Upload
vuongkiet
View
213
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
467
ARTE CONCEITUAL, O ATO CRIATIVO E O ATO PEDAGÓGICO: (ANTI) MODELOS E POSSIBILIDADES DE APROXIMAÇÃO
Silfarlem Junior de Oliveira - UFES
RESUMO O artigo problematiza, a partir da arte conceitual, o ensino da arte como anti-modelo formal, bem como entende a própria ação pedagógica, no campo ampliado, como uma performance artística. Investiga, então, as possibilidades no ensino da Arte Contemporânea através das características da produção-recepção rebatidas na relação entre professor e aluno e propõe o Ato Pedagógico tomando como paralelo a relação autor-espectador proposta por Marcel Duchamp no Ato Criador. Apresenta, por fim, indícios sobre as ampliações e mudanças na arte moderna e seus desdobramentos na arte contemporânea, estabelecendo um estudo sobre as características tanto da produção artística quanto das abordagens pedagógicas aplicadas ao ensino da arte. Palavras-chave: coautoria; arte conceitual; ensino da arte; ato criativo; ato pedagógico. ABSTRACT Through questions raised by conceptual art, this article discusses art education as a formal anti-model, as well as understands the pedagogical action itself, in the expanded field, as an artistic performance. It investigates the possibilities of the teaching of contemporary arts through characteristics of production-reception reflected upon the relationship between teacher and student and proposes the Pedagogical Act taking as parallel the relationship author-spectator proposed by Marcel Duchamp in the Creative Act. At last, it presents the traces of the historical expansions and changes within Modern Art and its developments in contemporary arts, establishing a study about the characteristics both of the artistic production and of the pedagogical approaches applied to the education of art. Keywords: co-authorship; conceptual art; art education; creative act; pedagogical act.
“Houve uma discussão em Nova York, em 1968, sobre a ideia de tempo. Assinado: Ian Wilson”.1
Segundo Anne Cauquelin, não podemos avaliar a produção artística contemporânea
baseada em parâmetros de um sistema antigo, como se esta operação fosse a
mesma do passado. No estado da arte atual, o estudo da prática artística
fundamentada no conhecimento do métier (modelo acadêmico clássico) ou no
estudo do meio (modelo acadêmico moderno) não faz mais sentido se não estiverem
sendo pensados em conjunto com o ambiente de sua apresentação, isto é, seu
contexto artístico e extra-artístico.
468
Na arte contemporânea notamos um campo ampliado de situações e aproximações,
onde a arte deixou de se preocupar apenas com questões visuais e estético-formais.
Esta mesma questão, relativa à ampliação dos limites da arte na
contemporaneidade, quando rebatida sobre o ensino, nos faz crer que se a arte não
está restrita ao campo da visão (óptico) e nem ao campo formal (estético), os
critérios de produção e logo de aprendizagem também não são os mesmo do ensino
da arte anterior.
Modelos da arte e do ensino
Se antes do advento impressionista o ensino das Belas Artes valorizava
principalmente no aluno a faculdade de observar e copiar os grandes mestres
(baseada no talento), na arte moderna, o que está em jogo é a capacidade de
exprimir sua individualidade através da criação do novo. Sendo assim, o aluno
deveria primar pela busca imaginativa liberando sua capacidade de invenção
artística. “Criatividade”, segundo Thierry De Duve, “[...] era o nome moderno
atribuído à combinação de faculdades inatas da percepção e da imaginação”.2
Para tanto, teorias como da Gestalt forneciam um vocabulário básico para a
compreensão perceptiva da forma artística, e este (vocabulário visual) seria a única
coisa passível de ser adquirida ao longo dos estudos, já que sua criatividade (do
aluno e do artista) não deveria ser “domesticada”.
Do ponto de vista da relação professor-aluno, no ensino moderno, em oposição ao
ensino tradicional, o professor deixa de ser o “mestre” e o aluno deixa de ser o
“discípulo”. Se, antes, a figura do mestre em sala de aula representava a ditadura
do ensino, onde o aluno era como um frasco a ser preenchido pelas experiências do
professor (ensino bancário3), agora, com o “mito da criatividade” moderna, ele, o
aluno, deixando de ser “discípulo”, se torna uma espécie de tirano, já que o
professor, em tese, não teria mais o que ensinar; suas experiências pareceriam
pouco importantes frente à capacidade ilimitada da subjetividade do aluno. No
primeiro momento, a mudança do ensino tradicional para o ensino moderno pareceu
vantajosa, e de fato foi; acontece que nos dias de hoje teorias da “livre expressão”
ou “espontaneísmo”4 não são mais suficientes, como talvez tampouco tenham sido
no passado. É necessário considerarmos hoje, segundo Lucimar Frange, as
469
competências tanto do aluno quanto do professor como capazes de gerar
hipóteses5. Nesse sentido, devemos pensar um ensino que equacione estes dois
lados da relação entre professor e aluno.
Anti-modelo conceitual: possibilidades de aproximação entre o ensino e a arte
Buscando equacionar a questão da transmissão, bem como a relação entre
objetividade do conhecimento e subjetividade da criação, nos apoiaremos no texto
“O ato criador”6 do artista Marcel Duchamp.
Para Duchamp, a relação entre objetividade e subjetividade pode ser demonstrada
através do que ele chama de coeficiente artístico. Utilizando suas palavras: “[...] o
‘coeficiente artístico’ pessoal é como que uma relação aritmética entre o que
permanece inexpresso embora intencionado, e o que é expresso não
intencionalmente”7. É do conflito, segundo ele, entre o ato intencionado e a
realização, entre o intuído e o realizado, que percebemos o quanto são conscientes
e inconscientes, ao mesmo tempo, nossas ações. A partir do conflito entre
objetividade e subjetividade, o ato criador proporciona a possibilidade simultânea da
obra aberta onde o espectador completa o sentido da proposição. Percebemos por
meio dessa manobra que o fazer artístico é esvaziado de sua condição fetichista
tanto técnica8 quanto puramente imaginativa (como diria Duchamp, “mediúnica” 9).
Em palavras de Thierry De Duve:
Diante de um readymade, não existe mais qualquer diferença técnica entre fazer e apreciar arte. Uma vez apagada essa diferença, o artista abriu mão de qualquer privilégio técnico em relação ao leigo. A profissão de artista foi esvaziada de todo seu métier, e, se o acesso a ela não é limitado por alguma barreira – seja institucional, social ou financeira –, deduz-se que qualquer um pode ser artista se assim o desejar. 10
Seguindo nessa linha, o artista e professor alemão Joseph Beuys, partindo dessas
premissas levantadas por Duchamp, define a função do ensino da arte como aquela
que deve transformar toda a sociedade no que ele chamava de “Escultura social”
como conceito ampliado tanto da escultura quanto da arte. Só assim a arte deixaria
de ser exclusividade de alguns poucos pintores, escultores e músicos.
Através desse conceito, todos os espectadores, e não apenas os produtores
(artistas), participam ativamente atribuindo sentido ao contexto artístico,
470
independentemente de saberem pintar quadros ou fazer esculturas, etc. Arte
social11, para Beuys, é o que se deveria aprender nas universidades, e era o que
indicava em suas aulas como condição fundamental para se pensar a capacidade
humana criativa no campo ampliado, englobando as atividades do campo da arte
diluído na vida. Cito Beuys:
Tal escola não precisaria mostrar ao artista como se manuseia tecnicamente uma gravura ou como pintar quadros, pois produzir quadros ou gravuras não é o problema principal. O que ela teria que ensinar é como se pode interferir no processo com a arte social. [...] O papel da arte é – e não há outro principio capaz a não ser este – colocar o problema principal de nossa sociedade, o conceito de criatividade, no centro das atenções12.
Beuys, nesse ponto, está de acordo com a teoria de Duchamp que, ao apresentar
seus objetos “já prontos”, readymades, desloca a prática artística para fora da
instância puramente técnica de produção de objeto. O que também, ampliadamente,
permite pensarmos o próprio trabalho do professor como um “trabalho” de arte,
onde, por meio da relação entre professor e aluno, se desenvolve similarmente uma
relação autor e espectador na qual todos estão colocados como participantes ativos
do ato criador.
Para o artista e professor Beuys, sua prática artística pedagógica está vinculada ao
seu projeto de arte, que, por sua vez, está vinculado à vida em todos os seus
aspectos. Seu trabalho como professor é considerado por ele como parte integrante
do seu próprio trabalho em arte, assim como sua militância sócio-pedagógica. Em
entrevista a Enéas Valle ele afirma:
A arte social interfere nos aspectos da vida, primeiramente a partir do conceito, mas, depois, isso tem de ser aplicado também na prática. Passou a época em que os artistas estavam confinados ao ateliê para pintar quadros ou fazer esculturas. [...] toda a sociedade tem de ser transformada numa obra de arte. 13
É difícil falar de ensino e arte e não falar de Beuys, ainda mais aqui onde é
articulada uma relação entre professor-aluno e autor-espectador. Seu trabalho como
professor e suas teorias aproximam a arte tanto da esfera pública quanto da prática
pedagógica. Beuys foi professor e em 1974 junto com Heinrich Böll fundou a
Universidade Internacional Livre na Alemanha. Sua prática artística e seu trabalho
como professor buscavam encontrar uma aproximação entre o cenário político-social
471
e a arte. Além de reconhecer, por meio do readymade de Duchamp, que “todos
somos artistas” (todos temos um potencial criador e não apenas alguns poucos
eleitos), Beuys afirmou também que ser professor era sua “maior obra de arte”.14
Outro “projeto educativo”, em alguns aspectos bastante similar à proposta de Beuys
no que diz respeito à aspiração de romper com as convenções bem como de expor
os distintos níveis de institucionalização do objeto artístico, é “A educação do não-
artista”15 de Allan Kaprow.
Delineando uma perspectiva diferente daquela adotada por Beuys de transformar
toda sociedade em uma obra de arte, o artista Allan Kaprow aspirava, ao contrário,
que os artistas deixassem de fazer arte e se dedicassem às atividades do cotidiano.
Ou seja, sair dos espaços fechados e programados da arte em direção aos espaços
abertos e não programados da vida mesmo. Em realidade, tanto Beuys quanto
Kaprow pretendiam que a arte se fundisse com a vida; enquanto o primeiro buscava
expandir a criatividade a todos os homens e mulheres, e a todos os âmbitos da vida,
o segundo buscava uma “reeducação” da arte e do artista no sentido que o artista
deveria desaprender, ao invés de aprender, a fazer arte produzindo assim uma não-
arte.
O ato tradicional da produção artística, para Kaprow, encontrava-se carregado de
excessivas convenções e por isso mesmo deveríamos aprender a operar fora
desses padrões, como por exemplo: “senha número 1 (não-arte)” se referiria aos
partidários da não-arte como “aqueles que constantemente decidem operar fora do
domínio das convenções da arte.[...]”; já “senha número 2 (antiarte)” seria
“introduzida no mundo das artes para desestabilizar valores convencionais e
provocar respostas estéticas positivas e/ou respostas éticas”; e por último, “a senha
número 3 (arte Arte)” levaria “[...] a arte a sério. Ela presume, não importa o quão
disfarçadamente, uma certa raridade espiritual, um ofício superior.”16
Kaprow define desse modo a dialética entre Arte e não-arte, gerada entre os
distintos níveis de assimilação e institucionalização do objeto artístico, a partir das
senhas que dão acesso da não-arte à antiarte e da antiarte à arte Arte (com
maiúscula). Seu projeto “reeducativo” pretende retardar o processo de
institucionalização da produção e recepção da arte, mesmo que (o próprio Kaprow
472
reconhece) mais cedo ou mais tarde essas ações, por mais distantes que estejam
do campo artístico, sejam assimiladas como arte Arte.
Nesse sentido, tanto Beuys como Kaprow percebem na “educação criativa” uma
potência de transformação dos indivíduos, sendo o ato comunicativo por si mesmo
uma ação agudamente política. Em sentido amplo, as distintas audiências e
oralidades recobram o sentido de coletividade nas produções, experiências e
manifestações artísticas.
Diálogos sobre arte como arte: ato criativo e ato pedagógico
Se nas Belas Artes o artista era o “gênio” – o único detentor das faculdades
artísticas (fantasia, talento17), não dividindo esse conhecimento sequer com o
público (o que lhe dava certo privilégio) –, o professor de Belas Artes agia de modo
similar: era aquele que possuía o conhecimento e o aluno apenas executava o que
ele determinava como necessário para sua aprendizagem. Nesse caso, não era
levado em consideração pelo professor, ou muito pouco, qualquer tipo de
conhecimento da parte do aluno. Na arte moderna, com o mito da criatividade, as
coisas se invertem e agora parece ser o aluno quem não tem nada a aprender com
o professor, desconsiderando qualquer tipo de conhecimento a ser adquirido: o que
vale é sua capacidade “criativa”. O artista, nessa perspectiva, tampouco se
interessava pela possibilidade de estabelecer um diálogo de proposições artísticas:
expressar seus sentimentos era o mais importante.
Assim como no Ato Criador de Duchamp a relação entre artista, obra de arte e
espectador muda, no ensino da arte esta mesma relação deve ser repensada. O
artista não é o único propositor; o professor não é o único que detém conhecimento;
o espectador é participante do trabalho de arte, do mesmo modo que o aluno não é
receptor passivo e sim participante. Cito Duchamp:
[...], o ato criador não é executado pelo artista sozinho; o público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, desta forma, acrescenta sua contribuição ao ato criador. 18
O ato pedagógico não é elaborado unicamente pelo professor: existe do outro lado o
aluno que, consciente ou inconscientemente, através de sua participação, contribui
473
com as aulas, acrescentando ao processo de transmissão, suas experiências. Com
o ato pedagógico o professor propõe e o aluno completa. Na ação didática, isso é
possível num ambiente que privilegia o encontro entre posições diferentes, onde
nem sempre há concordância. O diálogo prevê o conflito. Segundo Isabel da Cunha:
“produzir conhecimentos significa colocar os sujeitos da aprendizagem numa
perspectiva de indagação que leve ao estudo e a reflexão”.19
O modelo de ensino produzido pelos mestres no contexto da antiga academia de
Belas Artes gerava alunos que acreditavam no talento e na habilidade. A
metodologia de ensino se dava por meio de cópias dos grandes mestres, ou da
natureza, demandadas ao aluno, adestrando, por exemplo, suas mãos para a
pintura. Pouco tempo sobrava para a reflexão sobre os aspectos da arte, como
também para o diálogo entre professor e aluno. O ensino é uma forma de
intervenção no mundo, como também o é a produção artística, não se restringido
apenas à absorção de conteúdos que são bem ou mal ensinados. O professor
quando se limita, em sua prática pedagógica, a transmitir conteúdos, segundo Paulo
Freire, só contribuí para a “reprodução da ideologia dominante” 20 impedindo a
contradição e a participação do aluno.
O outro lado dessa mesma moeda seria a crença modernista na singularidade das
subjetividades, onde o professor não permitiria ser copiado (como no antigo ensino
acadêmico) e o aluno teria que apresentar sinais de sua criatividade sem muita
ajuda do professor. Assim, nesse tipo de ensino, era tido como evidência de
aprendizado a não transmissão de referências para o aluno, como se isso fosse
possível, o que, aparentemente, proporcionava uma liberdade de expressão e
espontaneidade ao fazer artístico.
Entretanto, para Charles Harrison, o sistema crítico teórico moderno cobrava sim
dos alunos, e futuros artistas, que produzissem objetos para serem julgados
segundo uma lógica própria ao limite moderno: “ruptura com o anterior sem romper
com o sistema geral da apreciação do gosto, do olhar, da aferição dos valores
estéticos e do estilo que tal forma possa corresponder”. 21
Um exemplo de correspondência entre o ensino da arte e o corpo teórico moderno
se passa na escola inglesa St. Martin’s School of Arts, em 1960, onde um dos
474
estudantes introduziu um problema – para os moldes de ensino e de escolha dos
professores/artistas dessa escola – ao expor um trabalho que metade estava
presente e a outra metade “ausente”.
O emblemático trabalho do então estudante Richard Long, apresentado em St.
Martin’s, não poderia ser julgado pela lógica modernista, segundo o professor e
artista Anthony Caro, porque o mesmo não estava completamente presente para ser
apreciado em relação às suas características estéticas formais. Long colocou um
arranjo com galhos no salão da faculdade e explicou que aquilo era a metade da
escultura composta de duas partes separadas, e que a outra parte estava no topo do
Ben Nevis, uma montanha na Escócia.
O que Long fez foi problematizar a situação de apresentação dos objetos artísticos
para fora de uma lógica formalista até então vigente. A outra parte da escultura
apresentada por ele a Caro estava ali presente pelo discurso (pela fala dele sobre a
parte ausente), que indicava o lugar onde a outra parte se encontrava.
Nesse mesmo viés, outro exemplo potente que nos ajuda pensar o desdobramento
do discurso da arte não apenas como teoria sobre arte, mas como arte, são as
práticas coletivas do grupo conceitual anglo-saxão Art & Language22. Esse grupo
considerava seus encontros como uma prática artística, através dos diálogos
estabelecidos entre seus integrantes e participantes. E levando em consideração
que alguns de seus membros eram professores, também uma oportunidade de criar
uma participação ativa com os alunos e com o público em geral. Se for certo, como
afirmam os integrantes do grupo, que quase tudo que sabemos das obras de arte
sabemos a partir de publicações e conversas sobre arte, desde uma conferencia,
passando pelas aulas, até às conversas informais de um individuo qualquer com
outro, seria correto então dizer que estas ações “pedagógicas” levadas a cabo pelo
grupo anglo-saxão procuravam deshierarquizar23 e repensar as distintas funções dos
diversos agentes da arte. Como afirma Peter Osborne “a associação Art & Language
estava vinculada a educação artística e buscava criar uma comunidade artística
alternativa como parte de uma política socialista mais ampla”. 24
475
Fig. 1: Walter Marchetti, Zaj es como un bar (cartão de visita), 1966.
Nesse sentido, os diálogos sobre arte – seja entre professores e alunos,
conferencistas e ouvintes, ou entre duas pessoas quaisquer que de alguma maneira
tocam no problema da arte – constituem um modo de manifestação da arte. Ou seja,
não são apenas diálogos sobre arte, mas sobretudo diálogos como arte. Nessa
perspectiva, podemos entender o labor artístico de modo ampliado, não restringido a
uma única direção de fabricação de objetos. Tanto o professor como o teórico, como
todos aqueles que de alguma forma acessam a arte, mesmo que seja em uma
conversa despretensiosa e informal, estão contribuindo por meio de seus atos
comunicativos com a criação artística. 25
Voltando então ao ato pedagógico, o processo de aprendizagem entre professor e
aluno concretiza uma possibilidade, aqui indicada, de por em movimento a dinâmica
entre valores estabelecidos e valores contestados, acrescentando nessa relação à
possibilidade dupla de transmissão da tradição e, por conseguinte, sua reflexão e
superação. Entendendo superação não como negação, mas como complementação:
o professor e o aluno promovem um diálogo possível pela reflexão crítica onde
valores determinados são contrapostos a outros valores indeterminados.
Somos condicionados e condicionantes, disso não podemos duvidar, mas existe
uma diferença entre sermos condicionados e sermos conscientes do inacabado.
Para Paulo Freire essa á a diferença profunda entre o ser condicionado e o ser
determinado26: ao mesmo tempo em que somos condicionados, determinados
476
historicamente, escapamos a essas determinações quando tomamos consciência do
inacabado, daquilo que escapa às determinações históricas e pessoais.
Quanto a isso, tomamos emprestado o coeficiente artístico de Duchamp para definir
o “coeficiente pedagógico”. Relembrando, o coeficiente artístico é a relação
aritmética entre o que permanece inexpresso, embora intencionado, e o que é
expresso e não intencionado. No ato pedagógico o professor propõe uma ação e o
aluno participa completando essa ação; nem o professor tem consciência (controle)
de tudo que é comunicado (expresso e não intencionado) como também não o tem
sobre o que não foi dito (inexpresso embora intencionado). Assim, por essa mesma
lógica, o aluno atua sobre o “coeficiente pedagógico” completando o ensino com sua
ação.
O professor, mesmo preparado para lidar com as demandas distintas em sala de
aula, não saberá responder a todos as questões. Sabemos que é de grande
importância para a prática pedagógica preparar os conteúdos que serão
comunicados em sala de aula, mas o ensino acontece de fato quando é criado entre
professores e alunos um ambiente de diálogo que possibilita a
transmissão/superação de conteúdos apresentados. Segundo Gilles Deleuze, “criar
foi sempre coisa distinta de comunicar” e “o importante talvez venha a ser criar
vacúolos de não-comunicação, interruptores, para escapar ao controle”27. A
participação do público-aluno e do o autor-professor se dá entre vacúolos de
comunicação. O diálogo proposto não é como a comunicação instantânea,
transparente, como um túnel direto entre eu e o outro, sem objeções (vacúolos)
dando passagem para o proposto e o executado, entre a intenção e a recepção,
entre professor e aluno.
Neste sentindo, ao invés da prática pedagógica se constituir apenas como uma
orientação didática, ela se constituí ao mesmo tempo como desorientação didática28,
engendrando lapsos de consciência que permitem um processo de subjetivação que
escapa tanto aos saberes constituídos como aos poderes dominantes. Mesmo que,
de acordo com Deleuze, se em seguida “[...] eles engendram novos poderes ou
tornam a integrar novos saberes”.29 Logo, como nos descreve Freire, “[...] ensinar
não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a
sua construção”.30
477
1 Obra/certificado de uma das conversações do artista conceitual Ian Wilson, em: KLEINMEULMAN, Chantal, Ian Wilson: los debates. Barcelona: Museu D’Art Contemporani de Barcelona, 2008. 2 DE DUVE, Thierry. “Quando a forma se transformou em atitude – e além”. In: FERREIRA, Glória; VENÂNCIO FILHO, Paulo (ed.). Arte & Ensaios, n. 10. Rio de Janeiro: Mestrado em História da Arte/Escola de Belas Artes, UFRJ, 2003, p. 94. 3 Para Paulo Freire o ensino do tipo bancário é aquele autoritário, impede que o professor e o aluno sejam sujeitos do ensino. O aluno pode até absorver conteúdos que são transmitidos pelo professor sem, no entanto, se torna sujeito consciente do seu condicionamento. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996 (coleção leitura), p.25. 4 FRANGE, Lucimar B. P. “Arte e seu ensino, uma questão ou várias questões?”. In: BARBOSA, Ana Mae (org.). Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2003, p. 36. 5 Ibid., p. 36. 6 DUCHAMP, Marcel. “O Ato Criador”. In: BATTCOK, Gregory (org.). A nova arte. São Paulo: Perspectiva. 1975, p. 75 - 83 7 Ibid., p.73. 8 Cumprir esse requisito parece ser uma condição geral de qualquer produção mais do que uma qualidade que determina sua competência. Entretanto, ainda hoje, em muitos casos, a pertinência de um trabalho artístico é medida ou pelo grau de habilidade técnica demonstrado ou ainda, pelo viés modernista, pelo uso expressivo formalista (individualizado) das condições internas à cada meio. 9 Não que o artista tenha total domínio sobre o que faz, saiba objetivamente descrever ou tenha todas as respostas sobre seu trabalho. No entanto, também é impensável supor que ele não saiba absolutamente nada sobre seu trabalho e que esse seja apenas fruto de sua subjetividade inexplicável. 10 DE DUVE, Thierry. “Kant depois de Duchamp”. In: FERREIRA, Glória, VENÂNCIO FILHO, Paulo. (ed.). Arte & Ensaios, n. 5. Rio de Janeiro: Mestrado em História da Arte/Escola de Belas Artes, UFRJ, 1998, p. 128. 11 BEUYS, Joseph apud VALLE, Enéas. “Entrevista com Joseph Beuys”, In: VALLE, Enéas. Catálogo Tempo - cor. Rio de Janeiro: Museu Nacional de Belas Artes Galeria do Século XXI, 2002, p. 16. 12 Ibid., p.17. 13 Ibid., p. 16. 14 BEUYS, Joseph apud LIPPARD, Lucy R. Seis años: la desmaterialización del objeto artístico de 1966 a 1972. Madrid: Akal, 2004, p. 21. 15 The Education of the Un-Artist, Parte I," Art News”, fevereiro de 1971; Parte II Art News, maio 1972; e Parte III “Art in America”, Janeiro-fevereiro de 1974. Em 2007 foi publicado em espanhol livro reunindo as três partes da “educação do não- artista”: Allan KAPROW, La educación del des-artista, Madrid: Árdora Ediciones, 2007. 16 KAPROW, Allan. “A educação do não-artista, parte I”. In: GERALDO, Sheila C. (ed.). Concinnitas: Revista do Instituto de Artes da UERJ, n. 4. Rio de janeiro: UERJ, 2003, p.216-219. 17 Sobre as características do gênio artístico: “Quanto ao poder geral da criação artística, uma vez ele admitido, logo se deve ver na imaginação a faculdade artística mais importante”. HEGEL, F. G. W. Estética a ideia e o ideal. São Paulo: nova cultura, 2000, p. 274. 18 DUCHAMP, op. cit., p. 83. 19 CUNHA, Maria I. “A relação professor aluno”. In: VEIGA, Ilma (cord.). Repensando a didática. Campinas: Papirus, 1994, p. 154. 20 FREIRE, op. cit., p. 98. 21 HARRISON, Charles. “O ensino da arte conceitual”. In: FERREIRA, Glória, VENANCIO FILHO, Paulo. (ed.). Arte & Ensaios, n. 10. Rio de Janeiro: Mestrado em História da Arte/Escola de Belas Artes, UFRJ, 2003, p. 118. 22 Sobre suas teorias, encontros e publicações consultar: ATKINSON, Terry, et al. (eds.). Art-Language: The Journal of Conceptual Art. Coventry: Art & Language Press, mayo de 1969. 23 Significa para o grupo derrubar as fronteiras que separam “o estético do contingente, o empírico do teórico, o individual do coletivo, a alta arte da cultura popular e a arte da linguagem.” HARRISON, Charles. “Objeto de arte y obra de arte” In: BUCHLOH, Benjamin H. D., et al. Arte Conceptual: una perspectiva. Madrid: Fundación Cajas de Pensiones,1990, p. 28. 24 OSBORNE, Peter (ed.). Arte Conceptual. Londres: Phaidon, 2006, p.34. 25Todos esses encontros são possibilidades de diálogos entre “propositores” e “participantes” que ratificam o ato criativo como um ato coletivo. 26 FREIRE, op. cit., pp. 53. 27 DELEUZE, Gilles. Conversações. Gilles Deleuze; tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed.34. 1992, p. 217. 28 CALDAS JR, Waltercio. Manual da ciência popular. Prefácio do catálogo, Texto de Paulo Venâncio Filho. Rio de Janeiro: Funarte, 1982. 29 DELEUZE, op. cit., p. 218. 30 FREIRE, op. cit., p.22.
478
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ATKINSON, Terry, et al. (eds.). Art-Language: The Journal of Conceptual Art. Coventry:
Art & Language Press, mayo de 1969. CALDAS JR, Waltercio. Manual da ciência popular. Prefácio do catálogo, Texto de Paulo
Venâncio Filho. Rio de Janeiro: Funarte, 1982. CUNHA, Maria I. “A relação professor aluno”. In: VEIGA, Ilma (cord.). Repensando a
didática. Campinas: Papirus, 1994. DE DUVE, Thierry. “Quando a forma se transformou em atitude – e além”. In: FERREIRA,
Glória; VENÂNCIO FILHO, Paulo (ed.). Arte & Ensaios, n. 10. Rio de Janeiro: Mestrado em História da Arte/Escola de Belas Artes, UFRJ, 2003.
________, Thierry. “Kant depois de Duchamp”. In: FERREIRA, Glória, VENÂNCIO FILHO, Paulo. (ed.). Arte & Ensaios, n. 5. Rio de Janeiro: Mestrado em História da Arte/Escola de Belas Artes, UFRJ, 1998.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Gilles Deleuze; tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed.34. 1992.
DUCHAMP, Marcel. “O Ato Criador”. In: BATTCOK, Gregory (org.). A nova arte. São Paulo: Perspectiva. 1975.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FRANGE, Lucimar B. P. “Arte e seu ensino, uma questão ou várias questões?”. In: BARBOSA, Ana Mae (org.). Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2003.
LIPPARD, Lucy R. Seis años: la desmaterialización del objeto artístico de 1966 a 1972. Madrid: Akal, 2004.
KAPROW, Allan. “A educação do não-artista, parte I”. In: GERALDO, Sheila C. (ed.). Concinnitas: Revista do Instituto de Artes da UERJ, n. 4. Rio de janeiro: UERJ, 2003.
HARRISON, Charles. “O ensino da arte conceitual”. In: FERREIRA, Glória, VENANCIO FILHO, Paulo. (ed.). Arte & Ensaios, n. 10. Rio de Janeiro: Mestrado em História da Arte/Escola de Belas Artes, UFRJ, 2003.
HARRISON, Charles. “Objeto de arte y obra de arte” In: BUCHLOH, Benjamin H. D., et al. Arte Conceptual: una perspectiva. Madrid: Fundación Cajas de Pensiones, 1990.
OSBORNE, Peter (ed.). Arte Conceptual. Londres: Phaidon, 2006. VALLE, Enéas. “Entrevista com Joseph Beuys”. In: Tempo - cor. Rio de Janeiro: Museu
Nacional de Belas Artes Galeria do Século XXI, 2002. Silfarlem Junior de Oliveira Artista-pesquisador. Em 2011 trabalhou como professor substituto da Universidade Federal do Espírito Santo. Possui graduação em Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo (2006). Possui “Diploma de Estudios Avanzados” (2009) em Arte Conceitual pela UCLM/Espanha. Atualmente é aluno do Mestrado em artes PPGA/UFES e Participa do grupo de pesquisa PLACE com linha de pesquisa em conceitualismo.