Ap Potugal Moderno

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UNIVERSIDADE ABERTA

APONTAMENTOS DE HISTRIA DE PORTUGAL MODERNO

J. LEMOS PINTO 2010/2011

PODERES E INSTITUIES 1. O Poder Central O reiO rei arqutipo. Para o povo o rei tem de promover a justia, a paz e a religio. A dignidade real deve ser sempre acatada, mormente quando na pessoa do rei se juntam as virtudes teologais (f, esperana e caridade), as virtudes cardeais (prudncia, magnanimidade, continncia e justia) e algumas qualidades necessrias para o bom governo: benevolncia, liberalidade, castidade, sobriedade e constncia. O rei dos sculos XV e XVI dizia-se detentor de cincia certa, da livre vontade, do poder absoluto, que no total, mas apenas livre de constrangimentos, salvo os impostos pela lei e pelos privilgios e foros que ele jurava cumprir no momento da aclamao. S depois desse juramento, que era a sua parte do pacto, vinha o juramento de fidelidade dos sbditos. No sua funo integrar o conjunto social, mas equilibrar e arbitrar os conflitos entre os vrios componentes da sociedade, sem por isso os nivelar. A prtica poltica. D. Joo II refora a implicao pessoal na fidelidade ao monarca, exigindo aos detentores dos castelos e fortalezas um juramento feudal e impondo a entrada dos corregedores nos senhorios, ignorando todos os protestos. O conflito estala, levando morte dos duques de Bragana e Viseu e do arcebispo de vora e fuga de outros para Castela, caso do marqus de Montemor-o-Novo. D. Joo II inicia o processo que leva construo do Estado moderno em Portugal: supremacia do rei, respeito pelos privilgios dos estados e grupos sociais, legislao harmonizada, mas no de aplicao universal. Tenta reorganizar o modo de cobrana de certos tributos, procede s confirmaes das doaes mediante anlise caso a caso, inicia o processo de reforma dos forais. D. Manuel avanar muito no ordenamento da legislao e na publicao de regimentos de funcionrios. Tudo culmina com a publicao das Ordenaes do Reino em 1514. Com a reviso e republicao destas em 1521, o edifcio jurdico fica montado. Posteriormente (1532), completado pela reformulao das reas das correies e criao e redefinio dos tribunais superiores e dos concelhos. O rei separa-se dos sbditos, estruturando uma burocracia mediadora, e reservando para si o juzo de certos casos. A lei deve ser cumprida pelo monarca, que no hesita em submeter-se aos tribunais como parte, muito especialmente no toca ao direito civil. Comea a distinguir-se entre rei e Reino, embora o rei nem sempre a respeite. Do mesPoderes e Instituies O Poder Central 1/106

mo modo, o rei passa a distinguir-se da pessoa que rei. O rei passa a ser alguma coisa mais do que um senhor, assumindo o que vir a ser a personificao do Estado. A aclamao. A aclamao do rei era imediata morte do antecessor, seguindo-se ao reconhecimento desta. No auto de aclamao, o rei senta-se no lugar mais elevado e o camareiro-mor entrega-lhe o ceptro de ouro, smbolo da vara da justia. Depois de um discurso de abertura, o rei e o prelado mais importante ajoelham e aquele presta o seu juramento: assegurar o exerccio da justia e os equilbrios sociais fixados e aceites, guardar e manter todos os foros, graas e privilgios e governar com inteireza e justia. Em nome dos grandes jura o principal deles, metendo as mos entre as do rei, em gesto de menagem, e beijando-lhe a mo direita. Seguem-se os outros senhores presentes, pelas suas precedncias. ento a vez dos prelados, os magistrados dos tribunais rgios e os vereadores de Lisboa. Segue-se a aclamao, gritada pelos arautos, a que o povo responde. S depois o rei de Portugal, no-sagrado, no-ungido e no-coroado, entrava na igreja para rezar. No havia cerimnia religiosa prpria. Depois dava-se notcia s demais cidades e vilas do Reino, para que tambm aclamassem o novo rei. Rei que, em princpio, j fora jurado em cortes como herdeiro, e que o anterior nomeava no seu testamento. D. Joo III, D. Sebastio e D. Henrique no providenciaram herdeiro. Entradas rgias e cerimnias pblicas. Desde os fins do sculo XV que as entradas rgias exibem o rei sob o plio, a cujas varas pegam os mais honrados vereadores. Durante a estada, o monarca recebido em conventos, visita fortalezas, assiste e participa em jogos populares. Esta solenidade reservava-se para a primeira visita a qualquer cidade e vila, e representava a ratificao pelas populaes do juramento que os seus procuradores prestavam nas cortes que se seguiam aclamao ou no acto da aclamao, consoante os casos. Era indispensvel a um monarca absoluto, afastado do contacto directo com os povos, afirmar uma presena simblica. Na ndia, o vice-rei era recebido com grandes honras pblicas, entrando em Goa com grande magnificncia. Tambm na ndia, como depois no Brasil, uma outra cerimnia se desenrola: a da entrega das chaves das fortalezas aos governadores. Esta tambm ocorria em Portugal na entrada dos reis e cabia aos alcaides-mores, simbolizando a precariedade destes na posse dos castelos. Outros grandes espectculos eram a procisso do Corpus Christi e os autos da f. Outra grande representao eram as cortes. Exibio do poder real, nelas se configuravam os equilbrios e as hierarquias do absolutismo. No centro, o monarca enquadrado pelos grandes, abaixo a alta administrao: prelados, condes, membros do Conselho de2/106 Poderes e Instituies O Poder Central

Estado, senhores e alcaides-mores. Mais abaixo, os procuradores dos concelhos, devidamente posicionados: Lisboa, Porto, Coimbra, vora e Santarm. Depois do ritual da entrada do rei, fala o primeiro orador, designado pelo soberano, uma alta personalidade. Responde um representante dos concelhos, normalmente um vereador da Cmara de Lisboa. Depois, representantes designados pelos prelados, pelo povo e pela nobreza entregavam os seus apontamentos. O rei recebia-os e passava-os ao escrivo da puridade. As cortes no eram pblicas, mas nem por isso o seu valor simblico era menor. A corte. O rei escolhe quem entende para o auxiliar no governo, mas no deixa de ter de justificar certas opes, pois h pessoas mais principais do que as escolhidas. O filtro das influncias s permite a passagem de algumas informaes, o que pode levar ao seu afastamento em relao ao Reino. A distribuio de favores rgios passa a ser vigiada pelos servidores prximos e pelos favoritos. O aparato corteso contraria a relativa homogeneizao que a burocracia procura concretizar. O absolutismo gera em volta do monarca grande venerao e muito acatamento. Sociedade e corte. O rei tem de se comportar como um pai para o povo. Esperava-se que em pblico o rei fosse acessvel, respeitado, amado. Por isso tem de cuidar de festas pblicas em que ele o actor central, aparecendo rodeado pela corte. Quanto aos grandes, o rei deve mant-los em respeito, mas tratando-os e honrando-os como quem so. A distncia que o rei deve manter em relao aos seus sbditos marca-se mesmo dentro dos templos. O rei est instalado dentro da cortina, junto do altar, tapado das vistas dos demais crentes, mas vendo o oficiante. A se tratam at de assuntos correntes, sendo muito honroso o convite para a despachar. Conselheiros e validos. O governo de D. Sebastio caracteriza-se por um acatamento pouco crtico da vontade rgia. Esse absolutismo ficou demonstrado na falta de intervenes fortes contra a ida de D. Sebastio a Marrocos. S depois do desastre se reconheceu que isso fora uma falta colectiva, evocando-se a anterior crise dinstica, em que o povo teve voz e a imps. Mais tarde Diogo do Couto retoma a queixa de os reis no serem sabedores de muitas cousas importantes ao bom governo de seu Reino, (...) porque o que mais falta aos reis quem lhe fale verdade. O rei, como fonte donde dimanam as mercs, leva a que as aparncias tenham cada vez mais importncia. D. Joo II, D. Manuel e D. Joo III governaram com um pequeno grupo de pessoas de estrita confiana, mas no da grande aristocracia tradicional. Ou era gente de boa estirpe, (condes de Portalegre e de Vila Nova com D. Manuel, de Sortelha e da Castanheira com D. Joo III), ou simples secretrios, cuja presena passa a ser indispensvel, porPoderes e Instituies O Poder Central 3/106

real conhecimento dos negcios ou por cumplicidades irrevelveis. D. Joo III governava aconselhado pela rainha D. Catarina, pelo infante D. Lus e pelos condes de Vimioso e da Castanheira. Assistia-o em permanncia o secretrio Pro d'Alcova Carneiro, que continuou a prestar os seus servios a D. Catarina, a D. Sebastio e a Filipe II, s sendo afastado por D. Henrique. Os vedores da Fazenda morreram quase todos em funes. De incio D. Sebastio carrega Martim Gonalves da Cmara com a maior parte das tarefas de governo, que age como um valido ou privado. Os privados so personagens que o rei encarrega das tarefas de governo, sem que para isso haja uma nomeao formal. O valido actua em nome do rei, mas no tem um posto, um ttulo, um lugar determinado. Normalmente tender a instalar-se num dos altos cargos ou a acumular vrios. Filipe II nunca aceitou privado ou valido, embora tenha quem o auxilie e aconselhe. Mas no pde dispensar conselheiros e colaboradores directos, que geravam faces e conflitos entre eles, o que tornava lento e penoso o recurso directo ao rei. Envolvimento clerical. A clerezia comea a tomar as mais importantes posies durante o governo de D. Joo III, estendendo-se depois a toda a administrao. No entanto a influncia directa de Roma indesejada: os nncios so pouco estimados e at se lhes barra a entrada e actuao. Em 1538, o nncio aconselha o pontfice a no conceder o cardinalato ao infante D. Henrique por ser o mais enraivado adversrio da jurisdio eclesistica e das coisas particulares de Sua Santidade. Os governantes serviam-se da Igreja como coisa sua. Com D. Joo III reservavam-se os mais altos cargos para os infantes. Quem, de fora da famlia real, tivesse oportunidade de ser feito cardeal caa em desgraa. A clericalizao dos governos (j notvel com D. Joo III) radica-se no tempo de D. Sebastio. Depois o prprio rei um cardeal, assim como Alberto de ustria, o primeiro a governar em nome de Filipe II. Portugal sem corte. Os Portugueses, em especial os da capital, sentiam essa ofensiva ausncia. Filipe II comportou-se durante a sua estada como rei de Portugal, respeitando usos e costumes. Apesar do desejo de regressar a Castela, s o faz quando o cardeal-arquiduque Alberto de ustria se encontra devidamente instrudo para o cargo de vice-rei e se reuniram as cortes em que o herdeiro foi jurado (1583). Filipe III contrasta com o seu antecessor. Desde 1609 que se prope visitar Portugal, mas vai adiando a viagem at 1619. Finalmente, pe condies de instalaes e exige um donativo, que foi engordando com os anos. Quando veio, pouco se demorou: cortes em Lisboa, captulos gerais das ordens de Cristo (Tomar) e Santiago (Palmela). Filipe4/106 Poderes e Instituies O Poder Central

III um castelhano, que no vem consolidar uma aquisio recente, como o pai, nem teme pela estabilidade poltica dos seus reinos peninsulares. A burocracia portuguesa tinha qualidade para administrar o Reino dentro da rotina, e da a pouca necessidade da presena do rei. Vice-reis e governadores garantiam a mediao com Madrid e isso bastava. A aristocracia afasta-se de Lisboa, preferindo Madrid ou as suas casas de campo, numa sociedade que tende para a ruralizao. O Reino gozava de autntica autonomia, s de quando em vez beliscada por exigncias financeiras.

As cortesSignificado poltico. As cortes s renem por convocao do rei ou de um seu representante: no tm capacidade para se autoconvocarem e s funcionam com e para o rei. Este no as dispensa, mas utiliza-as s quando lhe convm, em particular quando razes financeiras se apresentam insolveis sem recurso a uma participao dos povos. As Cortes de Coimbra elegeram um rei em 1385 e as Cortes de 1438/1439 nomearam regente o infante D. Pedro contra o testamento de D. Duarte. A memria destas Cortes mantm-se viva e, por isso, em 1557 a rainha D. Catarina manobrou para que se no reunissem aquando da morte de D. Joo III e aclamao de D. Sebastio, pois no era seguro que ela fosse a preferida para assegurar a regncia. Tambm a memria das Cortes de Coimbra fez hesitar Filipe II, o qual temia o uso da fora a destempo. Funes e atribuies. Politicamente, as cortes tinham como funes tradicionais jurar o herdeiro, reconhecendo a continuidade dinstica. No entanto, isso no consta de legislao, e D. Manuel no foi jurado herdeiro em cortes, como o no foi D. Sebastio. A convocao das cortes competia ao monarca, que marcava o local, a data da reunio e a justificao desse apelo aos povos. Mandava proceder s eleies dos representantes dos concelhos que tinham assento e enviavam-se convocatrias pessoais aos senhores e ao clero. A indicao do assunto que tinha levado convocao era importante por causa das delegaes de poderes, para que se exigiam procuraes. No havia matrias obrigatoriamente sujeitas apreciao em cortes. Mas desde muito cedo se entendeu, e cumpriu, que a matria fiscal tinha de ser votada em cortes, muito em especial as imposies extraordinrias. Mesmo D. Joo III, pouco apreciador de ouvir queixas e protestos, teve de apelar para a sua reunio por mais de uma vez. Os povos sempre desejaram uma periodicidade das reunies; os reis nunca acederam a uma tal limitao do seu poder, embora nunca se negassem a considerar o assunto. Os agravos, queixumes e protestos dos procuradores - em especial dos que representamPoderes e Instituies O Poder Central 5/106

os concelhos - podem ou no ter acolhimento, merecer ou no resposta. Mesmo as leis que resultam de cortes no tm um destaque especial na hierarquia legislativa. Isto no obstante se considerar que as leis feitas em cortes so de mais obrigao. Os povos entendiam, e requeriam ao rei, que as leis publicadas em cortes, ou como resultado delas, no pudessem ser alteradas seno em cortes. Contudo, nada obrigava a que assim fosse. E o rei nem sequer respondia sempre aos pedidos e reclamaes apresentados. D. Joo II fez anteceder a abertura das cortes de vora em 1481 por menagens e obedincias a que obriga a submeterem-se senhores de terras e alcaides-mores. E f-lo vista dos procuradores dos concelhos, testemunhas que os senhores de terras e os alcaidesmores no podiam deixar de sentir como uma humilhao. Estas cortes de D. Joo II tm um propsito poltico bem marcado: a concretizao prtica da preeminncia rgia, que h muito vinha sendo afirmada pela Chancelaria. As cortes de Lisboa de 1499, reuniram a fim de regular o problema da autonomia do Reino, que se encaminhava para ficar com um rei comum a toda a Hispnia, quando o prncipe D. Miguel viesse a ser aclamado, o que no ocorreu por ter entretanto falecido. D. Manuel preparou as coisas de um modo to conforme a um exerccio autnomo da governao que, em 1581, Filipe II pde prometer observar exactamente os mesmos princpios de separao dos reinos e respectivas governanas. D. Manuel no recorreu s cortes aps as de Lisboa de 1502, pois a fazenda, com o primeiro impacte da rota do Cabo, crescia em rendimentos. As cortes e a sucesso do Reino. As Cortes de Lisboa de 1579 tm de comear a resolver ver o problema da sucesso. Elegem-se 15 pessoas para servirem de governadores, de que D. Henrique escolhe 5, para actuao em caso de seu falecimento. Nas Cortes de Almeirim-Santarm de 1579-1580, com o problema da sucesso por resolver, D. Henrique j se encontrava convencido da impossibilidade de resistir a Filipe II. Por isso exigia o acordo das cortes e um forte dispositivo jurdico que evitasse a anexao, ou seja, a unio dinstica deveria preservar a autonomia. Se o clero e a nobreza aprovaram o acordo, o brao popular escusou-se, insistindo na necessidade de eleio de rei. Morto D. Henrique, passa o governo para os cinco governadores que deixara nomeados. As Cortes de Tomar de 1581 so um momento grande da reunio dos estados: trata-se de aceitar a unio dinstica. Filipe II propusera, pela Declarao de Aranjuez, a separao dos reinos, nos termos em que D. Manuel a havia proposto e feito votar para o prncipe D. Miguel. Esses privilgios e direitos foram razoavelmente cumpridos em tempos de Filipe II, que teve o bom senso de no pedir servios e emprstimos aos povos.6/106 Poderes e Instituies O Poder Central

Governo e administraoParadigmas de legitimao, reas de governo, processamento burocrtico e agentes da administrao. A administrao da coroa rea de aco do prncipe. J desde o sculo XVI se podem identificar zonas de actuao dos agentes da coroa, nomeadamente a justia, a fazenda e a milcia. Aos vrios corpos que coexistiam no rei aplicavam-se diferentes imagens: a de senhor da justia e da paz, a de chefe da casa, protector da religio e cabea da repblica. Todas as fontes referem que a funo suprema do rei era fazer justia, isto , garantir os equilbrios sociais estabelecidos e tutelados pelo direito. A justia era, portanto, a rea por excelncia de governo. A rea da justia a rea em que dominam os rgos ordinrios de governo (tribunais, conselhos, magistrados e oficiais), com competncias bem estabelecidas, obedecendo a processos regulados de formao da deciso, e dominados por juristas. Potenciando a justia, est a graa, que consiste na atribuio de um bem que no competia por justia. Esta um dom dependente da liberalidade rgia, em cuja outorga o rei no obrigado a ouvir seno a sua conscincia. A graa orientada por deveres de conscincia ou morais, e as decises tomam-se no crculo mais ntimo, pela mo de escrives da puridade ou de secretrios. No caso portugus, algumas matrias de graa tm um tratamento mais autnomo e regulado. o caso dos assuntos de graa em matria de justia, que eram instrudos para deciso rgia pelo Desembargo do Pao, e tambm quando envolviam relaes com o poder eclesistico, cuja deciso preparada pela Mesa da Conscincia e das Ordens. Outra rea de governo - a economia - correspondia imagem do rei como chefe da casa e a assimilao entre governar a cidade e governar a famlia era profunda. Por aqui passava a gesto da casa real, mas tambm a administrao do patrimnio rgio, nomeadamente as questes da fazenda. O critrio de deciso o da discricionariedade de um prudente pai de famlia, ao qual cumpre adequar os meios disponveis busca do sustento e engrandecimento da casa. O processamento dos assuntos o da gesto informal, exercida directamente ou por meio de agentes livremente escolhidos e livremente descartveis: secretrios, validos, inspectores, intendentes e juntas. Mas, para alm de guardio dos interesses particulares e de chefe de famlia, havia a ideia de que o prncipe encarnava tambm um interesse superior de toda a repblica, que lhe permitia derrogar o direito e violar interesses dos particulares. Era o incio do conceito de governo poltico.

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No se pode dizer, contudo, que o conceito de governo poltico fosse muito popular na pennsula moderna. Apesar disso, h temas em que a invocao das prerrogativas polticas do rei tinha tradio. Um deles o da punio criminal": para justificar o seu poder de castigar os clrigos, o rei no podia invocar a jurisdio, pois a ela escapavam os eclesisticos. Da que seja obrigado a invocar um poder poltico. Progressivamente, o conceito de governo poltico vai abrangendo um domnio cada vez mais vasto e, no perodo iluminista, j est plenamente desenvolvido. Considera-se, ento, que ele engloba todas as medidas necessrias defesa externa e interna do Reino: O prncipe deve libertar a cidade dos seus inimigos e fazer tudo o que julgar necessrio, sem que nunca possa ser compelido a prestar contas disso. Os finais do Antigo Regime constituem uma poca em que a imagem do prncipe como caput reipublicae se sobrepe s restantes e em que o governo dirigido por razes do Estado. Inaugura-se uma era de administrao activa, com quadros legitimadores, mtodos e agentes muito distintos dos da administrao passiva jurisdicionalista. O governo planifica reformas e leva-as a cabo mesmo contra os interesses estabelecidos. O modelo setecentista de administrao activa obrigou a coroa a assumir um desgnio para a sociedade e a traar o melhor ordenamento possvel com vista a optimizar as condies materiais da actividade produtiva. De uma situao de impossibilidade governativa para mudar o statu quo, tpica da administrao passiva jurisdicionalista, passa-se para uma situao interventora. Em Frana surge a teoria do Estado polcia, que constitui uma clara afirmao da vontade do rei e da centralizao poltico-administrativa. O Trait de police, de Nicolas Delamare, apresenta uma smula de atitudes e de orientaes gerais que distinguem a prtica administrativa, jurdica e poltica, a saber: a) A sociedade seria ordenada em funo de objectivos definidos pelo rei, a quem cabia garantir bem-estar e segurana aos sbditos. b) Era conferida ao rei uma maior capacidade interventora, mediante o aumento do seu poder arbitral e o reforo da centralidade poltica. c) A orientao do poder real exigia uma nova distribuio do Poder. A essncia da legitimao da autoridade passou a ser a competncia tcnica e a lealdade poltica. e) Os sectores considerados de interesse pblico passam a ser as reas de interveno poltica da coroa: a recolha dos impostos, as estruturas militares e o desenvolvimento do comrcio, da agricultura e das manufacturas.8/106 Poderes e Instituies O Poder Central

A administrao central O Desembargo do Pao O tribunal nasce com D. Joo II e termina com a implantao do liberalismo. Tinha competncias no domnio da graa e da justia. Nos reinados de D. Joo III e de D. Sebastio teve mais competncias e com Filipe II um novo regimento. No domnio da administrao da justia, o Tribunal do Desembargo do Pao exercia um controlo total sobre a magistratura e o restante ofcialato. Competia-lhe: exames de acesso magistratura, confirmao das eleies dos juzes, pareceres para a progresso na carreira, autorizao do exerccio da advocacia, exames dos tabelies e escrives, arbtrio dos conflitos de competncia entre os outros tribunais. No domnio da graa, o tribunal concedia perdes, comutao de penas, embargos, apelaes, alguns mesmo sem necessitar do passe real. Podia passar cartas de fiana, provises de legitimao, perfilhao ou emancipao. No incio do sculo XVIII dispensou-se o tribunal de remeter os alvars fiscalizao da Chancelaria-Mor (dispensa de verificao constitucional dos diplomas). Nos finais do sculo XVIII conferiu-se-lhe atribuies no reordenamento poltico-administrativo: ampliao dos territrios dos juzes de fora, anexao e criao de concelhos. Com a extino da Real Mesa Censria, ficaram a cargo do Santo Ofcio as inspeces respeitantes matria religiosa e do Desembargo do Pao as matrias de autoridade rgia, numa clara separao entre o domnio secular e eclesistico. Finalmente, no incio do sculo XIX, seria ramificado, em consequncia da transferncia da corte para o Brasil sendo criada no Rio de Janeiro uma nova instituio. Com a extino, as suas funes foram distribudas pelas secretarias de Estado, pelo Supremo Tribunal de Justia e pelos demais juzes. No sc XVIII o Desembargo do Pao era formado, basicamente por: a) A Mesa dos Desembargadores , isto o plenrio dos desembargadores; b) A Secretaria da Repartio das Justias e do Despacho da Mesa, isto , a repartio que se ocupava da administrao da justia em todo o Reino; c) As quatro Secretarias da Repartio das Comarcas. Nos finais do sculo XVIII seria criada a Secretaria da Reviso dos Livros. A promoo a desembargador do Pao significava o cume da carreira na magistratura.Poderes e Instituies O Poder Central 9/106

Verificou-se que os desembargadores, em geral, se mantiveram nas funes por muitos anos, o que ter assegurado a perdurao de atitudes administrativas e burocrticas. A Mesa da Conscincia e Ordens O tribunal Mesa da Conscincia foi criado por D. Joo III com o objectivo de tratar das matrias que tocassem a conscincia do rei. Com a unio Coroa dos mestrados das trs Ordens Militares (Cristo, Santiago da Espada e Avis) os seus assuntos, tanto espirituais como materiais, passaram a ser tratados, tanto em primeira como em ltima instncia, neste tribunal, que passaria a designar-se por Mesa da Conscincia e Ordens. O tribunal foi extinto durante a guerra entre liberais e absolutistas. No seu mbito de competncias compreendia, para alm do foro da conscincia do monarca, a jurisdio sobre os privilgios dos freires, cavaleiros e comendadores das trs ordens. Tratava dos seus processos-crime e das peties de perdo, que eram presentes ao rei, o que lhe conferia estatuto de tribunal de graa. Intervinha noutras matrias: governo e inspeco da Universidade de Coimbra; governo da provedoria dos cativos e defuntos, superintendncia da Casa dos rfos da Cidade de Lisboa, provimento dos negcios dos hospitais e albergarias, inspeco das capelas onde estanam sepultados reis. As consultas tomavam-se por votao, sendo as opinies contrrias registadas e fundamentadas, de forma que a deciso do rei tivesse em linha de conta todos os pareceres. A Casa da Suplicao e a Relao do Porto Filipe II reformou os tribunais judiciais superiores, criando uma Relao no Sul e outra no Norte para o desembargo das apelaes e agravos. A primeira, conhecida por Casa da Suplicao, era o tribunal de justia da corte e de um distrito que abrangia as comarcas do sul, Ilhas e o Ultramar. Com a fixao da corte no Brasil, seria criada a Casa da Suplicao do Brasil. A segunda, denominada Casa do Cvel, ou Relao da Casa do Porto, exercia a sua jurisdio nas comarcas e ouvidorias de Entre Douro e Minho, Trs-os-Montes e Beira e nas de Esgueira e Coimbra. A Casa da Suplicao podia conhecer, contudo, os agravos da Relao da Casa do Porto em feitos cveis que excedessem determinados valores. Os desembargadores das duas Relaes tinham o privilgio de, reunidos em Mesa Grande, poderem proferir assentos, isto , usarem de prerrogativas legislativas, sempre que existissem dvidas sobre a interpretao das ordenaes e das leis extravagantes. Estes assentos tinham valor vinculativo para casos semelhantes que sucedessem no10/106 Poderes e Instituies O Poder Central

futuro. Com o tempo, as restantes relaes vm a arrogar-se o poder de proferir assentos, reforando o carcter jurisprudencial do direito. Este estado de coisas s termina com a Lei da Boa Razo (1769). O Conselho da Fazenda O Conselho da Fazenda aparece na poca filipina com a misso de administrar a Fazenda real. Na sua tutela estavam vrios organismos, nomeadamente a Casa da ndia, as alfndegas, a Casa dos Contos, a Casa da Moeda e todos os feitores que comerciavam a favor do monarca. O Conselho da Fazenda exercia ainda jurisdio sobre alguns produtos fabricados no Reino e destinados ao comrcio externo, como sedas, fitas e lenos. Com a criao do Errio Rgio, o Conselho da Fazenda reforar as suas competncias, firmando-se como a nica instncia judicial em matria financeira. Perdeu, contudo, quase todas as competncias na rea do governo econmico. O Errio Rgio As primeiras reformas do reinado de D. Jos visaram suprimir as deficincias na arrecadao dos direitos e rendas, at esto a cargo de diferentes reparties, bem como a fuga aos impostos e o enriquecimento por parte de alguns oficiais do fisco. Neste contexto, primeiro foi criada a junta de Administrao dos Depsitos Pblicos da Corte e Cidade de Lisboa, que pretendia diminuir os atrasos nos pagamentos e intensificar o controlo das receitas e despesas. O Errio Rgio surgiu em 1761, e foi uma instituio de topo da administrao fiscal portuguesa destinada a centralizar a gesto corrente das contas pblicas e a reorganizao do sistema de cobrana de impostos. O Errio Rgio era dirigido por um presidente, que acumulava com as funes de inspector-geral. O despacho pertencia ao presidente, ou deste directamente ao soberano. Uma inovao importante foi a implementao da escrita contabilstica pelo mtodo das partilhas dobradas, que obrigava descrio das receitas e despesas e ao confronto, por saldo dos dinheiros em depsito, que depois o tesoureiro-mor confirmava. Os livros de contabilidade eram de trs tipos: o Dirio, que servia como folha de caixa, o Livro Mestre, que permitia os balancetes e os Livros Auxiliares, que constituam sries documentais temticas, cuja documentao de suporte era arquivada por processo. Tesouraria-Mor ficou reservado o pagamento casa real; dos Ordenados o pagamento dos ordenados dos ministros dos tribunais, magistrados e oficiais de justia; a Tesouraria das Tenas pagava as tenas; a Tesouraria dos Juros encarregava-se da distribuio dos juros. As despesas com a tropa cabiam Junta dos Trs Estados.Poderes e Instituies O Poder Central 11/106

A Intendncia-Geral da Polcia Em 1760 foi criada a Intendncia-Geral da Polcia da Corte e do Reino. Com a revoluo liberal de 1820 seria considerada inconstitucional, mas s seria abolida em 1833. A criao da Intendncia levou separao tcnica e poltica das funes policial e judicial: os comissrios da Polcia e a Guarda Real policiavam, enquanto os juzes instruiam os processos-crime (os processos de sumrio eram da competncia do Intendente). Outra inovao consistiu na adopo de um novo modelo de determinao da verdade dos factos-crime, cujo apuramento passou a obedecer estritamente ao processo da investigao policial, cessando a tradio jurdica que recorria a uma complicada rede de provas: testemunhas presenciais, simples indcios, nmero certo de testemunhas e outros. A implementao de uma estratgia de preveno da criminalidade foi, porm, o aspecto mais inovador. Aceitou-se que com a educao e bem-estar se promoveria a razo e a riqueza, criando-se condies objectivas e subjectivas para a integrao e cooperao dos membros da sociedade. Nesta perspectiva se enquadram as reformas das academias, o cuidado com a censura dos livros ou com a circulao de panfletos contra os bons costumes, a proteco ao teatro e pera e a criao da Real Casa Pia de Lisboa. No mesmo contexto esto os incentivos ao aumento da populao. Defende-se que a felicidade do povo e a riqueza das nao dependem da capacidade produtiva, da fora do trabalho e da possibilidade de armar cidados. Assim se explicam os inquritos ao estado sanitrio da populao e as ordens para que as comarcas elaborem estatstica de nascimentos, casamentos e bitos. O plano de construo de cemitrios expressa, alm de intenes sanitrias, objectivos de registo, controlo e qualificao da mortalidade. Outras reformas enquadram-se na lgica do princpio do bem-estar e da segurana: a iluminao da cidade de Lisboa, a inspeco de navios para filtrar doenas e pestes, desincentivar o contrabando ou impedir a entrada de livros politicamente perversos. Ainda no mesmo sentido, a Intendncia organiza estatsticas das mortes violentas ocorridas no Reino, a fim de diagnosticar causalidades criminais. A tendncia para agregar reas de governo e esbater a pluralidade de poderes na cidade de Lisboa levar a Intendncia a desempenhar tarefas que, por natureza, estavam reservadas Cmara, como o melhoramento das caladas, a plantao de rvores ou a preservao dos chafarizes. As Secretarias de Estado Em 1602 existiam quatro reas de governo da administrao central. Ao longo do sculo registaram-se alteraes e no final havia trs. A especializao dos negcios pblicos le12/106 Poderes e Instituies O Poder Central

vou D. Joo V (1736) a introduzir reformas, fixando as secretarias de Estado: Negcios Interiores do Reino, Marinha e Domnios Ultramarinos e Estrangeiros e Guerras. Esta orgnica manter-se-ia, e s em 1788 seria criada a secretaria de Estado dos Negcios da Fazenda. Os liberais criariam a secretaria de Estado dos Negcios Eclesisticos e da Justia e desdobraram em duas a dos Negcios Estrangeiros e da Guerra. A Secretaria de Estado dos Negcios do Reino ocupa uma posio crucial, na medida em que recepciona as consultas ao rei, trata dos seus despachos, regista-os e remete-os para os tribunais e conselhos. Alm das consultas, ocupa-se de outras reas, incluindo os negcios eclesisticos e o expediente do pao e casa real. Esta Secretaria de Estado, ao secretariar o rei e tomar-se o fiel depositrio dos arquivos e do expediente rgio, tem um lugar de centralidade poltica, cabendo-lhe, cumulativamente, tarefas de apoio deciso rgia, como a de propor medidas legislativas e executivas. O primeiro gabinete de D. Jos era de transio e combinava a passagem de testemunho com o desejo de mudana. Nele, o titular dos Negcios Estrangeiros e Guerras era Sebastio de Carvalho e Melo. Em 1756 constitudo o segundo gabinete, em que o futuro Marqus de Pombal assume a chefia dos Negcios do Reino. Com o reinado de D. Maria, o Marqus de Pombal substitudo, mantendo-se os restantes secretrios de Estado, o que denota o cuidado posto na transio poltica, bem como a manuteno da linha reformista josefina-pombalina. Aqui se mostra um dos traos caractersticos dos gabinetes: a recusa de formaes totalmente novas, existindo sempre elementos de ligao. Outra caracterstica a antiguidade dos responsveis pelos Negcios do Reino: com uma excepo, entre 11 e 21 anos. Foram, pois, gabinetes que asseguraram a continuidade governativa durante a fase da monarquia absoluta. Outros rgos da administrao central a) O CONSELHO DE ESTADO Foi criado pelo cardeal D. Henrique como rgo de consulta do rei. Com a reforma das Secretarias de Estado em 1736, o Conselho de Estado limitou-se reunio dos Secretrios de Estado, constituindo o plenrio do governo. Com o pombalismo e com D. Maria I seriam nomeados mais conselheiros, mas, a partir de 1801, parece que deixou de reunir. Assumindo, porm, um papel central durante toda a monarquia constitucional. b) O CONSELHO DA GUERRA Criado a seguir Restaurao para a gesto logstico-militar: conservao das fortalezas e arsenais, provimento de postos, expedio de tropas e julgamento do foro militar.Poderes e Instituies O Poder Central 13/106

Mais tarde, o Conselho da Guerra perdeu competncias administrativas para a Secretaria de Estado dos Negcios Estrangeiros e Guerras, mas manteve-se como tribunal militar. c) A JUNTA DA BULA DA CRUZADA Surgiu em 1591 para administrar as rendas da bula concedida pelo papa e destinadas conservao das fortalezas do Norte de frica. Para alm das cobranas das rendas, a Junta mantinha sintonia com a Mesa da Conscincia e das Ordens no que respeitava arrecadao e administrao das esmolas e peditrios para resgate dos cativos de guerra. d) A JUNTA DOS TRS ESTADOS Foi criada depois da Restaurao para administrar os impostos da dcima militar e outros destinados s despesas com a defesa do Reino: munies, fardas, ordenados, hospitais e manuteno das fortalezas. Algumas das suas competncias administrativas passaram para o Errio Rgio, mas a Junta manteve-se at revoluo liberal. e) O CONSELHO DA NDIA (DEPOIS CONSELHO ULTRAMARINO) Criado por Filipe II, mas extinto pouco depois. Aps a Restaurao surgiu o Conselho Ultramarino, a quem passaram a ser remetidos todos os despachos do ultramar, com excepo das ilhas e Norte de frica. Competia-lhe o provimento dos ofcios e mercs e expedio das naus. Perdeu parte das funes administrativas para a Secretaria de Estado dos Negcios da Marinha e Domnios Ultramarinos. Perderia tambm competncias com a criao da Mesa do Desembargo do Pao no Rio de Janeiro. Foi extinto em 1833, passando as suas atribuies para a secretaria de Estado respectiva e Tesouro Pblico. f) O TRIBUNAL DO SANTO OFCIO O Tribunal do Santo Ofcio era composto pelo Conselho-Geral e por tribunais de primeira instncia em Coimbra, Lisboa, vora e Goa. Com o pombalismo transformou-se em tribunal poltico. Foi extinto com a revoluo liberal em 1821.

A milciaCom a Restaurao tornou-se inevitvel a guerra com Espanha. Como esta estava profundamente ocupada na Guerra dos Trinta Anos e com o Tesouro exaurido, o perodo de 1641 a 1657-1658 foi tempo de organizao entre os Portugueses. S nos anos seguintes acontecem os combates : o cerco e a batalha de Linhas de Elvas, a batalha de Ameixial, o ataque a Castelo Rodrigo e, por fim, a batalha de Montes Claros junto a Estremoz. A paz de 1668 desejada por portugueses e por castelhanos. Nesta guerra importa realar14/106 Poderes e Instituies O Poder Central

o peso dos exrcitos da raia alentejana e da Beira Baixa, mas tambm justapor-lhes as dezenas e dezenas de capites que se defrontaram com os castelhanos em escaramuas que decorreram do Alto Minho ao Algarve. H perguntas a que no podemos responder, como as razes da escolha dos cabos-de-guerra ou o peso do confronto em campo aberto ou do papel dos cercos. No temos a noo do alcance da participao estrangeira de Schomberg ou dos que haviam combatido na Catalunha ou na Flandres. Igualmente nos ultrapassa o peso real das escaramuas locais. Em 1701, D. Pedro II acorda com Lus XIV o reconhecimento de Filipe V como rei de Espanha. Mas razes de poltica geoeconmica e compensaes territoriais na Pennsula Ibrica e na Amrica Latina, levam-no, em 1703, a mudar de posio em favor de Carlos III. Portugal obriga-se ento a contribuir para um exrcito conjunto com a Inglaterra, a Holanda e outras potncias. Mas as tropas prometidas no chegam e a guerra comea com exrcitos incompletos e com Filipe V a invadir a Beira e o Alto Alentejo. Em retaliao, o marqus de Minas chega a Madrid, onde faz proclamar Carlos III. Mas revoltas populares de apoio a Filipe V cortam-lhe o caminho de volta. As batalhas de Almaza, do Caia e de Vila Viosa so desastrosas para os Portugueses. Filipe V acaba por se firmar como rei de Espanha pelo tratado de Utreque, que nada deixa a Portugal. A Guerra da Sucesso de Espanha marcou um ponto de mudana. Em 1640 j havia a conscincia da falta de estruturas militares permanentes, mas esta guerra mostra a sua indispensabilidade. Os anos de acalmia que se seguem e o desafogo financeiro da primeira metade de Setecentos permitem que o aparelho militar se estruture at atingir uma frmula estatizante e autoritria com a aco do conde de Lippe. O exrcito assentava num sistema de recrutamento arcaico e independente da hierarquia da instituio militar. Toda a populao masculina dos 16 aos 60 anos, exceptuando os privilegiados, estava enquadrada em capitanias de ordenanas, por seu turno agrupadas em capitanias-mores. O topo da hierarquia destas capitanias-mores era provido pelos poderes municipais ou senhoriais, com a interferncia dos governadores de armas provinciais. As capitanias de ordenanas serviam de circunscries de recrutamento para o exrcito (tropa de 1 linha) e de reserva milicial (tropa de 3 linha). Ainda parcialmente dependentes dos poderes locais, havia os teros de auxiliares, depois denominados milcias (tropa de 2 linha), cuja expresso territorial foi sempre pouco homognea. Ou seja, o exrcito moderno coexistiu at ao triunfo da revoluo liberal com formas de organizao militar perifricas que nunca enquadrou completamente. O crescimento do aparelho militar no foi, em termos quantitativos, linear e contnuo:Poderes e Instituies O Poder Central 15/106

acelerou com as conjunturas de guerra, abrandou nas acalmias. Durante a Guerra da Sucesso de Espanha os efectivos da tropa de 1 linha tero ultrapassado os da Restaurao, seguindo-se a sua reduo, quebrada em 1735, quando se receou um novo enfrentamento com a monarquia vizinha. Particularmente acentuados parecem ter sido os esforos da mobilizao pombalina, aquando da curta guerra de 1762: os efectivos tero passado de 18 000 homens para 60 000 no espao de 9 meses. Seguiu-se nova reduo dos efectivos, at que a conjuntura decorrente da Revoluo Francesa determinasse o seu crescimento. O nmero de recrutas atingido antes de 1807 representava cerca de 1 % da populao continental do Reino, ou seja, correspondia mdia europeia setecentista. O crescimento do aparelho militar manifesta-se tambm no campo financeiro. Durante o reinado josefino os gastos com o Exrcito e a Marinha representam 50% das despesas globais. No incio do sculo XIX j se situam entre 56% e 78%, aproximando-se dos dois teros que caracterizavam a Prssia. Depois da guerra situar-se-o sempre acima desse quantitativo. A Guerra da Restaurao introduz o imposto quase geral da dcima (de que se isentou apenas o clero). A guerra de 1762 precipitou a criao do Real Errio e o relanamento da dcima. As despesas com a defesa constituiro um vector decisivo da crise financeira da ltima fase do antigo regime poltico. Na segunda metade do sculo XVIII assistiu-se transio de um exrcito que reproduzia a realidade social para um exrcito dotado de autonomia funcional, cuja hierarquia assentava mais na funo, sobrepondo-se hereditariedade, ao ttulo ou nobreza. A formao de corpos tcnicos, provenientes das escolas militares criadas no reinado de D. Maria, parece ter acentuado a mobilidade social ascendente das carreiras militares. No entanto, foi no perodo pombalino que se regulou o estatuto e os privilgios dos cadetes, filhos de moos fidalgos da Casa real ou de oficiais de sargento-mor para cima. No incio do sculo XVIII a nobreza de corte monopolizava os postos superiores e os comandos dos governos militares. Embora atenuada, essa forte presena aristocrtica ainda foi marcante at ao incio do sculo XIX, embora depois da Guerra Peninsular o seu peso no topo do aparelho militar se tenha reduzido. Na organizao do exrcito foi determinante a aco do conde de Lippe. O seu trabalho consistiu na melhoria das fortificaes, no levantamento tctico dos terrenos, na introduo de novas regras de recrutamento, aprendizagem, fardamento e disciplina. A criao de um corpo militar resultaria da definio de cdigos de hierarquia, patentes e suas funes. A caserna comeava a fechar-se s intromisses dos estatutos sociais.

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A FazendaO clculo financeiro no Antigo Regime. A teoria financeira do Antigo Regime No perodo moderno no se inova muito sobre teoria financeira. Com efeito, os chamados econmicos, como Castiglione ou Della Casa, tomam como modelo de gesto do patrimnio o modelo da casa, que se impunha desde Aristteles, e no cuidam dos problemas especficos da Fazenda. A oeconomia - arte pela qual a ordem das coisas domsticas disposta de forma sbia - tida como o fundamento da poltica. Assim, no admira que a imagem da gesto do patrimnio domstico se perfile sempre como o horizonte da gesto do patrimnio real. Por outro lado, os novos polticos, como Maquiavel ou Botero, deixam-se conduzir pela polmica sobre a avareza ou a liberalidade como virtudes dos prncipes, ou seja, sobre a eficcia de cada uma destas qualidades como estratgia de governo, e descartam qualquer reflexo de natureza tcnica sobre o modo de engrandecer, conservar e gerir o patrimnio da coroa. Alm do mais, na perspectiva tradicional, a riqueza do rei no era separvel da do Reino, entendida como o somatrio da riqueza dos sbditos. Daqui decorria que o rei devia cobrir as despesas da coroa com as rendas do seu prprio patrimnio, mas, no sendo isto possvel (e cada vez o era menos), devia usar de uma tributao justa. A questo da poltica fiscal reduz-se a questes de tica e, neste contexto, difcil que surjam questes de oportunidade ou de mera tcnica financeira. As primeiras so impensveis, pois discorrer se seria conveniente ao prncipe, por razes de oportunidade poltica, empenhar o seu patrimnio para satisfazer os seus credores era aberrante, de tal modo a soluo contrariava os fundamentos da obedincia dos vassalos, bem como as ideias de reputao do prncipe. Quanto s questes tcnicas, existiam idnticas reservas, a ponto de s no sculo XVIII mtodos j h muito em uso na contabilidade dos privados - como a contabilidade por partidas dobradas - comearem a ser usados nos registos da coroa. Tambm as questes tcnico-organizativas, como mtodos de previso de receitas e despesas, sistemas de administrao das rendas, sistemas de contabilidade e de organizao burocrtica, no suscitam a ateno dos cultores da alta poltica. Constrangimentos do clculo financeiro O clculo financeiro estava subordinado por vrios constrangimentos: morais e religiosos, que excluam as medidas que atentassem contra os deveres do governo ou liberdade da Igreja; intelectuais, correspondentes evidncia de modelos de gesto do patrimnio,Poderes e Instituies O Poder Central 17/106

como o modelo da casa; polticos, que sobrepunham a reputao do prncipe sua solvabilidade. A que se acrescentavam constrangimentos tcnicos e institucionais. Os constrangimentos morais e religiosos incidiam sobretudo sobre dois aspectos: a licitude e legitimidade dos tributos e a licitude das operaes de crdito. O problema da licitude do tributo assentava no carcter odioso de novos tributos e vinha consagrado na bula de Gregrio IX que excomungava os senhores que impusessem novas portagens ou as aumentassem sem permisso da Santa S, a no ser nos casos permitidos pelo direito. Esta proibio (embora o cnone s falasse de certos tributos) permaneceu como um tpico de invocao corrente. Quanto legitimidade, os tributos tinham que ser lcitos face ao ordenamento jurdico concreto. Em Portugal, a opinio geral at ao sculo XVIII a da necessidade de consentimento das Cortes. Caso particular era o da tributao da Igreja. A Bula feria de excomunho todos os que impusessem, sem licena expressa do papa, quaisquer tributos sobre os eclesisticos, instituies e bens patrimoniais adquiridos pela Igreja, embora se admitisse que, em caso de nus exigidos pela utilidade pblica, os clrigos estivessem obrigados a eles. A Igreja portuguesa conseguiu manter quase intacto este regime de iseno at aos finais do sculo XVIII. Dada a amplitude do estado eclesistico, a importncia das rendas e o facto de pretenderem que as isenes abrangessem os seus caseiros e colonos, avalia-se como era fulcral do ponto de vista financeiro a questo da liberdade da Igreja. Claro que a Igreja acabava por contribuir indirectamente, nomeadamente atravs de: Rendas das capelas e igrejas do Padroado Real e pelas rendas dos mestrados das ordens militares, incorporados na coroa nos meados do sculo XVI. Mas, apesar de os rendimentos das comendas terem um valor importante, a maior parte delas andava concedida, pelo que o rendimento dos mestrados era insignificante. Bula da Cruzada: as esmolas dadas, a troco de indulgncias e outras graas, e aplicadas na luta contra os infiis constitua uma concesso aos reis de Portugal. Mas, tendo que concorrer com outras esmolas, a bula teve sempre um rendimento pouco importante. Pedidos de subsdios (feitos sob ameaa de aplicao rigorosamente do preceito que proibia a Igreja de adquirir bens de raiz). As somas obtidas foram-no, porm, de pequena monta, e em geral tardiamente pagas. Breves pontifcios que autorizavam a tributao da Igreja em certos casos. Mas a obteno dos breves era frequentemente menos difcil do que a sua aceitao pelos eclesisticos, que chegaram a recorrer de sentenas do tribunal pontifcio.18/106 Poderes e Instituies O Poder Central

O problema da tributao da nobreza era tambm tico. Em matria de alfndegas, de sisas ou de dcimas no existiam privilgios para os nobres. A distino s era relevante no plano dos nus foraleiros: jugadas, quartos ou oitavos; mas estes impostos locais, pela sua diminuta importncia e por estarem de h muito fixados nos forais, no entravam nos clculos financeiros da coroa. Mais duvidosos, do ponto de vista moral, eram os expedientes que envolviam a venda de ofcios, sobretudo se incluam jurisdio. Mas o meio de legitimidade mais duvidosa eram os juros, sobretudo porque consistiam em operaes usurrias, proibidas pelo direito divino. Claro que se estabeleciam limitaes proibio. Tal como se permitiam os prostbulos ou o divrcio para evitar o mal maior da devassido, o prncipe poderia permitir tambm a usura. O direito tambm tinha encontrado formas de justificar o crescimento das quantias emprestadas. Na verdade, se aplicado compra de terras ou de um rebanho, o capital reproduz-se naturalmente sob a forma de frutos ou de crias. Ou, seguindo outra via, dizia-se que o dinheiro actual valia mais do que o futuro, o que legitimava que o retorno fosse maior. Mas existiam formas de disfarar a usura. As mais conhecidas so os censos e os contratos de cmbio. Os censos podiam tomar a forma de censo consignativo (pedido de emprstimo consignando ao emprestador os rendimentos de uma terra) ou de censo reservativo (em que o emprestador cedia uma propriedade, reservando-se o direito de receber uma renda). No contrato de cmbio punha-se disposio de um dos contratantes, numa praa diferente ou noutra moeda, uma certa soma. A licitude do contrato decorria do facto de se considerar o juro como a remunerao das despesas feitas pelo cambista. No caso de no se verificar diversidade de lugares ou de moeda, o contrato era usurrio. Perante a realidade da usura, a doutrina jurdica alarga o espao da sua licitude. Assim, desde os finais do sculo XVI que se legitima o contrato dito razo de juro, mesmo entre pessoas que no exercem o comrcio: consideram-se vlidos os contratos em que se recebe por ano entre 4% e 6,25% de juro, como lucro cessante ou dano emergente. Os montes de piedade e os bancos estavam abertamente admitidos desde o incio da idade moderna. Os montes de piedade eram fundos de dinheiro ou de cereais constitudos para ajudar os pobres, lcitos sob a condio de: i) que s se emprestasse aos pobres por uma certa soma e por certo perodo, contra entrega de penhor; ii) que o devedor pagasse algo para as despesas da gesto do monte; iii) que, no caso de no pagamento, se vendesse o penhor, restituindo ao devedor o sobrante. O que o monte recebia do devedor era justificado pelas despesas de gesto e de crescimento do fundo caritativo. Quanto aos bancos, considera-se, logo no incio do sculo XVII, que no usurrio colocar nePoderes e Instituies O Poder Central 19/106

les dinheiro, pois o lucro remunera o risco e o facto de se ter o dinheiro parado. Em resumo, A coroa encontrava limitaes doutrinais no momento de aumentar as suas receitas, mais pela teoria dos impostos do que pela teoria da usura. A influncia dos modelos de administrao da casa era um outro tipo de constrangimentos de clculo financeiro. O rei, tal como o chefe de famlia, tem obrigaes que o foram a actos de beneficncia ou de liberalidade. atravs deles que constri as redes da amizade de que depende a preservao da casa e que projecta uma imagem favorvel ao seu prestgio. O mesmo se passava com o rei, mas em mais alto grau: a liberalidade era para ele um dever central, do mesmo modo que a avareza era o seu principal defeito. Assim, o desequilbrio das finanas das coroas no residia tanto no assumir de novas e onerosas funes, mas mais no facto de elas terem de captar o favor dos sbditos por meio da liberalidade ou da demonstrao magnificente. A multiplicao das mercs e a poltica de reputao, apoiada na exibio do luxo ou na conduo de guerras de ostentao poltica, so os motivos do empenhamento das rendas reais. As questes tcnicas tambm tinham o seu papel e, at certo ponto, as dificuldades eram justificadas com o modo como estava organizada a administrao financeira e a contabilidade. A ttulo de exemplos citemos: os arrendamentos por perodos desiguais e no coincidentes nos seus termos, o que impossibilitava a estimativa rigorosa das receitas; o sistema de consignaes de receitas a certas despesas, pois nunca se sabia se a receita daria para a cobrir; a falta de centralizao na deciso das despesas, nomeadamente das tenas, mercs e alvitres, distribudas sem controlo pelos vrios conselhos; o facto de diferentes organismos darem ordens de pagamento a diferentes tesoureiros. Por volta de 1620, Manuel Severim prope a criao de uma tesouraria-geral por onde passasse toda a receita e despesa e onde pudessem ser conferidas as verbas recebidas e gastas. Foi, no entanto, preciso esperar pela reforma pombalina da organizao contabilstica e financeira de 1761. Nela se criam os cargos de tesoureiro-mor do Reino e de inspector-geral do Tesouro e se instaura a escriturao por partidas dobradas. As receitas Prprios Os prprios da coroa so constitudos pelas rendas dos bens do patrimnio real que no so bens da coroa. Os principais so: os reguengos; as ilhas e margens do Tejo periodicamente cobertas pelas cheias; as jugadas que impedem sobre certas terras, embora parte estivesse na mo dos donatrios; as coutadas e bosques de caa coutados; as defesas,20/106 Poderes e Instituies O Poder Central

de que quase s restam os pinhais de Leiria e Almada, utilizados para a fabrico das naus; monoplios de estalagens ou de fornos. O rei tinha ainda casas e prdios rsticos aforados e os tabelies pagavam-lhe penses pelo exerccio da profisso, embora estas estivessem quase sempre na mo dos donatrios. A importncia destas rendas era pequena, sobretudo porque a maior parte andava alheada da coroa e ainda porque parte delas se consumia na respectiva administrao e o resto, cobrado em gneros dificilmente transportveis, se esvaa quase de todo. Existem ainda outras rendas da coroa conceitualmente prximas, como as provenientes de rendas de direitos de foral das terras reais, as rendas das minas (de estanho e, mais tarde, do ouro e diamantes do Brasil), o rendimento de instalaes industriais da coroa, como os fornos (de biscoito) do Vale de Zebro. E, para alm destas, as rendas das capelas e igrejas do padroado da coroa e as receitas da Bula da Cruzada. Tributos No captulo dos tributos, h uns que j vinham de trs, outros aparecidos neste perodo. Enumeremos os principais. As portagens e que se pagavam na proporo das cargas, consoante o porte das bestas e dos taipais, ou do valor das mercadorias. As sisas consistiam na dcima parte do que se comprava ou se vendia, correndo metade por cada uma das partes. Delas estavam isentos os eclesisticos e os comendadores da Ordem de Cristo. A partir dos meados do sculo XVI, as sisas tornam-se numa renda fixa a pagar por cada terra. Para efeito de cobrana, os concelhos dividiam as sisas consoante o tipo de produtos sobre que incidiam. O encabeamento das sisas teve vantagens para o rei, mas muitas mais para os concelhos, que, assim, realizavam uma importante renda prpria, da qual viveram at aos finais do Antigo Regime. Alm do mais tendo-se desactualizado por via da subida dos preos, as cmaras recebiam uma soma muito superior quela que tinham que entregar ao rei. As teras dos concelhos consistiam na tera parte das rendas das cmaras, concedidas ao rei para a fortificao dos lugares. As dzimas "nova" e "velha" do pescado, que consistiam cada uma em 10% do valor do peixe pescado (andavam doadas aos duques de Bragana). Alm disso, existia o imposto das almadravas, pago pelas campanhas de pesca do atum e da sardinha de Setbal e do Algarve, consistindo em cerca de 40% a 60% do valor do pescado. Ambos as impostos tinham sido criados para sustento de uma armada destinada a proteger a pesca.Poderes e Instituies O Poder Central 21/106

O consulado, oferecido no reinado de Filipe I pelos mercadores para a organizao de uma armada de costa de proteco contra os piratas e inimigos. As alfndegas foram institudas para a cobrana da dcima das mercadorias que passassem por portos de mar. O mais comum era o pagamento de direitos de entrada, mas, pelo menos nalgumas alfndegas, tambm se pagavam direitos de sada. A importncia das alfandegrias no conjunto da tributao era muito grande. O pensamento mercantilista prope-se usar as alfndegas como factor de proteco das indstrias do Reino. Os portos secos so as alfndegas terrestres, onde se pagava a dzima das mercadorias entradas ou sadas. Andavam normalmente arrendados, cobrando ainda os rendeiros o produto das penas por contrabando ou descaminho. O tributo do sal decorria do direito real sobre o mar e suas margens, os salgados, ou salinas. O rei comprava um tero da produo, vendendo-o em monoplio (estanco), devendo as cmaras arrematar o sal necessrio ao consumo dos povos. Alm disto, o sal pagava sisa, dzima e consulado, como qualquer outra mercadoria. Os reais-d'gua, pagos sobre a carne e o vinho, foram originariamente impostos camarrios. Em 1635, a coroa decide a extenso dos reais a todo o Reino. O imposto rgio das meias-anatas incidiam sobre os rendimentos dos ofcios e outras mercs (ttulos, comendas, tenas, etc). Para os ofcios, elas consistiam no pagamento, na altura do provimento, de metade do rendimento anual do cargo. Para os rendimentos no certos, pagar-se-ia segundo a sua avaliao, que poderia incidir, inclusivamente, sobre benefcios imateriais, como a honra do cargo concedido. Depois da Restaurao, surgem expressamente tributados (por taxa fixa) certos ofcios, que hoje seriam considerados profisses liberais, mas cujo exerccio dependia de carta rgia (mdicos, cirurgies, boticrios, advogados, procuradores e solicitadores da Casa da Suplicao). A Guerra da Restaurao obriga criao de novos impostos. As dcimas tiveram como fonte inspiradora os dzimos pagos Igreja. Era uma dcima de todas as rendas de bens de raiz, juros, ordenados, tenas, outras rendas ou honra de ofcios. A dupla dcima (ou quinto), paga pelos donatrios da coroa, justificava-se pela ideia de que, no perdendo os bens da coroa essa natureza pela sua doao, lgico era que s suas rendas se recorresse mais intensamente aquando dos apertos da Fazenda. O subsdio literrio foi criado em 1772, para sustento dos estudos menores, ento oficialmente estabelecidos, destinadas aos mestres de ler e escrever, de solfa e gramtica. Consistia na imposio de um real por canada de vinho, 4 ris pela de aguardente e 16022/106 Poderes e Instituies O Poder Central

ris por pipa de vinagre, integrando-se numa ideia muito difundida na poca pombalina acerca do excesso de terras dedicadas vinicultura. O papel selado teve uma primeira tentativa de introduo em Portugal em 1637, sendo depois sucessivamente abolido e restabelecido. No perodo constitucional restabelecido, vigorando at sua recente extino. Comparativamente com outros reinos europeus, Portugal era o menos tributado, calculando a capitao portuguesa em cerca de 10% da holandesa ou da inglesa. Meios extraordinrios de financiamento. Os juros (derivados de emprstimos ao rei) Apesar das proibies da usura, os juros constituam um meio corrente de acorrer s necessidades financeiras da coroa. A licitude do recurso venda de juros decorria, entre outras, de uma das razes. A primeira era que a falta de cumprimento dos deveres do rei era maior mal do que a usura. A segunda era a da alegada proximidade entre o pagamento de um juro e o pagamento de uma tena, considerando o juro como uma liberalidade rgia remuneratria de um servio prestado ao rei. Os juros eram vendidos sob condio de poderem ser remidos a todo o tempo pela coroa. Diferente era a operao da reduo dos juros, que consistia em remir juros de taxa mais elevada, substituindo-os por outros de taxa menor. Isto exigia, naturalmente, o acordo do jurista; e, como ele nem sempre se verificava, supunha a disponibilidade de uma soma para distratar os juros dos que no aceitassem a reduo. Outros meios extraordinrios de financiamento O fisco real recorria a meios extraordinrios de financiamento nos casos de aperto financeiro. Recorria, desde logo, a dinheiro disponvel a cargo de outras instituies ou afectado a objectivos especficos. Tal era o caso das arcas concelhias destinadas a rfos, heranas jacentes ou bens deixados a favor dos cativos. O mesmo acontecia com as somas destinadas as obras pias, com as somas provenientes das teras dos concelhos e destinadas reparao das muralhas, ou com o produto do consulado, desviado do seu objectivo de organizao da armada de costa. Tambm os recursos da Casa da ndia eram mobilizados, no s como garantia de emprstimos, mas ainda, directamente, obrigando os mercadores da praa de Lisboa a comprar a pimenta em armazm. Os pedidos de subsdio voluntrio representavam outro meio importante de suprir os dfices das receitas ordinrias. Estes pedidos nem sempre eram em dinheiro: Em 1639 pedida nobreza a organizao do recrutamento e sustento de soldados para as guerras da monarquia, nomeadamente a da Catalunha. E tambm se podem encontrar pedidos dePoderes e Instituies O Poder Central 23/106

armas e navios de guerra para o socorro das conquistas. Regalia Relacionadas com o poder de imprio do rei est um grupo de rendas que, no contexto das receitas da coroa portuguesa, modesto. Trata-se dos rditos da pena de confisco, nomeadamente das executadas pelos juzos do fisco dos trs tribunais da Inquisio; das dcimas das sentenas cobradas nos tribunais de justia, nomeadamente na Casa da Suplicao e na Casa do Cvel; das penas do contrabando e das penses dos tabelies. Estancos Os estancos constituam monoplios de venda de certos produtos, como do sabo. Outros decorriam do monoplio rgio sobre o comrcio com as conquistas (como o da pimenta e o do pau-brasil). Os mais importantes so o sal, o tabaco e ouro e pedrarias do Brasil. Neste ltimo, a coroa oscila entre a poltica de monoplio da comercializao, de imposio do quinto sobre a extraco e de capitao da populao das zonas aurferas. As conjunturas financeiras. A primeira conjuntura (1600-1621) estende-se at ao agravamento das condies do comrcio atlntico consequentes do fim da trgua com os Holandeses, que permitiu que se mantivesse muito do comrcio transatlntico e com o Norte da Europa. A coroa gozava, ainda, de um confortvel desafogo financeiro: o ouro da Mina; o rendimento das alfndegas no Norte de frica; o mbar de Arguim e de outros estabelecimentos da frica Ocidental; as riquezas do Amazonas; as viagens comerciais da ndia e da China, o trato de Ormuz, Diu ou Malaca e o do Monomotapa; as salinas reais do Reino; os foros das casas e solares de Lisboa. Os grandes problemas militares e financeiros decorrentes da ruptura da trgua s adviro em 1623, com a conquista de Ormuz pelos Ingleses, e depois com a conquista da Baa pelos Holandeses. Quanto estrutura das receitas, mantm-se a tradio que vinha dos finais do sculo anterior e que se manter como uma caracterstica das finanas rgias portuguesas: o peso esmagador das receitas provenientes do comrcio externo. O interior do Reino contribui fracamente para as receitas totais. De facto, encabeadas as sisas nos meados do sculo XVI, as rendas mantm-se quase constantes a preos reais, desvalorizando-se permanentemente a preos deflacionados. E as outras rendas interiores limitavam-se a pouco: almoxarifados dos prprios da coroa e das ordens militares, teras, estancos das cartas de jogar e, mais tarde, do sal. Neste contexto financeiro, o recurso a meios extraordinrios de angariar receitas (como24/106 Poderes e Instituies O Poder Central

os pedidos ou a venda de juros) no eram muito necessrios, a no ser para cobrir gastos extraordinrios. O sculo XVII v aumentar a cadncia e os montantes das operaes de venda de juros. Perante o aparente descrdito das rendas reais como lugar para situar juros, Lisboa assume um papel de angariador e garante da dvida da coroa. Os juros so vendidos taxa do mercado (6,25%) sobre rendas municipais, comprando depois Lisboa, taxa imposta pela coroa ( 5%), os juro sobre as rendas reais. Esta operao , normalmente, prejudicial. Por um lado, a cidade empenha progressivamente as suas rendas, que, com isso, vo perdendo credibilidade. Depois, o juro pago aos credores geralmente superior ao que recebe da coroa. De qualquer modo, nestas primeiras operaes o xito foi notvel. A contnua interveno de Lisboa mostra que as rendas reais, como assentamento da dvida, comeava a degradar-se. E, de facto, em 1612 cria-se uma junta para a reforma das despesas certas da coroa (ordenados, tenas, juros e consignaes), sobretudo para pr ordem no pagamento das tenas, cerceando abusos, pois estas andariam a ser pagas j depois de mortos os titulares. Do ponto de vista das despesas, se excluirmos as militares e as consignadas fbrica das armadas da ndia e compra das especiarias orientais, o resto reparte-se por igual em ordenados, tenas e juros. Ou seja, para alm de estarmos perante uma coroa que vive para o comrcio com o ultramar, estamos tambm perante uma monarquia cujos encargos correspondem basicamente estrutura feudal-corporativa do benefcio. Isto apesar de a teoria do salrio se destacar, progressivamente, frente merc como paga de um servio e de a teoria dos juros se afastar, tambm progressivamente, da sua representao como uma obrigao beneficial. Sublinha-se ainda um trao comum a todas as despesas beneficiais - a sua natureza forosa, devida. Porque, gozando todas de uma natureza remuneratria, obrigavam a coroa estritamente ao seu pagamento, criando correspondentes direitos, judicialmente accionveis, a favor dos beneficirios.

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2. Os Concelhos e as Comunidades Instituies e poderes locaisA primeira peculiaridade portuguesa residia na relativa uniformidade das instituies locais. certo que os grandes concelhos coexistiam com os minsculos, no entanto, as suas atribuies eram semelhantes em toda a parte. A outra singularidade, indiscutvel, reside na inexistncia de instituies formalizadas de mbito regional. As cmaras. Todo o territrio estava coberto por concelhos, designados como cidades, vilas, concelhos, coutos e honras, sem que dessas designaes resultassem significativas diferenas. Todos eram dirigidos por uma cmara composta por um juiz-presidente (ordinrio ou de fora) e por, pelo menos, dois vereadores e um procurador, em princpio no remunerados, eleitos localmente e confirmados ou pela administrao central ou pelo senhor da terra. Os juzes tinham em toda a parte atribuies formais semelhantes, que compreendiam a jurisdio em primeira instncia sobre quase todas as matrias. Em todo o lado, os vereadores, procuradores e os juzes ordinrios (quando existiam) eram eleitos por um ano de forma idntica. Os ofcios no remunerados mais frequentes incluam os almotacs, que, embora no fizessem parte das cmaras, tinham a seu cargo atribuies relevantes, designadamente o abastecimento em gneros e a fixao de preos. Existiam outros ofcios, providos por nomeao vitalcia ou hereditria, tendo muitas vezes sido objecto de venda. Era o caso dos escrives do judicial, os nicos oficiais que tinham de saber escrever. Em todos os concelhos existiam ainda juzes dos rfos, com atribuies nas partilhas e na administrao dos bens dos rfos. Apesar desta uniformidade, havia diferenas evidentes. Um primeiro factor de diversificao era a dimenso, coexistindo concelhos gigantescos com minsculos municpios rurais. Por outro lado, uma parte dos concelhos era presidida por juzes de fora, enquanto a maioria o era por juzes ordinrios de eleio local. Existia ainda uma parcela dos municpios, varivel no decorrer dos sculos XVII e XVIII, que estava sujeita confirmao de justias e apresentao de oficiais pelos senhores, que podiam julgar as respectivas sentenas em apelao. Finalmente, at finais do sculo XVII, um nmero oscilante de cmaras podia eleger os seus procuradores para o brao do povo nas Cortes. Embora a regra fosse a estabilidade, a verdade que o nmero de concelhos foi variando e que em nenhum momento foi apurado com absoluto rigor. Os municpios no foram criados por decreto, mas legados pelos sculos monarquia moderna, cujos funcionrios os reconheciam. Era mais frequente a criao de novas unidades do que a supres26/106 Poderes e Instituies Os Concelhos e as Comunidades

so das herdadas. Poucos foram os concelhos que, como o de Cacela, sofreram uma extino formal. Mais numerosos foram os que se criaram, para serem concedidos em senhorio a novos donatrios, algumas vezes com a oposio das cmaras de onde eram desanexados. Estas promoes em favor de novos donatrios foram especialmente numerosas na segunda metade do sculo XVIII. Uma anlise mais minuciosa mostra que os costumes e tradies locais e a incidncia dos poderes senhoriais restringiam a uniformidade do funcionamento municipal definida pela legislao. Havia concelhos onde os senhorios literalmente nomeavam as justias a seu bel-prazer. Existiam municpios que disputavam a tutela sobre pequenas cmaras, tanto mais que os juzes de parte destas no usufruam de jurisdio criminal. A interveno dos magistrados da coroa, principalmente no sculo XVIII, contribuiu para que a tendncia de uniformizao se fosse tornando mais efectiva. As ordenanas. As ordenanas eram circunscries de recrutamento e treino milicial que existiam, em princpio, em todo o territrio, embora antes da Restaurao no estivessem operacionais em vastas zonas do Centro e Norte. Enquadravam todos os homens maiores de 16 anos (excepto os privilegiados e os velhos). Tem-se destacado a importncia das ordenanas como fonte de poder na esfera local. A respectiva hierarquia dependia do poder camarrio, com interveno varivel, e de outras instncias (governos militares) e tendia a tornar-se vitalcia, apesar de, em vrios momentos, se ter publicado legislao em contrrio. Os oficiais das ordenanas tinham grande poder e eram fonte de intimidao (apesar de no serem remunerados), j que controlavam o recrutamento militar. A sua grande autonomia relativamente hierarquia militar tendia a transform-los num plo autnomo de poder ao nvel local. Outras instituies locais. Todo o territrio era coberto pela rede paroquial, se bem que houvesse grandes diferenas nas Parquias, a comear pelas formas de provimento dos procos, a respectiva remunerao e o destino dado aos dzimos eclesisticos. Contribuam para a vida associativa dos leigos, atravs das confrarias e irmandades. As misericrdias no se distribuam uniformemente por todo o territrio nacional: eram mais numerosas a sul do Mondego do que a norte. A sua actividade assistencial e a sua actuao como fonte de crdito tendiam a configur-las como instituies fundamentais na estruturao das elites locais e como importantes centros de poder e influncia. Por fim, o poder senhorial condicionava e interferia nas cmaras, tal como os padroados permitiam a instituies exteriores exercerem influncia nas relaes paroquiais.Poderes e Instituies Os Concelhos e as Comunidades 27/106

A inexistncia de poderes formalizados de mbito regional. O Reino no se expandira pela integrao de comunidades, mas pela conquista territorial. No existiam quaisquer direitos regionais, nem instituies prprias das provncias. No entanto, se as realidades regionais no se cristalizavam em instituies, a verdade que a descrio do Reino como um agregado de realidades provinciais diversificadas nunca desapareceu. Despojada de qualquer traduo institucional, a identificao provincial perpetuou-se at ao fim do Antigo Regime, mesmo em documentao emanada de corpos locais.

Centro e periferiaO poder dos municpios tem sido apresentado como principal contraponto autoridade da coroa. Mas, que se saiba, nunca foram capazes, depois da Restaurao, de promover formas de resistncia autoridade central que alcanassem sequer uma dimenso regional. difcil decidir se foi a escassa articulao entre as cmaras ou a fraca interveno dos delegados da coroa o que mais contribuiu para o carcter muito localizado de todas as revoltas verificadas at os finais do Antigo Regime. Os instrumentos de comunicao da periferia. Aponta-se a decadncia das cortes como indicador do declnio da comunicao dos poderes da periferia com o centro. Se bem que o terramoto tenha feito desaparecer parte da documentao, o que impede a avaliao nos perodos anteriores, para a segunda metade do sculo XVIII patente a frequncia com que as instituies locais recorreram petio como via para a resoluo de problemas e conflitos. possvel afirmar que, em regra, todos os grandes conflitos que ocorreram na sociedade local portuguesa deixaram algum rasto nas instituies centrais. O isolamento pode ter sido bem menor do que geralmente se pensa. Os instrumentos de fiscalizao do centro. A multiplicao dos juzes de fora foi apresentada como prova do declnio do municipalismo, esmagado pelo centralismo da monarquia. De facto, em meados do sculo XVII havia juzes de fora em menos de 10% dos concelhos e em 1811 em cerca de 20%, o que significa que a maior parte da populao (76%) e do territrio ficam abrangidos por concelhos presididos por juzes de fora. Mas o que significava um concelho ser presidido por um juiz de fora? Num aspecto parece indiscutvel a sua actuao: serviam de veculo circulao do direito letrado oficial. Mas, em quase todos os outros aspectos as respostas no so lineares, pois o juiz de fora controlava os poderes perifricos de forma muito indirecta, tanto mais que as longas permanncias destes, muitas vezes de vrios trinios, nem sempre asseguravam que os se mantivessem acima dos conflitos e faces locais. Alm disso, a grande extenso28/106 Poderes e Instituies Os Concelhos e as Comunidades

de muitos territrios obrigava a longas ausncias, perodos em que os juzes de fora eram substitudos pelos vereadores mais velhos, que assim assumiam as suas competncias, no s em matrias administrativas mas tambm de justia. Ter sido em resposta a este tipo de situaes que o alvar pombalino de 1774 proibiu aos vereadores mais velhos o final conhecimento de todas as Causas, assim Cveis, como Criminais. Os corregedores estavam em ligao mais estreita com as instituies centrais. Tinham competncias vrias: em matrias de justia incluam a inquirio das justias locais, a avocao dos feitos dos juzes ordinrios e o conhecimento dos agravos s respectivas decises; na tutela dos municpios competia-lhes verificar a eleio local dos juzes e vereaes; e ainda em matrias de polcia. No entanto, as suas jurisdies no abrangiam os assuntos militares, incumbncia dos respectivos governos, nem a maior parte dos da Fazenda, da competncia dos provedores ou de outros magistrados da coroa. Apesar da limitao imposta pela coexistncia com os provedores, os corregedores constituam o principal instrumento de actuao das instituies centrais na esfera local. O Reino encontrava-se dividido, at 1790, em jurisdies denominadas Correies, para as terras da Coroa, e Ouvidorias, para as dos Donatrios. Depois desapareceram os ouvidores, mas tratou-se de pouco mais do que uma mudana de designao. Era competncia dos provedores a fiscalizao da cobrana da maior parte dos impostos devidos coroa, bem como das finanas municipais, de hospitais e misericrdias e a execuo de legados pios. Os seus territrios no coincidiam com os das Correies e, por vezes, um mesmo magistrado acumulava as funes de corregedor e de provedor. A segunda metade do sc. XVIII. A partir da segunda metade do governo pombalino detectam-se tendncias para o aumento do controlo dos poderes centrais sobre as instituies municipais. Algumas dessas tendncias iniciam-se antes, como o caso do declnio do poder senhorial ou do aumento do nmero de juzes de fora; outras so marcadamente pombalinas, como seja o reforo do controlo central sobre as finanas municipais e sobre os baldios, ou a retirada de competncias aos juzes no letrados. Importa salientar que a criao das superintendncias e da Intendncia-Geral da Polcia representou uma restrio suplementar aos dos poderes perifricos em geral.

As repblicas municipaisO mundo jurdico local. At ao triunfo do liberalismo as cmaras detinham competncias administrativas e judiciais. A documentao que chegou at ns muito mais abundante sobre a actividade administrativa do que sobre a judicial. Uma possvel explicaoPoderes e Instituies Os Concelhos e as Comunidades 29/106

para esta lacuna que a maior parte das cmaras no era presidida por juzes letrados. Ou seja, possvel que muitas deliberaes nunca chegassem a assumir forma escrita. A constatao precedente e a escassa eficcia da centralizao esto na origem da ideia da coexistncia de diversos sistemas de justia no Antigo Regime. Existiria, assim, uma contraposio entre cultura jurdica oral e cultura jurdica escrita, entre uma justia tradicional e comunitria e uma justia oficial. As fontes do direito no oficial seriam os costumes, as posturas e os privilgios locais. Corresponder-lhe-ia uma prtica jurdica caracterizada forte interveno comunitria na resoluo dos conflitos. No plano administrativo, distinguia-se um sistema local patriarcal-comunitrio (predominante nos pequenos concelhos do interior beiro), um sistema local concelhio, com alguma administrao "escrita" (predominante nos grandes concelhos do sul) e ainda o sistema da administrao da coroa, a cargo de oficiais perifricos da administrao real. Se a existncia de contrastes regionais no oferece dvidas, o sentido da justia no oficial permanece obscura. Mas, mesmo quando iletrados, os juzes ordinrios operavam no quadro de uma sociedade impregnada pela cultura letrada. Invoca-se em defesa dos juzes rsticos que tinham juzo e capacidade para a dita ocupao e no faziam cousa alguma sem conselho de Assessor letrado. Num aspecto existia consenso entre todos aqueles que, vindos de fora, recorriam s justias locais: estas tendiam sempre a proteger os de dentro, os da terra. O governo econmico local. As posturas e a regulamentao da economia local constituam aspecto essencial da jurisdio das cmaras, pois a autarcia econmica era um dos objectivos prioritrios do governo municipal. Essa actuao das cmaras tornava-as num obstculo livre circulao de mercadorias e, por isso, num alvo das crticas reformistas da fase final do Antigo Regime. No entanto, se a autarcia econmica constitui um trao comum, a sua traduo prtica pautava-se por diferenas. Estas decorriam da dimenso dos concelhos, da importncia das sedes e da composio das vereaes, mas ainda do tipo de economia e de estrutura social dominante em cada zona. Um domnio decisivo da aco camarria era a reserva de uma parte da produo cerealfera para o abastecimento da populao residente e o tabelamento dos respectivos preos. Com efeito, o po barato constitua uma exigncia fundamental dos de baixo e um despoletador de revoltas e tumultos em anos de escassez. As Ordenaes Filipinas instituam um princpio claro: Toda a pessoa que tiver po seu, o poder levar livremente onde quiser, deixando a tera parte no lugar donde o tirar, e a dita tera parte poder levar com licena da Cmara do dito lugar. Apesar deste principio, que confi30/106 Poderes e Instituies Os Concelhos e as Comunidades

gurava um modelo de interveno comum, a diversidade das economias regionais contribua para que se fossem impondo diferentes solues na sua concretizao. Em Entre Douro e Minho a prtica generalizada era a da fixao das teras atravs da parcela dos rendimentos dos dzimos eclesisticos. No Algarve no se recorria no sculo XVII ao teramento dos dzimos, embora estes fossem considerados o primeiro recurso em anos de crise, quando se podia chegar at proibio da exportao dos cereais de todos os particulares. No sculo XVIII, porm, a reserva das teras para o consumo concelhio passou a ser a prtica corrente. No Alentejo, as intervenes camarrias nestas matrias pautavam-se por outras caractersticas, dada a difuso dos celeiros comuns, instituies que tinham funes de crdito agrcola. Em geral, a interveno camarria era severa no respeitante ao teramento e tabelao dos outros gneros alimentares, entre os quais a carne. No mesmo sentido, as cmaras intervinham na taxao dos artefactos produzidos pelos oficiais mecnicos, que podiam estar, para mais, enquadrados em organizaes corporativas vinculadas aos municpios. Finalmente, merece um destaque particular a taxao dos salrios dos jornaleiros, particularmente em zonas de grande explorao agrcola. Nos finais do Antigo Regime, parece ser muito escassa a eficcia deste tipo de intervenes, num perodo em que so correntes os conflitos entre assalariados e patres. A promoo de feiras e mercados era outra das atribuies camarrias. Em alguns casos, esta constituiu um recurso importante das finanas municipais. Um domnio decisivo da aco camarria, particularmente na segunda metade do sculo XVIII, era o da administrao dos baldios e maninhos. Nos concelhos e parquias em que os donatrios tinham direito a aforar os baldios, a oposio das cmaras e populaes constituiu uma das razes dos movimentos anti-senhoriais que se verificaram nos finais do Antigo Regime. Nos restantes concelhos, ou seja, na esmagadora maioria, necessrio distinguir entre grandes e pequenos. Nestes ltimos no havia, em regra, litgio na administrao dos baldios. Pelo contrrio, nos municpios grandes ou mdios tendia a assistir-se a uma disputa entre a comunidade local e o poder municipal. Os baldios tanto podiam opor os membros de toda uma parquia solicitao de aforamento feita por um influente proprietrio ou fidalgo, como polarizar os habitantes de parquias vizinhas uns contra os outros em torno do respectivo controlo; as parquias, por seu lado, tanto podiam solicitar cmara o aforamento dos baldios para os dividirem, como para garantirem a sua fruio comum pelos habitantes; finalmente, o aforamento individual dos baldios no representava necessariamente um aumento da rea agricultaPoderes e Instituies Os Concelhos e as Comunidades 31/106

da, pois quem o fazia podia ter como nica inteno garantir matos e lenhas. A legislao pombalina de 1755 transfere para as cmaras as competncias sobre os baldios, mas exige que aquelas consultem a Mesa do Desembargo do Pao antes de fazerem novos aforamentos. A eficcia destas disposies, que pareciam restringir a privatizao dos baldios, ter sido bastante diminuta, at porque se foram difundindo concepes hostis s formas de propriedade colectiva e que viam na privatizao dos baldios uma condio do progresso da agricultura. As finanas municipais. Os rendimentos dos municpios eram, em regra, bastante diminutos e o contraste entre as pequenas cmaras e as maiores muito acentuado. Eram trs as principais fontes de rendimento dos municpios: as condenaes, os impostos municipais (imposies sobre o consumo) e os foros, designadamente, os provenientes dos aforamentos dos baldios. Excepcionalmente podiam ter outras fontes de rendimento, como era o caso da de Viseu com a feira franca. Finalmente, os municpios podiam tirar proventos suplementares do encabeamento das sisas (sobejos das sisas). Quando os montantes no alcanavam o pretendido, podia-se lanar uma fnta extraordinria (sisa de cabeo, ou ferrolho). Quando as dificuldades financeiras se agravavam, como ocorreu frequentemente a partir do final do sculo XVIII, a soluo era aumentar a presso tributria sobre as populaes. E, nos concelhos com grandes termos, era sobre os habitantes das freguesias rurais que tendiam a cair os maiores encargos. partida, poder-se-ia pensar que to magros recursos diminuiam a atraco pelos ofcios da governana. Assim era nos pequenos concelhos mas, nos grandes, os oficiais camaristas manipulavam um conjunto relevante de recursos, recebiam emolumentos especiais em vrias ocasies, controlavam a arrematao de rendas e o aforamento dos baldios, intervinham na organizao e na repartio dos impostos devidos coroa. Detinham, pois, um centro decisivo de poder e influncia.

Poderes municipais e elites sociais locaisA vitalidade do poder municipal indissocivel da constituio, inicada nos finais do sculo XVI e consolidada em fins do XVII, de oligarquias camarrias, que correspondiam a uma classe social formada dentro da Ordem popular e que, pela sua conduta, modo de vida e exerccio do governo concelhio, conseguiu ficar nas bordas da nobreza. A consolidao das oligarquias municipais acompanhou as restries elegibilidade para os ofcios honorrios municipais verificadas ao longo do sculo XVII. De facto, as intervenes legislativas da coroa, bem como a actuao dos seus magistrados, encami32/106 Poderes e Instituies Os Concelhos e as Comunidades

nharam-se no sentido de garantir que os ofcios nas vereaes e nas ordenanas fossem ocupados pelos principais das terras. Esta orientao patenteia-se no apenas nos regimentos que restringem a elegibilidade, mas ainda em numerosas intervenes tentando impedir a fuga das pessoas principais dos ofcios das pequenas cmaras. A convocao de assembleias de habitantes ou de delegados das freguesias tendem a desaparecer ou tornam-se raras nos grandes concelhos. A monarquia no parece ter contrariado as tendncias oligrquicas do poder municipal; pelo contrrio, t-las- potenciado. Nos grandes concelhos os ofcios honorrios eram intensamente disputados, ao mesmo tempo que se registava a fuga ao desempenho dos ofcios menores. Nos pequenos e pequenssimos concelhos, a regra parece ter sido a da resistncia das elites locais a integrarem as instituies camarrias, incluindo as vereaes, e as explicaes so fceis de entrever: por um lado era duvidoso que a participao nas pequenas cmaras acrescentasse prestgio social, sobretudo a quem j o tinha; por outro, ser-se oficial camarista num municpio de reduzidas dimenses e com escassissimos rendimentos podia revelarse ruinoso para juzes ordinrios, vereadores e procuradores pois, conforme muitas vezes se queixavam, tinham de pagar dos seus bolsos parte das teras devidas coroa. Nos grandes concelhos, especialmente nas sedes de comarca, pontificavam fidalgos da Casa real, cavaleiros das ordens militares. Nas pequenas cmaras, onde era normal haver vereadores iletrados, encontram-se lavradores, oficiais mecnicos e at trabalhadores rurais. Uma directa consequncia directa que as elites camarrias no constituam nem eram olhadas como um grupo social idntico em todo o territrio nacional. Quando muito, isso podia ocorrer em algumas regies, designadamente no Sul.

Entre oligarquia e comunidadeNo havia comunidades naturais enraizadas, se bem que, em certos contextos, podiam contrapor-se formas de comunidade local ao poder municipal. Assim, as organizao dos leigos das parquias tendiam a constituir um plo alternativo em muitos concelhos, mas a sua relevncia no era idntica em todo o territrio. Formas de comunidade local e de aco colectiva podiam surgir em faxe de novos contextos (imposies tributrias, contestao ao pagamento de direitos senhoriais), nas so construes mutveis e contextuais, muito diversificadas no espao e no tempo. Eram bastante dbeis, devido inexistncia de instituies regionais e provinciais e sua enorme diversidade. De certa forma, a sua importncia decorria mais da precariedade dos instrumentos de controlo da coroa do que da vitalidade dos seus recursos prprios.

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3. O Poder Senhorial Senhorios, doaes rgias e aristocraciaA dependncia da aristocracia em relao s doaes rgias decorria da Lei Mental e estendia-se a todas as doaes, designadamente s comendas: H casas cujos nicos bens so comendas. O Rei pode sempre no as dar aos filhos dos que morrem, mas d-as quase sempre; e por isso, os aristocratas so escravos dos reis que os podem esmagar no lhes dando comendas. Contra esta dependncia aponta-se a importncia dos domnios senhoriais, que abrangiam, em meados do sculo XVII, a maior parte do territrio e salienta-se que o carcter quase automtico da confirmao rgia atenuava os riscos e amolecia o sentimento de dependncia dos senhores em relao ao rei. A Lei Mental constitui a pea chave de muitas interpretaes da histria portuguesa desde o sculo XV. Esta lei estabelece a forma de sucesso nos bens doados pela coroa, de acordo com princpios de primogenitura, varonia, inalienabilidade e indivisibilidade, consignando a reverso para a coroa daqueles que no respeitassem as condies de transmisso referidas. Importa salientar, no entanto, que alguns dos efeitos que lhe so atribudos no decorrem do seu clausulado, mas sim do facto de as doaes rgias poderem ser concedidas, no de juro e herdade, mas em vidas. Era esse, alis, o regime exclusivo no quadro do qual a coroa fazia mercs nas comendas e nas tenas. Foi o facto de a coroa poder actuar na distribuio e redistribuio de honras e proventos que permitiu a reestruturao da alta nobreza verificada em meados do sculo XVII. A elite cortes passou a monopolizar os principais cargos e ofcios no Pao, na administrao central, no exrcito e nas colnias. A remunerao dos servios foi sendo regulamentada, tal como as regras da sua transmissibilidade (Regimento das Mercs). Servios to relevantes para as grandes casas aristocrticas como os de vice-rei da ndia ou de dama do Pao tinham uma tabela de remunerao tacitamente reconhecida. Ou seja, a margem de arbtrio do rei estava seriamente restringida pela existncia de normas que estabeleciam uma relao entre os servios e as mercs correspondentes. O rei e a elite aristocrtica estavam, assim, envolvidos numa teia de relaes e obrigaes recprocas. No entanto, no parece adequado identificar essa configurao social com um instrumento de domesticao da nobreza pois, desde a Restaurao at ao pombalismo, foram vrios os momentos em que se pode pensar que os Grandes controlaram, de facto, os destinos da monarquia.

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As jurisdies senhoriaisIntroduo. Por que razo estavam as casas nobilirquicas ou eclesisticas interessadas em alcanar, preservar e exercer poderes jurisdicionais? Uma primeira resposta reside na preeminncia simblica do exerccio de funes jurisdicionais: at ao princpio do sculo XVIII era a posse de senhorios com jurisdio que delimitava o topo da hierarquia nobilirquica, ou seja, as casas que tinham assento em cortes pelo brao da nobreza. Outro sentido era que posse destes senhorios permitiam a constituio de centros autnomos de poder poltico e militar perifrico, coexistentes, mas em larga medida concorrentes, com os poderes da coroa. Um terceiro sentido era o da preservao de centros de controlo social importantes como fontes de rendimentos. As competncias formais dos senhores. Os poderes atribudos aos senhores restringiam-se jurisdio intermdia, ou seja, os donatrios nem podiam julgar em primeira instncia, nem podiam decidir em ltima. A jurisdio senhorial era, assim, de segunda instncia, relativamente qual havia, em quase todos os casos, recurso para um tribunal superior da coroa. Esta delimitao impunha-lhes limitaes, mas os poderes senhoriais conferiam-lhes a capacidade de condicionar e restringir a composio, as atribuies e as deliberaes das cmaras e dos seus juzes. As jurisdies intermdias eram exercidas por um oficial nomeado pelo senhor, o ouvidor, que podia ou no ser letrado. Por doao expressa, os senhores podiam receber a iseno da correio real, ou seja, ficava vedado aos corregedores a entrada nas terr