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ARGUMENTOS POPPERIANOS EM
FAVOR DO INDETERMINISMO
CIENTÍFICO
Ronaldo Pimentel Formado em Filosofia pela UFJF.
Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF.
Mestrando em Filosofia pela UFMG [email protected]
Tiago Oliveira
Formado em Filosofia pela PUC-MG. Mestrando em Filosofia pela UFMG.
Professor do Colégio Santo Antônio, Belo Horizonte.
Introdução
A discussão determinismo versus indeterminismo sempre foi debatida na história
da filosofia. E muitos dos argumentos em favor do determinismo partiram da eficácia da
ciência na previsão de eventos. O sucesso da mecânica newtoniana e das leis de Kepler
para a explicação do funcionamento da natureza e para a previsão calculada de eventos
futuros sugeria ser o mundo determinado e previsível.
Isso não se dá sem problema quando o assunto é o campo moral. Whitehead fala
da dicotomia ocidental da nossa crença no livre-arbítrio e nossa convicção de que a
natureza se comporta como um mecanismo materialista. Essa ambigüidade se
assemelha à dupla pertença religiosa dos chineses que causa espanto no Ocidente:
Todo o mundo se surpreende de que um chinês possa ser de duas religiões:
confucionista em algumas ocasiões e budista em outras. Se isso é verdade
quanto à China, não sei; também ignoro se, na verdade, essas duas atitudes
são realmente incompatíveis. Mas não pode haver dúvida de que fato análogo
é verdadeiro em relação ao Ocidente, e que as duas atitudes em questão são
incompatíveis. Um realismo científico baseado no mecanismo conjuga-se com
uma crença estável no mundo dos homens e dos animais superiores como
constituídos de organismos autodeterminados. Essa incompatibilidade radical
na base do pensamento moderno responde, em grande parte pelo que há de
dúbio e instável em nossa civilização.1
De fato, nem Kant escapou a essa ambigüidade, aceitando a priori o determinismo
científico e tentando resguardar a liberdade no tocante à razão prática. Ora, essa ampla
aceitação de uma ciência considerada determinista acaba por conceder o melhor
argumento para os que acreditam ser o mundo um mecanismo determinado.
O objetivo de K. Popper, ao escrever o segundo volume do pós-escrito à sua
“Lógica da descoberta científica”, foi mostrar a inconsistência dos argumentos
deterministas. Ele não se propõe a discutir as doutrinas metafísicas do determinismo e do
indeterminismo, mas supõe ser possível provar que o determinismo científico não se
sustenta nem mesmo nas teorias prima facie deterministas da física clássica. Na obra “O
universo aberto”, Popper tenta desmontar o melhor argumento determinista: o argumento
do determinismo científico. Dessa forma, o autor pode questionar a solução kantiana de
aceitar o determinismo científico ao aceitar a mecânica newtoniana.
1 – Conceituando e problematizando o determinismo “científico”
A primeira analogia usada por Popper para explicar o determinismo é a do filme:
um filme que possa ser retroagido ou adiantado conforme o gosto de quem assiste.
Analogamente, nos vemos diante do passado (a parte já assistida) e do futuro
determinado pelo diretor daquele filme.
O determinismo também aparece ligado a uma concepção religiosa. Deus
onipotente e onisciente já tem o conhecimento prévio de todos os eventos futuros, o que
significa que o mundo é lugar do previsível, mesmo que esse conhecimento futuro
apenas seja acessível à divindade. O que ocorre com o determinismo científico é a
secularização desse determinismo religioso: substituamos Deus por natureza e leis
divinas por leis naturais.
Outra fonte de sustentação do determinismo é o senso comum que atribui à
causalidade, ou seja, à possibilidade de fazer perguntas “porquê” sobre qualquer
1 WHITEHEAD, Alfred North. A ciência e o mundo moderno. São Paulo: Paulus, 2006. p. 100.
* Ronaldo Pimentel é licenciado em Filosofia pela UFJF, mestrando em Filosofia pela UFMG/CNPq.
** Tiago Oliveira é bacharel licenciado em Filosofia pela PUC-MG e mestrando em Filosofia pela
UFMG. Professor do Colégio Santo Antônio.
acontecimento, o fato de que todo acontecimento tem uma causa e, portanto é
determinado. Esse é um problema no qual o próprio Hume incorreu, ao tentar explicar o
determinismo em sua “Investigação sobre o entendimento humano”.
Para Karl Popper a lógica da explicação não supõe previsão e, portanto, não
implica necessariamente o determinismo científico. A concepção de acontecimento e as
explicações exigidas pelo senso comum são qualitativas, ou seja, não exigem exatidão
nas previsões e nem e nem precisão das condições iniciais dadas para determinar um
acontecimento futuro.
Dessa forma, já podemos delinear o que Popper considera por determinismo
científico como capacidade de prever com a precisão desejada qualquer acontecimento,
a partir de condições iniciais precisas:
O determinismo “científico” requer a capacidade de prever qualquer
acontecimento com qualquer grau de precisão que se deseje, desde que nos
sejam dadas condições iniciais suficientemente precisas. (...) É evidente que
temos de explicar “suficientemente” de uma maneira tal que nos privemos do
direito de alegar – todas as vezes que falhemos nas nossas previsões – que
nos foram dadas condições iniciais que não eram suficientemente precisas.2
Para o autor, portanto, o determinismo científico torna necessário que uma teoria
responda pela sua imprecisão e dê antecipadamente quais condições iniciais permitem o
determinado grau de exatidão requerido. Popper chamou a essa exigência de princípio
de determinabilidade.
O filósofo da ciência, no entanto, dá dois conceitos desse princípio, um
considerado mais fraco e outro mais forte, mais exigente. O conceito fraco do princípio de
determinabilidade diz respeito apenas ao grau de precisão das condições iniciais:
Assim, qualquer definição satisfatória de determinismo “científico” terá de
basear-se no princípio (da determinabilidade) de que podemos calcular a partir
da nossa tarefa de previsão (em conjunção com as nossas teorias, é claro) o
grau de precisão exigido das condições iniciais.3
O conceito mais forte vai além. Ele exige uma inversão de que as condições
iniciais precisas possam ser calculadas da precisão dos resultados:
2 POPPER, K. O universo aberto. Lisboa: Dom Quixote, 1988. p. 31.
3 Idem, p. 32 (grifos do autor)
Para certos fins, pode ser útil trabalhar com um princípio de determinabilidade
um tanto mais forte, a que chegamos referindo-nos à precisão dos resultados
de medições possíveis a partir das quais as condições iniciais podem ser
calculadas, e não à precisão das condições iniciais. Assim, neste sentido mais
forte, uma tarefa de previsão pode não ser determinável por não podermos
determinar a partir dela (e da teoria) o grau de precisão requerido de medições
possíveis em que possamos basear nossas previsões.4
As atenções de Popper se voltarão para o conceito mais fraco, mesmo
reconhecendo que o determinismo “científico” demandaria a definição forte do princípio
de determinabilidade. O fato é que se uma teoria não for determinável no sentido fraco,
ela tampouco será no sentido forte. E qualquer exemplo de previsão definitivamente não
determinável invalidaria o determinismo “científico”. Dessa forma, caso o princípio
da determinabilidade não seja universalmente satisfeito, não haveria razões para
acreditar no determinismo “científico”.
2 – Argumentos contra o determinismo
Muitos autores, como o próprio Whitehead já mencionado, afirmam que o
determinismo só vale para a mecânica, não se aplicando à biologia5. Os deterministas, no
entanto, com o argumento a partir do estudo do comportamento, afirmam a possibilidade
de se prever cada vez melhor os comportamentos de homens e animais superiores e que
essa previsão tende a tornar-se tão precisa quanto a mecânica planetária.
Karl Popper, evidentemente, não reconhece no estudo dos comportamentos um
argumento válido para reforçar o determinismo científico. Qualquer que seja o nosso
conhecimento comportamental, ele não seria capaz de preencher os requisitos do
princípio da determinabilidade. Mesmo que se conheça, por exemplo, todas as reações
de um gato, e possa-se prever que ele pulará do muro, ninguém seria capaz de prever
com precisão a quantos centímetros ele pulará desse muro. Muito menos saberia dizer
quais as condições iniciais que possibilitariam reduzir a margem de erro nessa previsão.
Qualquer tentativa de complementar nossa tarefa de precisão por meio de um
conhecimento maior do sistema nervoso e do cérebro do animal, só faria reconhecer que
é preciso abandonar o argumento do comportamento em favor da fisiologia e da física,
aceitando-as, essas sim, como ciências deterministas.
4 Idem, p. 32-33.
5 Whitehead defenderá que todo o conceito do materialismo só se aplica à lógica e não aos organismos. Cf.
WHITEHEAD, op. cit. p. 104.
Mas mesmo a fisiologia não parece ser determinista para Popper. Em seu
“Universo Aberto”, o autor compara o processo do disparo de um nervo com o de uma
explosão: é necessário um fator crítico (um potencial elétrico para o nervo e uma
temperatura crítica no caso da explosão) abaixo do qual esse efeito não ocorre. Esse é o
chamado princípio do tudo-ou-nada6.
É possível prever o momento em que uma explosão ocorre, aumentando
gradativamente a temperatura. Mas é impossível medir com toda precisão que queiramos
uma temperatura porque essa é um efeito de massa. Em outras palavras, a temperatura
é essencialmente uma média, uma quantidade molar.
Analogamente, temos motivos pra crer que o potencial crítico para o disparo de
um nervo dependa também de efeitos de massa. Um exemplo é o efeito de fadiga, que
com muita probabilidade depende da presença ou ausência de quantidade suficiente de
concentração de moléculas de alguma substância qualquer.
Com isso, o filósofo vienense entende nada indicar que o princípio da
determinabilidade se aplica a efeitos de massa. Ainda que isso fosse possível, não
teríamos idéia de como ele poderia ser aplicado. E que mesmo se nossa capacidade de
previsão possa aumentar, isso não confirma o determinismo científico naquela área de
conhecimento:
De um modo bastante geral, podemos dizer que, se bem que o nosso
conhecimento, e, com ele, a nossa capacidade de prever, possa aumentar
continuamente numa determinada área, esse facto por si mesmo nunca pode
ser usado como argumento a favor da ideia de que algo como o determinismo
“científico” se verifica nessa área. É que o nosso conhecimento pode aumentar
continuamente sem se aproximar desse gênero muito especial de
conhecimento que satisfaz o princípio da determinabilidade.7
Popper rejeita a cômoda posição do senso comum que acredita haver no mundo
eventos previsíveis como relógios e eventos imprevisíveis como nuvens. O conhecimento
das nuvens (e da meteorologia) poderia aumentar de tal forma que esses eventos
poderiam chegar à categoria dos eventos semelhantes ao relógio. Os relógios, por sua
vez, se estudados detalhadamente, podem unir-se aos eventos da categoria “nuvens”.
Basta repararmos que, para medir o fluxo de calor que afeta o comprimento do pêndulo,
acabaríamos por assemelhar o relógio a uma nuvem de moléculas, com a dificuldade de
previsão típica dos eventos “nuvens”. Também se quisermos manter dois relógios
6 Cf. POPPER, op. cit. p. 35-36
7 POPPER, K. O universo aberto, pp. 36-37.
marcando o mesmo horário, os mecanismos de regulação de ambos seriam claramente
diferentes. E ainda que seja possível para um bom relojoeiro descobrir a causa do atraso
de um relógio, seria impossível explicar os minutos exatos do atraso pelo estudo dessa
causa e se, removida a causa, o relógio seguiria sem necessidade de mais acertos.
Neste caso, mesmo os relógios não poderiam satisfazer o princípio da determinabilidade.
Há ainda um último argumento determinista que Popper pretende refutar: o
argumento a partir da Psicologia. O filósofo considera esse argumento mais antigo do
que o argumento a partir do comportamento, mas também mais fraco do ponto de vista
da defesa do determinismo. O autor estabelece as origens modernas desse argumento
mais evidentes em Hobbes, Spinoza, Hume e Priestley. Hobbes, por exemplo, acredita
ser a vontade causada, donde se segue que as ações voluntárias teriam causas
necessárias. Hume introduziu duas idéias: a idéia de inferências de motivos para ações
voluntárias, e a idéia de inferência do caráter para a conduta.
Popper admite causas psicológicas (medos, desejos, esperanças, intenções) que
na lógica da situação servem melhor para explicar uma novidade ou conquista original de
aprendizado do que as causas fisiológicas e físicas. O autor, porém, nega que a
existência de causas psicológicas levem a aceitação do determinismo científico, pois este
demandaria que essas causas nos permitissem prever um acontecimento com o grau de
precisão desejado:
Não nego que uma questão como “qual foi o motivo da acção dele?”ou uma
pergunta “porquê” como “porque ele fez isso?” possam ser perfeitamente
razoáveis; nem que igualmente o posse ser uma resposta como “fê-lo por
inveja (ou por ambição, ou por vingança)”. Mas todas as respostas deste
género, mesmo que sejam altamente sofisticadas, não são muito mais do que
tentativas grosseiras de classificar, ou, quando muito, de construir um esquema
situacional hipotético que torne a acção racionalmente compreensível.8
Finalmente, o filósofo vienense dá quatro motivos pelos quais o indeterminismo
deve ser considerado prima facie aceitável e o ônus da prova recai sobre os
deterministas:
1) A idéia do senso comum da diferença entre relógios e nuvens indica que a pré-
determinação e a previsibilidade são uma questão de grau;
8 Idem, p. 42.
2) Outro argumento do senso comum que defende serem os organismos menos
determinados e previsíveis do que sistemas simples, e que os organismos
superiores são menos determinados do que organismos inferiores;
3) Deveria ser possível, segundo o determinismo, prever descobertas e criações
artísticas unicamente pela fisiologia e pela física;
4) O indeterminismo, ao propor a existência de ao menos um acontecimento não
pré-determinado, tem uma asserção mais fraca do que o determinismo científico,
diante do qual todos os acontecimentos seriam previsíveis.
Até aqui Popper tentou refutar os argumentos deterministas. Cumpre agora
mostrar a inconsistência do principal argumento dessa postura: o determinismo científico.
3 – Argumentos contra o determinismo científico
3.1. O modelo nomológico-dedutivo e o modelo explicativo de Popper
O modelo de explicação causal é importante, em que a ciência termina por ter
parâmetros explicativos deterministas, isso é um recurso metodológico de busca cada
vez mais acurada que não exclui o falseacionismo. As ciências deterministas em geral
que respondem às perguntas “por que” não devem ser vistas como respondendo a essas
perguntas com enunciados necessários mas com um enunciado no sentido de uma
explicação provisória para um fato; ao invés de uma decorrência necessária, a ciência
torna-se explicativa pela descrição da sucessão de eventos que ocorre numa estrutura
explicativa.
As necessidades levam a pressupostos essencialistas que dão a impressão de
necessidade aos enunciados, nesse caso, esses pressupostos terminam por tornar uma
determinada teoria como se fosse a descrição última das coisas e dos eventos que
ocorrem no mundo. Segundo Popper, o mundo 39 deve ser independente do mundo 110,
mesmo que as teorias do mundo 3 forem utilizadas para descrever o mundo 1. As teorias
científicas não passam de conjecturas que habitam o mundo 3, são incompletas e são
apenas tentativas de se descrever o mundo 1. O paradigma da incompletude é de grande
importância nos argumentos que Popper desenvolve para refutar o determinismo
científico e para mostrar a precariedade do conhecimento teórico-científico.
A relação entre o mundo 1 e o mundo 3 não pode ser dada por uma descrição de
9 Mundo dos argumentos, instituições humanas, racionalidade, cultura e das teorias científicas.
10 Mundo em físico, químico e biológico.
essências e a natureza de uma relação causal não é dada pelo uso de propriedades
intrínsecas à natureza das coisas pertencentes ao mundo 1. As leis gerais são descrições
conjecturais sobre o que ocorre na natureza de modo que não há explicação definitiva
sobre os processos naturais. Cada sistema explicativo possui um campo explicativo
restrito, a utilização de um sistema explicativo mais amplo é a utilização daquele sistema
que será capaz de explicar o máximo de eventos naturais mas não todos os eventos da
natureza. A incompletude inerente do conhecimento científico também pode ser notada
na alegoria do argumento que Popper utiliza ao comparar as teorias científicas à redes
que pescam peixes graúdos mas não pesca os peixes pequenos, deixa escapar detalhes
do mundo 1 ao explicá-lo.
O uso do falseacionismo se baseia na busca de teorias que descrevem de modo
verdadeiro as coisas que existem no mundo. A crença nas essências é dogmática e não
torna possível a utilização do falseacionismo. Dizer que as teorias são conjecturas não
exclui o realismo dessas teorias já que elas se referem ao real e é no mundo 1 que elas
devem ser testadas. Essa realidade do mundo 1 é descrita incompletamente e não é
totalmente determinada e o mundo é intocável em seus aspectos essenciais. O mundo
não é explicado em seus aspectos essenciais mas sim através das múltiplas
possibilidades de existir algum modo de descrever esse mundo através de um
mecanismo teórico causal. Assim, há um modelo explicativo do mundo em que a ciência
torna capaz de explicar os fenômenos do mundo.
Esse modelo é o nomológico-dedutivo, que é uma derivação do modelo
explicativo de Popper. A estrutura de um argumento que formalmente corresponde ao
modelo nomológico-dedutivo ou ao modelo explicativo de Popper é dado por (1) Leis
gerais mais (2) os casos particulares e seguidamente temos (3) a explicação ou a
conclusão do argumento como sendo o resultado da explicação.
As leis gerais são expressas por enunciados universais que correspondem a
essas leis, são as condições universais. As condições iniciais são os casos particulares
que ocorrem em (2), em que são dados por enunciados que contenham uma descrição
delimitada por um espaço e tempo particular, daí decorre logicamente a conclusão.
Segundo o modelo explicativo de Popper, (3) é o explicandum, (1) e (2) são os explicans
que são dados por uma determinada teoria. O explicandum depende das condições
iniciais e a explicação é uma conseqüência lógica dos explicans ao explicandum. Essas
explicações são as relações causais que procuram responder aos tipos de perguntas “por
que”.
A aplicação da noção de causa e efeito em Popper é equivalente ao modelo
nomológico-dedutivo desde que se respeite o critério de falseamento das teorias. Para
dizer que A causa B é necessário a existência de uma lei geral e uma situação particular
descrita por uma proposição particular, daí a dedução do efeito, ou seja, B. B é o efeito
segundo determinada teoria. O modelo é conjectural e não está ligado necessariamente à
realidade e sim a uma teoria determinista. A essas teorias denominamos teorias
deterministas prima facie.
Por isso, qualquer modelo explicativo em Popper tem um caráter provisório
segundo os critérios de falseamento e a sua verdade depende da verdade da teoria em
que está ligado. Nenhuma teoria da explicação deve ser derradeira, já que a estrutura
legiforme da natureza não é possível de ser obtida completa e precisamente. Assim, a
estrutura do mundo nunca pode ser dada por teorias deterministas. Daí Popper passa a
descrever e criticar as teorias deterministas, enfocaremos nas teorias deterministas
científicas, que caracterizam o determinismo “científico”.
As críticas se centralizam no problema da previsão, e a previsão é um tipo de
explicação e a diferença temporal entre a previsão e a explicação não é muito importante
no modelo explicativo de Popper. A única diferença que pode conter é a posição em
relação ao tempo dos termos contidos no esquema explicativo. Essa diferença não afeta
a assimetria entre o passado e o futuro.
3.2. Refutação do determinismo “científico”
Para refutar o determinismo “científico”, Popper cria uma versão super
simplificada do determinismo aliada a um demônio de Laplace. O demônio deve ser
capaz de realizar previsões a partir de dentro, ou seja, previsões precisas dos estados
físicos do sistema em que se encontra. Esse demônio realiza as previsões de acordo
com que um homem é capaz de fazer, mas que também pode ser feito por uma máquina
ou a máquina que prevê, esse homem, demônio ou máquina, tem que saber colher com
precisão o máximo de dados possível.
Refutando essas idéias de acordo com a sua concepção incompleta do
conhecimento teórico, que se dá como se fosse uma rede que capta algo mas não tudo,
e a idéia de que o que é determinado numa teoria não pode determinar o mundo 1,
porque não há uma ligação necessária, Popper tem razão o suficiente para defender o
caráter indeterminista da realidade. Segundo a definição dos três mundos, que são
independentes entre si, a criação teórica ocorre no mundo 3, mundo dos argumentos e
das criações humanas que fazem parte do coletivo. A verdade ou falsidade de uma
determinada teoria ocorre quando há a conjunção entre o mundo 3 e o mundo 1. Daí é
que se gera inclusive as tecnologias que vão influenciar no mundo 1 de alguma maneira.
Assim, as teorias são colocadas em testes rigorosos do mundo 3 ao mundo 1, validando
os argumentos e esquemas que obedecem o modelo explicativo de Popper.
Porém, o conhecimento falível mostra a incompletude do mundo 3, não há uma
previsão ilimitada e portanto a refutação do determinismo “científico” no sentido forte. A
solução de um determinado problema pelo mundo 3 leva a reabrir novos problemas que
ainda não são resolvidos e essa é a incompletude inerente do mundo 3. Segundo o
indeterminismo, há eventos que não são determinados. Porém, o indeterminismo não
exclui a possibilidade de existir eventos que são fisicamente determinados e que
possuem regularidades, esses eventos estão localizados em teorias prima facie
deterministas que passaram pelo critério de falseamento.
3.3. O argumento de Hadamard
O argumento de Hadamard é a refutação de um determinismo “científico” mais
forte. O argumento envolve a estabilidade do sistema solar. Segundo Hadamard, não há
sentido dizer que há uma estabilidade do sistema solar. Para Popper, o problema da
estabilidade do sistema solar é irresolúvel, dado que não é possível ter com toda a
precisão o estado inicial do sistema, tal fato da irresolubilidade, faz com que algum dia
haja a solução do problema, dado que há a possibilidade de aumento no grau de
precisão. Mas como vimos o grau de precisão está ligado à determinação das teorias.
Não há a possibilidade de previsão do comportamento para todos os instantes de tempo
em relação aos seus estados físicos. Esse é o argumento que refuta a possibilidade de
existência de um determinismo “científico” no sentido forte.
O argumento de Hadamard então, segundo essa interpretação do Popper é
análogo ao argumento do Teorema de Incompletude de Gödel. Assim como não
podemos prever todas as situações possíveis de um sistema em um determinado tempo,
também não podemos decidir numa aritmética formalizada todos as proposições
verdadeiras segundo essa linguagem aritmética. A pergunta pela possibilidade de existir
num sistema em que haja a gravitação de vários corpos como o sistema solar um grau de
precisão tal que seja possível prever o próximo estado físico do sistema é uma pergunta
que se assemelha aos resultados do Teorema de Incompletude de Gödel porque é
indecidível, mas não é uma pergunta sem sentido, como afirmava o próprio Hadamard, o
sentido existe, a pergunta não tem uma resposta satisfatória de acordo com as teorias
físicas deterministas.
4 - Argumentos em favor da indeterminação
Nos argumentos em favor da indeterminação, Popper se apóia na não
possibilidade de existir uma teoria que satisfaça os anseios de um cientista determinista
no sentido forte. Quer dizer, as teorias são incompletas, no sentido dos teoremas de
Gödel em em relação ao argumento de Hadamard, com a impossibilidade de existir uma
teoria determinista que determine um estado físico de um sistema em qualquer tempo
escolhido. Na definição das teorias científicas como redes, a alegoria está na
impossibilidade dessas teorias apreenderem em suas redes causais detalhes dos
sistemas físicos.
4.1. Definição de ciência como rede
Esse é o principal argumento contra o determinismo científico e se aplica ao poder
das teorias de elucidarem o mundo dos fatos ou ainda de realizarem previsões com o uso
de seu poder causal de acordo com o mundo dos fatos, o mundo dos sistemas físicos ou
o mundo 1. Pelas teorias serem precárias em relação à previsão, não conseguem realizar
uma previsão total em relação aos sistemas físicos que descrevem. O argumento contra
o determinismo “científico” consiste em ver as teorias como redes.
Vejo as nossas teorias científicas como invenções humanas – como redes
concebidas por nós para apanhar o mundo. Elas diferem, sem dúvida, das
invenções dos poetas e até das invenções dos técnicos. As teorias não são só
instrumentos. O que temos em mira é a verdade: testamos as nossas teorias na
esperança de eliminar as que não sejam verdadeiras. Deste modo, podemos
conseguir melhorar as nossas teorias – até como instrumentos –, ao fazer redes
cada vez mais bem adaptadas para apanhar o nosso peixe, o mundo real.
Contudo, elas nunca serão instrumentos perfeitos para esse fim. Elas são redes
racionais de nossa autoria e não deveriam ser tomadas, erradamente, por uma
representação completa do mundo real em todos os seus aspectos. Nem mesmo
se forem altamente bem sucedidas; nem mesmo se parecerem dar excelentes
aproximações da realidade.11
A teoria, e seu sucesso, não significa que a teoria está diretamente relacionada
com o mundo. As teorias não possuem nenhum compromisso ontológico direto com o
mundo apesar tentar ser uma descrição o mais fiel possível dos fatos em relação ao
mundo. Não há nenhuma ligação misteriosa entre uma teoria e o mundo. Por isso, não é
11 POPPER, K. O Universo Aberto, pág. 58
possível inferir de uma determinada teoria, o caráter determinista do mundo. As teorias
são deterministas prima facie; não significa que o mundo que elas descrevem é
intrinsecamente determinista. As teorias apenas descrevem o mundo, uma teoria não é
boa nem má, apenas ilumina determinado aspecto do mundo sem interferir. As teorias
tem a necessidade apenas de serem verdadeiras. A descrição do mundo é feita por
teorias universais, o que deve garantir também a simplicidade e a testabilidade da teoria.
Pelos testes de uma determinada teoria é que se torna possível ter teorias verdadeiras.
As teorias verdadeiras passam por testes rigorosos e as teorias universais é que são o
foco da ciência.
4.2. Assimetria entre passado e futuro
O segundo argumento em relação ao determinismo é a assimetria entre o
passado e o futuro. Temos em mente ao desenvolver esse argumento que nenhuma
cadeia causal futura é capaz de influenciar algo que se encontra no passado. Isso é
trivialmente dado em relação ao passado, e é isso que garante ao passado ser fechado
aos acontecimentos. Mas constitui um erro pensar que o futuro é completamente
determinado pelo passado, novamente, o que queremos dizer é que podemos ter
previsão de algo que acontecerá no futuro segundo as variáveis precisamente colhidas
no passado. Admitida ainda a abertura do futuro (que o futuro não é completamente
determinado pelas coisas que aconteceram no passado) e o fechamento trivial do
passado, o tempo tem uma direção, a direção do tempo em seu decorrer é o futuro e ele
está fechado de um lado e aberto para outro. Concluímos assim que há uma assimetria
temporal. Como o tempo é assimétrico, há processos que são irreversíveis, como no
caso de propagação de ondas a partir do lançamento de uma pedra no lago que nunca
tornam possível que uma onda retorne ao ponto de sua propagação como se fosse um
filme passado ao contrário.
Porém, todas as nossas ações humanas no presente são em certa medida uma
tentativa de influenciar o futuro, e de determinar uma parte do futuro. Mas a incapacidade
de previsão completa está na abertura do futuro e no fechamento do passado. Popper
mostra isso através da teoria da relatividade especial, que é uma teoria prima facie
determinista.
Aqui, vemos que o passado está fechado e o futuro, aberto. Acreditamos que o
que fazemos no presente (contemporaneidade possível) é capaz de determinar o futuro.
O futuro é completamente aberto, já que não pode ser predeterminado por nós e o
passado é completamente fechado no sentido de que nada no futuro afeta o passado.
Agora mostraremos o caso em que há a previsão possível de A para B.
Não há possibilidade aqui de possuir uma previsão confiável de B já que há um
ponto futuro em relação a A que não ocorre de ser captado pela relação causal de A em
direção à B e esse ponto faz parte dos fatos passados relevantes a B e que está no
fechamento futuro de B. Assim, a previsão de A para B não é totalmente precisa. Há
efeitos de P que atingem B, mas os efeitos de P não atingem A. Quando a relatividade
mostra que não há um demônio laplaciano, então não há previsibilidade a partir de
dentro. Devemos supor que há um demônio laplaciano capaz de prever B, que não seja
humano, ele deve ser capaz de ter todas as condições iniciais necessárias e todas as
relações causais para prever B. A é o presente. B é onde se dará a previsão. O demônio
consegue obter informações espaço-temporais suficientemente grandes, enormemente
maiores que a dos seres humanos: A região além que o demônio consegue é traçada por
C:
O demônio precisa de informação suficiente para prever B, para tanto, precisa de
todo o passado de B, ou seja, o traçado do passado de B, para tanto, a linha C pode
ultrapassar todo esse passado. A linha C também passa por toda área em que o demônio
consegue realizar previsões, e, ainda assim, terá informações sobre um ponto D, além de
B, dada a área que C delimita para o demônio é infinita, em que as informações são
dadas de acordo com o traçado de C, assim, o demônio não realiza realmente o que
entendemos por uma previsão, mas é algo como uma lembrança do demônio, ou no
caso, uma retroprevisão, porque a presença do demônio não está estabelecida em um
ponto anterior a B mas num ponto infinitamente localizado no futuro delimitado pela linha
infinitamente grande de C e o demônio realiza uma retroprevisão para todo fato que se
encontra em qualquer ponto em qualquer futuro.
Se for assim, não é uma previsão a partir de dentro e também não é uma previsão
no sentido em que entendemos por previsão, pois o demônio deve estar no futuro de
qualquer situação dada de dentro do sistema. Paradoxalmente, qualquer previsão feita,
em teoria da relatividade, faz com que o que prevê, como o demônio laplaciano, esteja
assim localizado no futuro do que ele prevê, assim, o que acontece é que toda previsão
na verdade não é uma previsão porque ela está no passado e o previsor está no futuro.
Assim, é o futuro que é completamente desconhecido nesse caso, portanto, uma vez
conhecido o futuro, ele faz parte do passado. Conclui Popper:
A relatividade especial, apesar do seu caráter prima facie determinista, não pode,
portanto, ser usada para apoiar o determinismo “científico”, por duas razões. (1)
As previsões exigidas pelo determinismo “científico” têm de ser interpretadas, do
ponto de vista de própria realatividade especial, como retrovisões. (2) Sendo
retrovisões, elas parecem, do ponto de vista da relatividade especial, ser
computadas no futuro do sistema previsto. Logo, não se pode dizer que elas são
computadas dentro desse sistema: não satisfazem o princípio da previsibilidade a
partir de dentro.12
Assim, a teoria da relatividade refuta a idéia de que uma teoria prima facie
determinista seja possível derivar a verdade do determinismo, apesar de seu caráter
prima facie.
4.3. Questão da previsão histórica e do crescimento do conhecimento
O crescimento do conhecimento tem como decorrência a impossibilidade de uma
previsão precisa. Devemos ter em mente aqui o que já foi desenvolvido na argumentação
de Popper, a definição de ciência como uma teia e a assimetria entre o passado e o
futuro, que impossibilita a existência de um determinismo que fixa o futuro em relação ao
passado. A questão da previsão histórica é o terceiro argumento e o menos fundamental
de todos. Não há como prever acontecimentos se eles são previsíveis somente de acordo
com o crescimento do nosso conhecimento. Assim, não há como ter previsões totalmente
precisas se as ferramentas para obter previsões – ainda que próximas da previsão –
ainda não foram criadas.
4.4. A impossibilidade da auto-previsão
Na impossibilidade da auto-previsão, o sistema passa a não ser determinado a
partir de dentro, ou seja, não há como ter uma previsão completa de dentro dele mesmo.
Se não sabemos como o sistema teórico se modifica, também não há como ter as
mesmas previsões em relação aos mesmo fatos, nem como o homem, conhecedor do
mundo através desse sistema, irá agir sobre o sistema. Assim, a previsão com precisão
só é possível a partir de fora e não é completamente previsível a partir de dentro. O
curso da história humana, e o modo como o homem age no mundo, é influenciado pelo
seu conhecimento do mundo, o crescimento desse conhecimento também modifica o
modo como os homens lidam com a natureza. Assim como não é possível ter uma
previsão do aumento do conhecimento, também é impossível ter uma previsão a partir de
dentro dado que essa previsão está relacionada com o aumento do conhecimento, o que
refuta a idéia de um demônio de Laplace e a idéia de previsão de teorias ou a previsão
12 POPPER, pág. 36
de avanços científicos. Se se prevê uma teoria, paradoxalmente isso não é uma previsão
mas sim a descoberta de uma nova teoria.
4.5. O argumento filosófico de Haldame: Crítica ao reducionismo
Diz o último argumento que a apreensão da verdade depende do uso crítico da
racionalidade sem ser reduzido a um procedimento finito característico de uma máquina
de calcular, análogo ao teorema de incompletude de Gödel. O materialismo aparece
alegoricamente em Haldame, já que contemporaneamente, um tipo de visão materialista
seria representada pela máquina de calcular. De dentro do materialismo, não há como
saber se ele é verdadeiro, assim como em uma aritmética consistente, não há como obter
a consistência de uma aritmética a partir de dentro com o uso de seus procedimentos
finitos. A crítica ao reducionismo faz parte da crítica da própria idéia de determinismo
científico.
De um lado, o argumento se mostra análogo à não-demonstração da consistência,
o segundo teorema de incompletude, e o mais forte. E se mostra análogo ao primeiro
teorema de incompletude – que diz que há sentenças indecidíveis por um procedimento
finito que contenha a aritmética – levando em conta a existência de teorias complexas
irredutíveis à teorias inferiores. Assim como consideramos que há partes da matemática
irredutíveis à aritmética e que não são expressas por seu conteúdo finitário, ou como
ainda há conteúdos aritméticos não expressos por procedimentos finitos. O exemplo de
Popper é dado pelas funções contidas na linguagem comunicativa humana. De acordo
com que se tornam mais complexas, essas funções não são redutíveis aos níveis
inferiores de linguagem. Funções expressivas como as que são sintomática de qualquer
organismo animal não são capazes de terem reduzidas às essas funções a função
argumentativa que é o uso da linguagem como meio de crítica racional e que os humanos
utilizam para criar as suas teorias científicas.
Esta é precisamente a questão de Haldame. É a afirmação de que, se o
determinismo “científico” for verdadeiro, não podemos, de uma maneira racional,
saber que ele é verdadeiro; cremos nele ou descremos dele, mas não porque
julguemos livremente que os argumentos ou as razões a favor dele são sólidos,
antes porque se dá o caso de sermos determinados (de nos ter sido feita uma
lavagem ao cérebro) de modo a acreditar nele ou a não acreditar nele, ou até a
acreditar que o julgamos e aceitamos racionalmente.13
13 POPPER, K. O universo aberto, pág. 92
Com esses argumentos, Popper pretendeu mostrar a ciência como uma
aproximação da realidade, mas não como uma descrição fiel da mesma. A metáfora da
rede exemplifica bem essa postura. Muitas teorias, principalmente da física, são
deterministas, mas isso não significa que o mundo seja determinado. Popper admite que
o passado é determinado, mas afirma ser o futuro aberto. Ele igualmente admite causas
para o comportamento e para ações voluntárias, mas a causalidade não implica
determinação. As explicações científicas devem responder às perguntas “porquê”
segundo o modelo explicativo causal. Deve-se, porém, reconhecer as limitações das
teorias científicas, que podem ser falseadas e, por essa razão, incompletas na tarefa de
“apanhar o mundo”. Nesse artigo, não tratamos da questão do livre-arbítrio, mas fica
claramente indicado que o sucesso da ciência determinista não pode ser usado como
argumento válido para afirmar que todos os eventos no mundo são fechados. Ao
contrário, como indica o próprio nome da obra de Popper, vivemos num universo aberto,
e, em muitos sentidos, imprevisível.
REFERÊNCIAS: AGUIAR, Túlio X. Causalidade e direção do tempo: Hume e o debate contemporâneo. Belo Horizonte: UFMG, 2008. POPPER, K. O universo aberto. Trad. Nuno Ferreira da Fonseca. Lisboa: Dom Quixote, 1988. STUBERT, Willllian Rodrigo. Explicação causal e indeterminismo na filosofia de Karl Popper. Dissertação de mestrado. Curitiba: UFPR, 2007. WHITEHEAD, Alfred North. A ciência e o mundo moderno. São Paulo: Paulus, 2006
(Col. Philosophica)