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Crtica e Verdade
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Coleo Debates
dirigido por J. Guinsburg
Equipe de realizao Traduo: Leyla Perrone-Moiss; Reviso:
Geraldo Gerson de Souza; Produo: Ricardo W. Neves e Raquel
Fernandes Abranches.
roland barthes
CRTICA E VERDADE
EDITORA PERSPECTIVA
Ttulos dos originais em francs Critique et Vrit e Essais Critiques Copyright by Editions du Seuil, Paris
Dados internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Barthes, Roland
Crtica e verdade / Roland Barthes; [traduo Leyla Perrone-Moiss], So Paulo: Perspectiva, 2007. (Debates; 24 / dirigida por J. Guinsburg)
Ttulo original: Critique et vrit e Essais Critiques 2 reimpr. da 3. ed. Bibliografia ISBN 978-85-273-0201-2
1. Cincias humanas 2. Comunicao 3. Crtica
literria 4. Teoria literria I. Guinsburg, J.. II. Ttulo. III. Srie.
07-2514 CDD-801.95
ndices para catlogo sistemtico:
1. Crtica literria 801.95
3 edio 2a reimpresso
Direitos reservados em lngua portuguesa EDITORA PERSPECTIVA S.A. Av. Brigadeiro Lus Antnio, 3025 01401-000 So Paulo SP Brasil Telefax: (011) 3885-8388 www.editoraperspectiva.com.br
S U M R I O
Apresentao. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
ENSAIOS CRTICOS
Prefcio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Literatura e Metalinguagem. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
Escritores e Escreventes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
A Imaginao do Signo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
A Atividade Estruturalista. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
Estrutura da Notcia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
A Literatura Hoje. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
Literatura Objetiva. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
Literatura Literal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
Uma Concluso sobre Robbe-Grillet?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
Literatura Descontnuo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
Me Coragem Cega. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125
A Revoluo Brechtiana. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129
As Tarefas da Crtica Brechtiana. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
De um Lado e do Outro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
As Duas Crticas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
O que a Crtica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157
Literatura e Significao. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165
CRITICA E VERDADE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185
Nota da digitalizadora: A numerao de pginas aqui refere-se a edio original, que encontra-se inserida entre colchetes no texto. Entende-se que o texto que est antes da numerao entre colchetes o que pertence aquela pgina e o texto que est aps a numerao pertence a pgina seguinte.
A P R E S E N T A O
Deve-se queimar Roland Barthes? Esta pergunta, inscrita
numa fita de papel envolvendo os Essais critiques, situa Barthes
como um objeto de polmica. E com efeito ele o tem sido, desde seu
primeiro artigo, em 1947, at sua mais recente publicao, S/Z
(1970).
A primeira obra de Barthes, Le degr zero de lcriture (1953),
tratava de uma certa escritura neutra, escritura no grau zero,
caracterstica de nosso tempo e que constituiria o ltimo episdio de
uma Paixo da escritura, que acompanha o dilaceramento da
conscincia burguesa. Surgindo como um crtico marxista, [pg. 07] mas recusando o determinismo histrico e social direto, Barthes
atraiu desde logo as suspeitas da direita e da esquerda.
Em Michelet par lui-mme (1954), Barthes enveredou por uma
crtica de base psicanaltica, tambm recebida com certas reservas.
Mas foi ao atacar Racine de um modo totalmente novo, segundo vias
psicanalticas um pouco diversas das de seu Michelet, que Barthes
atraiu a ira da crtica tradicional. O crtico tocara um objeto sagrado,
e sua iconoclastia provocou a santa indignao dos defensores do
templo.
O livro de Raymond Picard, Nouvelle critique, nouvelle imposture,
foi o antema lanado pelos cultores do classicismo intocvel. A este
livro, Barthes retrucou com Critique et Vrit, que pela segurana de
argumentos e por sua requintada ironia definia e enterrava de uma
vez por todas a velha crtica (puisque nouvelle critique il y a).
Considerado desde ento como o verdadeiro mestre da nova
crtica francesa, paradoxalmente e felizmente, Barthes no foi de
todo assimilado. Continuou sendo alvo de ataques vindos dos mais
variados pontos. Uma das crticas que mais freqentemente se
fizeram e se fazem, ainda hoje, a Barthes, a que se refere a sua
inconstncia.
Mesmo os que aceitam uma crtica de base marxista,
psicanaltica, fenomenolgica, estilstica, estruturalista ou
semiolgica, relutam por vezes a aceitar esse crtico que assume
todas essas posies alternadamente ou ao mesmo tempo. Em nome
de um purismo ideolgico irrealizvel e indesejvel numa verdadeira
crtica, acusam Barthes de charlatanice e de inconstncia.
Acusam-no de seguir a moda, esquecidos de que a moda,
considerada em certo nvel, algo muito srio, o sistema de formas
que define uma poca. Por outro lado, qualquer pretenso a uma
viso intemporal dos fenmenos ilusria. A abertura de Barthes
contemporaneidade, sua permanente disponibilidade para o novo,
so as qualidades que seus detratores vm como defeitos.
Quanto inconstncia, s quem conhece superficialmente a
obra de Barthes pode atac-lo por essas infidelidades. Em primeiro
lugar, Barthes um escritor [pg. 08] vivo; sua obra no se apresenta como algo acabado, fechado, mas caracteriza-se por uma
suspenso de sentido (usando sua prpria expresso) que permite
uma constante reformulao. Mais do que um escritor vivo, portanto
em mutao, Barthes um escritor, e o escritor um
experimentador pblico: ele varia o que recomea; obstinado e infiel,
s conhece uma arte: a do tema e das variaes1.
Postas essas ressalvas, podemos dizer, por outro lado, que esta
obra aberta e em evoluo apresenta algumas linhas de fora que
permanecem constantes sob a variao. Vejamos alguns dos pontos-
chave da obra barthesiana.
Primeiramente, a afirmao da autonomia da linguagem
1 V. p. 15.
literria. Escrever, para Barthes, sempre foi um verbo intransitivo2.
A obra literria no mensagem, fim em si prpria. A linguagem
nunca pode dizer o mundo, pois ao diz-lo est criando um outro
mundo, um mundo em segundo grau regido por leis prprias que so
as da prpria linguagem. O sistema da linguagem no anlogo ao
sistema do mundo, mas homlogo. A linguagem literria nunca
aponta o mundo, aponta a si prpria: O escritor concebe a literatura
como fim, o mundo lha devolve como meio; e nessa decepo
infinita que o escritor reencontra o mundo, um mundo estranho,
alis, j que a literatura o representa como uma pergunta, nunca,
definitivamente, como uma resposta3.
A literatura, para Barthes, um sistema deceptivo,
caracterizado pela suspenso do sentido. Entra aqui uma distino
bsica da obra barthesiana: a distino entre sentido e significao:
Entendo por sentido o contedo (o significado) de um sistema
significante, e por significao o processo sistemtico que une um
sentido e uma forma, um significante e um significado4. A literatura
nunca sentido, a literatura processo de produo de sentidos, isto
, significao.
A funo da crtica no pois descobrir e explicar o sentido de
uma obra literria, mas descrever o funcionamento do sistema
produtor de significao. No o [pg. 09] que a obra significa, mas como a obra chega a significar. Alm disso, a crtica
metalinguagem, linguagem sobre a linguagem, e est portanto
submetida s mesmas exigncias da linguagem literria. Assim como
a linguagem literria no pode dizer o inundo, a linguagem crtica
no pode dizer a obra. O crtico aquele que, mais do que a obra de
que fala, deseja sua prpria linguagem. E o sentido dessa to
suspenso quanto o da literatura. O que faz a boa crtica no sua
2 V. p. 33. 3 V. p. 33 4 V. p. 66 (nota).
veracidade, mas sua validade, a fora de sua sistemtica.
O prprio da linguagem literria ser uma linguagem da
conotao e no da denotao (V. Elments de smiologie,
Communications n 4, 1964). Portanto, o que interessa literatura
no o referente (aquilo que denotado) mas o prprio poder
conotativo do signo lingstico, sua polissemia. Estudando o signo
literrio em confronto com os signos dos demais sistemas simblicos,
Barthes tem contribudo enormemente para a semiologia ou
semitica, cincia geral dos signos na qual os estudos literrios se
integraro um dia.
Assim anunciou Saussure a semiologia, como a grande cincia
que englobaria todos os estudos de sistemas simblicos. Esta no ,
entretanto, a posio de Roland Barthes; considerando que tout
systme smiologique se mle de langage5, afirma ele que a
semiologia ser uma parte da lingstica, aquela que se encarregar
das grandes unidades significantes do discurso.
Partindo do princpio de que tudo linguagem, Barthes se alia
naturalmente queles que vem a lingstica como o modelo das
cincias humanas. Dessa forma, tem participado ativamente dos
estudos conjuntos para a elaborao de uma cincia da literatura,
atravs de um tipo de anlise que toma o estruturalismo lingstico
por guia.
Mas o estruturalismo literrio de Barthes no ortodoxo, como
no o foram suas utilizaes do marxismo e da psicanlise. Como ele
prprio diz, em O que a crtica?, nos arredores dessas
ideologias que surge a crtica mais criadora. Acima de sua vocao
de pesquisador e de professor, est sua vocao de escritor, e esta
exige dele uma liberdade, uma disponibilidade [pg. 10] que tem sido por vezes confundida com infidelidade. Entre a potica e a crtica,
5 Elments de smiologie, Le degri zero de lcriture, Editions onthier, 1965, p. 80
Barthes escolhe a segunda, pois , antes de mais nada, um
enamorado de sua prpria linguagem.
Eis por que a linguagem barthesiana no uma linguagem
transparente, uma linguagem-meio, mas uma linguagem opaca de
escritor. Seu estilo metafrico, e exerce uma particular ironia com
relao ao referente e com relao a ele prprio. Envolve o objeto
pouco a pouco, assim como envolve o leitor. Seu modo de abordagem
fenomenolgico: a descrio vai descrevendo crculos, numa espiral
que acaba por agarrar o objeto numa definio inesperada e feliz.
Freqentemente Barthes apresenta o objeto de sua crtica segundo
uma ptica de estranhamento, de modo que, quando ele o nomeia
finalmente, temos a surpresa de o reconhecer e de o receber
enriquecido por essa inesperada abordagem. por esse poder de
envolvimento, de seduo, que Michel Butor qualificou certa vez sua
escritura como fascinatrice.
Esta coletnea rene alguns dos textos fundamentais de Roland
Barthes: uma escolha dos Essais critiques e o texto integral de
Critique et Vrit. Alguns deles, como Escritores e Escreventes,
Literatura e metalinguagem, O que a crtica? e Literatura e
significao, so trabalhos imprescindveis para quem se preocupa
com os problemas da literatura e se prope encar-los com um
enfoque realmente atual. Outros, como A imaginao do signo e A
atividade estruturalista, interessam aos estudiosos das
comunicaes e das cincias humanas em geral. Critique et Vrit,
por sua vez, j foi traduzido para numerosas lnguas, o que
comprova sua importncia.
No texto original, os Ensaios crticos esto ordenados
cronologicamente. Optou-se aqui por uma ordenao segundo o
assunto, arranjo organizado com plena aprovao do Autor, que j
fizera coisa semelhante para uma edio italiana da obra. Pede-se,
entretanto, que os leitores atentem para as datas dos artigos, o que
explicar algumas repeties ou infidelidades barthesianas. [pg. 11]
Traduzir Barthes uma empresa difcil, quase temerria. A cada
passo, o tradutor teme deixar escapar nos interstcios de uma nova
lngua as conotaes que fazem da escritura de Barthes uma fala de
escritor. Nosso trabalho tornou-se menos imperfeito graas aos
conselhos amigos de Albert Audubert, Haroldo de Campos e Jos
Paulo Paes, a quem a tradutora deixa aqui seu agradecimento.
LEYLA PERRONE-MOISS
[pg. 12]
E N S A I O S C R T I C O S
P R E F C I O
Reunindo aqui textos que apareceram como prefcios ou artigos
de dez anos a esta parte, aquele que os escreveu gostaria de explicar-
se acerca do tempo e da existncia que os produziu, mas no pode
faz-lo: ele teme que o retrospectivo seja apenas uma categoria da
m f. Escrever implica calar-se, escrever , de certo modo, fazer-se
silencioso como um morto, tornar-se o homem a quem se recusa a
ltima rplica, escrever oferecer, desde o primeiro momento, essa
ltima rplica ao outro.
A razo est em que o sentido de uma obra (ou dum texto) no
pode fazer-se sozinho; o autor nunca [pg. 15] produz mais do que presunes de sentido, formas, por assim dizer, e o mundo que as
preenche. Todos os textos dados aqui so como elos de uma cadeia
de sentido, mas essa cadeia flutuante. Quem poderia fix-la, dar-
lhe um significado seguro? O tempo, talvez: reunir textos antigos
num livro novo querer interrogar o tempo, pedir-lhe que d sua
resposta aos fragmentos que vm do passado; mas o tempo duplo,
tempo da escritura e tempo da memria, e essa duplicidade chama
por sua vez um sentido seguinte: o prprio tempo uma forma.
Posso falar hoje do brechtismo ou do Novo Romance (j que esses
movimentos ocupam esses Ensaios) em termos semnticos (j que
essa minha linguagem atual) e tentar justificar assim um certo
itinerrio de minha poca e de mim mesmo, dar-lhe o ar de um
destino inteligvel, no impediria porm que essa linguagem
panormica pudesse ser tomada pela palavra de um outro e esse
outro ser talvez eu mesmo. Existe uma circularidade infinita das
linguagens: eis um pequeno segmento do crculo.
Isso para dizer que, mesmo se o crtico, por funo, fala da
linguagem dos outros a ponto de querer aparentemente (e por vezes
abusivamente) conclu-la, assim como o escritor, o crtico nunca tem
a ltima palavra. Ainda mais, esse mutismo final, que forma sua
condio comum, que desvenda a identidade verdadeira do crtico: o
crtico um escritor. Essa uma pretenso de ser, no de valor; o
crtico no pede que lhe concedam uma viso ou um estilo, mas
somente que lhe reconheam o direito a uma certa fala, que a fala
indireta.
O que dado a quem se rel, no um sentido, mas uma
infidelidade, ou antes, o sentido de uma infidelidade. Esse sentido,
preciso sempre voltar a isso, que a escritura nunca uma
linguagem, um sistema formal (qualquer que seja a verdade que a
anima); em um dado momento (que talvez o de nossas crises
profundas, sem outra relao com o que dizemos do que a de mudar-
lhe o ritmo), essa linguagem pode sempre ser falada por uma outra
linguagem; escrever (ao longo do tempo), procurar sem garantias a
maior linguagem, aquela que a forma de todas as outras. O escritor
um experimentador pblico: ele varia o que recomea; [pg. 16] obstinado e infiel, s conhece uma arte: a do tema e das variaes.
Nas variaes, os combates, os valores, as ideologias, o tempo, a
avidez de viver, de conhecer, de participar, de falar, em resumo os
contedos; mas, no tema, a obstinao das formas, a grande funo
significante do imaginrio, isto , a prpria inteligncia do mundo.
Somente, ao oposto do que se passa na msica, cada uma das
variaes do escritor tomada por um tema slido, cujo sentido seria
imediato e definitivo. Esse engano no desprezvel, constitui a
prpria literatura, e mais precisamente aquele dilogo infinito do
crtico com a obra, que faz com que o tempo literrio seja igualmente
o tempo dos autores que avanam e o tempo da crtica que os
retoma, menos para dar um sentido obra enigmtica do que para
destruir aqueles de que ela est imediatamente e para sempre
sobrecarregada.
Existe talvez uma outra razo para a infidelidade do escritor:
que a escritura uma atividade; do ponto de vista daquele que
escreve, ela se esgota numa srie de operaes prticas; o tempo do
escritor um tempo operatrio, e no um tempo histrico, tem
apenas uma relao ambgua com o tempo evolutivo das idias, de
cujo movimento ele no participa. O tempo da escritura com efeito
um tempo defectivo: escrever ou projetar ou terminar, mas nunca
exprimir; entre o comeo e o fim, falta um elo, que poderia
entretanto passar por essencial, o da prpria obra; escreve-se talvez
menos para materializar uma idia do que para esgotar uma tarefa
que traz em si sua prpria felicidade. Existe uma espcie de vocao
da escritura liquidao; e embora o mundo lhe devolva sempre sua
obra como um objeto imvel, munida uma vez por todas de um
sentido estvel, o prprio escritor no pode viv-la como um alicerce,
mas antes como um abandono necessrio: o presente da escritura j
passado, seu passado um anterior muito longnquo; entretanto
no momento em que ele se desliga dogmaticamente (por uma
recusa de herdar, de ser fiel), que o mundo pede ao escritor que
sustente a responsabilidade de sua obra; pois a moral social exige
dele uma fidelidade aos contedos, enquanto ele s conhece uma
fidelidade s formas: o que o segura (a seus prprios olhos) no o
que ele escreveu, mas a deciso obstinada de o escrever. [pg. 17]
O texto material (o Livro) pode ter portanto, do ponto de vista de
quem o escreveu, um carter inessencial, e mesmo, em certa medida,
inautntico. Assim vemos freqentemente as obras, por uma
artimanha fundamental, serem sempre apenas seu prprio projeto: a
obra se escreve procurando a obra, e quando ela comea
ficticiamente que ela terminou praticamente. O sentido do Tempo
Perdido no o de apresentar a imagem de um livro que se escreve
sozinho procurando o Livro? Por uma retorso ilgica do tempo, a
obra material escrita por Proust ocupa assim, na atividade do
Narrador, um lugar estranhamente intermedirio, situado entre uma
veleidade (quero escrever) e uma deciso (vou escrever). que o
tempo do escritor no um tempo diacrnico, mas um tempo pico;
sem presente e sem passado, ele est inteiramente entregue a um
arrebatamento cujo objetivo, se pudesse ser conhecido, pareceria to
irreal aos olhos do mundo quanto eram os romances de cavalaria aos
olhos dos contemporneos de Dom Quixote. por isso tambm que
esse tempo ativo da escritura se desenvolve muito aqum do que se
chama comumente um itinerrio (Dom Quixote no o tinha, ele que,
no entanto, perseguia sempre a mesma coisa). Com efeito, somente o
homem pico, o homem da casa e das viagens, do amor e dos
amores, pode representar-nos uma infidelidade to fiel.
Um amigo acaba de perder algum que ele ama e eu quero dizer-
lhe minha compaixo. Ponho-me ento a escrever-lhe
espontaneamente uma carta. Entretanto, as palavras que encontro
no me satisfazem: so frases fao frases com o mais amoroso de
mim mesmo; digo-me ento que a mensagem que quero mandar a
esse amigo, e que minha prpria compaixo, poderia em suma
reduzir-se a uma simples palavra: Condolncias. Entretanto, o
prprio fim da comunicao a isso se ope, pois essa seria uma
mensagem fria, e por conseguinte inversa, j que o que eu quero
comunicar o prprio calor de minha compaixo. Concluo que para
retificar minha mensagem (isto , em suma, para que ela seja exata)
preciso no s que eu a varie, mas ainda que essa variao seja
original e como que inventada. [pg. 18]
Reconhecer-se-o nessa seqncia fatal os constrangimentos da
prpria literatura (se minha mensagem final se esfora por escapar
literatura, isso apenas uma ltima variao, uma artimanha da
literatura). Como minha carta de psames, todo escrito s se torna
obra quando pode variar, em certas condies, uma primeira
mensagem (que talvez tambm seja boa: amo, sofro, compadeo-me).
Essas condies de variaes so o ser da literatura (o que os
formalistas russos chamavam de literaturnost, a literaridade), e
assim como minha carta, s podem finalmente ter relao com a
originalidade da segunda mensagem. Assim, longe de ser uma noo
crtica vulgar (hoje inconfessvel), e sob condies de pens-la em
termos informacionais (como a linguagem atual o permite), essa
originalidade ao contrrio o prprio fundamento da literatura; pois
somente me submetendo sua lei que tenho chance de comunicar
com exatido o que quero dizer; em literatura, como na comunicao
privada, se quero ser menos falso, preciso que eu seja mais
original, ou, se se preferir, mais indireto.
A razo no est absolutamente em que sendo original eu me
manteria mais prximo de uma espcie de criao inspirada, dada
como uma graa para garantir a verdade de minhas palavras: o que
espontneo no forosamente autntico. A razo est em que essa
mensagem primeira, que deveria servir a dizer imediatamente minha
pena, essa mensagem pura que desejaria denotar simplesmente o
que est em mim, essa mensagem utpica; a linguagem dos outros
(e que outra linguagem poderia existir?) me devolve essa mensagem
no menos imediatamente decorada, sobrecarregada de uma
infinidade de mensagens que eu no quero. Minha fala s pode sair
de uma lngua: essa verdade saussuriana ressoa aqui bem alm da
lingstica; escrevendo simplesmente condolncias, minha compaixo
se torna indiferente, e a palavra me mostra como um frio respeitador
de certo uso; escrevendo num romance: durante muito tempo me
deitei cedo, por mais simples que seja o enunciado, o autor no pode
impedir que o lugar do advrbio, o emprego da primeira pessoa, a
prpria inaugurao de um discurso que vai contar, ou melhor
ainda, recitar uma certa explorao do tempo e do espao noturnos,
desenvolvam j uma mensagem segunda, que uma certa literatura.
[pg. 19]
Quem quiser escrever com exatido deve pois se transportar s
fronteiras da linguagem, e nisso que ele escreve verdadeiramente
para os outros (pois, se ele falasse somente a si prprio, uma espcie
de nomenclatura espontnea de seus sentimentos lhe bastaria, j
que o sentimento imediatamente seu prprio nome). Toda
propriedade da linguagem sendo impossvel, o escritor e o homem
privado (quando ele escreve) so condenados a variar desde o incio
suas mensagens originais, e j que ela fatal, escolher a melhor
conotao, aquela cujo aspecto indireto, por vezes fortemente
retorcido, deforma o menos possvel, no o que eles querem dizer
mas o que eles querem dar a entender; o escritor (o amigo) pois um
homem para quem falar imediatamente escutar sua prpria fala;
assim se constitui uma fala recebida (embora ela seja uma fala
criada), que a prpria fala da literatura. A escritura com efeito,
em todos os nveis, a fala de um outro, e podemos ver nessa
reviravolta paradoxal o verdadeiro dom do escritor; preciso
mesmo que a o vejamos, j que essa antecipao da fala o nico
momento (muito frgil) em que o escritor (como o amigo
compadecido) pode fazer compreender que est olhando para o outro;
pois nenhuma mensagem direta pode em seguida comunicar que a
gente se compadece, a menos que se recaia nos signos de compaixo:
somente a forma permite escapar irriso dos sentimentos, porque
ela a prpria tcnica que tem por fim compreender e dominar o
teatro da linguagem.
A originalidade pois o preo que se deve pagar pela esperana
de ser acolhido (e no somente compreendido) por quem nos l. Essa
uma comunicao de luxo, j que muitos pormenores so
necessrios para dizer poucas coisas com exatido, mas esse luxo
vital, pois, desde que a comunicao afetiva (esta a disposio
profunda da literatura), a banalidade se torna para ela a mais pesada
das ameaas. porque h uma angstia da banalidade (angstia,
para a literatura, de sua prpria morte) que a literatura no cessa de
codificar, ao sabor de sua histria, suas informaes segundas (sua
conotao) e de inscrev-las no interior de certas margens de
segurana. Assim vemos as escolas e as pocas fixarem para a
comunicao literria uma zona vigiada, limitada de um lado pela
obrigao de [pg. 20] uma linguagem variada e de outro pelo encerramento dessa variao sob forma de um corpo reconhecido de
figuras; essa zona vital se chama retrica, e sua dupla funo
de evitar que a literatura se transforme em signo da banalidade (se
ela for demasiadamente direta) e em signo da originalidade (se ela for
demasiadamente indireta). As fronteiras da retrica podem alargar-se
ou diminuir, do gongorismo escritura branca, mas certo que a
retrica, que no mais que a tcnica da informao exata, est
ligada no somente a toda literatura mas ainda a toda comunicao,
desde que ela quer fazer entender ao outro que o reconhecemos: a
retrica a dimenso amorosa da escritura.
Essa mensagem original, que preciso variar para tornar exata,
nunca mais do que o que arde em ns; no h outro significado
primeiro da obra literria seno um certo desejo: escrever um modo
do Eros. Mas esse desejo no tem de incio sua disposio mais do
que uma linguagem pobre e banal; a afetividade que existe no fundo
de toda a literatura comporta apenas um nmero reduzido de
funes: desejo, sofro, indigno-me, contesto, amo, quero ser amado,
tenho medo de morrer, com isso que se deve fazer uma literatura in-
finita. A afetividade banal, ou, se se quiser, tpica, e isso comanda
todo o ser da literatura; pois se o desejo de escrever apenas a
constelao de algumas figuras obstinadas, s deixada ao escritor
uma atividade de variao e de combinao: nunca h criadores,
apenas combinadores, e a literatura semelhante barca Argos: a
barca Argos no comportava em sua longa histria nenhuma
criao, apenas combinaes; presa a uma funo imvel, cada pea
era entretanto infinitamente renovada, sem que o conjunto deixasse
de ser a barca Argos.
Ningum pode pois escrever sem tomar apaixonadamente
partido (qualquer que seja o distanciamento aparente de sua
mensagem) sobre tudo o que vai bem ou vai mal no mundo; as
infelicidades e as felicidades humanas, o que elas despertam em ns,
indignaes, julgamentos, aceitaes, sonhos, desejos, angstias,
tudo isso a matria nica dos signos, mas esse poder que nos
parece primeiramente inexprimvel, de tal forma primeiro, esse
poder imediatamente apenas o nomeado. [pg. 21] Voltamos uma vez mais dura lei da comunicao humana: o original no ele
prprio mais do que a mais banal das lnguas e por excesso de
pobreza, no de riqueza, que falamos de inefvel. Ora, com essa
primeira linguagem, esse nomeado, esse nomeado demais, que a
literatura deve debater-se: a matria-prima da literatura no o
inominvel, mas pelo contrario o nomeado; aquele que quiser
escrever deve saber que comea uma longa concubinagem com uma
linguagem que sempre anterior. O escritor no tem absolutamente
de arrancar um verbo ao silncio, como se diz nas piedosas
hagiografias literrias, mas ao inverso, e quo mais dificilmente,
mais cruelmente e menos gloriosamente, tem de destacar uma fala
segunda do visgo das falas primeiras que lhe fornecem o mundo, a
histria, sua existncia, em suma um inteligvel que preexiste a ele,
pois ele vem num mundo cheio de linguagem e no existe nenhum
real que j no esteja classificado pelos homens: nascer no mais
do que encontrar esse cdigo pronto e precisar acomodar-se a ele.
Ouve-se freqentemente dizer que a arte tem por encargo exprimir o
inexprimvel: o contrrio que se deve dizer (sem nenhuma inteno
de paradoxo): toda a tarefa da arte inexprimir o exprimvel, retirar
da lngua do mundo, que a pobre e poderosa lngua das paixes,
uma outra fala, uma fala exata.
Se fosse de outra forma, se o escritor tivesse verdadeiramente
por funo dar uma primeira voz a alguma coisa de antes da
linguagem, por um lado ele s poderia fazer falar uma infinita
repetio, pois o imaginrio pobre (ele s se enriquece se
combinamos as figuras que o constituem, figuras raras e magras, por
mais torrenciais que paream a quem as vive), e por outro lado a
literatura no teria nenhuma necessidade daquilo que no entanto
sempre a fundamentou: uma tcnica; no pode a existir, com efeito,
uma tcnica (uma arte) da criao, mas somente da variao e do
arranjo. Assim vemos as tcnicas da literatura, muito numerosas ao
longo da histria (se bem que tenham sido mal recenseadas)
empenharem-se todas a distanciar o nomevel que so condenadas a
duplicar. Essas tcnicas so, entre outras: a retrica, que a arte de
variar o banal recorrendo s substituies e aos deslocamentos de
sentido; o arranjo, que permite dar a uma mensagem nica [pg. 22] a extenso de uma infinita peripcia (num romance, por exemplo); a
ironia, que a forma que o autor d o seu prprio distanciamento; o
fragmento, ou se se preferir, a reticncia, que permite reter o sentido
para melhor deix-lo escapar em direes abertas. Todas essas
tcnicas, sadas da necessidade, para o escritor, de partir de um
mundo e de um Eu que o mundo e o Eu j sobrecarregaram de um
nome, visam a fundar uma linguagem indireta, isto , ao mesmo
tempo obstinada (provida de um objetivo) e deturpada (aceitando
estaes infinitamente variadas). Essa , como vimos, uma situao
pica; mas tambm uma situao rfica: no porque Orfeu
canta, mas porque o escritor e Orfeu sofrem ambos a mesma
proibio, que faz seu canto: a proibio de se voltar para aquilo que
amam.
Como Mme Verdurin tinha feito notar a Brichot que ele abusava
do Eu em seus artigos de guerra, o universitrio mudou todos os
seus Eus para Ns1, mas o ns no impedia que o leitor visse que o
autor falava de si e permitiu ao autor continuar falando de si...
sempre ao abrigo do ns. Grotesco, Brichot apesar de tudo o
escritor; todas as categorias pessoais que este maneja, mais
numerosas que as da gramtica, no so mais que tentativas
destinadas a dar sua prpria pessoa o estatuto de um verdadeiro
signo; o problema, para o escritor, no com efeito nem exprimir
nem mascarar seu Eu (Brichot, ingenuamente, no o conseguia e
alis no tinha nenhuma vontade de o fazer), mas de abrig-lo, isto ,
ao mesmo tempo premuni-lo e aloj-lo. Ora, geralmente a essa
dupla necessidade que corresponde a fundao de um cdigo: o
escritor no tenta nunca mais do que transformar seu Eu em
fragmento de cdigo. preciso aqui, uma vez mais, entrar na tcnica
do sentido, e a lingstica, uma vez mais, nos ajudar.
Jakobson, retomando uma expresso de Peirce, v no Eu um
smbolo indiciai: como smbolo, o Eu faz parte de um cdigo
particular, diferente de uma lngua para outra (Eu se torna Je, Ich ou
I, segue os cdigos do francs, do alemo, do ingls); como ndice,
remete a uma situao existencial, a do proferinte, que na verdade
seu nico sentido, pois Eu inteiramente, mas tambm no nada
mais que aquele que diz Eu. Em outros [pg. 23] termos, Eu no pode ser definido lexicamente (salvo se se recorrer a expedientes tais
como primeira pessoa do singular), e no entanto ele participa de
um lxico (o do portugus, por exemplo); nele, a mensagem cavalga
o cdigo, um shifter, um translator; de todos os signos, o mais
difcil de manejar, j que a criana o adquire por ltimo e o afsico o
perde em primeiro lugar.
Num segundo grau, que sempre o da literatura, o escritor,
diante de Eu, est na mesma situao que a criana ou o afsico,
segundo seja romancista ou crtico. Como a criana que diz seu 1 No texto on, pronome impessoal da 3 pessoa. (N. da T.)
prprio nome falando de si, o romancista designa a si prprio atravs
de uma infinidade de terceiras pessoas; mas essa designao no
de forma alguma um disfarce, uma projeo ou uma distncia (a
criana no se disfara, no se sonha nem se afasta); , pelo
contrrio, uma operao imediata, realizada de modo aberto,
imperioso (nada mais claro que os ns de Brichot), e da qual o
escritor precisa para falar de si prprio atravs de uma mensagem
normal (e no mais cavalgando) sada plenamente do cdigo dos
outros, de modo que escrever, longe de remeter a uma expresso da
subjetividade, , pelo contrrio, o prprio ato que converte o smbolo
indicial (bastardo) em signo puro. A terceira pessoa no pois uma
artimanha da literatura, seu ato de instituio prvio a qualquer
outro: escrever decidir-se a dizer Ele (e poder faz-lo). Isto explica
que, quando o escritor diz Eu (isso acontece freqentemente), esse
pronome no tem mais nada a ver com um smbolo indiciai, uma
marca sutilmente codificada: esse Eu no nada mais do que um Ele
em segundo grau, um Ele devolvido (como o provaria a anlise do Eu
proustiano). Como o afsico, o crtico, privado de todo pronome, no
pode mais pronunciar seno um discurso truncado; incapaz (ou
desdenhoso) de transformar o Eu em signo, no lhe resta mais que
faz-lo calar atravs de uma espcie de grau zero da pessoa. O Eu do
crtico nunca est no que ele diz, mas no que ele no diz, ou melhor,
no prprio descontnuo que marca todo discurso crtico; talvez sua
existncia seja forte demais para que ele a constitua em signo, mas
inversamente talvez ela seja tambm por demais verbal, por demais
penetrada de cultura, para que ele a deixe em estado de [pg. 24] smbolo indicial. O crtico seria aquele que no pode produzir o Ele
do romance mas que tambm no pode deixar o Eu em sua pura vida
privada, isto , renunciar; escrever: um afsico do Eu, enquanto o
resto de sua linguagem subsiste, intato, marcado entretanto pelos
infinitos desvios que impe palavra (como no caso do afsico) o
constante bloqueio de certo sinal.
Poder-se-ia mesmo levar mais longe a comparao. Se o
romancista, como a criana, decide codificar seu Eu sob a forma de
uma terceira pessoa, que esse Eu ainda no tem histria, ou que se
decidiu no lhe dar uma. Todo romance uma aurora, e por isso
que , ao que parece, a prpria forma do querer escrever. Pois assim
como, falando de si na terceira pessoa, a criana vive aquele
momento frgil em que a linguagem adulta se lhe apresenta como
uma instituio perfeita, que nenhum smbolo impuro (meio-cdigo,
meio-mensagem) vem ainda corromper ou inquietar, da mesma
forma, para encontrar os outros que o Eu do romancista vem
abrigar-se sob o Ele, isto , sob um cdigo pleno, no qual a existncia
ainda no cavalga o signo. Inversamente, na afasia do crtico com
relao ao Eu, investe-se uma sombra do passado; seu Eu muito
pesado de tempo para que ele possa renunciar a ele e d-lo ao cdigo
pleno de outrem (ser preciso lembrar que o romance proustiano s
se tornou possvel com o tempo suspenso?); por no poder abandonar
essa face muda do smbolo, o prprio smbolo, por inteiro, que o
crtico esquece, assim como o afsico que, ele tambm, no pode
destruir sua linguagem seno na medida mesma em que essa
linguagem foi. Assim, enquanto o romancista o homem que
consegue infantilizar seu Eu a ponto de faz-lo alcanar o cdigo
adulto dos outros, o crtico o homem que envelhece o seu, isto , o
encerra, o preserva e o esquece, a ponto de subtra-lo, intato e
incomunicvel, ao cdigo da literatura.
O que marca o crtico pois uma prtica secreta do indireto:
para permanecer secreto, o indireto deve aqui se abrigar sob as
prprias figuras do direto, da transitividade, do discurso sobre
outrem. De onde uma linguagem que no pode ser recebida como
ambgua, reticente, alusiva ou denegadora. O crtico como um [pg. 25] lgico que preenchesse suas funes de argumentos verdicos e pedisse entretanto, secretamente, que tenham O cuidado de s
apreciar a validade de suas equaes, no sua verdade, ao mesmo
tempo que deseja, por uma ltima silenciosa artimanha, que essa
pura validade funcione como o prprio signo de sua existncia.
Existe pois um certo engano ligado por estrutura obra crtica,
mas esse engano no pode ser denunciado na prpria linguagem
crtica, pois essa denncia constituiria uma nova forma direta, isto ,
uma mscara suplementar; para que o crculo se interrompa, para
que o crtico fale de si com exatido, seria preciso que ele se
transformasse em romancista, isto , substitusse o falso direto sob o
qual ele se abriga, por um indireto declarado como o de todas as
fices.
Eis por que, sem dvida, o romance sempre o horizonte do
crtico: o crtico aquele que vai escrever e que, semelhante ao
Narrador proustiano, preenche essa espera com uma obra de
acrscimo, que se faz ao procurar-se e cuja funo realizar seu
projeto de escrever se esquivando. O crtico um escritor, mas um
escritor em liberdade condicional; como o escritor, ele gostaria que se
acreditasse menos no que ele escreve do que na deciso que ele
tomou de escrever; mas ao contrrio do escritor, no pode assinar
esse desejo: permanece condenado ao erro verdade. [pg. 26]
LITERATURA E METALINGUAGEM
A lgica nos ensina a distinguir, de modo feliz, a linguagem-
objeto da metalinguagem. A linguagem-objeto a prpria matria que
submetida investigao lgica; a metalinguagem a linguagem
forosamente artificial pela qual se leva adiante essa investigao.
Assim e este o papel da reflexo lgica posso exprimir numa
linguagem simblica (metalinguagem) as relaes, as estruturas de
uma lngua real (linguagem-objeto).
Durante sculos nossos escritores no imaginavam que fosse
possvel considerar a literatura (a prpria palavra recente) como
uma linguagem, submetida, [pg. 27] como qualquer outra linguagem, distino lgica: a literatura nunca refletia sobre si
mesma (s vezes sobre suas figuras, mas nunca sobre seu ser),
nunca se dividia em objeto ao mesmo tempo olhante e olhado; em
suma, ela falava mas no se falava. Mais tarde, provavelmente com
os primeiros abalos da boa conscincia burguesa, a literatura
comeou a sentir-se dupla: ao mesmo tempo objeto e olhar sobre
esse objeto, fala e fala dessa fala, literatura-objeto e metaliteratura.
Eis quais foram, grosso modo, as fases desse desenvolvimento:
primeiramente uma conscincia artesanal da fabricao literria,
levada at o escrpulo doloroso, ao tormento do impossvel
(Flaubert); depois, a vontade herica de confundir numa mesma
substncia escrita a literatura e o pensamento da literatura
(Mallarm); depois, a esperana de chegar a escapar da tautologia
literria, deixando sempre, por assim dizer, a literatura para o dia
seguinte, declarando longamente que se vai escrever, e fazendo dessa
declarao a prpria literatura (Proust); em seguida, o processo da
boa-f literria multiplicando voluntariamente, sistematicamente, at
o infinito, os sentidos da palavra-objeto sem nunca se deter num
significado unvoco (surrealismo); inversamente, afinal, rarefazendo
esses sentidos a ponto de esperar obter um estar-ali da linguagem
literria, uma espcie de brancura da escritura (mas no uma
inocncia) : penso aqui na obra de Robbe-Grillet.
Todas essas tentativas permitiro talvez um dia definir nosso
sculo (entendo por isso os ltimos cem anos) como o dos: Que a
Literatura? (Sartre respondeu do exterior, o que lhe d uma posio
literria ambgua). E, precisamente, como essa interrogao levada
adiante, no do exterior, mas na prpria literatura, ou mais
exatamente na sua margem extrema, naquela zona assinttica onde
a literatura finge destruir-se como linguagem-objeto sem se destruir
como metalinguagem, e onde a procura de uma metalinguagem se
define em ltima instncia como uma nova linguagem-objeto, da
decorre que nossa literatura h vinte anos um jogo perigoso com
sua prpria morte, isto , um modo de viv-la: ela como aquela
herona Taciniana que morre de se conhecer mas vive de se procurar
(Eriphile em Iphignie). Ora, isso define um estatuto propriamente
trgico: nossa sociedade, fechada por enquanto [pg. 28] numa espcie de impasse histrico, s permite sua literatura a pergunta
edipiana por excelncia: quem sou eu? Ela lhe probe, pelo mesmo
movimento, a pergunta dialtica: que fazer? A. verdade de nossa
literatura no da ordem do fazer, j no mais da ordem da
natureza: ela uma mscara que se aponta com o dedo. [pg. 29]
ESCRITORES E ESCREVENTES
Quem fala? Quem escreve? Falta-nos ainda uma sociologia da
palavra. O que sabemos que a palavra um poder e que, entre a
corporao e a classe social, um grupo de homens se define
razoavelmente bem pelo seguinte: ele detm, em diversos graus, a
linguagem da nao. Ora, durante muito tempo, provavelmente
durante toda a era capitalista clssica, isto , do sculo XVI ao XIX,
na Frana, os proprietrios incontestveis da linguagem eram os
escritores e somente eles; com exceo dos pregadores e dos juristas,
fechados alis em suas linguagens funcionais, ningum mais falava;
e essa espcie de monoplio da linguagem produzia [pg. 31] curiosamente uma ordem rgida, menos dos produtores do que da
produo: o que era estruturado no era a profisso literria (ela
evoluiu muito durante trs sculos, do poeta empregado ao escritor-
homem de negcios), era a prpria matria desse discurso literrio,
submetido a regras de emprego, de gnero e de composio, mais ou
menos imutvel de Marot a Verlaine, de Montaigne a Gide (foi a
lngua que mudou, no o discurso). Contrariamente s sociedades
ditas primitivas, nas quais s h feitiaria atravs do feiticeiro, como
mostrou Mauss, a instituio literria transcendia de muito s
funes literrias, e nessa instituio, seu material essencial, a
palavra. Institucionalmente a literatura da Frana sua linguagem,
sistema meio lingstico, meio esttico, ao qual nem ao menos faltou
uma dimenso mtica, a da clareza.
Desde quando, em Frana, o escritor no mais o nico a falar?
Sem dvida desde a Revoluo; v-se ento aparecer (eu me
assegurava disso lendo um desses dias um texto de Barnave1)
1 Barnave, Introduction la Rvolution Franaise. Texto apresentado por F. Rude, Cahiers des Annales, nv 15, Armand Colin, 1960.
homens que se apropriam da lngua dos escritores com fins polticos.
A instituio permanece no lugar: trata-se sempre dessa grande
lngua francesa, cujo lxico e eufonia so respeitosamente
preservados atravs da maior sacudida da histria da Frana; mas
as funes mudam, o pessoal vai aumentando ao longo do sculo; os
prprios escritores, de Chateaubriand ou Maistre, a Hugo ou a Zola
contribuem a alargar a funo literria, a fazer dessa palavra
institucionalizada da qual so ainda os proprietrios reconhecidos, o
instrumento de uma nova ao; e ao lado dos escritores
propriamente ditos, constitui-se e desenvolve-se um novo grupo,
detentor da linguagem pblica. Intelectuais? A palavra de
ressonncia completa2; prefiro cham-los aqui de escreventes. E
como estamos talvez hoje naquele momento frgil da histria em que
as duas funes coexistem, uma tipologia comparada do escritor e
do escrevente que eu gostaria de esboar, disposto a reter para essa
comparao apenas uma referncia: a do material que eles tm em
comum, a palavra. [pg. 32]
O escritor realiza uma funo, o escrevente uma atividade, eis o
que a gramtica j nos ensina ao opor justamente o substantivo de
um ao verbo (transitivo) do outros3. No que o escritor seja uma pura
essncia: ele age, mas sua ao imanente ao objeto, ela se exerce
paradoxalmente sobre seu prprio instrumento: a linguagem; o
escritor aquele que trabalha sua palavra (mesmo se inspirado) e
se absorve funcionalmente nesse trabalho. A atividade do escritor
comporta dois tipos de normas: normas tcnicas (de composio, de
gnero, de escritura) e normas artesanais (de lavor, de pacincia, de
correo, de perfeio). O paradoxo que como o material se torna
de certa forma seu prprio fim, a literatura no fundo uma atividade
tautolgica, como a daquelas mquinas cibernticas construdas por
2 Diz-se que, no sentido em que o entendemos hoje, o substantivo intellectuel nasceu no momento do caso Dreyfus, aplicado evidentemente pelos, adversrios de Dreyfus a seus partidrios. 3 Na origem, o escritor aquele que escreve no lugar dos outros. O sentido atual (autor de livros) data do
elas mesmas (o homeostado de Ashby): o escritor um homem que
absorve radicalmente o porqu do mundo num como escrever. E o
milagre, se se pode dizer, que essa atividade narcisista no cessa
de provocar, ao longo de uma literatura secular, uma interrogao ao
mundo: fechando-se no como escrever, o escritor acaba por
reencontrar a pergunta aberta por excelncia: por que o mundo?
Qual o sentido das coisas? Em suma, no prprio momento em
que o trabalho do escritor se torna seu prprio fim que ele
reencontra um carter mediador: o escritor concebe a literatura
como fim, o mundo lha devolve como meio; e nessa decepo
infinita que o escritor reencontra o mundo, um mundo estranho,
alis, j que a literatura o representa como uma pergunta, nunca,
definitivamente, como uma resposta.
A palavra no nem um instrumento, nem um veculo: uma
estrutura, e cada vez mais nos damos conta disso; mas o escritor o
nico, por definio, a perder sua prpria estrutura e a do mundo na
estrutura da palavra. Ora, essa palavra uma matria
(infinitamente) trabalhada; ela , de certa forma, uma sobre-palavra,
o real lhe serve apenas de pretexto (para o escritor, escrever um
verbo intransitivo); disso decorre que ela nunca possa explicar o
mundo, ou pelo menos, quando ela finge explic-lo somente para
aumentar sua ambigidade: a explicao fixada numa [pg. 33] obra (trabalhada), toma-se imediatamente um produto ambguo do real,
ao qual ela est ligada com distncia; em suma, a literatura sempre
irrealista, mas esse mesmo irrealismo que lhe permite
freqentemente fazer boas perguntas ao mundo sem que essas
perguntas possam jamais ser diretas: tendo partido de uma
explicao teocrtica do mundo, Balzac finalmente no fez outra
coisa seno interrog-lo. Da decorre o fato de o escritor proibir-se
existencialmente dois modos de palavra, qualquer que seja a
sculo XVI.
inteligncia ou a sinceridade de sua empresa: primeiramente a
doutrina, j que ele converte, mesmo sua revelia, por seu prprio
projeto, toda explicao em espetculo: ele nunca mais que um
indutor de ambigidade4; em seguida, o testemunho: j que ele se deu
palavra, o escritor no pode ter uma conscincia ingnua: no se
pode trabalhar um grito sem que a mensagem se refira finalmente
muito mais ao trabalho do que ao grito: identificando-se a uma
palavra, o escritor perde todo direito de apreenso da verdade, pois a
linguagem precisamente aquela estrutura cujo prprio fim (pelo
menos historicamente, desde o Sofisma), quando ela no mais
rigorosamente transitiva, de neutralizar o verdadeiro e o falso5. Mas
o que ele ganha, evidentemente, o poder de abalar o mundo,
dando-lhe o espetculo vertiginoso de uma praxis sem sano. Eis
por que irrisrio pedir a um escritor que engaje sua obra: um
escritor que se engaja pretende jogar simultaneamente com duas
estruturas, e no pode faz-lo sem trapacear, sem recorrer quele
torniquete astucioso que fazia de Mestre Jacques ora cozinheiro, ora
cocheiro, mas nunca os dois ao mesmo tempo (intil voltar uma vez
mais a todos os exemplos de grandes escritores desengajados ou
mal engajados, e de grandes engajados maus escritores). O que se
pode pedir ao escritor que seja responsvel; e mesmo assim,
preciso entender: que o escritor seja responsvel por suas opinies
insignificante; [pg. 34] que ele assuma mais ou menos inteligentemente as implicaes ideolgicas de sua obra, mesmo isso
secundrio; para o escritor, a verdadeira responsabilidade a de
suportar a literatura como um engajamento fracassado, como um
olhar mosaico sobre a Terra Prometida do real ( a responsabilidade
4 Um escritor pode produzir um sistema, mas que nunca ser consumado como tal. Considero Fourier um grande escritor, na proporo do espetculo prodigioso que me d sua descrio do mundo. 5 Estrutura do real e estrutura da linguagem: nada alerta melhor para a dificuldade da coincidncia do que o permanente malogro da dialtica, quando ela se torna discurso: pois a linguagem no dialtica: a dialtica falada um voto piedoso; a linguagem no pode dizer mais do que: preciso ser dialtico, mas no o pode ser ela mesma: a linguagem uma representao sem perspectiva, exceto, precisamente, a linguagem do escritor; mas o escritor se dialetiza, no dialetiza o mundo.
de Kafka, por exemplo).
Naturalmente, a literatura no uma graa, o corpo dos
projetos e das decises que levam um homem a se realizar (isto , de
certo modo, a se essencializar) somente na palavra: escritor aquele
que quer ser. Naturalmente tambm, a sociedade, que consome o
escritor, transforma o projeto em vocao, o trabalho da linguagem
em dom de escrever, e a tcnica em arte: assim que nasceu o mito
do bem-escrever: o escritor um sacerdote assalariado, o guardio,
meio respeitvel, meio irrisrio, do santurio da grande Palavra
francesa, uma espcie de Bem nacional, mercadoria sagrada,
produzida, ensinada, consumida e exportada no quadro de uma
economia sublime de valores. Essa sacralizaco do trabalho do
escritor sobre sua forma tem grandes conseqncias, que no so
formais: ela permite (boa) sociedade distanciar o contedo da
prpria obra, quando esse contedo corre o risco de a perturbar,
convert-lo em puro espetculo, ao qual ela tem o direito de aplicar
um julgamento liberal (isto , indiferente), neutralizar a revolta das
paixes, a subverso das crticas (o que obriga o escritor engajado a
uma provocao incessante e impotente), em sntese, recuperar o
escritor: no h nenhum escritor que no seja um dia digerido pelas
instituies literrias, salvo se ele se puser a pique, isto , salvo se
ele cessar de confundir seu ser com o da palavra: eis por que to
poucos escritores renunciam a escrever, pois isso significa
literalmente matar-se, morrer para o ser que escolheram; e se esses
escritores existem, seu silncio ressoa como uma converso
inexplicvel (Rimbaud)6.
Os escreventes, por sua vez, so homens transitivos; eles
colocam um fim (testemunhar, explicar, ensinar) para o qual a
palavra apenas um meio; para eles, a palavra suporta um fazer, ela
no o constitui. Eis pois a linguagem reduzida natureza de um
6 So esses dados modernos do problema. Sabe-se que, pelo contrrio, os contemporneos de Racine no
instrumento de [pg. 35] comunicao, de um veculo do pensamento. Mesmo se o escrevente concede alguma ateno
escritura, esse cuidado nunca ontolgico: no preocupao. O
escrevente no exerce nenhuma ao tcnica essencial sobre a
palavra; dispe de uma escritura comum a todos os escreventes,
uma espcie de koin, na qual se pode, verdade, distinguir dialetos
(por exemplo, marxista, cristo, existencialista), mas muito
raramente estilos. Pois o que define o escrevente que seu projeto de
comunicao ingnuo: ele no admite que sua mensagem se volte e
se feche sobre si mesma, e que se possa ler nela, de um modo
diacrtico, outra coisa alm do que ela quer dizer: qual escrevente
suportaria que se psicanalisasse sua escritura? Ele considera que
sua palavra pe termo a uma ambigidade do mundo, institui uma
explicao irreversvel (mesmo se ele admite que ela seja provisria),
ou uma informao incontestvel (mesmo se ele se considera um
modesto ensinante); enquanto para o escritor, como vimos,
exatamente o contrrio: ele sabe perfeitamente que sua palavra, in-
transitiva por escolha e por lavor, inaugura uma ambigidade,
mesmo se ela se d como peremptria, que ela se oferece
paradoxalmente como um silncio monumental a decifrar, que ela
no pode ter outra divisa seno as palavras profundas de Jacques
Rigaut: E mesmo quando afirmo, interrogo ainda.
O escritor tem algo de sacerdote, o escrevente de clrigo; a
palavra de um um ato intransitivo (portanto, de certo modo, um
gesto), a palavra do outro uma atividade. O paradoxo que a
sociedade consome com muito mais reserva uma palavra transitiva
do que uma palavra intransitiva: o estatuto do escrevente, mesmo
hoje quando os escreventes abundam, muito mais embaraoso do
que o do escritor. Isto decorre primeiramente de um dado material: a
palavra do escritor uma mercadoria entregue segundo circuitos
se espantaram nada ao v-lo parar bruscamente de escrever tragdias para tornar-se funcionrio real.
seculares, ela o nico objeto de uma instituio que existe apenas
para ela, a literatura; a palavra do escrevente, ao contrrio, no pode
ser produzida e consumida seno sombra de instituies que tm,
na origem, uma funo bem diversa da de fazer valer a linguagem: a
Universidade e, acessoriamente, a Pesquisa, a Poltica etc. E depois,
a palavra do escrevente est em falso de outro modo: pelo fato de no
ser (ou no se acreditar) mais [pg. 36] do que um simples veculo, sua natureza mercantil remetida ao projeto do qual ela
instrumento: espera-se que vendam o pensamento, fora de toda arte;
ora, o principal atributo mtico do pensamento puro (seria melhor
dizer inaplicado) precisamente o de ser produzido fora do circuito
do dinheiro: contrariamente forma (que custa caro, dizia Valry), o
pensamento no custa nada, mas tambm ele no se vende, ele se d
generosamente. Isso acusa pelo menos duas novas diferenas entre o
escritor e o escrevente. Primeiramente, a produo do escrevente tem
sempre um carter livre, mas tambm um pouco insistente: o
escrevente prope sociedade o que a sociedade nem sempre lhe
pede: situada margem das instituies e das transaes, sua
palavra aparece paradoxalmente bem mais individual, pelo menos
em seus motivos, do que a do escritor: a funo do escrevente dizer
em toda ocasio e sem demora o que ele pensa7; e basta, acredita ele,
para justific-lo; de onde o carter crtico, urgente, da palavra
escrevente: ela parece sempre assinalar um conflito entre o carter
irrepressvel do pensamento e a inrcia de uma sociedade que reluta
em consumir uma mercadoria que nenhuma instituio especfica
vem normalizar. V-se assim, a contrario , e a segunda diferena
que a funo social da palavra literria (a do escritor),
precisamente de transformar o pensamento (ou a conscincia, ou o
grito) em mercadoria; a sociedade trava uma espcie de combate vital
7 Essa funo de manifestao imediata exatamente o contrrio da do escritor: 1 o escritor faz proviso, publica num ritmo que no o de sua conscincia; 2 ele mediatiza o que pensa atravs de uma forma laboriosa e regular; 3 ele se oferece a uma interrogao livre sobre sua obra, o contrrio de um dogmtico.
para apropriar-se, aclimatar, institucionalizar o acaso do
pensamento, e a linguagem, modelo das instituies, que lhe d os
meios: o paradoxo que aqui uma palavra provocante cai sem
dificuldade sob o corte da instituio literria: os escndalos da
linguagem, de Rimbaud a Ionesco, so rpida e perfeitamente
integrados; e um pensamento provocante, na medida em que o
queremos imediato (sem mediao), s pode extenuar-se num no
mans land da forma: nunca h escndalo completo.
Descrevo aqui uma contradio que, de fato, raramente pura:
cada um hoje se move mais ou menos [pg. 37] abertamente entre as duas postulaes, a do escritor e a do escrevente; a histria, sem
dvida, o quer assim, pois ela nos fez nascer tarde demais para
sermos escritores soberbos (de boa conscincia) e cedo demais (?)
para sermos escreventes escutados. Hoje, cada participante da
intelligentsia tem em si os dois papis, encaixando-se mais ou menos
bem num ou noutro: os escritores tm bruscamente
comportamentos, impacincias de escreventes; os escreventes se
alam por vezes at o teatro da linguagem. Queremos escrever
alguma coisa, e ao mesmo tempo, escrevemos s. Em suma, nossa
poca daria luz um tipo bastardo: o escritor-escrevente. Sua funo
ela mesma s pode ser paradoxal: ele provoca e conjura ao mesmo
tempo; formalmente, sua palavra livre, subtrada instituio da
linguagem literria, e entretanto, fechada nessa mesma liberdade,
ela secreta suas prprias regras, sob forma de uma escritura
comum; sado do clube dos homens de letras, o escritor-escrevente
encontra um outro clube, o da intelligentsia. Na escala da sociedade
inteira, esse novo agrupamento tem uma funo complementar: a
escritura do intelectual funciona como o signo paradoxal de uma
no-linguagem, permite sociedade viver o sonho de uma comu-
nicao sem sistema (sem instituio): escrever sem escrever,
comunicar pensamento puro sem que esta comunicao desenvolva
nenhuma mensagem parasita, eis o modelo que o escritor-escrevente
realiza para a sociedade. um modelo ao mesmo tempo distante e
necessrio, com o qual a sociedade brinca um pouco de gato e rato:
ela reconhece o escritor-escrevente comprando (um pouco) suas
obras, admitindo seu carter pblico; e ao mesmo tempo ela o
mantm distncia, obrigando-o a tomar apoio sobre instituies
anexas que ela controla (a Universidade, por exemplo), acusando-o
constantemente de intelectualismo, isto , miticamente, de esteri-
lidade (censura nunca recebida pelo escritor). Em resumo, de um
ponto de vista antropolgico, o escritor-escrevente um excludo
integrado por sua prpria excluso, um herdeiro longnquo do
Maldito: sua funo na sociedade global no est talvez muito longe
daquela que Claude Lvi-Strauss atribui ao Feiticeiro8: funo de [pg. 38] complementaridade, j que o feiticeiro e o intelectual lixam de certo modo uma doena necessria economia coletiva da sade.
E naturalmente, no espantoso que tal conflito (tal contrato, se se
quiser) se trave no nvel da linguagem; pois a linguagem este
paradoxo: a institucionalizao da subjetividade. [pg. 39]
8 Introduo obra de Mauss, em Mauss: Sociologie et Anthropologie, P. U. F.
A IMAGINAO DO SIGNO
Todo signo inclui ou implica trs relaes. Primeiramente uma
relao interior, a que une seu significante a seu significado; em
seguida, duas relaes exteriores: a primeira virtual, ela une o
signo a uma reserva especfica de outros signos, da qual o
destacamos para inseri-lo no discurso; a segunda atual, junta o
signo aos outros signos do enunciado que o precedem ou lhe
sucedem. O primeiro tipo de relao aparece claramente no que se
chama geralmente de smbolo; por exemplo, a cruz simboliza o
cristianismo, o muro dos Federados simboliza a Comuna, o
vermelho simboliza a proibio de passar; chamaremos pois essa
primeira [pg. 41] relao de relao simblica, se bem que a en-contremos no s nos smbolos, mas tambm nos signos (que so,
por assim dizer, smbolos puramente convencionais). O segundo
plano de relao implica a existncia, para cada signo, de uma
reserva ou memria organizada de formas das quais ele se
distingue graas menor diferena necessria e suficiente para
operar uma mudana de sentido; em lupum, o elemento um (que
um signo, e mais precisamente um morfema) s revela seu sentido de
acusativo na medida em que ele se ope ao resto (virtual) da
declinao (us, i, o etc.); o vermelho s significa interdio na
medida em que se ope sistematicamente ao verde e ao amarelo (
bvio que, se no houvesse nenhuma outra cor alm do vermelho, o
vermelho ainda se oporia ausncia de cor); esse plano de relao
pois o do sistema, s vezes chamado de paradigma; chamaremos
pois esse segundo tipo de relao de relao paradigmtica. Segundo
o terceiro plano de relao, o signo no se situa mais com relao a
seus irmos (virtuais), mas com relao a seus vizinhos (atuais);
em homo homini lpus, lpus mantm certas relaes com homo e
homini; na vestimenta, os elementos de uma roupa so associados
segundo certas regras: vestir um suter e um palet de couro criar
entre essas duas peas uma associao passageira mas significativa,
anloga que une as palavras de uma frase; esse plano de
associao o plano do sintagma, e chamaremos a terceira relao
de relao sintagmtica.
Ora, parece que quando nos interessamos pelo fenmeno
significante (e esse interesse pode vir de horizontes bem diversos),
somos irresistivelmente levados a centrar esse interesse sobre uma
dessas trs relaes mais do que sobre as duas outras; ora v-se o
signo sob seu aspecto simblico, ora sob seu aspecto sistemtico, ora
sob seu aspecto sintagmtico; s vezes por ignorncia pura e
simples das relaes vizinhas: o simbolismo foi por muito tempo cego
s relaes formais do signo; mas mesmo quando as trs relaes
foram indicadas (em lingstica, por exemplo) cada um (ou cada
escola) tende a fundar sua anlise sobre somente uma das
dimenses do signo: existe o transbordamento de uma viso sobre o
conjunto do fenmeno significante, de sorte que se pode falar, ao que
parece, de conscincias [pg. 42] semiolgicas diferentes (trata-se, est claro, da conscincia do analista, no da do usurio do signo).
Ora, por um lado, a escolha de uma relao dominante implica cada
vez uma certa ideologia; e por outro lado, dir-se-ia que a cada
conscincia do signo (simblica, paradigmtica e sintagmtica) ou
pelo menos quanto primeira de um lado e s duas ltimas do
outro, corresponde um certo momento da reflexo, quer individual,
quer coletiva: o estruturalismo, em particular, pode ser definido
historicamente como a passagem da conscincia simblica
conscincia paradigmtica; existe uma histria dos signos, que a
histria de suas conscincias.
A conscincia simblica v o signo em sua dimenso profunda,
poder-se-ia quase dizer: geolgica, j que a seus olhos a
superposio do significado e do significante que constitui o smbolo;
existe a conscincia de uma espcie de relao vertical entre a cruz e
o cristianismo: o cristianismo est sob a cruz, como uma massa
profunda de crenas, de valores e de prticas mais ou menos
disciplinadas ao nvel de sua forma. A verticalidade da relao traz
duas conseqncias: por um lado, a relao vertical tende a parecer
solitria: o smbolo parece manter-se de p no mundo, e mesmo
quando se afirma que ele abunda, sob a forma de uma floresta,
isto , de uma justaposio anrquica de relaes profundas que no
se comunicariam, por assim dizer, seno por suas razes (os
significados); e, por outro lado, essa relao vertical aparece
forosamente como uma relao analgica: a forma se parece (mais
ou menos, mas sempre um pouco) com o contedo, como se ela fosse
em suma produzida por ele, de modo que a conscincia simblica
recobre talvez por vezes um determinismo mal liquidado: existe pois
o privilgio macio da semelhana (mesmo quando se sublinha o
carter inadequado do signo). A conscincia simblica dominou a
sociologia dos smbolos e, est claro, uma parte da psicanlise
nascente, embora o prprio Freud tenha reconhecido o carter
inexplicvel (no analgico) de certos smbolos; alis a poca em
que reina a prpria palavra smbolo; durante todo esse tempo, o
smbolo dispe de um prestgio mtico, o da riqueza: o smbolo
rico, eis por que, dizem, no se pode reduzi-lo a um simples signo
[pg. 43] (pode-se hoje duvidar da simplicidade do signo): a forma nele incessantemente transbordada pelo poder e o movimento do
contedo; que de fato, para a conscincia simblica, o smbolo
muito menos uma forma (codificada) de comunicao do que um
instrumento (afetivo) de participao. A palavra smbolo agora
envelheceu um pouco; substituem-na de bom grado por signo ou
significao. Esse deslizamento terminolgico traduz um certo
desmoronamento da conscincia simblica, principalmente no que
concerne ao carter analgico do significante e do significado; essa
conscincia permanece entretanto tpica enquanto o olhar analtico
no se interessa (quer as ignore, quer as conteste) pelas relaes
formais dos signos entre si, pois a conscincia simblica
essencialmente recusa da forma; no signo, o significado que
interessa: o significante nunca para ela mais do que um
determinado.
Desde que se comparam as formas de dois signos, ou, pelo
menos, desde que as percebemos de uma maneira algo comparativa,
aparece uma certa conscincia paradigmtica; mesmo no nvel do
smbolo clssico, que o menos desligado dos signos, se a ocasio se
oferece de perceber a variao de duas formas simblicas, as outras
dimenses do signo se descobrem repentinamente; tal , por
exemplo, o caso da oposio entre Cruz Vermelha e Crescente
Vermelho: por um lado, Cruz e Crescente cessam de manter uma
relao solitria com seu respectivo significado (cristianismo e
islamismo), so presos num sintagma estereotipado; e por outro
lado, formam entre si um jogo de termos distintivos, cada um dos
quais corresponde a um significado diferente: nasceu o paradigma. A
conscincia paradigmtica define pois o sentido, no como o simples
encontro de um significante e um significado, mas, segundo a bela
expresso de Merleau-Ponty, como uma verdadeira modulao de
coexistncia, ela substitui a relao bilateral da conscincia
simblica (mesmo se essa relao multiplicada), por uma relao
(pelo menos) quadrilateral, ou mais exatamente, homolgica. Foi a
conscincia paradigmtica que permitiu a Claude Lvi-Strauss (entre
outros resultados) renovar o problema totmico: enquanto a
conscincia simblica procura em vo os caracteres plenos mais ou
menos analgicos, que unem um significante (o totem) a um
significado (o [pg. 44] cl), a conscincia paradigmtica estabelece uma homologia (a expresso de Claude Lvi-Strauss) entre a
relao de dois totens e a de dois cls (no se discute aqui a questo
de saber se o paradigma forosamente binrio). Naturalmente,
retendo do significado apenas seu papel demonstrativo (ele designa o
significante e permite marcar os termos da oposio), a conscincia
paradigmtica tende a esvazi-lo: mas ela no esvazia por isso a
significao. Foi evidentemente a conscincia paradigmtica que
permitiu (ou exprimiu) o extraordinrio desenvolvimento da
fonologia, cincia dos paradigmas exemplares (marcado/no-
marcado); ela que, atravs da obra de Claude Lvi-Strauss, define o
limiar estruturalista.
A conscincia sintagmtica conscincia das relaes que unem
os signos entre si no nvel do prprio discurso, isto ,
essencialmente, constrangimentos, tolerncias e liberdades de
associao do signo. Essa conscincia marcou os trabalhos
lingsticos da escola de Yale, e, fora da lingstica, as pesquisas da
escola formalista russa, principalmente as de Propp no domnio do
conto popular eslavo (por isso se pode admitir que ela esclarea um
dia a anlise das grandes narrativas contemporneas, da notcia de
jornal ao romance popular). Mas no sem dvida a nica
orientao da conscincia sintagmtica; das trs conscincias,
indiscutivelmente a que dispensa melhor o significado; mais uma
conscincia estrutural do que uma conscincia semntica; eis por
que, sem dvida, ela se aproxima mais da prtica: ela que melhor
permite imaginar conjuntos operacionais, dispatchings, classificaes
complexas: a conscincia paradigmtica permitiu a volta fecunda do
decimalismo ao binarismo; mas a conscincia sintagmtica que
permite verdadeiramente conceber os programas cibernticos,
assim como permitiu a Propp e a Lvi-Strauss reconstruir as sries
mticas.
Talvez um dia se possa retomar a descrio dessas conscincias
semnticas, tentar lig-las a uma histria; talvez um dia se possa
fazer a semiologia dos semilogos, a anlise estrutural dos
estruturalistas. O que se queria dizer simplesmente aqui que h
provavelmente uma verdadeira imaginao do signo; o signo no
somente [pg. 45] o objeto de um conhecimento particular, mas tambm o objeto de uma viso, anloga das esferas celestes no
Sonho de Cipio, ou ainda prxima das representaes moleculares
de que se servem os qumicos; o semilogo v o signo mover-se no
campo da significao, enumera suas valncias, traa sua
configurao: o signo para ele uma idia sensvel. Para as trs
conscincias (ainda passavelmente tcnicas) de que acabamos de
tratar, preciso pois supor um alargamento em direo de tipos de
imaginao muito mais amplos, que se poderiam reencontrar
mobilizados em objetos bem diversos do signo.
A conscincia simblica implica uma imaginao de
profundidade; ela vive o mundo como a relao de uma forma
superficial e de um Abgrund multiforme, macio, poderoso, e a
imagem se coroa com uma dinmica muito forte: a relao da forma
e do contedo constantemente relanada pelo tempo (a histria), a
superestrutura transbordada pela infra-estrutura, sem que se possa
jamais agarrar a prpria estrutura. A conscincia paradigmtica,
pelo contrrio, uma imaginao formal; ela v o significante ligado,
como que de perfil, a alguns significantes virtuais dos quais ele est
ao mesmo tempo prximo e distinto; ela no v mais (ou v menos) o
signo em sua profundidade, ela o v em sua perspectiva; assim a
dinmica que est ligada a essa viso a de um chamado: o signo
citado fora de uma reserva finita, ordenada, e esse chamado o ato
soberano da significao: imaginao de agrimensor, de gemetra, de
proprietrio do mundo, que a est vontade, j que o homem, para
significar, s tem de escolher no que lhe apresentado j
estruturado, quer por seu crebro (na hiptese binarista), quer pela
finidade material das formas. A imaginao sintagmtica no v mais
(ou v menos) o signo em sua perspectiva, ela o prev em sua
extenso: suas ligaes antecedentes ou conseqentes, as pontes
que ele lana em direo a outros signos; trata-se de uma
imaginao estemtica, a da cadeia ou da rede; assim a dinmica
da imagem aqui a do arranjo de partes mveis, substitutivas, cuja
combinao produz sentido, ou mais geralmente um objeto novo;
trata-se pois de uma imaginao propriamente fabricativa, ou ainda
funcional (a palavra felizmente [pg. 46] ambgua j que remete ao mesmo tempo idia de uma relao varivel e de um uso).
Tais so (talvez) as trs imaginaes do signo. Pode-se, sem
dvida, ligar a cada uma delas um certo nmero de criaes
diferentes, nas mais variadas ordens, pois nada do que construdo
hoje no mundo escapa ao sentido. Para ficar na ordem da criao
intelectual (recente), dentre as obras de imaginao profunda
(simblica), poderamos citar a crtica biogrfica ou histrica, a
sociologia das vises, o romance realista ou introspectivo, e, de um
modo geral, as artes ou as linguagens expressivas, postulando um
significado soberano, extrado quer de uma interioridade, quer de
uma histria. A imaginao formal (ou paradigmtica) implica uma
ateno aguda variao de alguns elementos recorrentes; ligaremos
pois a esse tipo de imaginao o sonho e as narrativas onricas, as
obras fortemente temticas ou aquelas cuja esttica implica o jogo de
certas comutaes (os romances de Robbe-Grillet, por exemplo). A
imaginao funcional (ou sintagmtica) alimenta afinal todas as
obras cuja fabricao, por arranjo de elementos descontnuos e
mveis, constitui o prprio espetculo: a poesia, o teatro pico, a
msica serial e as composies estruturais, de Mondrian a Butor.
[pg. 47]
A ATIVIDADE ESTRUTURALISTA
O que o estruturalismo? No uma escola nem mesmo um
movimento (pelo menos por enquanto), pois maior parte dos
autores que se associam geralmente a essa palavra no se sentem de
modo algum ligados entre eles por uma solidariedade de doutrina ou
de combate. apenas um lxico: estrutura um termo j antigo (de
origem anatomista e gramatical1), hoje muito gasto: todas as cincias
sociais a ele recorrem abundantemente e o uso da palavra no pode
distinguir ningum, salvo se se polemizar acerca do contedo que se
lhe d; junes, formas, signos e significaes no so mais
pertinentes; [pg. 49] so hoje palavras de emprego comum, s quais se pede e das quais se obtm tudo o que se quiser, principalmente
camuflar o velho esquema determinista de causa e produto;
preciso, sem dvida, chegar a duplas como significante-significado e
sincronia-diacronia, para nos aproximar do que distingue o
estruturalismo de outros modos de pensamento; a primeira, porque
nos remete ao modelo lingstico, de origem saussuriana, e que ao
lado da economia a lingstica , no estado atual das coisas, a
prpria cincia da estrutura; a segunda, de modo mais decisivo,
porque parece implicar uma certa reviso da noo de histria, na
medida em que a idia de sincronia (embora em Saussure este seja
um conceito sobretudo operatrio) acredita uma certa imobilizao
do tempo, e em que a de diacronia tende a representar o processo
histrico como uma pura sucesso de formas; essa ltima dupla
particularmente distintiva porquanto parece que a principal
resistncia ao estruturalismo de origem marxista, e que em torno
da noo de histria (e no de estrutura) que ela se trava; de
qualquer forma, provavelmente o recurso srio ao lxico da
significao (e no palavra ela mesma que, paradoxalmente, no
1 Sens et usages du terme Structure, Mouton & Co-, La Haye, 1962.
nada distintiva), no qual preciso ver, em definitivo, o signo falado
do estruturalismo: vigiem quem emprega significante e significado,
sincronia e diacronia, e sabero se a viso estruturalista est
constituda.
Isso vlido para a metalinguagem intelectual, que usa
explicitamente conceitos metodolgicos. Mas, no sendo o
estruturalismo nem uma escola nem um movimento, no h razo de
o reduzir a priori, mesmo de modo problemtico, ao pensamento
erudito, e prefervel buscar sua descrio mais larga (seno a
definio) num outro nvel que no o da linguagem reflexiva. Pode-se,
com efeito, presumir que existem escritores, pintores, msicos, aos
olhos dos quais um certo exerccio da estrutura (e no mais somente
seu pensamento) representa uma experincia distintiva, e que
preciso colocar analistas e criadores sob o signo comum do que se
poderia chamar de homem estrutural, definido no por suas idias ou
suas linguagens, mas por sua imaginao, ou melhor ainda, seu
imaginrio, isto , o modo como ele vive mentalmente a estrutura. [pg. 50]
Diremos, pois, imediatamente, que com relao a todos os seus
usurios o estruturalismo essencialmente uma atividade, isto , a
sucesso articulada de certo nmero de operaes mentais:
poderamos falar de atividade estruturalista como se falou de
atividade surrealista (o surrealismo foi talvez, alis, a primeira
experincia de literatura estrutural, ser preciso voltar a isso algum
dia). Mas, antes de ver quais so essas operaes, preciso dizer
uma palavra sobre o seu fim.
O objetivo de toda atividade estruturalista, seja ela reflexiva ou
potica, reconstituir um objeto, de modo a manifestar nessa
reconstituio as regras de funcionamento (as funes) desse
objeto. A estrutura pois, de fato, um simulacro do objeto, mas um
simulacro dirigido, interessado, j que o objeto imitado faz aparecer
algo que permanecia invisvel, ou, se se preferir, ininteligvel no
objeto natural. O homem estrutural toma o real, decompe-no,
depois o recompe; em aparncia bem pouca coisa (o que faz com
que certas pessoas digam que o trabalho estruturalista
insignificante, desinteressante, intil etc.). Entretanto, de outro
ponto de vista, essa pouca coisa decisiva; pois entre os dois
objetos, ou os dois tempos da atividade estruturalista, produz-se algo
novo, e esse algo novo no nada menos que o inteligvel geral: o
simulacro o intelecto acrescentado ao objeto, e essa adio tem um
valor antropolgico, pelo fato de ela ser o prprio homem, sua
histria, sua situao, sua liberdade e a prpria resistncia que a
natureza ope a seu esprito.
V-se, pois, por que necessrio falar de atividade
estruturalista: a criao ou a reflexo no so aqui impresso
original do mundo, mas fabricao verdadeira de um mundo que se
assemelha ao primeiro, no para copi-lo mas para o tornar
inteligvel. Eis por que se pode dizer que o estruturalismo
essencialmente uma atividade de imitao, e nesse ponto que no
h, a bem dizer, nenhuma diferena tcnica entre o estruturalismo
cientfico erudito de um lado e a literatura em particular, a arte em
geral, de outro lado: ambos vm de uma mimesis, fundada no sobre
a analogia das substncias (como na arte dita realista), mas sobre a
das funes (que Lvi-Strauss chama de homologia). Quando
Troubetskoy reconstri o objeto fontico sob a forma de um sistema
de variaes, quando Georges. [pg. 51] Dumzil elabora uma mitologia funcional, quando Propp constri um conto popular sado
por estruturao de todos os contos eslavos que ele decompe de
antemo, quando Claude Lvi-Strauss reencontra o funcionamento
homolgico do imaginrio totmico, G.-G. Granger, as regras formais
do pensamento econmico ou J.-C. Gardin, os traos pertinentes dos
bronzes pr-histricos, quando J.-P. Richard decompe o poema
mallarmeano em suas vibraes distintivas, nada mais fazem do que
fazem Mondrian, Boulez ou Butor quando arranjam certo objeto, que
se chamar precisamente composio, atravs da manifestao
regulada de certas unidades e de certas associaes dessas
unidades. Que o primeiro objeto submetido atividade de simulacro
seja dado pelo mundo de um modo j reunido (no caso da anlise
estrutural que se exerce sobre uma lngua, uma sociedade ou uma
obra constitudas) ou ainda de um modo esparso (no caso da
composio estrutural), que esse objeto primeiro seja tomado no
real social ou no real imaginrio, isto pouco importa: no a
natureza do objeto copiado que define uma arte (preconceito en-
tretanto tenaz de todos os realismos), o que o homem lhe
acrescenta ao reconstru-lo: a tcnica o prprio ser de toda criao.
pois na medida em que os fins da atividade estruturalista esto
indissoluvelmente ligados a uma certa tcnica, que o estruturalismo
existe de um modo distintivo com relao a outros modos de anlise
ou de criao: recompe-se o objeto para fazer aparecer funes, e ,
por assim dizer, o caminho que faz a obra; por isso que se deve
falar de atividade, de preferncia a obra estruturalista.
A atividade estruturalista comporta duas operaes tpicas:
desmontagem e arranjo. Desmontar o primeiro objeto, o que dado
atividade de simulacro, encontrar nele fragmentos mveis cuja
situao diferencial gera certo sentido; o fragmento no tem sentido
em si, mas , entretanto, tal que a menor variao trazida a sua
configurao produz uma mudana do conjunto; um quadrado de
Mondrian, uma srie de Pousseur, um versculo do Mobile de Butor, o
mitema em Lvi-Strauss, o fonema para os fonlogos, o tema em
tal crtico literrio, todas essas unidades (quaisquer que sejam sua
estrutura ntima e sua extenso, bem diferentes segundo o caso) s
tm existncia significativa por [pg. 52] suas fronteiras: as que as separam das outras unidades atuais do discurso (mas este um
problema de arranjo), e tambm as que as distinguem de outras
unidades virtuais, com as quais elas formam uma certa classe (que
os lingistas chamam de paradigma); essa noo de paradigma
essencial, ao que parece, para compreender o que viso
estruturalista: o paradigma uma reserva, to limitada quanto
possvel, de objetos (de unidades) fora da qual se chama, por um ato
de citao, o objeto ou a unidade que se quer dotar de um sentido
atual; o que caracteriza o objeto paradigmtico que ele est, em
face de outros objetos de sua classe, numa certa relao de afinidade
e de dessemelhana: duas unidades de um mesmo paradigma devem
assemelhar-se um pouco para que a diferena que os separa tenha a
evidncia de um raio: preciso que s e z tenham ao mesmo tempo
um trao comum (a dentalidade) e um trao distintivo (a presena ou
a ausncia de sonoridade) para que em francs no atribuamos o
mesmo sentido a poisson e poisou; preciso que os quadrados de
Mondrian sejam ao mesmo tempo afins por sua forma a quadrados e
dessemelhantes pela proporo e pela cor; preciso que os
automveis americanos (em Mobile de Butor) sejam constantemente
inspecionados da mesma maneira, mas entretanto que eles difiram
cada vez pela marca e pela cor; preciso que os episdios do mito de
dipo (na anlise de Lvi-Strauss) sejam ao mesmo tempo idnticos e
variados, para que todos esses discursos e essas obras sejam
inteligveis. A operao de desmontagem produz assim um primeiro
estado disperso do simulacro, mas as unidades da estrutura no so
de modo algum anrquicas: antes de serem distribudas e
encerradas no contnuo da composio, cada uma forma com sua
prpria reserva virtual um organismo inteligente, submetido a um
princpio motor soberano: o da menor diferena.
Colocadas as unidades, o homem estrutural deve descobrir-lhes
ou fixar-lhes regras de associao: a atividade do arranjo, que
sucede atividade de chamada. A sintaxe das artes e dos discursos
, como se sabe, extremamente variada; mas o que se reencontra em
toda obra de projeto estrutural a submisso a constrangimentos
regulares, cujo formalismo, impropriamente incriminado, importa
muito menos do que a estabilidade; [pg. 53] pois o que est em jogo, nesse segundo estgio da atividade de simulacro, uma espcie
de combate com o acaso; eis por que os constrangimentos de
recorrncia das unidades tm um valor quase demirgico: pela
volta regular das unidades e das associaes de unidades que a obra
aparece construda, isto , dotada de sentido; os lingistas chamam
essas regras de combinao de formas, e haveria grande interesse em
conservar esse emprego rigoroso de uma palavra por demais gasta: a
forma, como se disse, o que permite contigidade das unidades
no aparecer como um puro efeito do acaso: a obra de arte o que o
homem arranca ao acaso. Isso permite talvez compreender, de um
lado, por que as obras ditas no-figurativas so apesar de tudo, e no
mais alto grau, obras, j que o pensamento humano no se inscreve
na analogia das cpias e d