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    Brega, Samba, e Trabalho Acstico: Variaes em torno de umacontribuio terica etnomusicologia.

    Samuel Araujo, UFRJ(*)

    RESUMO: Busca-se empreender uma reflexo conceitual sobre o campo daetnomusicologia, tomando-se como ponto de partida dois universos decomunicao sonora no-verbal -- brega e samba -- estudados pelo autor. Oconceito de trabalho acstico, elaborado a partir de certas formulaes docampo da filosofia da linguagem, assim proposto como instrumento eficazpara a superao de certos impasses e dicotomias recorrentes na pesquisaetnomusicolgica

    A assimilao pela etnomusicologia de temas comumente associados chamada, msica popularurbana ps em discusso os fundamentos que norteavam aquela disciplina at ento. Aquelescomplexos entroncamentos de culturas, surgidos, em muitos casos, do anonimato e nele, emltima instncia, dissolvidos, causaram ao etnomusiclogo uma perturbadora sensao de fluidez,uma vez impossibilitada sua viso holstica das mltiplas relaes sociais subjacentes ao fazermsica, teoricamente possvel na observao das assim chamadas "sociedades simples". Superadaa antipatia crnica pelos produtos musicais dessa realidade a cada dia mais abrangente (e tambmrefletindo a emergncia da antropologia urbana), procurou-se uma espcie de conciliao tericaentre uma etnomusicologia mais "clssica" e aquela dedicada a estudos urbanos, tomando-sealguns daqueles produtos--no todos--ora como reelaborao de tradies estabelecidas, ora comocriao de novas tendncias expressivas de comparvel significao para seus criadores. Comoformulado por Nettl,

    Longe de virarmos nossas costas a estes resultados dasdesventuras da poluio, ns deveramos estar atentos a eles

    porque constituem o grosso da experincia musical noocidental, e porque nos fornecem a oportunidade deobservarmos, em primeira mo, o produto musical da interaocultural .. (Nettl 1983:346)

    Embutido em tal esforo, vinha uma espcie de mensagem de alvio humanidade supostamenteameaada por total homogeneizao cultural: a progressiva urbanizao das populaes do globo

    sob a hegemonia capitalista continuava a produzir diversidade em abundncia, o que pareciaafastar os perigos do musical grey-outantevisto por Lomax (1968).Convenientemente, noentanto, permaneceu excluda dessa literatura toda a esfera de msicas que, ignorando a boavontade dos etnomusiclogos, pareciam continuar a comprometer a diversidade; isto ,

    provavelmente, a parte majoritria da produo/recepo em termos globais hoje.

    Com este trabalho, procuramos apresentar uma perspectiva terica por ns construda em razo de

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    dois estudos de prticas musicais no contexto brasileiro que poderiam ser caracterizadas, em umprimeiro momento, como urbanas. As duas primeiras partes consistiro de uma descrio concisade cada uma dessas prticas e de alguns problemas por elas colocados; j a terceira parte discute otrabalho de elaborao conceitual que passou a ocupar-nos a partir dos estgios conclusivos denossa tese de mestrado (Arajo 1987). Nela tratvamos de uma questo sui generis dentro doconjunto da msica brasileira: todo um setor da produo comercial, a chamada msica brega,

    tido pela crtica jornalstica como de mau gosto e repleto de clichs, e que, embora responsvelpelo crescimento inusitado do mercado do disco no Brasil, permanecia quase que absolutamenteignorado pela literatura acerca da msica brasileira. Inmeras questes emergiram de tal estudo,mas talvez a principal delas consistia em entender por que nossos compndios limitavam-se atraar uma linha evolutiva compreendendo uns poucos gneros e estilos populares, como amodinha, o lund, o samba ou a bossa-nova, reservando um lugar marginal, se tanto, a outrasformas de expresso. O critrio de representatividade obviamente no a respondia de modosatisfatrio, nem tampouco o de enraizamento na tradio passada, ou o de uma anlise musicalmais ortodoxa. Talvez suas fontes, formas de utilizao e taxonomia, comentadas mais adiante,fossem por demais escorregadias, sem que se pudesse apontar categoricamente o quecaracterizaria o gnero ou estilo, ou mesmo se haveria afinal algum gnero ou estilo definvel.

    Tais questes poderiam parecer inerentes apenas ao tratamento de rtulos do mercado do disco,sem aparente ligao com um grupo social especfico--da ser o bregaum tema at entonegligenciado pelos etnomusiclogos e folcloristas musicais. Todavia, logo ao iniciarmos nosso

    projeto de tese de doutorado sobre o sambana cidade do Rio de Janeiro (Arajo 1992), um doselos-chave da linha evolutiva a que nos referimos acima e organicamente ligado populao afro-brasileira da cidade, j antecipvamos a interferncia dessas questes, uma vez que desde ocomeo de sua histria conhecida podemos detectar a utilizao do sambacomo mercadoria pelaindstria do entretenimento. Como lidar com tais simultaneidades e principalmente com ainterao--muitas vezes tensa--entre a expresso comunitria do samba e seu aspecto comercialnos surgia, portanto, como uma questo terica de dimenses mais srias do que poder-se-ia

    pensar em princpio. Seria, de algum modo, possvel a retroalimentao via indstria de valores easpiraes coletivas caros s comunidades que cultivam o samba(o chamado mundo do samba),ainda que no fosse esse, evidentemente, o objetivo? Como entender e, quem sabe, influir

    positivamente em tal processo?

    BREGA

    Em meados dos anos 80, discutiu-se pela primeira vez na chamada grande imprensa o retumbantesucesso comercial de todo um espectro de cantores populares rotulados, segundo as notciasiniciais, como brega. Essa sbita ressonncia devia-se, em grande medida, publicidade em tornodo disco Brega-chique, chique-brega (1984) do cantor, pianista e compositor Eduardo Dusek. Afarta explorao de tal "descoberta" no conseguia, no entanto, explicar uma srie de questes. O

    prprio termo era uma delas. Em nossa recoleo pessoal, ele era aplicado pejorativamente porsetores da classe mdia do Rio de Janeiro ao universo das empregadas domsticas--i.e., seusgostos, hbitos, pertences--por volta da dcada de 70; em sentido mais amplo, a tudo aquilo que se

    procurasse caracterizar como de mau gosto. Mas os dicionrios no registravam tal verbete e asmuitas definies ento colhidas pela imprensa eram as mais dspares, muito embora nelasestivesse quase sempre presente algum elemento depreciativo.

    Instado a comentar o assunto, o piv da polmica, Eduardo Dusek, apontava alguns dosrebatimentos do "fenmeno": muito alm do preconceito contra as empregadas, tambm seriambregaa elitista e anti-democrtica poltica brasileira e o vazio cultural a ela correspondente. Nestaltima acepo, segundo ele, o termo tambm ter-se-ia estabelecido na indstria do disco, comodesignao genrica de um amplo e estilisticamente diversificado repertrio, que, como japontado acima, responderia pela esmagadora maioria de discos (em nmero de unidades)vendidos no Brasil como um todo.

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    interessante ressaltar que nossa viso subjetiva poca em que tal debate veio tona era a deque pelo menos aqueles exemplos apontados pela imprensa por ns reconhecidos maisimediatamente nos pareciam "mal-acabados", aborrecendo-nos sua audio; seu sucesso,

    pensvamos, estaria associado intrinsecamente a massivas execues em rdios e outros veculospopulares e a uma suposta vulnerabilidade do gosto popular, privado de amplo acesso aos bensculturais e do cultivo de manifestaes prprias, i.e. "autnticas". Tais impresses, assumidamente

    superficiais, apresentavam pontos comuns s primeiras descries da msica bregapela mdia.Segundo elas, um nmero expressivo de canes teriam "letras ingenuamente romnticas" oucontedo "escatolgico", "grotesco", ao que se acrescentaria o uso abundante de clichs musicais.A acreditar nessas mesmas fontes, os artistas mais representativos dessa tendncia seriamoriginrios dos extratos mais baixos da hierarquia social: trabalhadores rurais, motoristas decaminho, trabalhadores de baixa renda do setor de servios, lmpen-proletariado.

    Face ao verdadeiro mosaico de estilos apontados pela imprensa como inclusos na mesmacategoria, resolvemos empreender um estudo exploratrio de um conjunto de gravaesrepresentativas, i.e., segundo o sucesso comercial tornado pblico durante o perodo em que odebate irrompeu. Procuramos basicamente atentar para as possveis articulaes de elementos,gneros e estilos musicais na delineao de um campo musical mais amplo, mas homogneo o

    bastante para justificar sua incluso sob uma categoria geral comum. As fontes musicaisidentificveis nos discos mais representativos eram, no entanto, bastante heterogneas e fluidas.Variavam de rancherasinvocando o estilo dos mariachimexicanos, mas cantadas em portugus,

    a lambadasde algum modo evocativas do merenguedominicano (adaptao popular no norte dopas desde pelo menos os anos 70); de uma aparente sub-espcie de samba denominada samba-romnticoa derivaes brasileiras do rock britnico e norte-americano dos anos 60 (uso dealguns clichs do chamado "i-i-i"). Tal diversidade era costurada, por assim dizer, por

    procedimentos musicais a que dificilmente poderamos atribuir uma origem mais precisa.

    As possibilidades abertas por essa pesquisa nos pareceram bastante interessantes, ainda que nosintrigassem. Bregaaparecia como uma forma de juzo negativo vigente em uma formao socialespecfica, a brasileira. Inviabilizava uma operao taxonmica ou uma anlise musicaltradicional, pois cada termo era ambguo, o mesmo podendo dizer-se da maioria dos elementosmusicais. Seus limites eram, portanto, impalpveis, bastando haver uma diferenciao real ouimaginria entre o enunciador e um objeto qualquer para que a designao pudesse ser aplicada(e.g., "Villa-Lobos tinha um gosto brega", frase a propsito de certas preferncias do ilustrecompositor, entreouvida pelo autor durante um colquio no Rio de Janeiro). Mas o que nos

    parecia mais provocante era a perspectiva de tempo que se delineava atravs do estudo em

    questo, fundindo sincronicamente estadosque costumam ser idealizados como momentosdiacronicamente distintos:

    1- uma "pr-modernidade" perceptvel nas atitudes das elites--que continuam adecrescer em nmeros proporcionais--em relao crescente pobreza, levando arelaes polticas inaceitveis no mundo dito moderno;

    2- uma "modernidade" alimentada pela continuidade da luta de classes;

    3- uma "ps-modernidade" expressa em aspectos como (a) um senso deidentificao intenso com produtos culturais pr-fabricados, (b) a imploso do"local" em vrtices de trajetrias globalmente circulantes e (c) a insero nummercado global de mercadorias rotuladas como "culturais" que so apropriadas,intercambiadas, ou mesmo roubadas, segundo as circunstncias.

    Nos parecia claro, portanto, que a caracterizao da chamada msica bregacomo urbanaimplicava o relacionamento intrnseco desta urbanidade ao contexto de um pas capitalistadependente. Apesar de ser gerada nos grandes centros urbanos e interagir com diversas tradieslocais, isso ocorria (e continua a ocorrer) num momento em que era freqentemente problemticodeterminar-se o que "tpico" ou "caracterstico" em quaisquer tradies, devido ao constanteinfluxo de msica comercial por elas absorvido. Em suma, impunha-se enfatizar as relaes

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    subordinativas entre centro e periferia ao invs de uma dicotomia cultural ou comportamentalidealizada pelo observador.

    SAMBA

    Com uma de suas estrofes mais famosas, o compositor Dorival Caymmi diagnosticou certa vezuma patologia, segundo ele, das mais srias:

    Quem no gosta de sambaBom sujeito no ruim da cabeaOu doente do p

    ("Samba da minha terra")

    Nos dias de hoje, o profundo envolvimento afetivo de indivduos de todos os grupos tnicos eclasses sociais com o sambano Rio de Janeiro pode dar a enganadora impresso ao observadorleigo de confirmar a propaganda oficial de que conflitos noso uma marca caracterstica dasociedade brasileira. No entanto, uma das muitas coisas que a histria do sambanos mostra demodo exemplar justamente a maneira peculiar de administrao de conflitos profundos e athoje latentes no seio daquela mesma sociedade. Basicamente, essa histria tem como marco

    prticas de msica e dana cultivadas em torno da virada do sculo no mbito das classestrabalhadoras e do lmpen-proletariado, com uma populao de ascendncia predominantementeafricana. Reprimido enquanto manifestao voltada essencialmente ao grupo social que o criou, osambaencontrou, marcadamente a partir da dcada de 30, alguns espaos de maior tolernciaatravs do mercado do disco, do rdio--em ambos, como gnero de msica popular--e dos desfilescarnavalescos, com a criao das escolas de samba--mantendo estas alguns elementoscoreogrficos de origem. Principalmente estas ltimas foram escolhidas, por assim dizer, pela

    ditadura do Estado Novo (1937-1945) como prottipos de organizaes de massa urbanas quesimbolizassem o novo estgio de unidade poltica, econmica e cultural pretensamente atingidopelo pas1. Esse impulso ao sambacomo smbolo nacional teria rebatimentos at mesmo a nvelinternacional, como exemplificado pela trajetria de Carmen Miranda, mas seu principal efeitointerno seria o de legitimar as escolas de samba do Rio como "autntica" expresso de brasilidade.

    Resumidamente, o que se seguiu foi a afluncia massiva de setores da classe mdia durante adcada de 60, quando, sob a gide de uma nova ditadura (militar, 1964-1985), teve lugar umainvestida macia rumo internacionalizao econmica e cultural da sociedade brasileira. Comoalternativa aos Beatles, Rolling Stones e seus discpulos brasileiros, sustenta a cientista polticaAlison Raphael (1980), aqueles setores (que incluam parte da esquerda) teriam buscado produtonacional altura. Da para a transformao da escola de samba em uma espcie de micro-empresa, bastou que o esprito competitivo das escolas as levasse ao encontro do patronato dochamado jogo-do-bicho. Os chefes desta espcie semi-clandestina de loteria milionria logo viramnas agremiaes de samba uma possvel fachada legal para seus negcios, e foi na qualidade de

    presidentes de tais agremiaes que chegaram algumas vezes a ser recebidos oficialmente pelasautoridades que teoricamente deveriam combat-los. Os resultados da mentalidade empresarialdos novos patronos do samba podem ser constatados hoje na hegemonia de valores, padresvisuais e coreogrficos derivados doshow businesse na escalada crescente de explorao tursticados desfiles das escolas de samba, onde, numericamente, os sambistas de verdade so hojeminoria. Uma leitora de um prestigioso jornal dirio resumiu de modo indireto, mas exemplar, astransformaes por que passaram as escolas de samba (e, pode-se dizer, o prprio sambacomo

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    um todo) tal e qual esboadas pela literatura acadmica: "Sou admiradora da Mangueira [uma dasescolas de samba mais tradicionais] desde a dcada de 70 quando ela era ainda considerada 'brega'e 'ultrapassada'"[sic] (Jornal do Brasil, 26/02/94, p.12). A escola, prosseguia a missivista, teriarenegado este ano seu passado de resistncia, excluindo a participao efetiva de sua comunidade,aderindo esttica predominante e deixando-se "embriagar por um conceito perigoso chamadomarketing (ibidem)".

    Ressalta-se acima, portanto, a histria reconstruda em grandes traos, uma histria de cooptaoe, mesmo, usurpao de uma manifestao cultural de um grupo social assaz expressivodemograficamente, mantido margem das benesses scio-econmicas da industrializao, margem at mesmo de suas representaes originais. Uma impresso extremamente negativaadvinha de tais leituras, mas permanecia, atravs delas, uma lacuna intrigante: aquela que eraconsiderada pelos cientistas sociais como a pea-chave de todo o universo de articulaes entre oscultivadores do samba(ou do chamado mundo do samba), a msica, era apenas descritasuperficialmente, em contraste com as discusses elaboradas de seu contexto. Seria irrelevante oseu estudo ou ela teria sido deixado de lado por limitaes dos pesquisadores? Uma perspectivaetnomusicolgica sobre o fazer sambaem suas mltiplas factas e articulaes confirmaria o

    pessimismo latente nos estudos anteriores? Ou tornaria possvel chegar-se dialeticamente a umaoutra postura que contivesse, talvez, um embrio de distanciamento crtico no presente e dereapropriao coletiva da trajetria da manifestao?

    Procuramos, ento, desenvolver nosso trabalho sob um ngulo simultaneamente sincrnico ediacrnico. Por um lado, examinamos criticamente e cotejamos as fontes bibliogrficas ediscogrficas existentes sobre a histria do sambano Rio de Janeiro, inventariandoconcordncias, discrepncias e, principalmente, restabelecendo a sincronia observada entre osdiversos usos do mesmo enquanto gnero musical. A outra fase do trabalho consistiu numaetnografia musical que buscou, fundamentalmente, trazer tona o discurso dos compositores e

    percussionistas de sambasobre as diversas transformaes ocorridas em seu meio e sobre asituao que ora se delineia. Nossa concluso foi a de que pelo pelo menos trs configuraes seapresentavam simultaneamente: 1) uma expresso aglutinadora dos grupos sociais subalternos dacidade, ainda hoje de ascendncia predominantemente africana; 2) representao do cotidianodesses grupos direcionada a outros extratos sociais; e 3) mercadoria inicialmente valorizada peloseu contedo extico e, de maneira complementar, por seu potencial como forjador de umaidentidade. Mas para procurar entender as articulaes entre esses trs aspectos, ou compreendercomo um sambista ou mesmo uma escola de samba podiam ser tachados de bregatanto ao optar

    pelo despojamento e fidelidade a valores tradicionais quanto por reneglos (o que no nos

    surpreenderia), um esforo de elaborao conceitual tornava-se necessrio.

    TRABALHO ACSTICO

    Como destacamos mais acima, nossa preocupao em caracterizar melhor as articulaes edistines entre os diversos campos que parecem constituir a msica brasileira hoje nos levou a

    buscar alguns marcos tericos que nos permitissem unir perspectivas sincrnicas e diacrnicas demaneira mutuamente esclarecedora. Isso se devia ao fato, j transparente na pesquisa sobre amsica brega, de se constatar uma interao ampla e inmeros pontos de identidade entre prticasmais longevas e aquelas tidas como mais recentes. Tornava-se difcil, assim, caracterizar as

    primeiras como menos suscetveis a inovaes, contrastando marcadamente com as tendnciasmais novas. Em que medida, por exemplo, um samba-romnticodeveria ser considerado umresqucio de um estgio anterior da "evoluo da msica popular" ou, como produto pr-fabricado, um aspecto fundamentalmente novo da mesma? O primeiro passo, pensamos, seriatomar um conceito de tempo que pudesse transcender a viso evolucionista predominante emcompndios de histria da msica brasileira (mas, claro, no apenas neles), notadadamente damsica popular, sem deixar inteiramente de lado uma compreenso da trajetria de cada umdesses gneros. Conceito com tais caractersticas nos surgiu da leitura de Henri Bergson (1910),com sua distino entre tempo qualitativo--estado de conscincia em que estgios presentes e

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    passados, bem como projees de estgios futuros, configuram-se simultnea einterpermeavelmente--e tempo quantitativo--operao lgica que distingue aqueles estgioscomo pontos sucessivos projetados no espao. O metafsico Bergson j alertava, de maneirasurpreendentemente prxima a Marx (ver Adorno 1973), para o perigo de alienao [ou "controlede uma conduta", em seus termos] corrido ao reduzir-se o conceito de tempo exclusivamente a suadefinio quantitativa.

    Quase cem anos mais tarde, criticando os efeitos mais radicais da rejeio terica ao tempoquantitativo (no caso, o estruturalismo lvi-straussiano), Pierre Bourdieu afirmava que:

    O efeito destemporalizador...que a cincia produz quando ela esquece atransformao que ela impe s prticas inscritas no tempo presente, isto ,destotalizado, simplesmente totalizando-o, nunca mais pernicioso do quequando exercido sobre prticas [como as musicais, acrescentaramos ns]definidas pelo fato de que sua estrutura temporal, direo e ritmo soconstitutivas de seu significado. (Bourdieu 1977:9)

    Parecia, portanto, justificada a nossa relutncia em estudar apenas sincronicamente uma prtica

    musical qualquer, como se a entendssemos aprioristicamente como imutvel, desprovida de umahistria. Por outro lado, restava encontrar um caminho de abordagem em que tal histria no selimitasse a demonstrar uma "evoluo" (e.g., de uma menor a uma maior racionalidade, da gnese extino), encontrar um meio de inscrever as possveis manifestaes de uma prticadeterminada em seu prprio tempo, relacionando-as, sempre que possvel, a expresses passadas,

    presentes e futuras. O que sustentaria, digamos, a diviso da msica popular brasileira em doiscampos, um legitimado e incluso nas reconstrues histricas, outro simplesmente excludo? Seriaeste ltimo totalmente isento de relaes com o primeiro, da sua excluso? (Caso contrrio, comodescrever e analisar tais relaes?) Que critrios eram usados para definir os limites de cadacampo? Quem os escolheria e por que?

    Pensamos encontrar uma promissora alternativa a impasses como esses na proposta de semiticamarxista de Ferruccio Rossi-Landi (1985). Nela, o autor discute a linguagem como uma categoriaespecfica de trabalho humano, por ele denominado trabalho lingstico. Estudandocriteriosamente a homologia entre a produo de bens materiais e a de bens simblicos sugerida

    por Marx (principalmente nos primeiros escritos deste autor), Rossi-Landi argumenta que o usoda linguagem to pseudo-natural quanto o de um automvel ou um sapato, permanecendoeliminado o pensar um trabalho anterior, a no ser quando a linguagem torna-se inoperante,disfuncional. A linguagem, portanto, enquanto trabalho, seria geradora de um valor de uso--referente a seu potencial comunicativo--e de um valor de troca--refletindo a posio de uma emrelao s demais unidades de uma lngua determinada. Este ltimo, por sua vez, nos permitiriacaracterizar um mercado lingstico compreendendo as relaes de subordinao,complementaridade e oposio entre as diversas unidades j mencionadas.

    Mesmo estando a par das freqentes simplificaes geradas por apropriaes indevidas decontribuies tericas advindas de campos como a lingstica (ver Feld 1974), prximos, masnem por isso idnticos, msica, percebamos no trabalho de Rossi-Landi algo alm daconsiderao exclusiva do domnio da linguagem. Era patente que suas proposies mais geraisteriam necessariamente reflexos, sob os mais variados aspectos, sobre o campo da semitica comoum todo, abrangendo de algum modo a msica. Reconhecer o carter de trabalho "por trs" das

    diversas prticas musicais, nos parecia, tem sido at hoje e continua sendo, direta ouindiretamente, o objeto de estudo da etnomusicologia, nos permitindo mesmo falar de umadisciplina, acima de seus eventuais paradigmas. Entender essa forma de trabalho, que propusemosdenominar trabalho acstico,tem implicado em desvelar dialogicamente as mltiplas relaesestabelecidas entre seres humanos ao fazer msica, bem como as demais relaes subjacentes aesse fazer e as noes de valor que o permeiam, em compreender o uso dos instrumentos detrabalho mais diversos, das unidades mais simples de um determinado cdigo musical aos

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    instrumentos mais propriamente materiais de produo sonora.

    Tendo o trabalho acsticocomo objeto, o etnomusiclogo recupera precisamente a nooqualitativa de tempo a que aludimos acima--tentando apresentar integradamente oscondicionamentos, meios e intenes que conduzem ao fazer msica--e possibilita a superao deuma viso alienada de seu objeto, i.e., que se esgote em seus dados mais imediatos como a

    audio e mero cotejo com a experincia particular do ouvinte.

    As implicaes mais especficas para o nosso caso em questo, o estudo da msica popularbrasileira, foram significativas. J havamos constatado inicialmente que, com algumas exceesrecentes, as reconstrues de sua histria tem se fixado numa linha evolutiva que exclui a priorideterminadas prticas musicais e inclui outras tantas, segundo as preferncias ideolgicas do autor(quase sempre, pelas correntes nacionalistas ps-1930). Esta tica, de pretenses pedaggicas,tem obviamente mascarado diversos aspectos relevantes da trajetria das prticas musicais

    populares, principalmente em setores no hegemnicos no mbito nacional. O conceito detrabalho acsticonos ajuda a questionar de maneira sistemtica a aceitao de tal mascaramentocomo ponto pacfico e a identificar objetos sobre os quais muitas vezes "tropeamos" sem nos darconta (o brega,por exemplo).

    Outro desdobramento do mesmo conceito, tem a ver com a dificuldade de teorizao sobre o

    domnio escorregadio da chamada indstria cultural, muitas vezes alegada para justificar aausncia de maior produo sobre configuraes mais recentes da msica popular urbana. Sob talargumento, seria supostamente menos problemtico lidar com o samba, por ter este umacomunidade relativamente homognea e visvel de produtores (uma espcie de folclore urbano),do que com o brega, cujo processo de produo no parece estar intrinsecamente ligado a umgrupo social ou comunidade definida. Nossa pesquisa levanta, no entanto, que: a) a comunidadede produtores identificada no caso do sambano esgota o universo de sua prtica na cidade doRio de Janeiro, fato este observvel, pelo menos, desde o incio do sculo e que tem levado,mesmo antes da penetrao do rdio, interao entre prticas musicais de cunho comunitrio e

    prticas advindas de outros meios; b) h vrias indicaes da existncia de ncleos de indivduosdedicados ao cultivo de prticas musicais que tm sido sistematicamente assimiladas por setoresda indstria cultural--principalmente o disco--caracterizados como brega.Assim, em ambos oscasos lidaramos com certas necessidades comunicativas (valor de uso) e um sem nmero devaloraes (valor de troca) segundo o mercado simblico em que tais produtos do trabalhohumano se inserem. Este mercado pode ser tomado como uma comunidade que cultiva uma

    prtica musical determinada, de maneira homloga que ela cultiva uma dada lngua, mas podetambm ser pensado como um mercado mais abrangente, global, em que diversas msicas/lnguasse influenciam reciprocamente.

    Por ltimo, dentro dos limites desta reflexo, gostaramos de comentar uma perspectivacomplementar--ou, em alguns casos, alternativa--quepode ser oferecida pela etnomusicologia scincias humanas em um mundo progressivamente urbanizado, atravs da assimilao deconceitos organicamente interligados como o de trabalho acsticoe o de tempo qualitativo. Talassimilao nos permite entrever fissuras em discursos que, de outro ngulo, poderiam dar aoobservador a impresso de estarem conformados realidade imediata (ou, dito de outro modo,discursos no reflexivos). No estudo do samba, por exemplo, alguns pesquisadores no chegam a

    perceber estes momentos de "inoperncia" da ideologia dominante (para empregar os termos deRossi-Landi) que trazem tona uma possibilidade de pensamento mais reflexivo. Uma entreoutras manifestaes dessas sutis fissuras colhidas por ns entre os agentes do mundo do samba,encontra-se no seguinte depoimento do compositor Nelson Sargento:

    Hoje, refletindo bem sobre todos esses anos, eu diria o seguinte: eu acho que osamba tornou tudo isso possvel: a beleza, as cores, a coreografia. Mas eu tenhoa impresso que essas coisas passaram frente do samba. O samba est vindo latrs. Foi o samba que deu origem a tudo isso. Essas coisas so mais

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    valorizadas hoje. E o samba ainda existe s porque no pode ficar de fora. Sepudesse eles tiravam; essa a minha impresso. Mas se voc olhar para omundo como ele hoje, voc no teria condies de mostrar uma escola de

    samba com todas as suas caractersticas, sua autenticidade, porque a escola desamba era um divertimento que nasceu dos pobres para divertir os prpriospobres. (Nlson Sargento, citado em Arajo 1992:200-201)

    Apesar do tom evidentemente desgostoso com o status do sambanos atuais desfilescarnavalescos, poderia parecer que o compositor, ao comeo de sua ltima frase, se conformava auma situao incontornvel. No entanto, logo fica claro que seu conceito de autenticidade perdidanada tem de conformado ou saudosista; ele no apenas mantm a postura crtica diante dastransformaes ocorridas no meio do samba, como traz discusso--de um modo muito

    particular--uma questo central da problemtica social no mundo contemporneo, o papel dasrepresentaes.

    CONCLUSO

    As configuraes mais recentes surgidas na msica brasileira, das quais o bregae as

    transformaes recentes ocorridas no sambaso apenas dois entre muitos exemplossignificativos, impem a crtica e a busca de alternativas aos modelos evolucionistas e/ounacionalista-pedaggicos prevalentes na historiografia musical correspondente. Esta ltima,cremos, teria muito a beneficiar-se da contribuio de uma etnomusicologia urbana ou, nos termosdelineados acima, de uma etnomusicologia do mercado. Em tal quadro, o conceito de trabalhoacstico nos parece oferecer ao menos duas proposies fecundas:

    1- manter a perspectiva de uma disciplina compromissada e, portanto, atualssima, na medida emque fustiga a alienao do ser humano em seus prprios produtos, tentando entender estes ltimosnum recorte temporal integrado (i.e., percepo sincrnica de um passado, um presente e um para-alm-do-presente)--a que Gilberto Freyre (1973) chamou bergsonianamente de tempo trbio.

    2- contrapor paralisao conceitual insinuada com o niilismo, o ps-modernismo, e outrasposturas eqivalentes (ver Carvalho 1992), a necessidade de renovada ateno s tcnicascoletivas e relaes determinantes da produo de significado.

    Longe de pretender com isso perseguir uma "nova" teoria de capacidade explanatria ouexplicativa mais abrangente que outras pr-existentes, sustentamos a necessidade de buscarmosdesenvolver formas de pensar reflexivamente sobre os dados mais imediatos da realidadecircundante como compromisso do pesquisador que v em sua atividade no apenas o exercciode uma mera "competncia profissional", mas, igualmente, de cidadania.

    (Trabalho apresentado ao seminrio "As Culturas Musicais Urbanas ao Final do Sculo XX",Fundao Gulbenkian/Universidade Nova de Lisboa, 1994 )

    Nota

    1 Fato que permite, portanto, paralelos com as relaes entre o Estado Novo portugus e osranchos folclricos volta

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    Bibliografia

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    Samuel Arajo, Doutor em Etnomusicologia pela Universidade de Illinois em Urbana-Champaign, professor de Etnomusicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,

    pesquisador do CNPq e da FAPERJ, e membro do conselho diretor do International Council forTraditional Music-ICTM volta