto com o festival Danças na Cidade,
evento que já faz parte do calendário ofi-
cial da dança portuguesa, trouxe pela pri-
meira vez ao Rio criadores de países de lín-
gua portuguesa. Antes tarde do que nunca.
Não menos importante, a vinda da Cia.
Maguy Marin brindou os cariocas com duas
obras de qualidade incontestável, deixando
a plateia extasiada.
Como nos anos anteriores, o Panorama
foi também ocasião para a estreia de novas
criações de coreógrafos cariocas. Este ano,
as peças das companhias independentes e
daquelas apoiadas pela Secretaria Munici-
pal de Cultura dividiram a cena com cria-
dores de outros estados.
D
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 31 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 31 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 31 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 31 DE OUTUBRO • 2000RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 31 DE OUTUBRO • 2000
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Os novíssimos, tarde dedicada à apresen-
tação de trabalhos de jovens criadores, lo-
tou o Teatro Cacilda Becker, lembrando os
tempos em que o Panorama servia como
“celeiro” da dança carioca. A boa qualida-
de da maioria dos trabalhos demonstrou que
criar chances para que novos coreógrafos
possam apresentar-se em palcos profissio-
nais é oportuno e necessário. Na tarde do
último domingo, foi a vez de lançar um olhar
sobre a dança feita com jovens de comuni-
dades carentes. Aqui, o caráter espetacular
da dança passou a segundo plano e o inte-
resse se voltou para a função da dança no
contexto da favela.
O Panorama tem aperfeiçoado, a cada
ano, o seu papel de palco de discussão da
criação contemporânea, provocando o pú-
blico com espetáculos polêmicos, estimulan-
do o debate e trazendo importantes exem-
plos da diversidade da pesquisa de ponta da
dança nacional e internacional.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
5 9
Novos balés de Béjart provocamsaudades das criações dos anos 70
Béjart Ballet Lausanne: Programa não foiexpressivo da obra do coreógrafo francês
SILVIA SOTER
o final dos anos 70, o Theatro Mu-
nicipal do Rio de Janeiro acolheu o
Ballet du XXème Siécle por temporadas su-
cessivas. Naquela época, todos aguardavam
ansiosos os próximos passos de Maurice
Béjart, através dos corpos de seus bailari-
nos ícones: Jorge Donn, Shonah Mirk, Ber-
trand Pie ou Yan Le Gac. Sua experiência
de teatro total, expressão que utiliza para
definir uma dança que integra as várias lin-
guagens das artes do espetáculo, influenciou
de maneira decisiva toda uma geração de
coreógrafos e bailarinos e trouxe para o
teatro uma multidão de novos espectadores,
seduzidos pelas criações de forte apelo po-
pular do coreógrafo francês. Maurice Béjart
tem o mérito de ter formado fiéis plateias
pelo mundo.
Béjart está de volta, através do Béjart
Ballet Lausanne, companhia criada em
1987, que apresentou neste fim de semana
dois programas no Theatro Municipal. No
primeiro, A rota da seda e no segundo, Frag-
ments, Le Manteau e Sept Danses Grecques.
Assim como o Ballet du XXème Siècle, o
Béjart Ballet Lausanne prima pela excelên-
cia de seus bailarinos, jovens de diferentes
nacionalidades de quem é exigido o rigoro-
so domínio da técnica clássica. Mas o impac-
to criado pela sua dança não chega nem de
longe à força do Béjart dos anos 70.
Nostalgia assumida, Béjart também não
consegue abrir mão de seus sucessos passa-
dos. Em A rota da seda, criação de 1999, o
coreógrafo passeia pela Ásia. Nessa viagem,
algumas de suas criações anteriores ressur-
gem, se infiltram, como as referências nada
sutis ao inesquecível Bolero ou ao viril Go-
lestan. Em cena, um jovem, misto de Marco
Polo e Tintin (sim, o jornalista belga impe-
rialista das histórias em quadrinho), atraves-
sa as duas horas de espetáculo, maravilha-
do pela sensualidade e pela beleza de cada
país do Oriente. Imagens projetadas e pla-
cas de sinalização garantem didaticamen-
te que cada país visitado possa ser reconhe-
cido pelo espectador. Atrás da seda e do
amor, o jovem realiza sua viagem iniciáti-
ca, partindo de Veneza sob a música de Vi-
valdi, viajando pelo mar e depois de moto
através da Ásia para, obviamente, à Vene-
za retornar numa síntese de sedas coloridas.
N
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 27 DE NOVEMBRO • 2000 • 27 DE NOVEMBRO • 2000 • 27 DE NOVEMBRO • 2000 • 27 DE NOVEMBRO • 2000 • 27 DE NOVEMBRO • 2000
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
6 0
O Oriente sempre interessou ao coreógrafo,
como berço das danças sagradas e da união
entre dança e experiência teatral. No en-
tanto, em A rota da seda, a viagem de Béjart
não vai além da superfície.
Abrindo o segundo programa, Frag-
ments reúne extratos de criações anteriores.
Nessa seleção, apenas Dois estudos para uma
Dama das Camélias se destaca em meio a
peças que não compõem um conjunto
expressivo da obra de Béjart.
Gil Roman, diretor adjunto do Béjart
Ballet Lausanne e colaborador de Béjart
desde 1979, é o ator central de Le Manteau,
outra obra de 1999. A qui o coreógrafo cons-
trói, em narrativa linear, a trajetória de
Akaky Akakievich, personagem de Gogol
que remenda seu casaco com sacrifício até
conseguir um novo casaco que lhe garante o
sucesso. Le Manteau se apoia no talento
clownesco de Roman, bailarino-ator que re-
sume as qualidades do teatro total de Béjart.
Finalmente, Sept Danses Grecques fecha
a noite resgatando o vigor do Béjart de ou-
trora. Apoiada numa bela e simples ilumi-
nação, essa criação de 1983 desenvolve a
geometria e a musicalidade das danças fol-
clóricas gregas e utiliza o conjunto dos bai-
larinos em construções que, em alguns mo-
mentos, recriam as mandalas e a movimen-
tação de Bolero. De novo o passado, mas
agora sentimentos menos nostálgicos.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
6 1
2001 CRÍTICAS
O GLOBO – 26 DE MARÇO DE 2001Uma dança em busca da emoção imediata
SILVIA SOTER
O GLOBO – 4 DE MAIO DE 2001Tecnologia feita de erros e acertos
SILVIA SOTER
O GLOBO – 25 DE MAIO DE 2001Ana Botafogo é destaque em um raro equilíbrio de técnica e interpretação
SILVIA SOTER
O GLOBO – 22 DE JUNHO DE 2001Entre o formalismo e a renovação
SILVIA SOTER
O GLOBO – 20 DE JULHO DE 2001Graham dá brilho à noite americana
SILVIA SOTER
O GLOBO – 3 DE AGOSTO DE 2001Kirov aposta na renovação em romper com a tradição do balé
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL – 3 DE AGOSTO DE 2001Um Kirov renovado
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO – 6 DE AGOSTO DE 2001Virtuosismo e sofisticação em uma experiência espetacular do balé
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL – 6 DE SETEMBRO DE 2001Quando a dignidade dança
ROBERTO PEREIRA
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
6 2
JORNAL DO BRASIL – 30 DE SETEMBRO DE 2001Em boa forma
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO – 3 DE OUTUBRO DE 2001Construção coreográfica é ponto frágil na encenação
SILVIA SOTER
O GLOBO – 14 DE NOVEMBRO DE 2001Festival confirma vocação de fazer pensar
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL – 27 DE NOVEMBRO DE 2001O balé que antecipa o Natal
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO – 22 DE DEZEMBRO DE 2001Dramas cotidianos em movimentos coreográficos
SILVIA SOTER
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
6 3
Uma dança em buscada emoção imediata
Compañia Antonio Márquez: Jogo de sedução
SILVIA SOTER
riada em 1995, a Compañia AntonioMárquez, em cartaz no Theatro Munici-
pal no último fim de semana, inaugurando atemporada da série O Globo em Movimen-to, se apoia na larga experiência de seu cria-dor. Antonio Márquez trabalhou em impor-tantes companhias espanholas e acumula inú-meros prêmios e credenciais, com destaquepara o título de melhor bailarino espanholem 2000. O coreógrafo se orienta na buscadas raízes da dança espanhola, pretendendocircular na contramão da tendência atual dealguns criadores cujas releituras do flamen-co se espalham pelo mundo. O largo sorrisode Antonio Márquez marca, logo de saída, seucampo de diferenças em relação a AntonioGades, por exemplo, um dos mestres que Már-quez acredita superar. O sentimento, presen-te na dança contida e intensa de Gades, nadança de Márquez dá lugar à emoção rasga-da num jogo que seduz grandes plateias.
Em Después de Carmen…, única peça daturnê brasileira coreografada por AntonioMárquez, o criador começa sua históriaonde termina a ópera de Bizet, com a mortede Carmen. O protagonista é Escamillo, in-terpretado por Márquez, enquanto Carmensurge apenas como um espectro na memó-
ria do toureiro desesperado. Uma espéciede Giselle espanhola, sensual porém doce econciliadora, que volta para libertá-lo de seuamor. A narrativa linear, a estrutura da com-posição que alterna momentos de zapatea-
do com outros legendáveis, a ambientaçãocenográfica e o uso dos conjuntos remetemàs históricas influências recíprocas entre adança espanhola e o balé clássico.
Em seguida, Zapateado de Sarasate
permite que Márquez explore todo seuvirtuosismo e escape do lugar-comum.Esta obra exigente, criada por Felipe Sán-chez para o legendário Antonio Ruiz Soler,atende às qualidades do intérprete Már-quez, que traz domínio técnico, precisãoe intensidade no momento mais sóbrio einteressante da noite.
Como não poderia deixar de ser, canto,ritmo e dança se desafiam em cena em Mo-
vimiento Flamenco, passeio por diversosestilos do flamenco, peça que fecha a noite.Mais uma oportunidade para que a compa-nhia confirme sua qualidade e garanta queAntonio Márquez brilhe como grande astropop colocando na mão o público animadoque, no fim da noite de sexta-feira, vibravaem palmas ousando tímidos olés.
C
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 26 DE MARÇO • 2001RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 26 DE MARÇO • 2001RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 26 DE MARÇO • 2001RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 26 DE MARÇO • 2001RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 26 DE MARÇO • 2001
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
6 4
Tecnologia feitade erros e acertos
Paulo Mantuano/Dani Lima: Pesquisas em cena
SILVIA SOTER
o ambiente diverso da dança contem-
porânea, a interação entre a dança e
as novas tecnologias constitui uma impor-
tante vertente de pesquisa e o interesse por
essa área é compartilhado por criadores es-
palhados pelo mundo. A arte tem circulado
no campo da ciência, e o corpo se apresenta
como laboratório privilegiado para este
encontro. Se hoje parece impossível disso-
ciar vida e tecnologia, é preciso lembrar que
há muito as artes vêm incorporando os re-
cursos tecnológicos a serviço da cena. Mis-
turados à técnica, discretamente infiltrados
ou visíveis, os meios tecnológicos de cada
época dialogaram com a dança para ampliar
as possibilidades do corpo. Ou a bailarina
romântica que sobrevoava o palco amarra-
da pela cintura não fazia uso de tecnologia?
Em sua quinta edição, o Dança Brasil
traz para a cena artistas brasileiros cujas
pesquisas incluem o uso da tecnologia. Ou
melhor, obras em que a relação da dança
com a tecnologia se faz visível. Nesta sema-
na de estreia, a Paulo Mantuano Cia. de
Dança e a Cia. de Dança Dani Lima divi-
dem o palco. Duas companhias cariocas que
aceitaram a proposta do evento de deixar
que suas pesquisas fossem atravessadas
pela tecnologia digital.
Em Hoje, amanhã de ontem, Paulo Man-
tuano provoca modificações na percepção
do espectador dentro da linha de investiga-
ção desenvolvida pelo coreógrafo, nos últi-
mos anos. O criador lança mão de diversos
dispositivos como imagens projetadas no
telão com edição prévia, imagens do espe-
táculo captadas em cena, música ao vivo
amplificada pelo sistema surround, para
criar um ambiente sonoro e visual capaz de
trazer o espectador para o centro da obra,
tornando-o coautor. O trabalho corporal se
apoia na repetição de quedas e saltos, opon-
do o peso dos corpos reais às imagens do
telão. Hoje, amanhã de ontem mostra como
o coreógrafo vem amadurecendo sua pes-
quisa ainda que alguns ajustes sejam neces-
sários para melhor dimensionar o papel da
tecnologia, tornando-a, talvez, mais trans-
parente e eficiente.
Já a coreógrafa Dani Lima associa o di-
gital à impressão digital e incorpora a tec-
nologia para investigar diferentes aspectos
N
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FE IRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FE IRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FE IRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FE IRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FE IRA • 4 DE MAIO • 2001 • 4 DE MAIO • 2001 • 4 DE MAIO • 2001 • 4 DE MAIO • 2001 • 4 DE MAIO • 2001
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
6 5
da identidade. É evidente que Digital
Brazuca se divide em dois momentos dis-
tintos, em duas peças autônomas que me-
recem um tratamento diferenciado. No pri-
meiro momento, a identidade é tratada
como construção, mostrando de maneira
delicada, poética e divertida como o olhar
do outro se integra às impressões individu-
ais e deixa marcas. Os dispositivos tecno-
lógicos são empregados apenas para atra-
vessar as diferentes camadas dessa identi-
dade construída, trazendo para a cena fo-
tos de infância, depoimentos da rua e mer-
gulhando no ventre da coreógrafa, grávi-
da de oito meses, para extrair e amplificar
a presença do bebê. As telas construídas
pelas caixas de papelão “esquentam” as
imagens digitais e imprimem intimidade
aos relatos. Na contramão deste primeiro
momento, a tecnologia vira o centro das
atenções na segunda parte do espetáculo.
Aqui, a interatividade, símbolo das possi-
bilidades abertas pelas novas tecnologias,
é explorada na relação entre os dois baila-
rinos e entre bailarinos e espectadores,
entre música e dança. Como uma brinca-
deira, este último duo denuncia a precarie-
dade de alguns recursos ditos de ponta e im-
provisa a partir do erro. Felizmente, espe-
cialidade incorporada pela dança brasileira.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
6 6
Ana Botafogo é destaque em um raroequilíbrio de técnica e interpretação
A megera domada: Cenários e figurinosimprimem tom caricato ao balé
SILVIA SOTER
diálogo entre o teatro e a dança pro-duz resultados diversos. Nos balés de
enredo a história a ser contada através dadança é garantida pela linearidade da es-trutura da narrativa. Momentos de pantomi-ma se alternam a outros de movimentaçãomais abstrata. Algumas criações primamexatamente pelo equilíbrio perfeito entreestes momentos. Em A megera domada, re-montagem feita pelo Ballet do Theatro Mu-nicipal da coreografia de John Cranko a par-tir de Shakespeare, o balé se aproxima tantodo teatro que, por pouco, a dança faria falta.
Para Cranko, o intérprete ideal deveriaconjugar eficiência técnica com personalida-de forte. Não é à toa que A megera domada
foi criada, em 1969, para Marcia Haydée, suabailarina ícone durante os 15 anos em que ocoreógrafo inglês esteve à frente do Balletde Stuttgart. A montagem carioca é assinadapor Marcia, seu ex-parceiro de Stuttgard Ri-chard Cragun e Jane Bourne.
A megera domada é uma obra visivel-mente exigente, impondo aos bailarinosinusitadas finalizações de passos e obrigan-do-os a dosar comicidade e exatidão. Maisdo que em um brilhante desenho coreográ-fico, é nas qualidades teatrais e na presençacênica de seus intérpretes, que essa peça deCranko se apoia. Os solistas do Ballet do
Theatro Municipal dão conta da tarefa. Nor-ma Pinna e Thiago Soares são intépretesseguros nos papéis de Bianca e Lucêncio,garantindo aos pas-de-deux, beleza e preci-são. No fim de semana, o bailarino polonêsFlip Barankiewiecz teve atuação vigorosae competente no papel de Petrúquio.
Alguns bailarinos destacam-se pelo vir-tuosismo na execução técnica; outros são ce-lébres por suas competências teatrais. Ra-ros aqueles que conseguem aliar ambos osatributos. É o caso de Ana Botafogo. Para opúblico habituado a vê-la como Giselle ouCoppélia, sua Katharina é um espetáculo àparte. Seu requinte de interpretação é talque, por vezes, ela não é apenas uma Katha-rina voluntariosa, explosiva e divertida, masparece citar Márcia Haydée. No pas-de-deux
final, uma sensual Ana brilha ao lado de FlipBarankiewiecz, despida da agressividade dapersonagem.
Os cenários e os figurinos contrastamcom a qualidade dos intérpretes, não permi-tirem a agilidade necessária às rápidas tro-cas de cena, e imprimem um tom demasia-damente caricato à ambientação cênica.
O Ballet do Municipal acerta ao recorrer aShakespeare e a Cranko para uma fácil comu-nicação entre obra e grande público, confirman-
do sua política de formação de plateias.
O
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 25 DE MAIO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 25 DE MAIO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 25 DE MAIO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 25 DE MAIO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 25 DE MAIO • 2001
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
6 7
Entre o formalismoe a renovação
Balé do Teatro Guaíra /ContemporâneosBrasileiros: Aposta na diversidade
SILVIA SOTER
quilíbrios no limite da irreversibilidade O
corpo que dança é explorado em sua capa-
cidade de desarticulação, e as coordenações
mais óbvias dos gestos são desmontadas
para, em seguida, serem recompostas num
inteligente quebra-cabeça de peças inter-
cambiáveis. Logo nesta primeira obra fica
visível que hoje a competência do Guaíra
vai além da técnica clássica.
Em Trânsito, a música de Claudio
D auesberg e a dança de Ana V itória se
fundem numa viagem pela world music.
Numa coreografia com forte inspiração tri-
bal, a criadora imprime sua “marca regis-
trada” na movimentação precisa e demonstra
que sua pesquisa começa a se flexibilizar e
ganha novas fronteiras. É interessante no-
tar que, apesar de vir investindo em experi-
ências fora do formato solo, território conhe-
cido e dominado por Ana Vitória, em Trân-
sito, o tratamento dos conjuntos ainda não
possui a sofisticação e a sutileza de seus so-
los. Sendo quase injusto destacar atuações
numa companhia tão rica de bailarinos ca-
pazes, a presença de Mariana Rosário se
impõe no belo solo de Trânsito.
esponsável por ter lotado o Maraca-
nãzinho há aproximadamente duas
décadas, a montagem de O grande circo mís-
tico, do Balé do Teatro Guaíra, deixou mar-
cas positivas em terras cariocas. A mistura
eficaz da música de Chico Buarque e Edu
Lobo com uma linguagem apoiada no balé
clássico seduziu plateias e conquistou para
a dança, pelo menos temporariamente, um
público pouco habituado a assisti-la.
O Balé do Teatro Guaíra volta, sob di-
reção de Suzana Braga, e traz ao Teatro
João Caetano, até domingo, obras dos co-
reógrafos Ana Vitória, Tíndaro Silvano,
Roseli Rodrigues e da dupla Chameki &
Lerner, no programa Contemporâneos
Brasileiros. Mais do que uma simples re-
novação de repertório, a escolha destes
artistas é uma aposta na capacidade des-
ta companhia experiente em circular por
linguagens diversas.
Quatro paredes reduzem os limites do
palco e aproximam os bailarinos em Nem
tudo o que se tem se usa, da dupla Chameki
& Lerner. Aqui o peso de cada segmento
corporal é abandonado, provocando dese-
R
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE JUNHO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE JUNHO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE JUNHO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE JUNHO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE JUNHO • 2001
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Fechando a noite, O segundo sopro, de
Roseli Rodrigues, resgata elementos de
um Guaíra de outrora e oferece ao públi-
co algo que ele já viu, reconfortando-o
com a familiaridade. Na contramão das
outras obras da noite, O segundo sopro
caminha, sem criatividade, nos trilhos da
dança moderna. Embora pareça inovar
trazendo poeira e água para a cena, o for-
malismo marca o uso desses elementos,
amarrando-os a um vocabulário restrito e
ineficiente. Apesar disso, nesta turnê, o
Balé Guaíra se reafirma, maduro e reno-
vado, no cenário da dança brasileira.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Graham dá brilhoà noite americana
3 x América: Ballet do Municipal mostraversatilidade e competência em programa desigual
SILVIA SOTER
lgumas noites se destacam pela qua-lidade excepcional das peças apre-
sentadas, enquanto outras funcionam pela efi-ciência do conjunto das obras. O espetáculo3 x América, em cartaz no Theatro Munici-pal com a companhia da casa, até 22 de ju-lho, encontra-se, certamente, no segundo caso.
A América está aqui representada por trêsobras distintas em estilo e em brilho. Umaquarta coreografia, um pas-de-deux de Tín-daro Silvano, foi acrescida ao programa inicial.
Milontango, de Gustavo Molajolli, atualdiretor da companhia, abre a noite trazendopara a cena os competentes primeirosbailarinos do Theatro Municipal, numa cria-ção que prioriza os conjuntos. Molajolli criaum ambiente estilizado do mundo do tango ar-gentino, no qual não podem faltar sedução,conquista, disputa e humor. Numa composiçãosóbria, porém previsível, o coreógrafo busca ascores de uma latinidade dançada nas pontas.
A dança moderna está representada porum de seus maiores símbolos: MarthaGraham. Maple Leaf Rag, última criação dacoreógrafa é, sem dúvida, o ponto alto danoite. Nesta peça, a morte convive com ovigor da juventude e Graham se debruça,
com carinho e generosidade, sobre sua obra.No meio da cena, um longo banco flexí-
vel serve de pouso temporário e de impulsopara novos movimentos. Bruno Cezário sedestaca, plenamente à vontade na técnicamoderna e na densidade de Graham.
Os recém-premiados Roberta Marquese Thiago Soares, intrusos e muito bem-vindos, dançam Capricho, de Tíndaro Silva-no. Despretensioso e divertido, esse pas-de-
deux brinca com a cumplicidade e a rivali-dade de jovens bailarinos.
Com música de Milton Nascimento, Nas-
cimento, de David Parsons, traz o que há deleve e de não muito consistente na dançaamericana. Há muito admirado pelo públi-co carioca, Parsons se inspira na movimen-tação brasileira através de um olhar bastan-te superficial. No entanto, na inexpressivaNascimento, a boa qualidade de execução eo prazer estampado no rosto dos bailarinosacaba por contagiar e seduzir.
Mas, com certeza, o grande presente que3 x América oferece ao público é poder vera companhia do Ballet do Theatro Munici-pal aproveitada integralmente, com versa-tilidade e competência.
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 20 DE JULHO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 20 DE JULHO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 20 DE JULHO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 20 DE JULHO • 2001RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 20 DE JULHO • 2001
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
7 0
Kirov aposta na renovaçãoem romper com a tradição do balé
Manon: Obra de MacMillan flexibiliza alinguagem clássica e expõe novos ventos no grupo russo
SILVIA SOTER
ela terceira vez em cinco anos, o Rio
de Janeiro recebe o Ballet Kirov, um
dos símbolos de excelência no cenário do
balé clássico mundial. Iniciando sua turnê
brasileira no palco do Theatro Municipal do
Rio, onde se apresenta até domingo, o Ki-
rov abriu a temporada com Manon, coreo-
grafia criada em 1973 pelo inglês Keneth
MacMillan. Um coreógrafo inglês, uma obra
de 1973. Sinal dos tempos.
Para garantir sua permanência no time
das mais importantes companhias de balé
do mundo, a tradição abriu espaço para a
renovação. Makhar Vaziev, diretor da com-
panhia desde 1995, vem investindo com se-
riedade no sentido de trazer obras que ex-
pandam o território de ação do Kirov. Ou-
tros coreógrafos, outros pensamentos orga-
nizados em dança, sem que isso signifique
uma ruptura com a qualidade e com o re-
pertório tradicional. Vaziev percebeu tam-
bém que, para acompanhar essa mudança
estética, era necessário que os bailarinos
recebessem uma formação artística mais
ampla e flexível. A temporada 2001 de-
monstra que o Kirov está em bom caminho.
O inglês Keneth MacMillan pertence a
uma geração de coreógrafos que foi profun-
damente influenciada pelas primeiras tur-
nês das grandes companhias soviéticas pela
Europa. Vale lembrar que o Kirov faz sua
primeira turnê importante no Ocidente em
1961. Sem que haja, obviamente, qualquer
herança direta, é possível, no entanto, detec-
tar laços quase familiares entre o Kirov e a
obra de MacMillan. Manon se integra ao
momento em que coreógrafos revisitam o
balé, trazendo novos temas – que nem sem-
pre desfilam sentimentos nobres – e flexi-
bilizando a linguagem clássica sem, no en-
tanto, colocar em risco os alicerces e os fun-
damentos do balé narrativo.
Manon, balé em três atos baseado no li-
vro do abbé Prévost, século XIII, se constrói,
em termos coreográficos e dramatúrgicos,
sobre os contrastes. A jovem e ambiciosa
Manon é uma heroína contraditória e corrup-
tível. A França pré-revolução serve como
cenário ideal para opor a opulência dos sa-
lões aristocráticos à pobreza e à ambição de
ascensão social. Coreograficamente, MacMi-
llan alterna o lirismo e a nobreza do gestual
P
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 3 DE AGOSTO • 2001 • 3 DE AGOSTO • 2001 • 3 DE AGOSTO • 2001 • 3 DE AGOSTO • 2001 • 3 DE AGOSTO • 2001
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
7 1
de Manon e de Des Grieux, com a picardia e
a comicidade de Lescault e sua amante. Nos
dois casos, os pas-de-deux são eficientes e
criativos. Marca do talento de MacMillan.
Precisão e vigor são qualidades comuns
a toda a companhia. No papel do apaixona-
do Des Grieux, Igor Zelensky prova que é
um bailarino raro. Sem qualquer traço de
afetação ou maneirismo, Zelensky alia ex-
celência técnica, total economia de gestos
ou expressões e presença viril. Na noite de
estreia, Irma Nioradze imprimiu dramati-
cidade levemente exagerada à Manon de
MacMillan. Natalya Sologub se destaca, ilu-
minando a cena com a sua presença, no pa-
pel de amante de Lescault.
Bons ventos trazem o Kirov de volta ao
Rio. Bons ventos o renovam para que per-
maneça encantando suas fiéis plateias e
conquistando outras.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
7 2
Um Kirov renovadoCom Manon, balé russo começa a se desengessar
ROBERTO PEREIRA
Ballet Kirov não é mais o mesmo. Na
noite de quarta-feira, em sua estreia
no Rio, no Theatro Municipal, a mais famo-
sa companhia de balé do mundo pôde mos-
trar que está passando por uma fase de tran-
sição. Seu novo diretor, Makhar Vaziev, ex-
bailarino da companhia, parece estar inje-
tando novas possibilidades cênicas no gru-
po, o que parecia, até então, algo impossível
naquele modelo engessado do balé russo.
Quem assistiu às suas apresentações há três
anos e tiver a oportunidade de rever agora,
vai notar que, finalmente, o Kirov percebeu
que os tempos, e também o balé, são outros.
A escolha de uma obra como Manon
para integrar seu vasto repertório, apresen-
tada em sua estreia na cidade, indicia essa
importante fase de transição. Coreografia
que teve sua estreia em 1974, com o Royal
Ballet, assinada pelo inglês Kenneth Mac-
Millan, Manon é um exemplo de como o
balé pode se utilizar da narrativa sem se
prender meramente à tarefa de contar his-
tória. A dramaturgia que ali se constrói
parece trafegar na definição exata do perfil
de cada personagem dissolvida nas coreo-
grafias que passeiam entre gesto e dança
sem, contudo, demarcar onde termina um
e começa o outro. Os quatro pas-de-deux dos
personagens principais, divididos nos três
atos, são uma aula de como resolver coreo-
graficamente situações dramáticas, sem
necessariamente apelar para a obviedade
com a qual contavam muitos dos balés de
repertório.
O Ballet Kirov estreou Manon há pouco
mais de um ano, o que significa ainda pouco
tempo para uma companhia acostumada a
dançar obras que integram seu repertório
há mais de um século. Nesse sentido, pode-
se observar na atuação dos dois primeiros
bailarinos que essa nova forma de interpre-
tação exigida por MacMillan ainda carece
de ajustes no estilo russo tão marcante. En-
quanto o inteligente Igor Zelensky, na noi-
te de estreia, teve desempenho impecável,
mesclando com rigor seu estilo nobre com
uma economia dramática, Irma Nioradze
parecia ainda guardar resquícios daquele
velho entendimento do que é ser expressi-
vo, o que, para uma personagem como Ma-
non, sempre resvala no perigo de se tornar
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 3 DE AGOSTO • 2001 • 3 DE AGOSTO • 2001 • 3 DE AGOSTO • 2001 • 3 DE AGOSTO • 2001 • 3 DE AGOSTO • 2001
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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caricato. Frivolidade e sedução devem
aparecer em pinceladas sutis nessa dama
do século XVIII sem, contudo, ser manei-
rista. Nessa nova fase, então, balés como
Manon funcionam como um belo exercício
de interpretação.
Entretanto, a companhia como um todo
mostra ter aceitado bem o desafio. Com seu
corpo de baile renovado, grandes solistas
(merece destaque Natalya Sologub, na noi-
te de estreia), cenários e figurinos bem cui-
dados, desafio se transformou em compe-
tência, numa noite memorável.
Nesse sentido, aliar tradição, escola e
dinheiro parece ser mesmo a receita para
uma companhia de balé de repertório.
Acrescentando aí uma direção inteligente
e instigante, o Ballet Kirov vem mostrando
que a coragem para a mudança é talvez a
chave para a continuação de uma história
que não deve ficar presa ao passado, mas sim
se lançar com qualidade para o futuro.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Virtuosismo e sofisticação em umaexperiência espetacular do balé
O corsário: Balé Kirov se despediu do Rio comuma produção de altíssima qualidade
SILVIA SOTER
Ballet Kirov despediu-se do Rio on-tem em direção a outras capitais bra-
sileiras oferecendo ao público carioca no fimde semana a versão integral de O corsário,de Marius Petipa. Mesmo aqueles que nãosão grandes conhecedores de balé, certa-mente reconhecerão alguns extratos de Ocorsário, como o pas-de-trois de Medora,Conrad e o escravo Ali, no segundo ato,transformado por Tchaboukiani, nos anos 30,em pas-de-deux e eternizado, nos anos 70,por Rudolf Nureiev.
Mas em sua versão integral, com direitoa duas cenas deslumbrantes de prólogo eepílogo – que remetem aos quadros de De-lacroix –, O corsário se veste de luxo, exo-tismo e bravura, bem ao gosto dos balés lon-gos do século XIX.
Marius Petipa, bailarino e coreógrafo fran-cês, migrou para a Rússia em 1847, onde ficouaté sua morte. Criador de mais de 60 balés, Pe-tipa foi mestre em associar o ballet d’action fran-cês ao virtuosismo da escola italiana. O fio nar-rativo é desenvolvido aliando doses equili-bradas de seqüên-cias de inspiração folcló-rica, pantomima e variações virtuosas. Ain-da hoje, as variações femininas e masculi-nas de Petipa servem de termômetro de com-petência de bailarinos étoiles (literalmenteestrelas) de todo o Ocidente.
Dentro dessa estrutura, ao corsário deConrad e à bela Medora, protagonistas datrama, juntam-se outros papéis de destaquecomo Lankedem, o mercador de escravase o escravo Ali. Com algumas variaçõesexigentes, o papel de Conrad se apoia, so-bretudo, na intensidade teatral e Ilya Kuz-netsov dá conta da tarefa com brilho. Opróprio Petipa, intérprete conhecido comoexcelente mímico, destacou-se como Con-rad. A longilínea Svetlana Zakharova ga-rante segurança e brilho às suas variações.No papel de Lankedem, Andrian Fadeevimprime agilidade e precisão. Farukh Ru-zimatov alia, com perfeição, execução téc-nica e devoção à Medora. A relação do tri-ângulo Conrad, Medora e Ali mantém-seintensa até no momento do agradecimen-to, um detalhe que revela a sofisticação damontagem.
Levando em conta que mesmo uma ver-são original é trabalhada pelo tempo e atuali-zada, inevitavelmente, pelos corpos dos bai-larinos de hoje, assistir a O corsário de Petipadançado pelo Kirov é, com certeza, o que háde mais próximo de experimentar uma via-gem no tempo. O virtuosismo dos intérpretesaliado à grandiosidade da música, dos cenári-os, dos figurinos e das danças de conjunto faz
de O corsário exemplo do balé espetacular.
O
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 6 DE AGOSTO • 2001RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 6 DE AGOSTO • 2001RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 6 DE AGOSTO • 2001RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 6 DE AGOSTO • 2001RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 6 DE AGOSTO • 2001
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Quando a dignidade dança
Espetáculo com adolescentes da Maré compensafrágil dramaturgia com coreografia exuberante
ROBERTO PEREIRA
Nesse sentido, se há um descompassoentre uma teatralidade mais exageradada atriz Rosi Campos ao lado de um con-tido Seu Jorge, se há a presença de umadiva como Elza Soares acompanhada pormúsicos competentes, conduzidos de modopreciso por Ana Fridman, há também omodo exuberante como as danças do es-petáculo costuram uma dramaturgia que,por vezes, deixa revelar sua fragilidade,sobretudo no texto.
A competência de Ivaldo Bertazzo re-dimensiona naqueles corpos uma dignida-de capturada no ato de dançar. Apenas omodo que isso é feito, através basicamentede danças orientais, parece sufocar umamovimentação que por vezes escapa emalguns momentos reveladores, como os tre-chos de dança de rua. Talvez buscar umacombinação do que se encontra ainda emestado latente naqueles corpos com habi-lidades próprias do seu meio e o rico ensi-namento que o coreógrafo ali disponibili-za parece ser o desafio que se impõe. En-quanto isso, Folias guanabaras emocionajustamente quando o cidadão-dançante re-afirma uma lição antiga, que tanto a ver-dadeira democracia quanto a dança nas-cem no corpo.
espetáculo Folias guanabaras, queteve sua estreia terça-feira no SESC
Tijuca, representa uma continuação da pes-quisa que o coreógrafo e professor IvaldoBertazzo vem desenvolvendo há 25 anos:a construção de uma dança em corpos depessoas que não a exercem profissional-mente. Essas pessoas, Bertazzo chama decidadãos-dançantes. Neste espetáculo, con-tudo, o fato de que se trata de um grupo de66 crianças de uma comunidade da fave-la da Maré, do Rio, faz com que a conexãocidadão e dançante ganhe dimensões bas-tante peculiares, pois localiza e recuperano corpo que dança a dignidade de expres-são que aqueles corpos comportam.
Este é o segundo espetáculo de Bertazzocom a mesma comunidade. No ano passado,através de Mãe gentil, a primeira convivên-cia do coreógrafo com aquelas crianças in-diciava uma continuidade inevitável e bas-tante profícua. Isso pode ser visto agora,quando competência e uma produção colos-sal garantem um resultado de um profissio-nalismo que já é marca do coreógrafo. No-vamente, a dança aparece dialogando comoutras linguagens cênicas, o que o própriocoreógrafo justifica como uma recuperaçãodo Teatro Musical Brasileiro.
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 6 DE SETEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 6 DE SETEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 6 DE SETEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 6 DE SETEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 6 DE SETEMBRO • 2001
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Em boa formaBalé do Municipal supera desafios
de O lago dos cisnes
ROBERTO PEREIRA
estreia, na última quinta-feira, de
O lago dos cisnes, pelo Ballet do
Theatro Municipal, mostrou, mais uma
vez, que a principal companhia clássica do
País continua em forma para obras de tal
envergadura. Para essa montagem, foi
convidada uma das principais bailarinas
do século XX, a russa Natalia Makarova,
que assina nada menos que a direção, a
concepção e a coreografia.
Parece ser, no entanto, exatamente por
essa assinatura por demais carregada de
Makarova que um hiato entre a ideia de
remontagem de uma obra de repertório e
a de sua recriação emperre o bom desem-
penho dos bailarinos. As linhas perspectí-
vicas construídas com o corpo de baile,
com as quais estamos acostumados a ver
nas obras de Petipa, e que tão bem ensi-
nou ao seu discípulo Ivanov, diluem-se em
Makarova. O resultado é uma certa ina-
bilidade na construção coreográfica dos
desenhos que deveriam estar ali para con-
duzir o olhar do espectador à história de
amor entre o príncipe e a princesa enfei-
tiçada em cisne.
No pas-de-deux do segundo ato, por
exemplo, a moldura fundamental que o
conjunto de cisnes forma ao lado do casal
principal é simplesmente transformada
em uma coreografia em filas, não permi-
tindo, desse modo, que os claros princípios
acadêmicos de construção coreográfica
apareçam. No todo, a montagem de Maka-
rova parece pouco dançante, de certo
modo truncada e, muitas vezes, mal resol-
vida nos conjuntos, flagrante nas danças
nacionais do terceiro ato.
Enquanto o bailarino convidado, o argen-
tino Iñaki Urlezaga, primeiro bailarino do
Royal Ballet em Londres, cumpriu apenas
corretamente sua tarefa como o príncipe
Siegfried, nossa primeira bailarina Cecília
Kerche brindou o público com uma perfor-
mance brilhante. A qualidade de sua dança
encontra em sua conformação física o lugar
exato para o desempenho do papel. Madu-
ra, Cecília provou ser uma bailarina acadê-
mica por excelência, o que a faz construir
uma ótima Odille, o cisne negro, enquanto
sua romântica Odette, o cisne branco, ainda
carece de ajustes.
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • DOMINGO • 30 DE SETEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 30 DE SETEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 30 DE SETEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 30 DE SETEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 30 DE SETEMBRO • 2001
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Marcelo Misailidis acertou no tom
dramático de seu bruxo Rothbart, papel
que exige maturidade, e André Valadão
foi, sem dúvida, a grande estrela do pri-
meiro ato, no papel de Benno. Isso prova
como a companhia está cada vez mais
qualificada para os desafios aos quais ela
se impõe. Tal qualificação apenas espe-
ra uma oportunidade melhor para se dar
a ver. É o que o público carioca também
espera. Nessa recriação assinada por
Makarova, sente-se saudade da pena co-
reográfica dos grandes mestres Petipa e
Ivanov.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Construção coreográfica éponto frágil na encenaçãoO lago dos cisnes: Makarova faz montagem
eficiente de peça mítica do balé
SILVIA SOTER
a última quinta-feira, o público cario-
ca lotou o Theatro Municipal para a
esperada estreia de O lago dos cisnes, gran-
de aposta da programação da companhia da
casa, no ano de 2001.
Da criação da música por Tchaikovsky,
no final do século XIX, até hoje, O lago dos
cisnes recebeu diferentes tratamentos com
variações do libreto, mas foi a versão de
Petipa e Ivanov que serviu de estrutura para
as leituras que se popularizaram pelo Oci-
dente. O virtuosismo e a pompa dos primei-
ro e terceiro atos assinados por Petipa con-
trastam, sem que no entanto se perca a uni-
dade, com o lirismo e a geometria das ce-
nas à beira do lago, desenhadas por Ivanov.
Em inúmeras versões posteriores, a coreo-
grafia do segundo ato é mantida, pela efi-
ciência da construção de Ivanov.
A russa Natalia Makarova, uma das
grandes estrelas do balé do século XX, assi-
na, na versão do Municipal, direção, concep-
cão e coreografia. Se a direção de Makaro-
va imprime eficiência e profissionalismo à
montagem, é na construção coreográfica
que O lago possui seu ponto mais frágil.
O visível desequilíbrio entre as variações
masculinas e femininas sugere que a coreó-
grafa apoia-se demasiado na sua trajetória
de intérprete perfeita de Odette/Odile, para
a criação coreográfica. Ao tentar se desviar
da herança de Petipa e Ivanov, a coreogra-
fia de Makarova faz com que os conjuntos
percam parte da força e do sentido.
Na noite de estreia, Cecília Kerche e o
bailarino argentino Iñaki Urlezaga estive-
ram nos papéis principais. Ele, primeiro bai-
larino do Royal Ballet, cumpriu seu
Siegfried com segurança, porém sem bri-
lho. Já Cecília Kerche, sobretudo no tercei-
ro e no quarto atos, explora ao máximo
suas qualidades físicas numa performan-
ce de técnica irretocável. André Valadão
destaca-se como Benno e Marcelo Misaili-
dis constrói um Rothbart com doses preci-
sas de sedução e maldade. O corpo de bai-
le imprime homogeneidade e harmonia,
imprescindíveis aos desenhos de conjunto.
A maturidade da companhia garante
que montagem carioca guarde a magia que
faz com que, há mais de um século, a figura
da bailarina-cisne – cujos tronco e braços
ondulam negando a anatomia ao inventar
articulações – resista no tempo. Se o amor
de Siegfried pode transformar Odette no-
vamente em uma jovem, no imaginário oci-
dental, a bailarina clássica resistirá sem-
pre a se separar da figura mítica do cisne.
N
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 3 DE OUTUBRO • 2001RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 3 DE OUTUBRO • 2001RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 3 DE OUTUBRO • 2001RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 3 DE OUTUBRO • 2001RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 3 DE OUTUBRO • 2001
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Festival confirmavocação de fazer pensar
Panorama RioArte de Dança:Vanguarda da cena internacionale diversidade da dança carioca
destacaram-se na décima edição do evento
SILVIA SOTER
o último domingo, o Rio despediu-se
do mais importante e intenso even-
to da dança contemporânea carioca. O dé-
cimo Panorama RioArte de Dança, nessa
edição comemorativa, espalhou-se pela
cidade lotando as plateias do Teatro Car-
los Gomes, do Espaço Sérgio Porto e va-
zando para outros locais com programa-
ções de vídeo e de vídeo-instalação de
Maurício Dias e Walter Riedweg, nos Ar-
cos da Lapa. Em quase todas as 12 noites
de festival, a programação foi dobrada,
aumentando a oferta e a possibilidade de
escolha do público e fazendo com que al-
guns espectadores zarpassem de um tea-
tro ao outro, numa maratona cansativa,
mas certamente compensadora. Feliz-
mente, a partir desse ano, a Secretaria das
Culturas garante o Panorama RioArte de
Dança no calendário oficial da cidade.
Aposta acertada, já que é visível que a
estrutura do festival amadureceu nos últi-
mos anos, assim como, paralelamente e de
modo inextrincável, o público cresceu em
número e em interesse, numa política de
formação de plateia que se confirma pela
absoluta eficiência.
Consolidando-se, definitivamente, na
rota dos festivais da vanguarda da dança es-
trangeira, ao partilhar sua programação
com importantes festivais como o holandês
Springdance ou o canadense Nouvelles
Danses, o Panorama trouxe para o Rio cri-
adores que, ao lado de artistas como Jérô-
me Bel e Xavier Le Roy, convidados dos
anos anteriores, fazem parte de uma gera-
ção inquieta e ativa que vem desenhando
os novos contornos da dança contemporâ-
nea. Este ano foi a vez de o público carioca
entrar em contato com os trabalhos do aus-
tríaco Willi Dorner, do alemão Thomas
Lehmen, do francês Boris Charmatz (que
fez um duo com Dimitri Chamblas e ain-
da um trio), do iraniano Hooman Sharifi e
do suíço Gilles Jobin. Mas o que essa ge-
ração tem de tão relevante? Quem são
esses coreógrafos que o Panorama tem
escolhido nos últimos anos?Os anos 90 viram surgir na Europa um
grupo de criadores que, para grande parte
N
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 14 DE NOVEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 14 DE NOVEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 14 DE NOVEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 14 DE NOVEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 14 DE NOVEMBRO • 2001
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
8 0
da crítica internacional, equivale, em cria-
tividade e importância, à geração da Judson
Church, berço da dança pós-moderna
americana. Ainda que sem uma herança
direta, esses criadores resgatam a ideia da
democracia no corpo e na cena, conceito de
partida que permite que cada elemento que
compõe a representação possua valor equi-
valente, podendo ser explorado sem uma
hierarquia definida. E permite, igualmente,
que o movimento circule pelo corpo sem
respeitar uma ordem estabelecida pela cons-
trução de uma técnica instalada no corpo
que dança. O movimento pode ser apenas
funcional; a identidade do artista, sua bio-
grafia, suas características físicas e cinéti-
cas são sublinhadas e contrabandeadas a
ponto de borrar o corpo real e o construído.
A dança, enquanto linguagem, expõe seus
limites em cena, e outros modos de relação
entre obra e público são convocados para,
finalmente, colocar em xeque a própria
ideia de representação.
Parte dessas questões surge, também, em
algumas obras dos criadores cariocas este
ano. É o caso de A paisagem daqui é outra,
de Márcia Rubin. Nesta peça simples e pre-
cisa, criadora e criatura se confundem, num
jogo de identidades que se revela junto com
a exposição dos descaminhos de um proces-
so de criação. De forma diferente, já que a
dança ainda guarda muitos de seus traços
de identidade, mesmo se borrando com ou-
tras artes, Vaidade, da Cia. Dani Lima, mer-
gulha de forma poética, bem-humorada e
quase melancólica, no olhar do outro como
construção da identidade do sujeito. Eu e meu
coreógrafo no 63, do jovem e competente
Bruno Beltrão, cria para o espectador uma
experiência quase telepática de comunica-
ção entre as construções mentais de um jo-
vem e a movimentação do intérprete, em
simultaneidade. O agora trio Ikswalsinats
continua ressaltando a persona de seus in-
térpretes, tocando o teatro e as artes plásti-
cas num jogo de cena milimetricamente
construído.
No inesquecível The Moebius Strip, a
movimentação dos bailarinos serve de con-
torno para o espaço, a grande estrela da peça
de Gilles Jobin. O espectador é hipnotica-
mente transportado pela repetição dos des-
locamentos e pelo ambiente visual ambíguo
nos modos da Op-Art, numa subversão de
planos e direções.
As parcerias internacionais com o Bri-
tish Council, a Alliance Française, a AFAA,
Consulado Geral da França e o Goethe
Institut permitiram ainda que o Rio assis-
tisse entre os convidados de fora, pela pri-
meira vez, à Compagnie à Fleur de Peau,
de Michael Bugdham e da brasileira De-
nise Namura, residente na França. A re-
trospectiva de cenas dessa dupla confir-
mou a maturidade e a seriedade da pes-
quisa realizada por eles no diálogo entre
dança e teatro. Enquanto a inglesa Rose-
mary Butcher presenteou a plateia do Es-
paço Sérgio Porto, por duas noites conse-
cutivas, com uma demonstração do pro-
cesso de criação e composição de sua pró-
xima peça, logo depois de um interessan-
te e bem dançado Scan.
A presença das companhias cariocas
nessa edição deixa claro que cada criador
caminha em trilhas de investigação bem
delineadas, produzindo uma saudável e ne-
cessária diversidade. Joaquim Maria, de
Márcia Milhazes, preciso e delicado como
uma renda, traz a atmosfera de Machado
de Assis numa movimentação incessante
e prolixa que, aliada à pesquisa musical,
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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sonoriza e colore a relação do casal em
cena. A Esther Weitzman Cia. de Dança
promoveu em cena o encontro entre três
intérpretes de uma mesma geração, parti-
lhando referências e o prazer da dança.
Palimpsesto, de Paulo Caldas, mergulha
ainda mais fundo no fluxo contínuo de
impulsos que entrelaçam e suspendem no
tempo o encontro amoroso. A Ana Vitória
Cia. de Dança dividiu com o público o
evidentemente ainda embrionário Asè,
investida da coreógrafa nas qualidades de
movimentação dos orixás. Agora em ru-
mos tão claros, resta aos criadores, como
próximo desafio, a busca de um ritmo mais
enxuto para os espetáculos que, muitas
vezes, diluem o conteúdo numa duração
extensa demais.
As discussões da plateia-foyer, oportu-
nidade de troca de impressões entre cria-
dores e público iniciadas na edição do ano
passado, consolidaram-se, ampliando seu
espectro de ação. Os espetáculos Suddenly,
Anyway, Why all this ? While I…, da Impu-
re Company de Hooman Sharifi, e Nina, do
Cena 11 de Florinanópolis, anteciparam as
discussões do seminário Corpo em risco,
encontro de pesquisadores de áreas dife-
rentes, obra e público, que agregou pontos
de vistas diversos às noites de segunda e
terça-feira. As peças assistidas e os criado-
res também colaboraram com seus pontos
de vista.
Além do Cena 11, os coreógrafos-intér-
pretes Martha Soares e Marcelo Gabriel
trouxeram para o Rio os ares da pesquisa
de outros estados. O homem de jasmim, da
criadora paulista, discute de modo obsessivo
o corpo que cria apesar do encarceramento
e do desmantelamento da doença mental. Já
o Útero cromosserial, de Marcelo Gabriel,
circula em terreno perigoso, preso num ema-
ranhado de referências autocentradas.
Os novíssimos, tarde que reúne experi-
mentações de coreógrafos emergentes, teve
sua segunda versão, confirmando sua rele-
vância ainda que necessite encontrar um
ritmo mais ágil para o concentrado de pe-
quenas peças.
A democratização do acesso aos espetá-
culos através de ingressos mais baratos, a
continuidade da política municipal de apoio
à dança, a ampliação do raio de ação do fes-
tival na multiplicação das atividades e dos
espaços de apresentação, associadas às as-
sinaturas de curadoria de Lia Rodrigues e
Roberto Pereira, contribuíram de modo de-
finitivo para o sucesso do evento.
Nesses anos de existência e resistência,
o Panorama se construiu mais de acertos do
que de erros. Definiu uma linha curatorial
coerente sem que isso representasse ausên-
cia de diversidade, o que demonstra que
continuar é preciso. O décimo ano do Pano-
rama confirma que a permanência é condi-
ção fundamental para a transformação.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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O balé queantecipa o Natal
Atuação do corpo de baile do Municipal emO quebra-nozes renova, com qualidade, a antiga tradição
ROBERTO PEREIRA
montagem de O quebra-nozes na
época do Natal faz parte de uma tra-
dição seguida por várias capitais do mun-
do, com as mais importantes companhias de
dança, em diferentes montagens. Esse balé
de 1892 traz consigo todo o peso de nomes
como Lev Ivanov, seu primeiro coreógrafo,
e Tchaikovski, um dos primeiros composito-
res a emprestar maior dignidade à música
feita especialmente para a dança, até então.
Aqui no Brasil, podemos contar com a
versão de Dalal Achcar, que confere à obra
uma assinatura coreográfica bastante pró-
pria, sem, contudo, fugir da essência da ideia
original. Na nova montagem, que teve sua
estreia no último sábado pelo Ballet do
Theatro Municipal, a cidade do Rio de Ja-
neiro teve a oportunidade de contar, mais
uma vez, com um dos símbolos natalinos
mais fortes e, o que é mais importante, com
a qualidade que ele exige.
Mencionar como a primeira bailarina
Cecília Kerche esteve absolutamente impe-
cável ao lado do bailarino convidado Mar-
celo Gomes, estrela do American Ballet
Theater, parece ser dispensável, quando se
acompanha o momento especial pelo qual
ela vem atravessando em sua carreira. Jun-
tos, os dois viveram respectivamente, a rai-
nha e o príncipe das neves. A produção, que
envolve inúmeros figurinos e cenários, além
de iluminação, também funciona muito bem
dentro do espírito do balé. Mas é o desem-
penho brilhante do corpo de baile que cha-
ma mais atenção, este ano.
A atuação do grupo esteve tão coesa e
segura, que coloca a companhia num nível
de qualidade internacional. Isso pôde ser ob-
servado, por exemplo, na dança dos flocos de
neve e na valsa das flores, momentos emble-
máticos do balé. Mas é, sobretudo, em algu-
mas performances individuais que se pode
vislumbrar futuros solistas e primeiros bai-
larinos, como Wellington Gomes, interpretan-
do o boneco, Ronaldo Martins, na dança rus-
sa, e o trio Regina Ribeiro, Rodrigo Negri e
René Salazar, na dança dos mirlitons.
A montagem desse balé pela nossa prin-
cipal e mais antiga companhia brasileira já
é, sem dúvida, uma tradição. Mas é a quali-
dade de seus bailarinos que faz com que essa
tradição se transforme também num dos
melhores presentes de Natal para a cidade
do Rio de Janeiro.
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 27 DE NOVEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 27 DE NOVEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 27 DE NOVEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 27 DE NOVEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 27 DE NOVEMBRO • 2001
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Dramas cotidianosem movimentos coreográficos
Rua Alice 75 – Quartos de aluguel:Híbrido de dança, artes visuais e teatro
SILVIA SOTER
ma porta estreita separa a calçada da
Rua Alice do passeio que a Cia. de
Dança Regina Miranda preparou para os es-
pectadores de Rua Alice 75 – Quartos de
aluguel. Durante meses, Regina Miranda e
seus colaboradores colecionaram histórias
e impressões sobre os casarões dessa rua no
bairro de Laranjeiras. A partir das histórias
e de seus personagens, recriaram, na sede
da companhia, o ambiente arquitetônico, so-
noro e afetivo das casas de cômodos. Junto
com a Cia. Regina Miranda, alguns mora-
dores da Rua Alice integram o espetáculo,
borrando a linha entre ficção e realidade. A
aparente simplicidade da estrutura desse
passeio/espetáculo revela, progressivamen-
te, sua riqueza e complexidade.
A partir da antessala, 30 visitantes seguem
o trajeto que se impõe através dos corredores.
Em cada cômodo, uma cena. Pequenos dramas
cotidianos são revelados em quartos/quadros,
expondo intimidades, tornando público o pri-
vado. Cada ambiente é assinado por um artis-
ta, o que reforça o caráter singular das insta-
lações. A Cia. Regina Miranda joga eficiente-
mente com a atração e a curiosidade desper-
tadas pela possibilidade de observar a intimi-
dade alheia. Mas a intimidade revelada não
choca ou agride. Nos quartos/quadros habitam
várias épocas e seus personagens. O passeio
pela casa se transporta no tempo.
Há um roteiro proposto pelos corredores;
no entanto, cabe ao espectador escolher o
tempo de estar em cada cena, indo e vindo,
demorando-se ou atravessando rapidamen-
te as diversas situações separadas pelas pa-
redes frágeis. Assim, não há possibilidade de
linearidade na construção dramatúrgica.
À medida que o passeio avança, alguns
gestos ganham repetições, inversões, dila-
tações no tempo. Destacam-se e começam
a desenhar um tecido coreográfico que
será transformado em sequências de dan-
ça nas duas últimas cenas. Aos poucos, os
gestos cotidianos tornam-se movimento e
coreografia.
Rua Alice 75 – Quartos de aluguel se
constrói na zona de trânsito entre dança,
artes visuais e teatro. Se logo de início essas
linguagens se misturam, no fim aparecem
destacadas, coabitando a cena, mas com con-
tornos bem definidos. A dança passa a exis-
tir, nítida e reconhecível. Com certeza, nos
momentos mais bonitos de Rua Alice 75 –
Quartos de aluguel, não existem paredes
separando linguagens.
U
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE DEZEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE DEZEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE DEZEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE DEZEMBRO • 2001RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE DEZEMBRO • 2001
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
8 5
2002 CRÍTICAS
O GLOBO – 6 DE MARÇO DE 2002Uma companhia sem a cara do Rio
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL – 9 DE MARÇO DE 2002Um projeto ainda frágil
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO – 14 DE MARÇO DE 2002O encontro do gesto e do movimento no palco
SILVIA SOTER
O GLOBO – 19 DE MARÇO DE 2002Passos, música e interatividade embalam celebração coreográfica
SILVIA SOTER
O GLOBO – 25 DE MAIO DE 2002Rostropovich rouba a cena e faz a sua festa
SILVIA SOTER
O GLOBO – 27 DE MAIO DE 2002Ana Botafogo domina a cena no Municipal
SILVIA SOTER
O GLOBO – 17 DE JUNHO DE 2002Corpo de baile brilha pela musicalidade
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL – 17 DE JUNHO DE 2002Corpo de baile rouba a cena
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL – 29 DE JUNHO DE 2002Ilustração de ritmos
ROBERTO PEREIRA
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
8 6
JORNAL DO BRASIL – 6 DE JULHO DE 2002Monólogo de movimentos
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO – 8 DE JULHO DE 2002Dança que opera no universo pop
SILVIA SOTER
O GLOBO – 18 DE JULHO DE 2002Um balé marcado pelo excesso de elementos
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL – 20 DE JULHO DE 2002Cinderela para virar cult
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL – 7 DE SETEMBRO DE 2002Sempre um passo adiante
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO – 9 DE SETEMBRO DE 2002Sensualidade debochada que serve para iluminar o passado do Corpo
SILVIA SOTER
O GLOBO – 11 DE SETEMBRO DE 2002Ações pedagógicas que somam, sem se sobreporem à qualidade do produto
SILVIA SOTER
O GLOBO – 13 DE NOVEMBRO DE 2002Panorama fez a festa da nova plateia carioca
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL – 30 DE DEZEMBRO DE 2002Movimentação a passos largos
ROBERTO PEREIRA E ANA CECÍLIA MARTINS
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
8 7
Uma companhiasem a cara do Rio
O despertar: Grupo oficial da cidade mostratrabalho eficiente, mas que não traduz a
transformação da dança carioca
SILVIA SOTER
surgimento de uma nova companhia
de dança é sempre motivo de come-
moração. Ainda mais quando essa compa-
nhia é encabeçada por nomes como Richard
Cragun e Roberto Oliveira. No entanto, a
estreia da Cia. DeAnima como a companhia
oficial da cidade do Rio de Janeiro, na últi-
ma quinta-feira (a temporada continua esta
semana, de amanhã a domingo, no Teatro Car-
los Gomes), merece algumas considerações.
Na última década, o Rio afirmou-se nos
cenários da dança nacional e internacional
como um polo gerador de produções e pes-
quisa em dança de alta qualidade. À tradi-
ção sempre renovada do nosso Ballet do
Theatro Municipal se associaram diferen-
tes companhias de dança que, juntas, dese-
nharam para a cidade um perfil reconheci-
do pela diversidade, pela competência e
pela multiplicidade. Hoje, no Rio, além de
várias companhias independentes, são 13 as
companhias de dança contemporânea apoi-
adas pela mesma Prefeitura que oferece
agora à cidade uma Companhia Oficial.
Na noite de estreia para convidados do
espetáculo O despertar, o diretor artístico, o
americano Richard Cragun, partner antoló-
gio da brasileira Marcia Haydée no Ballet
de Sttugart, agradeceu à Prefeitura do Rio
de Janeiro a criação da DeAnima. Aprovei-
tou também para dedicar o espetáculo da
noite a todos os bailarinos do Rio, citando o
Theatro Municipal, a Cia. de Dança Debo-
rah Colker e as companhias apoiadas. Nes-
se gesto gentil, Cragun parecia assumir e
tentar responder a surpresa misturada ao
sentimento de constrangimento que boa
parte da classe de dança experimentava
naquela noite. Surpresa e constrangimento
causados pela pergunta que pairava no ar:
Seria aquela a cara do Rio? Associados a
isso, estavam o desconforto provocado pelo
disparate dos recursos financeiros (somas
bastante altas, tratando-se da dança cario-
ca) que dão sustento a esse projeto e a des-
proporção desse orçamento em relação ao
apoio anual oferecido às outras 13 compa-
nhias. Tudo isso aumenta a expectativa quan-
to ao espetáculo assistido. Sem dúvida, é
muita responsabilidade.
O trabalho eficiente realizado nos pou-
cos meses de ensaio da DeAnima se faz vi-
O
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 6 DE MARÇO • 2002RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 6 DE MARÇO • 2002RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 6 DE MARÇO • 2002RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 6 DE MARÇO • 2002RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 6 DE MARÇO • 2002
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
8 8
sível. Limpeza, clareza e precisão se asso-
ciam ao vigor dos jovens bailarinos. Suas
atuações não deixam nada a desejar, por
exemplo, a do convidado especial Pedro
Goucha Gomes, da companhia do espanhol
Nacho Duato. Bem preparados, eles ame-
nizam até certo ponto as diferenças de suas
formações de origem, mesmo que ainda
haja um longo caminho pela frente para
que um maior entrosamento se faça pre-
sente. É natural.
Tehillin, a primeira coreografia da noi-
te funciona como hors-d’oeuvre para
O despertar. Com música de Steve Reich,
essa peça mais curta apresenta as quali-
dades dinâmicas da companhia e introduz,
de modo um pouco forçado, personagens
que serão centrais em O despertar. Esta
última discorre pela solidão no ambiente
urbano, inspirada no filme Asas do desejo,
de W im W enders. O personagem central é
salvo por anjos da opressão e da indife-
rença misturadas ao caos urbano. O cená-
rio funciona como um personagem tam-
bém, colaborando para fechar o espaço do
palco e jogando os bailarinos em confron-
to permanente.
Roberto Oliveira define sua lingua-
gem como balé contemporâneo. Nas pa-
lavras do coreógrafo, um misto de balé
com a dança contemporânea. A flexibili-
zação das linhas do balé permitindo, por
exemplo, a quebra da narrativa e o uso de
elementos externos ao vocabulário clás-
sico, tem sido explorada há muitas déca-
das, com mais ou menos eficiência, no Bra-
sil e no mundo. Na trajetória de Oliveira,
reconhece-se uma boa experiência em
companhias que desenvolvem essa lingua-
gem como, por exemplo, o Béjart Ballet
Lausanne sob direção de Maurice Béjart.
As coreografias de Roberto Oliveira apre-
sentadas nessa noite não parecem, no en-
tanto, somar algo autoral às propostas de
trabalhos em linhas semelhantes.
Ao final do espetáculo, mais pergun-
tas: Será pertinente a existência de uma
companhia oficial? Será coerente com a
política cultural do município do Rio de
Janeiro, que há anos investe no reforço do
caráter plural das criações, a existência
de sua companhia oficial? Ao final do es-
petáculo, uma constatação: a dança do
Rio tem uma cara. E essa cara não se re-
duz, em absoluto, à apresentada naquela
noite. A cara da dança do Rio permane-
ce porque se transforma. Uma identida-
de que se vem construindo, há anos, pela
parceria de diversos criadores e bailari-
nos, aliando a tradição do balé à pesqui-
sa de vanguarda. As cenas nacional e in-
ternacional já sabem disso.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
8 9
Um projeto ainda frágilEstreia do DeAnima mostra os pontos
fracos da companhia oficial do Rio
ROBERTO PEREIRA
ssistir a O despertar, espetáculo de es-
treia da mais nova companhia de dan-
ça da cidade, DeAnima – Ballet da cidade
do Rio de Janeiro, é tarefa que não dispensa
um certo conhecimento do contexto no qual
esse empreendimento da Secretaria Muni-
cipal de Cultura se deu. Questões que tan-
genciam sua existência aparecem também
no palco, em forma de dança.
A primeira questão sobre a DeAnima,
com relação ao seu estatuto, é que ela apa-
receu aos olhos do cidadão carioca como a
primeira companhia oficial da cidade, con-
tando com a direção artística de Richard
Cragun, bailarino que deixou sua marca
definitiva no balé de Stuttgart, ao lado da
brasileira Márcia Haydée.
De antemão, vale mencionar que a pri-
meira companhia oficial da cidade foi o
corpo de baile do Theatro Municipal que,
mais tarde, passou a pertencer ao Estado. Em
comum, esses dois conjuntos têm a utiliza-
ção da técnica clássica de balé como forma-
ção de seus bailarinos. Enquanto a compa-
nhia mais antiga se utiliza disso para mon-
tagens de obras de repertório, a segunda pre-
ocupa-se em construir o que seu coreógrafo,
Roberto de Oliveira, chama de “balé con-
temporâneo”.
Mas o que pode significar o termo “ofi-
cial” para um grupo inserido numa cidade
que conta com tantas outras companhias de
dança, que transformam juntas, cada uma a
seu modo, a diversidade da cena coreográ-
fica carioca? Uma segunda questão refere-
se ao termo utilizado por Roberto de Oli-
veira para definir seu estilo: balé contem-
porâneo. Na verdade, poucos foram os que
conseguiram construir uma identidade co-
reográfica, driblando as amarras que a téc-
nica do balé impõe.
Fazer respirar o que há de novo enquan-
to estética no que há de tão codificado en-
quanto técnica tem sido ainda um desafio –
e nomes essenciais da atualidade, como Jirí
Kylián, William Forsythe, Van Manem e
mesmo o nosso Rodrigo Pederneiras são
exemplos que logo vêm à lembrança. Não
é a simples adjetivação do balé com o ter-
mo “contemporâneo” que legitima uma
ideia coreográfica. Ideia, em dança, precisa
estar no corpo, cenicamente. Roberto de
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 9 D E M A R Ç O • 2 0 0 2R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 9 D E M A R Ç O • 2 0 0 2R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 9 D E M A R Ç O • 2 0 0 2R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 9 D E M A R Ç O • 2 0 0 2R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 9 D E M A R Ç O • 2 0 0 2
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
9 0
Oliveira, no entanto, parece ter faltado à
aula onde se ensinou essa lição.
Por fim, uma última questão, que pai-
rava no ar no Teatro Carlos Gomes, no úl-
timo dia 28, data da estreia da DeAnima:
Qual é o projeto de uma política de dança
que concede uma quantia vultuosa a ape-
nas um grupo, se a cidade conta com tan-
tos outros, alguns com preocupações esté-
ticas semelhantes, e que estão na estrada
há anos e ainda não contam com nenhum
apoio financeiro?
Essas questões aparecem, de alguma for-
ma, na obra O despertar, escolhida para lan-
çar a companhia. Coreograficamente, o que
é “oficial” não é a cara do Rio. O que é con-
temporâneo apenas remete a clichês de mo-
vimentos, sem ideia, sem pesquisa, justa-
mente as condições que marcam essa nova
dança de hoje, mesmo que sob a alcunha de
“balé”. E o que falta enquanto projeto se re-
flete na estrutura da montagem do espetá-
culo: os ótimos bailarinos, que apenas pre-
cisam de mais tempo de convívio para me-
lhor afinação, nada ficam a dever ao baila-
rino convidado, fazendo de sua participa-
ção mais uma questão no meio de tantas
outras. Desse modo, o espetáculo de estreia
espelha a fragilidade de concepção tanto
da peça O despertar, quanto do próprio pro-
jeto da companhia.
A seriedade com a qual deve ser enca-
rada essa nova empreitada não concerne
apenas a todos os bailarinos, coreógrafos,
professores e pesquisadores, que há anos
vêm escrevendo a história da dança no Rio
de Janeiro. Ela é tarefa de cada cidadão, em
seu intuito de entender como seus impostos
podem ser, eticamente, transformados em
dança de qualidade.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
9 1
O encontro do gesto edo movimento no palco
Solos de Dança: Projeto do SESC se firmana agenda carioca como um espaço plural de dança
SILVIA SOTER
omo acontece há três anos, O SESC
abre espaço em março para dança.
Em especial, para a produção de solos e
duos, nicho que, apesar de interessante,
tem, tradicionalmente, pouca oportunida-
de de chegar aos palcos. Este ano, a primei-
ra programação incluiu quatro solos, três
inéditos e outro pouco visto pelo público
carioca. Um segundo programa, com solos
criados por Carlota Portella, Paulo Man-
tuano, Bruno Beltrão e Paula Águas, pode-
rá ser visto de hoje a domingo, no mesmo
palco do SESC de Copacabana.
A curadora Bia Radunsky entregou a
Gilberto Gawronski a organização da noi-
te. O diretor montou uma sequência de pe-
ças que permite localizar uma linha con-
dutora que costura as diferentes propos-
tas. Como resultado, o conjunto de obras
do primeiro programa conduz à reflexão
sobre as relações entre o gesto e o movi-
mento na dança. Se essas ideias muitas
vezes se confundem, algumas caracterís-
ticas permitem distingui-las. O gesto seria
o movimento humano com carga simbólica
ou de comunicação, dirigido ao outro e ao
mundo. Já o movimento possuiria sentido
mais amplo, mais próximo da abstração.
Estaria na natureza como na cultura, li-
gado às noções da física como aceleração,
deslocamento ou ainda na alteração de
um sistema.
Na dança, alguns criadores se debruçam
sobre as possibilidades do gesto como ma-
téria-prima para a construção de um voca-
bulário próprio. O gesto cotidiano é investi-
gado, sofre repetições, subtrações, deforma-
ções, chegando a níveis diferentes de efi-
ciência e abstração. Do gesto podem (ou
não) chegar ao movimento.
Corpo provisório, solo de Ana Vitória
que abriu a programação da semana pas-
sada, é um belo exemplo dessa alquimia.
Dos pequenos gestos, que em cena surgem
apenas para lembrar que ainda são possí-
veis, Ana Vitória chega à ideia de um
corpo-máquina, movimento dotado de
clareza, agilidade e admirável precisão. A
proximidade entre palco e plateia afasta
qualquer frieza. A cena circular do SESC
de Copacabana trouxe ganhos para a peça
como a possibilidade de reconhecer no te-
C
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 1414141414 DE MARÇO • 2002 DE MARÇO • 2002 DE MARÇO • 2002 DE MARÇO • 2002 DE MARÇO • 2002
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
9 2
cido coreográfico gestos de comunica-
ção direta com os espectadores.
Em Memória concreta, solo de Sylvio
D ufrayer dançado pela bonita Alessandra
Lofiego, um lençol branco estendido no cen-
tro do palco desenha uma cama como cená-
rio. Em off, a voz da própria intérprete desfi-
la lembranças íntimas de sua infância e ado-
lescência enquanto encena seu corpo rea-
ge à voz, resgatando a memória nele im-
pregnada. A qui, está no texto e menos na
movimentação a necessidade de maior
elaboração para que o sentido transcenda o
de mero relato pessoal.
O encenador Enrique Diaz foi desafia-
do pela curadoria da mostra a criar uma
peça. O trabalho, defendido com competên-
cia por Mariana Lima, trata da construção
de uma cena, e por que não de uma sequên-
cia de dança, a partir do gesto cotidiano. A
atriz parte de gestos como designar, afastar
e negar, associados a sons abstratos, para
tecer uma partitura gestual limpa e intensa,
a qual se junta um texto de Clarice Lispec-
tor. A peça de Diaz, ao mesmo tempo sim-
ples e sofisticada, serve como uma aula de
composição fundamentada no gesto.
Crianças, de Márcia Milhazes, encerrou
a noite. O bailarino, sempre em percurso
circular, segue um tocador de acordeom e
sua música. Aqui, gesto e música criam am-
bientes afetivos diversos. Mesmo ainda bas-
tante embrionária, a peça aponta os novos
e interessantes rumos de investigação da
coreógrafa.
Em sua terceira edição, o projeto So-
los e Duos no SESC se afirma na agenda
cultural da cidade como um espaço de
dança no plural. Há espaço tanto para
estreias como para peças não inéditas,
para criadores que raramente são vistos
em circuitos oficiais e ainda para a promo-
ção de encontros férteis como, por exem-
plo, o de Enrique Diaz com a dança.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
9 3
Passos, música e interatividadeembalam celebração coreográfica
Solos no SESC: Peças eficientes de Mantuano,Beltrão, Carlota e Paula Águas fecham projeto
SILVIA SOTER
segunda semana dos Solos no SESC –
projeto que levou ao teatro do SESC,
em Copacabana, por duas semanas consecu-
tivas, oito solos criados por coreógrafos cari-
ocas – terminou no domingo em clima de
festa, depois da apresentação de um eficien-
te conjunto de pequenas peças que trouxe-
ram a interatividade e a música para o cen-
tro do palco.
Paulo Mantuano apresentou uma nova
versão de Quasi-infinito transformada pela
presença da música ao vivo de Rafael Ro-
cha. Neste solo, inspirado nas construções
espaciais de Escher, Paulo investiga as re-
lações corpo e espaço em dois níveis com-
plementares: a trajetória que seu corpo de-
senha no espaço, indo da vertical, ao chão
e do chão à vertical e o caminho do movi-
mento circunscrito em seu próprio corpo.
Movimento que o espectador vê nascer, a
partir do estímulo sonoro, e que vê percor-
rer cada parte do corpo do criador-intér-
prete para se transformar em breves sus-
pensões que antecipam um novo início.
Paulo Mantuano, com domínio absoluto
dos caminhos de seu corpo, constrói uma
dança sem arestas na qual, como nos dese-
nhos de Escher, o espaço de dentro e o es-
paço de fora se confundem.
Em Uni, du ni…, Carlota Portella joga
com a ideia de um solo dançado por dois
intérpretes que se alternam no palco. Um
casal, cada um em separado, sofre em cena
a ausência do outro. Mas será que um solo é
apenas uma dança feita por um? A repeti-
ção das entradas e saídas dos intérpretes, o
ambiente afetivo da peça e a carga emocio-
nal do próprio gestual incluem o ausente na
cena e transformam a peça em um duo. Nas
quatro noites do evento, quatros diferentes
casais se revezaram, guardando a mesma
estrutura, mas trazendo marcas próprias a
cada relação a dois.
Fones de ouvidos ligam os espectado-
res à frequência da mente de um jovem,
no impactante Eu e meu coreógrafo no 63,
de Bruno Beltrão. O texto, uma conversa
de fim de noite gravada num quarto de
hotel, expõe a intimidade e os descami-
nhos das reflexões de um rapaz, provocan-
do reações que vão do riso a uma certa
angústia. A dissociação das ideias do
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 19 DE MARÇO • 2002RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 19 DE MARÇO • 2002RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 19 DE MARÇO • 2002RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 19 DE MARÇO • 2002RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 19 DE MARÇO • 2002
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
9 4
jovem ganha equivalência precisa na mo-
vimentação derivada da linguagem da
dança de rua. Aquilo que se ouve e aquilo
que se vê em cena são pensamentos e mo-
vimentos partidos, gestos reversíveis e in-
terrompidos, produzindo pequenas constru-
ções não lineares.
Encerrando a noite, a coreógrafa e
bailarina Paula Águas propõe uma brin-
cadeira divertida com a plateia. Munida
de vários CDS, Paula convida os especta-
dores a escolherem as músicas a partir das
quais ela irá improvisar. Em Qual é a
música?, cada espectador pode interagir
com a intérprete através desse controle
remoto musical. O espectador torna-se, ao
mesmo tempo, DJ e voyer. O resultado é
bastante interessante. A bailarina não se
deixa cair na relação fácil de ilustrar a
música escolhida, e a ansiedade dos es-
pectadores em contribuir resulta num tex-
to coreográfico picado por cortes prema-
turos produzindo no espectador um misto
de frustração e “gosto de quero mais”.
Embalados pelo jogo de Paula Águas,
ao final da noite, todos os intérpretes vol-
tam ao palco numa festa improvisada, ce-
lebrando a confirmação dos Solos no
SESC como início da temporada carioca
da dança contemporânea.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
9 5
Rostropovich rouba acena e faz a sua festa
Romeu e Julieta: Montagem do clássico de Shakespeareno Municipal mostra desequilíbrio entre a qualidade da
direção musical e a coreografia
SILVIA SOTER
uando a cortina sobe, o único foco ilu-
mina a cabeça de Mstislav Rostro-
povich, no centro do palco. A imagem im-
pactante que inaugura o espetáculo Romeu
e Julieta sintetiza a singularidade da con-
cepção do russo Vassiliev para o mito de
Shakespeare: a música não é apenas uma
peça importante, e sim o elemento central
dessa versão. E a dança está lá para conferir
maior visibilidade à música. “Veja a música
e escute a dança”, sugeria Balanchine.
A presença da orquestra no centro do
palco é apenas uma das formas de dar ma-
terialidade à ideia. Os tradicionais telões de
fundo do cenário foram substituídos por pro-
jeções criadas pelo argentino Tito Egurza,
que ora criam ambientações e localizam a
ação dramática, ora imprimem texturas, de-
talhes e cores, comentando a ação. A movi-
mentação dos bailarinos restringe-se a ape-
nas duas faixas de palco, uma no proscênio
que avança sobre o fosso da orquestra e a
outra ao fundo e acima do plano dos músicos.
Ainda no prólogo, torna-se evidente que
buscar um outro equilíbrio entre música e
dança não é tarefa fácil. Antes que o olhar
do espectador possa se desligar do fascínio
exercido pela figura de Rostropovich à
frente da orquestra, a cena é invadida pe-
los bailarinos em figurinos estilizados, apre-
sentando uma Verona dividida por cores e
fidelidades. Neste e em outros momentos
da noite, a dança parece ser prejudicada
pela quantidade excessiva de estímulos vi-
suais e pela exiguidade do espaço destina-
do aos conjuntos.
O elenco da noite de estreia, encabeça-
do por Roberta Márquez e Thiago Soares,
confirma a competência e o amadurecimen-
to artístico da nova geração do Theatro Mu-
nicipal. É preciso ressaltar a predominân-
cia dos papéis masculinos, defendidos com
brilho e segurança pelos solistas.
Destacam-se as atuações de André Va-
ladão como o brincalhão Mercucio, de Mar-
celo Misailidis, como o viril Teobaldo e, ain-
da, as participações de Rodrigo Negri, Vi-
tor Luiz e René Salazar como Benvólio,
Paris e Gregório, respectivamente. Cláu-
dia Mota imprime severidade e firmeza à
sra. Capuleto, e Lourdja Mesquita realiza
uma ama amorosa e maternal.
Q
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOR I O D E J A N E I R OR I O D E J A N E I R OR I O D E J A N E I R OR I O D E J A N E I R OR I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 2 5 D E M A I O • 2 0 0 2 • S Á B A D O • 2 5 D E M A I O • 2 0 0 2 • S Á B A D O • 2 5 D E M A I O • 2 0 0 2 • S Á B A D O • 2 5 D E M A I O • 2 0 0 2 • S Á B A D O • 2 5 D E M A I O • 2 0 0 2
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
9 6
O desejo de isolamento e intimidade
experimentado pelo casal protagonista é
partilhado pelo espectador. Quando a cena
está vazia, restando apenas (apenas?) Ros-
tropovich, sua orquestra e Roberta e Thia-
go, o espetáculo Romeu e Julieta conhece
seus pontos mais altos. A sobriedade e a
nobreza de Thiago fazem dele um Romeu
preciso, ainda que contido, enquanto as inú-
meras qualidades da jovem Roberta a
transformam numa impecável Julieta.
Ainda que não dê conta de equilibrar a
obra de Prokofiev, sob a batuta de Rostro-
povich, e a dança, na coreografia de Vassi-
liev, o espetáculo guarda surpresas e alguns
momentos que ficam na memória.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
9 7
Ana Botafogo dominaa cena no Municipal
Romeu e Julieta: Sabedoria de estrela
SILVIA SOTER
na Botafogo e André Valadão estrea-
ram no sábado nos papéis principais
de Romeu e Julieta, espetáculo dirigido e co-
reografado pelo russo Vladimir Vassiliev, e
com Mistilav Rostropovich comandando
com rigor e brilho a orquestra, subvertendo
os moldes habituais de relação entre músi-
cos e corpo de baile. No Romeu e Julieta de
Vassiliev – que encerra temporada na sex-
ta-feira no Theatro Municipal –, para garan-
tir seu lugar em cena, a dança precisa ser
defendida sem direito a deslizes ou erros, o
que faz necessário maior afinação nas ce-
nas de conjunto do corpo de baile.
Apesar da originalidade da proposta de
levar a orquestra para o palco e tirar a dan-
ça de sua posição privilegiada, a versão de
Vassiliev parece a meio caminho entre uma
leitura mais ousada e a tradição. Sinais des-
sa indecisão manifestam-se no figurino, que
não se define entre a limpeza e a estiliza-
ção de linhas e cores e trajes de época, e na
concepção cenográfica, que substitui os te-
lões de fundo por recursos multimídia. A
ideia de criar uma cenografia virtual respon-
de à necessidade de rapidez das trocas de
cenas, já que a presença da orquestra no
palco impede que haja pausas e respirações
entre os movimentos da música. No entan-
to, a ferramenta multimídia, dotada de pos-
sibilidades quase infinitas, restringe-se, na
prática, a criar digitalmente em telões a ar-
quitetura renascentista. Assim, sem dar con-
ta de optar por um caminho definido, tradi-
ção e ousadia saem perdendo.
A distribuição dos papéis masculinos na
noite de sábado enfraqueceu o trio consti-
tuído por Romeu e seus companheiros. Vi-
tor Luis ainda parece buscar sua interpre-
tação de Mercúcio e só encontra o tom em
sua cena final. André Valadão tem atuação
bastante correta como Romeu, mas sem o
brilho de seu Mercúcio.
Sem ter como suporte um desenho
coreográfico especialmente interessante,
Ana Botafogo usa enorme sabedoria e
constrói sua Julieta na interpretação dra-
mática da personagem. Acerta. Com segu-
rança e tranquilidade de quem se sente à
vontade no palco, a primeira bailarina do
Municipal domina absoluta a cena. Seu ros-
to e gestos desenham com nuances a traje-
tória trágica de Julieta. Sua interpretação
narra cada detalhe da história. Ao longo das
três horas de espetáculo, há alegria inocen-
te, obediência, rebeldia, amor e desespero,
sem maneirismos ou desperdício. É nela que
o mito de Shakespeare respira.
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 27 DE MAIO • 2002 SEGUNDA-FEIRA • 27 DE MAIO • 2002 SEGUNDA-FEIRA • 27 DE MAIO • 2002 SEGUNDA-FEIRA • 27 DE MAIO • 2002 SEGUNDA-FEIRA • 27 DE MAIO • 2002
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
9 8
Corpo de baile brilhapela musicalidade
Giselle/Balé da Ópera de Paris: Agnèsnão convence em papel-título, enquanto Bart mostra
competência em suas variações
SILVIA SOTER
mas das obras mais expressivas do
balé romântico chegou ao Theatro
Municipal do Rio, no último sábado, defendi-
da pela companhia que a viu nascer. O Balé
da Ópera de Paris elegeu Giselle, na versão
coreográfica de Coralli e Perrot enriquecida
pelas importantes contribuições de Petipa,
como representante da tradição, para essa
turnê brasileira. Na terça e quarta-feira, o Rio
assistirá a Jewels, de George Balanchine,
peça que entrou recentemente no repertório
sempre renovado da companhia.
Inspirada na lenda eslava das wilis, jo-
vens que morrem antes das núpcias e são
condenadas a vagar à noite, obrigando os
rapazes que capturam a dançar até a morte,
Giselle tornou-se um arquétipo do balé ro-
mântico, referência para criação coreográ-
fica e, ao longo de quase dois séculos de
existência, inspirou inúmeras remontagens
e releituras.
Sempre que uma obra de repertório é
remontada há, inevitavelmente, uma relei-
tura. Por mais fiel que a remontagem se pre-
tenda, a coreografia é desenhada por corpos
de outros bailarinos e são eles que traduzi-
rão para o público o encontro entre dois
tempos: o momento da criação da peça e o
instante da cena. Algumas adaptações, mais
ou menos evidentes, buscam ainda atualizar
a obra, produzindo resultados marcados por
singularidades.
Em Giselle da Ópera de Paris, há um
cuidado em não ser excessivo na interpre-
tação dramática. As cenas de pantomima,
responsáveis pelo fio narrativo, são traba-
lhadas de forma econômica, garantindo as
nuances de cada mudança de situação sem
jamais cair no exagero. Já que não será na
ênfase de interpretação que os personagens
irão se desenhar aos olhos do público, a dis-
tribuição dos papéis requer enorme preci-
são para que as características centrais de
cada personagem se façam visíveis.
Na noite de estreia, a estrela Agnès
Letestu, bailarina precisa e segura, mas que
não possui o physique du rôle da personagem,
não convenceu no papel de Giselle. Houve
fragilidade de menos e loucura de menos na
sua composição da jovem camponesa apaixo-
nada por Loys e pela dança, criando, ainda
no primeiro ato, uma distância excessiva
U
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE JUNHO • 2002 • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE JUNHO • 2002 • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE JUNHO • 2002 • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE JUNHO • 2002 • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE JUNHO • 2002
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
9 9
entre público e obra. Estreando como Albre-
cht, Jean-Guillaume Bart, mesmo parecen-
do ainda buscar o equilíbrio entre a nobre-
za inerente ao personagem e o seu disfarce
de camponês, mostrou grande competência
em suas variações, sobretudo no segundo ato.
O corpo de baile, depois de alguns ajus-
tes no início do primeiro ato, brilhou por
sua homogeneidade e musicalidade. No
segundo ato, apesar de momentos de im-
precisão, as cenas de voo das wilis foram
garantidas pela leveza e pela ausência
absoluta de ruído do contato das bailari-
nas com o chão.
Sublinhados por uma bela iluminação,
os cenários e os figurinos, reconstituídos
a partir dos croquis originais e de outros
documentos de época, são um espetáculo
à parte. Ponto sempre delicado nas obras
de repertório, a ambientação da monta-
gem francesa alia grandiosidade e limpeza
de linhas.
Ao final do primeiro ato, uma surpre-
sa: por momentos, a movimentação é sus-
pensa, criando bonitos tableaux vivants,
quando o tempo é esgarçado para dar
visibilidade à hesitação de Giselle em
acreditar no seu trágico destino.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
100
Corpo de bailerouba a cena
Balé da Ópera de Paris surpreende ao fazerdo primeiro ato o destaque de Giselle
ROBERTO PEREIRA
mais antiga companhia de balé do
mundo, a da Ópera de Paris, iniciou sua
turnê pelo Brasil mostrando ao público ca-
rioca no Theatro Municipal, neste último sá-
bado, sua versão para a obra-prima român-
tica dos balés de repertório: Giselle. Trata-
se de um momento especial, já que esse
mesmo balé, desde sua estreia em 1841, pela
mesma companhia, vem sofrendo transfor-
mações: algumas que tentam se aproximar
de um original já distante, outras que radi-
calizam em novas leituras, como a do sueco
Mats Ek. O que há de especial na versão
apresentada aqui é a tentativa de recupe-
rar a montagem que o francês Marius Peti-
pa produziu na Rússia, em 1887, e que trou-
xe de volta o balé à sua primeira casa, atra-
vés da histórica companhia dos Ballets Rus-
sos de Diaghilev, que contava com os mitos
Nijinsky e Karsavna, em 1910.
Assim, enquanto cenários e figurinos são
reconstruídos a partir dos croquis originais
do artista russo Alexandre Benois, a coreo-
grafia prima por trazer de volta à cena as
qualidades românticas do balé. Tal cuidado
pode ser conferido, sobretudo, no primeiro
ato, com certeza o melhor dos dois (algo iné-
dito, na medida em que o segundo ato é sem-
pre o mais famoso pela poeticidade do bal-
let blanc), pois conta com uma pantomima
minuciosa, resultando numa narrativa pre-
cisa, tal como deve mesmo ser. O corpo de
baile aparece aí seguro, coeso, mesmo que
Mélanie Hurel e Jérémie Bélingard, baila-
rinos responsáveis pelo pas-de-deux dos
camponeses, tenham se mostrado um tanto
afoitos, o que se podia ver claramente nas
finalizações de seus passos.
Ao retornar ao palco para segundo ato,
entretanto, esse mesmo corpo de baile não
corresponde à exatidão exigida pela core-
ografia, principalmente na sequência dos
arabesques na famosa cena do baile das
wilis. Isso sem contar no incidente do véu
de uma delas, que, caído no palco, manchou
essa cena tão emblemática. Stéphanie
Romberg, como a rainha Mirtha, estava tão
segura da crueldade de sua personagem,
que parece ter esquecido a sutileza do sor-
riso enigmático que a caracteriza, o que
traz à tona os atritos da dualidade român-
tica de sedução e horror.
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE JUNHO • 2002 • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE JUNHO • 2002 • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE JUNHO • 2002 • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE JUNHO • 2002 • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE JUNHO • 2002
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
101
Mesmo com essas desigualdades entre
os dois atos, o corpo de baile parece mes-
mo ter sido a étoile da noite, roubando a
cena de Jean-Guilhaume Bart e Agnès
Letestu, nos papéis principais. Enquanto o
bailarino, em sua estreia como Albrecht, é
impecável em seu desempenho técnico, em
especial nos saltos e baterias, carece ainda
de maturidade dramática, tão importante,
por exemplo, no segundo ato. Já Letestu,
bailarina que surpreende pela sua alta es-
tatura, não acomoda bem em seu corpo a
dualidade da frágil menina do primeiro ato
e sua transformação em um ser etéreo no
segundo. Se é neste último ato em que me-
lhor atua, o desafio confiado às primeiras
bailarinas de transitar entre esses dois
mundos tão distintos parece não ter sido
vencido nessa noite.
Assim, pôde-se comprovar que o intui-
to da companhia era o de uma remonta-
gem cuidadosa, mesmo que se note a au-
sência de alguns detalhes importantes,
como a cena da aparição de Giselle vin-
da do túmulo e, sobretudo, a cena em que
ela leva seu amado para perto da cruz, a
fim de protegê-lo dos poderes satânicos de
sua rainha, ambas no segundo ato, e tão im-
portantes para a compreensão do balé.
Mas, nesse zigue-zague entre novas e ve-
lhas versões, há de se considerar perdas e
ganhos. Para o público brasileiro, num ba-
lanço final, com certeza ganhou-se mais do
que se perdeu.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
102
Ilustração de ritmosCoreografia de O grande circo
místico se rende à música
ROBERTO PEREIRA
ideia era comemorar os 20 anos de
uma obra que, se não permaneceu na
memória do grande público no que se refere
à dança, replicou em sucessos no que se refe-
re às canções, assinadas por dois grandes mi-
tos da MPB: Chico Buarque e Edu Lobo. O
grande circo místico, balé que estreou no
Teatro Odylo Costa Filho, anteontem, pela
companhia do Teatro Guaíra, de Curitiba,
volta à cena comprometido com essa come-
moração, correndo todos os riscos que uma
empreitada desse tipo sempre oferece.
Outra ideia era a de uma nova versão,
já que a coreografia original, de Carlos Trin-
cheira, parecia datada. Para tanto, reuniu-se
um time de artistas que deveria recuperar
o frescor da história mítica de uma família
circense, que havia ficado marcada defini-
tivamente pelo poder que as canções popu-
lares adquirem ao longo do tempo, quando
se trata de belas composições, como é o caso.
Um grande desafio, sem dúvida.
O primeiro problema, entretanto, está na
opção do coreógrafo que assina a nova ver-
são, Luis Arrieta, por percorrer de forma li-
near o que a música sugere. Sob o poder
desta última, a coreografia fica relegada à
mera ilustração de ritmos e, ainda pior, à
legenda das letras. Na dança, a dramaturgia
deve investigar no corpo sua possibilidade
de tradução, e não apenas cair na fácil arma-
dilha de tentar referendar o que está sendo
dito por uma outra linguagem, no caso, a
canção. O resultado, infelizmente, é a previ-
sibilidade, qualidade que impede qualquer
frescor de novas versões, e de comemorações,
portanto. Isso pode ser comprovado, sobre-
tudo, no duo da canção Beatriz, onde Arrieta
faz uso apenas do que ele provou saber fazer
há 20 anos também: um pas-de-deux cheio de
clichês coreográficos, de onde escorre um
açucarado entendimento de uma melodia tão
familiar ao público. Basta fechar os olhos por
uns instantes para adivinhar, sem erro, os mo-
vimentos que ali se atualizam. A coreografia,
mesmo à revelia, ainda continua datada.
Nem mesmo a contribuição de outros
artistas parece poder respirar sob as réde-
as onipotentes de Arrieta, que também as-
sina a direção do espetáculo. Dani Lima,
jovem coreógrafa carioca, responsável pe-
las coreografias aéreas, cumpriu burocra-
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 2 9 D E J U N H O • 2 0 0 2• S Á B A D O • 2 9 D E J U N H O • 2 0 0 2• S Á B A D O • 2 9 D E J U N H O • 2 0 0 2• S Á B A D O • 2 9 D E J U N H O • 2 0 0 2• S Á B A D O • 2 9 D E J U N H O • 2 0 0 2
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
103
ticamente o que lhe foi reservado, mesmo
que seja ainda evidente a pouca familia-
ridade dos bailarinos com sua linguagem.
Já Rosa Magalhães, responsável pelos ce-
nários e figurinos, ao optar também pela
ilustração óbvia da música, esqueceu-se
de que se tratava de dança, e investiu numa
encenação carnavalesca, especialidade
sua, que pode ser conferida sobretudo na
cena dos animais que vão sendo retirados
um de dentro do outro como aquelas bo-
nequinhas russas. A semelhança com as re-
centes comissões de frente das escolas de
samba é evidente.
Uma produção cara, ótimos baila-
rinos (parabéns ao trabalho de Elaine de
Markondes) e uma tarefa ingrata de co-
memoração. Ouvir as canções ainda é o
modo mais gratificante de recuperar os
20 anos dessa obra tão especial.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
104
Monólogo de movimentosDiálogo de Deborah Colker comas artes plásticas não se conclui
ROBERTO PEREIRA
novo espetáculo de Deborah Colker
e sua companhia, que estreou no Rio
de Janeiro anteontem, no Theatro Munici-
pal, busca um diálogo entre a dança e as artes
plásticas. Para tanto, a coreógrafa partiu de
quatro trabalhos desenvolvidos por diferen-
tes artistas, resultando em momentos distin-
tos que compõem sua obra intitulada 4 por
4. Na verdade, essa aproximação é algo que
existe na dança há muito tempo, já que as
artes plásticas sempre funcionaram não
apenas como cenários e figurinos, mas tam-
bém interferindo coreograficamente no cor-
po e em seus movimentos. Deborah Colker,
contudo, parece ficar ainda indecisa entre as
tantas possibilidades existentes em tal rela-
ção, o que se reflete em sua coreografia.
Em Cantos, primeiro momento da noite,
o artista plástico Cildo Meireles compare-
ce com seis grandes estruturas desenvolvi-
das no final da década de 1960. A ideia se-
ria a de explorar as qualidades existentes
numa situação espacial bastante específica,
mas Deborah, ao optar por uma excessiva
frontalidade, acabou por achatar o que lá
existia antes como recurso coreográfico.
Como resultado, o que antes poderia ser in-
vestigado em seu caráter de canto, de esqui-
na, transforma-se quase numa parede em
que, ao contrário do jogo de esconder e re-
velar, oferece o explícito e dança desenvol-
vida pelos bailarinos. Esta, aliás, auxiliada
pelo figurino assinado por Yamê Reis, apro-
xima-se muito mais da linguagem da publi-
cidade, ao optar pela representação de uma
sensualidade videoclipada, rápida, quase
que de instantes fotográficos.
Os quatro artistas integrantes do Chel-
pa Ferro foram os responsáveis por um dos
quadros mais interessantes do espetáculo:
Mesa. Objeto metamorfoseado em obra de
arte, essa mesa elaborada por eles ofereceu
à coreógrafa recursos diversos de explora-
ção de espaços, deslocamentos e intensida-
des de movimentos. Entretanto, a dança pa-
receu não compartilhar com o objeto uma
de suas qualidades mais explícitas, que era
o fato de aparecer revelando proposital-
mente suas engrenagens. Era a chance de
mecânicas diversas, da mesa e do corpo,
dialogarem, mesclarem-se, o que efetiva-
mente não ocorre. Já Povinho, desenvol-
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O • R I O D E J A N E I R O • R I O D E J A N E I R O • R I O D E J A N E I R O • R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • S Á B A D O • S Á B A D O • S Á B A D O • S Á B A D O • 6 D E J U L H O • 2 0 0 26 D E J U L H O • 2 0 0 26 D E J U L H O • 2 0 0 26 D E J U L H O • 2 0 0 26 D E J U L H O • 2 0 0 2
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
105
vido a partir de dois grandes painéis assi-
nados por Victor Arruda, foi, com certeza, o
quadro mais problemático da noite. O ges-
to que se quer infantilizado se perde em uma
movimentação enfraquecida em termos de
vocabulário coreográfico, parecendo, antes,
uma homenagem ao jazz, linguagem carac-
terística de uma época da Broadway. O ges-
to, portanto, aparece por demais datado, e
seu diálogo com a pintura não se efetua.
Por fim, em Vasos, Deborah revisita
dois momentos emblemáticos de sua car-
reira. O primeiro deles é sua atuação
como pianista, enquanto duas bailarinas,
excelentes, dançam sobre as pontas. E o
segundo é sua volta, sempre ansiosamen-
te aguardada pelo público, ao risco. Se o
primeiro oferece um feliz momento de
quebra de uma sonoridade excessivamen-
te homogênea desenvolvida por Berna
Ceppas e Kassin, o segundo trabalha com
o perigo de um espaço habitado matemati-
camente por vasos, idealizado por Gringo
Cardia. O desafio é o movimento dos bai-
larinos entre eles, sem danos para ne-
nhum dos lados. Novamente, a coreó-
grafa parece deixar escorrer pelos dedos
a possibilidade de, no corpo e, portanto,
na dança, traduzir tal desafio.
Deborah Colker, em 4 por 4, confirma
sua habilidade impecável de construir
obras que se sustentam sob o registro do
espetacular. Transformar tal habilidade
em uma chance de se fazer pensar é tare-
fa que ela, visivelmente, parece ainda
querer vencer.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
106
Dança que operano universo pop
4 x 4: O que o grande público conhece, desejaver e, quem sabe, deseja possuir e ser
SILVIA SOTER
a última quinta-feira, o público vibrou
com a coreógrafa mais pop do Rio de
Janeiro. A Companhia de Dança Deborah
Colker estreou 4 x 4 para um Theatro Mu-
nicipal lotado como há muito não se via.
Nesta última criação, a coreógrafa trouxe
as artes plásticas como matéria para sua
dança, através das obras de Cildo Meirel-
les, de Vítor Arruda, do grupo Chelpa
Ferro e de Gringo Cardia.
Desde Velox, Deborah vem explorando
diferentes suportes para a dança. A quarta
parede materializada em Velox, a roda gi-
gante emblemática do passeio descompro-
missado que a obra de Deborah se propõe
em Rota e os planos basculantes de Casa
servem de norte para a construção coreográ-
fica. O espaço para Deborah é concreto e
arquitetural. Sua dança responde de forma
precisa e, às vezes, excessivamente rigoro-
sa ao que cada espaço sugere e autoriza.
É nesse registro que se estabelece, quase
o tempo todo, o encontro entre a dança e as
artes plásticas em 4 x 4. Na maior parte dos
quadros, a obra serve de lugar de ação mais
do que de estímulo ou alimento para desvios
e novas possibilidades de investigação. Se há
interação direta entre os bailarinos e as
obras não é no corpo que a mistura se dá, e
sim na coabitação entre a dança marcada por
uma tonicidade ainda pouco cambiante e
cada objeto/ambientação/partner
A primeira peça da noite, Cantos, traz
seis esquinas de Cildo Meirelles para o pal-
co. A sensualidade da luz, da música e dos
belos figurinos é confirmada pela movi-
mentação dos bailarinos. Os três planos
servem, aos moldes de Casa, como suporte
para investigar novos apoios para a dança
e ambientam encontros de uma sedução
elegante. Logo nesse primeiro quadro, tor-
na-se visível a beleza e a competência dos
bailarinos da companhia.
Para Mesa, o sábio grupo Chelpa Ferro
criou um misto de mesa e esteira rolante
sobre a qual os bailarinos se equilibram. A
continuidade do deslocamento da mesa ser-
ve de base para um jogo lento entre o avan-
çar e o recuar, passeios na linha do tempo.
É exatamente quando Deborah experi-
menta uma relação diferente das anterio-
res entre obra e dança, deixando de usá-la
N
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 8 DE JULHO • 2002 SEGUNDA-FEIRA • 8 DE JULHO • 2002 SEGUNDA-FEIRA • 8 DE JULHO • 2002 SEGUNDA-FEIRA • 8 DE JULHO • 2002 SEGUNDA-FEIRA • 8 DE JULHO • 2002
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
107
como lugar para explorá-la como universo
imaginário, que a coreógrafa se coloca em
posição mais frágil. Em Povinho, dois telões
gigantes de Vitor Arruda são esvaziados por
uma leitura bastante rasa em que as cores e
imagens representadas ganham citações nos
gestos infantis. Apesar da busca de amplia-
ção do vocabulário de movimentos, uma
maior elaboração ainda parece necessária.
Abrindo a segunda parte do espetáculo,
As meninas aponta, finalmente, uma nova
trilha a ser percorrida por Deborah. A o pia-
no, a coreógrafa traz Mozart para ambien-
tar a dança nas pontas de duas bonitas bai-
larinas. Talvez o que faz As meninas tão in-
teressante em 4 x 4 seja exatamente o fato
de trazer visível aos olhos do público a dan-
ça em seu momento de elaboração, de ex-
ploração de caminhos e possibilidades. Esse
algo que ainda não está fechado e pronto é
borrado de forma feliz pela distribuição dos
vasos no palco, mais uma vez revelando as
entranhas que a dança de Deborah rara-
mente utiliza como matéria de criação.
Gringo Cardia é a grande estrela em
Vasos, última peça da noite. A precisão
milimétrica da disposição dos 90 vasos de
cerâmica construída diante dos olhos do
público já é um espetáculo à parte. Dan-
çar entre eles, uma experiência circense
que requer a segurança e a agilidade de
um atirador de facas. Mais uma vez aqui
o espaço arquitetural retorna, diagrama-
do pelos vasos.
Quem acompanha a trajetória da co-
reógrafa desde Vulcão, percebe que a dan-
ça de Deborah opera no universo pop. O
glamour, o mundo fashion, a música ele-
trônica, a juventude dourada e sedutora
estão tão aderidas na dança de Deborah
quanto, por exemplo, na publicidade. Sua
dança corresponde ao que o grande públi-
co conhece, deseja ver e, quem sabe, de-
seja possuir e ser.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Um balé marcado peloexcesso de elementos
Cinderela, ser ou...(a)parecer?: Sem nuances
SILVIA SOTER
história de Cinderela inspirou diversos
coreógrafos com resultados bastante
distintos. Nas últimas décadas, a fábula de Per-
rault ganhou leituras variadas como a trans-
posição da história da gata borralheira para
uma loja de brinquedos assinada por Maguy
Marin ou a versão que Rudolf Nureiev criou
em 1986 para a Ópera de Paris em que a fá-
bula se passa em Hollywood. Nesta, Cinde-
rela é uma atriz iniciante por quem o ator prin-
cipal se apaixona. No Rio, no final dos anos
70, Dalal Achcar assinou uma versão de Cin-
derela com música de Donna Summer, em-
balada pela era da discoteca e protagoniza-
da por Ana Botafogo. Na última quinta-feira,
o DeAnima Ballet da cidade do Rio de Ja-
neiro estreou Cinderela…ser ou (a)parecer?,
espetáculo que fica em cartaz até o dia 28 de
julho, no Teatro Carlos Gomes.
A versão de Cinderela assinada por Ro-
berto Oliveira é transportada para o mun-
do da moda. Mas não é na elegância e na
sofisticação que o coreógrafo se apoia e sim
no que há de excessivo, fútil e afetado num
ambiente de competições e vaidades. Sua
leitura é marcada pelo estereótipo e pela
oposição do que é belo e fashion e do que
não o é. Bailarinas-modelos desfilam seus
corpos musculosos em lingeries sedutoras,
enquanto figurantes obesas, também em
roupas de baixo, explicitam esse contrapon-
to sentadas na plateia na cena do desfile. Na
Cinderela de Roberto de Oliveira não há
espaço para nuances.
Em termos coreográficos, Roberto bus-
ca flexibilizar a técnica clássica. Quedas e
rolamentos associam-se a variações sobre
as pontas. Logo no início do espetáculo, duas
bailarinas imitam passos de danças presen-
tes nos programas de televisão. É de se es-
tranhar, no entanto, que a liberdade a que o
criador se autoriza restringe-se ao vocabu-
lário da técnica clássica, mas não à ideia
mesma de balé.
Sobre a partitura de Prokofiev, o co-
reógrafo constrói o que chama de um
balé-história, isto é, uma peça em que o
compromisso com a narrativa linear e com-
preensível está selado, assim como estava
nos grandes balés românticos. Recursos
como o libreto e, sobretudo, a pantomima
são centrais na peça. Historicamente, a
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 18 DE JULHO • 2002• QUINTA-FEIRA • 18 DE JULHO • 2002• QUINTA-FEIRA • 18 DE JULHO • 2002• QUINTA-FEIRA • 18 DE JULHO • 2002• QUINTA-FEIRA • 18 DE JULHO • 2002
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
109
pantomima substitui sequüências dançadas
para avançar o fio narrativo, já que a pala-
vra, solução mais imediata, não cabia na tra-
dição do ballet. O curioso é que em Cinde-
rela ser ou (a)parecer palavras e exclama-
ções sonoras têm lugar, e a pantomima per-
de função e torna-se alegoria.
Os bailarinos da atual formação da
companhia dão conta de suas tarefas com
eficiência. A jovem e talentosa Nina
Botkay garante delicadeza ao papel de
Cinderela. Apesar de sua bela figura, falta
a Fernando Bersot mais maturidade para
tornar-se um partner à altura de Nina Botkay.
Fran Mello constrói Tio Fairy com seguran-
ça e bom timing de cena. Ainda que absolu-
tamente submersos no excesso de elemen-
tos visuais, figurantes e participações especi-
ais, os jovens intérpretes do DeAnima são,
sem dúvida, o melhor do espetáculo.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Cinderela para virar cultDeAnima surpreende com versão
trash do conto de fadas e ótimos bailarinos
ROBERTO PEREIRA
uem for assistir ao mais novo espetá-culo da companhia DeAnima Ballet
Contemporâneo, até dia 28 de julho no Tea-tro Carlos Gomes, vai ter a chance de se de-parar com uma qualidade de dança bastan-te interessante. Cinderela – Ser ou a/pare-
cer? não é apenas mais uma versão coreo-gráfica do clássico conto de fadas, agoraambientado no mundo da moda atual, mastrabalha com elementos essenciais de umaestética pós-moderna.
Ao investir no exagero e no caricato, ocoreógrafo Roberto de Oliveira deixa cla-ro que o que lá aparece como balé deve serantes entendido como uma possibilidade nadança daquilo que no cinema e nas artesplásticas já existe: seu aspecto trash (lixo, eminglês), ou seja, algo propositalmente feitopara borrar julgamentos estabelecidos doque é belo, harmonioso e benfeito. O resul-tado como balé se configura assumidamen-te numa dimensão de puro entretenimento,e a relação com o público é imediata.
O design do programa, os cenários extra-vagantes, os figurinos óbvios e de cores estri-dentes (vale até sapatilha de pontas revesti-da de oncinha ou brocado e bobs na cabeça),uma luz sem nuance que oscila entre o pink
e o azul claro e uma pantomima exagerada,todos ao lado da música de Prokofiev, deixamclaro como o que antes operava no registro
do erudito, o balé, agora é transformado empopular, sem concessões. Nesse processo, o ca-nal pós-moderno é explícito.
Para tanto, os ótimos bailarinos da com-panhia parecem ter assumido com compe-tência o que lhes foi proposto. A jovemNina Botkay, responsável pelo papel-títu-lo, apresenta-se como uma bela e promis-sora bailarina, mas que ainda carece dematuridade, enquanto a excelente LaraKacowicz investe sem pudor em algo quese assemelha a um show de transformista,qualidade, aliás, presente em todo o espe-táculo. Apenas Fernando Bersot, como oestilista Prince (até nos nomes as relaçõessão óbvias), erra no tom de seu persona-gem ao compô-lo lírico demais, tal comonos balés românticos, destoando da cari-catura espalhada por todo o elenco.
Mesmo avesso a conceitos, Roberto deOliveira parece trabalhar deliberadamen-te com alguns deles em seu balé. Popular ouerudito, trash ou cult, Cinderela – Ser ou a/parecer? trafega com desenvoltura entre ex-tremos da pós-modernidade. Assistir a essebalé é como estar diante de um filme de JohnWaters, ou até mesmo de uma novela mexi-cana (Betty, a feia, em exibição na Rede TV,é aqui um ótimo exemplo). Se o trash viracult, é apenas uma questão de tempo, e essa
Cinderela, com certeza, tem tudo para isso.
Q
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 2 0 D E J U L H O • 2 0 0 2R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 2 0 D E J U L H O • 2 0 0 2R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 2 0 D E J U L H O • 2 0 0 2R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 2 0 D E J U L H O • 2 0 0 2R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 2 0 D E J U L H O • 2 0 0 2
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
111
Sempre um passo adianteSantagustin marca um avançona trajetória do Grupo Corpo
ROBERTO PEREIRA
ara os olhos desavisados, o mais novo
trabalho do Grupo Corpo, Santagustin,
que teve sua estreia na cidade, na última
quinta-feira no Theatro Municipal, traria, à
primeira vista, apenas os movimentos carac-
terísticos que Rodrigo Pederneiras, seu co-
reógrafo, vem desenvolvendo há um bom
tempo, com outro figurino, outro cenário e
outra música. Ultrapassando as armadilhas
de uma primeira leitura, mais fácil e impres-
sionista, há de se acurar os olhos para per-
ceber ali avanços fundamentais na trajetó-
ria ímpar dessa companhia de dança con-
temporânea brasileira.
Para quem constrói um vocabulário core-
ográfico, coisa rara entre os criadores de dan-
ça, cada nova obra surge como um desafio de
extrair sentidos novos desse vocabulário ou,
mais ainda, de alargá-lo. Para quem assiste,
resta a tarefa minuciosa de perceber onde o
movimento se inaugura como novo a partir
de sua relação com o já conhecido sem, con-
tudo, perder a assinatura de quem os cria. Em
Santagustin, Pederneiras consegue mais uma
vez tal façanha, proporcionando ao público
a oportunidade desse exercício, sobretudo por
ser apresentada após Parabelo, outra obra da
companhia, de 1997.
A temática, que circula entre jogos pos-
síveis de amor e humor, parte da história
do filósofo Santo Agostinho e suas relações
entre os prazeres da carne e a sua conver-
são ao cristianismo. Em dança, esses jogos
aparecem em instigantes duos, que se al-
ternam entre homens e mulheres, homens
e homens, mulheres e mulheres. Coreogra-
ficamente, Pederneiras não só experimen-
ta novos movimentos, o que para ele se
pode chamar de verdadeiros neologismos,
como também recupera outros, mais pró-
ximos do balé, que funcionam aqui quase
como “licenças poéticas”, numa inversão
absolutamente nova.
Dentro desse espírito licencioso, tanto
do filósofo quanto do coreógrafo, vale um
coração despudoradamente rosa, de pelú-
cia, como cenário, sendo texturizado pela
invenção fresca dos figurinos assinados por
Ronaldo Fraga, em sua estreia na equipe
tão coesa do Grupo Corpo. Valem também
versos como “chorar é coisa do amor, amor
coisa do coração”, na voz cortante de Tetê
Espíndola, numa música que transita o tem-
po todo entre os atritos do humor e do amor,
sabiamente inventada por Tom Zé e Gil-
berto Assis. São esses avanços que fazem
de Santagustin um convite ao olhar cuida-
doso, mas nem por isso menos bem humo-
rado. Aí, mais um jogo de alternâncias, que
se espalha para o público.
P
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANE IRO • SÁBADO • 7 DE SETEMBRO • 2002R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 7 DE SETEMBRO • 2002R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 7 DE SETEMBRO • 2002R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 7 DE SETEMBRO • 2002R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 7 DE SETEMBRO • 2002
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
112
O Grupo Corpo é, hoje, nossa maior e
melhor companhia de dança contemporâ-
nea. Tem reconhecimento aqui no Brasil e
também no exterior, e a crítica, nacional e
estrangeira, não o “esnoba”. Essa unanimi-
dade tem uma explicação, talvez a primei-
ra, e ao mesmo tempo a mais simples e com-
plexa: o pensamento de dança que se cons-
trói ali é bom. É muito bom. Basta apenas
que se perceba.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Sensualidade debochada que servepara iluminar o passado do Corpo
Santagustin: Em seu novo trabalho,grupo avança no desenvolvimento
de uma linguagem de dança
SILVIA SOTER
corruptela que batiza a mais nova cria-
ção do Grupo Corpo afirma um modo
de fazer. Corromper, modificar, alterar o
sentido deixando o que é essencial presen-
te e transformado é o jeito de criar dessa
companhia mineira. Santagustin, jeitinho
mineiro de evocar o filósofo do século V que
se dividiu entre o amor carnal e a religião
cristã, trouxe o competente Grupo Corpo
de sempre, sempre em vias de transforma-
ção. A temporada carioca que estreou na
quinta-feira passada, termina esta noite, no
Theatro Municipal.
As peças são, em geral, apresentadas
aos pares. A noite é aberta por uma obra
mais antiga e fechada pela peça de es-
treia. A escolha da peça que antecede a
nova obra jamais é aleatória. Ela ofere-
ce pistas e prepara o olhar do espectador
para a nova criação. Aqueles que acom-
panham os mais de 20 anos de estrada da
companhia têm o raro privilégio de se-
rem testemunhas do desenvolvimento de
uma linguagem de dança. Linguagem
com uma identidade própria que não se
deixa engessar.
A música tem servido de bússola para
Rodrigo Pederneiras. Cada parceria musi-
cal determina as trilhas por onde a criação
coreográfica avançará. O encontro de Ro-
drigo com Tom Zé rendeu as duas peças
apresentadas: o belíssimo Parabelo, parce-
ria de Tom Zé com José Miguel Wisnik, de
1997, e o novo Santagustin, de Tom Zé e
Gilberto Assis.
Santagustin explora a face risível do
amor e a atração entre os corpos. Música,
cenário – a projeção de um imenso cora-
ção de pelúcia cor-de-rosa –, coreografia
e figurino conspiram para que não haja
adesão ao que poderia existir de românti-
co na cena. O figurinista Ronaldo Fraga
acentua o aspecto bufão dos intérpretes.
Cabelos grisalhos, rostos pintados e figu-
rinos verde e rosa sublinhando as “partes
íntimas” provocam o distanciamento e a
impessoalidade procurados. Na voz das
cantoras, o amor é, simultaneamente, der-
ramado e criticado.
Em Santagustin, os duos são exercícios
de análise combinatória. Para amar é pre-
ciso apenas ter um outro. Seja ele homem
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE SETEMBRO • 2002RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE SETEMBRO • 2002RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE SETEMBRO • 2002RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE SETEMBRO • 2002RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE SETEMBRO • 2002
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
114
ou mulher. Mas sempre que o outro apare-
ce, os corpos se unem, em geral pelos qua-
dris. Uma atração veloz e ritmada, como que
provocada por um ímã. A ondulação do tron-
co que em Parabelo aparece em um fluxo
contínuo, sempre do chão para o alto, está
presente em Santagustin. Ela é a mesma e é
outra, já que uma espécie de violência se
instala e interrompe bruscamente o fluxo de
movimento. Em O corpo, criação de 2000
com música de Arnaldo Antunes, essa vio-
lência já havia sido explorada. Nuances de
um vocabulário de movimento que está sem-
pre em processo.
Se as peças mais antigas apontam cami-
nhos para leitura das mais recentes, cada
nova criação do Grupo Corpo ilumina as
peças anteriores. A sensualidade debocha-
da de Santagustin mostra como, de forma
menos explícita, a sensualidade sempre es-
teve presente e produtiva naqueles corpos
que dançam. E como dançam!
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
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Ações pedagógicas que somam, semse sobreporem à qualidade do produto
Dança das marés: Trabalho confirma oamadurecimento do grupo formado
no Complexo da Maré
SILVIA SOTER
encontro do educador do movimento
e coreógrafo paulista Ivaldo Bertazzo
com os jovens e as crianças do Centro de
Estudos e Ações Solidárias da Maré ren-
deu seu terceiro fruto. Dança das marés,
em cartaz no Ginásio do SESC Tijuca até
o fim de setembro, é resultado do amadu-
recimento evidente do Corpo de Dança da
Maré, um grupo com mais de 60 jovens
habitantes do Complexo da Maré, capi-
taneado por uma equipe multidisciplinar,
tenaz e competente. No cruzamento entre
projeto social e criação artística, o espetá-
culo torna-se eixo norteador para as ações
pedagógicas que somam, sem se sobrepo-
rem, à qualidade do produto que chega ao
palco. Um palco que o SESC criou em res-
peito à especificidade do produto.
Em Mãe gentil, primeiro espetáculo de
Bertazzo com “cidadãos dançantes” oriun-
dos de setores populares, a visão de um Bra-
sil contraditório servia de tema e de pano
de fundo para os jovens dançarinos cerca-
dos de convidados especiais. Corpo-país.
O foco foi se fechando do Brasil para
o Rio, e Folias guanabaras trouxe o Com-
plexo da Maré, uma quase cidade den-
tro da cidade, como alegoria para a ação.
Corpo-cidade. A presença de Elza Soa-
res, Rosy Campos e Seu Jorge apoiava e
protegia o corpo de dança num espetá-
culo grandioso.
Nesse terceiro passo, o zoom de Ival-
do trouxe para o centro da cena cada jo-
vem do corpo de dança. Corpo-casa. His-
tórias íntimas desses cidadãos são costu-
radas por Drauzio Varella, resultando
num texto que relata o que há de univer-
sal e de particular na experiência da in-
fância e da adolescência daqueles que
vivem hoje na Maré. Com o passar
do tempo, momentos leves e cômicos
cedem espaço à densidade e à consciên-
cia quase trágica do impacto da violên-
cia no curso da vida de cada um. Mesmo
que bastante apropriados, não é sempre
que os textos recebem, por parte dos in-
térpretes, um tratamento natural.
Em Dança das marés não há convi-
dados especiais. Há, no entanto, uma
parceria fértil com o grupo mineiro
Uakti. Sua presença discreta garante
O
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUARTRIO DE JANEIRO • QUARTRIO DE JANEIRO • QUARTRIO DE JANEIRO • QUARTRIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA A-FEIRA A-FEIRA A-FEIRA A-FEIRA • 1• 1• 1• 1• 11 DE SETEMBRO • 2001 DE SETEMBRO • 2001 DE SETEMBRO • 2001 DE SETEMBRO • 2001 DE SETEMBRO • 20022222
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
116
culos anteriores, são acompanhadas por
momentos de solos e duos. O coro de dan-
ça é, muitas vezes, desmembrado, dei-
xando emergir a singularidade de cada
dançarino. Corpos diferentes num ritmo
comum.
Ao deixar a tarefa da cena apenas
para o corpo de dança, Bertazzo arrisca e
acerta. A continuidade e a qualidade da
informação recebidas pelos jovens garan-
tem um espetáculo delicado, preciso e
cheio de esperança.
brilho e criatividade à música. Um espe-
táculo à parte.
Na primeira cena da peça, um pêndu-
lo inaugura o ritmo, elemento central na
dança de Ivaldo. A dança indiana, devi-
damente incorporada pelos jovens a pon-
to de ganhar nuances bastante pessoais,
exige complexas divisões rítmicas que
são defendidas com segurança pelo cor-
po de dança.
Em Dança das marés, as bonitas dan-
ças de conjunto, marca dos dois espetá-
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
117
Panorama fez a festada nova plateia carioca
Ingressos a R$1 democratizaram 11ª ediçãodo festival de dança, marcada pela
participação do público
SILVIA SOTER
décima primeira edição do Panorama
RioArte de Dança foi marcada por uma
nova relação entre o festival e seu público.
Nesses 11 anos de atividades, o Panorama
amadureceu e realizou movimentos bem
determinados nessa direção. Esses movi-
mentos não representaram, da parte da di-
reção e da curadoria, concessões na progra-
mação no sentido de facilitar a digestão da
informação que ele faz circular, mas desper-
taram a curiosidade pelo novo, fazendo com
que o desconforto diante de algumas obras
não mais significasse algo negativo, e sim a
convocação a outros modos de relação en-
tre espectador e obra.
Uma parcela especial e estruturante do
Panorama, artistas e estudantes de dança,
foi beneficiada com a realização de resi-
dências com artistas estrangeiros. O ale-
mão Thomas Lehmen, o inglês Gary Ste-
vens e o francês Jérôme Bel partilharam
experiências e provocaram a criatividade
dos brasileiros em oficinas. AND, resulta-
do da residência de Gary Stevens, foi apre-
sentado como uma instalação no Centro de
Artes Hélio Oiticica, e o resultado da resi-
dência com Lehmen ganhou o palco do
Teatro do Jockey.
A busca de uma atitude mais ativa por
parte do público estendeu-se à escolha das
obras estrangeiras. As peças The show must
go on, de Jérôme Bel, Deluxe Joy Pillow, do
alemão Félix Ruckert, e Distanzlos, de Tho-
mas Lehmen, solicitaram, cada uma de sua
maneira, uma postura ativa do espectador.
Humor, generosidade e crítica estão em
perfeita harmonia em The show must go on,
que explora a imersão no universo pop e a
relação entre música e imagem. Uma se-
leção de músicas que habitam o imaginá-
rio ocidental serve de estímulo para as
experiências realizadas pelos atores.
A identificação entre espectadores e ato-
res se dá de maneira imediata. Não há
figurino especial, não há cenário, não há
virtuosismo. A literalidade dos refrões é le-
vada à risca, e espectadores e atores cons-
tatam partilhar de imagens comuns, mui-
tas vezes de uma obviedade desconcertan-
te. Em alguns momentos, o palco comple-
tamente vazio permite a cada espectador
projetar a imagem que faz daquela música
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 13 DE NOVEMBRO • 2002• 13 DE NOVEMBRO • 2002• 13 DE NOVEMBRO • 2002• 13 DE NOVEMBRO • 2002• 13 DE NOVEMBRO • 2002
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
118
e da cena, desenhando o espetáculo a seu
modo, já que o show deve continuar.
Os espectadores de Deluxe Joy Pillow
recebem coordenadas antes do espetáculo.
Dependendo de onde o espectador se colo-
car, a relação que estabelecerá com a peça
será diferente. A queles que se instalam nas
camas pequenas espalhadas pelo espaço
podem ser integrados de forma ativa na
peça, os que ficam nas camas de casal po-
dem ser manipulados pelos bailarinos e os
que quiserem apenas assistir (caretas, tími-
dos, cansados e voyeurs) devem sentar-se nas
poltronas azuis ou na arquibancada. Os bai-
larinos improvisam a partir do contato en-
tre eles e entre eles e espectadores. O que
se inicia como uma aparente estrutura aber-
ta e um jogo de provocação sensorial ganha,
aos poucos, um único e cansativo ritmo. Pa-
radoxalmente, o espectador que está inte-
ragindo fisicamente não parece de fato ati-
vo, mas submetido a um jogo de cartas mar-
cadas em que apenas um tipo de estímulo e
resposta tem lugar, o do jogo sexual.
Em Distanzlos, Lehmem, sozinho em
cena, fala de si e discorre sobre uma peça
que poderia realizar. Descreve cenas, con-
ta histórias, faz perguntas e responde, reve-
lando inquietações. A distância entre o que
ocorre em cena e o que é construído pelo
discurso do artista dependerá apenas da
imaginação do espectador. As ideias de re-
presentação e de espetáculo são colocadas
em xeque nessa obra.
A inda dialogando com a plateia, Andréa
Jabor provocou o público com bom humor e
improvisou com o cotidiano em I-eu, solo
armado, um pré-texto para a improvisação.
A identidade foi outra ideia nuclear do
Panorama 2002. Uma identidade traficada,
revelada entre autobiografia e ficção, ser-
viu de fio condutor para muitas obras. An-
gel Vianna e Maria Alice Poppe, mestra e
pupila, encontraram-se em Impromptus, de
Alexandre Franco, outro colaborador de
Angel. Impossível dissociar as intérpretes
de suas histórias, o que carrega de densida-
de e delicadeza a peça. Cenas que recortei e
guardei no bolso da memória ou lembran-
ças que chegaram com o Baile Perfumado,
de Rubens Barbot, traz memórias da infân-
cia do coreógrafo. A bailarina Cristina Mou-
ra fala de si e de outras possíveis identida-
des em Like an idiot. Dando ainda mais vi-
sibilidade à questão da identidade, o festi-
val convidou cinco criadores cariocas a dan-
çarem seus autorretratos. Patrícia Nieder-
meyer misturou texto, bom humor e dança
em Não se fala com os muros; Giselda Fer-
nandes construiu o bonito Castelo d’água,
dialogando com uma peça de Suzanne
Linke; Alexandre Franco, intérprete compe-
tente, mostrou A casa dos ossos; e Henrique
Schuller evocou Nijinsky, ao criar uma at-
mosfera delirante que mistura presente e a
memória da dança. Fechando a noite, Paula
Águas brincou com seu nome e a solidão.
Ainda no sentido de investir na forma-
ção e no estímulo a novos criadores, Os no-
víssimos, espaço da programação do Pano-
rama que apresenta novos coreógrafos, ga-
nhou um formato diferente e mais eficien-
te este ano. Em diálogo direto com as
faculdades de dança, o festival convidou
três estudantes para fazerem a curadoria
das obras. Os jovens curadores elegeram 12
peças curtas, construindo uma noite diver-
sa. Vale lembrar que Os novíssimos resga-
ta o frescor de origem do festival, que nos
seus primeiros anos serviu de celeiro para
a criação carioca. Hoje, uma nova geração
cheia de integrantes ou ex-integrantes de
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
119
companhias cariocas que lançaram suas
pesquisas no próprio Panorama experimen-
ta-se criador e deixa clara a influência de
seus caminhos de origem.
Minas Gerais, Santa Catarina, Brasília
e São Paulo também estiveram presentes
nos palcos do Panorama. Thembi Rosa
experimentou a marca dos criadores minei-
ros Rodrigo Pederneiras e Dudude Herr-
mann em seu corpo em movimento, em
Ajuntamento. Que nome daremos a nossos
pares apresentou o competente Wagner
Schwartz ao público carioca. Renata Fer-
reira trouxe Estudo sobre o tempo para a
noite composta pelos criadores (agora cu-
radores) Frederico Paredes e Gustavo
Ciríaco. A noite, que contou ainda com a
participação de Imagens, de Marcela Levy,
e Dressed dance, da alemã Katjia Watcher,
teve como foco a nudez que pode ser tra-
vestida no corpo que dança.
Em Oito trigramas, o Kaiowas Grupo de
Dança, formado por jovens ex-integrantes
do Cena 11, avançou na estrada aberta pela
companhia catarinense. O Basirah Grupo
de Dança mostrou em Uroboros que, nesse
momento, a investigação de Giselle Rodri-
gues apresenta-se menos teatral e mais
apoiada na exploração das circulações do
movimento no corpo.
Centrados nas possibilidades e nas im-
possibilidades do movimento, o carioca
Paulo Mantuano e a australiana Kylie-
Jane Wilson exploraram suas diferenças
promovendo encaixes mesmo a distância
em Duo, enquanto Middle high tones, do
paulista radicado na Bélgica Christian
Duarte com Shani Granot, investigou a
autonomia do corpo e a busca de novos
modos de articulação.
Fechando o Panorama 2002, a companhia
de Marcia Rubin, em sua nova formação,
brindou o público com Um estudo. A literatu-
ra, antes presença garantida na obra da cria-
dora, retira-se e cede espaço para a prazero-
sa exploração entre música e movimento.
O compromisso selado pelo Panorama
e seus parceiros com a difusão da criação
contemporânea da dança nacional e
internacional no ambiente carioca acon-
teceu em mão dupla. A programação ofi-
cial, as performances da noite de abertu-
ra e os resultados das oficinas foram
acompanhados de perto por inúmeros e
incansáveis programadores de festivais
internacionais, o que faz com que o Pano-
rama sirva de vitrine da criação brasileira
aos olhos do mundo.
A imagem do pastel, logomarca do even-
to, serve de emblema para postura do festi-
val: deseja tornar-se cada vez mais popular,
democratizando o acesso através do ingres-
so de R$ 1 e não garante que, necessaria-
mente, o recheio agradará o freguês. Esco-
lha acertada, já que o importante é a irriga-
ção de informações em via dupla que, a
cada ano, o Panorama RioArte de Dança
garante ao solo da dança carioca.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
120
Movimentaçãoa passos largos
Com festivais, atrações isoladas e experiênciascriativas, Rio se firma como polo de dança no País
ROBERTO PEREIRA E ANA CECÍLIA MARTINS
s famigerados balanços de final de
ano são sempre ávidos por catalo-
gar novidades. Para a dança, que movi-
mentou a cidade do Rio de Janeiro em
2002, o que aconteceu de mais expressivo,
entretanto, foi justamente a sedimentação
de estruturas. E, claro, dentro dessas estru-
turas, a possibilidade do novo e da quali-
dade emergirem.
Nesse sentido, os três mais importantes
festivais da cidade parecem exemplares: os
Solos de Dança do SESC, em sua terceira
edição; o Dança Brasil, em sua sexta edi-
ção, no Centro Cultural do Banco do Brasil,
e o Panorama RioArte de Dança, em sua
edição. O primeiro deu oportunidade ao
público carioca de conhecer melhor a dan-
ça da excelente bailarina Paula Águas, com
seu sábio improviso em Qual é a música?,
e também de rever Eu e meu coreógrafo no
63, diálogo entre as danças contemporânea
e a de rua experimentado pelo jovem
talento Bruno Beltrão. Já o Dança Brasil,
inspirado nas propostas do escritor Italo
Calvino, fez brotar um dos mais instigantes
espetáculos do ano: Formas breves, de Lia
Rodrigues, que, curiosamente, mesclou as
ideias do escritor cubano com a estética
de Oskar Schlemmer, da Bauhaus. E mos-
trou ainda a bailarina e coreógrafa Ana
Vitória apontando novidades em sua ma-
triz coreográfica em Leveza, uma das qua-
tro qualidades de Calvino desenvolvidas
por ela. O Panorama RioArte de Dança, o
mais antigo dos três festivais, conseguiu
em duas intensas semanas promover re-
flexões e estranhamentos no público. Sem
dúvida, o francês Jérôme Bel, com seu The
show must go on, foi a grande atração, ar-
rebatando um Teatro Carlos Gomes lota-
do, que sucumbiu às discussões sutis do co-
reógrafo sobre a cultura pop, a autoria e a
própria dança. Há de se mencionar ainda
o bem-vindo retorno de Marcia Rubin,
com sua nova e competentíssima compa-
nhia, num trabalho de alta sofisticação co-
reográfica, batizado Um estudo, a beleza
do solo de Giselda Fernandes e suas cita-
ções de Suzanne Linke, Castelo d’água, e
a terceira edição da mostra Os novíssimos,
pequeno panorama do que vem ainda por
aí de novos talentos cariocas.
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 30 DE DEZEMBRO •RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 30 DE DEZEMBRO •RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 30 DE DEZEMBRO •RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 30 DE DEZEMBRO •RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 30 DE DEZEMBRO • 20022002200220022002
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
121
Já fora dos festivais, as companhias cari-
ocas também compareceram. A injustificá-
vel DeAnima mostrou sua injustificável
versão para Cinderela, numa injustificável
produção caríssima. Deborah Colker es-
treou seu 4x, reafirmando sua tendência ao
universo pop através do espetacular. E o
Ballet do Theatro Municipal abriu o ano
com sua superprodução de Romeu e Julie-
ta, convidando até Rostropovich para a di-
reção musical, e acabou amargando uma
Gala Tchaikovsky, com uma imperdoável
e borrada Serenade, de Balanchine, além
de requentados trechos de balés de Petipa.
Sem dúvida, aqui, a falta de uma política
efetiva foi a responsável, num ano de tran-
sição eleitoral.
Constrastando com esse painel das
grandes companhias, as investidas de no-
vos coreógrafos foram mais saborosas:
Esther W eitzman, em passos seguros de
pesquisa coreográfica e de estruturação
de sua companhia, o novo grupo de Paulo
Mantuano e as aventuras de improvisa-
ção propostas por Andréa Jabor foram im-
portantes para traçar novos contextos de
dança na cidade.
E como dança não é apenas espetáculo
que se vê no palco, há de se registrar dois
grandes acontecimentos: o Encontro Laban,
promovido por Regina Miranda, movimen-
tando uma série de bailarinos e pesquisado-
res de todo o mundo em torno de seu tema, e
o lançamento da bem cuidada revista Gesto,
pelo RioArte. Em ambos, a preocupação de
que dança se faz com reflexão, sempre.
Fechando o ano, um dos maiores pre-
sentes de natal para o público de dança
carioca: Danças de porão, dos bailarinos
e coreógrafos Paula Nestorov e João Sal-
danha. Trânsito livre entre estruturas de
aula, ensaio e espetáculo, os dois desve-
laram o ato de coreografar numa sabe-
doria tão sofisticada e ao mesmo tempo
tão simples, que o resultado impressiona.
Ali, história se vê no corpo. Não qualquer
história, mas aquela que sedimenta estru-
turas de onde emergem o novo e a quali-
dade. Isso faz da dança do Rio de Janei-
ro, hoje, ímpar. E faz do balanço do fim
de 2002 uma constatação de que vivemos
um momento especial para a dança atra-
vés de uma de suas mais importantes
características: sua diversidade.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
123
2003 CRÍTICAS
O GLOBO - 16 DE MARÇO DE 2003Parcerias inéditas rendem noite de experiências no palco do SESC
SILVIA SOTER
O GLOBO – 23 DE MARÇO DE 2003A simplicidade engole a medusa
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL – 21 DE ABRIL DE 2003Talentos em versão mal construída
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL – 29 DE ABRIL DE 2003Movimentos plurais
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO – 15 DE JUNHO DE 2003O olhar contemporâneo de um coreógrafo genial
SILVIA SOTER
O GLOBO – 30 DE JUNHO DE 2003Béjart imprime didatismo religioso à coreografia
SILVIA SOTER
CRÍTICA NÃO PUBLICADASobre o espetáculo Madre Teresa e as crianças do mundo
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 8 DE JULHO DE 2003Tradição e história
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 24 DE AGOSTO DE 2003O padrão de qualidade de sempre, mas carente de novas referências
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 28 DE AGOSTO DE 2003Diálogo entre arte e ciências
ROBERTO PEREIRA
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
124
O GLOBO - 30 DE AGOSTO DE 2003Em busca do movimento do corpo
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 9 DE SETEMBRO DE 2003Experiências de Carlota Portella
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 7 DE OUTUBRO DE 2003Sucessão de passos
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 08 DE OUTUBRO DE 2003Quadros que se perdem em leituras ufanistas, ingênuas e superficiais
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 22 DE NOVEMBRO DE 2003O surpreendente salto da DeAnima
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 27 DE NOVEMBRO DE 2003DeAnima dança William Forsythe utilizando coragem e competência
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 9 DE DEZEMBRO DE 2003Ana Botafogo é diva
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 11 DE DEZEMBRO DE 2003Balé do Municipal encerra temporada em grande estilo
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 15 DE DEZEMBRO DE 2003Os corpos são o lugar da dança
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 25 DE DEZEMBRO DE 2003Balança e dança
ROBERTO PEREIRA E ANA CECÍLIA MARTINS
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
125
Parcerias inéditas rendem noite deexperiências no palco do SESC
Solos de Dança no SESC: Surpresase excessos na primeira série do evento
SILVIA SOTER
á quem diga que não é o bailarino que
escolhe a dança que faz, mas a dança
que escolhe o bailarino. Por afinidade, o es-
tilo do bailarino, entendendo estilo como um
colorido especial, um jeito particular de li-
dar com um vocabulário coreográfico, viria
ao encontro ao estilo de um criador ou de
uma linguagem. Essa adequação de estilos
pode ser sentida dentro, por exemplo, de uma
companhia de dança permanente. O conví-
vio, a impregnação de uma forma particu-
lar de abordar os parâmetros de movimen-
to e a experiência partilhada ajudam a cons-
truir a identidade da companhia e permitem
que o espectador reconheça a “cara” da
dança desse coreógrafo, ou da companhia
em questão.
Muitas vezes, nas experiências de dança
em solo, o bailarino é, ao mesmo tempo,
criador e intérprete de sua criação. Nesses
casos, não há, evidentemente, distância
entre material e estilo. Mas nem sempre é
assim. Ao experimentar no seu corpo a pro-
posta do outro, do coreógrafo, cada bailari-
no irá filtrar, decantar e transformar à sua
maneira o que poderíamos imaginar como
o material “original”. É essa a questão tra-
zida ao centro do palco, na quarta edição
dos Solos de Dança no SESC.
Na primeira semana do evento que, nos
últimos anos, tem inaugurado a temporada
anual da dança carioca, quatro intérpretes
convidaram quatro coreógrafos ou direto-
res com quem nunca haviam trabalhado
anteriormente para criarem as peças que
compõem a noite.
O bailarino André Vidal chamou
Matheus Nachtergaele para essa ousada
empreitada. A performance Gema, resul-
tado dessa frutífera parceria, abre a noite.
No centro do palco, um corpo aguarda, iner-
te, entre centenas de ovos. A morte é tra-
tada pela sua outra ponta, o nascimento.
Na tentativa, nem sempre bem-sucedida,
de erguer-se, André destrói as cascas e é
coberto pelo conteúdo dos ovos. Na difi-
culdade e na repetição de achar uma bi-
pedia humana, os ovos se travestem de ou-
tros fluidos corporais como lágrimas, suor
ou o verniz do nascimento. Gema parece
inaugurar novas e interessantes possibili-
dades para o experiente André Vidal.
H
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOR IO DE JANE IRO • DOMINGO • 16 DE MARÇO • 2003R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 16 DE MARÇO • 2003R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 16 DE MARÇO • 2003R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 16 DE MARÇO • 2003R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 16 DE MARÇO • 2003
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
126
Guardadas em você, coreografia de Alex
Neoral para Nina Botkay, é marcada por
uma energia de juventude. Nina é precisa,
veloz, vigorosa e dá conta, perfeitamente,
das exigências da coreografia do promissor
Alex. No entanto, essa juventude também se
manifesta num desejo de fazer muito. Há
um certo excesso, tanto nas músicas que
compõem a trilha, quanto na própria escri-
ta coreográfica. Não há silêncio ou pausa
que dê tempo para que as ideias apontadas
se desenvolvam. Ajustes que certamente
acontecerão com o tempo.
Talvez o encontro mais inusitado da noi-
te, justamente pela diferença dos estilos das
duas, é o de a Soraya Bastos com a coreó-
grafa Ana Vitória. Ana Vitória é, reconhe-
cidamente, uma criadora-intérprete de so-
los. Seu corpo pequeno, ágil e preciso, é pon-
to partida e destino de seu vocabulário co-
reográfico. Mas Soraya Bastos, bailarina
grande, de gestos amplos e líricos, mergu-
lhou com rigor no universo de movimentos
da coreógrafa para construir Silêncio. O bo-
nito resultado revela a transformação e o en-
riquecimento do material da coreógrafa, no
corpo da intérprete.
Frederico Paredes, da dupla Ikswalsinats,
coreografou Se eu estivesse aqui agora, para
Andréa Maciel. A teatralidade com toques
surrealistas da Ikswalsinats não é matéria
de fácil incorporação. Apoiada no jogo en-
tre intérprete e público, Andréa apresenta
ainda um certo desconforto, natural eviden-
temente, nas situações mais teatrais, com-
pensado por momentos de domínio absolu-
to nas variações espaciais.
Semana que vem, os coreógrafos Regi-
na Miranda, Paulo Caldas, Esther Weitzman
e Henrique Schuller convidam quatro intér-
pretes e propõem outras misturas no palco
do mesmo teatro.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
127
A simplicidadeengole a medusa
Solos de Dança no Sesc: Série é marcadapela irregularidade; coreografias
simples saíram-se melhor
SILVIA SOTER
segunda semana dos Solos de Dança
no SESC foi marcada por acertos e de-
sacertos. Este ano, a curadoria propôs encon-
tros inéditos entre intérpretes e criadores.
Dessa vez, diretores e coreógrafos convida-
ram artistas com quem nunca haviam traba-
lhado anteriormente para novas investidas.
A primeira imagem de Hologênese, per-
formance dirigida por Henrique Schuller
para a atriz Marilena Bibas, é promissora.
No centro do palco, uma grande medusa de
plástico transparente pulsa, mudando de cor
a partir da iluminação. O diretor pretende,
com o trabalho, refletir sobre a interface
entre mundo orgânico e mundo digital. No
entanto, a evolução da proposta desperdi-
ça a beleza da imagem inicial. O diretor
usa e abusa de recursos como projeções de
vídeo, digitalização da voz da atriz, gritos,
sussurros, esgarçando o tempo no limite do
suportável e nem assim consegue dar con-
sistência à ideia que aponta. A construção
gestual da atriz cai, imediatamente, no
exagero e na ilustração rasa do texto com-
posto de extratos descosturados de autoria
de Friedrich Nietzsche.
No caminho oposto da primeira peça,
Fragmento para coreografismos, de Paulo
Caldas para Alexandre Franco, é marcada
pela eficiência e pela simplicidade. Aqui é
possível reconhecer as sutilezas necessá-
rias para a costura entre o estilo do coreó-
grafo e o do intérprete. Paulo Caldas tra-
balha sobre elementos identificadores de
sua linguagem como o investimento do tor-
so a partir da movimentação circular dos
braços e a contração e a expansão do espa-
ço operadas pela iluminação. A coreogra-
fia opõe os diversos círculos desenhados
pela parte alta do corpo ao quadrado re-
cortado pela luz que serve de diagrama
para o deslocamento do bailarino. No cor-
po de Alexandre Franco, a dança de Paulo
Caldas ganha novas nuances.
Aproximações, peça dirigida e coreogra-
fada por Regina Miranda para Rafaela
Amado, é construída como uma cena de pla-
teia. Com a luz acesa, Rafaela se dirige aos
espectadores, confessando suas dificuldades
diante da tarefa de dançar e de ser o centro
das atenções. Ainda que a ideia seja interes-
sante, para que uma proposta como essa fun-
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOR IO DE JANE IRO • DOMINGO • 23 DE MARÇO • 2003R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 23 DE MARÇO • 2003R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 23 DE MARÇO • 2003R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 23 DE MARÇO • 2003R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 23 DE MARÇO • 2003
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
128
cione bem, é preciso que haja uma certa
ambiguidade entre o interpretar e o estar dis-
ponível para apenas reagir aos estímulos, a
de fato improvisar. O que pouco acontece.
Salvo em alguns momentos, como naquele
em que a atriz brinca com sua identidade e
seus atributos físicos, um certo excesso na te-
atralidade e a preocupação de mostrar o que
se está fazendo de simplesmente fazer, com-
prometem o equilíbrio entre o improvisar e
o interpretar, enfraquecendo a proposta.
Em Alguma coisa de novo, o jovem Ro-
drigo Gondim é coreografado por Esther
W eitzman. A qui, a forma circular e a ilumi-
nação também são elementos centrais. Es-
ther explora, com o apoio da luz, a circulari-
dade do espaço e do tempo, jogando com o
silêncio, a suspensão e os movimentos de re-
cuar e avançar. Alguma coisa de novo, ainda
que um esboço, revisita elementos explora-
dos pela coreógrafa em suas peças anterio-
res e apresenta o promissor Rodrigo Gondim.
Num projeto como Solos de Dança no
SESC, a duração de cada peça se impõe
como questão fundamental. Cada noite é
composta pelo conjunto dos trabalhos, e
cada peça, criada de maneira independen-
te por autores diferentes, está, aos olhos do
público, inevitavelmente comprometida
com a que a precede ou a seguinte. Assim,
o bom timing de cada parte é fator impor-
tantíssimo para o sucesso da noite.
Os Solos de Dança no SESC termina
hoje seu quarto ano consecutivo, consoli-
dando seu importante lugar na temporada
da dança carioca. A irregularidade dos
resultados não compromete em nada a
relevância da proposta de promover encon-
tros inéditos e inusitados entre criadores e
intérpretes. Ela faz parte do risco inerente
à ideia. Com certeza, o amadurecimento
das parcerias oferecerá, em breve, novos
e interessantes desdobramentos ao públi-
co carioca.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
129
Talentos em versãomal construída
ROBERTO PEREIRA
Ballet do Theatro Municipal do Rio
de Janeiro escolheu, para a abertu-
ra de sua temporada do ano 2003, uma das
obras mais importantes do repertório in-
ternacional: Giselle, símbolo do romantis-
mo na dança. Entretanto, mais do que a
escolha desse balé, o que marca esse iní-
cio de atividades da companhia no ano é
a qualidade de seus integrantes que se
revezam nos papéis principais e a promis-
sora gestão do novo diretor artístico,
Richard Cragun.
A versão assinada pelo inglês Peter
W right, que já pertence ao teatro desde
1982, não é, certamente, a melhor. Perso-
nagens mal construídos, assim como equí-
vocos cênicos e coreográficos (algumas
informações contidas no programa se in-
cluem aí também, infelizmente) fazem
com que o balé perca muito de sua coe-
rência. Uma pena, principalmente por se
tratar de uma obra que possui tantos re-
gistros e uma bibliografia tão vasta. Mas
isso não é, claro, culpa da companhia, mas
de seus diretores que simplesmente tei-
mam em escolher essa versão e não se
orgulhar com a da mestra Tatiana Leskova,
prata da casa.
Mas não é para a personagem Giselle
que as atenções se voltam nessa montagem
e sim para quem a representa e, nesse senti-
do, Ana Botafogo confirma mais uma vez
porque é uma de nossas mais importantes
bailarinas. A sabedoria e a maturidade de
sua dança emprestam ao papel-título uma
fidelidade ao modo romântico de se dançar
e um colorido todo próprio de quem domi-
na com precisão cada elemento cênico do
balé. Já a qualidade da interpretação de
Roberta Márquez vem do frescor de uma
bailarina tão jovem, mas que responde bri-
lhantemente às exigências técnicas (que
não são poucas) da obra, conferindo uma
interpretação toda sua, digna de uma pri-
meira bailarina. Cláudia Mota, tendo ven-
cido dignamente o desafio a ela proposto,
mostrou-se, por hora, mais afinada com o
papel de Myrtha, do que propriamente com
o de Giselle. No naipe masculino, Vítor Luiz
desempenha o primeiro papel seguro e ele-
gante, enquanto Marcelo Misailidis e Fran-
cisco Timbó, com a maturidade de ambos,
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 21 DE ABRIL • 2003RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 21 DE ABRIL • 2003RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 21 DE ABRIL • 2003RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 21 DE ABRIL • 2003RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 21 DE ABRIL • 2003
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
130
contribuem mais no papel de Hilarion.
Quem, contudo, se destaca pela qualidade
de sua dança é Rodrigo Negri, excelente
bailarino que atrai toda a atenção do públi-
co ao participar do pas-de-six do primeiro
ato, assim como a competente solista Már-
cia Jaqueline. O corpo de baile, muito afi-
nado, sobretudo na cena das wilis do segun-
do ato, fez esquecer a péssima impressão
deixada no final do ano passado com a Gala
Tchaikovsky.
A direção de Cragun aparenta ser
promissora. Enfim, dentro de uma compa-
nhia com a qual possui uma identificação
de estilo, o bailarino americano já se
mostrou empenhado em revelar talentos,
dando oportunidades a jovens bailarinos,
em récitas vespertinas, voltadas às esco-
las públicas. Muito bem-vinda sua políti-
ca de formação de primeiros bailarinos
e solistas, sem dispensar atenção devida
ao corpo de baile.
A recém-inaugurada iluminação do te-
atro, orçada em US$1 milhão, que deveria
ser também uma das estrelas da tempora-
da, aparenta ser, entretanto, bastante inade-
quada. Desajustes como um palco pouco ilu-
minado e cheio de sombras no primeiro ato
e uma lua distante quase dois metros do foco
de luz no segundo ato são imperdoáveis nes-
se contexto.
A mais antiga companhia de dança do
País começa muito bem seu ano. Mas já que
valoriza seus bailarinos, deveria também
valorizar as versões e o repertório que fa-
zem sua história. Este poderia ser um novo
desafio que Cragun, com certeza, saberia
vencer com toda a sua competência.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
131
Movimentos pluraisDança Brasil recebe trabalhos diversos
e afirma sua vocação investigativa
ROBERTO PEREIRA
omo faz em todas as suas edições,
quando discute a relação da dança
com diferentes linguagens artísticas, o
Dança Brasil, mostra promovida pelo
Centro Cultural do Banco do Brasil, ele-
geu, neste ano, a música. Trata-se de uma
escolha nada fácil, pois sua relação (qua-
se) óbvia com a dança permite, muitas
vezes, conceituações equivocadas sobre
como esse diálogo vem sendo travado ao
longo da história dessas duas linguagens.
E é encarar esse desafio, justamente, que
a madura curadoria de Leonel Brum e
Silvia Soter se impôs como tarefa para se
conceituar todo um evento, também ma-
duro. Em sua sétima edição, o Dança Bra-
sil recebeu durante o mês de abril seis
companhias.
Na primeira semana, a estreia do even-
to se fez junto a mais duas outras, todas
muito importantes para a dança carioca.
A coreógrafa e bailarina Márcia Rubin,
acostumada a trabalhar com atores em
cena, mostrou sua nova companhia, agora
composta apenas de bailarinos. Essa esco-
lha indicia uma nova direção na pesquisa
coreográfica de Márcia, revelando-se
como outra estreia importante: deixando
de lado sua habitual preocupação com o
texto literário, dessa vez a investida se dá
na construção de uma dança apenas (e so-
bretudo) vinculada às questões do próprio
movimento. Essa pesquisa, que apareceu
ainda como forma de Um estudo, no últi-
mo Panorama RioArte de Dança, resulta
em Tempo de valsa, moderado com elegân-
cia. Há de se dizer que elegância, aqui, não
aparece apenas no título, mas em toda a
cena. Se suas influências são claras, e a
coreógrafa Anne Teresa de Keersmaecker
deve ser citada (as rosas que aparecem
projetadas ao fundo também podem ser
lidas como citações do próprio nome da
companhia belga, Rosas), isso não é, de
algum, um problema, mas apenas alarga,
ainda mais, a discussão sobre autoria em
dança contemporânea. Mas, como todo
novo projeto, Márcia tem pela frente a ta-
refa de burilar suas ideias e transformá-
las em vocabulário mais rico de movimen-
to, quase que construindo ali neologismos.
Nesse sentido, a bailarina Renata Rei-
C
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • • • • • 222229 DE ABRIL • 20039 DE ABRIL • 20039 DE ABRIL • 20039 DE ABRIL • 20039 DE ABRIL • 2003
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
132
nheimer parece representar o lugar ade-
quado onde Márcia tem a chance de visu-
alizar seus intentos.
A Cia. Vatá, da cearense Valéria Pinhei-
ro, e o Grupo de Rua de Niterói, dirigido
pelo jovem Bruno Beltrão, compuseram um
belo programa na segunda semana da mos-
tra, embora com propostas estéticas tão di-
versas. Bagaceira, cana e engenho pode ser
visto como resultado ainda embrionário de
uma fusão bastante difícil a que Valéria tem
se proposto em sua pesquisa coreográfica: o
sapateado, técnica e estética de origem
americana, e as danças populares nordesti-
nas devem passar pelo filtro generoso da
dança contemporânea. Nesse desafio, há
ainda ajustes a serem feitos nos corpos que
carregam informações por vezes apenas
justapostas. Mas o espetáculo consegue
apontar para o ineditismo dessa hibridiza-
ção de técnicas e estéticas de maneira ho-
nesta e a cena é carregada de uma força
impactante. A música, executada pelos pró-
prios bailarinos em cena, com instrumen-
tos, além, é claro, do próprio sapateado, é
um dos elementos vitais, e faz com que esse
espetáculo seja um dos que melhor respon-
dem à proposta da mostra como um todo.
Se o mesmo não acontece com o Grupo
de Rua de Niterói, isso não parece ser, aqui,
um problema. Telesquat, criação do coreó-
grafo-revelação Bruno Beltrão, é, com cer-
teza, o espetáculo mais instigante de todo o
D ança Brasil. A ideia era discutir o impac-
to da televisão na contemporaneidade, mas
o resultado vai muito além disso. Referên-
cias as mais diversas do mundo pop estão
lá, numa convivência nem sempre pacífica.
Mas são os atritos provocados pela mistura
proposta por Bruno o que mais interessa:
citações de obras de coreógrafos como Jé-
rôme Bel e Lia Rodrigues dividem a cena,
por exemplo, com televisão, cinema, video
game, Revista Caras, ficção científica, ain-
da que tudo isso aparece com a referência
estética à qual o coreógrafo se propõe: a
dança de rua. A discussão sobre a ideia de
legenda e o que ela representa em termos
de significação para o mundo, hoje, resolve-
se com exatidão no uso de recursos tecnoló-
gicos, o que faz rever de forma determinan-
te o uso quase óbvio que a dança contempo-
rânea vem fazendo da tecnologia, sobretu-
do no Brasil. Vale ainda ressaltar, dentro do
excelente grupo de bailarinos da compa-
nhia, a atuação de Eduardo Hermanson, cuja
inteligência e timing podem ser vistos em
seu corpo e em sua narração durante o es-
petáculo.
É possível dizer que a terceira semana
do Dança Brasil foi a que mais se adequou
à proposta dos curadores de se investigar a
relação entre música e dança. E, curiosa-
mente, essa relação apareceu de forma di-
versa nos dois trabalhos que compunham a
noite. O primeiro deles, D.A.M., assinado
pelo paulista Roberto Ramos, vem a ser o
resultado, segundo o programa, de uma téc-
nica própria desenvolvida pelo coreógrafo:
“desenvolvimento anímico do movimento”.
Sua demasiada pretensão, entretanto, que se
auto intitula autodidata, resulta numa pes-
quisa escolar, cujo parco vocabulário de mo-
vimentos, sempre muito óbvios, encontra
pouco espaço para a exploração de sonori-
dades. Felizmente, para borrar a excessiva
simetria e a previsibilidade desse trabalho,
Maria Clara Villa-Lobos, brasileira residen-
te na Bélgica há mais de dez anos, apresen-
ta, em seguida, seu Trio. Nele, a bailarina di-
vide a cena com Peter Jacquemyn e seu con-
trabaixo. Na verdade, pode-se dizer que essa
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
133
obra faz lembrar as investigações de músi-
ca erudita experimental de décadas atrás.
Mas a novidade está na interferência da
bailarina, que usa a improvisação para cos-
turar, ou antes, descosturar, relações possí-
veis entre a fisicalidade dos três elementos
em cena e a música que disso resulta.
Cristina Moura fecha a mostra na quarta
semana, dando oportunidade ao público
carioca de rever seu solo Like an idiot,
apresentado no ano passado. Nele, a bai-
larina revisita questões sociais e políticas,
dissolvidas em suas reminiscências. A pes-
soalidade com que essas questões são tra-
tadas parece ser o filtro para que sua dan-
ça explore, com precisão e força, as quali-
dades físicas da bailarina e sua relação
com os objetos de cena. Já em IM-Pulso,
seu segundo trabalho da noite, essa mes-
ma relação parece não estar bem resolvi-
da. Se a ideia era investigar como a dança
e a voz podem interagir, o que se vê é um
bloco espesso de referências que carece
ainda de ser trabalhado. Fica a vontade de
ver essa grande bailarina e irrequieta co-
reógrafa traduzir suas ideias mais em seu
próprio corpo e menos nos recursos cêni-
cos demasiadamente utilizados por ela,
que resultam em truques fáceis e conhe-
cidos de dança contemporânea.
O Dança Brasil, ao mapear criadores
brasileiros, sabiamente percebeu que esse
“brasileiro” deve ser encarado como uma
via de mão dupla entre o que se faz aqui e
o que se faz no resto do mundo. E a dança
pode ser um lugar privilegiado para se
observar esse trânsito tão eloquente de
referências mútuas. Assim, sendo mesmo o
único evento de dança do CCBB, o Dança
Brasil faz com que sua maturidade e sua
aceitação sejam o aval mais que suficien-
te para que ele ganhe um teatro maior e
mais digno de sua importância na história
da dança brasileira.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
134
O olhar contemporâneo deum coreógrafo genial
Ballet Frankfurt: Peças de William Forsythe mostramcaminhos de um inventor de espaços
SILVIA SOTER
ntes tarde do que nunca. Na quinta e
na sexta-feira, o Rio de Janeiro teve o
prazer de conhecer a dança de William For-
sythe à frente do Ballet Frankfurt. A estreia
carioca faz parte da última turnê confirma-
da de Forsythe com a companhia. Ameaças
de corte de verba associadas à nostalgia de
uma dança mais amena e tradicional pare-
cem também pairar sobre as terras alemãs.
Tendo o balé como ponto de partida,
a dança de Forsythe sintetiza ideias fun-
dadoras de uma perspectiva contemporâ-
nea da dança. A difusão de centros moto-
res pelas diferentes partes do corpo,
fazendo com que o movimento se inicie
a partir de pontos diferentes, produz uma
polissemia estonteante. O espaço, gran-
de estrela da dança de Forsythe, inexiste
antes de ser investido pelo movimento
dos bailarinos. Ele não está lá, desenha-
do pelas linhas imaginárias da perspec-
tiva euclidiana. A cada novo arranjo de
corpos, o espaço se produz. Uma vez fun-
dado, torna-se partner, atraindo e repelin-
do cada corpo e, assim, provocando o mo-
vimento. É o corpo em movimento que
funda o espaço e, paradoxalmente, muitas
vezes, os corpos parecem movidos de fora.
É justamente nessa tensão que a dança de
Forsythe se materializa.
Nessa turnê brasileira, três peças apre-
sentam diferentes momentos do criador.
Abrindo a noite, (N.N.N.N.), a mais recente
(2002), apresenta os códigos da dança de
Forsythe, oferecendo pistas para que o es-
pectador possa desfrutar do que virá a se-
guir. Do presente, Forsythe nos orienta para
olhar o passado. Quatro bailarinos (e que
bailarinos!) dão visibilidade às etapas de
instauração do movimento em seus corpos
e no espaço, instalam pontos fixos e pontos
móveis e fazem legível o que o coreógrafo
americano conceituou como ghosting: o bai-
larino deve conectar-se ao espaço como se
perseguisse seu próprio fantasma, o rastro
que sua dança deixa e que ele revisita sem
cessar. A conectividade dos corpos se dá
através de um fluxo contínuo de movimen-
to que atravessa, desorganiza e propõe no-
vos arranjos de corpos.
Em Enemy in the figure (1989), uma
parede sinuosa divide o palco que é, ao
A
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AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
135
mesmo tempo, atravessado por uma cor-
da. Esses dois elementos, associados à ilu-
minação, parceira poderosa do criador, re-
cortam na cena diferentes campos de ação.
É impossível para o espectador acompa-
nhar tudo o que acontece. A dança se insi-
nua, emerge e desaparece, veloz e simul-
tânea, criando um ambiente caótico que
aumenta de tensão até a vertigem. O es-
paço parece tecido por redes elétricas, e
os bailarinos são sugados por verdadeiros
turbilhões. Sem referência aos códigos
mais banais da relação da dança com o
teatro, como a narrativa ou o gestual
expressivo, Enemy in the figure é de uma
teatralidade impressionante.
Quintett (1993), talvez a mais poética
das três obras, fechou a noite. Para alívio
daqueles que esperavam formas do balé,
em Quintett, ele está mais presente. Nessa
peça, criada por Forsythe às vésperas da
morte de sua mulher, cinco bailarinos são
mais uma vez atravessados por um fluxo de
movimento que não pára, mesmo quando
cada um se ausenta. Em solos, duos e trios,
fluxo contínuo, encontros e desencontros
constroem uma emocionante, ainda que
evidente, metáfora da vida.
Sem dúvida alguma, a contribuição ma-
dura e competente do Ballet Frankfurt im-
prime ainda mais brilho à dança desse co-
reógrafo genial.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
136
Béjart imprime didatismoreligioso à coreografiaMadre Teresa e as crianças do mundo:
Balé carregado de uma ingenuidade desconcertante
SILVIA SOTER
coreógrafo Maurice Béjart percebeu
muito cedo que, para dar conta de suas
ambições como criador, seria preciso, para-
lelamente, investir em jovens talentos que
pudessem desenvolver as qualidades neces-
sárias para serem intérpretes de sua dança.
A multidisciplinar Mudra, escola criada por
Béjart nos anos 70, agregando diferentes
linguagens artísticas, foi um importante cen-
tro de referência para a dança europeia.
Desde 1992, em Lausanne, é o atelier-esco-
la Rudra que continua essa tarefa. Foi de lá
que saíram os jovens componentes da Com-
pagnie M, que esteve em cartaz no Theatro
Municipal neste fim de semana, trazendo
Madre Teresa e as crianças do mundo. Nessa
peça, a juventude é acompanhada pela ex-
periência, já que é Márcia Haydée quem
interpreta Madre Teresa de Calcutá.
A obra de Maurice Béjart é vasta e va-
riada, tanto nas escolhas temáticas quan-
to na qualidade. A música, a literatura, o
Oriente, temas da atualidade como a AIDS,
por exemplo, serviram ao longo desses anos
como fonte de inspiração para o criador.
Suas peças são de fácil comunicação e têm
o mérito de lotar os teatros de um largo pú-
blico. Ao longo de sua carreira, Béjart vem
perseguindo um teatro total, incorporando
às suas coreografias diferentes linguagens
artísticas, como o teatro, a música e a lite-
ratura. Místico e fascinado pela filosofia
oriental, Béjart se inspirou em Madre
Teresa para falar do amor como meio de
aplacar o sofrimento dos excluídos. A pre-
sença de Marcia Haydée na pele de Madre
Teresa reforça a analogia proposta por
Béjart entre o amor e a dedicação a Deus
e o amor e a dedicação à dança. A dança
para Béjart é próxima do sacerdócio.
No entanto, cheia de bons sentimentos, a
peça Madre Teresa e as crianças do mundo é
carregada de uma ingenuidade desconcer-
tante. Impossível dissociar o criador Béjart
do pensador Béjart. A forma como as pala-
vras de Madre Teresa de Calcutá ganham a
cena imprime à peça um didatismo próxi-
mo ao de um culto religioso sem nenhuma
sutileza. Aqui, a preocupação com a fácil co-
municação impede que esse amor ao outro
ganhe alguma transcendência. Sobretudo
num país como o Brasil de 2003, onde a
O
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 30 DE JUNHO • 2003• SEGUNDA-FEIRA • 30 DE JUNHO • 2003• SEGUNDA-FEIRA • 30 DE JUNHO • 2003• SEGUNDA-FEIRA • 30 DE JUNHO • 2003• SEGUNDA-FEIRA • 30 DE JUNHO • 2003
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
137
consciência da complexidade que cerca a
exclusão se faz, a cada dia, mais aguda, a
simplicidade da abordagem impressiona.
Coreograficamente, Béjart se apoia na
agilidade e na flexibilidade de seus jovens
intérpretes. Pernas altas, saltos, movimentos
acrobáticos e uma fartura de grand-écarts
apresentam as qualidades dos egressos de
Rudra. Infelizmente, a agilidade e o vigor
juvenis ainda não são acompanhados de
grande precisão, o que fica evidente, por
exemplo, na cena dos bastões. Uma grata
surpresa: W illiam Pedro, o jovem e compe-
tente brasileiro da Compagnie M, seduz a
plateia com sua presença sorridente e tea-
tral. A brasileira Márcia Haydée, com do-
mínio absoluto de cena, dá credibilidade, ge-
nerosidade e delicadeza à sua personagem.
Com Madre Teresa e as crianças do mun-
do, a Compagnie M cumpre seu papel, ofe-
recendo a seus jovens integrantes a oportu-
nidade (rara nos dias hoje) de partilhar a
cena com uma personalidade como Márcia
Haydée. O experiente educador Maurice
Béjart sabe que um bailarino só irá de fato
se formar com a prática do palco mediante
convívio saudável e necessário com outras
gerações e outras experiências.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
138
Sobre o espetáculo Madre Teresae as crianças do mundo
ROBERTO PEREIRA
m dança, o tema escolhido para uma
obra pode se inscrever na estrutura
coreográfica, descobrindo nela novas mo-
dulações que esse canal oferece ao criador.
Sem dúvida, um grande desafio para gran-
des coreógrafos. Mas existe também a pos-
sibilidade de tratar desse tema a partir de
sua literariedade, numa espécie de conti-
nuação do balé que se fazia há mais de dois
séculos. É a essa última linhagem que pa-
rece pertencer o coreógrafo francês Mau-
rice Béjart e que comprova isso com seu es-
petáculo Madre Teresa e as crianças do
mundo, apresentado nesse último fim de
semana no Theatro Municipal do Rio de Ja-
neiro. Aqui, o tema é tão imponente que
acaba circundando a dança, em justaposi-
ções mal alinhavadas de citações da per-
sonagem principal, no caso Madre Teresa,
e a dança, propriamente. O resultado é es-
colar, didático, beirando a ingenuidade.
As citações são basicamente feitas pela
bailarina convidada, a brasileira Márcia
Haydée. Sua conhecida dramaticidade, no
entanto, é comprometida pela mera repro-
dução de frases e posturas da personagem
central, que, hora nenhuma, encontra em seu
corpo e em sua dança uma tradução possí-
vel. Quando se vê Márcia ajoelhada, esfre-
gando o chão, dá saudades de atuações suas
como em Romeu e Julieta, de John Cranko.
A palavra para ela não era necessária.
Já a dança, nos momentos que lhe é de-
terminado aparecer, mostra estruturas co-
reográficas de uma elementariedade cons-
trangedora, transbordando em clichês. A
frontalidade exibicionista com que cada
bailarino mostra seus dotes resvala num
show de egos que parece ter pouco a ver
com as doutrinas de Madre Teresa. É desse
mal que sofre o grande talento brasileiro
William Pedro, infelizmente, como, aliás,
toda a excelente M Compagnie, composta
de jovens bailarinos tão capazes.
Maurice Béjart parece ter sucumbindo
diante da grandiosidade de seu tema. As-
sim, optou por uma aparente simplicidade
em cenários e figurinos, mas que não está
traduzida no gesto, no corpo do bailarino e
na coreografia. Se a literariedade é o re-
curso escolhido para se tratar de um tema
em dança, há de se levar em conta os riscos
que essa dança impõe enquanto mídia.
Nesse sentido, o mestre Béjart parece ter
esquecido mesmo o significado da palavra
“metáfora”.
E
CRÍTICAS NÃO PUBLICADASCRÍTICAS NÃO PUBLICADASCRÍTICAS NÃO PUBLICADASCRÍTICAS NÃO PUBLICADASCRÍTICAS NÃO PUBLICADASRIO DE JANEIRO • 200RIO DE JANEIRO • 200RIO DE JANEIRO • 200RIO DE JANEIRO • 200RIO DE JANEIRO • 20033333
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
139
Tradição e históriaO lago dos cisnes resgata
história do Ballet do Municipal
ROBERTO PEREIRA
transmissão de um balé de uma gera-
ção a outra, mesmo em um mundo
marcado por evoluções tecnológicas, ainda
se faz principalmente pela tradição oral. No
caso de O lago dos cisnes, que teve sua estreia
no último dia 4, com o Ballet do Theatro Mu-
nicipal do Rio de Janeiro, essa tradição tem
um nome: Eugenia Feodorova. Responsável
pela primeira montagem dessa obra-prima
do balé pós-romântico nas três Américas, ain-
da em 1959, nesta mesma cidade, com esta
mesma companhia, Feodorova imprime a
marca da história numa arte onde é difícil
falar em original, mas apenas em versões.
Nesse sentido, essa recente montagem
muito difere, felizmente, daquela de 2001,
assinada pela conterrânea de Feodorova,
a russa Natalia Makarova. Mais simples, e
mais bem acabada, há nessa versão uma
aproximação evidente com a estética
coreográfica original, assinada pela dupla
Petipa/Ivanov e que encontra eco muito sa-
tisfatório no desempenho da companhia.
Na noite da estreia, Cecília Kerche teve
grande oportunidade em mostrar porque po-
deria ser uma perfeita Odile/Odete, mas
optou por cumprir burocraticamente seu pa-
pel, sobretudo no segundo ato, quando pouco
interage com seu partner e com o corpo de
baile. O jovem Vítor Luiz, responsável pelo
papel do príncipe, deixou clara sua imaturi-
dade ao dançar ao lado de tão experiente
bailarina, o que provocou um descompasso
ainda maior em todo o espetáculo. Resulta-
do: a noite foi de André Valadão, excelente
num papel secundário, “o bobo da corte”, rou-
bando para si todas as atenções.
Na récita seguinte, o mesmo Valadão
dividiu a cena com Roberta Márquez, bai-
larina ímpar na história dessa companhia.
Ainda jovem, Roberta empresta à dualida-
de dos cisnes branco e negro um colorido
próprio, acomodado em uma técnica perfei-
ta. E ambos souberam compartilhar com
todo o corpo de baile a sintonia exigida nes-
se estilo coreográfico.
Mais que meramente contar a história
da princesa metamorfoseada em cisne,
essa montagem de O lago dos cisnes assi-
nada por Feodorova resgata a própria his-
tória de uma companhia de dança, neste
caso, a primeira do Brasil. E ao fazer isso,
recupera sua tradição, ideia fundamental
quando se fala de balé.
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANEIRO • TERÇA-FE IRA • 8 DE JULHO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FE IRA • 8 DE JULHO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FE IRA • 8 DE JULHO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FE IRA • 8 DE JULHO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FE IRA • 8 DE JULHO • 2003
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
140
O padrão de qualidade de sempre,mas carente de novas referências
Divíduo: Tema e coreografia no novo trabalho da Quasar
SILVIA SOTER
sobrevivência de uma companhia de
dança por 15 anos, numa cidade dis-
tante do eixo Rio-São Paulo, é um aconteci-
mento raro no panorama da dança brasilei-
ra e merece comemoração. Quando essa
companhia consegue atingir um padrão de
excelência como é o caso da Quasar Cia. de
Dança, dirigida por Henrique Rodovalho, as
razões para comemorar multiplicam-se.
Hoje, sem dúvida, a Quasar é referência de
seriedade, de produção impecável e de óti-
mos bailarinos para o público e os profissio-
nais de dança do País. Divíduo, em cartaz até
hoje no Teatro Odylo Costa Filho, chega ao
Rio como parte das comemorações dos 15
anos da companhia.
A solidão urbana é o tema central do
espetáculo. A cena é dividida em quatro
áreas, quatro cômodos recortados pela luz
no palco que abriga cada um, um bailari-
no. Os dois espaços do fundo da cena es-
tão separados por uma parede e insinu-
am ambientes de uma casa. A inda que os
bailarinos não fiquem isolados em cada
um dos ambientes, a tônica dos desloca-
mentos se dá pelo não encontro, com
ênfase nos solos ou em duos e trios cuja
coincidência da movimentação se faz
com aquele que está distante ou apenas
virtualmente presente, como na cena em
que uma das bailarinas dança com um
partner que aparece numa projeção de
vídeo, em outro cômodo.
É assim ao longo de toda a peça que
Rodovalho reforça o tratamento que dá ao
seu tema: desfilando ícones da solidão e do
individualismo urbanos, como o assistir à
televisão como ato solitário, o telessexo, a
câmera polaroide que fotografa os móveis
da casa, o comer para preencher o vazio da
solidão etc. Referências explícitas e de rá-
pida identificação com o público. A cena do
entregador de pizza, por exemplo, cria uma
ponte interessante e divertida entre o tea-
tro e a cidade, reforçando a cumplicidade
entre a cena e a plateia.
Mas à medida que o espetáculo avan-
ça, Divíduo acaba, infelizmente, sucum-
bindo ao mesmo mal que tanto esmiúça:
isola o tratamento temático e o material
coreográfico em dois planos distantes, sem
ao menos provocar tensão ou diálogo
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 24 DE AGOSTO • 2003• DOMINGO • 24 DE AGOSTO • 2003• DOMINGO • 24 DE AGOSTO • 2003• DOMINGO • 24 DE AGOSTO • 2003• DOMINGO • 24 DE AGOSTO • 2003
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
141
entre os dois. O afinco com que Rodova-
lho busca deixar claro para o espectador
sua ideia de solidão e os resultados de sua
pesquisa sobre o tema não é acompanha-
do pela forma como a ideia se materia-
liza no corpo. O tema serve apenas como
um lugar onde, nesse momento, a mesma
dança do Quasar acontece. Em momento
algum, o tema chega a contaminar, de fato,
o tecido coreográfico.
Nesses 15 anos, a Quasar construiu um
trabalho sólido através de uma linguagem
coreográfica interessante e vigorosa que
identifica a companhia como uma assinatu-
ra. Talvez agora, o próximo passo desse ca-
minho seja flexibilizar essa marca, deixan-
do-a ser permeada por novas referências
para que não se engesse. Tarefa de que Ro-
dovalho dará conta, com tranquilidade,
como a sua trajetória confirma.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
142
Diálogo entre arte e ciênciasDani Lima cria método com nova coreografia
ROBERTO PEREIRA
ara a ciência, tão importante quantoo resultado de uma descoberta, é o seu
processo de investigação: um bom método depesquisa pode ser sempre usado novamente,para outras possíveis descobertas. A coreó-grafa e bailarina carioca Dani Lima, em seunovo trabalho Falam as partes do todo?, queteve sua estreia na sexta-feira no EspaçoCultural Sérgio Porto, parece transportar essaideia para um outro lugar que não apenas oda descoberta, mas também o da criação. Oprocesso de investigação ao qual Dani e seusbailarinos se dedicaram nesses últimos tem-pos aparece em forma de espetáculo, formaque é apenas uma entre tantas possíveis paraum pensamento de dança em plena ativida-de. A generosidade com que o processo é des-velado aos olhos do público, além de mostrarsem receios suas fontes, mostra-se corajosa-mente como um método que pode, muitasvezes, ser reutilizado-por ela mesma ou poroutros criadores.
Pensando na relação entre o todo e aspartes, Dani Lima elege alguns procedimen-tos cênicos que ajudam a pensar que, naspartes de qualquer organismo, estão asinformações do todo. Para a tradução dessaideia em dança, o diálogo com as esculturas/instalações da artista plástica Tatiana Grin-berg parece ter sido a chave para outros tan-tos diálogos que aparecem em cena. A rela-
ção sinuosa entre espaço e tempo ali sugeri-da trafega na subversão de perspectivas, im-plodidas em sons advindos de diversas par-tes do teatro, em potências também diversas.Impossível falar em trilha sonora e cenário:existem apenas (e sobretudo) continuaçõesdos corpos que ali dançam. Uma dança acon-tece entre o público e não para ele, apenas.
Um possível mapa da investigação queaqui aparece em forma de espetáculo podeser traçado, para quem acompanha os tra-balhos da coreógrafa: a residência do coreó-grafo alemão Thomas Lehmen, no últimoPanorama RioArte de Dança, a obra de LiaRodrigues, que Dani se dedica a estudar emsua pesquisa de mestrado, a curiosidade so-bre a dança pós-moderna americana, entretantas outras informações. Mas levando emconta a falibilidade de todo mapa, mais ins-tigante parece ser prestar atenção em comoessa investigação é partilhada por seus bai-larinos, tão jovens e vigorosos. As ideias in-quietas de Dani parecem encontrar abri-go, sobretudo na qualidade e no frescor dadança de Monica Burity, que desfila filigra-nas de pensamentos em seus movimentos.
Para Dani Lima, “viver sem certezas éviver em movimento constante de reaprendi-zagem”. Sua generosidade e coragem emmostrar isso fazem de seu processo sua cria-
ção. E faz dialogar sem clichês arte e ciência.
P
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 2828282828 DDDDDE AGOSTO • 2003E AGOSTO • 2003E AGOSTO • 2003E AGOSTO • 2003E AGOSTO • 2003
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
143
Em busca do movimento do corpoFalam as partes do todo?: Dani Lima mostraamadurecimento da linguagem coreográfica
SILVIA SOTER
ão é por acaso que o título do últimotrabalho da Cia. de Dança Dani Lima,
em cartaz até amanhã no Espaço SérgioPorto, organiza-se como uma pergunta. Fa-
lam as partes do todo? tem o cuidado de não
ser uma afirmação para poder abrir a cada
espectador uma possibilidade de reflexão,
uma experiência interessante e delicada,
alimentada pela dança, pelas obras da ar-
tista plástica Tatiana Grinberg e pela am-
bientação sonora de Felipe Rocha.
Falam as partes do todo? não é exata-
mente um espetáculo. O que talvez seja ines-
perado para o público que tem acompanha-
do a trajetória de Dani Lima, ex-integrante
da Intrépida Trupe. Até então, o nome da
coreógrafa esteve associado à dança aérea
com cores do pop e ao universo feminino,
suas marcas mais fortes.
Se não é um espetáculo, também não é
um work in progress no sentido de apresen-
tar ao público o processo no lugar do resul-
tado. O olhar do público é central nesse tra-
balho de Dani Lima. Na maioria das vezes,
quando é dada ao espectador a possibilida-
de de acompanhar o processo de criação de
uma obra, esse espectador tem a certeza de
que é generosamente recebido num espaço
do qual não faz parte. Ele é voyeur da inti-
midade do artista. Parte do interesse de co-
nhecer as entranhas da criação se dá exata-
mente pelo fato de que aquele momento é
único, íntimo e fechado a estranhos. Mas o
que acontece em Falam as partes do todo?
é de outra ordem.O espectador não é de fato voyeur ou
intruso. É a ele que a pergunta se destina jáque se trata de investigar a dança a partirda recepção, daquilo que cada espectadorpode (ou não) captar. Sem o espectador,Falam as partes do todo? não existiria.
O encontro entre os trabalhos e as inquie-tações de Dani Lima e Tatiana Grinbergresultou num produto envolvente. A contri-buição de Felipe Rocha é também funda-mental para criar o espaço sonoro, visual e,às vezes, tátil, em que o espectador é mer-gulhado, sendo obrigado a se deslocar paraescolher o que acompanhar, ainda assimsem dar conta de apreender o todo.
Os objetos construídos por Tatiana Grin-berg serviram, visivelmente, como o ele-mento detonador de toda a reflexão da peça,ganhando correspondência na dança que sóé vista parcialmente e na música que se es-palha, aos pedaços, pelo espaço. No entanto,o trabalho da artista plástica está tão pre-sente que, em alguns momentos, o ressurgi-mento das peças se faz redundante.
Em Falam as partes do todo?, Dani Limase afasta de suas referências anteriores parase aproximar de uma dança que se faz no
corpo, buscando no movimento os caminhospara suas ideias, o que revela o amadureci-mento da linguagem coreográfica dessacompetente companhia.
N
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOR IO DE JANE IRO • SÁBADO • 30 DE AGOSTO • 2003R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 30 DE AGOSTO • 2003R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 30 DE AGOSTO • 2003R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 30 DE AGOSTO • 2003R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 30 DE AGOSTO • 2003
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
144
Experiências deCarlota Portella
Espetáculo ressalta o carisma da mestra
ROBERTO PEREIRA
m dos maiores méritos da coreógrafa
e professora Carlota Portella ao lon-
go de sua carreira na dança brasileira é a
qualidade que imprime em seus bailarinos.
E é justamente essa qualidade que salta aos
olhos de quem assiste ao mais novo espetá-
culo de sua Cia. Carlota Portella Vacilou
Dançou, que teve sua estreia no último dia
4, no Espaço Cultural Sérgio Porto, sob o
vago título de Memórias. A qui, novamente,
o grupo formado por três rapazes e duas
moças mostra habilidade ímpar em sua re-
lação com o espaço, com a técnica e com
uma coesão, onde as particularidades de
cada bailarino funcionam apenas como in-
terfaces de um todo vigoroso, disponível a
cada desafio. Para este espetáculo, portanto,
Carlota elaborou esse desafio entregando
a tarefa da coreografia para o experiente
Mário Nascimento e para o jovem Clébio
Oliveira, um de seus bailarinos.
A iniciativa de possibilitar que jovens
pesquisadores comecem a exercitar sua
prática coreográfica em uma companhia
de dança profissional é digna de ser men-
cionada. Entretanto, há que se levar sem-
pre em conta todos os riscos que tal emprei-
tada traz consigo. A responsabilidade de-
signada ao excelente bailarino Clébio re-
sulta em Tia Robenize, trabalho que pro-
cura resgatar reminiscências infantis do
coreógrafo. O grande problema está no
excesso de referências usadas para tanto,
típicas de uma imaturidade que se lança
com muita sede ao pote. Todos os recursos
cênicos parecem borrar uma pesquisa qua-
se artesanal de movimentos que, por si só,
poderiam traduzir muito bem as intenções
de Clébio. Talvez o momento mais repre-
sentativo disso seja o duo dançado pelo
próprio com a bailarina Dani Rodrigues,
em que se pode observar que o movimento
e sua dramaturgia ganham lugar e tempo
apropriados nos dois bailarinos, em seus
corpos, e nada mais. Sendo Clébio Oliveira
um inquieto pesquisador, que alia sua prá-
tica artística ao exercício de pensar a dan-
ça também em sua carreira universitária,
essa oportunidade concedida a ele gene-
rosamente por Carlota Portella significa,
com certeza, apenas o início promissor de
um futuro coreógrafo.
U
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 9 DE RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 9 DE RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 9 DE RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 9 DE RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 9 DE SETEMBRO SETEMBRO SETEMBRO SETEMBRO SETEMBRO • 2003• 2003• 2003• 2003• 2003
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
145
A segunda obra da noite é assinada pelo
onipresente Mário Nascimento, que vem
trabalhando com diversas companhias por
todo o Brasil. Dono de uma movimentação
vigorosa, fruto da mistura de sua herança
do jazz com sua atual pesquisa de dança
contemporânea, Mário parece ainda tatear
o que poderia ser uma assinatura coreográ-
fica. Isso fica por demais evidenciado em
Jogo do olho, onde claras referências apa-
recem não em forma de citação, mas são
simplesmente tragadas, colocadas lado a
lado, sem que tenham oportunidade de se-
rem tingidas pelo ofício do coreógrafo.
A cena final, quando tijolos são arremes-
sados pelos bailarinos, funciona como
exemplo, quando remete a Weight of a hand,
do belga Win Wandekeybus. E a teatrali-
dade que se busca nesse trabalho parece
estar ainda perdida entre os excessos de
movimentos e de recursos, como se essa
teatralidade tivesse a obrigatoriedade de
existir para legitimar uma ideia.
Em Memórias, de Carlota Portella, a
qualidade de seus bailarinos faz dos dois tra-
balhos apresentados apenas lugares para
que ela apareça, absoluta. E é essa qualida-
de, sem dúvida, a grande estrela da noite.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
146
Sucessão de passosClichês prejudicam a coreografia de Terra Brasilis
ROBERTO PEREIRA
espetáculo Terra Brasilis, de Fernan-
do Bicudo, que teve sua estreia sexta-
feira no Teatro João Caetano, coloca para si
uma tarefa das mais difíceis: a de fazer um
grande mapeamento histórico das danças
populares brasileiras. Tarefa que se transfor-
ma rapidamente em armadilha, já que o que
se consegue nesse espetáculo é uma mera
sucessão de cartões-postais que oferecem ao
espectador apenas recortes de um rico uni-
verso que ficou longe de ser ali abordado.
Como qualquer cartão-postal, o convite é
para que se tenha um olhar de turista e não
de pertencimento, e é nesse lugar de turista
que se produz e que se assiste ao que se pas-
sa no palco.
Tudo se complica a partir do entendimen-
to envelhecido que se tem de história: crono-
lógico, causal, como se a vida fosse apenas
uma sucessão de fatos. Como, por exemplo, se
dá a rápida passagem do tempo dos dinos-
sauros que, literalmente (e inacreditavel-
mente), invadem a cena, para o tempo se-
guinte, em que se dançava um lundu ou um
maculelê, é uma questão que parece pouco
importar. Evolução ali é entendida como pro-
gresso, infelizmente. E tudo vira um arrazoa-
do de pastiches de quem pouco se importou
em se debruçar minimamente sobre tudo o
que já se estudou tanto sobre evolução, quan-
to sobre as próprias danças populares, um
universo tão rico e tão particular. O resulta-
do beira o leviano, como se esse universo
pudesse ser resumido a mero entretenimen-
to, o que faz esse espetáculo ganhar antes um
caráter de show para estrangeiros de um ho-
tel cinco estrelas, do que propriamente de um
espetáculo de dança.
A coreografia, isto é, a sucessão de pas-
sos assinada por Antonio Gaspar reduz-se ao
excesso de frontalidade e simetria costura-
das por um excesso de clichês de movimen-
tos. O resultado é uma pasteurização das di-
ferenças que achata justamente a diversida-
de que se anseia retratar: a pluralidade de
corpos e danças brasileiros. A música e a ce-
nografia, assinadas pelos experientes Silvio
Barbato e Hélio Eichbauer, respectivamen-
te, funcionam como legendas óbvias, que ape-
nas carregam no tom de previsibilidade, qua-
lidade, aliás, que perpassa todo o espetáculo.
E os elementos que surgem na cena, como os
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 7 DE OUTUBRO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 7 DE OUTUBRO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 7 DE OUTUBRO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 7 DE OUTUBRO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 7 DE OUTUBRO • 2003
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
147
animais pré-históricos, a motocicleta e o he-
licóptero, sugerem um arremedo canhestro
de musicais da Broadway, que faz assinalar
ainda mais uma tendência para cópia que se
arrasta desde os idos anos de 1940, com nos-
sas chanchadas e nossos musicais de cassinos.
O grupo de bailarinos, bastante hetero-
gêneo ao misturar profissionais e iniciantes,
parece ainda estar pouco familiarizado com
a proposta, e mesmo as sequências mais sim-
ples são mal executadas, necessitando visi-
velmente de ensaios.
Há uns sessenta anos, quando a dança
cênica ainda intentava ser brasileira, quan-
do o País vivia um processo de aceitação de
sua mestiçagem, em pleno projeto estado-
novista, as mesmas preocupações de se re-
tratar o Brasil pelo filtro do balé estavam
lá. Hoje, ao se assistir a Terra Brasilis e ao
se ler o texto ufanista de Fernando Bicudo
em seu programa, uma questão se impõe: ao
propor, hoje, o entendimento do brasileiro
como resultado de uma “síntese do melhor
de todas as raças”, esse espetáculo parece
mesmo acreditar nas duas palavrinhas que
estampam a bandeira brasileira. A mesma
crença de décadas atrás. Isso, em estudos de
evolução, tem outro nome.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
148
Quadros que se perdem em leiturasufanistas, ingênuas e superficiais
Terra Brasilis: Criação de Fernando Bicudose limita ao folclore mais previsível
SILVIA SOTER
a última sexta-feira, estreou com ares
de superprodução o espetáculo Terra
Brasilis, de Fernando Bicudo. Nas palavras
do diretor, essa peça “luta por um resgate
de nossas raízes culturais – as mais valiosas
do planeta”. Projeto ambicioso que pretende
apresentar em uma hora uma possível essên-
cia do povo brasileiro através de sua dança,
do norte ao sul, do bigbang às festas raves.
O fascínio exercido em diversos criado-
res pela diversidade e pela riqueza das ma-
nifestações populares regionais tem produ-
zido resultados diferentes. Um dos exemplos
de inspiração e pesquisa séria em torno de
ritmos e danças do nordeste culminou na
peça Chegança, de 1998, jóia rara assinada
pela coreógrafa Paula Nestorov. Em Che-
gança, os ritmos nordestinos são a tela de
fundo onde a dança da coreógrafa é tecida.
Eles estão diluídos, foram retrabalhados e
transformados pela mão da artista.
Outro exemplo que parte em direção
diametralmente oposta à anterior, mas com
igual seriedade, é o Ballet Folclórico da
Bahia, que transforma assumidamente ma-
nifestações regionais em show para turistas,
trazendo para a cena o que se encontra nos
terreiros ou nas rodas de capoeira.
Mas o caminho pelo qual Bicudo se en-
vereda parece estar mais próximo do movi-
mento folclorista. Historicamente, o interes-
se desse movimento pelas culturas ditas tra-
dicionais está ligado a uma postura românti-
ca de recusa à urbanização e à industrializa-
ção. No século XIX, as ideias folcloristas fo-
ram incorporadas pelos regimes totalitários,
exatamente na busca das raízes populares da
alma de um povo, caracterizando-o para des-
tacá-lo diante de uma cultura internacional
e das elites. É sabido que, durante o Estado
Novo, o balé, no Brasil, realizou incursões
nesse sentido. O curioso é que, em diferentes
países, esse movimento parte dos meios ur-
banos e intelectuais que projetam nos seus
objetos de estudo seus pontos de vista, pela
incapacidade de compreendê-los de dentro.
De fora, sem se misturar ou se deixar afetar,
de fato, por seu objeto de interesse, a leitura
de Bicudo é ufanista, ingênua e superficial.
Terra Brasilis estrutura-se rigorosa e pre-
visivelmente, numa sucessão de quadros que
vão, literalmente, dos dinossauros aos dias
N
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA• 8 DE OUTUBRO • 2003RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA• 8 DE OUTUBRO • 2003RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA• 8 DE OUTUBRO • 2003RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA• 8 DE OUTUBRO • 2003RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA• 8 DE OUTUBRO • 2003
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
149
de hoje. A virtualidade do cenário de Hélio
Eichbauer dá apenas velocidade às trocas
de cada quadro, sem, no entanto, propor nada
que vá além do telão pintado dos tradicio-
nais cenários de balé. Cada quadro corres-
ponde a um ritmo que é superficialmente
explorado pela coreografia limitada, assi-
nada por Antonio Gaspar, que busca tradu-
zir e, sobretudo mostrar, através de uma co-
lagem de passos, citações e referências, a
dança em questão.
Assim seguem os 29 quadros do espetá-
culo. Para cada um, uma ambientação espa-
cial, um grupo de bailarinos e um desfile de
figurinos. A coreografia de Antonio Gaspar
passa uma régua nas diferenças e deixa para
o telão e para os figurinos a tarefa de carac-
terizar o que no corpo não está presente.
Infelizmente, Terra Brasilis desperdiça
igualmente o que ainda poderia trazer qua-
lidade ao espetáculo: o conjunto de 54 bai-
larinos, alguns ótimos e experientes. Na noite
de estreia, no Teatro João Caetano, era visí-
vel a falta de ensaio e de entrosamento en-
tre o conjunto.
Para terminar, não poderia deixar de
citar mais uma vez as palavras do diretor:
“Apesar de nosso passado de injustiças so-
ciais, somos o povo mais feliz do mundo, o
que melhor sabe viver, o que mais cultua seu
amor à vida. Somos o povo do perdão e da
esperança. Somos o país do belo.” Resta sa-
ber de que lugar Fernando Bicudo olha o
Brasil, de que país, de que povo ele está fa-
lando e como brasileiro perguntar: “Nós
quem, cara pálida?”.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
150
O surpreendentesalto da DeAnima
Parceria entre a companhia e Forsythe dá frutos
ROBERTO PEREIRA
que existe de William Forsythe, um
dos mais importantes coreógrafos da
atualidade, no espetáculo forsythe@deanima,
que o DeAnima Ballet Contemporâneo
estreou anteontem no Teatro Villa-Lobos,
resume-se a apenas dois pas-de-deux. O
apenas se refere apenas à quantidade de
obras e não à sua qualidade. Slingerland e
Herman Schmerman são dois ótimos
exemplos da sabedoria deste coreógrafo
americano, que há quase 20 anos está à
frente do Frankfurt Ballet.
Nas duas obras, Forsythe parece levar os
ensinamentos de Balanchine, outro grande
nome da história da dança cênica, às últimas
consequências. O resultado são intrincadas
relações entre dança e música, num tecido
coreográfico que aponta no corpo dos bai-
larinos noções de tempo e espaço sempre
outras, sempre novas. E, talvez, o que mais
nos interessa aqui é sua execução, perfeita,
pela companhia carioca. Trata-se de um
grande mérito, já que o desafio a que se pro-
põe não é o dos mais fáceis.
Herman Schmerman é, com certeza, o
melhor momento da noite. A qualidade co-
reográfica aparece nítida nos corpos da ex-
celente bailarina Paula Maracajá e do bai-
larino, e também coreógrafo da companhia,
Roberto de Oliveira, em ótima forma, brin-
dando o público carioca com a precisão e o
vigor de sua dança.
Já os dois trabalhos que abrem e fecham
o espetáculo apresentam ainda fragilidades
nesta empreitada de se dedicar uma noite
ao coreógrafo americano. 9.All Stars carre-
ga consigo os problemas que persistem na
relação entre trabalho social e criação artís-
tica. Criada para a companhia e também para
os Jovens do Programa Social DeAnima, essa
obra denuncia que falta ainda a Forsythe
entender as tramas (e talvez armadilhas) que
esse tipo de produção apresenta. Talvez, um
tempo de convivência maior que apenas uma
semana poderia ajudá-lo a, contextualmen-
te, perceber o que significa sua atuação nes-
se lugar tão complexo entre projeto social,
criação artística e, por que não, educação.
Encerrando a noite, Uma semana com
Bill(y), assinada por Roberto de Oliveira,
é, segundo o coreógrafo, fruto da experiên-
cia desse convívio de uma semana entre a
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE NOVEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE NOVEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE NOVEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE NOVEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE NOVEMBRO • 2003
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
151
companhia e Forsythe. Se a vontade era a
de traduzir esse encontro tão promissor,
parece que a escolha do coreógrafo foi, no-
vamente, a utilização da narrativa, quase
balé, o que se torna pouco forsytheano nes-
se sentido. Oliveira padece ainda da lite-
rariedade, usando-a como único recurso
para construir suas obras, deixando de lado
a oportunidade de se lançar aos desafios da
pura construção coreográfica, marca do co-
reógrafo americano.
O espetáculo forsythe@deanima parece
revelar novos ares na companhia dirigida
por Richard Cragun. A escolha de um nome
como Forsythe pode ser um ótimo índice de
que existe a vontade de transformá-la em
uma companhia de repertório contemporâ-
neo. Que essa parceria continue e que ou-
tras se estabeleçam.
A qualidade dos bailarinos permite tal
avanço, e o público carioca só teria o que
agradecer.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
152
DeAnima dança William Forsytheutilizando coragem e competência
forsythe@deanima: Referência para o diálogo entrea técnica clássica e a criação contemporânea
SILVIA SOTER
lguns criadores sacudiram as ideias
sobre o balé clássico, investigando
novos caminhos técnicos e consequente-
mente estéticos. No último século, o balé não
foi o mesmo depois de Balanchine. E a téc-
nica clássica ganhou certamente novo fôle-
go a partir de coreógrafos como, por exem-
plo, William Forsythe, cujo trabalho à fren-
te do Ballet de Frankfurt foi apresentado ao
público carioca em junho passado. Forsythe
é hoje referência quando a técnica clássica
dialoga com a criação contemporânea.
Em junho deste ano, depois da tempora-
da do Ballet de Frankfurt no Rio, o coreógra-
fo americano esteve em residência no De
Anima Ballet Contemporâneo, companhia
dirigida por Richard Cragun e Roberto de
Oliveira. Durante uma semana, Forsythe tra-
balhou com os dois grupos que dão conta das
ações do DeAnima: a companhia profissio-
nal e os jovens do Programa Social DeAni-
ma. O espetáculo forsythe@deanima que es-
treou no último dia 21 no Teatro Villa-Lobos
apresenta o resultado dessa parceria.
A dança de Forsythe tem as marcas da
técnica do balé clássico revigorada pela
instabilidade dos apoios, sempre no limite
do desequilíbrio e da desarticulação, em
busca de novas e inesperadas linhas. A assi-
natura de Forsythe ganha contornos diferen-
tes em cada uma das quatro peças que com-
põem a noite.
Em 9. All Stars, foi especialmente criado
por Forsythe para o grupo de jovens do Pro-
grama Social. A coreografia se inicia com
uma partitura de gestos de braços, sob a mú-
sica de Bach, e, em seguida, explora a dança
de rua, ao som do grupo americano N.O.R.E.
Aqui, a sabedoria e a generosidade de For-
sythe estão a serviço de possibilitar a orga-
nização eficiente do material trazido pelos
jovens participantes do projeto. A coreogra-
fia se adapta às possibilidades (ainda restri-
tas, o que é natural) dos jovens iniciantes, mes-
mo que não vá muito além disso.
Mas é nos dois pas-de-deux que se se-
guem que a assinatura de Forsythe ganha,
de fato, visibilidade. Slingerland, um extra-
to da peça em quatro atos de mesmo nome
criada em 1989 para o Ballet de Frankfurt,
é retomado aqui, com precisão e seguran-
ça, por Alessandra Salamonde e Fernando
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA• 27 DE NOVEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA• 27 DE NOVEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA• 27 DE NOVEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA• 27 DE NOVEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA• 27 DE NOVEMBRO • 2003
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
153
Bersot. A desarticulação dos corpos cria uma
dança angulosa que joga entre as linhas do
clássico e a movimentação de aranhas.
Herman Schmerman, criada para New
York City Ballet, é o ponto alto da noite. Os
ótimos Roberto de Oliveira e Paula Mara-
cajá, com entrosamento perfeito, trazem o
jogo para a cena, com o humor e a criativi-
dade de Forsythe.
Fechando a noite, é a vez de Roberto de
Oliveira, agora como coreógrafo, dialogar
com a dança do coreógrafo americano. Uma
semana com Bill(y) é produto do convívio
com Forsythe durante a semana da residên-
cia. No entanto, há um tênue limite entre o
diálogo cênico com o criador e a citação do
que antes foi mostrado, e Oliveira, ao se
apegar demais à ideia de narrar o que acon-
teceu nesse encontro, acaba por criar uma
camisa de força para sua dança. Balanchi-
ne já havia dito que, quando fosse importan-
te contar algo, mandar uma carta seria mais
eficiente do que criar uma coreografia. Tal-
vez a lição desse mestre não se aplique a
todos os casos, mas no caso de Forsythe, vale
ser lembrada.
Vale também lembrar que dançar Forsythe
não é tarefa fácil. Tarefa que o DeAni-
ma Ballet Contemporâneo enfrenta com
coragem e competência.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
154
Ana Botafogo é divaBailarina brilha no Onegin do Ballet do Municipal
ROBERTO PEREIRA
em dúvida nenhuma, Onegin, balé de
John Cranko, inspirado em obra homô-
nima do poeta russo Alexander Pushkin, re-
presenta um marco importante para a his-
tória do Ballet do Theatro Municipal do Rio
de Janeiro. Onegin, que estreou no último
dia 5, ganhou aqui uma versão absoluta-
mente condizente com as necessidades im-
postas por esse tipo de encenação. Embora
seja um balé tipicamente de ação, que exi-
ge dos intérpretes uma construção dramáti-
ca refinada e por isso mesmo muito difícil,
existem nele passagens coreográficas alta-
mente técnicas, sobretudo nos intricados
pas-de-deux, presentes em todos os três atos.
Assim, o duplo desafio de atender a tais
exigências representa a possibilidade de
crescimento e maturidade que deve ser ex-
perienciada por toda grande companhia de
balé, e a nossa teve êxito nessa empreitada.
O elenco escalado para a estreia corres-
pondeu muito bem a tais exigências. Marce-
lo Misailidis conseguiu dar um tom preciso
de dramaticidade ao seu Onegin, enquanto
Vítor Luiz construiu um Lenski de acordo
com o perfil de poeta do personagem. Mas
era o privilégio de ver dividindo a cena as
bailarinas Ana Botafogo e Roberta Márquez,
como Tatiana e Olga, respectivamente, que
se transformou em um dos grandes momen-
tos da noite. Duas gerações de primeiras bai-
larinas, cada uma a seu modo, teciam cenica-
mente um diálogo eloquente de dança, uma
soma de competências. A personagem Olga
parece ter sido construída especialmente
para Roberta, tal era a afinação que se podia
observar em sua performance.
Já na segunda récita, esse mesmo entro-
samento não foi alcançado. Cecília Kerche,
talvez abalada pelos últimos acontecimen-
tos que envolveram seu nome nos bastido-
res do teatro, não conseguiu imprimir à sua
Tatiana as sutilezas dramáticas que carac-
terizam a personagem. E ainda não pôde
interagir bem com o bailarino Francisco
Timbó, bastante frágil tecnicamente como
Onegin. Resultado, a grande estrela foi a
novata Cristiane Quintan, como Olga. Já o
corpo de baile, assim como toda a produção
de cenários e figurinos, correspondiam com
perfeição à estrutura cênica imposta pela
obra de Cranko.
S
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 9 DE DEZEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 9 DE DEZEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 9 DE DEZEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 9 DE DEZEMBRO • 2003RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 9 DE DEZEMBRO • 2003
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
155
Se Onegin representa uma prova de
fogo para a companhia, que foi aprovada
em muitos de seus quesitos, representa tam-
bém (e, talvez, sobretudo) um grande mo-
mento na carreira da bailarina Ana Bota-
fogo. Maturidade, sabedoria, técnica e dra-
maticidade são elementos dissolvidos em
sua dança que se espalha por toda a cena,
por todo o teatro. Tatiana, assim como Gi-
selle, embora personagens tão distintos, já
pode ganhar o estatuto de papel consagra-
dor em sua carreira. Sua interpretação é
perfeita, madura, sutil. Consegue modular
com minúcia as diferenças de sua persona-
gem entre os atos, partindo de uma Tatiana
jovem e ingênua para chegar a uma outra
mais velha, dramática, no último ato. Sua
cena final impressiona. E faz o público sair
do teatro com uma certeza: Ana Botafogo
é uma diva.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
156
Balé do Municipalencerra temporada
em grande estiloOnegin: Ana Botafogo se destaca,
demonstrando mais uma vez a técnicae a interpretação repleta de
nuances que caracterizam uma estrela
SILVIA SOTER
Ballet do Theatro Municipal encerra
sua temporada de 2003 presenteando
o público carioca com a ótima montagem de
Onegin, coreografia de John Cranko, a par-
tir do romance em versos de Alexander
Pushkin. Depois de um longo período de
“vacas magras”, a companhia volta em gran-
de estilo. Coreografia, música, cenários, fi-
gurinos ajudam a fazer de Onegin um gran-
de momento do Theatro.
Em três atos, a história do desencontro
amoroso do distante e blasé Onegin e da ro-
mântica Tatiana é contada dentro da estru-
tura do balé de ação, em que o fio narrativo
é garantido, ainda que intercalado por mo-
mentos de dança mais abstrata.
A coreografia de Cranko é exemplar da
possibilidade de imbricar narração e dan-
ça. A primeira cena do segundo ato é ma-
gistralmente construída nesse sentido: os
acontecimentos e os conflitos entre os diver-
sos personagens que desencadearão a ação
acontecem, literalmente, entrelaçados na
dança dos casais durante o baile de aniver-
sário de Tatiana. Não há, nesse caso, como
separar a dança da narrativa.
Em uma peça como Onegin, os persona-
gens possuem tons reais, humanos, em que
as contradições, as dúvidas, as ambivalên-
cias e os arrependimentos não podem ser
garantidos por exageros da pantomima.
Não são emoções em estado bruto. A neces-
sidade de revelar, sem palavras, a comple-
xidade do mundo interior dos personagens
torna-se, então, tarefa árdua para os intér-
pretes. E os bailarinos do Theatro Munici-
pal se saem muito bem.
Na noite da estreia, Marcelo Misaili-
dis compôs, com técnica e precisão, seu
Onegin, equilibrando doses de sedução
e de frieza de emoções nos dois primei-
ros atos, e sensualidade e desespero no
ato final. Vítor Luiz emprestou sua ju-
ventude e sua bonita presença a Lenski,
confirmando o seu lugar de destaque na
companhia. A jovem primeira bailarina
O
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • QUINT• QUINT• QUINT• QUINT• QUINTA-FEIRA• 1A-FEIRA• 1A-FEIRA• 1A-FEIRA• 1A-FEIRA• 11 DE DEZEMBRO • 20031 DE DEZEMBRO • 20031 DE DEZEMBRO • 20031 DE DEZEMBRO • 20031 DE DEZEMBRO • 2003
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
157
Roberta Marquez, como Olga, brindou o
público com mais uma atuação impecá-
vel. O bom entrosamento do corpo de
baile garantiu brilho às cenas de conjun-
to, especialmente criativas no desenho
coreográfico.
Ana Botafogo, perfeita no papel de
Tatiana, destila diante dos olhos do pú-
blico suas qualidades dramáticas. Sua in-
terpretação é repleta de surpresas, nuan-
ces e hesitações. A cena do último encon-
tro de Tatiana e Onegin é uma dessas
imagens que ficam impregnadas na me-
mória do espectador. Ana Botafogo car-
rega o público com ela. Coloca-o na pele
de Tatiana.
Onegin é mais uma oportunidade de
confirmar a rara capacidade da bailari-
na em tornar legível em seu corpo, em seu
rosto, o texto dramático. A dança de Ana,
mais uma vez, faz vibrarem as palavras
dos poetas.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
158
Os corpos são olugar da dança
Lia Rodrigues faz dos bailarinos sua cena
ROBERTO PEREIRA
dança talvez seja um dos lugares mais
privilegiados para se observar as con-
taminações mútuas entre natureza e cultu-
ra. Nesse zigue-zague frenético de troca de
informações, o corpo que dança promove
pactos renovados entre sua materialidade
e o lugar em que está inserido. Os dois espe-
táculos apresentados pela Lia Rodrigues
Companhia de Danças, no Teatro Villa-Lo-
bos, fazem dessa via de mão dupla seu sen-
tido: o ambiente da dança, a cena, é desve-
lado no corpo e apenas nele, por ele.
Em Aquilo de que somos feitos, a ideia é
revelar como as informações do ambiente se
incrustam num corpo-suporte, quase um ou-
tdoor, que, desnudo, deixa-se etiquetar pelos
slogans do dia. Assim, o espetáculo recupera
a imprevisibilidade da performance, instau-
rando nela o engajamento político-social. O
espetáculo é uma constatação: o corpo, qual-
quer corpo – inclusive de quem assiste ao
espetáculo – contaminado pela informação
é mídia de ideias. Os corpos dos bailarinos
não permanecem mais nus. Cabe ao público,
lançado sobre o palco sem cadeiras, dissolvi-
do numa relação quase epidérmica com a
cena, revesti-los de outros figurinos. Em um
determinado momento, esses mesmos corpos
nus avançam pela plateia em espasmos pelo
chão e se amontoam contra uma parede: a
carne que havia ganhado significações tor-
na-se simplesmente carne. O espetáculo de
Lia Rodrigues é um manifesto.
A construção da cena no corpo, e somen-
te nele, torna-se ainda mais radical em For-
mas breves. A brevidade sugerida no título
vem das ideias de Italo Calvino. Assim, a
obra é composta de fragmentos quase ro-
mânticos: cada um com a inteireza de um
porco-espinho, diria Schlegel, ou onde “tudo
é apenas semente”, diria Novalis. Nessa apro-
priação pós-moderna de formatos, a propos-
ta era reler Schlemmer, coreógrafo e um
dos fundadores do movimento Bauhaus. A
tarefa é cumprida a ferro e fogo, fazendo do
movimento um bisturi que modifica o cor-
po, que opera nele a ideia. Um figurino do
Balé triádico do coreógrafo alemão, por
exemplo, é traduzido em um corpo nu. O que
há de germânico explode num duo de for-
mas altivas, apolíneas, assépticas.
Lia Rodrigues faz dos corpos de seus
excelentes bailarinos sua cena. Ao público
cabe o desafio de afinar os olhos e transfor-
má-los em lente quase cirúrgica de decupa-
ção. E perceber que aquela dança é apenas
sintoma dos novos entendimentos possíveis
de natureza e cultura.
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 1• SEGUNDA-FEIRA• 1• SEGUNDA-FEIRA• 1• SEGUNDA-FEIRA• 1• SEGUNDA-FEIRA• 155555 DE DEZEMBRO • 2003 DE DEZEMBRO • 2003 DE DEZEMBRO • 2003 DE DEZEMBRO • 2003 DE DEZEMBRO • 2003
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
159
Balança e dançaDança carioca encontra em festivais e mostras
terreno sólido para a sua produção em 2003
ROBERTO PEREIRA E ANA CECÍLIA MARTINS
ara a dança, olhar para o ano de 2003
representa reconhecer que, embora
persistam grandes problemas, como a evi-
dente falta de política voltada para a área,
sua produção compensou esse caráter nega-
tivo com uma qualidade que brota como
força de resistência, quase que “tirando lei-
te de pedra”. No Rio de Janeiro, cidade que
já se quis nomear “capital brasileira da dan-
ça”, não foi diferente.
Embora todas as faltas, todas as promes-
sas vazias, embora os apoios da Prefeitura às
companhias de dança contemporânea não
tenham saído como deveriam, que o Centro
Coreográfico só tenha acumulado datas
possíveis de inauguração, embora não haja
pauta para a dança nos teatros, que vivem
sob ameaça de se tornarem arremedo de
Broadway e de só exibirem uma versão
tupiniquim de musicais, a dança carioca
foi criando seus anticorpos e fez deles
sua marca.
O primeiro anticorpo, talvez o mais for-
te e resistente, é o dos festivais. O Rio agre-
ga alguns dos mais importantes festivais do
Brasil, e talvez por isso a cidade tenha hoje
um perfil tão peculiar que a distingue de
qualquer outra capital brasileira. Os Solos
de Dança no SESC, em sua quarta edição,
abriu o ano confirmando seu lugar ímpar na
cena carioca. Assinado por Beatriz Ra-
dunsky, e consultoria da coreógrafa Márcia
Rubin, o encontro vem experimentando,
desde sua primeira edição, novas configu-
rações. Nesse ano, como a ideia era promo-
ver encontros inéditos entre bailarinos e co-
reógrafos, alguns solos foram particularmen-
te instigantes pela originalidade desses en-
contros, como as parcerias estabelecidas
entre o excelente bailarino André Vidal e o
ator/diretor Matheus Nachtergaele, e a da
bailarina Soraya Bastos com a coreógrafa
Ana Vitória. Nesta mesma ideia de solos, o
evento ainda brindou o público com uma ex-
posição de raras litografias de Isadora Dun-
can, com curadoria de Silvia Soter e Rober-
to Pereira.
O Dança Brasil comemorou seus sete
anos provando que, embora seja, inacredi-
tavelmente, o único evento de dança do
Centro Cultural do Banco do Brasil, e mes-
mo assim ainda não conte com o teatro
maior, é um dos mais importantes festivais
de dança brasileiros. Com curadoria de Leo-
nel Brum e Silvia Soter, esse evento promo-
ve, ao optar por linhas temáticas, olhares
sempre renovados sobre a dança contem-
porânea que se faz por aqui. Neste ano, a
P
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • QUINTA-FEIRA • QUINTA-FEIRA • QUINTA-FEIRA • QUINTA-FEIRA • 25 DE DEZEMBRO • 2003• 25 DE DEZEMBRO • 2003• 25 DE DEZEMBRO • 2003• 25 DE DEZEMBRO • 2003• 25 DE DEZEMBRO • 2003
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
160
relação música/dança foi eleita. Este senti-
do, dois trabalhos aparecem como funda-
mentais: o de Márcia Rubin, que estreou
uma nova possibilidade coreográfica em
sua carreira em Tempo de valsa moderado
com elegância, e o furacão jovem chamado
Bruno Beltrão, com os atritos que provoca
ao fazer dialogarem a dança de rua e a con-
temporânea. Beltrão, com seu inteligente Te-
lesquat, foi, com certeza, um dos grandes mo-
mentos da dança em 2003.
O terceiro importante festival de dança
carioca é o veterano Panorama RioArte de
Dança, que alcançou algo bastante signifi-
cativo no cenário brasileiro hoje: sua déci-
ma segunda edição. Com a direção artística
de Lia Rodrigues, esse evento funciona
como uma espécie de mapa da dança con-
temporânea carioca ou, até mesmo, sua ár-
vore genealógica. Em 2003, sua marca foi
mostrar como seus projetos ganharam cor-
pos e tiveram prolongamentos tão frutífe-
ros. Trabalhos desenvolvidos em residên-
cias em 2002 foram apresentados nesse ano,
mostrando o papel fundamental desse fes-
tival como fomentador de pesquisa de dan-
ça na cidade. Nesse sentido, os trabalhos de
Frederico Paredes e Denise Stutz são ótimos
exemplos de processos cuja ignição foi o
próprio festival. Contando com outros pro-
jetos, como a quarta edição de Os novíssi-
mos, mostra de pesquisa de jovens coreógra-
fos, curadores e, agora também, críticos, o Pa-
norama continua como talvez a única pos-
sibilidade de apresentar importantes com-
panhias estrangeiras a preços realmente
acessíveis. Nesse ano, tão parco de atrações
internacionais, poder ver a mais recente cri-
ação da coreógrafa francesa Maguy Marin,
Les applaudissements ne se mangent pas, foi
um presente.
Outras mostras se agregam a este cená-
rio de resistência: o Projeto Dança em Foco,
uma das atividades do superprodutivo Es-
paço SESC (outro anticorpo a ser mencio-
nado), que investiga aproximações entre ví-
deo e dança, assinado por Paulo Caldas e
Leonel Brum; o Dança em trânsito, da Se-
cretaria das Culturas, que investiga a rela-
ção entre dança e paisagens urbanas; o Pro-
jeto raio X, da UniverCidade, que revelou
o processo criativo de oito importantes com-
panhias cariocas, em ensaios abertos, sob a
curadoria de Roberto Pereira; e o 4º Circui-
to Carioca que, embora tenha a boa inten-
ção de ser uma palheta da vasta produção
de dança da cidade, em seus mais diversos
estilos, ainda sofre por não contar com uma
curadoria mais cuidadosa, que se preocupe
também com a formação de plateias. Enten-
der esses festivais e mostras como anticor-
pos é talvez o modo mais interessante de se
notar, antes de tudo, o caráter formativo
deles, num ambiente que se nutre se infor-
mações, muitas vezes tão escassas. Informa-
ção, aqui, também é formação.
As companhias cariocas, muitas delas
vivendo atualmente os percalços de falta de
organização dos poderes públicos em rela-
ção à subvenção disponibilizada, também
são fortes anticorpos que lutam pela saúde
da dança que se faz nesta cidade. Dani Lima
apresentou um dos trabalhos mais maduros
de sua carreira, Falam as partes do todo?,
investigando identidade numa cena e em
corpos bastante diferentes do que até então
era conhecida como sua marca; Carlota
Portella mostrou seus excelentes bailarinos
em novos trabalhos assinados por coreó-
grafos convidados e estreantes; a DeAni-
ma Ballet Contemporâneo abriu o ano,
logo em janeiro, com um mal estruturado
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
161
projeto de residência coreográfica, mas
mostrou, no segundo semestre, alguns frutos
de uma parceria com o genial coreógrafo
americano William Forsythe, revelando ao
público carioca que Roberto de Oliveira,
sem dúvida alguma, tem na sua prática
como bailarino sua melhor faceta; e Lia
Rodrigues, encerrando o ano, que pôde
revelar aqui porque sua pesquisa interessa
tanto aos importantes festivais internacio-
nais, sempre com grande sucesso, como no
Nouvelle Danse, FIND, do Canadá, onde
ganhou o prêmio de melhor espetáculo
dado pelo público, deixando em segundo
lugar ninguém menos que Forsythe. Aliás, o
mesmo Forsythe foi, para nós, a única visi-
ta estrangeira, fora do âmbito dos festivais,
de relevância. Num ano em que as empre-
sas se viram fadadas a cancelar temporadas,
como infelizmente aconteceu com a de
Merce Cunningham, da série Antares, assis-
tir ao Ballet de Frankfurt foi uma experiên-
cia ímpar, por sua qualidade, por sua inteli-
gência, pela marca atualíssima forsytheana.
O Ballet do Theatro Municipal também
enfrentou dificuldades de toda sorte: a fal-
ta de verba agregada a uma direção polê-
mica de Richard Cragun tornou o ano da-
quela companhia pouco produtivo. Após
requentadas remontagens de Giselle e O
lago dos cisnes, e uma constrangedora
Gala, apresentada em novembro, Onegin,
de John Cranko, foi seu grande momento.
Ana Botafogo, Marcelo Misailidis, André
Valadão e o jovem talento Roberta
Márquez formam, sem dúvida, um elenco
de primeira linha na mais importante com-
panhia de balé brasileira.
O ano de 2003, para a dança, embora
abalado pela falta evidente de estrutura,
criou mecanismos de produção que tor-
nam o Rio de Janeiro, com certeza, uma
cidade com um perfil bastante peculiar
quando se observa os grandes centros cul-
turais brasileiros. Aqui, arregaçar as man-
gas é a palavra de ordem. E aprender com
o próprio corpo como resistir, como com-
bater, criando anticorpos vivos, ativos, in-
teligentes, concede à sua dança um cará-
ter que ultrapassa a dimensão estética. É,
antes de tudo, um procedimento ético, de
sobrevivência.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
163
2004 CRÍTICAS
O GLOBO - 15 DE JANEIRO DE 2004Dança e reflexão no palco do Espaço SESC
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 18 DE JANEIRO DE 2004Permanências mutantes
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 7 DE MARÇO DE 2004Palco para a reflexão
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 13 DE MARÇO DE 2004Saltos com riscos
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 21 DE MAIO DE 2004Uma ponte entre o Rio e Sttutgart
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 2 DE MAIO DE 2004O espaço que (nos) estimula
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 5 DE JULHO DE 2004Dançando por esporte
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 12 DE JULHO DE 2004Depois de 50 anos, ainda novas maneiras de ver e criar dança
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 12 DE JULHO DE 2004Passos simultâneos à vida
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 16 DE JULHO DE 2004Lembranças pensadas no presente que orientam projetos futuros
SILVIA SOTER
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
164
JORNAL DO BRASIL - 24 DE JULHO DE 2004Lição de Antonio Gades
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 10 DE AGOSTO DE 2004Paixão pelo movimento
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 13 DE AGOSTO DE 2004Competência que rende espetáculo de beleza hipnotizante
SILVIA SOTER
O GLOBO - 3 DE SETEMBRO DE 2004Com prazer e sedução
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 4 DE SETEMBRO DE 2004Um balé de paixão
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 17 DE SETEMBRO DE 2004A Tropicália, segundo sete criadores
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 24 DE SETEMBRO DE 2004Mais liberdade para o som dos pés
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 2 DE OUTUBRO DE 2004O Brasil em Lyon
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 3 DE OUTUBRO DE 2004Shakespeare condensado
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 8 DE OUTUBRO DE 2004É tropicalismo, mas sem irreverência ou transgressão
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 9 DE NOVEMBRO DE 2004Desafio ainda é politizar o corpo que dança
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 22 DE NOVEMBRO DE 2004Passos tecidos com sabedoria
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 27 DE NOVEMBRO DE 2004Gestos de beleza e suavidade em Márcia Milhazes
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 6 DE DEZEMBRO DE 2004Qualidade técnica à prova
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 30 DE DEZEMBRO DE 2004Driblando obstáculos
ROBERTO PEREIRA
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
165
Dança e reflexão nopalco do Espaço SESC
Afirmações intencionais – Acidentes:Em seu novo espetáculo, João Saldanha divide maisuma vez com o público as entranhas do ato de criar
SILVIA SOTER
temporada de dança contemporânea
chegou mais cedo em 2004. O Espa-
ço SESC, que há quatro anos inaugurava
em março a temporada carioca com seus
solos e duos, abriu, neste ano, as portas em
janeiro para o coreógrafo João Saldanha
dividir com o público seu Afirmações inten-
cionais – Acidentes.
Como o coreógrafo explica no programa,
esse trabalho vem em consequência de
mudanças provocadas em sua companhia, o
Atelier Coreográfico, pela não renovação
em 2003 do apoio da Secretaria Municipal
das Culturas que mantinha há anos suas ati-
vidades. O coreógrafo decidiu, então, traba-
lhar com bailarinos de outras companhias
com as quais já colaborava como dramatur-
go ou professor. Estão em cena, além do pró-
prio João, um dream-team que reúne Laura
Samy e Marcelo Braga, dois parceiros de
João de longa data, Micheline Torres e Thi-
ago Granato, da Lia Rodrigues Companhia
de Danças, e Danielle Rodrigues e Alex
Senna, da Cia. Carlota Portella. Ótimos bai-
larinos que colaboram com suas bagagens
diversas para a peça.
Assim como acontecia em Danças de
porão, trabalho de João Saldanha e de Pau-
la Nestorov, que esteve em cartaz em 2002,
as entranhas e a intimidade do ato de dan-
çar e de criar sequências com a dança que
surge em cena são reveladas ao público.
Por exemplo, uma mesma movimenta-
ção é iniciada por um dos bailarinos e ex-
perimentada pelos outros, gerando sequên-
cias. A cada encontro de movimento e bai-
larino, a partir dos corpos que atravessam,
essas frases ganham diferentes qualidades.
Desse modo, nascem células coreográficas
que são combinadas e compostas diante dos
olhos do público. A seleção e a ordem das
frases a serem trabalhadas são diferentes a
cada noite. O acidente é esperado e bem-
vindo. O espetacular cede espaço ao proces-
so, como vem acontecendo numa vertente
importante da dança contemporânea.
O ponto mais delicado de propostas
como esta está na criação de um autêntico
ambiente de experimentação diante dos
olhos do público. Ainda que, ao abrir a
noite, João Saldanha tente quebrar com a re-
lação formal entre cena e plateia, pedindo,
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • • • • • QUINTA-FEIRA QUINTA-FEIRA QUINTA-FEIRA QUINTA-FEIRA QUINTA-FEIRA • 15 DE JANEIRO • 2004 • 15 DE JANEIRO • 2004 • 15 DE JANEIRO • 2004 • 15 DE JANEIRO • 2004 • 15 DE JANEIRO • 2004
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
166
por exemplo, que algumas pessoas do pú-
blico troquem de lugar e avisando que
aquilo não é um espetáculo, na noite de es-
treia ficou evidente que a presença do
público é um fator de influência para o
rendimento dos intérpretes/criadores, para
o bem e para o mal, e não pode ser des-
considerado.
Em alguns momentos da noite, os baila-
rinos descansam, comentam o que percebe-
ram de suas experiências, dividem frustra-
ções, ouvem as opiniões e sugestões do co-
reógrafo. Aquilo que poderia parecer como
um momento de pausa da dança é o que tem
de mais interessante nesse trabalho de João
e que já estava apontado em Danças de
porão: a possibilidade de confrontar o que o
público experimenta, ainda que sem neces-
sariamente formular, com as impressões dos
bailarinos e do coreógrafo. A peça é tecida
a partir de idas e voltas entre a dança e a
reflexão. Em Afirmações intencionais –
Acidentes, as palavras do dramaturgo fran-
cês Bernard Dort são confirmadas diante
dos olhos do público: a dramaturgia é uma
consciência e uma prática.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
167
Permanências mutantesEspetáculo de João Saldanha analisa o paradoxo da dança
ROBERTO PEREIRA
título do novo trabalho do coreógrafo
e bailarino João Saldanha, Afirmações
intencionais – Acidentes, em temporada
até hoje no Espaço SESC, talvez indicie
uma senha possível para seu entendimen-
to: enquanto a expressão “afirmações in-
tencionais” resguarda a qualidade de per-
manência, do que é, o termo “acidentes”
redimensiona esse estado, instaurando a
ideia de acaso, de movimento, do que
muda. Antiga questão filosófica, a relação
entre permanência e mudança parece de-
senhar um mapa, dinâmico e sempre novo,
sobre o qual a dança ali construída é for-
çada a se desconstruir a cada dia, ou seja,
é forçada a mostrar-se sempre como pro-
cesso e não como produto acabado. O que
é vocabulário de movimentos do coreó-
grafo encontra abrigo incerto, e por isso
mesmo tão rico, em corpos que se inaugu-
ram como um grupo, compartilhando a in-
constância da cena.
Assim, a tradução dessa relação propos-
ta por João Saldanha faz submergir a quali-
dade da dança e de suas especificidades nos
acasos que a envolvem: a cada dia, sequên-
cias de movimentos, quem as executa e em
que ordem, além da própria trilha sonora,
são escolhidos pouco antes ou mesmo du-
rante a apresentação. O frescor do momen-
to quase improvisado contrasta com o vigor
do construído, do ensaiado, convidando o
espectador a travar ali uma relação quase
de voyeur com o que se tece entre os baila-
rinos. Não à toa, antes de começar o espetá-
culo, o público é convidado a se levantar
para que os bailarinos possam observá-lo, e
não apenas o contrário.
Aliás, a escolha dos seis excelentes bai-
larinos (Micheline Torres e Thiago Grana-
to, da Lia Rodrigues Companhia de Dan-
ças, Danielle Rodrigues e Alex Senna, da
Cia. Carlota Portella, e ainda outros dois que
já trabalham há tempos com João, Laura
Sämy e Marcelo Braga) parece obedecer
à mesma lógica de permanência e mudan-
ça. O que cada um traz, das diferenças pes-
soais e da linguagem de cada companhia
às quais pertencem, permanece, ao mesmo
tempo em que se mescla, num novo conjun-
to, numa nova linguagem. O que se deixa
ver é a dança de João em diálogo com a de
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANE IRO • DOMINGOR IO DE JANE IRO • DOMINGOR IO DE JANE IRO • DOMINGOR IO DE JANE IRO • DOMINGOR IO DE JANE IRO • DOMINGO • 18 DE JANEIRO • 2004 • 18 DE JANEIRO • 2004 • 18 DE JANEIRO • 2004 • 18 DE JANEIRO • 2004 • 18 DE JANEIRO • 2004
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
168
seus colegas coreógrafos, num jogo intri-
gante de vice-versas.
O grande mestre de todos, o coreógrafo
russo George Balanchine, comparava seu
ofício de coreógrafo e professor ao de um
jardineiro, também um de seus hobbies fa-
voritos: a atenção ao crescimento de suas
plantas e a consciência do ambiente em que
cresciam davam-lhe a certeza da constru-
ção de um processo. No texto do programa,
João Saldanha comenta sua atividade do-
méstica de “jardineiro-jardinando”. Na cren-
ça popular, aquele que possui a habilidade
de fazer vingar uma planta em seu jardim
ao plantá-la tem o que chamam de “mão
boa”. Essa mesma mão, dissolvida na sabe-
doria de um corpo inteiro, faz de João mais
do que um mero “orientador”: ele é mesmo
aquele que sabe fazer florescer seu canteiro
de dança, colocando a mão em sua terra, cul-
tivando-a. E faz torcer para que a estação da
dança carioca seja sempre primavera.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
169
Palco para a reflexãoDenise Stutz arrebata o público na série
Solos de Dança, em cartaz no SESC
ROBERTO PEREIRA
onfirmando-se como um dos mais im-
portantes eventos do calendário da
dança carioca, a série Solos de Dança no
SESC, em sua quinta edição, dá continuida-
de à proposta de instigar novos olhares a
partir de novas misturas. Com curadoria as-
sinada por Beatriz Radunsky e consultoria
do coreógrafo João Saldanha, a mostra ini-
ciou sua primeira parte na quinta-feira, co-
locando no mesmo palco qualidades muito
distintas de dança, que, juntas, refletem tan-
to a rica pluralidade de pesquisas em dança
contemporânea na cidade, como também a
generosa possibilidade de convívio dessas
linguagens num mesmo ambiente. Resulta-
do: a série Solos de Dança no SESC traça
um diagrama de potencialidades que se efe-
tivam entre nossos artistas.
Como curadoria traduz um modo de
olhar o objeto artístico, interferindo inclu-
sive a partir da sequência em que os traba-
lhos são apresentados, um dos momentos
mais especiais da noite é justamente a pas-
sagem entre os dois primeiros solos, que pro-
voca um estranhamento mais que legítimo
no público. Abrindo a noite, a experiente
bailarina Denise Stutz apresenta seu DeCor,
lugar que ela inaugura em sua carreira
para deixar aflorar a memória de dança
abrigada em seu corpo. A sabedoria e a
maturidade com que essa questão é ali tra-
tada deixam vazar a qualidade de uma his-
tória que se tece em movimentos, que se
imprime na carne, contando suas experiên-
cias com coreógrafos diversos, mostrando
um corpo que é um corpo de bailarina, no
sentido mais puro desta palavra. Denise
deixa o palco e o público arrebatados por
sua história, por sua identidade construída
de modo tão íntegro em sua dança. Em se-
guida, o solo O dia em que ela vai me ver
dançar, da jovem Milene Pimentel, impac-
ta à primeira vista justamente pelo frescor
e a fragilidade de alguém que ainda come-
ça tenuamente a construir sua história em
dança. O contraste evidente entre as duas
bailarinas, entre os dois trabalhos, exige do
público que afie seu olhar para o que é con-
tado ali, confirmando que a ordem dos fato-
res, nesse caso, altera sempre o produto. Mi-
lene faz sua dança do seu tamanho, sem a
ansiedade característica de jovens coreó-
C
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R OR I O D E J A N E I R OR I O D E J A N E I R OR I O D E J A N E I R OR I O D E J A N E I R O • DOM INGO • 7 DE MARÇO • 2004 • DOM INGO • 7 DE MARÇO • 2004 • DOM INGO • 7 DE MARÇO • 2004 • DOM INGO • 7 DE MARÇO • 2004 • DOM INGO • 7 DE MARÇO • 2004
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
170
grafos, mostrando que o que ela aprendeu
em seu curso universitário de dança pode
ser transformado em investigação própria
de movimento. Duas trajetórias, Denise e
Milene são dois vetores que nos fazem lem-
brar que história não se conta de forma li-
near, – da esquerda para a direita, – princi-
palmente quando a linguagem escolhida
para contá-la é a dança.
O terceiro solo da noite marca um encon-
tro inédito entre o bailarino Marcellus Fer-
reira e o coreógrafo Paulo Caldas. A elegân-
cia com que tudo se constrói, já a partir do
título do trabalho, Basse danse, uma referên-
cia a um modo de se fazer dança antes que
ela se tornasse cênica no Ocidente, carece
ainda de ajustes típicos de encontros como
estes. Dono de uma pesquisa de movimento
bastante apurada, que vem sendo burilada
há muito tempo, Paulo parece não investir
nas novas possibilidades que a excelência
da dança de Marcellus sugere. O resultado
que se vê é muito mais um esforço do baila-
rino em se aproximar do coreógrafo e não
um jogo entre vice-versas que poderia ser
instigante.
Por fim, no último solo da noite, Marcelo
Braga e Paula Nestorov transformam o pú-
blico em um voyeur que perscruta a fina
relação entre artistas amigos ou, antes, en-
tre amigos artistas. Jacaré, peixe e cachorro
é uma fresta que se abre para que se obser-
ve o que se tece, em seu próprio exercício
de tecer. A belíssima voz de Paula, que can-
ta ao vivo uma trilha composta especialmen-
te por Antonio Saraiva, se refaz na movi-
mentação de Marcelo. O convívio e a cum-
plicidade que se desvelam no palco são
transformados em dança e em música e no
que há de mais belo entre essas duas artes.
É nos atritos entre misturas que a série
Solos de Dança no SESC promove reflexão.
Essa é uma das principais tarefas que se
impõe a um evento como esse. A julgar por
essa primeira parte, a tarefa parece ter sido
plenamente cumprida.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
171
Saltos com riscosApesar de positivo, Solos de Dança revela fragilidades
ROBERTO PEREIRA
segunda e última semana dos Solos
de Dança no SESC deixa aparente,
ao promover encontros inéditos entre core-
ógrafos e bailarinos, tanto as riquezas quan-
to as fragilidades quase inevitáveis em um
projeto como este. O que resulta cenicamen-
te das relações ali inauguradas deve ser
antes observado como um ponto pinçado de
um processo, e deve, portanto, ser lido como
tal. Nesse exercício, cabe a generosidade do
olhar em busca de novas tramas, pelo fres-
cor que a própria (nova) relação inspira.
O primeiro trabalho da noite clama por
essa leitura de modo flagrante. Priscilla
Teixeira convidou a atriz Mariana Lima
para assinar a “direção” e a “concepção” de
Mare lunae, e não sua “coreografia”. Os ter-
mos indicam, nesse caso, que a dramaturgia
assinada por Mariana trafega rente a estru-
turas teatrais, deixando que a dança, em pura
potencialidade no corpo da excelente bai-
larina, permaneça em segundo plano. Assim,
a narrativa buscada ali, com o auxílio de
elementos cênicos, parece esquecer as es-
pecificidades da narrativa própria do corpo
que dança. A equação desses dois modos de
construção cênica está por ser feita e é isso
que salta aos olhos.
Já em Oculto, essa relação entre “dire-
ção dramatúrgica”, assinada por Gilberto
Gawronsky, e “direção coreográfica”, assina-
da por Alex Neoral, para o bailarino Rober-
to de Oliveira, parece estar melhor acomo-
dada, embora sofra pelo excesso de referên-
cias. A ideia submerge em texto, luz, figuri-
no, deixando pouco espaço para a interes-
sante construção coreográfica que apenas
se esboça. A rica disponibilidade do corpo
do bailarino poderia ter sido melhor explo-
rada, podendo ter sido transformada, na
própria cena, no lugar de diálogo entre o
coreógrafo e o dramaturgo.
O terceiro trabalho da noite se oferece
como bom exemplo de como esses novos
encontros entre bailarino e coreógrafo po-
dem ser extremamente frágeis. Em Dobra,
ao voltar-se para a própria tessitura coreo-
gráfica, Thiago Granato não consegue im-
primir à cena ou ao corpo da bailarina Lau-
ra Sämy a coesão necessária para se ler o
texto que ali se delineia. O processo de
metalinguagem, ao ser tratado como tema
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 1 3 D E M A R Ç O • 2 0 0 4R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 1 3 D E M A R Ç O • 2 0 0 4R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 1 3 D E M A R Ç O • 2 0 0 4R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 1 3 D E M A R Ç O • 2 0 0 4R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 1 3 D E M A R Ç O • 2 0 0 4
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
172
em dança, traz consigo armadilhas que tal-
vez apenas a maturidade na lida coreográ-
fica possa desarmar, desafio que o jovem
Thiago ainda tem pela frente.
Por fim, um reencontro entre os expe-
rientes Carolina Wiehoff e Renato Vieira
parece trafegar justamente na mão con-
trária do trabalho anterior. Em Mulher so-
zinha no palco, pode-se observar como es-
truturas coreográficas são familiares à
bailarina e ao coreógrafo, como se os dois
falassem um dialeto que é trazido à tona
depois de algum tempo sem ser praticado.
Mas esse conforto, próprio do que já é co-
nhecido, não incita, infelizmente, um avan-
ço na investigação coreográfica. Mesmo
com o terreno já preparado e bastante fér-
til, o que nasce são frases feitas na movi-
mentação, na música e, sobretudo, na ilu-
minação e no figurino. Nessa conversa que
se retoma, Renato e Carolina, com a sa-
bedoria dos dois, poderiam ter se lançado
a criar neologismos.
Os Solos de Dança no SESC funcionam
como provocações: nos atritos de novas re-
lações, desviam os olhos do público dos au-
tomatismos, redirecionando-os para estru-
turas não conhecidas. E essa parece mes-
mo ser a função primordial de uma mos-
tra como esta.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
173
Uma ponte entreo Rio e Sttutgart
Tríptico – Ballet do Theatro Municipal:Vertente contemporânea alarga o leque estético
SILVIA SOTER
naugurando a temporada de 2004 do Bal-
let do Theatro Municipal, Tríptico es-
treou na última sexta-feira e prossegue até
amanhã. O programa é composto de peças
do alemão Uwe Scholz, do americano Glen
Tetley e do brasileiro Roberto de Oliveira.
Uma perspectiva bastante particular
costura e justifica a seleção das obras que
compõem a noite: as três peças revelam a
escolha afetiva do diretor do Ballet, Richard
Cragun, personagem importante da rela-
ção histórica do Ballet de Sttutgart com o
Brasil. Cragun foi primeiro bailarino nes-
sa companhia alemã e partner da estrela
brasileira Márcia Haydée. Todas as três
peças estão relacionadas, de um modo ou
de outro, com a passagem de Cragun e de
brasileiros por Sttutgart.
Sétima sinfonia, de Uwe Scholz, coreó-
grafo e também ex-bailarino de Sttutgart,
criada para outra brasileira, a bailarina
Beatriz de Almeida, abre a noite. A aborda-
gem de Scholz em relação ao espaço e à
música remete aos balés sinfônicos de Mas-
sine, no que se refere à busca de uma trans-
posição plástica da música. A coreografia de
Scholz incorpora elementos modernos à téc-
nica acadêmica e tem a qualidade de jogar
com silêncios da movimentação para dei-
xar respirar a música de Beethoven. A peça,
defendida com correção pelos bailarinos
da casa, necessita ainda de pequenos ajus-
tes para garantir a precisão que certamen-
te trará mais brilho à interpretação. A pre-
sença da própria Beatriz de Almeida na
noite de estreia reforçou o caráter de ho-
menagem da noite.
Criada pelo americano Glen Tetley,
no Ballet de Stuttgart, em homenagem a
John Cranko, Voluntaries estreou em 1973 e
seguiu carreira com Márcia Haydée e Ri-
chard Cragun nos papéis principais. Trans-
cendência e espiritualidade estão no centro
dessa obra de interpretação difícil, com
música de Francis Poulenc. Infelizmente, o
impacto e a beleza de Voluntaries não atin-
gem seu auge. Talvez a obra requeira intér-
pretes mais maduros para dar conta da for-
ça que Tetley propõe.
De inspiração nitidamente forsytheana,
M.E.T.A.F.Í.S.I.C.A, de Roberto de Oliveira,
colaborador de Cragun e também ex-baila-
I
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANE IRO • R IO DE JANE IRO • R IO DE JANE IRO • R IO DE JANE IRO • R IO DE JANE IRO • SEXTA-FE IRASEXTA-FE IRASEXTA-FE IRASEXTA-FE IRASEXTA-FE IRA• 21 DE MAIO • 2004• 21 DE MAIO • 2004• 21 DE MAIO • 2004• 21 DE MAIO • 2004• 21 DE MAIO • 2004
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
174
rino do Ballet de Sttutgart, fecha a noite. A
iluminação de Milton Giglio cria efeitos em
linhas que cruzam o palco e se dirigem para
o foco de energia ao fundo da cena, de onde
e para onde a movimentação caótica dos
bailarinos se orienta. Gestos angulares,
desarticulados e repetitivos se estruturam de
forma análoga à música, recriando as elipses
propostas por Philip Glass. Como uma citação,
a luz recria imagens de nuvens que se acele-
ram no céu, como no filme Koyaanisqatsi,
de Godfrey Reggio, com música de Glass.
Roberto de Oliveira consegue, em alguns
momentos, tocar a vertigem e o caos a que
se propõe, ainda que pareça não confiar ple-
namente nas possibilidades de sua própria
dança, insistindo em se apoiar em diferen-
tes elementos cênicos para explicitar suas
intenções. Oliveira aproveita de forma efi-
ciente as qualidades físicas e técnicas de
todo o elenco, com destaque para Bettina do
Dalcanale.
Esta não é a primeira vez (e espera-se que
não seja a última) que o Ballet do Theatro
Municipal explora uma vertente mais con-
temporânea. É sempre interessante para
uma companhia alargar seu leque de possi-
bilidades estéticas, investindo em outras
corporeidades, o que faz com que iniciati-
vas como o Tríptico sejam bem-vindas. Mas
a composição do programa deveria ser nor-
teada pelas qualidades intrínsecas das
obras, aliada à certeza de adequação ao
perfil dos intérpretes da casa. Não é o que
acontece em Tríptico. É uma pena que o
programa da noite não faça da estreia da
temporada de 2004 um momento inesque-
cível. Saudades de Oneguin.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
175
O espaço que (nos) estimulaDança Brasil encerra temporada firmando-secomo palco das tendências contemporâneas
ROBERTO PEREIRA
Dança Brasil, realizado durante todo
o mês de abril no Centro Cultural do
Banco do Brasil, e reunindo sete diferentes
trabalhos, é hoje, ao lado dos Solos de Dan-
ça no SESC e do Panorama RioArte
de Dança, um dos mais importantes even-
tos de dança da cidade do Rio de Janeiro.
Com direção artística de Leonel Brum, que
divide a curadoria com a pesquisadora e
crítica Silvia Soter, o Dança Brasil, a cada
ano, elege um elemento sobre o qual tra-
tam todos os trabalhos ali reunidos ou que se
transforma num viés possível de leitura des-
ses mesmos trabalhos pelo público. Neste ano,
sob o título O espaço que (nos) inspira, trans-
formou a relação espaço-tempo, vital para
a dança, em matéria-prima para o foco do
olhar da curadoria, tendo como desafio ele-
ger coreografias que apresentassem, de al-
guma forma, essa preocupação.
Dividido em quatro encontros, sendo
que três deles reuniam dois trabalhos numa
mesma noite, o Dança Brasil apresentou
um mapa muito interessante de como esse
espaço é tecido pelas diferentes tendênci-
as da dança contemporânea. No primeiro
programa, Basirah, companhia de Brasília,
apresentou Eu só existo quando ninguém
me olha, utilizando-se de um tempo esgar-
çado para tentar representar o espaço da
intimidade. Avançando na pesquisa de
movimentos dentro do histórico dessa com-
panhia, esse espetáculo, entretanto, ainda
necessita da coragem e da meticulosidade
de esgarçar no próprio corpo esse tempo,
despindo-se da necessidade de elementos
cênicos, como cenário e música, para alcan-
çar a singularidade do espaço íntimo. Já a
segunda companhia da noite, o Kaiowas
Grupo de Dança, de Florianópolis, em
Pausa, pretendeu explorar a espacialida-
de pictórica de Mondrian. Utilizando-se
de uma técnica de quedas desenvolvida por
Alejandro Ahmed em seu grupo Cena 11,
do qual a coreógrafa faz parte, Kaiowas
parece ter investido pouco na especificida-
de do tema que pretendia abordar, pecan-
do pelo excesso de frontalidade e deixan-
do que a riqueza de elementos a serem
explorados no espaço representado por
Mondrian se transformasse apenas em ce-
nário e em adereço.A segunda semana foi um dos acertos de
curadoria do festival. Reunindo dois traba-lhos de Minas Gerais, mostrou um progra-ma coeso e que muito dialoga com a ques-tão do espaço proposto pelo evento. Lucia-na Gontijo e Margô Assis apresentaram, emIn situ, uma tradução poética da relação quese estabelece entre o ambiente e o corpo,
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O • • • • • D O M I N G OD O M I N G OD O M I N G OD O M I N G OD O M I N G O • 2 D E M A I O • 2 0 0 4• 2 D E M A I O • 2 0 0 4• 2 D E M A I O • 2 0 0 4• 2 D E M A I O • 2 0 0 4• 2 D E M A I O • 2 0 0 4
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
176
mostrando em planos e suportes diferentescomo esse corpo reage e interfere nessasnovas texturas de espaço. A beleza com aqual essa questão é tratada com carinhopelas duas bailarinas-coreógrafas é, de cer-ta forma, continuada na noite através do tra-balho de Thembi Rosa, em seu Ajuntamen-
to. Nele, três diferentes coreógrafos inscre-
vem no corpo da bailarina sua noção de es-
paço que se acomoda como podem, ao lon-
go do tempo, em sua qualidade de dança. O
interessante é justamente observar como se
inaugura um outro amálgama entre compo-
sição de três assinaturas diferentes no espa-
ço de um único corpo, entendido aqui como
mídia dessas assinaturas. Entre o espaço-cor-
po de Luciana e Margô e o corpo-espaço de
Thembi, esse programa possibilitou a decu-
pagem das novas relações que a dança con-
temporânea promove ao (re)criar, a cada
atualização, sua própria noção de espaço.
A Cia. Carlota Portella – Vacilou Dançou
e Celina Portella & Flavia Costa compuse-
ram o terceiro programa, todo carioca. A
mestra Carlota mostrou um trabalho que in-
triga se entendido dentro de uma dimensão
histórica. Em Espaço de luz, a pesquisa esté-
tica da coreógrafa aponta duas setas: uma que
avança e outra que retrocede em busca do
resgate de um vocabulário que lhe é famili-
ar. A o deixar de lado a tarefa de tratar a dan-
ça como suporte de narrativas, ela recupera
com propriedade a movimentação de jazz
que lhe ocupou tantos anos de sua carreira
para redimensioná-la em um outro contexto.
A chave para seu entendimento é observar,
sem pré-conceitos, como essa dimensão his-
tórica faz do trabalho, a um só tempo, resgate
e avanço, citação e criação, metalinguagem
e descoberta. Já o segundo trabalho da noite,
Volume, de Celina Portella & Flavia Costa,
tem a competência do entretenimento, mas
mostra que suas idealizadoras não aprende-ram ainda o sentido da palavra metáfora.Escolar, frontal, óbvio, perpassado por umhumor pasteurizado e de gosto americanoi-de, não se habilita a explorar o que o sapate-ado e tantas pesquisas ali apenas iniciadas(mas nunca acabadas) podem render comodiversas criações diferentes. O problema,entretanto, mais do que a escolha “estética”de suas jovens coreógrafas, é entender suapresença neste festival, cujo perfil investiga-tivo de dança contemporânea parece nãocondizer com a proposta apresentada.
Por fim, única companhia a ter toda umanoite para si, o Zikzira Physical Theatre, quetrabalha entre Brasil e Inglaterra, mostrouVerissimilitude. Este não é o primeiro conta-to do Rio de Janeiro com essa companhia. Noano passado, por exemplo, foi possível ver naprogramação do Panorama o longa-metra-gem Cinzas de Deus, realizado por ela. Emcomum, os dois trabalhos constroem um cor-po foucaultiano para falar de sentidos e rea-lidade. O tom sépia que reveste a cena cos-tura em sinestesias o corpo que dança e aque-le que o assiste, em trocas sensoriais que re-metem a um corpo comum, aquele tratadopelo filósofo como lugar de discurso de po-der. A competência com que tal relação étecida se espalha desse corpo que dança, àcena, para, então, invadir a plateia, impreg-nando o lugar de uma mesma atmosfera.
Assim, a edição deste ano do DançaBrasil fala, de algum modo de si mesma,na medida em que o festival agrega, emseu próprio nome, duas noções de espa-ço: tanto a dança quanto o nosso País sãomapas culturais de entendimentos diver-sos de tempos e de espaços que, a todoinstante e em qualquer lugar, transfor-mam o corpo em movimento em seu abri-
go de reflexão.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
177
Dançando por esporteKatakló: Movimentos óbvios na misturade balé com tênis, futebol e ginástica
ROBERTO PEREIRA
Katakló Athletic Dance, companhia
que se apresentou nesse último
fim de semana no Theatro Municipal e
que continua sua turnê pelo Brasil, ao
propor uma “união artística” entre es-
porte e dança, convida o espectador a
pensar de que lugar é feita essa propos-
ta como pressuposto para se entender
todo o espetáculo.
Os corpos que ali se movimentam, to-
dos de ex-ginastas, carregam consigo a
informação de treinamento que é da com-
petência do esporte, mas não conseguem
dar o passo adiante de entender a si mes-
mos como corpos que dançam. A dança,
propriamente, fica apenas como um ob-
jetivo, sem jamais ser atingido. Ou como
pretexto para que aqueles corpos possam
ocupar um outro lugar, como os palcos,
por exemplo.
O próprio modo como a cena se confi-
gura a partir desse corpo atlético confir-
ma que a questão ali nem de longe se pre-
tende uma questão estética. O primeiro
número da noite (sim, um número!), que
trata do “torcedor”, tem até arquibancada.
O segundo, sobre tênis, tem raquete, o de
ciclismo, tem bicicleta, e assim sucessiva-
mente até o fim dos intermináveis deze-
nove quadros. A obviedade não deixa es-
paço para qualquer resquício de metáfo-
ra: se se fala de futebol, por exemplo, tem
bola e trave em cena.
O que se esboça de “coreográfico” ali é
primário, numa relação puramente causal
com o tema, com a música e com o figurino.
E de onde se parte, do esporte, muitas ve-
zes fica o sabor de que nem mesmo os ex-
ginastas se levam muito a sério, apresen-
tando caricaturas de si mesmos e que se
pretendem engraçadas.
Assim, o show da Katakló é nada mais
que puro entretenimento, e mesmo como
tal deixa a desejar pela inabilidade cêni-
ca e, muitas vezes, pela falta de originali-
dade. Os números com efeitos visuais já
foram testados há décadas e com melho-
res resultados por nomes como Alwin Ni-
kolais e Momix, por exemplo, e até mes-
mo a cena do boxe já foi feita, tal e qual,
na década de 1980 pelo extinto grupo pau-
listano Marzipan.
Num país como o Brasil, onde ainda se
indaga se a Educação Física pode mes-
mo supervisionar o ensino da dança, as-
sistir ao Katakló Athletic Dance Theatre
apenas reforça a resposta que parece
muito simples e óbvia: não, não pode.
O corpo do esporte não é o mesmo corpo
que dança.
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 5 DE JULHO • 2004RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 5 DE JULHO • 2004RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 5 DE JULHO • 2004RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 5 DE JULHO • 2004RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 5 DE JULHO • 2004
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
178
Depois de 50 anos, ainda novasmaneiras de ver e criar dança
Merce Cunningham Dance Company:Coreógrafo confirma sua revolução no Municipal
SILVIA SOTER
Merce Cunningham Dance Company,
conduzida há 50 anos por uma das len-
das da dança contemporânea americana,
ofereceu momentos inesquecíveis ao pú-
blico carioca no fim de semana. Em meio
século de atividade criativa, Cunningham
segue inaugurando novos modos de com-
preender, ver e criar dança. No programa
dessa turnê brasileira, duas obras apontam
características desse americano que fize-
ram com que a dança não fosse a mesma
depois de sua passagem.
Como declarou, cabe à psicanálise tra-
tar de afetos e da expressão individual.
Cunningham não se preocupa com gestos
e expressividade, mas com o movimento.
Biped, peça de 1999 que abriu a noite no
Theatro Municipal, revela um criador que,
com o avançar dos anos, depurou, ao limite
da sofisticação, sua capacidade de aproxi-
mar a cena e o movimento humano daque-
le impresso na organização caótica dos
eventos naturais.
A ambientação de Biped é composta
de projeções de imagens de corpos dan-
çantes que Cunningham desenvolve nas
suas pesquisas com simuladores de movi-
mento humano, no computador. Linhas si-
nuosas, retas e pontos, que atravessam a
cena sem fluxo ou sentido regulares, con-
tribuem para a leitura dos corpos que
estão em cena, reais e virtuais, a partir de
suas geometrias. O espaço, estrela da peça,
pulsa em todas as suas dimensões.
Com o desenvolvimento de Biped, tor-
na-se estranho o fato de que os bailarinos
sejam prisioneiros do chão. A submissão à
força da gravidade é o último traço que dis-
tingue os bailarinos de todos os outros cor-
pos que dançam, aproximando-se e repe-
lindo-se no espaço. A música envolvente de
Gavin Bryars, os magníficos figurinos e a
iluminação precisa são decisivos para sua
beleza hipnotizante.
Numa viagem ao passado, 24 anos se-
param Sounddance, a segunda peça da noi-
te, de Biped. Criada em 1974, a peça que,
em suas outras montagens contava com a
presença do próprio Cunningham, já insi-
nuava alguns aspectos que depois as novas
tecnologias ajudariam o coreógrafo a en-
fatizar. No fundo do palco, de uma cortina
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 12 DE JULHO • 2003RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 12 DE JULHO • 2003RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 12 DE JULHO • 2003RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 12 DE JULHO • 2003RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 12 DE JULHO • 2003
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
179
mostarda, destacam-se os bailarinos. Os fi-
gurinos, da mesma cor do tecido do fundo,
ajudam a caracterizá-los como partículas
desse ambiente sonoro e espacial. Mais
uma vez e agora de forma nervosa, acele-
rada e até bem humorada, os corpos transi-
tam de maneira aparentemente errática,
sem se fixarem em figuras, esboçando de-
senhos que imediatamente se desmancham.
Tudo que é sólido desmancha no ar, cabe
lembrar aqui.
A impermanência de suas figuras só
pode, no entanto, ser garantida pela regu-
laridade com que esse artista insistiu em
não se acomodar com os passos que deu.
Assisti-lo é confirmar que mais cinquenta
anos continuariam a trazer para dança be-
leza, frescor e risco.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
180
Passos simultâneos à vidaCompanhia de Merce Cunningham sintetiza
em dois balés as pesquisas do genial coreógrafo
ROBERTO PEREIRA
sutileza que separa e une, ao mesmotempo, técnica e tecnologia torna-se
matéria-prima nas mãos de artesão do co-reógrafo americano Merce Cunningham. Oque era ação fabricadora regida de acordocom regras específicas é transformado emforma de conhecimento: técnica e tecnolo-gia, portanto. No corpo e na cena.
Quem esteve no Theatro Municipal nasexta-feira e no domingo últimos teve aoportunidade de observar como a dançaconstruída pelo mestre inaugura nessasduas instâncias, no corpo e na cena, o que aprópria vida e sua complexidade já nosmostram desde sempre. Simultaneidadesfazem explodir a herança renascentista deum mundo construído em perspectiva pararealocar o olho de quem assiste num outroparadigma: não há hierarquia no corpo quedança, nem na cena. Para tanto, Cunnin-gham teve antes que enfrentar a difícil ta-refa de burilar uma técnica. E depois (ouao mesmo tempo) construir sua cena, comauxílio, sempre, da tecnologia.
As duas peças apresentadas nessa tur-nê pelo Brasil mostram esse trajeto demodo flagrante. Biped, de 1999, que abrea noite, revela um Cunningham atentocom o presente e seu revestimento tec-nológico. O corpo construído por ele estálá, despido do que comumente se chamade emoção, para ser apenas, e sobretudo,
movimento. Um gesto às avessas dialogacom a cena não de modo causal, mas inun-dado por uma questão de ordem: o corpo,a cena, o figurino e a música, tudo se re-laciona de modo desierarquizado. O re-sultado é um convite para que se afie apercepção, ao longo da peça, para filigra-nas cada vez mais sutis das conexões te-cidas entre os bailarinos.
Já Sounddance, obra de 1975 e estrate-gicamente apresentada depois de Biped, nosmostra que tudo estava lá, há quase 30 anos.Como um arco e uma flecha tesos aponta-dos para o futuro, é ali que se observa comoo tempo para Cunningham não pode sercompreendido como estrutura linear. Se éno neologismo tempo-espaço que ele cons-trói sua dança, o que se apresenta na primeiraobra está potencializado na segunda.
Assistir a Merce Cunningham DanceCompany hoje, no Brasil, é ainda, infeliz-mente, um privilégio para poucos. Funci-onando quase como uma cartilha básicapara todos aqueles que um dia aventarama possibilidade de coreografar, assisti-ladeveria ser tarefa obrigatória. E, para opúblico em geral, é a oportunidade de con-firmar que dança não é uma sucessão depassos, mas ideia. Para o genial coreógra-fo, artesão de técnica e tecnologia, essaideia é o tempoespaço. Simultaneidadesem dança. Simultaneidades da vida.
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 12 DE JULHO • RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 12 DE JULHO • RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 12 DE JULHO • RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 12 DE JULHO • RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 12 DE JULHO • 20042004200420042004
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
181
Lembranças pensadasno presente que
orientam projetos futurosMemórias do corpo: Renato Vieiraexplora o corpo como receptáculo
de experiência de vida
SILVIA SOTER
esmo quando a memória não é o
tema central de uma criação, é inevi-
tavelmente sobre ela que a dança se apoia.
A memória é sempre o suporte e, por que
não dizer, o ponto de partida do corpo que
dança, mesmo quando aspectos autobiográ-
ficos não são privilegiados. Vale lembrar
que o próprio processo de instalação de uma
técnica no corpo, qualquer que ela seja, se
estrutura nos mecanismos da memória. É da
possibilidade do corpo como receptáculo
das experiências da vida que trata Memóri-
as do corpo, o novo espetáculo da Renato
Vieira Companhia de Dança, em cartaz no
Teatro Carlos Gomes, até domingo.
Renato consegue escapar de uma visão
da memória como narrativa linear de
eventos e lembranças. No fundo do palco,
em planos diferentes, os bailarinos surgem
e desaparecem, como flashes. Nessa peça,
não cabe descrever, resgatar ou recons-
truir episódios marcantes, mas sim evocar
imagens sonoras, visuais e sinestésicas.
Para o coreógrafo, a memória parece se
desenhar em duas camadas: a das técnicas
e referências estéticas que constroem o
corpo de seus bailarinos e a das lembran-
ças de momentos marcantes que são tra-
zidos para o palco. A primeira se explicita,
por exemplo, pela citação dos movimen-
tos do balé do tango, instalados no corpo
daqueles que dançam. A segunda, pela
recorrência de algumas imagens e per-
sonagens. É exatamente na articulação
entre esses dois níveis, o do vocabulário
técnico e o das imagens evocadas, que
Memória do corpo encontra sua maior
dificuldade.
Seria esperado que a investigação sobre
algo tão íntimo e pessoal, como a memória
do corpo, afetasse de fato o corpo em sua
materialidade, deixando, por exemplo, emer-
gir a tonicidade particular de cada bailari-
no, a cada imagem. No entanto, o tratamen-
to dado à dança, na opção por um vocabulá-
rio coreográfico codificado em excesso, aca-
ba por criar homogeneidade onde a diferen-
ça seria bem-vinda. A trilha musical com-
posta, em cena, pelo DJ Nino Carlo ajuda a
reforçar essa unidade, pela base eletrônica
que atravessa o espetáculo de ponta a pon-
ta. Essa regularidade se acentua igualmen-
M
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • • • • • SEXTA-FEIRASEXTA-FEIRASEXTA-FEIRASEXTA-FEIRASEXTA-FEIRA• 16 DE JULHO • 2004• 16 DE JULHO • 2004• 16 DE JULHO • 2004• 16 DE JULHO • 2004• 16 DE JULHO • 2004
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
182
te na ausência de silêncio na movimenta-
ção e na música, dificultando o trânsito en-
tre as imagens construídas em cena e as
memórias que aquelas imagens poderiam
despertar no espectador. Ainda assim, em
alguns instantes, uma gestual menor conse-
gue se insinuar num desenho de cena que,
escapando da narrativa, aponta para novas
possibilidades de construção dramatúrgica.
Não parece por acaso que esse expe-
riente coreógrafo tenha escolhido tratar da
memória do corpo nesse momento de sua
carreira. Pensada a partir do presente, a
memória pode orientar os projetos futuros.
Nesse espetáculo fica visível que Renato, ao
se voltar para trás, começa a tocar em pro-
missores caminhos a serem trilhados com
sua competente companhia.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
183
Lição de Antonio GadesO bailarino que contou histórias da Espanha no palco
ROBERTO PEREIRA
dança perdeu, na terça-feira, um de
seus mitos: Antonio Gades, bailarino
espanhol que ofereceu ao mundo um novo
modo de observar como a cultura se inscre-
ve no corpo e como isso é transformado em
cena, através da ação do bailarino.
Nascido numa província de Alicante, em
Elda, em 1936, decidiu que a dança seria seu
ofício de vida quando assistiu a uma apresen-
tação de um dos grandes nomes do flamen-
co: Pilar Lopes. Buscou rapidamente apren-
der aquilo que o encantou e, em 1960, já via-
java com a companhia da mestra ao Japão
como primeiro bailarino. Foi ela, inclusive,
que o batizou artisticamente com o nome
pelo qual ficou conhecido mundialmente: ao
se tornar Antonio Gades, Antonio Esteve
Ródenas ainda não intuía que também tor-
naria a dança de seu país uma outra dança.
Fundou, em 1964, sua própria compa-
nhia, foi primeiro bailarino e maître de balé
do Scala de Milão e, mais tarde, chegou a
ser diretor do Ballet Nacional da Espanha.
Em sua dança, balé e flamenco se mistura-
vam para se tornarem apenas matéria-pri-
ma de sua invenção. De sua criação.
Gades ficou ainda mais conhecido, sem
dúvida, pelas memoráveis participações na
trilogia de filmes concebida pelo cineasta
Carlos Saura: Bodas de sangue (1981), Car-
men (1983) e El amor brujo (1986). Na cena
tecida a quatro mãos pelo cineasta e pelo
coreógrafo, oferecia-se um duplo desafio: fa-
zer da dança flamenca um texto dramatúrgi-
co capaz de funcionar como um roteiro e, ao
mesmo tempo, executar essa própria dança
como algo inteiramente novo, sem as arma-
dilhas do exótico que transformam danças
populares em entretenimento para turistas.
Gades conseguiu essa façanha. Sua visão
de dança era a de um corpo político que ti-
nha consciência de sua tarefa no mundo. E
provou que, com sabedoria e responsabilida-
de, a dança de seu país poderia ser uma dan-
ça que narra histórias, que propõe ideias e,
também por isso, encanta por sua beleza.
Esta é uma lição fundamental para nós,
quando ainda perguntamos sobre uma possí-
vel “dança brasileira”. Esta é uma lição para
o mundo que, globalizado, ainda deve olhar
para o quintal de seus corpos, e aprender como
ali se planta, no mesmo jardim, ética e estética.
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SÁBADO • 24 DE JULHO • 2004RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 24 DE JULHO • 2004RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 24 DE JULHO • 2004RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 24 DE JULHO • 2004RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 24 DE JULHO • 2004
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
184
Paixão pelo movimentoNovo espetáculo dePaulo Caldas revela
resultados de sua obsessivabusca de precisão
ROBERTO PEREIRA
ma página em branco recebe as inscri-
ções de um habilidoso calígrafo: essa é
a imagem que salta aos olhos do público
ao assistir ao novo espetáculo assinado
pelo coreógrafo Paulo Caldas, para sua
companhia Staccato Dança Contemporâ-
nea, que estreou na sexta-feira no Teatro
Carlos Gomes e que continua em tempo-
rada neste fim de semana. Em Coreogra-
fismos, é a habilidade da grafia que se
transforma em dramaturgia do movimen-
to. Uma grafia elaborada por aquele que
se dedica às suas especificidades, por aque-
le que escreve e reescreve até chegar ao
termo exato, em processo quase obsessi-
vo de precisão.
Coreografismos representa um momen-
to especial na obra de Caldas. A qui, o traba-
lho que começou a ser desenvolvido com
sua mais antiga parceira, a bailarina Maria
Alice Poppe, apresentado na edição passa-
da do Panorama RioArte de Dança, e que
já apontava novos caminhos na pesquisa
coreográfica desse artista, se consolida. O
que permanece como sua assinatura dialo-
ga com perfeição e impecabilidade ímpar
com o que se transforma. Paulo Caldas pro-
move o novo. Ele cria.
O antigo duo agora se espraia na cena
em cinco bailarinos. Tem-se a oportunidade
de observar como a qualidade de movimen-
to promovida pelo coreógrafo se instaura
em outros corpos, que deixam transparecer
generosamente a ideia do criador. Nesse
trânsito entre coreógrafo e bailarino, torna-
se um privilégio perseguir com os olhos a
movimentação precisa de Natasha Mesqui-
ta, por exemplo.
O espaço delimitado pelo quadrado bran-
co de quatro metros e reafirmado pela eco-
nômica e precisa iluminação de José Geral-
do Furtado é apenas desafio para a criação.
Tal espaço é redimensionado por dois ele-
mentos fundamentais na obra de Paulo Cal-
das: primeiro, pelo próprio movimento, teci-
do a partir de um vocabulário conciso e tam-
bém delimitado, ao mesmo tempo em que vai
inaugurando ao longo da obra, em simulta-
neidades, uma espacialidade entre- corpos; e,
segundo, no atrito que se estabelece com o
tempo, propositadamente dilatado para dar
chance de se captar a complexidade que ali
U
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRARIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRARIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRARIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRARIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 10 DE • 10 DE • 10 DE • 10 DE • 10 DE AGOSTOAGOSTOAGOSTOAGOSTOAGOSTO • 2004 • 2004 • 2004 • 2004 • 2004
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
185
se desvela. Um tempo colorido pela música
executada ao vivo por Chris Lancaster, que
respeita o silêncio, e que se move junto e não
justaposta aos bailarinos.
Em Coreografismos, pode-se observar
menos uma ação dramática, a que per-
meava as obras anteriores de Caldas e mais
a excelência do que é específico da dança:
seu espaço, seu tempo, sua qualidade de
movimento e, sobretudo, sua ideia traduzi-
da na cena. Idéia aqui funcionando como
puro ato da grafia, como processo. Página
em branco tingida pela vontade do apuro
técnico. Não a destreza, mas a paixão por
encontrar a palavra exata. Ou, nesse caso,
o movimento exato.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
186
Competência que rendeespetáculo de beleza hipnotizante
Coreografismos: Staccato Companhia de Dançasegue sua investigação com coragem, sem abandonar
sua trajetória, mas sem deixar acomodar
SILVIA SOTER
ma das características mais raras na
dança contemporânea é encontrar
criadores que possuam uma certa esta-
bilidade nas questões que os movem e na
forma de abordá-las. Esse é o caso de Paulo
Caldas. O trabalho do coreógrafo, à frente da
Staccato Dança Contemporânea, vem se
construindo sobre ideias perseguidas com
afinco e até obsessão, de obra em obra. No
corpo, a escrita de Paulo se apoia na constru-
ção de linhas circulares e espirais, em fluxo
contínuo, fazendo com que o movimento
jamais se congele ou se interrompa abrupta-
mente. A iluminação, central nas peças da
Staccato, funciona como um diafragma que
deixa que essa dança contínua chegue aos
olhos do espectador com maior ou menor
nitidez, recortando a cena, num jogo de trans-
parência e sombra, fazendo o espaço pulsar.
Na escrita, em que todos esses elementos se
articulam, Paulo desenvolve suas ideias de
cabo a rabo, com o rigor de um cientista, sem
fazer concessões. Essa competência se mate-
rializa na beleza hipnotizante de Coreogra-
fismos, em cartaz até domingo no Teatro
Carlos Gomes.
Assim como aconteceu em Fragmento
para coreografismos 1 e 2, suas peças ante-
riores, um campo dentro do palco é criado
por um quadrado branco. O espaço demar-
cado se contrapõe a uma dança sem arestas
ou ângulos. O movimento que se inicia len-
to e sinuoso no corpo de Natasha Mesquita
deixa de pertencer ao corpo da bailarina e
ganha o espaço, contaminando os outros cor-
pos que se deixam atravessar por espirais,
em intensidades e velocidades diferentes.
Entre o corpo que dança e o espaço, um jogo
de alternância se faz, provocando aproxima-
ções e simultaneidades que dispensam,
muitas vezes, o contato entre os corpos. A
música, composta e executada em cena por
Chris Lancaster reforça a circularidade e a
sensação de perpetuação do movimento.
Desde o início de sua criação, a Staccato
teve com núcleo estável o coreógrafo e sua
bela partner Maria Alice Poppe. Os duos fo-
ram a tônica de grande parte dos trabalhos
da companhia. O entrosamento entre os dois
intérpretes é tamanho que parecia difícil
imaginar que a dança da Staccato pudesse ser
experimentada em outros corpos. Dessa vez,
U
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA• 13 DE RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA• 13 DE RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA• 13 DE RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA• 13 DE RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA• 13 DE AGOSAGOSAGOSAGOSAGOSTO • 2004TO • 2004TO • 2004TO • 2004TO • 2004
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
187
o coreógrafo se lançou ao desafio de trabalhar
com um grupo maior. Além de Paulo e Maria
Alice, estão em cena Carolina Wiehoff,
Natasha Mesquita e Toni Rodrigues. Esses
experientes bailarinos e novos integrantes da
companhia colaboram de maneira diversa
para a corporeidade da Staccato. Natasha se
integra à fluidez dos gestos de Maria Alice e
Paulo, enquanto Carolina e Toni agregam ao
trabalho qualidades menos fluídas e mais
densas. No corpo de cada um, a dança da Stac-
cato só tem a ganhar.
Se algumas criações anteriores do coreó-
grafo dialogaram com o cinema, Coreogra-
fismos ganha qualidades plásticas próximas
das artes visuais. O grafismo do título mere-
ce ser destacado. Paulo Caldas investe tão
radicalmente no jogo entre as linhas do qua-
drado e a circularidade dos corpos, brincan-
do com as inúmeras combinações entre os
cinco bailarinos, que a escrita da dança se
faz desenho e pintura. Como o próprio coreó-
grafo lembra no programa, a cena toca de
perto o expressionismo abstrato.
Coreografismos mostra que a Staccato se-
gue sua investigação com coragem, sem aban-
donar sua trajetória, mas também sem se dei-
xar acomodar. Ponto para a dança carioca.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
188
Com prazer e seduçãoLecuona: Rodrigo Pederneiras criou coreografia deexceção na trajetória do Grupo Corpo, provocando
envolvimento dos bailarinos e do público
SILVIA SOTER
ecuona, a mais recente criação de Ro-
drigo Pederneiras e do Grupo Corpo,
em cartaz até segunda-feira no Theatro
Municipal, é uma peça de exceção. Ela
representa um desvio, salutar e descom-
prometido, na história do Grupo Corpo.
Apaixonado pela música do cubano Er-
nesto Lecuona, Pederneiras convenceu
a companhia a trabalhar a partir de uma
trilha musical não inédita e de um músi-
co estrangeiro, o que não acontecia há
muitos anos. Rodrigo inova também ao
flertar com uma dança menos brejeira e
mais latina. Inevitavelmente, novas
marcas se imprimem na movimentação
da companhia.
Mas nem tudo é novidade. Ainda man-
tendo a tradição, uma peça do repertório
anterior da companhia abre a noite, ser-
vindo de entrada apetitosa à coreografia
que estreia. A escolha dessa peça jamais
é aleatória. Nela, Pederneiras oferece pis-
tas para que a outra obra possa ser desven-
dada em todos os seus detalhes. Nazareth,
com música de José Miguel Wisnik, a par-
tir da obra de outro Ernesto, o Nazareth,
contemporâneo de Lecuona, brinca no fi-
gurino com o marfim e o ébano das teclas
do piano, transformando os bailarinos em
notas musicais que se associam, justa-
põem-se e se desencontram, recriando em
seus corpos os tangos e os chorinhos apon-
tados por Nazareth. Dois pianos que pro-
duzem, no corpo, gestos bem diversos.
Lecuona é composta de 12 duos e um
grandfinale. Cada duo funciona como um
quadro, destacado dos demais. O piano
de Ernesto Lecuona alimenta as danças
dos pares: sempre um homem e uma
mulher. Eles de preto e elas de salto alto,
com vestidos decotados, esvoaçantes e
coloridos. Entre o bolero, o tango ou a valsa,
Pederneiras desliza, sutilmente, das dan-
ças de salão para as danças de alcova.
A sensualidade dos encontros ganha qua-
lidades e cores diferentes, a cada quadro,
a cada música.
O amor e a atração entre os corpos, ma-
nifestados em duos, foram também a tônica
de Santagustin, criação anterior do Grupo
Corpo. No entanto, em Santagustin, o amor
era visto com distanciamento e humor. Era
L
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • • • • • SEXTA-FEIRASEXTA-FEIRASEXTA-FEIRASEXTA-FEIRASEXTA-FEIRA• 3 DE SETEMBRO • 2004• 3 DE SETEMBRO • 2004• 3 DE SETEMBRO • 2004• 3 DE SETEMBRO • 2004• 3 DE SETEMBRO • 2004
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
189
um amor risível. Já em Lecuona, tudo é se-
dução e envolvimento. Pederneiras usa e
abusa de sua competência para ganhar a
plateia com seu amor rasgado, sensual, viril
e glamouroso. A não originalidade da trilha
musical parece ter autorizado Pederneiras
a também se apropriar de outras referên-
cias e influências, trazendo, por exemplo,
para a cena, os musicais de Hollywood e até
uma citação rasgada à peça de Twyla Tharp,
Nine Sinatra songs, no último quadro.
Os bailarinos do Corpo, que vemos aqui
destacados em suas singularidades, parecem
experimentar um momento prazeroso, car-
regando com teatralidade as canções de
Lecuona. Prazer esse que transborda para
o público que, entregue e seduzido, deixa-
se levar pela dança.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
190
Um balé de paixãoGrupo Corpo tira o fôlego da plateia com o
arrebatamento e a permissividade de Lecuona
ROBERTO PEREIRA
á cerca de 20 anos, o coreógrafo resi-dente do Grupo Corpo, Rodrigo Pe-
derneiras, apaixonou-se perdidamente pe-las passionais canções do cubano ErnestoLecuona (1895-1963) e, desde então, sem-pre sonhou em coreografá-las. O resultadodessa paixão avassaladora pode ser vistoneste fim de semana, no espetáculo de suacompanhia que estreia hoje, no TheatroMunicipal, cujo título traz simplesmente onome do compositor.
Como não poderia deixar de ser, a qua-lidade que permeia Lecuona é a da paixão.E, como toda paixão nunca pede licençapara chegar, esse espetáculo traz consigo aimpetuosidade do arrebatamento e da per-missividade, a começar pelo fato de rompercom uma tradição do Corpo que, há 12 anos,apenas se utiliza apenas de trilhas sonorasespecialmente compostas para o grupo. Éclaro que esse fato chama a atenção paraquem acompanha sua carreira, porque háque se permitir ouvir um outro som e, aindamais intrigante, ver um outro movimentoque não aquele que tem sido construídocomo vocabulário de Pederneiras.
Doze pas-de-deux em doze canções sejustapõem numa cena delimitada apenaspela luz: um quadrado no chão sugere umapista de dança. Sim, uma pista de dança naqual casais recuperam situações amorosasatravés de coreografias que se permitem
trafegar entre a própria dança de salão, alémde deixar vazar, inevitavelmente, aqui e ali,a assinatura do coreógrafo. Apenas no finaltodos os casais dançam juntos uma valsa,assim como apenas ali um cenário é utiliza-do, trazido num momento em que toda a pla-teia, já quase sem fôlego, é ainda surpreen-dida por espelhos e bailarinas trajando ves-tidos brancos esvoaçantes. Tudo é um suspi-ro, um rodopio, uma vertigem.
Não há como não se lembrar da hoje jáclássica obra de Twyla Tharp, Nine Sinatra
songs, de 1982. Utilizando-se de oito cançõesde Frank Sinatra, a coreógrafa americanatambém justapõe casais que representam si-tuações amorosas muito parecidas (inclusi-ve com figurinos semelhantes). Ao final, tam-bém todos os casais entram em cena juntosao som de My way e globos de espelhos des-cem do teto. Se não há como não se lembrar,não há também como não dar de ombros edizer consigo, baixinho: “ah, tudo bem...”
Lecuona é permissivo. Permite quebraruma tradição da companhia, permite(re)experimentar movimentos, permitelembrar de Twyla Tharp. Um pacto é esta-belecido logo no primeiro momento, no pri-meiro pas-de-deux. À plateia nada resta,senão aceitar esse pacto. E, sucumbida,entender que é na qualidade da paixão, e de sua permissividade, que se deve assistir
a esse novo espetáculo.
H
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANE IRO R IO DE JANE IRO R IO DE JANE IRO R IO DE JANE IRO R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 4 DE SETEMBRO • 2004• SÁBADO • 4 DE SETEMBRO • 2004• SÁBADO • 4 DE SETEMBRO • 2004• SÁBADO • 4 DE SETEMBRO • 2004• SÁBADO • 4 DE SETEMBRO • 2004
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
191
A Tropicália, segundo sete criadoresEstreia da El Paso se desenvolve em
torno dos conceitos do balé e do show
ROBERTO PEREIRA
espetáculo de estreia da Companhia
Jovem El Paso de Dança, Superbaca-
na – Dançando a Tropicália, que estreia hoje
e fica um mês em temporada no Teatro Vi-
lla-Lobos, traz à tona uma antiga questão es-
tética que continua ainda bastante pertinen-
te: como a dança consegue pode tratar de
um tema específico.
Essa companhia, que reúne 22 jovens e
excelentes bailarinos, já vinha desenvolven-
do trabalhos há um certo tempo e agora
passa a trazer em seu nome a marca do seu
patrocinador. Assinando esse padrão de
qualidade, estão os nomes de Dalal A chcar
e Mariza Estrella, tradições de ensino e de
um pensamento de dança no Rio de Janeiro.
O que de imediato salta aos olhos no es-
petáculo dessa então “nova companhia” é o
modo pelo qual se convida o espectador a
assisti-lo: balé e show tornam-se duas pala-
vras-chave para seu entendimento. A o mes-
mo tempo, o tema eleito, o movimento cultu-
ral conhecido como a Tropicália, absoluta-
mente desafiador, parece indagar o tempo
todo sobre a adequação dessas duas palavras-
chave no diálogo com sua questão estética.
Reunindo sete diferentes coreógrafos,
a própria Dalal A chcar, Renato Vieira,
Tíndaro Silvano, Luís Arrieta, Ivonice
Satie, Janice Botelho e Carlinhos de Jesus,
esse espetáculo é claramente construído
sob a alcunha do passo de dança, herança
direta do balé clássico. Excetuando Carli-
nhos de Jesus, que contribui com seus co-
nhecimentos de dança de salão, todos os
outros coreógrafos compartilham dessa
ideia coreográfica de passo, o que os tor-
nam não tão diferentes assim entre si e o
que confere ao espetáculo uma homoge-
neidade mínima. Justapõem-se as canções,
alternam-se os coreógrafos. Dalal, que
assina também sua direção, bastante sábia,
soube escolher aqueles que falam uma
mesma língua de dança. E os bailarinos
parecem ter aprendido essa língua de for-
ma competente, sem qualquer sotaque.
A questão do show aparece com a eti-
queta da dupla Charles Moeller e Cláudio
Botelho, que vem se destacando no cenário
carioca por suas produções mais voltadas
para o formato do musical. Em Superbaca-
na – Dançando a Tropicália, essa qualidade
de show não fica de fora. Por exemplo, há o
excesso de frontalidade e um anseio sobre-
humano em conceder a toda estrutura um
caráter narrativo. Esses dois elementos apa-
recem de forma tão evidente, que às vezes
impedem que estruturas coreográficas inter-
nas possam ser melhor desenvolvidas. O
cenário, que pouco dialoga com o tema, che-
gando a poluir visualmente a cena, e o figu-
rino, que muitas vezes sublinha os textos das
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA• 17 DE SETEMBRO • 2004RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA• 17 DE SETEMBRO • 2004RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA• 17 DE SETEMBRO • 2004RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA• 17 DE SETEMBRO • 2004RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA• 17 DE SETEMBRO • 2004
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
192
canções, funcionando quase como legendas,
ambos assinados por Moeller, são resquíci-
os desse modo narrativo, próprio do musi-
cal, de conceber um espetáculo.
Como balé e show se juntam para falar
de Tropicália, momento muito especial não
apenas da música, mas da cultura brasilei-
ra, fica como questão. Momentos de virtuo-
sismo técnico irrompem sem qualquer com-
promisso com a ideia que ali se pretende
desenvolver, por exemplo. Altamente dis-
pensáveis, uma vez que a qualidade dos
bailarinos é evidente, esses momentos tiram
do foco o que se deveria ter tomado como
tarefa, ou seja, como tratar do tema escolhi-
do: fala-se a partir da Tropicália ou sobre a
Tropicália? Nesse sentido, as canções Baby
e Divino maravilhoso, coreografadas por
Ivonice Satie e Renato Vieira, respectiva-
mente, parecem apontar para essa questão
central, construindo no corpo que dança qua-
se uma ideia tropicalista. Sem dúvida, dois
momentos especiais em todo o espetáculo.
Colocar 22 jovens bailarinos em cena,
numa estrutura de peso e qualidade inegá-
vel é tarefa que só poderia ser plenamente
cumprida através da competência de Dalal
Achcar, espécie de versão brasileira de
Diaghilev, mitológico empresário e ideali-
zador dos Ballets Russos. A experiência que
esses jovens adquirem a cada contato com
um diferente criador e com o esmero da
qualidade técnica imprime neles algo que,
por si só, já merece todo nosso apreço: o res-
peito pelo ofício da dança. É nesse lugar que
a Companhia Jovem El Paso de Dança tra-
balha. E é desse respeito que a dança no
Brasil parece ainda necessitar.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
193
Mais liberdadepara o som dos pés
Sensorial: Um diálogo entreo sapateado e a dança contemporânea
SILVIA SOTER
sapateador e coreógrafo Steven Har-per avança em suas investigações so-
bre as possibilidades de flexibilizar a estru-tura do sapateado. Sensorial, em cartaz noTeatro Carlos Gomes até este domingo, re-pete a parceria da companhia com o coreó-grafo Mário Nascimento, na busca de fazerdialogar o sapateado com a dança contem-porânea. Sincopizante, sua última criação, jácaminhava nesse sentido.
A música produzida pelo corpo quedança, base fundamental do sapateado dequalquer tempo e em diferentes culturas,ganha, em Sensorial, o apoio de outros ins-trumentos de percussão tocados pelos pró-prios dançarinos. Os cinco integrantes dacompanhia se alternam entre os instrumen-tos, o som dos pés e, algumas vezes, jogamcom os dois. Diversos suportes são explo-rados, fazendo com que o metal dos sapa-tos produza sonoridades diferentes.
Na primeira parte do espetáculo, Harper,fiel à ideia, segue à risca sua proposta, dei-xando a música nascer em cena entre o rit-mo dos sapatos, os ruídos e a percussão,garantindo bons momentos em que a afini-dade do grupo atinge um groove. A ilumina-ção, os figurinos e o despojamento da cenacarregam a atenção e os sentidos do espec-tador para aquilo que parece essencial nes-
se trabalho: o diálogo rítmico entre o tap e osinstrumentos de percussão. Uma ressalva, noentanto: em geral, a mixagem privilegia osinstrumentos musicais em detrimento do somproduzido pelos ótimos dançarinos que ain-da não dominam os instrumentos com a se-gurança com que sapateiam!
Num segundo momento do espetáculo, sur-preendentemente, Harper abandona o rigor desua investigação inicial e dispersa o foco dapeça ao fazer com que o sapateado tenha quecompetir com uma profusão de efeitos sonorose visuais que, apesar de sedutores, saturam acena. Nessa disputa, quem perde é a dança.
Na tentativa de dialogar com a dança con-temporânea, além de adotar a investigaçãopara trafegar pelo sapateado, Harper buscaassimilar um vocabulário de passos identifi-cados como dança contemporânea. Nem sem-pre a tentativa de integrar esse vocabulárioagrega, de fato, novas possibilidades ao traba-lho. Na maior parte das vezes, parece atrapa-lhar, servindo como um apêndice e restringin-do a exuberância do próprio sapateado.
Sensorial demonstra que Harper e suacompetente companhia já dominam os ca-minhos da investigação para ir fundo naspossibilidades intrínsecas do sapateado.Confiando em seus próprios passos, em seuspróprios pés. Literalmente.
O
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • • • • • SEXTA-FEIRA•SEXTA-FEIRA•SEXTA-FEIRA•SEXTA-FEIRA•SEXTA-FEIRA• 24 DE SETEMBRO • 2004 24 DE SETEMBRO • 2004 24 DE SETEMBRO • 2004 24 DE SETEMBRO • 2004 24 DE SETEMBRO • 2004
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
194
O Brasil em LyonSe a Bienal de Dança na cidade
francesa impulsionou a arte no Rio, sua 11ª ediçãomostra que a mão inversa também se deu
ROBERTO PEREIRA
á exatamente oito anos, a Bienal de
Dança de Lyon deixou de ser, para a
dança brasileira e, sobretudo, para a dan-
ça carioca, apenas um evento internacio-
nal que reúne os mais significativos gru-
pos e tendências na pequena cidade fran-
cesa, durante três semanas. Em 1996, sem-
pre temática, a bienal se dedicou exclusi-
vamente à dança brasileira. Para a dança
contemporânea do Rio de Janeiro em par-
ticular, isso representou um divisor de
águas num movimento que se iniciava e
que logo se tornou histórico na cidade, es-
pecialmente a partir da segunda metade
dos anos 90. Explicitamente inspirada no
festival criado e dirigido por Lia Rodri-
gues, o Panorama RioArte de Dança, uma
noite da bienal foi batizada de “Panora-
ma Carioca”, revelando a importância vi-
tal desse evento como um fomentador do
que se produz por aqui e que passou a ser-
vir de vitrine para programadores inter-
nacionais. Responsável pelo conceito que
permeava a bienal, estava um apaixona-
do pelo Brasil e por sua cultura, o curador
francês Guy Darmet.
Se a Bienal conseguiu imprimir na dan-
ça carioca um impulso fundamental em seu
desenvolvimento, a mão inversa deste per-
curso também se deu. Encantado com os
desfiles das escolas de samba durante o car-
naval, Darmet resolveu experimentar, num
formato adequado à realidade europeia, um
desfile que percorresse as margens do rio
Rhône, em Lyon, durante a tarde de um do-
mingo cravado no meio de sua bienal. O
primeiro desfile se deu, como era de se es-
perar, durante a edição dedicada à dança
brasileira, sob o título Aquarela do Brasil.
Desde então, novos desfiles vêm acontecen-
do, sempre inspirados nos temas que balizam
cada edição do evento: Mediterrâneo – um
círculo aberto sobre o mundo, de 1998, As
rotas da seda – Rotas do sonho, rotas de di-
álogo, de 2000 e Terra latina – Do Rio
Grande à terra do fogo, sobre os caminhos
da liberdade, de 2002.
Neste ano de 2004, em sua 11ª edição,
que se encerra amanhã, o tema da Bienal é
a Europa. O olhar do europeu Guy Darmet
se volta para seu ambiente, para sua origem.
Ou, como ele próprio explica, essa Bienal é
H
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANE I RO • SÁBADO• 2 DE OUTUBRO • 2004R IO DE JANE I RO • SÁBADO• 2 DE OUTUBRO • 2004R IO DE JANE I RO • SÁBADO• 2 DE OUTUBRO • 2004R IO DE JANE I RO • SÁBADO• 2 DE OUTUBRO • 2004R IO DE JANE I RO • SÁBADO• 2 DE OUTUBRO • 2004
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
195
“uma declaração de fé nos homens e sobre-
tudo nos artistas” que pertencem a um con-
tinente que ele chama de “puzzle de lingua-
gens e de culturas”.
Os números que fazem desse evento um
dos mais importantes festivais de dança do
mundo remetem mesmo à ideia de puzzle:
700 artistas envolvidos, 40 companhias con-
vidadas, 21 países europeus participantes, 13
criações para o ano de 2004, e 7 coprodu-
ções da própria Bienal.
Dentro deste rico universo de tantos
países e culturas, a curadoria de Guy Dar-
met vem marcada pela generosidade do
olhar sobre a diversidade de estilos de dan-
ças. Assim, dança de rua (que, sintomatica-
mente, abriu o festival) e danças populares,
por exemplo, dividem a cena em pé de igual-
dade com grandes companhias europeias,
como o próprio Ballet da Ópera Nacional
de Lyon, o Nederlands Dance Theatre e o
Ballet du Grand Théâtre de Genève, e com
artistas mais experimentais, como a portu-
guesa Sónia Baptista, o belga Jan Fabre, ou
ainda umas das melhores surpresas do fes-
tival, o grego Andonis Foniadakis e sua com-
panhia francesa Apotosoma.
Toda essa diversidade apenas traça um
mapa possível do que se produz de dança na
Europa hoje, sem deixar de arranhar um
pouco as expectativas de quem busca na
Bienal apenas dança contemporânea. Guy
D armet se arrisca nos atritos de linguagens.
E o público, que lota todos os 24 teatros en-
volvidos, em todos os espetáculos, percebe
que neste caldeirão o que se cozinha é um
tempero europeu de um corpo que dança:
um corpo que traz consigo sua cultura, ao
mesmo tempo que dialoga com a de seu vi-
zinho. A cada apresentação, uma pitada faz
modificar o gosto do conjunto. E essa deve
ser uma das tarefas de um festival: fazer
saborear a singularidade a partir do plural
que o envolve.
Nesse sentido, o desfile, que aconteceu
no dia 19 de setembro, levando o título A
Europa das grandes narrativas, faz um retra-
to desse continente. Reunindo 4.500 parti-
cipantes em 22 grupos de regiões circunvi-
zinhas a Lyon, além de 2 grupos convidados
da Romênia, o Défilé narra grandes históri-
as em coreografias para grandes massas: o
mito do Fausto, Romeu e Julieta, o Danúbio,
Cassandra e o cavalo de Tróia são alguns
dos temas abordados.
Para nós brasileiros, esse desfile se tor-
na, sem dúvida, algo bastante curioso, já que
saiu daqui a ideia de sua concepção. Entre-
tanto, o olhar brasileiro, ao observá-lo, deve
levar consigo a informação de que ali se
inicia uma possibilidade de dança que ain-
da carece de tempo para se transformar
numa tradição, ao contrário do que aconte-
ce por aqui.
Subvencionados pelas prefeituras locais,
os integrantes de cada “bloco” não pagam
nada por seus figurinos e a Bienal fica res-
ponsável pelos cachês dos coreógrafos e dos
artistas plásticos envolvidos. Num processo
de ensaio que pode durar de 6 meses a 1 ano,
esses cidadãos dançantes são pessoas co-
muns, de idades e classes sociais as mais di-
versas. Embutida nessa ideia, a carnavali-
zação da cultura e da sociedade é evidente.
Mas uma carnavalização europeia, que tal-
vez possa aprender (conosco?) como preen-
cher uma rua inteira de espetáculo, de en-
redo, de coesão e de ritmo, para dar conta
de uma narrativa. Não à toa, o segundo gru-
po a desfilar neste ano, e que mereceu aplau-
sos mais entusiasmados pela sua performan-
ce, foi o coreografado por um brasileiro, o
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
196
bailarino mineiro Rui Moreira, que perten-
ceu ao Grupo Corpo. O Brasil está em Lyon,
mesmo quando a Bienal é sobre a Europa.
E, no ano que vem, ano do Brasil na Fran-
ça, essa pequena cidade ainda será palco de
mais dança brasileira. Graças ao mesmo
Guy Darmet, que dirige um belo teatro es-
pecialmente dedicado à dança, o Maison de
la Danse, várias companhias daqui se apre-
sentarão por lá, uma a cada mês do ano. Bru-
no Beltrão, Quasar e Grupo Corpo serão
algumas delas. Lia Rodrigues estará na ci-
dade por duas vezes: uma em março, no
Centro Cultural Le Toboggan, convidada
para desenvolver um trabalho a partir das
fábulas de La Fontaine, ao lado de mais dois
coreógrafos, uma francesa e um africano, e
outra para o fim do ano, para apresentar seu
mais novo trabalho, com coprodução de vá-
rias instituições como o Centre National de
la Danse, o Festival d’Autonne de Paris, La
Ferme de Buisson e o próprio Maison de La
Danse.
Inclusive, na frente deste teatro pode-se
ver um enorme cartaz exibindo os próximos
espetáculos a serem ali exibidos. Nomes
como Merce Cunningham, Carolyn Carlson,
Maguy Marin, Maurice Béjart e Sankai
Juku aparecem na lista. Entre eles, figura
também o da carioca Márcia Milhazes. Para
um brasileiro que se sente um flaneur em
plena Lyon, neste momento, fica praticamen-
te impossível não sentir o coração se encher
de orgulho. O Brasil dança em Lyon.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
197
Shakespeare condensadoBallet do Scala de Milão faz bela homenagem
ao centenário do coreógrafo Balanchine
ROBERTO PEREIRA
ma das mais tradicionais e importan-
tes companhias de balé do mundo, o
Ballet do Teatro Scala de Milão, concedeu
ao público carioca a oportunidade de conhe-
cer uma obra bastante curiosa do grande co-
reógrafo russo George Balanchine (1904-
1983): Sonho de uma noite de verão, basea-
da na peça de Shakespeare. Em temporada
no Brasil, a companhia italiana se apresen-
ta até hoje no Theatro Municipal, trazendo
mais de 70 bailarinos e provando sua exce-
lência no cenário internacional do balé.
A curiosidade em torno dessa obra de
Balanchine fica por conta da dificuldade
em se reconhecer a famosa assinatura
desse coreógrafo, sobretudo no primeiro
ato. Estreado em 1962, e criado para sua
companhia, o New York City Ballet, Sonho
de uma noite de verão mostra um Balan-
chine pouco habilidoso com a narrativa,
um dos princípios mais básicos de um balé.
Talvez seja por esse motivo que ele tenha
optado por contar toda a história shakes-
peariana de forma condensada no primei-
ro ato, para poder deixar seu estilo correr
solto no segundo.
Assim, se o público de início é convi-
dado a perseguir os intrincados jogos amo-
rosos de diversos personagens nesse pri-
meiro ato, pode se deleitar no estilo balan-
chiniano que o consagrou como um cria-
dores de uma “dança abstrata”, no segun-
do. Esse estilo pode ser observado sobre-
tudo no pas-de-deux de Titânia, primoro-
so em seus encadeamentos coreográficos
e belamente executado por Marta Romag-
na, sem dúvida a bailarina de toda a com-
panhia que mais se adequa às exigências
estilísticas do coreógrafo.
Toda a companhia parece correspon-
der com competência ao desafio que é
montar uma peça de Balanchine, criada
basicamente para sua própria companhia
em Nova York, formada, estética e tecni-
camente, de acordo com seu estilo. Venci-
do o desafio, o Ballet do Scala de Milão
deixa a lição de que remontagem é sem-
pre promover um novo olhar sobre uma
obra histórica, rara oportunidade ao públi-
co carioca, que não teve chances de come-
morar ainda o centenário de nascimento
de Balanchine.
U
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANE IRO •R IO DE JANE IRO •R IO DE JANE IRO •R IO DE JANE IRO •R IO DE JANE IRO • DOMINGO• 3 DE OUTUBRO • 2004 DOMINGO• 3 DE OUTUBRO • 2004 DOMINGO• 3 DE OUTUBRO • 2004 DOMINGO• 3 DE OUTUBRO • 2004 DOMINGO• 3 DE OUTUBRO • 2004
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
198
Vale ainda mencionar a perfeita parti-
cipação das 24 crianças da Escola do Tea-
tro Bolshoi, da pequena cidade de Joinville,
Santa Catarina. Motivo de orgulho para nós
brasileiros, essas crianças desempenharam
com apuro técnico e sobretudo musical o
que lhes foi proposto.
No ano que Balanchine completaria seu
centenário, assistir ao Ballet do Scala de
Milão dá-nos a sensação de que a tempora-
da de balé finalmente se iniciou nos palcos
cariocas, mesmo que um tanto atrasada.
Belo início e uma justa homenagem que nós
ainda não fomos capazes de prestar.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
199
É tropicalismo, mas semirreverência ou transgressão
Superbacana:Nova companhia de dança no Villa-Lobos
SILVIA SOTER
om produção caprichada, jovens e ta-
lentosos bailarinos, financiamento de
companhia de primeira linha e o know-how
de nomes como Dalal Achcar e Mariza Es-
trella como diretoras, está completando
temporada de um mês no Teatro Villa-Lo-
bos, Superbacana com a Cia. Jovem El Paso
de Dança. As duas diretoras, conhecidas pelo
olho de lince para identificar talentos em
dança e neles investir, conseguiram dar ares
cada vez mais profissionais ao projeto de
uma companhia composta apenas por jo-
vens promissores. Não há dúvida de que
criar oportunidades para a formação de jo-
vens já justifica o título do espetáculo. Mas
todos esses elementos combinados não fo-
ram suficientes para fazer dessa estreia o
acontecimento esperado.
Superbacana carrega ainda a assinatu-
ra da dupla onipresente nos palcos cariocas,
Cláudio Botelho e Charles Moeller, na di-
reção cênica e nos cenários e figurinos, res-
pectivamente. As 20 músicas que compõem
o espetáculo foram coreografadas por sete
diferentes artistas: a própria Dalal, Luis
Arrieta, Ivonice Satie, Janice Botelho,
Renato Vieira, Tíndaro Silvano e Carlinhos
de Jesus. Esse time de criadores já aponta
para a aposta da companhia no eclético.
Nessa linha, o tropicalismo, tema escolhi-
do para esse espetáculo de estreia, atende
ao desejo das diretoras de misturar lingua-
gens e aliar o popular e o erudito. No caso
da companhia, permite articular o balé, que
surge não só pela técnica, mas também pelo
jeito em que muitos desses coreógrafos tra-
balham com as ferramentas da dança, e a
música popular brasileira. É curioso, no en-
tanto, que do tropicalismo estão em cena
somente essa possibilidade de mistura e ain-
da um certo tom de brincadeira. Irreverên-
cia e uma certa liberdade transgressora fi-
cam de fora de Superbacana.
Fica evidente que duas estratégias se
combinam no modo como a música e a co-
reografia dialogam no espetáculo, a primei-
ra abafando a outra. Como linha mestra, a
direção-geral de Dalal Achcar parece ori-
entar para uma abordagem quase narrati-
va, em que a coreografia se limita a descre-
ver as letras das músicas. Os figurinos de
Charles Moeller desferem o golpe mortal na
C
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • • • • • SEXTA-FEIRA• 8 DE OUTUBRO • 2004SEXTA-FEIRA• 8 DE OUTUBRO • 2004SEXTA-FEIRA• 8 DE OUTUBRO • 2004SEXTA-FEIRA• 8 DE OUTUBRO • 2004SEXTA-FEIRA• 8 DE OUTUBRO • 2004
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
200
coreografia, levando essa literalidade a
momentos de redundância absoluta como
no caso das músicas Três caravelas, na voz
de Caetano Veloso e Gilberto Gil e Super-
bacana, de Caetano.
A poesia das letras, ponto forte e ino-
vador do movimento tropicalista, perde,
assim, todo seu impacto. Felizmente, es-
capando em outra direção, os coreógra-
fos Renato Vieira em Divino maravilho-
so, Tíndaro Silvano em Parque industrial
e Ivonice Satie em Baby conseguem fa-
zer com que a dança proponha sua pró-
pria poesia.
Talvez o maior desafio dessa compa-
nhia seja encontrar uma dança feita por jo-
vens e para jovens, que não caia numa abor-
dagem superficial e infantil. Como a Cia.
Jovem El Paso de Dança está apenas nas-
cendo, espera-se que a juventude no nome
possa contaminar a ideia de dança que está
por trás de suas criações. Se ainda não foi
dessa vez, com esse time de primeira será,
com certeza, da próxima.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
201
Desafio ainda épolitizar o corpo que dança
Boas ideias e pouco aprofundamento marcam a 13ª ediçãodo festival Panorama com seu excesso de performances
ROBERTO PEREIRA
13ª edição do festival Panorama Rio-
Arte de Dança, que se encerrou no do-
mingo, após nove dias em cartaz em vários
pontos da cidade, pode ser vista quase como
um tratado político sobre a proxêmica, a
área da antropologia que estuda o uso hu-
mano do espaço para fins de comunicação.
Como a relação desse espaço com o homem
é marcada pela cultura, dança e política po-
dem, a uma só vez, ser vistas como interfa-
ces dessa relação. E é aí, neste lugar, que
trafega a curadoria deste ano do festival.
O corpo político que dança tem como
desafio colocar uma questão para o mundo,
sendo ao mesmo tempo mídia dessa ques-
tão. Quanto mais se modula essa condição
de mídia, em cena, esse corpo se aproxima
mais da dança ou de outras linguagens que
dela se avizinham. No caso do Panorama
RioArte de Dança, deixou-se claro que a
escolha, que ainda reina como possibilida-
de, foi antes a performance, deixando a dan-
ça como um mero lugar que a acolhe, ou,
quase, que a legitima.
Para a proxêmica, o termo distância ín-
tima designa a proximidade da presença do
outro, fazendo com que os sentidos se agu-
cem para dar conta de uma relação ao mes-
mo tempo tão física e tão invasora. Essa dis-
tância íntima, (re)inaugurada entre perfor-
mer e público, tornou-se o palco de grande
parte da programação do festival. E acabou
se sobrepondo, de forma ainda incipiente, ao
desafio de se construir no corpo uma ideia,
uma questão, e de marcar um território para
que esse público tivesse espaço para lê-la.
Na verdade, toda essa corrente, por ve-
zes tão maneirista, que lança mão da per-
formance e investe sobretudo na cena (e na
preferência pelo uso de espaços não tradi-
cionais) e nos objetos cênicos (sempre em
excesso, quase que denunciando a incapa-
cidade de traduzi-los no corpo) pode ser vis-
ta, no caso específico do Rio de Janeiro,
como um sintoma do que o próprio Panora-
ma RioArte de Dança vem disseminando
ao longo principalmente dos últimos quatro
anos. Nesse sentido, devem ser citados artis-
tas e teóricos como Jérôme Bel, Thomas
Lehmen, Xavier Le Roy e Christophe Wa-
velet, entre outros, que aqui estiveram. E
esse sintoma não deve ser visto como resul-
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 9 DE RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 9 DE RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 9 DE RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 9 DE RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 9 DE NOVEMBRONOVEMBRONOVEMBRONOVEMBRONOVEMBRO • 2004 • 2004 • 2004 • 2004 • 2004
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
202
tado, mas antes como processo. Assim como
se deve torcer para que esse processo, se se
for lembrar de dança, leve suas questões de
volta ao corpo, num outro momento.
Como um festival é uma lupa que reve-
la o que se produz e como essa produção traz
consigo marcas de seu ambiente, identida-
de e memória foram matéria-prima também
de grande parte do que foi apresentado. Os
olhos atentos de Nayse López e Eduardo
Bonito, que assinam agora a curadoria do
Panorama, organizaram para o público ca-
rioca o que cabia nessa lupa tão temática.
Como tudo o que é aumentado, qualidades
e fragilidades ficaram evidentes: havia
muitas ideias, mas muito pouco aprofunda-
mento. Ou seja, havia algumas boas ideias
que não pareciam ter surgido como neces-
sidade, ficando, desse modo, abafadas umas
pelas outras.
Curiosamente, as três únicas obras de
todo o festival que levaram a cabo sua ques-
tão, corajosamente, dignamente, sem fazer
concessão alguma ao que impera como vi-
gente, foram aquelas que, talvez não por
coincidência, aconteceram no palco, na ve-
lha estrutura que separa artista do público.
Samba do crioulo doido, de Luiz de Abreu,
Elemento bruto e raio X, da Membros Com-
panhia de Dança, e Les morts pudiques, de
Rachid Ouramdane têm em comum o em-
bate político no corpo que dança, desafio
nada fácil e que não se maquia de perfor-
mance para chegar ao ponto. Uma dança
que funciona quase como um bisturi afia-
do que nos revela onde está a questão, per-
seguindo-a, perscrutando-a. O novo, todos
sabemos, pode estar também no lugar do
tradicional, corrompendo-o pelas beiradas,
sutil e sabiamente.
O Panorama RioArte de Dança, em seu
13º ano, mostra, sem medo, aquilo que aju-
dou a construir. Uma construção que não
tem um fim, mas funciona como índice de
rotas, como estruturas de investigação, como
mapas de ideias. Assim como na ciência,
métodos que ajudam a revelar podem ser
mais úteis do que aquilo que foi revelado.
A cidade do Rio de Janeiro e sua dança
vêm construindo, a seu modo, esses méto-
dos e isso muito se deve ao Panorama. E
muito também se deve à sua idealizadora
e diretora artística, Lia Rodrigues, que
numa determinação quase insuportável
(como diria a coreógrafa Paula Nestorov),
persegue essa tarefa como parte de sua
existência no mundo.
Numa atitude míope, a Secretaria das
Culturas inacreditavelmente diminuiu em
50% a verba destinada a esse festival. Que
bom que outros parceiros e apoiadores con-
tinuaram a entender e a reconhecer o que o
Panorama promove. Formaram, assim, um
corpo. Um corpo político, tal como aquele
da performance e da dança. E num festival
entendido como lupa que tudo aumenta, fica
claro o que, nesse corpo, ainda padece de
alguma doença.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
203
Passos tecidos com sabedoriaEm Tempo de verão, a coreógrafa Márcia Milhazes
intensifica sua pesquisa de movimentos
ROBERTO PEREIRA
qualidade que distingue o trabalho de
um artesão do de um artista parece ser
a matéria-prima com que a coreógrafa Már-
cia Milhazes trabalha suas obras. Em Tem-
po de verão, que finalmente estreou no Rio
de Janeiro, na última sexta, no Teatro Nel-
son Rodrigues, e que fica em temporada até
o dia 28, a habilidade do tecer artesanal re-
veste-se com a sabedoria do fazer artístico.
Assim, pensamento transforma-se em algo
como rendas: rendas de passos, de músicas,
de imagens.
Dando continuidade a sua pesquisa de
movimentos, a carioca Márcia Milhazes pos-
sui a determinação e a coragem de uma in-
vestigadora quase obsessiva por encontrar o
gesto exato na singularidade de cada frase
coreográfica. Essa determinação, que nunca
se rende a modismos, deve ser vista como
aprofundamento de vocabulário e pode ser
acompanhada, sobretudo, a partir de sua obra
anterior, Joaquim Maria. Em dança, criado-
res que constróem um vocabulário de movi-
mentos é coisa rara: pressupõe-se, antes de
mais nada, o desejo de se resolver no corpo
que dança suas questões, o seu problema para
o mundo. Neste sentido, não existe mais se-
paração entre corpo e cena: o corpo é a cena
onde se passa a ação. E no caso de Márcia,
artesã paciente e artista inquieta, esse corpo
desmancha-se em minúcias, em detalhes, tal
qual mesmo uma renda.
Em Tempo de verão, essa construção
pode ser vista de forma exemplar. Há que
se afiar os olhos para apreender ali o que se
intensifica como pesquisa. Neste movimen-
to de leitura que decupa, há também o pra-
zer de perseguir as descobertas coreográfi-
cas que ali residem. Os três excelentes bai-
larinos em cena desvelam, a cada fraseio, a
qualidade que degusta o espírito sugerido a
cada valsa tocada, produzindo diferentes
climas que se encadeiam harmoniosamen-
te ao longo do espetáculo.
Ana Amélia Vianna e Al Crisppinn,
que já trabalham há mais tempo com a co-
reógrafa, dominam a facilidade do gesto
assinado por ela, ao mesmo tempo que
possuem a sabedoria em conservar o que
é próprio de cada um em suas danças. Já a
bailarina Pim Boonprakob, que mais recen-
temente se juntou ao grupo, compõe com
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 22 DE NOVEMBRO • 2004 • 22 DE NOVEMBRO • 2004 • 22 DE NOVEMBRO • 2004 • 22 DE NOVEMBRO • 2004 • 22 DE NOVEMBRO • 2004
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
204
eles uma relação triádica coesa, como se ela
já estivesse, potencialmente, desde sempre,
em outras obras de Márcia. Sua dança, des-
lumbrante, faz com que a cena se preencha
com singularidades gestuais que dialogam
com os outros bailarinos. Isso pode ser visto,
sobretudo, no duo com Al Crisppinn, que im-
pressiona pelo que ali carrega de técnica e
de densidade dramática.
Nas criações de Márcia Milhazes, músi-
ca se transforma em trilha sonora, processo
nem sempre entendido por muitos coreógra-
fos contemporâneos. Desta vez, valsas foram
escolhidas para compor com o figurino e
com o lustre assinado por sua irmã, a artista
plástica Beatriz Milhazes, um todo cuja ele-
gância também se dá a partir do que ali se
constrói como pensamento de dança.
A última cena, ao som de uma das
Valsas de esquina, de Francisco Migno-
ne, arremata (e arrebata) o que vem sendo
destilado por todo o espetáculo. Depois des-
te momento, o que era renda de artesão vira
questão de sobrevivência do artista.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
205
Gestos de beleza e suavidadeem Márcia Milhazes
SILVIA SOTER
coreógrafa Márcia Milhazes cultiva
suas criações com tempo e rigor. As-
sim, quando uma de suas peças chega à cena,
traz sempre as marcas de um trabalho de-
purado e perseguido com afinco. Três anos
depois de Joaquim Maria, sua última cria-
ção à frente da Márcia Milhazes Compa-
nhia de Dança, Tempo de verão estreou para
ficar em cartaz no Teatro do Conjunto Cul-
tural da Caixa, até domingo.
Em Joaquim Maria, a literatura de Ma-
chado de Assis era acompanhada da músi-
ca como fonte e alicerce de criação. Já em
Tempo de verão, as referências sonoras, as
valsas brasileiras e o som das águas que jor-
ram, funcionam como princípios sobre os
quais o tecer coreográfico se estrutura.
As valsas que atravessam a peça, não
se restringem a uma dança de casal. Elas
se desdobram em suas facetas musicais e
dinâmicas. Em cena, em Tempo de verão es-
tão três intérpretes, ao invés de dois, como
acontecia em Joaquim Maria. O número de
intérpretes parece se referir ao ternário
simples da valsa. Um tempo de verão que
se constitui, como na valsa, pela presença
de três, como os três tempos do compasso.
O êxtase e o transe provocados pelos
rodopios infinitos das valsas não estão nos
deslocamentos espaciais, mas nos cor-
pos dos intérpretes que são atravessados
por fluxos incessantes de movimento em cír-
culos e espirais. A corporeidade construída
pela dança de Márcia Milhazes é prolixa e
verborrágica. A dança não se congela em
formas. Ela jorra como a água, escorre e se
exaure nos corpos dos bailarinos. Nessa valsa
a três, há espaço para encontros em pares.
O terceiro elemento cria o contraponto para
que o foco não se restrinja aos duos. Em
ciclos, cada encontro é passageiro.
Os três bailarinos traduzem, cada um de
seu jeito, a dança de Márcia Milhazes. Ana
Amélia Vianna parece ser movida de fora,
sua familiaridade com a dança de Márcia
faz com que seu corpo seja veículo transpa-
rente para a escrita da coreógrafa. Pim
Boomprakob, outra excelente intérprete e
nova integrante da companhia, contrapõe
com mais peso a leveza de Ana Amélia.
Vendo-as juntas é possível confirmar que
não há acaso no aparente descontrole da
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SÁBADO• 27 DE NOVEMBRO • 2004RIO DE JANEIRO • SÁBADO• 27 DE NOVEMBRO • 2004RIO DE JANEIRO • SÁBADO• 27 DE NOVEMBRO • 2004RIO DE JANEIRO • SÁBADO• 27 DE NOVEMBRO • 2004RIO DE JANEIRO • SÁBADO• 27 DE NOVEMBRO • 2004
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
206
movimentação incessante dos corpos. Em
Tempo de verão parece existir apenas uma
mulher desdobrada nas duas.
Al Crisppinn, a única presença masculi-
na na peça, serve como esteio para os cor-
pos das bailarinas. Ele é o pivot para a cir-
cularidade da movimentação. Ele é a ânco-
ra para que as duas não partam nos ares por
seus movimentos centrífugos.
Sobre as cabeças dos três, um lustre-es-
cultura de Beatriz Milhazes, feito de brilhos,
flores e rosáceas, compõe magnificamente
a cena. As sombras desenhadas pela ilumi-
nação de Glauce Milhazes mereceriam, no
entanto, um contraponto solar. Terminada a
peça, quando as luzes invadem o palco, per-
cebe-se que, infelizmente, a escultura de
Beatriz Milhazes não é bem aproveitada
como fonte irradiadora do verão.
No quase apagar das luzes da tempora-
da 2004 de dança, Tempo de verão é bem-
vindo. A peça brinda o público carioca com
beleza e suavidade, frutos da competência
e da tenacidade dessa coreógrafa carioca.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
207
Qualidade técnica à provaRemontagem de La fille mal gardée exige o
máximo do corpo de baile do Municipal
ROBERTO PEREIRA
ncerrando um ano muito pobre em
sua programação, o Ballet do Theatro
Municipal finalmente apresenta uma obra
à sua altura: La fille mal gardée, na versão
do inglês Frederick Ashton, que estreou sex-
ta-feira e permanece em temporada até o
dia 19. Trata-se de uma boa oportunidade
de se averiguar como está a qualidade da
única e mais antiga companhia brasileira
dedicada ao balé clássico de repertório.
Essa oportunidade se dá justamente por
ser essa obra uma combinação perfeita en-
tre pantomima e dança, desafio que deve ser
enfrentado por todo bailarino clássico que
se preze. Único balé do século XVIII ainda
vivo, sua permanência se deve muito pela
competência que nele se criou de contar
uma história, talvez a maior preocupação da
dança cênica ocidental naqueles tempos.
Quanto mais banal fosse essa história, mais
a dificuldade da narrativa se instaurava,
pois era na química de gestos codificados
com a qualidade na execução dos passos
que estava o segredo do sucesso.
Sendo assim, nossa companhia carioca
ainda precisa se acostumar com esse modo
de dançar, pois reside em La fille mal gar-
dée a sutileza da expressão, que demanda
um apuro técnico impecável. Portanto, nada
melhor para aprender essa lição do que a
chance de executá-lo.
Se na estreia os primeiros papéis foram
entregues a Ana Botafogo e Vitor Luiz, na
segunda récita, anteontem, Teresa Augusta
e Bruno Rocha formaram um interessante
casal que mescla a experiência da bailari-
na com o vigor de estreante do jovem ra-
paz. Ainda que insegura como Lise, Teresa
soube cumpri-lo com honestidade, embora
faltasse em sua dança a graciosidade pró-
pria que o papel demanda. Já Bruno Rocha,
promissor investimento da companhia, tal-
vez precisasse se preocupar mais com a
construção pantomímica de seu personagem
e, sobretudo, com o acabamento dos passos,
que ainda são executados com uma força
pouco comedida. Para os dois, nada como o
exercício de estar em cena para sanar esses
pequenos problemas.
Mas a noite ficou entregue à qualidade
de dois artistas em papéis não menos im-
portantes: o primeiro foi César Lima, per-
E
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 6 DE RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 6 DE RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 6 DE RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 6 DE RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 6 DE DEZEMBRODEZEMBRODEZEMBRODEZEMBRODEZEMBRO • 2004 • 2004 • 2004 • 2004 • 2004
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
208
feito como a mãe Simone, mostrando que
sua carreira dentro daquela companhia ba-
lizou-o para esse grande desafio; e o segun-
do foi Rodrigo Negri, bailarino que vem se
destacando pela qualidade que imprime
em sua dança, agora experimentando um
outro modo de estar em cena, como o cari-
cato Alain.
O corpo de baile precisa de ajustes eviden-
tes. As cenas de conjunto ainda precisam de
burilamento, e isso fica claro logo no início, na
dança do galo e das galinhas. O cenário, além
de carregado pelas fortes cores que mais lem-
bram ilustrações de livros infantis, o que lhe
confere um caráter pouco verossímil, deveria
ser melhor construído para não parecer que
pode desabar a qualquer momento, como acon-
tece especialmente no primeiro ato. A ilumi-
nação também merece maior atenção, para
acertar os tons sutis que o balé requisita em
sua tarefa de contar uma história.
Talvez o maior mérito na remontagem
de La fille mal gardée esteja no fato de que
foi assinada pela excelência de conhecimen-
tos de um brasileiro, Emilio Martins, um dos
únicos autorizados neste ofício para a ver-
são de Ashton. Curioso é que o Brasil assis-
tiu a este balé, pela primeira vez, no mesmo
teatro, em 1928, quando foi dançado pela
russa Anna Pavlova e sua companhia. Emi-
lio, em uma de suas remontagens pelo mun-
do, foi consagrado ao ser convidado pelo
Ballet Bolshoi há dois anos. Isso prova que,
no fluxo da história, Rússia e Brasil, por
exemplo, podem aprender sempre um com
o outro. E prova também que, para nós, ter
um profissional desse quilate é motivo de
grande orgulho.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
209
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 30 DE DEZEMBRO • 2004• QUINTA-FEIRA • 30 DE DEZEMBRO • 2004• QUINTA-FEIRA • 30 DE DEZEMBRO • 2004• QUINTA-FEIRA • 30 DE DEZEMBRO • 2004• QUINTA-FEIRA • 30 DE DEZEMBRO • 2004
Driblando obstáculosDiante da ausência de políticas públicas para a área,
dança do Rio depende de festivais para aparecer
ROBERTO PEREIRA
dança carioca, neste ano de 2004, po-
deria ser tomada como uma amostra
perfeita da situação da dança no Brasil hoje:
a sua rica pluralidade e a qualidade de seus
artistas ainda se debatem com um de seus
maiores problemas, ou seja, a falta de uma
política pública eficiente e que entenda as es-
pecificidades da área. Tanto aqui no Rio de
Janeiro quanto no resto do País, a saída tem
sido criar estratégias de sobrevivência para
que se possa continuar a ousar fazer da dan-
ça um ofício possível, como qualquer outro.
Uma dessas estratégias, e talvez a mais
eficaz ainda no momento, são os festivais de
dança, que permitem a circulação de com-
panhias, além de dar visibilidade aos nossos
artistas para programadores nacionais e in-
ternacionais. Nesse sentido, o Rio continua
sendo uma cidade privilegiada, pois possui
três importantes festivais que, neste ano, pro-
varam sua eficiência dentro desse parco
ambiente de infraestrutura para dança. O
primeiro deles a acontecer na agenda anual,
logo no mês de março, é o Solos de Dança no
SESC que, em sua quinta edição, comprovou
a ação singular que o Espaço SESC vem de-
senvolvendo junto não apenas à dança mas
às artes cênicas como um todo. Dirigido por
Beatriz Radunsky e com consultoria de João
Saldanha, o evento vem provocando atritos
sempre instigantes ao promover encontros
inéditos entre coreógrafos e bailarinos.
Neste ano, vale citar Basse danse, que re-
sultou da parceria entre o excelente baila-
rino Marcellus Ferreira e o coreógrafo Pau-
lo Caldas, além do solo autoral de Denise
Stutz, DeCor, que emocionou o público ao
visitar a memória física do percurso profissi-
onal desta intérprete/criadora.
O segundo importante festival, que acon-
teceu logo no mês seguinte, foi o Dança Bra-
sil, único importante evento de dança desen-
volvido no Centro Cultural do Banco do
Brasil, e que conta com a preciosa curado-
ria de Leonel Brum e Silvia Soter. Propon-
do, nesta sua oitava edição, a ideia de espa-
ço como fio condutor, reuniu trabalhos de
vários estados brasileiros que apresentavam
diferentes abordagens sobre o tema. Se a
dupla mineira formada por Luciana Gonti-
jo e Margô Assis, em In situ, foi a que mais
se ateve ao uso do espaço como questão
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estética, vale, entretanto, chamar a atenção
para Espaço de luz, trabalho assinado pela
veterana Carlota Portella, que revisitou com
propriedade aquilo do qual é uma das mais
sérias representantes no País, o jazz, numa
feliz fusão com a dança contemporânea.
Fechando o ano, o Panorama RioArte
de Dança, festival criado pela coreógrafa
Lia Rodrigues, foi um grande provocador de
discussões, ao colocar em ambientes comuns
dança e performance. Suscitar novas ques-
tões, tanto nos artistas como no público, já
faz parte de sua tradição, e a questão da vez
foi como essas duas linguagens podem en-
contrar espaços comuns num corpo transfor-
mado em mídia. Neste ano, revigorado pela
curadoria de Nayse López e Eduardo Boni-
to, o Panorama apresentou trabalhos impor-
tantes como O samba do crioulo doido, de
Luiz de Abreu, e Les morts pudiques, de
Rachid Ouramdane, além de diversas per-
formances em locais pouco usuais, como o
antigo hospital da Beneficência Portugue-
sa, na Glória. O descaso da Secretaria das
Culturas, junto com o Instituto RioArte, cor-
tando pela metade o orçamento desse festi-
val, tornou-se, portanto, inexplicável, permi-
tindo que as parcerias conquistadas com ou-
tras entidades, nacionais e internacionais,
fossem as grandes promotoras desse even-
to histórico, que já está em sua 13ª edição.
A cidade ainda contou com outros fes-
tivais e mostras, como o Projeto Dança em
Foco, que discute as imbricações entre as
linguagens de dança e vídeo, além de Cor-
reios em Movimento e Dança em Trânsi-
to, dois festivais que buscam uma linha de
curadoria mais precisa.
Ainda falando sobre dança contemporâ-
nea, três espetáculos, distribuídos ao logo do
ano, formaram, sem dúvida, o conjunto de
estreias mais expressivas do que se produz
na área no Rio: Afirmações intencionais, de
João Saldanha, Coreografismos, de Paulo
Caldas, e Tempo de verão, de Márcia Milha-
zes. Em comum entre os três, observa-se uma
pesquisa acurada que constrói no corpo, co-
reograficamente, a ideia que cada um des-
ses importantes coreógrafos quer trabalhar.
Outras estreias merecem também ser
citadas, como Memória do corpo, de Renato
Vieira, Sensorial, de Steven Harper, Mais
simples, de Ana Vitória, além do novato
Carlos Laerte, com seu Caminhos. Já Dalal
Achcar apresentou sua Companhia Jovem
Elpaso de Dança em Superbacana, priman-
do, como sempre, e sobretudo, pela qualida-
de técnica de seus bailarinos.
A mesma qualidade de produção da dan-
ça contemporânea, entretanto, não pôde ser
vista na área do balé clássico, representado
aqui pela única companhia brasileira dedi-
cada a esse estilo: o Balé do Theatro Muni-
cipal. Contando com uma direção artística
capenga, abriu seu ano com um programa
reunindo obras de três coreógrafos (Uwe
Scholz, Glen Tetley e Roberto de Oliveira),
intitulado Tríptico, que, além de absurda-
mente caro, nada acrescentou ao repertório
dessa companhia, devido à sua fragilidade
estética, sobretudo nos trabalhos de Tetley
e Oliveira. Depois desse desastroso come-
ço de ano, a companhia reapresentou mon-
tagens da temporada passada, como o óti-
mo Onegin, de Cranko, além de um apressa-
do Les sylphides, feito de última hora. O que
salvou o ano foi, sem dúvida, o balé La fille
mal gardée, com remontagem primorosa
assinada por Emílio Martins.
Das poucas companhias estrangeiras
que visitaram a cidade, apenas duas foram
destaque: a de Merce Cunningham, que
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apresentou dois marcos de sua histórica tra-
jetória, Biped, de 1999, e Sounddance, de
1975; e o Ballet du Grand Théâtre de
Genève, que apresentou para um teatro da
Uerj semivazio obras impecáveis como
Selon désir, do grego Andonis Foniadakis.
Motivo de orgulho para nós, Bruno Cezá-
rio, um dos integrantes brasileiros da com-
panhia, mostrou porque é um dos melho-
res bailarinos da atualidade.
Das ações políticas na cidade, vale ci-
tar a importante contribuição do projeto
Cahiers de la Danse, dirigido por Lia
Rodrigues e Silvia Soter, em parceria com
o Serviço Cultural do Consulado-Geral da
França. Além de ter promovido encontros
para discutir políticas para a dança, entre
os meses de outubro e novembro, reunindo
movimentos como o Dança Niterói e o
Contágio Coletivo, foi sede de residências
coreográficas de artistas como Márcia
Milhazes e Ana Vitória, cumprindo com
um papel na cidade que não deveria ser
apenas seu. Um dos lugares que poderiam
exercer essa função, o Centro Coreográfi-
co da Cidade do Rio de Janeiro, finalmen-
te inaugurado em agosto, na Tijuca, ainda
tateia uma linha de ação que possa conju-
minar arte e política com eficiência, e que
possa também reverberar para além dos
limites do bairro em que foi implantado.
A dança carioca, no ano de 2004, deixou
claro que muito ainda deve ser feito para
que se forme um pensamento político vol-
tado para a área, e que seja realmente efi-
caz não apenas na cidade do Rio de Janeiro,
mas em todo o País. Apenas assim, a dança
não fará mais uso de estratégias de sobre-
vivência, mas será, além de uma arte, uma
profissão tão digna e respeitada como as
outras. Tomando a qualidade da dança ca-
rioca como amostra, esse é, sem dúvida, um
desafio que a dança brasileira pode, em
breve, vencer.
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