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Arthur C. Clarke - Encontro Com Rama

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Para o Sri Lanka,

onde subi a Escadaria dos Deuses

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1 - SPACEGUARDMAIS CEDO ou mais tarde, aquilo tinha de

acontecer. Em 30 de junho de 1908, Moscoulivrou-se de ser destruída por uma diferençade três horas e quatro mil quilômetros – naescala do Universo, uma distância mi-crométrica. Em 12 de fevereiro de 1947,outra cidade russa escapou por uma margemainda menor quando o segundo grande met-eorito do século XX detonou a menos dequatrocentos quilômetros de Vladivostok,com uma explosão que nada ficava devendoà da recém-inventada bomba de urânio.

Naquela época, os homens nada podiamfazer para se protegerem contra as derradeir-as "balas perdidas" do bombardeio cósmicoque outrora havia esburacado a superfície daLua. Os meteoritos de 1908 e 1947 atingiramregiões desabitadas; mas já pelos fins do

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século XXI não restava nenhuma nesga daTerra que pudesse ser usada com segurançacomo alvo para a prática de tiro espacial. Araça humana estava espalhada de pólo apólo. De modo que, inevitavelmente...

Às 9h46min, Hora Média de Greenwich,na manhã de 11 de setembro daquele verãoexcepcionalmente ameno do ano 2077, amaioria dos habitantes da Europa viramaparecer no céu oriental uma deslumbrantebola de fogo.

Superando, numa questão de segundos,o brilho do próprio Sol, cruzou o céu, aprincípio em absoluto silêncio. Atrás de si,deixava uma revoluteante cauda de pó efumaça.

Num ponto acima da Áustria começou adesintegrar-se, produzindo uma série deconcussões tão violentas que mais de ummilhão de pessoas ficaram com a audiçãopermanentemente danificada. Essas foramas mais felizes.

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Movendo-se a cinquenta quilômetrospor segundo, mil toneladas de rocha e metalvieram chocar-se com as planícies no norteda Itália, destruindo em poucos momentos otrabalho de séculos, devorado pelas chamas.As cidades de Pádua e Verona foram elimin-adas da face da Terra; e o que restava dosesplendores de Veneza afundou-se parasempre sob as águas do Adriático que, nummacaréu tonitruante, investiram para a terrafirme após aquele tremendo golpe de malhovindo do espaço.

Seiscentas mil pessoas perderam a vidae os danos totais montaram a mais de umtrilhão de dólares. Não havia, contudo, quempudesse avaliar a perda para a arte, a história– para a raça humana inteira, até o fim dostempos. Foi como se uma grande guerrahouvesse sido travada e perdida no espaço deuma só manhã; e foram poucos os que sen-tiram algum prazer em contemplar, duranteos meses em que a poeira da destruição

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continuou pairando no ar, os mais esplên-didos nasceres e pores-do-sol desde aerupção do Cracatoa.

Após o choque inicial, a humanidade re-agiu com uma resolução e uma unidade queteriam sido impossíveis em qualquer épocaanterior. Compreendeu-se que um desastredas mesmas proporções talvez não tornasse aocorrer dentro de mil anos – mas tambémpodia acontecer no dia seguinte; e na próx-ima vez as consequências podiam ser aindapiores.

Pois muito bem; não haveria uma próx-ima vez.

Cem anos atrás, um mundo mais pobre,com recursos incomparavelmente mais fra-cos, havia malbaratado a sua riqueza procur-ando destruir armas que a humanidade, nasua loucura suicida, lançava contra simesma. O esforço jamais lograra êxito, masas habilidades adquiridas graças e ele não fo-ram esquecidas.

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Agora se podia usá-las para um fim maisnobre e num campo infinitamente maisvasto. A nenhum meteorito suficientementegrande para causar uma catástrofe se torn-aria jamais a permitir que rompesse as defe-sas da Terra.

Foi assim que nasceu o ProjetoSPACEGUARD, Guarda Espacial.

Cinquenta anos depois – e de um modoque nenhum de seus ideadores poderia terprevisto – ele justificou a sua existência.

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2 - INTRUSOEM 2130, os radares com base em Marte

estavam descobrindo novos asteróides àrazão de uma dúzia por dia. Os computa-dores da Spaceguard calculavam-lhes auto-maticamente as órbitas e armazenavam a in-formação em suas enormes memórias, deforma que todo astrônomo interessado po-dia, de quando em quando, estudar as es-tatísticas acumuladas, que já eram de inspir-ar respeito.

Foram precisos mais de cento e vinteanos para coligir os mil asteróides após odescobrimento de Ceres, o maior dessesmundos pequeninos, no dia primeiro doséculo XIX. Centenas deles haviam sido en-contrados, perdidos e tornados a encontrar;existiam em enxames tão densos que um as-trônomo exasperado os batizara como "a

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bicheira do céu". Podemos imaginar o seupavor se soubesse que a SPACEGUARDseguia, atualmente, o rastro de meio milhão!

Somente os cincos gigantes, Ceres,Palas, Juno, Eunômia e Vesta, mediam maisde duzentos quilômetros de diâmetro; aimensa maioria não passavam de matacõesavolumados que teriam cabido num pequenoparque.

Quase todos se moviam em órbitas situ-adas além de Marte; somente aqueles poucosque se aproximavam bastante do Sol paraconstituírem um perigo para a Terra é queinteressavam a SPACEGUARD; e nem se-quer um dentre mil desses, durante toda ahistória futura do Sistema Solar, passaria aum milhão de quilômetros da Terra.

O objeto que foi inicialmente catalogadocomo 31/439, de acordo com o ano e a or-dem de seu descobrimento, fora detectadoquando ainda se encontrava além da órbitade Júpiter. Quanto a essa localização, nada

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tinha de inusitada; muitos asteróides ultra-passavam Saturno antes de se voltarem maisuma vez na direção de seu distante senhor, oSol. E Tule II, aquele que de todos mais sedistanciava, chegava tão perto de Urano quebem poderia ser uma lua perdida desteplaneta.

Mas um primeiro contato pelo radar atamanha distância era um fato sem preced-entes; evidentemente, o 31/439 devia terproporções excepcionais. Com base na forçado eco, os computadores deduziram um diâ-metro de quarenta quilômetros, pelo menos;havia cem anos que não se descobria um gi-gante de tal porte. Parecia incrível quetivesse passado despercebido por tantotempo.

Calculou-se então a órbita e veio asolução do mistério... a que logo se sucedeuum outro maior. O 31/439 não percorriauma trajetória normal de asteróide, ao longode uma elipse que tornasse a descrever com

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a precisão de um mecanismo de relógio noperíodo de uns poucos anos. Era um vag-abundo solitário entre as estrelas, e fazia suaprimeira e última visita ao sistema solar –pois se movia tão depressa que o campogravitacional do Sol jamais poderia capturá-lo. Passaria como um relâmpago pelas ór-bitas de Júpiter, Marte, Terra, Vênus e Mer-cúrio, ganhando sempre velocidade, até darvolta ao Sol e partir mais uma vez para odesconhecido. Foi neste ponto que os com-putadores começaram a emitir o seu sinal:"Alô, gente! Temos algo de interessante", epela primeira vez o 31/439 chamou a atençãodos seres humanos. Houve uma breve co-moção na chefia da Spaceguard e o vag-abundo interestelar foi logo dignificado porum nome em vez de um simples número.Havia muito que os astrônomos tinham es-gotado a mitologia grega e romana, e es-tavam agora explorando o panteão hindu. O31/439 foi, portanto, batizado como Rama.

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Pelo espaço de alguns dias, os meios no-ticiosos fizeram bastante barulho em tornodo visitante, mas todos eles padeciam de es-cassez de informações. Dois fatos, apenas,eram conhecidos a respeito de Rama: sua ór-bita incomum e seu tamanho aproximado. Emesmo este não passava de uma conjeturaerudita, baseada na força do eco de radar. Aotelescópio, Rama aparecia como umaobscura estrela de décima quinta grandeza,pequena demais para apresentar um discovisível. Mas, à medida que avançasse para ocoração do sistema solar, se tornaria cadavez mais brilhante e maior; antes que ele de-saparecesse para sempre, os observatóriosque lhe acompanhavam a órbita teriam ob-tido informações mais precisas sobre o seutamanho e forma. Havia tempo de sobra, enos próximos anos talvez uma espaçonave noexercício de suas funções ordinárias pudessechegar bastante perto dele para tirar boas fo-tografias. Quanto a uma tentativa de pouso,

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era altamente improvável; o custo em ener-gia seria demasiado grande para permitir ocontato físico com um objeto que cortava asórbitas dos planetas a uma velocidade demais de cem mil quilômetros por hora.

E assim, o mundo não tardou aesquecer-se de Rama; os astrônomos, porém,é que não esqueceram. Sua excitação cresceucom o correr dos meses, à medida que o novoasteróide lhes ia apresentando mais e maisenigmas. Em primeiro lugar estava o prob-lema da curva de luminosidade de Rama.Este não a possuía.

Todos os asteróides conhecidos, sem ex-ceção, mostravam uma lenta variação debrilho, crescendo e decrescendo num per-íodo de poucas horas. Há mais de doisséculos tinha-se reconhecido que isso erauma consequência inevitável da rotação e daforma irregular. Nas voltas angulosas quedavam sobre si mesmos em suas órbitas, assuperfícies refletoras que apresentavam ao

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Sol mudavam continuamente, o que lhesfazia variar a luminosidade.

Rama, contudo, não mostrava tais alter-ações. Ou não tinha nenhum movimento derotação, ou era um objeto perfeitamentesimétrico. Ambas estas explicações pareciamigualmente improváveis.

E nesse ponto ficou o assunto durantevários meses, pois nenhum dos grandestelescópios de órbita podia ser dispensado deseu trabalho regular, que consistia em sond-ar as remotas profundezas do universo. AAstronomia espacial era um hobby dispen-dioso, e o tempo de um grande instrumentopodia facilmente custar mil dólares porminuto. O Dr. William Stenton jamais teriaconseguido que lhe concedessem o uso do re-fletor de duzentos metros do Outro Lado daLua pelo espaço de um quarto de hora se umprograma de maior importância nãohouvesse descarrilado temporariamentedevido à falha de um condensador de cinco

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centavos de dólar. O caiporismo de umcolega foi a sua sorte.

Bill Stenton só veio a saber o que haviapescado no dia seguinte, quando sobroutempo de um computador, permitindo lheprocessar os seus dados.

Mesmo depois de ver aparecerem final-mente os resultados na tela, vários minutosse passaram antes que compreendesse o quesignificavam.

A luz solar refletida pelo asteróide nãoera, afinal, de uma intensidade absoluta-mente constante. Havia uma variaçãopequeníssima – difícil de perceber, mas in-equívoca e perfeitamente regular. Como to-dos os outros asteróides, Rama tambémgirava sobre si mesmo. Só que, em lugar dasvárias horas que durava o dia "normal" deum asteróide, o de Rama transcorria emquatro minutos.

O Dr. Stenton fez rapidamente algunscálculos e mal pôde acreditar nos resultados.

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No seu equador, esse mundo pequenino de-via girar a mais de mil quilômetros por hora;seria bastante arriscado tentar pousar emqualquer ponto que não fosse nos pólos. Aforça centrífuga no equador de Rama deviaser suficientemente poderosa para arrojarlonge qualquer objeto desligado, com umaaceleração de quase uma gravidade. Ramaera uma pedra rolante que não podia ter cri-ado nenhum limo cósmico; o surpreendenteé que um corpo semelhante não se houvessedesintegrado há muito em um milhão defragmentos.

Um objeto de quarenta quilômetros dediâmetro, com um período de rotação deapenas quatro minutos... onde se encaixavaisso na ordem das coisas astronômicas? ODr. Stenton era um homem bastante ima-ginoso, com certa inclinação para tirar con-clusões precipitadas. Desta vez tirou umaque o fez passar um quarto de hora dos maisinquietantes.

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O único espécime do zôo celestial que seajustava à descrição era uma estrela quehouvesse entrado em colapso. Talvez Ramafosse um sol morto – uma esfera de neut-rônio a rodopiar como uma coisa doida, cadacentímetro cúbico da qual pesasse bilhões detoneladas...

Neste ponto, perpassou pelo espíritohorrorizado do Dr. Stenton a lembrançadaquela imorredoura obra clássica de H. G.Wells, A estrela. Era ainda muito meninoquando a lera pela primeira vez, e fora umadas coisas que tinham acendido a centelhade seu interesse pela Astronomia. Através demais de dois séculos, não perdera nem umpouco de sua magia e poder terrífico.Stenton jamais esqueceria as imagens de fur-acões e macaréus, de cidades deslizando paradentro do mar, quando aquele outro visit-ante do espaço se chocou com Júpiter e caiuem direção ao Sol, passando nas proximid-ades da Terra. É verdade que a estrela

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descrita pelo velho Wells não era fria, masincandescente, e uma boa parte da destru-ição que causou provinha do calor. Mas queimportava isso?

Ainda que Rama fosse um corpo frio, re-fletindo apenas a luz do Sol, poderia matarpela gravidade tão facilmente como pelofogo.

Toda massa estelar que penetrasse nosistema solar transtornaria completamenteas órbitas dos planetas. Bastava que a Terrase movesse alguns milhões de quilômetrosna direção do Sol – ou das estrelas – paradestruir o delicado equilíbrio do clima. Acalota de gelo do Antártico poderia derreter-se e inundar todas as terras baixas; ou talvezos oceanos se congelassem, enclausurando omundo inteiro num inverno perpétuo. Umacotovelada neste ou naquele sentido seria oquanto bastava...

De repente o Dr. Stenton pareceusossegar e deixou escapar um suspiro de

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alívio. Quanta tolice! Devia ter vergonha depensar tais coisas.

Rama, de forma alguma, podia ser feitode matéria condensada. Nenhuma massa dedimensões estelares podia penetrar tãofundo no sistema solar sem causar perturb-ações que a teriam denunciado há muitotempo. As órbitas de todos os planetas teri-am sido afetadas; afinal de contas, fora assimque tinham sido descobertos Netuno, Plutãoe Perséfone. Não, era absolutamente impos-sível que um objeto tão maciço quanto umsol morto se introduzisse na família plan-etária sem ser notado.

De certo modo, era uma pena. O encon-tro com uma estrela escura teria sido umadas coisas mais emocionantes.

Enquanto durasse...

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3 - RAMA E SITAA SESSÃO extraordinária do Conselho

Espacial foi breve e tempestuosa.Mesmo no século XXII, não se descobri-

ra ainda um meio de impedir que cientistasidosos e conservadores ocupassem posiçõesadministrativas de decisão.

Duvidava-se, inclusive, que jamaisviesse a ser encontrada uma solução para oproblema.

O que vinha piorar ainda mais a coisaera que o atual presidente do CE, ProfessorEmérito Olaf Davidson, o ilustre astrofísico,não se interessava muito por objetos inferi-ores em tamanho a uma galáxia e nunca sedava ao trabalho de ocultar os seus precon-ceitos. E, embora tivesse de reconhecer quenoventa por cento de sua ciência sebaseavam, agora, nas observações de

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instrumentos transportados por veículos es-paciais, não se conformava com isso demodo algum. Nada menos de três vezes dur-ante a sua brilhante carreira, satélites lança-dos especialmente com o fim de provar umade suas teorias favoritas tinham feito precis-amente o contrário.

A questão que o Conselho devia decidirno momento era bastante clara.

Não havia dúvida de que Rama era umobjeto incomum: mas era ele um objeto im-portante? Dentro de poucos meses iria desa-parecer para sempre, e havia pouco tempopara agir. As oportunidades que se perd-essem agora talvez nunca mais tornassem ase apresentar.

A um custo quase apavorante, umasonda espacial que se pretendia lançar embreve de Marte até além de Netuno poderiaser modificada e enviada numa trajetória dealta velocidade ao encontro de Rama. Não sepodia cogitar de uma abordagem; seria o

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cruzamento mais rápido da história, pois osdois corpos passariam um pelo outro à velo-cidade de duzentos mil quilômetros horários.

Rama só seria observado intensamentepelo espaço de uns poucos minutos e, numverdadeiro primeiro plano, por menos de umsegundo. Mas, com a instrumentação apro-priada, esse tempo seria suficiente para re-solver muitas questões.

Embora o Professor Davidson encarassecom muito pessimismo a sonda netuniana,esta já fora aprovada e ele não via nenhumavantagem em investir mais dinheiro numprojeto de êxito duvidoso. Exprimiu-se comeloquência sobre as loucuras da caça aos as-teróides e a urgente necessidade de um inter-ferômetro de alta capacidade analítica naLua para provar uma vez por todas a recém-revivida teoria da colisão sobre a origem dosistema planetário.

Foi esse um sério erro de tática, pois ostrês mais ardentes defensores da teoria da

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estabilidade modificada também eram mem-bros do Conselho.

Secretamente, convinham com o Prof.Davidson em que o rastreamento de aster-óides era um desperdício de dinheiro; nãoobstante...

Davidson perdeu por um voto.Três meses depois a sonda espacial, re-

batizada com o nome de Sita, foi lançada deFobos, o satélite interior de Marte. O tempode voo foi de sete semanas e só se deu toda eforça ao instrumento cinco minutos antes daintercepção.

Simultaneamente, soltou-se um grupode porta-câmaras para que passassem juntoa Rama e pudessem fotografá-lo de todos oslados.

As primeiras imagens, obtidas de umadistância de dez mil quilômetros, suspend-eram as atividades de toda a humanidade.Num bilhão de telas de televisão apareceuum pequenino cilindro sem nada de

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particular, que foi crescendo rapidamente,segundo por segundo. Quando dobrou detamanho, ninguém pôde mais pretender queRama fosse um objeto natural.

Seu corpo era um cilindro de tal per-feição geométrica que era como se tivessesido trabalhado num torno – um cilindrocom os centros das bases separados por umadistância de cinquenta quilômetros. As duasextremidades eram perfeitamente planas,com exceção de algumas pequenas estrutur-as no centro de uma das faces, e mediamvinte quilômetros de diâmetro. De longe e naausência de uma noção de escala, Ramatinha uma parecença quase cômica com umbóiler doméstico ordinário.

Rama cresceu até encher a tela. Sua su-perfície era de um cinza fosco e pardacento,tão descolorido quanto a Lua, e completa-mente despido de sinais, salvo num ponto.Mais ou menos no meio do cilindro haviauma mancha de um quilômetro de largura,

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como se alguma coisa se tivesse chocado comele, salpicando-o, milênios e milênios atrás.

Não havia indício de que o impactohouvesse causado qualquer dano as rodopi-antes paredes de Rama; era, porém, essamancha a causadora da pequena flutuaçãode brilho que levara Stenton a fazer a suadescoberta.

As imagens fornecidas pelas outras câ-maras não acrescentavam nada de novo. Noentanto, as trajetórias que os porta-câmarastraçaram através do diminuto campo grav-itacional de Rama forneciam outra inform-ação vital: a massa do cilindro.

Era leve demais para ser um corpo in-teiriço. Não foi grande surpresa para nin-guém o perceber que Rama devia ser oco.

O tão longamente esperado, tão longa-mente temido encontro viera finalmente. Ahumanidade ia receber o seu primeiro visit-ante vindo das estrelas.

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4 - ABORDAGEMO COMANDANTE NORTON lembrava-se

daquelas primeiras transmissões de TV cujosvídeos ele havia repetido tantas vezes, dur-ante os minutos finais da abordagem. Mashavia uma coisa que nenhuma imagemeletrônica podia transmitir, e essa era o es-pantoso tamanho de Rama.

Norton nunca sofrerá uma impressãosemelhante ao pousar num corpo naturalcomo a Lua ou Marte. Esses eram mundos, eesperava-se que fossem grandes. Contudo,havia pousado também em Júpiter VIII, queera um pouco maior do que Rama – e lheparecera um objeto bem pequeno.

Um paradoxo muito fácil de resolver:sua apreciação fora profundamente alteradapelo fato de tratar-se de um artefato milhõesde vezes mais pesado do que qualquer coisa

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que o homem já havia colocado no espaço. Amassa de Rama era, pelo menos, de dez tril-hões de toneladas; a qualquer espaçonauta,um tal pensamento inspirava não só re-speito, mas inclusive terror. Não admiravaque certas vezes ele tivesse uma sensação deinsignificância a até depressão enquantoaquele cilindro de metal esculpido e idadeincalculável ia cobrindo uma parte cada vezmaior do céu. Havia também aqui um senti-mento de perigo que era completamente in-édito em sua experiência. Por ocasião de to-das as abordagens anteriores ele soubera oque esperar; havia sempre a possibilidade deacidente, porém nunca de surpresa.Tratando-se de Rama, a surpresa era a únicacerteza.

Nesse momento a Endeavour pairava amenos de mil metros acima do Pólo Norte docilindro, no próprio centro do disco quegirava lentamente. Haviam escolhido essaextremidade por ser a que recebia a luz solar;

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à medida que prosseguia a rotação de Rama,as sombras das curtas, enigmáticas estrutur-as próximas ao eixo deslocavam-se num mo-vimento uniforme através da planíciemetálica. A face setentrional de Rama era umgigantesco relógio solar a medir a rápidapassagem do seu dia de quatro minutos.

Pousar uma astronave de cinco miltoneladas no centro de um disco revol-uteante era coisa que pouca preocupaçãocausava ao Comandante Norton.

Em nada diferia de atracar no eixo deuma grande estação espacial; os jatos lateraisda Endeavour já lhe tinham comunicado ummovimento de rotação correspondente eNorton podia confiar no Tenente Joe Calvert,que a faria pousar com a suavidade de umfloco de neve, com ou sem a ajuda de umcomputador de navegação.

– Dentro de três minutos – disse Joesem despregar os olhos do mostrador –saberemos se isto é feito de antimatéria.

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Norton sorriu lembrando-se de algumasdas mais horripilantes teorias sobre a origemde Rama. Se aquela improvável especulaçãofosse verdadeira, em poucos segundos haver-ia a maior explosão desde que se formara osistema solar.

A total aniquilação de dez mil toneladasforneceria, por breve espaço de tempo, umsegundo sol aos planetas.

Contudo, o perfil da missão tinha levadoem conta mesmo essa remota contingência.A Endeavour alvejara Rama com um de seusjatos, cautelosamente, de uma distância demil quilômetros. Não aconteceu absoluta-mente nada quando a nuvem de vapor emexpansão atingiu o alvo – e uma reaçãomatériaantimatéria, envolvendo uns poucosmiligramas que fossem, teria produzido umatremenda exibição pirotécnica.

Como todos os comandantes espaciais,Norton era um homem prudente.

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Havia examinado longamente e com amaior atenção a face setentrional de Rama,escolhendo o ponto de pouso. Depois demuito refletir, decidira evitar o lugar mais in-dicado – o centro exato, sobre o próprio eixo.Um disco nitidamente marcado, com cemmetros de diâmetro, tinha por centro o Pólo,e Norton desconfiava muito de que aquilofosse a vedação exterior de uma enormeeclusa aérea. As criaturas que haviam con-struído esse mundo oco deviam ter algummedo de receber lá dentro as suas as-tronaves. Aquele era o local apropriado paraa entrada principal, e pareceu a Norton quetalvez não fosse aconselhável bloquear aporta de entrada com a sua própria nave.

Mas esta decisão vinha criar outrosproblemas. Se a Endeavour pousasse a unspoucos metros que fossem do eixo, a rápidarotação de Rama a faria deslizar para longedo Pólo. A princípio a força centrífuga seriamuito fraca, mas sua ação seria contínua e

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inexorável. Ao Comandante Norton nãoagradava nem um pouco a idéia de ver a suanave escorregar através da planície polar,ganhando velocidade a cada minuto, até serarremessada no espaço a mil quilômetrospor hora, quando alcançasse a beira do disco.

Era possível que o diminuto campogravitacional de Rama – cerca de ummilésimo do da Terra – impedisse tal aconte-cimento. Seguraria a Endeavour contra aplanície com uma força de várias toneladas e,se a superfície fosse suficientemente áspera,a nave poderia manter-se nas proximidadesdo Pólo. Mas opor uma força de atritodesconhecida a uma força centrífuga perfeit-amente certa era coisa que não entrava nascogitações do Comandante Norton. Porsorte, os projetistas de Rama haviam forne-cido uma resposta. Igualmente espaçadas emredor do eixo polar, viam-se três estruturasbaixas, em forma de casamatas, com uns dezmetros de diâmetro. Se a Endeavour

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pousasse entre duas quaisquer dessas estru-turas, a ação centrífuga a impeliria contraelas e ali se imobilizaria, firme como um na-vio colado ao cais pelo avanço das ondas.

– Contato em quinze segundos – disseJoe. Ao curvar-se, tenso, sobre os comandosauxiliares, que esperava não ter de usar, oComandante Norton sentiu agudamentetudo aquilo que viera focalizar-se nesse in-stante do tempo. Esse, por certo, era o pousomais sensacional desde o primeiro desem-barque na Lua, um século e meio atrás.

As casamatas cinzentas cresciam lenta-mente, observadas através da vigia decontrole. Ouviu-se o derradeiro silvo de umjato de reação e sentiu-se um leve choque.

Durante as últimas semanas, o Comand-ante Norton perguntara-se muitas vezes oque diria neste momento. Mas agora que omomento chegava, foi a História que escol-heu suas palavras, e ele falou quase

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automaticamente, com uma vaga consciênciado eco do passado.

– Base Rama. A Endeavour acaba depousar.

Ainda há um mês atrás, ele não teriaacreditado que aquilo fosse possível.

A nave andava numa missão de rotina,verificando e colocando radiofaróis de avisosobre asteróides, quando chegou a ordem. AEndeavour era a única espaçonave no sis-tema solar que podia ir ao encontro do in-truso antes que este desse a volta ao Sol e re-tornasse em sua trajetória, rumo às estrelas.Mesmo assim, fora necessário roubar com-bustível a três outras naves do Serviço deObservação solar, as quais agora flutuavam àderiva, esperando que as naves–tanquesfossem reabastecê-las. Norton receava que oscomandantes da Calypso, Beagle e Chal-lenger não tornassem a lhe falar tão cedo.

Mesmo com esse excedente depropulsor, a perseguição fora longa e árdua.

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Rama já estava no interior da órbita deVênus quando a Endeavour o alcançou. Nen-huma outra nave poderia ter feito o mesmo;o privilégio era único, e não se podia perderum só momento das próximas semanas. Ummilhar de cientistas, na Terra, teriam de bomgrado hipotecado suas almas em troca dessaoportunidade; agora, tudo que podiam fazerera observar os acontecimentos na TV,mordendo o beiço e pensando em quão mel-hor poderiam ter feito aquele serviço. Talveztivessem razão, mas não havia alternativa. Asleis inexoráveis da mecânica celeste haviamdecretado que a Endeavour seria a primeirae a última de todas as naves criadas pelohomem que entraria em contato com Rama.

As indicações que recebia da Terra pou-co contribuíam para aliviar as responsabilid-ades de Norton. Se fosse preciso tomar de-cisões numa fração de segundo, ninguémpoderia ajudá-lo; o período de atraso nascomunicações com o Controle da Missão

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pelo rádio já era de dez minutos e continuavaa crescer.

Quantas vezes ele invejou os grandesnavegadores do passado, que podiam interp-retar as suas ordens lacradas sem a super-visão constante de um posto de comando!Quando eles cometiam um erro, ninguémficava sabendo.

Contudo, sentia-se ao mesmo tempocontente porque algumas decisões podiamser delegadas a Terra. Agora que a órbita daEndeavour havia coalescido com a de Rama,os dois seguiam em direção ao Sol como umsó corpo; dentro de quarenta dias alcançari-am o periélio e passariam a vinte milhões dequilômetros do Sol. Tal proximidade não eranada confortável; muito antes disso, a En-deavour teria de gastar todo o combustívelque lhe restava a fim de se desviar para umaórbita mais segura. A tripulação disporia,talvez, de três semanas para fazer suas

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explorações antes de separar-se para semprede Rama.

Depois disso, o problema seria da Terra.A Endeavour ficaria virtualmente à mercêdas forças cósmicas, arrastada numa órbitaque podia fazer dela a primeira nave espaciala alcançar as estrelas – dentro de cinquentamil anos, aproximadamente. Não havia razãopara inquietar-se, prometera o Controle daMissão. De um modo ou de outro, e sem ol-har aos custos, a Endeavour seriareabastecida – mesmo que fosse necessárioenviar naves-tanques em pós dela eabandoná-las no espaço depois quehouvessem transferido todo o propulsor quecontinham. Rama era um prêmio que valiaqualquer risco, abaixo de uma missãosuicida.

E, naturalmente, a coisa podia chegaraté esse ponto. O comandante Norton nãotinha ilusões a respeito. Pela primeira vez emcem anos, um elemento de total incerteza se

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introduzira nos negócios humanos. A incer-teza era uma das coisas que nem os cientistasnem os políticos podiam tolerar. Se essefosse o preço da sua resolução, a Endeavoure a sua tripulação seriam sacrificáveis.

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5 - A PRIMEIRAAEV*

RAMA ESTAVA silencioso como um túmulo– e talvez o fosse. Nenhum sinal de rádio, emqualquer frequência; nenhuma vibração queos sismógrafos pudessem captar, além demicrossismos indubitavelmente causadospelo crescente calor do Sol; nenhuma cor-rente elétrica; nenhuma radioatividade. Umaquietude quase agourenta; seria de crer queaté num asteróide houvesse mais barulho.

Que é que nós esperávamos? pensouNorton. Um comitê de recepção? Não sabiase havia de sentir-se desapontado ou alivi-ado. Em todo caso, era a ele que pareciacaber a iniciativa.

As ordens que tinha recebido eram paraesperar durante vinte e quatro horas, depois

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sair e explorar. Ninguém dormiu muitonesse primeiro dia; os próprios membros datripulação que não estavam de serviço pas-saram o tempo controlando os instrumentosque tenteavam em vão, ou simplesmentecontemplando pelas vigias a paisagem fria-mente geométrica. Este mundo está vivo?Perguntavam-se e tornavam a perguntar-se.Está morto? Ou simplesmente adormecido?

Na primeira excursão, Norton levouconsigo apenas um companheiro – oCapitão-de-corveta Karl Mercer, seu valentee talentoso oficial de Sustentação da Vida.Não tencionava em absoluto distanciar-se danave a ponto de ficar fora do alcance da vistaé, se houvesse algum contratempo, era poucoprovável que um grupo maior oferecessemais segurança. Tomou, contudo, a pre-caução de levar mais dois membros da tripu-lação que, já metidos nos seus trajes espaci-ais, esperavam na eclusa de ar.

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Os poucos gramas de peso que lhes dav-am os campos gravitacional e centrífugocombinados não ajudavam nem impediam;tinham de confiar exclusivamente nos seusjatos. Logo que fosse possível, disse Nortonde si para si, armaria uma cama-de-gato comcabos de amarração entre a nave e ascasamatas, de modo que os exploradorespudessem mover-se de um lado para outrosem desperdício de propulsores.

A mais próxima casamata ficava a apen-as dez metros da eclusa de ar, e a primeirapreocupação de Norton foi verificar se o con-tato não havia causado nenhum dano à nave.O casco da Endeavour repousava contra aparede curva com uma pressão de váriastoneladas, mas essa pressão estava uniform-emente distribuída. Mais tranquilo, ele pôs-se a flutuar em volta da estrutura circular,procurando determinar qual seria o seuobjetivo.

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Apenas havia Norton percorrido algunsmetros quando notou uma interrupção naparede lisa, aparentemente metálica. Aprincípio julgou que se tratasse de uma es-pécie de decoração, pois não parecia ter nen-huma função útil.

Seis sulcos ou fendas radiais sanavamprofundamente o metal e, dentro deles,havia seis barras cruzadas como os raios deuma roda, sem aro, com um pequeno cubono centro. Mas não havia meio de fazer girara roda, pois estava embutida na parede.

Notou então, com uma excitação cres-cente, que havia escavações mais profundasnas extremidades dos raios, perfeitamentetorneadas de modo a receber dedos (garras?tentáculos?). Se uma pessoa se colocasseassim, apoiando-se contra a parede, epuxasse o raio assim...

Macia como seda, a roda deslizou parafora da parede. Com inexprimível assombro– pois estava virtualmente convencido de

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que quaisquer partes móveis teriam sidosoldadas pelo vácuo há muitos séculos –Norton viu-se de repente com uma roda demalaguetas nas mãos. Era como se fosse ocapitão de algum velho navio à vela, mane-jando o leme do seu barco.

Ainda bem que o pára-sol do seu ca-pacete não permitia que Mercer lhe obser-vasse a expressão...

Estava surpreendido, mas também sen-tia raiva de si mesmo; talvez já houvessecometido o primeiro erro. Estariam soandoagora sinais de alarma no interior de Rama,ou o seu ato irrefletido fizera disparar algummecanismo implacável?

Mas a Endeavour não comunicou nen-huma alteração; os seus sensores ainda nadadetectavam além de leves crepitaçõestérmicas e dos movimentos do própriocomandante.

– Bem, Capitão... Vai girar a roda?

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Norton pensou mais uma vez nas in-struções recebidas. "Siga o seu alvitre, masproceda com cautela." Se consultasse o Con-trole da Missão sobre cada um de seus movi-mentos, nunca chegaria a parte alguma.

– Qual é o seu diagnóstico, Karl? – per-guntou a Mercer.

– Trata-se, evidentemente, do controlemanual de uma eclusa de ar... com certezaum sistema auxiliar de emergência para oscasos de falha de força. Não posso imaginarnenhuma tecnologia, por mais avançada queseja, que não tome tais precauções.

"E seria à prova de falhas", disse Nortonlá no seu íntimo. "Só poderia ser operado senão houvesse possibilidade de perigo para osistema..."

Segurou duas hastes opostas do moline-te, firmou os pés no chão e testou a roda.Esta não se moveu.

– Me ajude aqui – pediu a Mercer.

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Cada um dos dois segurou um raio;fizeram quanta força tinham, mas não con-seguiram produzir o menor movimento.

Não havia, é claro, motivo para suporque os relógios e os saca-rolhas girassem, emRama, no mesmo sentido que na Terra...

– Vamos experimentar o sentido con-trário – sugeriu Mercer. Desta vez não houveresistência. A roda girou quase sem esforço,descrevendo um círculo completo. Aí, então,com muita suavidade, o mecanismo engatou.

A meio metro deles, a parede curva dacasamata começou a mover-se como aconcha de um mexilhão que se abre vag-arosamente. Algumas partículas de pó, im-pelidas pelo ar que escapava, saíram flutu-ando, a cintilar como diamantes na intensaluz solar.

O caminho que levava a Rama estavaaberto.

* Atividade extraveicular (N. da E.)

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6 - COMITÊFORA UM erro sério, pensava muitas

vezes o Dr. Bose, localizar na Lua a direçãocentral dos Planetas Unidos. Inevitavel-mente, a Terra tendia a dominar as ativid-ades, como dominava a paisagem além dacúpula da sede. Se era mesmo preciso con-struir ali, talvez devessem ter escolhido oOutro Lado, onde aquele disco hipnóticonunca esparzia os seus raios...

Mas, naturalmente, era muito tarde paramudar, e em todo caso não havia realmenteuma alternativa. Fosse ou não fosse doagrado das colônias, a Terra seria duranteséculos a metrópole cultural e econômica dosistema solar.

O Dr. Bose tinha nascido na Terra e nãoemigrara para Marte senão depois dos trintaanos. Sentia-se, por isso, capaz de encarar a

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situação política com bastante imparcialid-ade. Sabia, agora, que nunca mais regressar-ia ao seu planeta nativo, embora este ficassea menos de cinco horas de viagem pela"ponte espacial". Aos 115 anos, desfrutavauma saúde perfeita, mas não podia suportaro recondicionamento necessário paraacostumar-se a uma gravidade três vezes su-perior àquela que havia gozado durante amaior parte de sua vida. Estava para sempreexilado do mundo de seu nascimento; comonão era um sentimental, isso nunca o dep-rimira além da conta.

O que o deprimia por vezes era a ne-cessidade de enfrentar, dia após dia, os mes-mos rostos, seus velhos conhecidos. Asmaravilhas da ciência eram formidáveis, nãohá dúvida, e Bose não tinha nenhum desejode atrasar os ponteiros do relógio – mas emredor dessa mesa de conferências havia ho-mens com quem vinha trabalhando há maisde meio século. Sabia exatamente o que

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diriam e como votariam em qualquerquestão dada. Quem lhe dera que um dia al-gum deles fizesse alguma coisa totalmenteinesperada – ainda que fosse a maior dasloucuras!

E, provavelmente, eles sentiam o mesmoa respeito de Bose...

O Comitê de Rama era ainda razoavel-mente pequeno, embora, por certo, isso nãotardasse a ser modificado. Seus seis colegas– os representantes de Mercúrio, Terra,Losna, Ganímedes, Titã e Tritão nos PlanetasUnidos, estavam todos presentes em carne eosso. Não tinham outro remédio, pois a dip-lomacia eletrônica não era possível a distân-cias planetárias. Alguns estadistas idosos,acostumados às comunicações instantâneasque a Terra por muito tempo aceitara comocoisa natural, nunca se conformaram com ofato de as ondas de rádio levarem minutosou mesmo horas percorrendo as tremendasdistâncias que separavam os planetas. "Os

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senhores cientistas nada podem fazer pararemediar isso?", Tinham-se queixado algunsamargamente quando lhes diziam que a con-versação face a face era impossível entre aTerra e qualquer de seus filhos mais remo-tos. Somente a Lua apresentava esse atraso,ainda a rigor aceitável, de um segundo emeio, com todas as consequências políticas epsicológicas que implicava. Devido a essarealidade da vida astronômica, a Lua, esomente a Lua, seria sempre um subúrbio daTerra.

Também estavam presentes em pessoatrês dos especialistas que haviam sido co-optados pelo Comitê. O astrônomo, Prof.Davidson, era um velho conhecido; nessedia, não tinha um ar tão irascível como decostume. O Dr. Bose ignorava por completoas lutas intestinas que haviam precedido olançamento da primeira sonda destinada aRama, porém os colegas do professor não odeixaram esquecer esse fato.

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A Dra. Thelma Price era uma figura fa-miliar graças aos seus numerosos apareci-mentos na televisão, embora o começo desua celebridade datasse de cinquenta anosatrás, durante a explosão arqueológica que seseguira à drenagem desse vasto museu mar-inho, o Mediterrâneo.

O Dr. Bose lembrava-se ainda da excit-ação daquela época, quando os tesouros per-didos dos gregos, romanos e uma dúzia deoutras civilizações foram devolvidos à luz dodia. Foi essa uma das raras ocasiões em queele lamentou viver em Marte.

O exobiologista, Carlisle Perera, eraoutra escolha que se impunha; e o mesmo sepode dizer de Dennis Solomons, o histori-ador da Ciência. O Dr. Bose sentia-se umpouquinho menos feliz com a presença deConrad Taylor, o renomado antropólogo quegranjeara fama graças a uma combinaçãosem precedentes de erudição e erotismo em

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seu estudo dos ritos da puberdade na BeverlyHills dos fins do século XX.

Ninguém, contudo, poderia ter contest-ado o direito de Sir Lewis Sands a fazer partedo Comitê. Homem cujos conhecimentos sóeram igualados por sua urbanidade, SirLewis tinha fama de só perder a composturaquando o chamavam o Arnold Toynbee dasua época.

O grande historiador não estavapresente em pessoa; negava-se obstinada-mente a deixar a Terra, mesmo para ir a umaconferência momentosa como esta. Suaestéreo-imagem, indistinguível da realidade,parecia ocupar a cadeira à direita do Dr.Bose; como para completar a ilusão, alguémcolocara um copo com água diante dele. ODr. Bose considerava essa espécie de tour deforce tecnológico um truque desnecessário,mas era surpreendente ver quantos homensverdadeiramente grandes sentiam um deleiteinfantil em estar ao mesmo tempo em dois

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lugares. Às vezes, esse milagre eletrônicocausava desastres cômicos: Sir Lewis estiveranuma recepção diplomática em que um dospresentes quisera atravessar um estereo-grama... e descobrira, tarde demais, que setratava da pessoa real. O mais engraçado,porém, era ver projeções tentando estreitar-se às mãos... Sua Excelência o Embaixadorde Marte junto aos Planetas Unidos pôs emordem os seus pensamentos, que tendiam adivagar, e disse:

– Cavalheiros, a sessão está aberta.Creio não me enganar quando digo que estaé uma assembléia de talentos ímpares, re-unidos para tratar de uma situação sem pre-cedentes. A recomendação que nos fez oSecretário Geral foi avaliar a situação e acon-selhar o Comandante Norton quando talfosse necessário.

Isto era um excesso de simplificação, eninguém o ignorava. A menos que houvesseuma verdadeira emergência, o Comitê talvez

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nunca entrasse em contato direto com o Co-mandante Norton – se é que este tinha con-hecimento da sua existência. Com efeito, oComitê era uma criação temporária da Or-ganização de Ciências dos Planetas Unidos,comunicando-se através de seu diretor com oSecretário Geral. É verdade que a Obser-vação Espacial fazia parte dos P.U., mas sobo aspecto das Operações, e não da Ciência.Em teoria, isso não devia fazer grande difer-ença; não havia motivo para que o ComitêRama – como qualquer outro comitê, aliás –não pudesse dirigir-se ao Comandante Nor-ton para lhe dar instruções úteis.

Mas as comunicações telespaciais sãodispendiosas. Só se podia entrar em contatocom a Endeavour através da PLANETCOM,que era uma entidade autônoma, famosapelo rigor e pela eficiência da sua contabilid-ade. Estabelecer crédito com a PLANETCOMera assunto para muito tempo. Havia al-guém, por lá, trabalhando para simplificar as

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coisas; mas, por enquanto, os inexoráveiscomputadores da PLANETCOM não recon-heciam a existência do Comitê Rama.

– Esse Comandante Norton... – disse SirRobert Mackay, o Embaixador da Terra. –Esse homem tem uma tremenda responsab-ilidade sobre os ombros. Que espécie depessoa é ele?

– Eu posso responder esta pergunta –respondeu o Professor Davidson, cujos dedosvoavam sobre o teclado do seu bloco-memória. Olhou a tela de informação com atesta franzida e começou logo a fazer umasíntese.

William Tsien Norton, nascido em 2077,Brisbane, Oceana. Educado em Sydney,Bombay, Houston. Seguem-se cinco anos emAstrograd, especializandose em propulsão.Graduado em 2102. Teve a sequência usualde promoções...

Tenente na terceira expedição aPerséfone, distinguiu-se durante a décima

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quinta tentativa de estabelecer uma base emVênus... hum... hum... Folha de serviços ex-emplar... cidadania dual, Terra e Marte... es-posa e um filho em Brisbane, esposa e doisem Port Lowell, com opção sobre umaterceira...

– Esposa? – perguntou Taylorinocentemente.

– Não; filha, está claro – retrucou o pro-fessor antes de notar o sorriso gozador dooutro. Uma onda de risos benévolos correuem volta da mesa, conquanto aquela massade terráqueos apinhados parecesse sentirmais inveja do que divertimento. Após umséculo de esforços resolutos, a Terra aindanão conseguira manter a sua populaçãoabaixo do nível ,de um bilhão...

–... Nomeado oficial comandante danave de pesquisas da Observação Solar, En-deavour. Primeira viagem aos satélites retró-grados de Júpiter... hum, essa não foi mole...estava em missão de pesquisa de asteróides

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quando recebeu ordem de preparar-se paraesta operação... conseguiu chegar antes dotempo prescrito...

O professor apagou a tela e alçou os ol-hos para os seus colegas.

– Penso que tivemos muitíssima sorte,considerando-se que ele era o único homemdisponível em prazo tão curto. Podíamos terarranjado um comandante como a maioriados que andam por aí.

Dava a impressão de estar se referindoao típico flagelo das rotas espaciais, de pernade pau, pistola numa das mãos e espada deabordagem na outra. – A folha de serviços sóprova que ele é competente – objetou o Em-baixador de Mercúrio (população: 112.500,mas em crescimento). – Qual será a suareação numa situação completamente novacomo esta?

Na Terra, Sir Lewis Sands pigarreou.Um segundo e meio depois, fez o mesmo naLua.

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– Não é exatamente uma situação nova– lembrou ao mercuriano, – embora tenhaocorrido pela última vez há três séculos. – SeRama está morto, ou desabitado (e até agoratodos os indícios sugerem isso), Nortonencontra-se na posição de um arqueólogoque descobre uma cultura extinta. – Curvou-se polidamente para o Dr. Price, que anuiucom a cabeça. – São exemplos óbvios domesmo caso Schliemann em Tróia e Mouhotem Angkor Vat. O perigo é mínimo, se bemque, naturalmente, nunca se possa excluir apossibilidade de um acidente.

– Mas que me diz das arapucas emecanismos de disparo que andam suger-indo por aí com essa estória de Pandora?

– Pandora? – perguntou vivamente oEmbaixador de Mercúrio. – Que é isso?

– É um grupo de malucos – explicou SirRobert com tanto embaraço quanto podiamostrar um diplomata – que estão conven-cidos de que Rama é um grave risco

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potencial. – Uma caixa que não se deve ab-rir, entende?

Duvidava que o mercuriano entendesse:os estudos clássicos não eram incentivadosem Mercúrio.

– Pandora... paranóia – bufou ConradTaylor. – Oh! naturalmente, tais coisas sãoconcebíveis, afinal de contas, mas por queuma raça inteligente havia de perder tempocom brincadeiras de crianças?

– Bom, mesmo excluindo essas peças demau gosto – prosseguiu Sir Robert, – aindatemos a possibilidade muito mais ominosade um Rama ativo e habitado. Nesse caso, setrataria de um encontro entre duas culturasem níveis tecnológicos muito diferentes.Pizarro e os Incas, Peary e os japoneses, aEuropa e a África. Quase invariavelmente, asconsequências têm sido desastrosas – parauma ou ambas as partes. Não estou re-comendando nada; estou apenas apontandoprecedentes.

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– Obrigado, Sir Robert – retrucou o Dr.Bose. – Um pouquinho maçante, pensou ele,ter dois "Sirs" num comitê tão pequeno; nosnossos tempos, o título de cavaleiro era umahonra a que poucos ingleses escapavam. –Estou certo de que todos nós já refletimossobre essas alarmantes possibilidades. Mas,se as criaturas que se encontram no interiorde Rama são... hã... malévolas, que im-portância poderá ter o que nós fizermos?

– Talvez não fizessem caso de nós se nosretirássemos. -.

– Como! Depois de haverem viajado bil-hões de quilômetros e milhares de anos?

A discussão havia alcançado o ponto dedecolagem e agora sustentava-se por si só. ODr. Bose recostou-se na sua cadeira, disseduas ou três palavras e esperou que emer-gisse o consenso.

Aconteceu justamente o que ele previra.Todos convieram em que, depois de teraberto a primeira porta, era inconcebível que

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o Comandante Norton não abrisse asegunda.

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7 - DUAS ESPOSASSE SUAS esposas um dia comparassem os

seus videogramas, pensou o ComandanteNorton, mais divertido do que preocupado, –isso lhe daria bastante trabalho extra. Porenquanto, podia fazer um longo vídeo eduplicá-lo acrescentando apenas brevesmensagens pessoais e expressões carinhosasantes de enviar as duas cópias quase idêntic-as para Marte e a Terra.

Naturalmente, era muitíssimo poucoprovável que suas esposas viessem jamais afazer tal coisa. Mesmo às taxas especiais con-cedidas às famílias de espaçonautas, seriamuito dispendioso. E para que, em suma?Suas famílias mantinham excelentes relaçõesuma com a outra e permutavam os votosusuais em todos os aniversários. Contudo,talvez fosse uma boa coisa que as duas

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mulheres nunca se tivessem encontrado eprovavelmente nunca viessem a encontrar-se. Myrna tinha nascido em Marte e não po-dia suportar a alta gravidade da Terra. ECaroline detestava até os vinte e cincominutos da mais longa das viagens terrestrespossíveis.

"Sinto muito haver-me atrasado de umdia nesta transmissão", disse o Comandantedepois que terminou os preliminares gerais,"mas estive ausente da nave durante estas úl-timas trinta horas, acredite ou não...

"Não se alarme. Tudo está em ordem,tudo corre às mil maravilhas. Foram dois di-as de trabalho, mas pouco falta para vencer-mos este complexo de eclusas aéreas.Podíamos ter feito isso num par de horas, sesoubéssemos o que sabemos agora. Masfomos cautelosos: enviamos câmaras de con-trole remoto à nossa frente e demos voltadoze vezes a todas as eclusas, para ter certeza

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de que não grimpariam depois que houvésse-mos passado...

"Cada uma dessas eclusas é um simplescilindro giratório com uma fenda num doslados. Entra-se por essa abertura, aciona-seuma alavanca que faz o cilindro girar cento eoitenta graus, e a fenda coincide então comoutra porta, pela qual se pode sair – ou cam-inhando ou flutuando, como foi o nosso caso.

"Os ramaianos souberam tomar suasprecauções. Há três desses cilindros-eclusas,um depois do outro, logo por dentro do cascoexterior e abaixo da casamata de entrada.Não posso imaginar nenhum deles falhando,a não ser com explosivos, mas ainda assimrestaria um segundo como recurso, e por fimum terceiro...

"E isso é apenas o começo. A eclusa finalabre para um corredor reto, com cerca demeio quilômetro de comprimento. Parecelimpo e bem-cuidado, como todas as outrascoisas que temos visto aqui; com intervalos

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de poucos metros, há pequenas aberturascirculares que provavelmente continhamluzes, mas agora está tudo completamentepreto e, não me envergonho de dizê-lo, as-sustador. Há também duas fendas paralelas,com cerca de um centímetro de largura,abertas nas paredes e correndo ao longo detodo o túnel. Desconfiamos que elas '

abriguem algum mecanismo para movi-mentar equipamento – ou pessoas – num enoutro sentido. Se conseguíssemos fazê-lofuncionar, isso nos pouparia muitotrabalho...

"Mencionei que o túnel tinha meioquilômetro de comprimento. Ora, pelassondagens sísmicas que tínhamos feito,sabíamos que essa é mais ou menos a es-pessura do casco, de modo que, evidente-mente, já o tínhamos quase atravessado. Enão nos surpreendemos ao encontrar, naoutra extremidade do túnel, mais uma dessaseclusas de ar cilíndricas.

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Sim, e outra ainda. E mais outra. Estagente parece ter feito tudo em grupos de três.Estamos agora dentro da última eclusa,aguardando o O.K. da Terra para passaralém. Uns poucos metros apenas nos sep-aram do interior de Rama. Vou me sentirmuito mais feliz quando houver terminado osuspense.

"Você conhece Jerry Kirchoff, meu ofi-cial executivo, que tem uma vasta bibliotecade livros reais, a ponto de não poder se darao luxo de emigrar da Terra? Pois Jerry mefalou de uma situação bem semelhante a es-ta, ocorrida no começo do século XXI... não,XX. Um arqueólogo descobriu o túmulo deum rei do Egito, o primeiro que não haviasido saqueado pelos ladrões. Os seus trabal-hadores levaram meses abrindo um caminhocom as picaretas e pás, uma câmara depoisda outra, e quando chegaram à parede finalfizeram uma perfuração na alvenaria. O ar-queólogo meteu a cabeça no buraco

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estendendo uma lanterna, e que imagina vo-cê que ele viu? Uma sala atulhada detesouros...

coisas incríveis, ouro e pedraspreciosas...

Talvez este lugar talvez seja um túmulo;é o que parece cada vez mais provável.Mesmo agora, não se ouve o mais leve somou qualquer sinal de atividade. Bem, amanhãdecerto já saberemos.

O Comandante Norton apertou o botãodo registrador que dizia SUSPENDER. Quemais devia dizer sobre o trabalho antes decomeçar as mensagens separadas para asduas famílias? Normalmente, nunca entravaem tantos pormenores, mas dificilmente sepoderia qualificar de normais as atuais cir-cunstâncias. Talvez este fosse o último vídeoque enviaria aos seus entes queridos; tinha odever de explicar-lhes o que estava fazendo.

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Quando vissem essas imagens e ouvis-sem essas palavras, ele já estaria no interiorde Rama – para bem ou para mal.

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8 - ATRAVÉS DOCUBO

NORTON nunca sentira tão fortemente asua afinidade com aquele egiptólogo há tantotempo falecido. Desde que Howard Carterespreitara pela vez primeira o interior dotúmulo de Tutankhamen, homem nenhumpodia ter experimentado um momento comoeste; e no entanto a comparação era dis-paratada, quase risível.

Tutankhamen fora sepultado ainda on-tem – menos de quatro mil anos atrás; Ramapodia ser mais velho do que a humanidade.O pequeno túmulo do Vale dos Reis poderiaestar perdido nos corredores pelos quais elesjá tinham passado, e contudo o espaço que seestendia para além deste selo final era, pelomenos, um milhão de vezes maior. E quanto

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aos tesouros que ele talvez continha – essesultrapassavam os limites da imaginação.

Havia pelo menos cinco minutos queninguém falava pelos circuitos de rádio; abem-treinada equipe nem sequer comuni-cara verbalmente que tudo estava em ordem.Mercer lhe dera simplesmente o sinal deO.K. e lhe indicara o túnel aberto. Era comose todos compreendessem que este momentopertencia à História e não devia ser es-tragado por trivialidades dispensáveis. Issoconvinha ao Comandante Norton, pois nomomento ele também nada tinha que dizer.Piscou a sua lanterna, fez entrar em ação osseus jatos e flutuou lentamente ao longo dobreve corredor, arrastando após si a sualinha de segurança. Numa questão de segun-dos, estava lá dentro.

Dentro de quê? A sua frente, era uma es-curidão total; não se avistava nem sequeruma vaga claridade como reflexo do raio dasua lanterna. Esperava por isso, mas não

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acreditava realmente que acontecesse. Todosos cálculos indicavam que a parede distanteficava a dezenas de quilômetros dali; agora,seus olhos lhe diziam que essa era a verdade.Ao penetrar lentamente naquela escuridão,sentiu uma necessidade súbita do confortoque lhe dava a sua linha de segurança, umanecessidade mais forte do que nunca haviaexperimentado antes, mesmo em suaprimeira AEV. E isso era ridículo; tinha en-carado os anos-luz e os megaparsecs semvertigem, e agora se perturbava com unspoucos quilômetros cúbicos de vazio?

Ainda ruminava esse problema, um pou-co nauseado, quando o amortecedor de ím-peto, na extremidade da linha, freou-osuavemente e o fez parar com um rechaçoquase imperceptível. Desviou o raio de luz dalanterna do nada que se estendia à sua frentee que embalde vinha procurando sondar;queria agora examinar a superfície de ondehavia emergido.

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Era como se pairasse sobre o centro deuma pequena cratera que, por sua vez, form-ava ligeira reentrância na base de outramuito mais vasta. A direita e à esquerdaerguia-se um complexo de terraços e rampas– todos geometricamente precisos e obvia-mente artificiais – que se estendiam até ondea luz da lanterna podia alcançar. A cerca decem metros, pôde ver a saída dos dois outrossistemas de eclusas de ar, idênticos àqueleem que se achava.

E isso era tudo. Nada havia de particu-larmente exótico ou estranho na cena: tinhaaté considerável semelhança com uma minaabandonada. Norton experimentou umavaga sensação de desapontamento; depois detanto esforço, devia ter havido alguma rev-elação dramática, e mesmo transcendental.Lembrouse, então, de que só podia enxergaraté uns duzentos metros de distância. A es-curidão além do seu campo visual podia

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ainda conter mais portentos do que desejavaenfrentar.

Comunicou brevemente o que havia ob-servado aos seus companheiros, que aguar-davam ansiosos, depois acrescentou:

– Estou enviando o foguete de sinaliza-ção... Dois minutos de demora. Aí vai!

Arremessou, com toda força, o pequenocilindro diretamente para cima – ou parafora – e começou a contar os segundos en-quanto ele se ia distanciando e diminuindode tamanho ao longo do raio de luz. Antes dealcançar um quarto de minuto, havia desa-parecido da vista; aos cem segundos, Nortonprotegeu os olhos com a mão e assestou a câ-mara. Sempre fora um bom calculador detempo.

Tinha passado apenas dois segundos daconta quando o mundo explodiu em luz.

E desta vez não houve motivo paradesapontamento.

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Nem os milhões de velas do foguete po-diam iluminar toda aquela enorme cavidade,mas agora ele viu o suficiente para apanhar oplano geral e apreciar a sua escala titânica.Achava-se na extremidade de um cilindrooco com, pelo menos, dez quilômetros dediâmetro e um comprimento indefinido. Deseu ponto de observação no eixo central, viatamanha acumulação de detalhes nasparedes curvas à sua volta, que o seu espíritonão podia absorver mais do que uma di-minuta fração de toda aquela cena; estavacontemplando o panorama de um mundo in-teiro à luz de um único relâmpago, e, por umesforço deliberado da vontade, procuroucongelar a imagem na sua memória.

Em roda dele, as vertentes terraceadasda "cratera" subiam até se fundir com aparede sólida que formava um aro em voltado céu. Não – essa impressão era falsa;necessitava desfazer-se dos instintos tanto

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da Terra como do espaço, e reorientar-se porum novo sistema de coordenadas.

Não estava no ponto mais baixo, e simno mais alto desse estranho mundo às aves-sas. Todas as direções, a partir dali, erampara baixo, não para cima. Se ele se afastassedesse eixo central, movendo-se na direção daparede curva que não podia mais considerarcomo uma parede, a gravidade aumentariacada vez mais. Quando atingisse a superfícieinterior do cilindro, poderia pôr-se em pésobre ela em qualquer ponto, com os pésvoltados para as estrelas e a cabeça para ocentro do tambor rodopiante. O conceitonada tinha de novo. Desde os primeiros tem-pos do voo espacial a força centrífuga vinhasendo usada para fazer as vezes de gravid-ade. Só a escala dessa aplicação é que era tãoinaudita, tão chocante. A maior de todas asestações espaciais, o Syncsat 5, media menosde duzentos metros de diâmetro.

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Seria preciso algum tempo paraacostumar-se a uma estrutura cem vezesmaior.

O tubo de paisagem que o circundavaestava salpicado de áreas de luz e sombraque tanto podiam ser florestas como campos,lagos congelados ou cidades; a distância e ailuminação já bastante mais fraca do fogueteimpossibilitavam a identificação. Linhas es-treitas, que podiam ser estradas, canais ourios de curso retificado, formavam umrendilhado geométrico vagamente visível; ebem mais longe, no próprio limite da visão,havia uma faixa de escuridão mais densa.Formava um círculo completo em redordesse mundo oco; Norton lembrou-se re-pentinamente de Oceano, o mar que, se-gundo a crença do antigos, circundava aTerra.

Havia aqui, talvez, um mar ainda maisestranho – não circular, mas cilíndrico.Antes de se haver congelado na noite

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interestelar, não teria ele marés, correntes...e peixes?

A luz do foguete bruxuleou e morreu; omomento de revelação havia terminado. MasNorton sabia que, enquanto vivesse, essasimagens permaneceriam estampadas na suamente. Fossem quais fossem as descobertasque o futuro lhe reservava, jamais apagariamesta primeira impressão. E a História jamaislhe arrebataria o privilégio de ter sido oprimeiro homem que contemplara as obrasde uma civilização extraplanetária.

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9 -RECONHECIMENTO

"LANÇAMOS, já cinco foguetes de longaduração, tentando o eixo do cilindro, etemos, assim, uma boa cobertura fotográficade todo o seu comprimento. Todos os aspec-tos principais foram marcados no mapa; e,embora sejam poucos aqueles que podemosidentificar, receberam nomes provisórios.

A cavidade interior tem cinquenta quilô-metros de comprimento e dezesseis de lar-gura. As duas extremidades têm forma detaças, com um geometria algo complicada.Chamamos à nossa Hemisfério Norte e es-tamos instalando nossa primeira base aqui.no eixo.

Irradiando do cubo central com inter-valos de 120 graus, partem três escadas "de

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mão" com quase um quilômetro decomprimento. Terminam todas num terraçoou platô de forma anular, que rodeia acúpula da extremidade. E, partindo daí, emlinha com as escadas de mão, três enormesescadarias descem até a planície. Se vocêpuder imaginar um guarda-chuva com apen-as três varetas, igualmente espaçadas, faráuma idéia bastante exata desta extremidadede Rama.

Cada uma dessas varetas é uma es-cadaria, muito íngreme nas vizinhanças doeixo e depois achatando-se pouco a pouco, àmedida que se aproxima da planície inferior.As escadarias – a que demos os nomes deAlfa, Beta e Gama – não são contínuas, masinterrompem-se em cinco outros terraçoscirculares. Calculamos que o número de de-graus deve andar entre vinte e trinta mil... Éde presumir que essas escadarias só fossemusadas em casos de emergência, pois é in-concebível que os ramaianos – ou como quer

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que resolvamos chamá-los – não tivessemum meio mais prático de alcançar o eixo doseu mundo.

O Hemisfério Sul tem um aspecto bemdiferente. Para começar, não possui es-cadarias e nenhum cubo central. Ao invésdisso, há um enorme espigão pontiagudo,com quilômetros de altura, subindo ao longodo eixo e rodeado por seis outros menores.Tudo isso é muito estranho, e não podemosfazer idéia de qual seja o seu significado.

Ao tronco de cilindro com cinquentaquilômetros de comprido, entre as duascúpulas, denominamos Planície Central.Talvez pareça loucura falar em "planície"para designar uma coisa tão obviamentecurva, mas cremos que a palavra se justifica.Ela nos parecerá plana quando descermosaté lá – assim como o interior de uma gar-rafa deve parecer plano a uma formiga quecaminhe sobre ele.

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A característica mais notável da PlanícieCentral é a faixa escura, de dez quilômetrosde largo, que a circunda completamente noseu meio exato. Parece gelo, por isso a bat-izamos com o nome de Mar Cilíndrico. Bemno meio, tem uma grande ilha oval, comcerca de dez quilômetros de longo por três delargo, e coberta de altas estruturas. Por noslembrar a velha Manhattan, chamamo-laNova Iorque. Não creio que seja uma cidade;parece-se mais com uma enorme fábrica ouuma usina de processamento químico.

Mas há algumas cidades – ou, em todocaso, pequenas cidades. Pelo menos seis; sefossem construídas para seres humanos, po-deriam acomodar cerca de cinquenta milpessoas cada uma. Denominamo-las Roma,Pequim, Paris, Moscou, Londres, Tóquio.São ligadas por estradas, e às vezes aquiloparece ser um sistema ferroviário.

Deve haver material suficiente paraséculos de pesquisa nesta carcaça gelada de

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um mundo. Temos quatro mil quilômetrosquadrados que explorar e apenas quatro se-manas para isso. Encontraremos algum dia asolução dos dois mistérios que nos têmobsedado desde que entramos aqui: quemeram eles, e que foi que lhes aconteceu?"

Aqui terminava a gravação. Na Terra ena Lua, os membros do Comitê Ramarecostaram-se nas suas cadeiras, depoispuseram-se a examinar os mapas e fotografi-as espalhados à sua frente. Embora já ostivessem estudado durante muitas horas, avoz do Comandante Norton acrescentavauma dimensão que nenhuma imagem poder-ia comunicar. Ele estivera lá em pessoa, con-templara com os próprios olhos esse ex-traordinário mundo às avessas, durante osbreves momentos em que sua noite muitasvezes milenar fora iluminada pelos foguetes.E ele era o homem que conduziria qualquerexpedição para explorá-lo.

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– Creio, Dr. Perera, que o senhor tem al-guns comentários a fazer. O EmbaixadorBose chegou a perguntar a si mesmo se nãodeveria ter dado a palavra em primeiro lugarao Prof. Davidson, como o cientista de maisidade e o único astrônomo ali. Mas o velhocosmologista ainda parecia encontrar-senum leve estado de choque e via-se que es-tava fora do seu elemento. Durante toda asua carreira profissional, o universo forapara ele a arena das forças titânicas eimpessoais da gravitação, do magnetismo, daradiação; jamais acreditara que a vidadesempenhasse um papel importante na or-dem das coisas, e encarava o aparecimentodela na Terra, Marte e Júpiter como uma ab-erração acidental.

Agora, porém, tinham provas de quenão só existia vida fora do sistema solar, masessa vida havia escalado alturas muito alémde tudo o que o homem alcançara ou podiaesperar nos próximos séculos. Mais ainda: o

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descobrimento de Rama vinha pôr por terraoutro dogma que o Professor Olaf haviapregado durante anos. Quando pressionado,admitia com relutância que a vida provavel-mente existia em outros sistemas estelares –mas sempre sustentara que era absurdoacreditar que ela pudesse jamais atravessaros abismos do espaço interestelar...

Talvez os ramaianos tivessem realmentefracassado, se o Comandante Norton não seenganava ao dizer que o mundo deles eraagora uma sepultura.

Mas pelo menos haviam tentado aproeza, em escala tal que indicava um altograu de confiança no resultado. Se semel-hante coisa acontecera uma vez, devia certa-mente ter acontecido muitas vezes nestaGaláxia de cem bilhões de sóis. E alguém, al-gures, acabaria alcançando o objetivo.

Esta era a tese que, sem provas mas comabundante gesticulação, o Dr.

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Carlisle Perera vinha defendendo háanos. Nesse dia sentia-se muito feliz, aindaque também profundamente frustrado.Rama confirmara espetacularmente as suasidéias, mas nunca poderia pôr o pé lá, ousequer vê-lo com os seus próprios olhos. Se odiabo houvesse aparecido de repente,oferecendo-lhe o dom da teleportação in-stantânea, ele assinaria o contrato sem se-quer olhar as cláusulas.

– Sim, Sr. Embaixador, creio que tenhoalgumas informações interessantes. O queestamos vendo aqui é inquestionavelmenteuma "Arca Espacial". É uma idéia antiga naliteratura astronáutica; pude rastrear a suaorigem até o físico inglês J. D. Bernal, quepropôs este método de colonização inter-estelar num livro publicado em 1929 – sim,faz duzentos anos. E Tsiolkovski, o grandepioneiro russo, havia apresentado propostassemelhantes ainda mais cedo.

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"Quem quer transportar-se de um sis-tema estelar a outro tem várias alternativas.Admitindo-se que a velocidade da luz sejaum limite absoluto – o que ainda não é umfato completamente confirmado, a despeitode tudo que os senhores possam ter ouvidoem contrário", – houve uma fungadela indig-nada, porém nenhum protesto formal porparte do Prof. Davidson – "pode-se fazeruma viagem rápida num veículo pequeno ouuma lenta travessia numa nave gigante.

"Não parece haver razão nenhuma paraque as naves espaciais não possam alcançarnoventa por cento, ou mais, da velocidade daluz. Isso significaria de cinco a dez anos deviagem entre estrelas vizinhas – o que seriaenfadonho, talvez, mas não impraticável, es-pecialmente para criaturas cuja duração devida pudesse ser medida em séculos. Pode-seimaginar viagens dessa duração, realizadasem naves não muito maiores do que asnossas.

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"Mas talvez tais velocidades sejam im-possíveis, com cargas úteis razoáveis;lembrem-se de que é preciso levar o com-bustível necessário para frear a velocidadeno fim da viagem – mesmo que não haja re-gresso. De modo que talvez faça mais sentidoir com mais calma – em dez ou cem milanos...

"Bernal e outros pensavam que isso sepodia fazer com pequenos mundos mi-gratórios de poucos quilômetros de diâ-metro, transportando milhares de passageir-os em viagens que durariam gerações. Natur-almente, o sistema teria de ser rigidamentefechado, reciclando toda a alimentação, o are outros fungíveis.

Mas está claro que é justamente assimque a Terra funciona – em escala um poucomaior. Alguns autores sugeriam que essasArcas Espaciais tivessem a forma de esferasconcêntricas; outros propunham cilindrosocos e giratórios, de modo que a força

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centrífuga pudesse fornecer uma gravidadeartificial – exatamente o que encontramosem Rama...",

O Prof. Davidson não podia suportartais desleixos de expressão.

– Não existe força centrífuga nenhuma.Isso é um fantasma criado pelos engenheir-os. O que há é apenas inércia.

– O senhor tem toda a razão, evidente-mente – admitiu Perera, – embora talvezseja difícil convencer um homem que acabade ser arremessado para fora de um carros-sel. Mas o rigor matemático parecedesnecessário...

– Apoiado! – interpôs o Dr. Bose, comalguma exasperação. – Todos nós compreen-demos o que o senhor quer dizer, oupensamos compreender. Por favor, nãodestrua as nossas ilusões.

– Bem, eu estava simplesmente apont-ando que não há nada de conceptualmente

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novo em Rama, ainda que o seu tamanhoseja surpreendente.

Há duzentos anos que os homens vêmimaginando coisas semelhantes.

"Eu desejaria considerar agora umaoutra questão. Há quanto tempo, exata-mente, que Rama viaja através do espaço?Temos agora uma determinação muito pre-cisa da sua órbita e da sua velocidade.Supondo-se que não tenha, sofridomudanças de navegação, podemos retraçarsua rota anterior até milhões de anos atrás.Esperávamos que proviesse de alguma es-trela vizinha... mas não foi isso, em absoluto,o que aconteceu.

"Há mais de duzentos mil anos queRama passou nas proximidades de qualquercoisa, e acontece que essa estrela era umavariável irregular – talvez o tipo de astromais inadequado que se possa imaginarcomo centro de um sistema solar habitado.Tem uma faixa de brilho que vai de

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cinquenta a um; qualquer planeta seria al-ternativamente torrado e congelado com in-tervalos de alguns anos.

– Uma sugestão – acudiu a Dra. Price. –Talvez isto explique tudo. E se essa estrelativesse sido um sol normal e de repente setornasse instável? Seria por isso que os ra-maianos andariam à procura de um sol novo.

O Dr. Perera, que admirava a velhaarqueóloga, contestou-a com delicadeza. Masque diria ela, perguntou lá consigo, se eucomeçasse a apontar o que é óbvio àprimeira vista na sua própria especialid-ade?... – Não deixamos de considerar essahipótese – respondeu suavemente. – Mas, senossas atuais teorias sobre a evolução estelarestão corretas, esta estrela nunca poderia tersido estável – em outras palavras, nunca po-deria ter tido planetas habitados por seresvivos. De modo que Rama deve andarfazendo esse cruzeiro no espaço há pelo

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menos duzentos mil anos, e talvez mais deum milhão.

"Agora está frio, escuro e aparentementemorto, e creio saber por que. É

bem possível que os ramaianos nãotivessem outra alternativa – talvez est-ivessem realmente fugindo de algum de-sastre – mas erraram nos seus cálculos.

“Nenhuma ecologia fechada pode sercem por cento eficiente: sempre há desperdí-cio, perdas... uma certa degradação do ambi-ente e a formação de poluentes. Podem serprecisos bilhões de anos para envenenar edesgastar um planeta– mas isso acabará poracontecer. Os oceanos secarão, a atmosferase dispersará no espaço...

"Medido pelos nossos padrões, Rama éenorme... e contudo, ainda é um planetaminúsculo. Os meus cálculos, baseados novazamento através do casco, além de algu-mas conjeturas razoáveis sobre a taxa de ren-ovação biológica, indicam que a sua ecologia

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só poderia sobreviver durante cerca de milanos. No máximo, concedo dez mil...

"A velocidade com que Rama viaja, essetempo seria suficiente para um trânsito entreos sóis bastante apinhados do centro daGaláxia. Porém não aqui, na população dis-persa dos braços da espiral. Rama é umanave que exauriu as suas provisões antes dealcançar a meta. É um pária, vagando à toaentre as estrelas.

"Há apenas uma objeção séria a estateoria, e vou levantá-la antes que um outro ofaça. A órbita de Rama visa com tanta pre-cisão ao sistema solar que a hipótese de umacoincidência parece estar excluída. Eu diria,mesmo, que no momento ele se está aproxi-mando excessivamente do Sol; a.Endeavourterá de cortar as amarras muito antes do per-iélio, para evitar o superaquecimento.

"Não pretendo compreender isto. Talvezhaja alguma forma de orientação terminalautomática ainda em operação, guiando

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Rama para as mais próximas idades estelaresadequadas, depois que os seus construtoresmorreram.

"E não há dúvida que morreram. Apostonisso a minha reputação. Todas as amostrasque colhemos no interior são absolutamenteestéreis: não descobrimos nem um só mi-crorganismo. Quanto às conversas que pos-sam ter ouvido sobre suspensão temporáriadas funções vitais, não precisam dar-lhesatenção. Há razões fundamentais para que astécnicas de hibernação só produzam efeitodurante uns poucos séculos... e nós estamoslidando com períodos mil vezes mais longos.

"De modo que os pandoristas e os seussimpatizantes não têm por que preocupar-se.Muito lamento isso. Seria maravilhoso fazerconhecimento com uma outra espécieinteligente.

"Mas pelo menos temos à resposta auma velha questão. Não estamos sós.

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As estrelas nunca mais serão as mesmaspara nós."

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10 - DESCIDA NAESCURIDÃO

O COMANDANTE NORTON sentia-se forte-mente tentado - mas, como comandante, suaprimeira obrigação era para com o navio. Sehouvesse algum contratempo sério nessaprimeira exploração, ele teria de estar semdemora no teatro dos acontecimentos.Ficava-lhe, pois, como escolha óbvia, o seuoficial imediato, Capitão-de-corveta KarlMercer. Norton admitia de bom grado queMercer era mais o indicado para a missão.

Mercer, a autoridade máxima em assun-tos de sustentação de vida, escrevera algunsdos livros-padrões de texto sobre a matéria.

Tinha examinado pessoalmente inúmer-os tipos de equipamento, muitas vezes em

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condições arriscadas, e seu controle de bio-realimentação era famoso.

Numa questão de segundos, podia re-duzir o ritmo de suas pulsações a cinquentapor cento e sua respiração a quase zero peloespaço de dez minutos. Essas pequenas ha-bilidades úteis lhe haviam salvo a vida emmais de uma ocasião.

E, contudo, apesar de sua grande capa-cidade e inteligência, era um homem quaseinteiramente desprovido de imaginação.Para ele, os mais perigosos experimentos oumissões não passavam de tarefas que deviamser executadas.

Nunca se arriscava desnecessariamente,e no seu esquema das coisas não havia lugarpara isso que vulgarmente se chamacoragem.

Os dois lembretes sobre a sua escrivan-inha sintetizavam a sua filosofia de vida. Umdizia: Que foi que você esqueceu?, e o outro:Contribuía para acabar com a valentia. O

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fato de ser geralmente considerado como ohomem mais valente da Frota era a únicacoisa que conseguia fazê-lo enraivecer.

Dado Mercer, isso automaticamente in-dicava o homem seguinte – seu inseparávelcompanheiro, o Capitão-tenente Joe Calvert.Era difícil perceber o que os dois tinham emcomum; o franzino e um tanto nervoso ofi-cial de navegação tinha dez anos menos doque o seu fleumático, imperturbável amigo,que certamente não compartilhava o seu in-teresse pela arte do cinema primitivo.

Mas ninguém pode prever onde cairá oraio, e anos atrás Mercer e Calvert haviamestabelecido uma ligação aparentemente es-tável. Isso era bastante comum; muito maisraro era o fato de compartilharem tambémna Terra uma esposa, a qual dera um filho acada um deles. O Comandante Norton esper-ava fazer conhecimento com ela; devia seruma mulher muito amável. O triângulo já

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durava pelo menos cinco anos e ainda pare-cia ser equilátero.

Dois homens não bastavam para formaruma equipe de exploração; descobrira-se hámuitos anos que três era o número ótimo –porque, se um homem se perdia, dois po-diam ainda escapar, ao passo que um sósobrevivente estaria condenado a perecer.Depois de muito refletir, Norton escolhera oSargento Técnico Willard Myron. Gêniomecânico que podia fazer qualquer coisa fun-cionar – ou projetar outra melhor se aprimeira falhasse de todo – Myron era ohomem ideal para identificar peças exóticasde equipamento. Durante uma longa licença-prêmio de seu trabalho regular como pro-fessor adjunto na Astrotech, o Sargentorecusara-se a aceitar uma comissão porquenão queria ser obstáculo à promoção de ofi-ciais de carreira mais merecedores do queele. Ninguém levou muito a sério essa ex-plicação, e a opinião geral foi que Myron

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merecia um zero em ambição. Podia talvezchegar a Sargento do Espaço, mas nunca ser-ia professor titular.

Myron, como inumeráveis graduadosantes dele, descobrira o meio ideal entre opoder e a responsabilidade.

Enquanto deixavam a última eclusa dear e flutuavam ao longo do eixo imponder-ável de Rama, o Tenente Calvert sentiu-se,como lhe acontecia com frequência, no meiode um flashback cinematográfico.Perguntava-se, às vezes, se devia tentarcurar-se desse hábito; mas, afinal, que incon-veniente tinha aquilo?

Podia tornar interessante a mais en-fadonha das situações e – quem sabe? – umdia talvez lhe salvasse a vida. Lembrar-se-iado que Fairbanks, Connery ou Hiroshi tin-ham feito em circunstâncias semelhantes...

Desta vez, preparava-se para saltar datrincheira, numa das guerras do começo doséculo XX; Mercer era o sargento,

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conduzindo uma patrulha de três homensem uma incursão noturna na terra-de-nin-guém. Não era muito difícil imaginar que seencontravam no fundo de uma imensa crat-era de granada, mas uma cratera que, de al-gum modo, fora corretamente disposta numasérie de terraços ascendentes. A cratera es-tava inundada de luz proveniente de três ar-cos de plasma largamente espaçados, osquais davam uma iluminação quase semsombras a todo o interior de Rama. Paraalém da orla do mais distante terraço,porém, reinavam as trevas e o mistério.

Com os olhos da imaginação, Calvertsabia perfeitamente o que havia lá.

Primeiro, a planície circular com maisde um quilômetro de diâmetro.

Seccionando-a em três partes iguais emuito parecidas com três largas linhas fer-roviárias, havia três escadas de mão com de-graus reentrantes na superfície interior, demodo que não oferecessem nenhum

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obstáculo a qualquer coisa que deslizassesobre esta. Como esse arranjo era perfeita-mente simétrico, não havia razão para escol-her uma escada de preferência a outra; amais próxima da eclusa Alfa fora escolhidapor pura questão de conveniência.

Se bem que os degraus das escadas est-ivessem muito afastados uns dos outros, issonão constituía nenhum problema. Mesmo naorla do cubo, a meio quilômetro do eixo, agravidade era ainda um escasso trigésimo dagravidade terrestre. Embora eles carre-gassem quase cem quilos de equipamento,inclusive aparelhos de sustentação de vida,ainda poderiam mover-se facilmente, de mãoem mão.

O Comandante Norton e a equipe de re-forço os acompanhavam ao longo dascordas-guia que tinham sido estendidas daeclusa Alfa à beira da cratera; mais adiante,além da série de projetores elétricos, era aescuridão de Rama.

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Tudo que se podia ver às luzesdançantes dos capacetes eram os primeiroscem metros da escada, desaparecendo aolonge numa planície sem outros acidentes deterreno. E agora, disse Karl Mercer a simesmo, tenho que tomar a minha primeiradecisão: vou subir ou descer essa escada?

Não era uma questão trivial. Achavam-se ainda, essencialmente, em zero de gravid-ade, e o cérebro podia escolher o ponto dereferência que lhe aprouvesse.

Por um simples esforço de vontade,Mercer podia convencer-se de que estava ol-hando ao longo de uma planície horizontal,de uma parede vertical, ou sobre a borda deum penhasco a prumo. Não raros astro-nautas haviam experimentado graves prob-lemas psicológicos equivocando-se naescolha das coordenadas mando atacavamuma tarefa complicada.

Mercer estava decidido a ir de cabeçapara baixo, pois qualquer outro modo de

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locomoção teria sido difícil; acresce que,desse modo, poderia ver com facilidade oque estivesse à sua frente. Durante asprimeiras centenas de metros, portanto, ima-ginaria que estava subindo; só quando a at-ração crescente da gravidade tornasse im-possível manter a ilusão, daria às suasdireções mentais uma virada de cento e oit-enta graus.

Agarrou o primeiro degrau e impeliusuavemente o seu corpo ao longo da escada.O movimento era tão pouco custoso comonadar sobre o fundo do mar – menos ainda,pois não havia a resistência da água. Tão fá-cil que se era tentado a ir demasiado de-pressa, porém Mercer tinha experiência de .sobra para não cair na tolice de apressar-senuma situação tão nova quanto aquela.

Nos seus fones de ouvido, podia perce-ber a respiração regular dos dois compan-heiros. Não necessitava outra prova de queeles estavam em boa forma, e não perdeu

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tempo em conversas. Embora fosse tentado aolhar para trás, resolveu não se arriscar aisso enquanto não tivessem alcançado aplataforma na extremidade da escada.

Espaços uniformes de meio metro sep-aravam uns dos outros os degraus, e durantea primeira parte da ascenção Mercer saltou-os de dois em dois. Mas iaos contando cuida-dosamente, e lá pelos duzentos começou aexperimentar as primeiras sensações nítidasde peso. Os efeitos da rotação de Rama iam-se fazendo sentir.

Nos quatrocentos degraus, ele estimouem cerca de cinco quilos o seu peso aparente.Embora isso não fosse nenhum problema,tornava-se agora difícil pretender que estavasubindo, quando em realidade estava sendofirmemente arrastado para cima.

O degrau número quinhentos pareceu-lhe um bom lugar para descansar.

Sentia os músculos de seus braços re-sponderem ao exercício desacostumado,

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embora fosse Rama quem fazia agora todo otrabalho e ele precisasse apenas guiar-se.

– Tudo O.K., Capitão – comunicou. –Estamos na metade do caminho. Joe, Will...algum problema?

– Estou muito bem; por que você parou?– respondeu Joe Calvert.

– Idem, idem – acrescentou o SargentoMyron. – Mas cuidado com a força de Coriol-is. Está começando a crescer.

Mercer já havia reparado nisso. Ao sal-tar os degraus, tendera sensivelmente a de-rivar para a direita. Sabia perfeitamente queisso era^apenas um efeito da rotação deRama, mas era como se uma força misteriosao empurrasse suavemente para longe daescada.

Talvez estivesse na hora de começar aandar com os pés para a frente, agora que aexpressão "para baixo" ia assumindo umsentido físico. Ele correria o risco de umadesorientação momentânea.

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– Cuidado... Vou dar meia volta.Segurando-se firmemente ao degrau,

usou os braços para dar ao corpo um giro decento e oitenta graus e sentiu-se mo-mentaneamente ofuscado pelas luzes de seuscompanheiros. Muito acima deles (e agora,era realmente acima), podia divisar umaclaridade mais débil ao longo da beira da es-carpa vertical.

Formando silhueta contra essa clarid-ade, as figuras do Comandante Norton e daequipe de reforço o observavam atenta-mente. Pareciam muito pequenas e dis-tantes. Mercer abanou a mão para ele, numgesto tranquilizador.

Soltou-se e deixou que a pseudogravid-ade de Rama, ainda fraca, tomasse conta. Aqueda de um degrau para o seguinte demor-ou mais de dois segundos; na Terra, duranteesse mesmo tempo, um homem teria caídotrinta metros. A velocidade da queda era tãopenosamente lenta que ele começou a

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apressá-la um pouco, empurrando com am-bas as mãos, deslizando sobre uma dúzia dedegraus de cada vez e usando os pés comotravas sempre que lhe parecia estar caindodemasiado depressa.

No degrau número setecentos tornou aparar e voltou para baixo a luz da sua lâm-pada de capacete; conforme havia calculado,o começo da escadaria ficava apenas cin-quenta metros abaixo.

Alguns minutos depois achavam-se elesno primeiro degrau. Era uma estranha ex-periência, depois de meses no espaço,manter-se em pé sobre uma superfície sólidae sentir a pressão que esta exercia sobre asplantas dos pés.

Ainda pesavam menos de dez quilos,mas isso era suficiente para lhes dar um sen-timento de estabilidade. Quando fechava osolhos, Mercer podia acreditar que estava denovo pisando um mundo real.

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O terraço ou plataforma de onde desciaa escadaria tinha uns dez metros de largura eem ambas as direções se curvava para cimaaté desaparecer na escuridão. Mercer sabiaque esse terraço formava um círculo com-pleto e que, se andasse cinco quilômetros porele, voltaria ao ponto de partida após ter cir-cunavegado Rama.

A gravidade fracional que ali existia,contudo, era impossível caminhar realmente.Só se podia avançar aos pulos, dando passosde gigante – e isso era perigoso.

A escadaria que mergulhava na escur-idão muito abaixo do alcance das luzes daslanternas dava uma impressão enganadorade que era fácil descê-la.

Mas seria imprescindível agarrar-se aoalto corrimão que a flanqueava de ambos oslados; um passo atrevido demais podia envi-ar o viajante incauto pelo espaço em fora.Tornaria a tocar no chão talvez cem metrosmais abaixo; o choque não seria perigoso,

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mas suas consequências podiam sê-lo – poisa rotação de Rama teria deslocado a es-cadaria para a esquerda. E assim, um corpoem queda iria bater contra a suave curva quedescia, num arco ininterrupto, para aplanície quase sete quilômetros lá embaixo.

Seria, pensou Mercer, um infernal pas-seio de tobogã. A velocidade terminal,mesmo naquela gravidade, podia ser de vári-as centenas de quilômetros por hora. Talvezfosse preciso aplicar bastante atrito para re-frear uma descida tão precipite; em tal caso,poderia ser essa a maneira mais convenientede alcançar a superfície interior de Rama.Mas primeiro seria necessário fazer algunsexperimentos muito cautelosos.

– Capitão – comunicou Mercer, – a des-cida pela escada de mão se fez sem prob-lemas. Se o senhor concorda, eu gostaria deprosseguir até a plataforma seguinte. Querocronometrar a nossa velocidade de descidapela escadaria.

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Norton respondeu sem hesitar.– Prossiga.Não foi preciso acrescentar: "Vá com

cautela." Mercer não tardou a fazer umadescoberta fundamental. Era impraticável,pelo menos nesse nível de um vigésimo degravidade, descer a escadaria da maneiranormal. Toda tentativa nesse sentido res-ultava num movimento em ralenti, como nossonhos, que entediava insuportavelmente: aúnica maneira prática era não fazer caso dosdegraus e descer pelo corrimão.

Foi a conclusão a que chegou tambémCalvert.

– Esta escadaria foi feita para subir, enão para descer! – exclamou ele. – Pode-seusar os degraus quando a gente se move con-tra a gravidade, mas nesta direção só servempara atrapalhar. Talvez não seja muito dec-oroso, mas o melhor modo de descer édeixar-se escorregar pelo corrimão.

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– Isso é ridículo! – protestou o SargentoMyron. – Não posso acreditar que os ramai-anos descessem assim.

– Duvido que eles tenham usado algumavez esta escadaria... É óbvio que ela só servepara emergências. Eles deviam ter algum sis-tema de transporte mecânico para vir atéaqui. Um funicular, talvez. Isso explicariaaquelas longas fendas que descem do cubocentral.

– Sempre pensei que fossem regos deescoamento... mas talvez pudessem ser am-bas as coisas. Será que alguma vez choveuaqui?

– Provavelmente – disse Mercer. – Masacho que Joe tem razão: diabos levem o dec-oro! Lá vamos nós.

O corrimão – presumivelmente se des-tinava a alguma coisa que se parecesse commãos – era uma barra de metal, chata e lisa,sustentada por pilares de um metro de al-tura, com largos intervalos de permeio. O

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Comandante Norton cavalgou-o, avalioucuidadosamente a força de freagem que po-dia exercer com as mãos, e deixou-seescorregar.

Muito sisudo, movendo-se na poça deluz que partia do seu capacete, desceu para aescuridão ganhando lentamente velocidade.Tinha percorrido uns cinquenta metrosquando chamou os outros para que fossemter com ele.

Ninguém o teria admitido, mas todos sesentiam numa segunda meninice, escor-regando balaustrada abaixo. Em menos dedois minutos completaram, com segurança econforto, a longa descida de um quilômetro.Sempre que se sentiam deslizar com exces-siva rapidez, um apertão mais forte no cor-rimão lhes dava toda a freagem de quenecessitavam.

– Espero que tenham gostado – gritou-lhes o Comandante Norton quando apearam

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na segunda plataforma. – A subida é que nãovai ser tão fácil.

– Isso é o que eu quero verificar – retru-cou Mercer, que , caminhava experimental-mente para lá e para cá, adaptando-se àgravidade mais forte. – Aqui já temos umdécimo de gravidade. Sente-se nitidamente adiferença.

Caminhou – ou, mais exatamente,deslizou – para a beira da plataforma, e baix-ou a luz do capacete para o lance seguinte daescadaria. Até onde chegava a luz, esse lanceparecia idêntico ao anterior – se bem que umexame cuidadoso das fotos havia mostradoque a altura dos degraus diminuía à pro-porção que aumentava a gravidade. A escadafora aparentemente projetada de maneiraque o esforço necessário para galgar os de-graus fosse mais ou menos constante emcada ponto de seu longo e curvo trajeto.

Mercer ergueu os olhos na direção docubo central de Rama, agora quase dois

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quilômetros acima dele. A leve claridade, asfiguras pequeninas vistas em silhueta contraela, pareciam horrivelmente distantes. Pelaprimeira vez, ele se alegrou de súbito por nãopoder ver toda a extensão dessa enorme es-cadaria. A despeito dos seus nervos de aço efalta de imaginação, não tinha certeza decomo reagiria se pudesse ver a si mesmocomo um inseto subindo pela superfície ver-tical de um pires com mais de dezesseisquilômetros de altura – e com a metade su-perior pendendo em curva acima dele. Atéesse momento, havia experimentado a escur-idão como uma coisa aborrecida; agora,quase dava graças a ela.

– Não há mudança de temperatura –comunicou ao Comandante Norton. – Aindaestamos a um pouco abaixo de zero centí-grado. Mas a pressão do ar aumentou, comoesperávamos: cerca de trezentos milibares.Mesmo com este baixo teor de oxigênio, équase respirável. A uma altitude menor, não

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haverá problema nenhum. Isso simplificaráenormemente a exploração. Que achado – oprimeiro mundo em que se pode andar semaparelho de respiração! Vou até provar umpouco deste ar.

Lá em cima, no cubo, o ComandanteNorton remexeu-se um tanto inquieto. MasMercer devia saber muito bem o que fazia;com certeza já fizera as suas testagens. Mer-cer igualou a pressão, desprendeu o fecho doseu capacete e entreabriu-o – uma frestinhaapenas. Tomou um hausto cauteloso, depoisoutro, mais profundo.

O ar de Rama era morto o bolorento,como se proviesse de um túmulo tão antigoque os últimos traços de decomposição físicahouvessem desaparecido há milênios. Nemmesmo o olfato ultra-sensível de Mercer, tre-inado durante anos na testagem ao máximode sistemas de sustentação de vida, pôde de-tectar qualquer odor reconhecível. Havia umtravo metálico, e ele recordou-se

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subitamente de que os primeiros homensque desceram na Lua tinham falado de umleve cheiro de pólvora queimada quandorepressurizaram o módulo lunar. Mercerimaginou que a cabina do Eagle, contamin-ada pela poeira lunar, devia ter um cheirosemelhante ao de Rama.

Tornou a vedar o capacete e expeliu dospulmões todo aquele ar estranho.

Não lhe dera nenhum sustento; mesmoum montanhês aclimatado aos cimos aoEverest não tardaria a morrer ali. Mas unspoucos quilômetros mais abaixo as con-dições seriam bem diferentes.

Que mais havia que fazer ali? Não lheocorreu nada, salvo gozar a branda, desacos-tumada gravidade. Mas de que serviahabituar-se a ela, já que teriam de voltarimediatamente à imponderabilidade docubo?

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– Vamos voltar, Capitão – avisou. – Nãohá razão para seguir adiante, enquanto nãoestivermos prontos para ir até o fim.

– De acordo. Vamos cronometrar o re-gresso de vocês, mas venham com calma.

Enquanto saltava os degraus, três ouquatro de cada vez, Mercer reconheceu queCalvert tinha toda a razão em dizer queaquelas escadas haviam sido feitas para sersubidas, não descidas. Contanto que não seolhasse para trás nem se reparasse no aclivevertiginoso da curva ascendente, a escaladaera uma experiência deleitável. Depois deuns duzentos degraus, contudo, ele começoua sentir umas cãibras nos músculos das pan-turrilhas e resolveu diminuir a marcha. Osoutros tinham feito o mesmo; quando aven-turou um rápido relance de olhos por cimado ombro, eles haviam ficado bastante paratrás.

A subida foi completamente normal –nada mais que uma sucessão aparentemente

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interminável de degraus. Quando de novo seencontraram na mais alta das plataformas,logo abaixo da escada de mão, mal-e-malofegavam e não tinham levado mais de dezminutos a alcançá-la. Descansaram outrosdez antes de acometer o último quilômetrovertical.

Saltar – agarrar-se a um dos degraus –saltar – agarrar – saltar – agarrar...

Era fácil, mas tão monótono e en-fadonho que havia o perigo de se tornar des-cuidado. Na metade da escada vertical des-cansaram por dez minutos. Já então, tantoos seus braços como as pernas haviamcomeçado a doer. Mais uma vez alegrou-sepelo fato de só poderem ver um trecho tãopequeno da superfície vertical a que se agar-ravam; não era muito difícil fazer de contaque a escada de mão não ia a mais do queuns poucos metros além do círculo de luz dasua lanterna e não demoraria a terminar.

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Saltar – segurar-se a um degrau – sal-tar... De repente, a escada terminou mesmo.Tinham voltado ao mundo imponderável doeixo, entre os seus amigos ansiosos. Toda aviagem durara menos de uma hora e eles sesentiam modestamente orgulhosos do seufeito.

Mas era cedo demais para isso, pois, emque pese a todos os seus esforços, haviampercorrido menos de um oitavo daquelaciclópica escadaria.

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11 - HOMENS,MULHERES EMACACOS

O COMANDANTE NORTON havia decididohá muito que certas mulheres não deveriamse admitidas a bordo; a imponderabilidadetinha, sobre os seus seios, efeitos tremenda-mente perturbadores. O caso já era sérioquando ficavam imóveis; mas quando sepunham em movimento e estabeleciam-sevibrações harmônicas, a dose era excessivapara quem não tivesse autocontrole. Estavaconvicto de que pelo menos um graveacidente espacial fora causado pela estu-pefação dos tripulantes à passagem de umabem-dotada oficial pela cabina de comando.

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Mencionara certa ocasião essa teoria àMédica-chefe Laura Ernst, sem lhe revelarquem lhe havia inspirado tais pensamentos.Não havia necessidade disso, pois ambos seconheciam muito bem. Anos atrás, na Terra,num momento de comum solidão e tristeza,tinham-se amado. Não era provável que al-gum dia viessem a repetir a experiência (masquem podia ter absoluta certeza de talcoisa?), porque ambos haviam mudadomuito. Contudo, sempre que a formosamédica entrava flutuando na cabina docomandante, este sentia o eco fugidio deuma- velha paixão, ela o percebia, e os doisficavam felizes da vida.

– Bill – começou Laura – já chequei osnosso alpinistas, e o meu laudo é o seguinte:Karl e Joe estão em boa forma; todas as in-dicações são normais para o trabalho que es-tiveram fazendo. Mas Will mostra sinais deexaustão e perda corporal... Não vou entrarem detalhes, mas me parece que ele não tem

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feito exercício quanto devia, e não é o único.Tem havido trapaças com o centrifugador, ese isto continuar vão rolar algumas cabeças.Faça o favor de avisar essa gente.

– Sim, Senhora. Mas eles têm suas justi-ficativas. Os homens andam trabalhandoduro.

– Com o cérebro e os dedos, não hádúvida. Porém não com o corpo. Não é umverdadeiro trabalho, que se possa medir emquilogrâmetros. E isso é o que nós teremosde fazer, se quisermos realmente explorarRama.

– Mas podemos fazê-lo?– Sim, se formos bastante cautelosos.

Karl e eu preparamos um perfil bastantemoderado, com base na pressuposição deque poderemos dispensar os aparelhos derespiração abaixo do Nível 2. Evidentemente,é uma sorte incrível e vem mudar todo oquadro logístico. Ainda não me pude acos-tumar à idéia de um mundo com oxigênio...

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De modo que nos basta fornecer ali-mentação, água, roupas térmicas, e estamosfeitos! Descer será fácil; parece que podemosescorregar a maior parte do tempo poraquela bendita balaustrada...

– Estou fazendo Chips trabalhar numtrenó com freagem de pára-quedas.

Se não pudermos utilizá-lo para a tripu-lação, pelo menos servirá para mantimentose equipamento.

– Ótimo. Com isso faríamos a viagemem dez minutos; de outro modo, poderá dur-ar cerca de uma hora.

– A subida é que é mais difícil de calcu-lar; eu concederia umas seis horas, incluindodois períodos de uma hora. Mais tarde, àproporção que formos adquirindo experiên-cia – e tivermos desenvolvido um pouco osmúsculos – talvez possamos reduzir issoconsideravelmente.

– E quanto aos fatores psicológicos? ,

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– São difíceis de avaliar, num ambientetão desconhecido. A escuridão será, talvez, omaior problema.

– Vou instalar projetores no cubo. Alémdas suas próprias lanternas, qualquer grupoque andar lá embaixo será sempre cobertopor um círculo de luz.

– Boa idéia. Isso prestará grandeserviço.

– Há mais uma coisa: devemos dar pri-oridade à segurança e mandar um grupo des-cer a escadaria até a metade do caminho, idae volta, ou ir até o fim já na primeiratentativa?

– Se nos sobrasse tempo, eu seria caute-losa. Mas o tempo é curto, e não vejo perigoem ir até o fim... para observar o terrenoquando lá chegarmos.

– Obrigado, Laura. Isto é tudo que eudesejava saber. Vou encarregar o sub deplanejar os detalhes. E mandarei toda a trip-ulação para o centrifugador...

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Vinte minutos por dia a meia g. Isso asatisfaz?

– Não. Lá embaixo, em Rama, são zerovírgula seis g, e eu preciso ter uma margemde segurança. Ponha três quartos...

– Upa!– Durante dez minutos...– Essa eu topo...– Duas vezes por dia.– Laura, você é uma mulher dura e

cruel. Mas vá lá. Darei a notícia pouco antesdo almoço. Isso vai tirar o apetite a um bomnúmero deles.

Foi a primeira vez que o ComandanteNorton viu Karl Mercer ligeiramente con-strangido. Passara quinze minutos dis-cutindo os problemas de logística com a suacompetência habitual, mas alguma coisa opreocupava visivelmente. Norton, que bemsuspeitava o que fosse, esperou com paciên-cia que ele desabafasse.

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– Capitão – disse Karl por fim – o sen-hor está certo de que deve conduzir essegrupo? Se alguma coisa acontecer, eu soumuito mais sacrificável do que o senhor. Fuimais longe no interior de Rama do quequalquer outro de nós... ainda que seja poruma diferença de apenas cinquenta metros.

– De acordo. Mas chegou a hora de ocomandante conduzir suas tropas, e já con-viemos em que não há maior risco nesta ex-pedição do que na última. Ao primeiro sinalde perigo, tornarei a subir essa escadariacom bastante rapidez para me habilitar àsOlimpíadas Lunares.

Ficou à espera de novas objeções, masnão houve nenhuma, embora Karl aindaparecesse aborrecido. Sentiu pena dele eajuntou com brandura:

– E aposto que Joe chegará cá em cimaantes de mim.

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O homenzarrão pareceu tranquilizar-see um lento sorriso espalhou-se pelo seurosto.

– Ainda assim, Bill, eu preferiria que vo-cê tivesse escolhido um outro.

– Eu queria um homem que já tivesseido lá embaixo, e não podemos ir os dois.Quanto ao Herr Doktor Professor SargentoMyron, Laura diz que está com excesso dedois quilos. Nem mesmo raspar aquele bi-gode adiantou.

– Quem é o seu terceiro homem?– Ainda não decidi. Isso depende de

Laura.– Ela mesma quer ir.– Quem é que não quer? Mas, se o nome

dela me aparece em primeiro lugar na suaprópria lista de aptidão, vou ficar muitodesconfiado.

O Capitão-de-corveta Mercer juntou osseus papéis e saiu rápido da cabina. Norton,que o acompanhou com os olhos, sentiu uma

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ligeira pontada de inveja. Quase toda a tripu-lação – uns oitenta e cinco por cento, pelasua estimativa mínima – tinha arranjado assuas acomodações emocionais. Ele conhecianaves em que o comandante fazia o mesmo,porém esses não eram os seus hábitos. Con-quanto a disciplina a bordo da Endeavour sebaseasse em grande parte no mútuo respeitoentre homens e mulheres inteligentes e alta-mente treinados, o comandante necessitavade algo mais para sublinhar-lhe a posição.Sua responsabilidade era imensa e exigia umcerto grau de isolamento, mesmo dos amigosmais chegados. Toda ligação poderia serdanosa para o moral, pois era quase impos-sível evitar acusações de favoritismo. Por es-ta razão, os casos sentimentais que saltassemmais de dois graus de hierarquia eram firm-emente reprovados; mas, fora isso, a únicaregra a que estava submetido o sexo a bordoera: "contanto que não façam isso nos corre-dores e assustem os simps".

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Havia quatro superchimpanzés a bordodo Endeavour, se bem que, rigorosamentefalando, a denominação fosse incorreta, poisa tripulação extrahumana da nave não sebaseava na espécie chimpanzé. À gravidadezero, uma cauda preênsil constitui enormevantagem, e todas as tentativas de fornecertais apêndices a seres humanos haviam res-ultado em humilhantes fracassos. Depois dosexperimentos igualmente insatisfatórios comos grandes símios, a Companhia Superchim-panzé passara a considerar o reino dos maca-cos caudados.

Blackie, Blondie, Goldie e Brownie tin-ham árvores genealógicas cujos ramos in-cluíam os mais inteligentes cercopitecos doVelho Mundo e cebídeos do Novo, com aadição de genes sintéticos que nunca exi-stiram na natureza. A criação e educaçãodesses animais custara, provavelmente,tanto quanto a de um astronauta médio, eeles bem o mereciam. Cada um pesava

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menos de trinta quilos e consumia apenas ametade dos alimentos e do oxigênio ne-cessários a um ser humano, mas podia fazero trabalho de 2,75 homens nos setores dosafazeres domésticos, culinária elementar,transporte de ferramentas e uma dúzia deoutras tarefas de rotina.

Esses 2,75 eram a cifra alegada pelaCompanhia, com base em inúmeros estudosde tempo e movimento. Se bem que sur-preendente e não raro contestada, pareciaser exata, pois os simps trabalhavam de bomgrado durante quinze horas por dia e não seentediavam com os mais corriqueiros emonótonos serviços.

Libertavam, assim, os seres humanospara o desempenho de trabalhos humanos;e, numa nave espacial, isso era de vitalimportância.

Ao contrário dos macacos que eram seusparentes mais próximos, os simps da En-deavour tinham uma índole dócil, obediente

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e pouco curiosa. Sendo o fruto de uma multi-plicação vegetativa, eram também assexua-dos, o que eliminava embaraçosos problemasde comportamento. Vegetarianos cuida-dosamente treinados, eram muito asseados enão exalavam odor algum. Teriam dado ex-celentes animais de estimação, só que nãohavia quem pudesse pagar o seu preço.

A despeito dessas vantagens, ter simps abordo envolvia certos problemas.

Precisavam ter os seus alojamentos es-peciais, inevitavelmente cognominados a"Casa dos Macacos". Sua pequena sala derancho estava sempre limpinha e bemaparelhada com uma TV, equipamento parajogos e máquinas de ensinar programadas. Afim de evitar acidentes, era-lhes absoluta-mente proibido ingresso às áreas técnicas danave. As entradas. de todas elas eram pinta-das de vermelho, e os simps tinham sidocondicionados de tal modo que lhes era

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psicologicamente impossível transpor essasbarreiras visuais.

Havia também um problema de comu-nicações. Em que pese ao seu Q.I.

equivalente a 60 e ao fato de com-preenderem várias centenas de palavrasinglesas, eram incapazes de falar. Fora im-possível prover de cordas vocais utilizáveistanto os grandes símios como os macacoscaudados, e eles eram forçados a exprimir-sepor meio de sinais. Os sinais básicos eramóbvios e fáceis de aprender, de modo que to-dos, a bordo da nave, podiam entendermensagens de rotina. Mas o único homemque falava fluentemente o simpiano era seumestre, o Comissário-chefe McAndrews.

Uma piada corrente era que o SargentoRavi McAndrews se parecia bastante com umsimp, o que não se poderia considerar um in-sulto, dado que, com sua pelagem curta ecolorida, seus movimentos graciosos, eleseram animais lindíssimos. Eram, também,

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afetuosos, e todos, a bordo, tinham o seu fa-vorito; o do Comandante Norton era o cha-mado, com muita propriedade, Goldie, o depelo dourado.

Mas a amizade que tão facilmente se es-tabelecia com os simps criava outro prob-lema, frequentemente usado como poderosoargumento contra o emprego desses animaisno espaço. Como só podiam ser treinadospara serviços comezinhos e de rotina, erammais do que inúteis numa emergência:podiam tornar-se um perigo para si mesmose para os seus companheiros humanos. Emparticular, fora impossível ensiná-los a usarroupas espaciais, pois os conceitos en-volvidos por esse uso eram completamenteinacessíveis ao seu entendimento.

Ninguém gostava de falar sobre o as-sunto, mas todos sabiam o que cumpria fazerse houvesse uma ruptura no costado ou sefosse dada ordem de abandonar a nave. Issoacontecera apenas uma vez – e o mestre dos

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simps cumprira o seu dever com uma fidelid-ade maior do que se esperava dele: foi en-contrado com os seus pupilos, morto pelomesmo veneno. Posteriormente, o serviço deeutanásia foi transferido para o médico-chefe que, segundo se supunha, teria menosenvolvimento emocional.

Norton agradecia aos céus o fato de essaresponsabilidade, pelo menos, não recairsobre os seus ombros. Conhecia homens aquem teria matado com muito menos es-crúpulo do que a Goldie.

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12 - A ESCADARIADOS DEUSES

NA ATMOSFERA CLARA e fria de Rama, a luzdo projetor era completamente invisível.Três quilômetros abaixo do cubo central, aoval luminosa de cem metros de larguracobria uma parte daquela colossal escadaria.Oásis brilhante na escuridão que tudoenvolvia, deslocava-se lentamente para aplanície curva, cinco quilômetros maisabaixo; e, no seu centro, movia-se um trio defiguras como formigas, projetando compri-das sombras à sua frente.

Fora, exatamente como eles esperavame desejavam, uma descida sem incidente al-gum. Durante um breve descanso naprimeira plataforma, Norton caminhara al-gumas centenas de metros ao longo da

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estreita superfície curva antes de iniciar adescida em deslize para o segundo nível. Alise desfizeram dos seus aparelhos de oxigênioe deliciaram-se com o luxo inaudito depoderem respirar sem auxílio mecânico.Agora podiam explorar à vontade, livres domaior perigo com que se defronta o homemno espaço, e esquecendo todas as preocu-pações a respeito da integridade das roupas ea reserva de oxigênio.

Quando chegaram ao quinto nível e sórestava um lance por descer, a gravidade al-cançara quase metade do seu valor terrestre.Os efeitos da rotação de Rama faziam-se fi-nalmente sentir em sua verdadeira força; oshomens rendiamse a essa força implacávelque governa todos os planetas e que pode co-brar um preço caríssimo pelo mais leve des-cuido. Ainda era muito fácil descer; mas jácomeçava a obsedá-los o pensamento do re-gresso, subindo aqueles milhares e milharesde degraus.

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Havia muito que a escadaria cessara oseu vertiginoso mergulho e baixava num de-clive cada vez mais suave para a horizontal.O gradiente não ia além de 1

por 5; no começo fora o inverso, 5 por 1.A marcha normal já era, tanto física comopsicologicamente, aceitável; somente agravidade reduzida lhes lembrava que nãoestavam descendo uma grande escadaria naTerra. Norton visitara certa vez as ruínas deum templo azteca, e nesse momento ecoaramnele os sentimentos que então experiment-ara, cem vezes amplificados. Era a mesmaimpressão de assombro e mistério, a tristezade um passado irrevogavelmente desapare-cido. E contudo a escala, aqui, era tão maior,no tempo como no espaço, que a mente nãolhe podia fazer justiça; ao cabo de al-gum.tempo, cessava de reagir. Norton per-guntava a si mesmo se, mais cedo ou maistarde, não acabaria por aceitar o próprioRama.

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E havia também outro aspecto sob oqual o paralelo com as ruínas terrestres fal-hava redondamente. Rama era centenas devezes mais antigo do que todas as con-struções humanas que haviam sobrevividona Terra – inclusive a Grande Pirâmide. Mastudo ali parecia absolutamente novo; nãohavia o menor sinal de desgaste ou dano.

Norton havia fatigado o cérebro comesse problema e chegara a uma explicaçãoprovisória. Tudo que até agora tinham exam-inado fazia parte de um sistema auxiliar deemergência, que muito raramente era utiliz-ado. Não podia crer que os ramaianos – anão ser que fossem fanáticos da aptidãofísica, como tantos que eram encontrados naTerra – tivessem alguma vez subido e des-cido essa fantástica escadaria ou suas duasgêmeas idênticas que completavam o in-visível Y muito acima da sua cabeça. Talvezsó tivessem prestado serviço durante a con-strução de Rama e perdido toda utilidade

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depois daquele dia distante. A teoria era vál-ida por ora, mas não parecia muito convin-cente. Algo, nela, não estava certo...

No último quilômetro, em vez de escor-regar, desceram os degraus de dois em dois,com longas e suaves passadas; dessamaneira, pensava Norton, exercitariam mús-culos que dentro em breve teriam de ser util-izados. E assim chegaram ao fim da es-cadaria quase sem dar por isso; de repente,não havia mais degraus – apenas a planície,de um cinza fosco à luz já esmaecida do pro-jetor lá de cima, apagando-se na escuridãoumas poucas centenas de metros diantedeles. Norton olhou para trás, ao longo doraio luminoso, na direção de sua origem naextremidade superior do eixo, a mais de oitoquilômetros de distância.

Sabia que Mercer os estava observandocom o telescópio e abanou jovialmente obraço.

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– Aqui é o Comandante – falou pelo rá-dio. – Todos estão em perfeita forma, não háproblemas. Continuamos de acordo com osplanos.

– Bom – respondeu Mercer. – E nóscontinuaremos a observar.

Houve um breve silêncio, depois umavoz nova se fez ouvir.

– Aqui fala o subcomandante, a bordoda nave. Francamente, Capitão, isso não ésuficiente. O senhor sabe que os noticiaristasvivem reclamando há já uma semana. Nãoespero uma prosa imortal, mas o senhor nãopode dizer algo melhor?

– Vou tentar – riu Norton. – Maslembre-se de que por enquanto não há nadapara ver. Isto é como... bom, como estar numenorme palco escurecido, com um só projet-or. Dessa luz emergem as primeiras centenasde degraus da escadaria, até desapareceremna escuridão superior. Aquilo que podemosver da planície parece perfeitamente plano –

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a curvatura é muito pequena para ser per-ceptível nesta área limitada. Eis aí, mais oumenos, tudo o que há para contar.

– Quer nos dar algumas impressões?– Bom, ainda faz muito frio... abaixo de

zero centígrado... e ainda bem que vestimosnossas roupas térmicas. E silencioso, natur-almente; mais silencioso do que tudo queconhecíamos até agora na Terra ou no es-paço, onde sempre havia algum ruído defundo. Aqui, todos os sons são engolidos; oespaço que nos cerca é tão enorme que nãohá ecos. É uma sensação estranha, mas achoque nos habituaremos a ela.

– Obrigado, Capitão. Alguém mais querfalar? Joe, Boris?

Joe Calvert, sempre loquaz, respondeude bom grado.

– Não me sai do pensamento que esta éa primeira vez... a primeiríssima... que po-demos caminhar num outro mundo, respir-ando a sua atmosfera natural – se bem me

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pareça que "natural" não é um termo muitoapropriado quando o aplicamos a um lugarcomo este. No entanto, Rama deve parecer-se com o mundo habitado pelos seus con-strutores: todas as nossas naves espaciais sãominiaturas da Terra. Dois exemplos muitopouco valem como estatística, mas isto signi-ficará que todas as formas de vida inteligentesão consumidoras de oxigênio?

O que temos visto do trabalho deles sug-ere que os ramaianos eram humanóides, em-bora, talvez, uns cinquenta por cento maisaltos do que nós. Não concorda comigo,Boris?

"Joe está caçoando com Boris?" pensouNorton. "Vamos ver como ele reage."

Para todos os seus companheiros debordo, Boris Rodrigo era uma espécie de en-igma. O calado e digno oficial de comu-nicações era benquisto pelo resto da tripu-lação, porém nunca participava das suasatividades e parecia sempre um pouco à

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parte, como se marchasse ao som de outrotambor.

E realmente assim acontecia, pois eleera um devoto membro da Quinta Igreja deCristo-Cosmonauta. Norton nunca puderadescobrir que fim haviam levado as quatroigrejas anteriores, e estava igualmente às es-curas no que dizia respeito aos ritos ecerimônias da igreja. Mas o seu principalartigo de fé era bem conhecido: acreditavaque Jesus Cristo era um visitante vindo doespaço e construíra toda uma teologia sobreesse pressuposto.

Não era de surpreender, talvez, que aimensa maioria dos fiéis da igreja trabal-hasse no espaço, a um título qualquer. Eram,invariavelmente, pessoas eficientes, con-scienciosas e merecedoras de inteira confi-ança. Todos os respeitavam e estimavam, es-pecialmente por não tentarem converter osoutros.

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Contudo, havia neles qualquer coisa deestranho; Norton nunca pôde compreenderque homens com um avançado treinamentocientífico e técnico acreditassem certascoisas que ele ouvira os "cristeiros" afirmar-em como fatos incontrovertíveis.

Enquanto esperava que o Ten. Rodrigorespondesse a pergunta talvez capciosa deJoe, o comandante teve uma súbita intuiçãodos seus próprios motivos ocultos. Haviaescolhido Boris porque era fisicamente apto,tecnicamente habilitado e homem de toda aconfiança. Ao mesmo tempo, desconfiava deque nessa escolha tivesse participado umaespécie de curiosidade travessa, de que o seueu consciente não quisera tomar conheci-mento. Como reagiria um homem com taiscrenças religiosas à aterradora realidade deRama? E se ele encontrasse alguma coisa quedesbaratasse a sua teologia... ou, pelo con-trário, que viesse confirmá-la?

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Mas Boris Rodrigo, com a sua cautelacostumeira, não se deixou levar.

– Eles certamente respiravam oxigênio,e é possível que fossem humanóides. Comum pouco de sorte, talvez venhamos "adescobrir que aparência tinham. Talvez hajapinturas, estátuas, quem sabe se até corpos,nessas cidades. Se é que são cidades.

– E a mais próxima fica apenas a oitoquilômetros de distância – observou esper-ançosamente Joe Calvert.

"Sim", pensou o comandante, "mas tam-bém são oito quilômetros a retroceder, e de-pois será preciso subir de novo aquela tre-menda escadaria.

Podemos assumir esse risco?"Uma pequena expedição de reconheci-

mento à "cidade" que eles haviam denom-inado Paris figurava entre os seus primeirosplanos de contingência, e chegara o mo-mento de tomar a decisão. Tinham manti-mentos e água de sobra para uma

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permanência de vinte e quatro horas; estari-am sempre à vista da equipe de reforçopostada no Cubo, e qualquer espécie deacidente parecia virtualmente impossívelnaquela planície lisa, com a sua suavecurvatura. O único perigo previsível era a ex-austão; quando chegassem a Paris, o que ser-ia bastante fácil, que outra coisa poderiamfazer além de tirar algumas fotografias etalvez colher pequenos artefatos, antes deserem obrigados a voltar?

Entretanto, mesmo uma breve incursãodesse gênero valeria a pena. O tempo eramuito curto, pois Rama se precipitava nadireção de um periélio demasiado perigosopara a Endeavour.

Em todo caso, não era a ele que com-petia tomar uma parte da decisão. Lá emcima, na astronave, a Dra. Ernst estaria ob-servando as indicações dos sensores bi-otelemétricos aplicados ao seu corpo. Se ela

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voltasse o polegar para baixo, não haveriaapelação.

– Laura, que é que você acha?– Descansem trinta minutos e tomem

um módulo energético de quinhentas calori-as. Depois podem partir.

– Obrigado, doutora – atalhou Joe Cal-vert. – Agora posso morrer contente.

Sempre desejei conhecer Paris. Mont-martre, lá vamos nos.

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13 - A PLANÍCIE DERAMA

DEPOIS DAQUELAS intermináveis escadari-as, era um estranho luxo caminhar mais umavez sobre uma superfície horizontal. Bem emfrente, o terreno era em verdade completa-mente plano; à direita e à esquerda, a curvaascendente se fazia perceptível nos limites daárea iluminada pelo projetor. Era como seeles estivessem caminhando por um vale ra-so e muito largo; ninguém diria que em real-idade avançavam sobre a face interna de umenorme cilindro, e que além desse pequenooásis de luz o solo ia subindo para encontrar-se com o céu ou, mais exatamente, paratornar-se o próprio céu.

Embora todos eles estivessem animadospor um sentimento de confiança e de contido

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alvoroço, depois de algum tempo o silêncioquase palpável de Rama começou a pesaropressivamente sobre o grupo. Cada passo,cada palavra se desvanecia instantanea-mente no vazio sem eco; após terem percor-rido pouco mais de meio quilômetro, o Ten.Calvert não pôde mais suportar aquilo.

Entre as suas pequenas habilidadescontava-se um talento hoje raro, emboramuitos achassem que não o era suficiente-mente – a arte de assobiar.

Com ou sem encorajamento, podia re-produzir os temas musicais da maioria dosfilmes dos últimos duzentos anos. Começouapropriadamente com Heigh-ho, heigh-ho,'tis off to work we go, mas, convencendo-sede que não podia sustentar o baixo dos anõesde Disney em marcha, fez uma rápidatransição para o Rio Kwai. Depois progrediu,mais ou menos cronologicamente, através demeia dúzia de marchas heróicas, culminandono famoso Napoleão de Sid Krassman, dos

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fins do século XX. Foi uma bela tentativa,mas não surtiu efeito, nem mesmo para elev-ar o moral. Rama exigia a grandeza de umBach ou Beethoven, de Sibelius ou Tuan Sun,não a trivialidade dos espetáculos populares.Norton estava a ponto de sugerir que Joeguardasse o seu fôlego para exercícios futur-os, quando o jovem oficial percebeu a inutil-idade dos seus esforços. Daí em diante, foraalguma consulta ocasional à nave, continuar-am a caminhar em silêncio. Rama haviaganho esse round.

Em sua travessia inicial, Nortonpermitira-se uma digressão. Paris ficava bemem frente, a igual distância entre o pé da es-cadaria e a margem do Mar Cilíndrico, masapenas um quilômetro à direita do caminhoque seguiam havia um acidente de terrenomuito proeminente e um tanto misterioso,que fora batizado como o Vale Retilíneo. Eraum longo sulco ou vala, com quarenta met-ros de fundo e cem de largo, ladeado por

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taludes de suave inclinação; fora provisoria-mente identificado com um fosso ou canal deirrigação. Como a própria Escadaria, tinhadois pendants semelhantes, igualmente es-paçados ao redor da curva de Rama.

Os três vales mediam quase dez quilô-metros de comprimento e terminavam brus-camente, um pouco antes de chegarem aomar – o que era estranho, se de fato se des-tinavam a conduzir água. E no outro lado domar o mesmo padrão se repetia: outras trêsvalas de dez quilômetros seguiam no rumoda região polar Sul.

Alcançaram o término do Vale Retilíneoao cabo de apenas quinze minutos de marchafolgada, e por um momento ficaram parados,olhando pensativamente o fundo da de-pressão. As paredes perfeitamente lisas des-ciam num ângulo de sessenta graus; não tin-ham degraus nem apoios para os pés. Enchiao fundo uma camada de material branco, desuperfície plana, que se parecia muito com

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gelo. Uma amostra desse material poderiaresolver muitas disputas. Norton decidiu irbuscá-la.

Enquanto Calvert e Rodrigo fun-cionavam como âncoras, folgando pouco apouco uma corda de segurança, ele desceuvagarosamente o forte declive. Ao alcançar ofundo, tinha quase certeza de que ia experi-mentar a conhecida sensação do gelo res-valadiço sob os pés, mas enganava-se. O at-rito era muito grande e seus pés pousaramfirmes no chão. Aquele material era algumaespécie de vidro ou cristal transparente;quando o tocou com as pontas dos dedos,sentiu-o frio, duro e resistente à pressão.

Voltando as costas ao projetor e fazendopala com a mão sobre os olhos, Nortonprocurou espreitar as profundezas cristalinascomo quem tenta enxergar através da ca-mada de gelo que recobre um lago. Não pôdever nada, contudo, nem mesmo à luz con-centrada de sua lâmpada de capacete. O

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material era translúcido, porém não trans-parente. Se realmente era um líquido gelado,tinha um ponto de fusão muito mais alto quea água.

Bateu levemente nele com o martelo doseu estojo de geólogo; a ferramenta ricochet-eou com um ruído surdo: clanc! Bateu maisforte, sem melhor resultado, e ia martelarcom toda a força quando algum impulso ofez desistir.

Parecia muito pouco provável que con-seguisse rachar aquele material; mas... e se ofizesse? Seria como um vândalo que desped-aça uma enorme parede de cristal.

Teria melhor ensejo para colher suaamostra mais tarde, e pelo menos já tinhauma informação valiosa. Agora, parecia maisimprovável do que nunca que se tratasserealmente de um canal; era, simplesmente,um singular fosso que começava e terminavaabruptamente, sem levar a parte alguma. E,se alguma vez tinha conduzido líquido, onde

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estavam as manchas, as incrustações de sedi-mentos secos que seriam de esperar? Tudobrilhava de limpeza, como se os construtoreshouvessem partido ainda na véspera...

Mais uma vez se lhe defrontava o mis-tério fundamental de Rama, e agora não erapossível fugir-lhe. O Comandante Norton eraum homem razoavelmente imaginativo, masjamais teria ascendido à sua posição atual secostumasse entregar-se aos voos mais desen-freados da fantasia. E contudo, nesse mo-mento, teve pela primeira vez um sentimento– não exatamente de premonição, mas deprevisão. As coisas não eram o que pareciam;havia algo muito, mas muito estranho numlugar que era simultaneamente novinho emfolha – e velho de um milhão de anos.

Muito pensativo, pôs-se a caminharlentamente ao longo do pequeno vale, en-quanto seus companheiros, que ainda se-guravam a corda amarrada à sua cintura, oseguiam pela borda. Não esperava fazer

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novas descobertas, mas queria que o seucurioso estado emocional fosse até o fim.Porque havia outra coisa a preocupá-lo, eessa coisa nada tinha que ver com a inex-plicável novidade de Rama.

"Não havia andado mais que uma dúziade metros quando o pensamento o atingiucomo um raio.

Conhecia aquele lugar. Já tinha estadoali antes. Mesmo na Terra ou em algumplaneta familiar, essa experiência é in-quietante, embora não seja particularmenterara. A maioria das pessoas a conheceramnuma ou noutra ocasião, e em geral a "ex-plicam" como a memória de uma fotografiaesquecida, uma pura coincidência – ou,quando se inclinam ao misticismo, algumaforma de telepatia, a mensagem de outramente, ou mesmo como um flash-back doseu próprio futuro.

Mas reconhecer um lugar em que nen-hum outro ser humano pode ter visto jamais

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– isso é simplesmente chocante. Pelo espaçode vários segundos, o Comandante Nortonpareceu ter criado raízes na superfície lisa ecristalina sobre a qual estivera caminhandoenquanto procurava pôr em ordem as suasemoções.

Seu bem-ordenado universo virará depernas para o ar e ele teve um vislumbre ver-tiginoso daqueles mistérios que pairam naorla da existência e pelos quais, em geral,conseguia passar de largo.

Foi então que, para seu imenso alívio,acudiu-lhe o senso comum.

Desvaneceu-se a perturbadora sensaçãodo déjà vu, cujo lugar foi tomado por umareal e identificável recordação da sua juven-tude. Era verdade: uma vez ele se encontraraentre dois taludes inclinados e íngremescomo aqueles, vendo-os perder-se na distân-cia, até que pareciam convergir num pontoinfinitamente afastado. Mas eram cobertosde grama aparada a capricho; e o chão era de

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pedra britada, não de cristal liso. Issoacontecera trinta anos atrás, durante umaférias de verão na Inglaterra. Em grandeparte por causa de uma outra estudante(lembrava-se ainda do seu rosto, mas esque-cera como se chamava), tinha feito um cursode Arqueologia Industrial, então muito emvoga entre os graduados em Ciências e En-genharia. Haviam explorado minas de carvãoe cotonifícios abandonados, escalado ruínasde altos-fornos e locomotivas a vapor, ar-regalado os olhos incrédulos diante de prim-itivos (e ainda perigosos) reatores nucleares,e dirigido preciosas antiqualhas movidas aturbina por auto-estradas restauradas.

Nem tudo que viram era genuíno; umaboa parte dessas coisas perdera-se ao longodos séculos, pois os homens raramente sedão ao trabalho de preservar os objetoscomuns da vida cotidiana. Mas quando eranecessário fazer cópias, eles tinham sido re-construídos com amoroso cuidado.

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E foi assim que o jovem Norton saiu arolar sobre os trilhos, a uma eufórica velocid-ade de cem quilômetros por hora, atirandopazadas e mais pazadas de precioso carvãopara dentro da fornalha de uma locomotivaque parecia velha de duzentos anos, mas emrealidade era mais jovem do que ele. Ostrinta quilômetros de via permanente daGreat Western Railway, no entanto, eramperfeitamente genuínos, se bem que forapreciso um considerável trabalho de escav-ação para fazê-la voltar a funcionar.

Apita que apita, haviam mergulhado navertente de uma colina, precipitando-senuma escuridão fumarenta, alumiada porchamas de querosene.

Após um tempo que pareceu inter-minável, deixaram repentinamente o túnel evararam por um corte perfeitamenteretilíneo entre íngremes taludes plantados degrama. A vista, há muito esquecida, era

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quase idêntica àquela que tinha agora diantedos olhos.

– Que é que há, Capitão? – gritou o Ten.Rodrigo. – Achou alguma coisa?

Enquanto Norton voltava, com um es-forço, ao senso da realidade presente, seuespírito libertou-se, em parte, do sentimentode opressão. Havia ali um mistério, é certo;mas talvez não estivesse além da com-preensão humana.

Tinha aprendido uma lição, embora nãofosse fácil comunicá-la a outros.

Custasse o que custasse, não deviadeixar-se esmagar por Rama. Por esse cam-inho se ia ao fracasso, talvez à loucura.

– Não – respondeu. – Não há nada cáembaixo. Me puxem para cima.

Vamos direto a Paris.

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14 - SINAL DE MAUTEMPO

– CONVOQUEI ESTA reunião do Comitê –disse S. Excia. O Embaixador de Marte juntoaos Planetas Unidos – porque o Dr. Pereratem algo de importante para nos comunicar.Pede insistentemente que entremos sem de-mora em contato com o Comandante Nor-ton, usando o canal prioritário que, possodizê-lo, só conseguimos estabelecer depoisde lutar com grandes dificuldades. A comu-nicação do Dr. Perera é de caráter bastantetécnico, e antes de a examinarmos creio queconvém fazer um sumário da situaçãopresente. O Dr.

Price preparou esse sumário. Ah, sim...há alguns pedidos de desculpas por ausência.Sir Lewis Sands não pode nos fazer

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companhia porque está presidindo uma con-ferência, e o Dr. Taylor roga que odispensemos.

Quanto a esta última abstenção, não lhedesagradava nem um pouco. O antropólogoperdera logo o interesse por Rama quando setornou evidente que oferecia pouco campoaos seus estudos. Como muitos outros, ficaraprofundamente desapontado à notícia de queaquele pequeno mundo itinerante estavamorto; isso excluía toda oportunidade de liv-ros e vídeos sensacionais a respeito dos ritose padrões de comportamento ramaianos.Outros que cavassem esqueletos e classificas-sem artefatos; esse tipo de trabalho não erado gosto de Conrad Taylor. Talvez a únicadescoberta capaz de fazê-lo voltar pres-surosamente fossem algumas obras de artealtamente explícitas, como os afrescos deTerá e Pompéia.

O ponto de vista de Thelma Price, a ar-queóloga, era o oposto exato deste.

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Ela preferia escavações e ruínas livres dehabitantes que pudessem interferir nos de-sapaixonados estudos científicos. O fundo doMediterrâneo tinha sido ideal – pelo menosenquanto os urbanistas e arquitetos paisagis-tas não se meteram de permeio. E Rama ter-ia sido perfeito, não fosse o exasperante de-talhe de encontrar-se a cem milhões dequilômetros de distância, o que a impediapara sempre de visitá-lo em pessoa.

– Como todos aqui sabem – começou, –o Comandante Norton completou umatravessia de quase trinta quilômetros semencontrar qualquer problema.

Explorou o curioso fosso que aparecenesses mapas como o Vale Retilíneo; a final-idade desse fosso ainda é completamentedesconhecida, mas sua importância é evid-ente, porquanto corre ao longo de todo ocomprimento de Rama – salvo a interrupçãodo Mar Cilíndrico – e há duas outras

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estruturas idênticas, com intervalos de 120graus, em volta da circunferência dessemundo.

"Depois o grupo dobrou à esquerda – oupara Leste, se adotarmos a convenção doPólo Norte – até chegarem a Paris. Comoverão por esta fotografia, tirada por uma câ-mara telescópica no Cubo, trata-se de umgrupo de várias centenas de edifícios separa-dos por largas ruas.

"Bem, estas outras fotografias foramtiradas pelo grupo do Comandante Nortonquando chegaram ao local. Se Paris é umacidade, é uma cidade muito singular. Notemque nenhum dos edifícios tem janelas, oumesmo portas! Todos são simples estruturasretangulares, com uma altura uniforme detrinta e cinco metros. Parecem ter sido ex-pelidas do solo como pasta dentifrícia de umtubo: não têm juntas nem emendas. Vejameste primeiro plano da base de uma parede –a transição para o solo é perfeitamente lisa.

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"Minha opinião pessoal é que este lugarnão é uma área residencial, mas um conjuntode depósitos e armazéns de suprimentos. Emapoio dessa teoria, vejam esta foto...

"Estas fendas ou sulcos estreitos,medindo uns cinco centímetros de largura,correm ao longo de todas as ruas, e há umconduzindo a cada um deles – penetrandodiretamente na parede. Esses sulcos têmuma semelhança notável com os trilhos debondes do começo do século XX. Fazemparte, evidentemente, de algum sistema detransportes.

"Nunca nos pareceu necessário fazercom que os transportes públicos conduzis-sem diretamente a cada casa. Seria econom-icamente absurdo, e as pessoas sempre po-dem caminhar algumas centenas de metros.Mas, se estes edifícios fossem usados paraarmazenagem de materiais pesados, issofaria sentido.

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– Dá licença de fazer uma pergunta? –perguntou c Embaixador da Terra.

– Pois não, Sir Robert.– O Comandante Norton não conseguiu

entrar em nenhum dos edifícios?– Não. Quando ouvirem o relato dele,

verão a que ponto se sentiu frustrado.Chegou mesmo a pensar que só se podia en-trar nos edifícios pelo subsolo; foi então quedescobriu os sulcos do sistema de transpor-tes e mudou de pensar.

– Tentou forçar a entrada?– Não havia maneira de fazê-lo, a não

ser com explosivos. ou ferramentas pesadas.E ele não quer usar essas coisas a não serquando todos os outros meios tiveremfalhado.

– Já sei! – exclamou repentinamenteDennis Solomons. Encasulagem!

– Perdão?– É uma técnica que foi desenvolvida há

coisa de dois séculos – continuou o

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historiador da Ciência. – Quando se querpreservar alguma coisa, põe-se dentro de umsaco de plástico, insufla-se um gás inerte eveda-se. Inicialmente, usou-se para protegerequipamento militar nos períodos entreguerras; chegou-se a encasular navios inteir-os. O processo ainda é muito usado nosmuseus onde haja escassez de espaço paraarmazenagem; ninguém sabe o que está den-tro de alguns casulos velhos de cem anos,que são conservados no subsolo do InstitutoSmithsoniano.

O Dr. Carlisle Perera não primava pelapaciência. Estava doido para lançar a suabomba e já não podia conter-se.

– Por favor, Sr. Embaixador! Isso tudo émuito interessante, mas acho que a minhainformação é um pouco mais urgente.

– Se não há pontos de importância...Muito bem, Dr. Perera. Para o exobiologista,ao contrário de Conrad Taylor, Rama nãofora uma decepção. É

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verdade que ele já não esperava encon-trar vida – mas tinha certeza de que, maiscedo ou mais tarde, seriam encontrados al-guns restos das criaturas que haviam con-struído esse mundo fantástico. Mal começaraainda a exploração, embora fosse horrivel-mente curto o tempo disponível antes que aEndeavour se visse obrigada a abandonar asua órbita tão rente ao Sol.

Mas agora, se os seus cálculos estavamcertos, o contato do homem com Rama seriaainda mais breve do que ele temera. Porqueum detalhe fora esquecido – era tão grandeque ninguém tinha reparado nele até então.

– De acordo com as mais recentes in-formações – começou Perera, – um grupovai agora a caminho do Mar Cilíndrico, en-quanto o Comandante Norton dirige outrogrupo que está instalando uma base deabastecimento no sopé da Escadaria Alfa.Quando essa base estiver pronta, ele pre-tende enviar pelo menos duas missões

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exploradoras em operação permanente. É as-sim que espera utilizar o seu limitado poten-cial humano com um máximo de eficiência.

"O plano é bom, mas talvez não hajatempo para pô-lo em execução. Eu aconsel-haria, mesmo, um estado de alerta imediatoe a preparação para uma retirada total comdoze horas de aviso prévio. Permitam queme explique...

"É surpreendente quão poucas pessoastêm comentado uma anomalia bastante ób-via no que se refere a Rama. Faz já um bomtempo que penetrou na órbita de Vênus... e oseu interior continua gelado. No entanto, atemperatura de um corpo exposto à luzdireta do Sol nesse ponto é de uns quinhen-tos graus!

"A razão disso, naturalmente, é queRama não teve tempo de esquentar.

Deve ter esfriado a uma temperaturapróxima do zero absoluto – duzentos esetenta graus negativos – enquanto se

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encontrava no espaço interestelar. Agora, àmedida que se aproxima do Sol, o seu cascoexterior já está quase tão quente como ochumbo fundido. Mas o interior continuaráfrio até que o calor tenha atravessado aquelequilômetro de rocha. Há uma espécie desobremesa aí, que é quente de pelar por forae no centro tem sorvete; não me lembrocomo se chama...

– Alasca ao forno. Infelizmente, é umpudim favorito nos banquetes dos PlanetasUnidos.

– Obrigado, Sir Robert. Essa é a situ-ação em Rama no momento, mas não vaidurar. Durante todas estas semanas o calorsolar esteve penetrando pouco a pouco, e es-peramos um acentuado aumento de temper-atura que deverá começar dentro de poucashoras. Quando tivermos que partir dequalquer modo, ela será razoavelmente trop-ical, nada mais.

– Então, qual é a dificuldade?

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– Posso responder-lhe com uma só pa-lavra, Sr. Embaixador: Furacões.

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15 - À BEIRA DOMAR

HAVIA, AGORA, mais de vinte homens emulheres no interior de Rama – seis lá em-baixo, na planície, e o resto transportandoequipamento e materiais de consumo atravésdo sistema de eclusas de ar e escadariaabaixo. Quanto à própria nave, ficara quasedeserta, com o mínimo possível de pessoalem serviço; circulava a piada de que a En-deavour passara a ser, em realidade, dirigidapelos quatro simps e Goldie fora promovidoa comandante interino. Norton havia es-tabelecido várias regras básicas para essasexplorações iniciais. A mais importantedatava dos primeiros tempos das viagens noespaço. Cada grupo, resolvera ele, devia

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incluir uma pessoa com experiência prévia –mas uma só.

Dessa maneira, todos teriam uma opor-tunidade de aprender o mais rapidamentepossível.

E assim, o primeiro grupo que tomou ocaminho do Mar Cilíndrico, embora fosse di-rigido pela Médica-Chefe Laura Ernst, tinhacomo "veterano" o Ten. Boris Rodrigo, queacabava de regressar de Paris. O terceiro in-tegrante, Sargento Pieter Rousseau, fizeraparte das equipes de reforço estacionadas noCubo; era perito em instrumentos de recon-hecimento espacial, mas nessa expedição ter-ia de confiar nos seus próprios olhos e numpequeno telescópio portátil.

Do pé da Escadaria Alfa até a beira doMar era um estirão de pouco menos de onzequilômetros – na baixa gravidade de Rama, oequivalente de oito quilômetros na Terra.Laura Ernst, que precisava dar uma demon-stração de que vivia de acordo com os seus

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próprios preceitos, estabeleceu um vigorosoritmo de marcha. Fizeram uma pausa detrinta minutos na metade do caminho e com-pletaram o percurso em três horas, semqualquer incidente de maior importância.

Foi, aliás, muito monótono marchar àluz do projetor através da escuridão sem ecosde Rama. À proporção que avançava comeles, o círculo luminoso alongava-se lenta-mente numa comprida e estreita elipse; essadeformação do raio luminoso era o únicosinal de progresso. Se os observadores lá emcima, no Cubo, não tivessem feito constantesmedidas de distância, não saberiam se eleshaviam percorrido um, cinco ou dez quilô-metros. Impassíveis, iam tocando para afrente através daquela noite antiga de mil-hões de anos, sobre uma superfície de metalaparentemente sem junturas.

Mas afinal, muito longe à frente, naelipse de luz que começava a enfraquecer,surgiu algo de novo. Num mundo normal,

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teria sido um horizonte; ao se aproximaremmais, puderam ver que a planície em quecaminhavam terminava abruptamente.Estavam se aproximando da beira do Mar.

– Nada mais que uma centena de met-ros – disse o Controle Central. – Convém di-minuir a marcha.

Isso era quase desnecessário, e contudoeles já o tinham feito. Do nível da planície aodo Mar havia um precipício vertical de cin-quenta metros – se realmente se tratava deum mar, e não de outra camada daquele mis-terioso material cristalino. Conquanto Nor-ton tivesse explicado a todos o perigo de to-mar qualquer coisa como assente em Rama,poucos duvidavam de que o Mar fosse real-mente formado de gelo. Mas por que razãotinha a escarpa da margem meridional quin-hentos metros de altura, em vez dos cin-quenta que media esta outra?

Era como se estivessem se aproximandoda beira do mundo; a oval de luz,

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abruptamente cortada à frente deles,tornava-se cada vez mais curta; na tela curvado Mar haviam aparecido as suas monstruo-sas sombras em escorço, magnificando e ex-agerando cada movimento. Essas sombrastinham sido suas companheiras a cada passoda caminhada à luz do projetor, mas agoraque a beira da escarpa as vinha interromper,já não pareciam fazer parte deles. Dir-seiaque eram criaturas do Mar Cilíndrico,prontas para fazer frente a quaisquer invas-ores do seu domínio.

Por se acharem agora à beira de umpenhasco de cinquenta metros de altura foi-lhes possível, pela primeira vez, apreciar acurvatura de Rama. Mas ninguém jamaistinha visto um lago congelado que securvasse para cima numa superfíciecilíndrica; isso era francamente perturbador,e o olho fazia o possível para dar algumaoutra interpretação ao fenômeno. A Dra.Ernst, que certa vez fizera um estudo das

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ilusões ópticas, pareceu, a metade do tempo,que estava olhando uma baía a curvar-se ho-rizontalmente, e não uma superfície que seelevava para o céu. Fazia-se mister um es-forço deliberado da vontade para aceitar afantástica verdade.

Só na linha diretamente em frente,paralela ao eixo de Rama, se conservava anormalidade. Só nessa direção havia acordoentre visão e lógica.

Aqui – pela extensão de alguns quilô-metros ao menos – Rama parecia plano e eraplano... E lá adiante, além das sombras de-formadas e da orla exterior do círculo de luz,ficava a ilha que dominava o Mar Cilíndrico.

– Controle Central – disse a Dra. Ernstpelo rádio, – façam o favor de dirigir a sualuz para Nova Iorque.

A noite de Rama cerrou-se repentina-mente sobre eles, enquanto a oval luminosadeslizava na direção do Mar. Cônscios doprecipício agora invisível a seus pés, todos

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eles recuaram alguns passos. Então, comopor uma transformação mágica de cenáriono teatro, as torres de Nova Iorque surgiramà vista.

A semelhança com a velha Manhattanera apenas superficial; esse eco do passadoterrestre, nascido nas estrelas, tinha a suaprópria e inconfundível identidade. Quantomais a Dra. Ernst fixava aquilo, mais se con-vencia de que não era em absoluto uma cid-ade. A verdadeira Nova Iorque, como todasas habitações humanas, nunca fora termin-ada; e ainda menos fora planejada. Estelugar, pelo contrário, tinha uma simetria epadrão geral, embora tão complexo que amente não o podia abarcar. Fora concebido eplanejado por alguma inteligência contro-ladora – e depois completado, como umamáquina que se destinasse a algumpropósito específico. Isso feito, não haviamais possibilidade de crescimento oumudança.

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A luz do projetor acompanhou-os lenta-mente ao longo dessas distantes torres,cúpulas, esferas entrosadas e tubos entre-cruzados. Por vezes um brilhante reflexolampejava, como se uma superfície lisa re-chaçasse a luz na direção deles; na primeiravez que isso aconteceu, todos foram apanha-dos de surpresa. Era exatamente como se lá,naquela estranha ilha, alguém lhes estivesseacenando...

Mas de tudo que podiam ver ali nãohavia nada que já não tivesse . sido mostradocom maior detalhe em fotografias tiradas doCubo. Passados alguns minutos, pediramque lhes fosse devolvida a luz e puseram-se acaminhar em direção Leste, pela beira da es-carpa. Alguém formulara a plausível teoriade que algures devia haver um lance de es-cadaria, ou uma rampa, descendo para omar.

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E um dos integrantes da tripulação, quefora excelente marinheiro, aventurou umainteressante conjetura.

– Onde há um mar – predissera a Sar-genta Ruby Barnes – deve haver docas e por-tos... e navios. Pode-se aprender tudo deuma cultura estudando o seu modo de con-struir navios.

Seus colegas acharam bastante restritoeste ponto de vista, mas pelo menos eraestimulante.

A Dra. Ernst já tinha desistido dapesquisa e estava se preparando para fazeruma descida com o auxílio de cordas quandoo Ten. Rodrigo avistou a estreita escada. Fa-cilmente poderia ter passado despercebidona escuridão produzida pelas sombrasabaixo da beira da escarpa, pois não haviabalaustrada nem qualquer outro indício dasua presença. E não parecia conduzir a partenenhuma; descia, em ângulo precipite, a

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muralha vertical de cinquenta metros e desa-parecia abaixo da superfície do Mar.

Acompanharam o curso do lance de es-cadaria com as luzes dos seus capacetes e,como não lhes parecesse haver risco algum, aDra. Ernst obteve permissão do ComandanteNorton para descer. Um minuto depois, es-tava ela a testar cautelosamente a superfíciedo Mar.

Seu pé escorregava quase sem atritopara diante e para trás. O material dava aperfeita sensação do gelo. E era gelo.

Quando o golpeou com o martelo,formou-se o conhecido padrão de rachadurasa irradiar do ponto de impacto e não teve di-ficuldade em colher quantas amostras quer-ia. Algumas já se haviam derretido quandoergueu o saquinho de plástico para a luz; olíquido parecia ser uma água ligeiramenteturva, que ela cheirou cautelosamente.

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– Isso não é perigoso? – gritou Rodrigolá de cima, com um toque de ansiedade navoz.

– Pode crer, Boris – respondeu Laura, –que se há aqui agentes patogênicos que ten-ham escapado aos meus detetores, as nossasapólices de seguro caducaram há já umasemana.

Mas Boris não deixava de ter suapontinha de razão. A despeito de todos ostestes feitos, havia ainda um leve risco deque aquela substância fosse venenosa ouportadora de alguma doença desconhecida.Em circunstâncias normais, a Dra. Ernst nãose exporia a tal perigo, por minúsculo quefosse.

Agora, porém, o tempo era curto e o quese achava em jogo era enorme. Se se tornassenecessário pôr a Endeavour de quarentena,seria um preço bem pequeno a pagar pelasua carga de conhecimentos.

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– É água, mas eu é que não a beberia.Cheira 4como uma cultura de algas queapodreceu. Quem me dera poder levar isto jápara o laboratório!

– Pode-se confiar nesse gelo paracaminhar?

– Sim, é sólido como uma rocha.– Será mesmo, Pieter? Você já experi-

mentou atravessar quatro quilômetros degelo?

– Sim, compreendo o que a senhoraquer dizer. Imaginem o que diria o pessoaldos Suprimentos se nós pedíssemos algunspares de patins! Não quero dizer com issoque muitos aqui soubessem usá-los, se ostivéssemos a bordo.

– Há também outro problema – acudiuBoris Rodrigo. – Não notaram que a temper-atura já subiu acima de zero? Não demoramuito, esse gelo começa a se derreter. Quan-tos espaçonautas podem nadar quatro

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quilômetros? Este aqui, posso lhes garantirque não...

A Dra. Ernst veio reunir-se ao grupo nabeira da escarpa e ergueu em arco de triunfoo frasquinho em que pusera a amostralíquida.

– Fizemos uma longa caminhada paraconseguir alguns centímetros cúbicos deágua suja, mas isto nos pode ensinar maissobre Rama do que qualquer outra coisa queencontramos até agora. Vamos voltar.

Viraram-se de frente para as luzes dis-tantes do Cubo e puseram-se em movimentocom as passadas suaves, galopantes, que sehaviam revelado a andadura mais cômodaàquela gravidade reduzida. Olhavam muitasvezes para trás, como fascinados pelo enigmada ilha no centro do mar congelado.

E, num determinado momento, a Dra.Ernst julgou sentir na face um ligeiro soprode brisa.

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A impressão não se repetiu e ela não tar-dou a esquecê-la.

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16 - KEALAKEKUACOMO SABE perfeitamente, Dr. Perera –

disse o Embaixador Bose num tom de pa-ciente resignação, – poucos de nós com-partilhamos os seus conhecimentos deMeteorologia matemática. Tenha, pois,piedade de nossa ignorância.

– É um prazer para mim – respondeu oexobiologista, imperturbável. – A melhormaneira de explicar isso é dizer-lhes o quevai acontecer no interior de Rama – dentrode bem pouco tempo.

"A temperatura começará agora a subir,à medida que as vibrações térmicas do Solforem atingindo o interior. De acordo com asinformações mais recentes que recebemos, jáestá acima do ponto de congelação. Nãotardará a começar o degelo do MarCilíndrico. E, ao contrário das massas de

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água na Terra, ele se derreterá do fundo paraa superfície. Isso talvez produza alguns efei-tos estranhos, mas o que mais me preocupa éa atmosfera.

"À medida que se aquecer, o ar no in-terior de Rama se expandirá – e tentaráelevar-se na direção do eixo central. E esse éo problema. Ao nível do solo, embora apar-entemente se mantenha estacionário, eleparticipa da rotação de Rama – mais de oito-centos quilômetros por hora. A proporçãoque subir na direção do eixo, ele procuraráconservar essa velocidade... e não o con-seguirá, naturalmente. Daí resultarão ventosviolentos e turbulência; segundo os meuscálculos, as velocidades serão de duzentos atrezentos quilômetros por hora.

"Seja dito de passagem: mais ou menosa mesma coisa acontece na Terra.

O ar aquecido no equador – o qual com-partilha o movimento de rotação do planeta,que é de mil e seiscentos quilômetros por

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hora – choca-se com o mesmo problemaquando se eleva e flui para o norte e para osul."

– Ah, os ventos alísios! Me lembro disso,desde quando estudava Geografia.

– Exatamente, Sir Robert. Rama teráventos alísios... e que ventos! Creio que nãodurarão mais de umas poucas horas, após oque se estabelecerá alguma espécie deequilíbrio. Enquanto isso, eu recomendariaao Comandante Norton que evacuasse – omais cedo possível. Eis aqui a mensagem queproponho lhe seja enviada.

Com um pouco de imaginação, dizia oComandante Norton de si para si, podia-sefazer de conta que era um acampamentonoturno improvisado no sopé de umamontanha, em alguma remota região da Ásiaou da América. O montão de colchõespneumáticos, cadeiras e mesas dobradiças,gerador portátil de força motriz, equipa-mento de iluminação, patentes "electrosan" e

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diferentes aparelhos científicos não estariafora de lugar na Terra – tanto mais que haviaali homens e mulheres a trabalhar sem sis-temas de sustentação de vida.

Instalar o Acampamento Alfa tinha sidoum trabalho penoso, pois tudo precisava sertransportado a mão através da cadeia deeclusas de ar, e, após descer em trenó arampa que partia do Cubo, ser recuperado eretirado das embalagens. Algumas vezes,quando falharam os pára-quedas de freagem,um carregamento fora terminar um bomquilômetro mais além, na planície. A des-peito disso, vários membros da tripulaçãotinham pedido licença para fazer a viagem:Norton proibira firmemente tal coisa. Numaemergência, porém, talvez estivesse dispostoa reconsiderar a proibição.

Quase todo esse equipamento ficariaonde estava, pois o trabalho de leválo devolta estava fora de cogitação – ou melhor,era impossível.

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Havia momentos em que o ComandanteNorton sentia uma vergonha irracional pordeixar tanto lixo humano nesse lugar estran-hamente imaculado.

Quando partissem finalmente, estavapreparado para sacrificar uma parte do pre-cioso tempo da tripulação no empenho dedeixar tudo em perfeita ordem. Por im-provável que isso fosse, talvez um dia, mil-hões de anos mais tarde, Rama atravessasseoutro sistema estelar e tornasse a recebervisitantes.

Entrementes, tinha um problema de im-portância mais imediata. Durante as últimasvinte e quatro horas, havia recebidomensagens quase idênticas de Marte e daTerra. A coincidência parecia estranha;talvez se tivessem condoído uma da outra,como podia acontecer por vezes, havendomotivo suficiente para tal, a esposas queviviam em planetas diferentes. Com certa in-sistência, ambas lhe lembravam que, embora

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fosse agora um grande herói, não se livraradas suas responsabilidades de família.

O Comandante apanhou uma cadeiradobradiça e saiu do círculo de luz para a es-curidão que rodeava o acampamento. Era oúnico meio que tinha de isolar-se, e tambémpoderia refletir melhor longe da lufa-lufa.Voltando deliberadamente as costas àquelaconfusão organizada, pôs-se a falar para ogravador que levava pendurado ao pescoço.

"Original para arquivo pessoal, du-plicatas para Marte e Terra. Alô, minhaquerida... Sim, eu sei que tenho sido umpéssimo correspondente, mas há uma sem-ana que não vou a bordo da nave. Fora atripulação mínima que lá ficou, estamos to-dos acampados dentro de Rama, ao pé da es-cadaria que chamamos de Alfa.

"Tenho agora três grupos explorando aplanície, mas os nossos progressos têm sidodecepcionadoramente lentos, pois tudo deveser feito a pé. Se ao menos tivéssemos algum

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meio de transporte! Eu até me daria pormuito satisfeito com algumas bicicletaselétricas... Seriam ótimas para esse serviço.

"Você conhece minha oficial médica, aCapita Ernst..." Fez uma pausa, hesitante;Laura conhecia uma de suas esposas, masqual delas? Era melhor cortar isso. Apagou afrase e começou de novo.

"Minha oficial, a Capitã-médica Ernst,conduziu o primeiro grupo que chegou aoMar Cilíndrico, a quinze quilômetros daqui.Verificou que se tratava de água gelada,como esperávamos – mas uma água que vocênão desejaria beber. A Dra. Ernst diz que éuma sopa orgânica diluída, contendo traçosde quase todos os compostos de carbônioque se pode imaginar, além de fosfatos, ni-tratos e uma dúzia de sais metálicos. Não háo mais leve sinal de vida – nem sequer mi-crorganismos mortos. Continuaremos, pois,ignorando tudo sobre a bioquímica dos

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ramaianos – embora seja provável que nãodiferisse tanto assim da nossa."

Alguma coisa roçou de leve o seu cabelo.Tão atarefado andava que não tivera tempode mandá-lo cortar, mas não devia esquecer-se de fazê-lo antes de pôr um capaceteespacial...

"Você viu os vídeos de Paris e das outrascidades que exploramos deste lado do Mar...Londres, Roma, Moscou. Ê impossível acred-itar que tenham sido construídas para al-guma coisa viver nelas. Paris tem o ar de umgigantesco armazém. Londres é uma coleçãode cilindros ligados entre si por tubulaçõesque, por sua vez, estão em conexão com es-truturas que são, evidentemente, postos debombeamento. Tudo está perfeitamentevedado, e não há meio de descobrir o que seoculta lá dentro a não ser usando explosivosou raios laser. Só tentaremos essas coisasquando não houver outro recurso. "Quanto aRoma e Moscou..."

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– Com licença, meu Capitão. Prioridade,vindo da Terra. "Que teremos agora?" pen-sou Norton. "Um homem não pode gozar al-guns momentos de descanso para falar àssuas famílias?"

Recebeu a mensagem das mãos do sar-gento e percorreu-a rapidamente com os ol-hos para convencer-se de que não era as-sunto imediato. Depois tornou a lê-la, maisdevagar.

Que diabo de negócio era esse ComitêRama? E por que nunca tinha ouvido falarnele? Sabia que toda sorte de associações,sociedades e grupos profissionais – algunssérios, outros completamente malucos –haviam tentado entrar em contato com ele; oControle da Missão fazia um bom trabalhode proteção e não teria deixado passar essamensagem a não ser que a considerasseimportante.

"Ventos de duzentos quilômetros...provável irrupção repentina..." Bem, isso

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dava que pensar. Mas era difícil levá-lomuito a sério, nessa noite perfeitamentecalma; e seria ridículo porem-se em fugacomo ratos assustados, quando estavamjustamente começando a explorar deverdade.

O Comandante Norton ergueu a mãopara afastar uma mecha do seu cabelo que,não sabia como, tornara a cair-lhe sobre osolhos. De repente imobilizou-se, sem com-pletar o gesto.

Havia sentido uma baforada de ventopor várias vezes durante a última hora. Eratão leve que não fizera caso nenhum; afinalde contas, comandava uma astronave, nãoum navio a vela. Até agora o movimento doar não tivera o menor interesse profissionalpara ele. Que teria feito numa situação comoesta o comandante daquele outro Endeav-our, morto havia tanto tempo?

Esta era uma pergunta que Nortonvinha fazendo a si mesmo em todos os

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momentos de crise durante os últimos anos.Era o seu segredo, que nunca revelara a nin-guém. E, como a maioria das coisas import-antes na sua vida, ocorrera de maneira com-pletamente acidental.

Fazia já vários meses que era comand-ante da Endeavour quando soube que estarecebera o nome de um dos mais famososnavios da História. É verdade que nos últi-mos quatrocentos anos houve uma dúzia deEndeavours do mar e dois do espaço, mas oantepassado de todos eles fora o carvoeiro de370

toneladas em que o Capitão JamesCook, da Real Armada Britânica, fizera avolta ao mundo entre 1768 e 1771.

Com um interesse ocioso que nãotardara a converter-se numa curiosidade ab-sorvente, quase uma obsessão, Nortonpusera-se a ler tudo que podia encontrar arespeito de Cook. Era agora, provavelmente,a maior autoridade do mundo sobre o maior

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explorador de todos os tempos, e conhecia decor trechos inteiros dos Diários.

Ainda parecia incrível que um homemsó pudesse ter feito tanto, com um equipa-mento tão primitivo. Mas Cook não somentefora um navegador inigualável como tambémum cientista e – numa época de disciplinabrutal – um humanitário. Tratava seus ho-mens com bondade, o que era raro; mashavia outra coisa, essa inaudita: exatamenteda mesma forma se conduzia com osselvagens muitas vezes hostis das novas ter-ras que ia descobrindo.

O sonho secreto de Norton, que ele sabianunca havia de realizar, era retraçar pelomenos uma das viagens de Cook ao redor domundo. Fizera uma limitada mas espetaculartentativa que certamente teria assombrado oCapitão, certa vez que voara numa órbita po-lar bem acima dos recifes da GrandeBarreira.

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Era de manhã cedo, num dia límpido, ede quatrocentos quilômetros de altura tinhadesfrutado uma soberba vista da mortíferamuralha de coral marcada por sua linha deespuma branca ao longo da costa deQueensland.

Levara um pouco menos de cincominutos para sobrevoar ps dois mil quilô-metros da Barreira. Num só relance de olhospôde abarcar semanas de perigosa navegaçãopara aquele primeiro Endeavour. E, pelotelescópio, divisara Cooktown e o estuárioonde o navio fora posto em seco para re-parações, após o seu primeiro encontroquase fatal com os recifes.

Um ano depois, uma visita à Estação deRastreamento Espacial de Havaí lhe propor-cionara uma experiência ainda mais in-esquecível. Tomara o hidrofólio para a baíade Kealakekua, e ao passar rapidamentepelas desoladas penedias vulcânicas sentiuuma intensidade de emoção que o

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surpreendeu e até o desconcertou. O guia dogrupo de cientistas, engenheiros eastronautas fizera-os passar diante do reful-gente pilone de metal que substituía o monu-mento anterior, destruído pelo grandetsunami de 2068. Caminharam sobre algunsmetros de lava negra e escorregadia para lera pequena placa à beira d'água. As maretasvinham quebrar-se sobre ela, mas Nortonapenas reparou nisso ao curvar-se para ler aspalavras:

PERTO DESTE PONTOO CAPITÃO JAMES COOKFOI MORTOEM 14 DE FEVEREIRO DE 1779A PLACA ORIGINAL FOI

INAUGURADA EM 28 DE AGOSTO DE1928

PELA COMISSÃO DOSESQUICENTENÁRIO DE COOK

E SUBSTITUÍDA PELA COMISSÃO DOTRICENTENÁRIO

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EM 14 DE FEVEREIRO DE 2079

Isso fora anos atrás e a cem milhões dequilômetros dali. Mas num momento comoeste a confortadora presença de Cook pareciamuito próxima. Nos desvãos secretos do seupensamento, ele perguntaria: "Bem, Capitão,e o senhor o que pensa disto? Era umpequeno jogo a que se entregava nas ocasiõesem que os fatos eram insuficientes para seformar um juízo sólido e tornava-se precisoconfiar na intuição. Nisso consistia, emparte, o gênio de Cook; e sempre escolhera oalvitre acertado – até o fim, na baía deKealakekua.

O Sargento esperava pacientemente en-quanto o seu comandante olhava em silêncioa noite de Rama. Já não era uma noite inin-terrupta, pois em dois pontos, a uns quatroquilômetros de distância, podiam avistar-seclaramente as débeis manchas luminosas dosgrupos de exploradores.

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"Numa emergência, posso fazê-los voltarno prazo de uma hora", pensou Norton. Eisso, por certo, seria suficiente.

Virou-se para o Sargento.– Escreva esta mensagem. "Comitê

Rama, a cuidado de Spacecom.Agradeço recomendação e tomarei pre-

cauções. Favor especificar significado da ex-pressão 'irrupção repentina'.Respeitosamente, Norton, Comandante,Endeavour."

Esperou que o sargento tivesse desa-parecido na direção das luzes resplandecen-tes do acampamento para tornar a ligar ogravador. Mas o fio de seus pensamentos serompera e não podia recuperar o estado deespírito anterior. O fim da carta teria queaguardar outra oportunidade.

Não era comum que o Capitão Cook lheacudisse quando estava negligenciando o seudever. Mas subitamente lembrou-se de que apobre Elizabeth Cook só de raro em raro e

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por breves momentos tinha visto seu maridoem dezesseis anos de vida matrimonial. Nãoobstante, dera-lhe seis filhos – e sobreviveraa todos eles.

Suas esposas, que nunca se achavam amais de dez minutos dele à velocidade da luz,não tinham por que se queixar...

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17 - PRIMAVERADURANTE as primeiras "noites" em Rama

não fora fácil dormir. A escuridão e os mis-térios que ali se ocultavam eram opressivos,mas ainda mais inquietante era o silêncio. Aausência de ruídos não é uma condição nat-ural; todos os sentidos humanos exigem al-gum grau de excitação. Se dela são privados,a mente fabrica os seus sucedâneos. E assim,muitos se tinham queixado de ouvir estran-hos ruídos – e mesmo vozes – enquantodormiam – o que era evidentemente umailusão, uma vez que os que estavam acorda-dos não tinham ouvido nada. A Capitã-médica Ernst prescrevera uma cura muitosimples e eficaz para isso; durante as horasde sono, o acampamento era agora embaladopor uma suave e discreta música de fundo.

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Nessa noite, o Comandante Nortonachou o remédio inadequado. Não cessava deaguçar o ouvido na escuridão, e sabia de queestava à escuta. Mas, embora uma levíssimaaragem lhe acariciasse o rosto de tempos atempos, não havia som algum que pudesseser interpretado como o de um vento que selevantasse ao longe. E tampouco qualquerdos grupos de exploração comunicou algofora do comum.

Em todo caso, por volta de meia-noite,hora da nave, ele ferrou no sono.

Havia sempre um homem de plantão àmesa de comunicações, para a eventualidadede alguma mensagem urgente. Não se con-sideravam necessárias quaisquer outrasprecauções.

Nem mesmo um furacão poderia terproduzido o som que o acordou, e com ele oacampamento inteiro no mesmo instante.Dir-se-ia que o céu estava caindo ou que

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Rama rachara e se estava partindo em dois.Primeiro um "crrrac!"

de rebentar os ouvidos, depois umalonga série de estrondos cristalinos, como seum milhão de estufas de vidro estivessemsendo demolidas. Isso durou vários minutos,conquanto parecessem horas; e ainda con-tinuava aparentemente distanciando-se cadavez mais, quando Norton chegou à mesa decomunicações.

– Controle Central! Que foi queaconteceu?

– Um momentinho, Capitão. É lá paraos lados do Mar. Estamos focalizando o pro-jetor sobre ele.

Oito quilômetros acima, no eixo deRama, o projetor começou a vasculhar aplanície com o seu círculo de luz. Alcançou amargem do Mar e seguiu rente a ela. A umquarto do caminho em redor da superfíciecilíndrica, imobilizou-se.

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Lá em cima, no céu – ou aquilo que amente ainda insistia em chamar o céu – algode extraordinário estava acontecendo. Aprincípio, Norton teve a impressão de que oMar houvesse entrado em ebulição. Já não semantinha imóvel e gelado, prisioneiro de uminfindável inverno; uma área enorme, dequilômetros de largura, se movia turbulenta-mente. E ia mudando de cor: uma larga faixabranca avançava através do gelo.

De repente, uma laje que media talvezum quarto de quilômetro num dos ladoscomeçou a inclinar-se para cima, como umalçapão que se abre. Lenta emajestosamente, alçou-se para o céu, re-luzindo e cintilando à luz do projetor.

Depois deslizou para trás e desapareceusob a superfície, enquanto um vagalhão deágua espumejante corria em todas asdireções a partir do ponto de submersão.

Só então o Comandante Norton com-preendeu plenamente o que estava

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acontecendo. O gelo começava a quebrar-se.Durante todos esses dias e semanas o Marestivera degelando, lá no fundo. Era difícilconcentrar-se por causa do tremendo es-trépito que ainda enchia o pequeno mundo,ecoando no seu céu, mas Norton procurouencontrar um motivo para tão dramáticaconvulsão. Quando um lago ou rio gelado de-gelava na Terra, não acontecia nada semel-hante a isto...

Mas claro! A razão era assaz evidente,agora que a coisa tinha acontecido.

O Mar estava degelando de baixo paracima, à proporção que o calor solar penet-rava o casco de Rama. E quando o gelo seconverte em água, o seu volume diminui...

De forma que o Mar se estiveraafundando sob a camada superior de gelo e adeixara sem suporte. Dia a dia, a pressão sefora acumulando; agora a banda de gelo quecircundava o equador de Rama desmoronavacomo uma ponte que perde o seu pilar

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central. Esfarelava-se em centenas de ilhasflutuantes que se iriam acotovelar e entre-chocar até que também elas se derretessem.Norton sentiu o sangue esfriar-lhe repentin-amente nas veias quando se lembrou dosplanos que faziam ainda na véspera, de al-cançar Nova Iorque em trenó...

O tumulto amainava rapidamente; aguerra entre o gelo e a água ficara temporari-amente paralisada. Dentro de algumas horas,com a crescente elevação da temperatura,venceria a água e os últimos vestígios do gelodesapareceriam.

Mas no fim da história o gelo é que seriao vencedor quando Rama tivesse dado voltaao Sol e mergulhado mais uma vez na noiteinterestelar.

Norton lembrou-se de começar a respir-ar novamente, depois chamou o grupo que seachava mais próximo do Mar. Para grandealívio dele, o Ten.

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Rodrigo respondeu em seguida. Não, aágua não chegara até eles. Nenhuma onda deressaca ultrapassara a beira da escarpa.

– De modo que agora sabemos – acres-centou com perfeita serenidade – por que ex-iste uma escarpa.

Norton concordou em silêncio; "mas istonão explica", pensou lá consigo,

"por que a escarpa é dez vezes mais altana margem meridional"...

O projetor do Cubo continuava a vascul-har o mundo. O Mar agora desperto se ia ac-almando aos poucos e já não corria aquelaespuma branca fervilhante de baixo dos ban-cos de gelo emborcados. No espaço de quinzeminutos o grosso da convulsão terminou.

Mas Rama já não era um mundo silen-cioso; tinha despertado do seu sono, e dequando em quando se ouvia o som de gelotriturado ao se chocarem dois icebergs umde encontro ao outro.

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A primavera chegara um pouco tarde,pensou Norton, mas estava findo o inverno.

E lá estava aquela brisa de novo asoprar, mais forte do que nunca. Rama otinha avisado suficientemente; eram horasde partir.

Ao aproximar-se da marca que assina-lava a metade do caminho, o ComandanteNorton sentiu-se mais uma vez grato pela es-curidão que impedia a vista para cima – epara baixo. Embora soubesse que tinhaainda por galgar mais de dez mil degraus epudesse ver, com os olhos da imaginação, aíngreme curva ascendente, o fato de sóenxergar uma pequena porção dela tornava aperspectiva mais suportável.

Esta era a sua grande ascensão, e apren-dera bastante com os seus erros na primeira.A grande tentação era subir com demasiadarapidez a essa gravidade baixa; era tão fácilgalgar cada degrau que custava adotar oritmo lento e perseverante que se fazia

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necessário. Mas, se assim não fosse, depoisde uns poucos milhares de degraus estranhasdores começavam a fazer-se sentir nas coxase nas panturrilhas. Músculos que a gentenunca soubera que existiam começavam aprotestar, e era preciso intercalar períodosde repouso cada vez mais longos. Lá pelofim, ele passara mais tempo descansando doque subindo, e mesmo assim não bastava.Andou dois dias com dolorosas cãibras naspernas que quase o teriam incapacitado senão se achasse de novo no ambiente da nave,com sua gravidade zero. De modo que estavez começara com uma lentidão poucomenos que penosa, movendo-se como umvelho. Fora o último a deixar a planície, e osoutros formavam uma fila espalhada aolongo de meio quilômetro de escadaria adi-ante dele. Podia ver-lhes as luzes que subiamo aclive invisível.

Estava profundamente descorçoado pelofracasso da sua missão, e ainda esperava que

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aquela retirada fosse apenas temporária.Quando chegassem ao cubo, poderiam esper-ar até que cessassem todas as perturbaçõesatmosféricas.

Presumivelmente, reinaria ali umacalmaria total, como no centro de umciclone, e poderiam aguardar em segurança aesperada tormenta.

Mais uma vez, estava ele tirando con-clusões precipitadas, com base em perigosasanalogias terrestres. A meteorologia de ummundo inteiro, mesmo em condições de es-tado constante, era um assunto de enormecomplexidade. Depois de vários séculos deestudos, a previsão do tempo na Terra aindanão merecia absoluta confiança. E Rama,além de ser um sistema completamentenovo, também estava sofrendo rápidasmudanças, pois a temperatura subira váriosgraus num período de poucas horas. Con-tudo, não se via ainda nenhum sinal doanunciado furacão, embora tivesse havido

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algumas débeis lufadas vindas, aparente-mente, das mais variadas direções.

Tinham já galgado cinco quilômetros, oque, nessa gravidade baixa que continuavaainda a diminuir, equivalia a menos de doisna Terra. No terceiro patamar, a três quilô-metros do eixo, descansaram durante umahora, tomando uma ligeira merenda efazendo massagens nos músculos das pernas.Era o último ponto em que podiam respirarlivremente; como os escaladores do Himalaianos velhos tempos, havia deixado ali os seussuprimentos de oxigênio, que puseram àscostas para a ascenção final.

Uma hora depois, haviam alcançado otopo da escadaria – e o começo da escada demão. Ainda tinham pela frente o últimoquilômetro, este vertical, mas afortunada-mente num campo de gravidade que nãoequivalia a mais do que uns poucos por centodo da Terra. Outros trinta minutos de des-canso, uma conferição cuidadosa do

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oxigênio, e estavam prontos para aderradeira etapa.

Mais uma vez, Norton certificou-se deque todos os seus homens tinham ido adi-ante, separados por intervalos de vinte met-ros. A partir de agora, seria uma escaladalenta e regular, extremamente enfadonha. Amelhor técnica seria esvaziar o espírito de to-do pensamento e limitar-se a contar os de-graus à medida que iam passando – cem,duzentos, trezentos, quatrocentos...

Havia chegado a mil duzentos e cin-quenta quando repentinamente notou quehavia algo de anormal. A luz que brilhavasobre a superfície vertical bem diante dosseus olhos mudara de cor – e era, agora,muito mais viva, ofuscantemente viva.

Num silencioso impacto de luz, a auroraestourou em Rama.

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18 - AURORAA LUZ era tão brilhante que pelo espaço

de um minuto inteiro Norton teve de fecharos olhos com força. Depois arriscou-se a en-treabrir um deles e fixou, por entre aspálpebras mal-e-mal separadas, a parede al-guns centímetros diante de seu rosto.Pestanejou várias vezes, esperou que as lá-grimas involuntárias acabassem de escorrer,e virou-se lentamente para contemplar aalvorada.

Não pôde suportar a luz mais do que al-guns segundos, e foi então obrigado a fecharnovamente os olhos. Não era o fulgor que eraintolerável – a ele poderia acostumar-se –mas o terrível espetáculo de Rama, agoravisto pela primeira vez em sua plenitude.

Norton sabia exatamente o que esperar;não obstante, o panorama o aturdiu. Foi

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presa de um tremor espasmódico, incon-trolável; suas mãos apertaram o degrau daescada com a violência com que alguém quese está afogando se agarra a um salva-vidas.Os músculos dos seus antebraços saltavamao mesmo tempo que as pernas, já fatigadaspor horas de escalada ininterrupta, pareciamprestes a ceder. Se não fosse a baixa gravid-ade, poderia ter caído.

Foi então que o seu treinamentomostrou quanto valia, e ele começou a apli-car o primeiro remédio contra o pânico.Ainda com os olhos fechados e procurandoesquecer o monstruoso espetáculo que ocercava, pôs-se a respirar fundo, enchendoos pulmões de oxigênio e lavando o seusangue dos venenos da fadiga.

Não tardou a sentir-se muito melhor,mas só abriu os olhos depois de fazer umacoisa mais. Foi necessário um grande esforçode vontade para obrigar sua mão direita aabrir-se – teve que lhe falar como a uma

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criança desobediente – mas pouco a poucoconseguiu que ela descesse até a cintura, de-sprendesse o cinto de segurança e engan-chasse a fivela no degrau mais próximo.Agora, acontecesse o que acontecesse, nãopoderia cair.

Norton respirou fundo, várias vezesmais; depois – ainda com os olhos fechados– ligou o seu rádio. Fez votos para que suavoz soasse calma e resoluta enquanto pro-nunciava as palavras:

– Aqui é o Capitão. Todos estão bem?À medida que conferia os nomes um por

um e ouvia as respostas de todos – ainda queum tanto trêmulas – voltaram-lhe rapida-mente a confiança e, o controle próprios.Todos os seus homens estavam sãos e salvos,e voltavam-se para ele em busca de lider-ança. Era, mais uma vez, o Comandante.

– Fiquem de olhos fechados até teremtoda a certeza de que podem aguentar isto –disse. – A vista é... esmagadora. Se alguém

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achar que não pode suportá-la, continue asubir sem olhar para trás. Lembrem-se deque dentro em pouco estarão em gravidadezero e não poderão mais cair.

Era desnecessário sublinhar um fato tãoelementar a astronautas treinados, mas opróprio Norton tinha que se lembrar disso depoucos em poucos segundos. O pensamentoda gravidade zero era uma espécie de talismãque o protegia contra todo perigo. O quequer que lhe dissessem os seus olhos, Ramanão podia arrastá-lo à sua própria destruiçãonaquela planície, oito quilômetros láembaixo.

Foi, assim, para ele, uma prementequestão de orgulho e estima própria abrir osolhos uma vez mais e olhar o mundo que ocercava. Mas, em primeiro lugar, era precisoadquirir o controle do seu corpo. Largou aescada com ambas as mãos e enganchou obraço esquerdo por baixo de um degrau.

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Cerrando e descerrando os punhos, esperouaté que se houvessem dissipado as cãibras.

Quando se sentiu completamente àvontade, abriu os olhos e lentamente virou-se para fazer face a Rama.

Sua primeira impressão foi de uma corazul. O fulgor que enchia o céu não podia serconfundido com a luz solar; assemelhava-se,antes, ao de um arco voltaico. De modo que osol de Rama, disse Norton lá consigo, deveser mais quente do que o nosso. Isso deve in-teressar aos astrônomos...

E agora compreendia a finalidadedaqueles misteriosos fossos, o Vale Retilíneoe seus cinco companheiros: eram nadamenos que gigantescas faixas luminosas.Rama tinha seis sóis lineares, simetrica-mente dispostos em torno do seu interior. Decada um deles, partia um largo leque de luzpara iluminar o lado oposto do mundo, pas-sando pelo eixo central. Norton ficou curiosode saber se eles podiam ser ligados

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alternativamente, produzindo um ciclo deluz e trevas, ou se neste planeta reinava umdia perpétuo. A contemplação demasiadolonga dessas ofuscantes barras de luz fizera-lhe doer novamente os olhos, e isso era umbom pretexto para tornar a fechá-los durantealgum tempo. Só então, quando se haviaquase refeito desse primeiro choque visual,foi que pôde consagrar-se a um problemamuito mais sério.

Quem, ou o quê, havia ligado as luzesde Rama?

Este era um mundo estéril, pelos testesmais sensíveis que o homem lhe podia apli-car. Mas agora estava acontecendo uma coisaque não podia ser explicada pela ação deforças naturais. Talvez não houvesse vida ali,mas podia haver consciência, percepção;robôs podiam estar despertando após umsono de milhões de anos. Quem sabe se essaexplosão de luz não era um espasmo não

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programado, fortuito – o último estertor demáquinas agonizantes que respondiam de-sordenadamente ao calor de um novo sol, edentro em pouco recairiam no seu estado dequiescência, desta vez para sempre?

Contudo, Norton não podia crer numaexplicação tão simples. Algumas peças doquebra-cabeças estavam começando aencaixar-se nos seus lugares, embora fal-tassem ainda muitas. A ausência de qualquersinal de desgaste, por exemplo – a sensaçãode novidade, como se Rama tivesse sido cri-ado naquele instante...

Estes pensamentos poderiam ter in-spirado medo e mesmo terror. Por algumarazão, não faziam nada disso. Bem ao con-trário, Norton experimentou um sentimentode euforia, quase de regozijo. Havia muitomais a descobrir aqui do que eles ousariamesperar. "Vamos ver o que diz o ComitêRama quando souber disto!" pensou ele.

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Depois, com calma resolução, tornou aabrir os olhos e começou a fazer um cuida-doso inventário de tudo quanto via.

Em primeiro lugar, era preciso estabele-cer um sistema de referência qualquer.Estava contemplando o mais vasto espaçofechado já visto pelo homem e necessitava deum mapa mental para orientar-se nele.

A fraca gravidade não o orientava muitonesse trabalho, pois, com um esforço davontade, podia deslocar o Para Cima e o ParaBaixo em qualquer direção que lheaprouvesse. Mas algumas direções erampsicologicamente perigosas; todas as vezesque sua mente roçava por uma delas, tinhaque desviá-la às pressas.

A mais segura de todas as hipóteses eraimaginar que ele se encontrava no fundo, emforma de concha, de um poço gigantesco,com dezesseis quilômetros de largo e cin-quenta de fundo. A vantagem dessa imagemera que não podia haver perigo de cair mais

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abaixo; não obstante, ela tinha alguns defei-tos sérios.

Norton podia fazer de conta que as vári-as cidades espalhadas aqui e ali, assim comoas áreas de diferentes cores e texturas, es-tavam todas firmemente pegadas às verti-ginosas paredes. As complexas estruturasque via pender da cúpula não eram, talvez,mais estonteantes do que os candelabros dealgum imenso salão de concertos da Terra. Oque havia de absolutamente inaceitável era oMar Cilíndrico... Lá estava ele, a meia alturado poço – uma banda de água a percorrer-lhe todo o círculo, sem nenhum meio visívelde suporte. Não podia haver dúvida de querealmente era água; tinha uma viva cor azul,pintalgada de centelhas brilhantes – os pou-cos blocos de gelo que ainda restavam. Masum mar vertical, formando uma cinturacompleta no céu, a vinte quilômetros de alti-tude, era um fenômeno tão desconcertante

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que depois de algum tempo ele começou aprocurar uma alternativa.

Foi quando, mentalmente, fez a cenagirar noventa graus. Ato contínuo, o pro-fundo poço transformou-se num compridotúnel, com uma calota em cada extremidade."Para baixo" era, evidentemente, na direçãoda escada de mão e da escadaria que acabavade subir; e, com essa nova perspectiva, Nor-ton pôde finalmente apreciar a verdadeiravisão dos arquitetos que tinham construídoaquele lugar.

Estava ele colado à superfície de uma es-carpa curva com dezesseis quilômetros de al-tura, cuja metade superior formava arco atéconfundir-se com a abóbada do que era,agora, o céu. Abaixo dele, a escada de mãodescia mais de quinhentos metros antes de irterminar no primeiro ressalto ou terraço. Aícomeçava a escadaria, que continuava quaseverticalmente a princípio, nesse regime debaixa gravidade, depois lentamente se

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tornava cada vez menos íngreme, até que,vencidos cinco outros patamares, chegava àplanície distante.

Durante os dois ou três primeiros quilô-metros ele podia ainda distinguir os degraus,que daí para diante se confundiam numafaixa contínua.

O mergulho daquela imensa escadariaera algo tão inaudito que se tornava impos-sível apreciar a sua verdadeira escala. Nortonvoara certa vez em redor do Monte Everest,cujo tamanho o enchera de pávido respeito.Lembrou a si mesmo que essa escadaria eratão alta quanto o Himalaia, mas a com-paração não fazia sentido.

E não havia comparação possível nocaso das outras duas escadarias, Beta eGama, que subiam até o céu para entãosobrepairar-lhe numa imponente curva. Nor-ton já havia adquirido suficiente confiança epôde inclinar o corpo para trás e olhá-las lá

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no alto – por um breve momento. Procurou,então, esquecer que elas estavam lá...

Com efeito, refletir demais dentro des-sas linhas evocava uma terceira imagem deRama, a qual procurava evitar a todo custo.Era o ponto de vista que o encarava, maisuma vez, como um cilindro vertical ou poço– mas então ele se encontrava no topo e nãono fundo, como uma mosca que caminha decabeça para baixo sobre um teto em cúpula,com a perspectiva de uma queda de cin-quenta quilômetros. Sempre que Nortonsentia a aproximação insidiosa dessa im-agem, necessitava de exercer toda a sua forçade vontade para não se agarrar de novo à es-cada de mão, tomado de um pânicoirracional.

Estava certo de que, com o tempo, todosesses temores declinariam. O portento e a es-tranheza de Rama perderiam os seusterrores, ao menos para aqueles que estavamtreinados em fazer face às realidades do

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espaço. Talvez ninguém que jamais houvessedeixado a Terra e visto as estrelas cercá-lopor todos os lados podia suportar tais es-petáculos. Mas, se havia quem fosse capaz deaceitá-los, disse Norton a si mesmo com in-abalável resolução, tinham de ser o comand-ante e a tripulação da Endeavour.

Olhou o seu cronômetro. Essa brevepausa de dois minutos parecia ter duradouma vida inteira. Fazendo apenas o esforçonecessário para vencer a sua inércia e ocampo gravitacional cada vez mais fraco,começou a galgar os últimos cem metros daescada vertical/ Antes de entrar na eclusa dear e voltar as costas a Rama, virou-se paradar um último e rápido olhar ao interior.

Este havia mudado, mesmo em tãobreve lapso de tempo; uma névoa se elevavado Mar. Por umas poucas centenas de met-ros, as fantasmagóricas colunas brancasmostravam uma forte inclinação para afrente, no sentido da rotação de Rama;

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depois começavam a dissolver-se num re-demoinho de turbulência, sob a ação do arque se precipitava para cima e procuravadesfazerse do seu excesso de velocidade. Osventos alísios desse mundo cilíndricocomeçavam a estampar os seus padrões nocéu; a primeira tempestade tropical em mil-hões de anos estava prestes a estalar.

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19 - UMAADVERTÊNCIA DEMERCÚRIO

HAVIA várias semanas que não se regis-trava o comparecimento da totalidade dosmembros do Comitê Rama, como sucedeunessa vez. O Professor Solomons emergiudas profundezas do Pacífico, onde estiveraestudando as operações de mineração aolongo das fossas centrais daquele oceano. E– o que não foi surpresa para ninguém – oDr. Taylor tinha reaparecido, agora quehavia pelo menos alguns indícios de queRama podia conter algo mais interessante doque meros artefatos sem vida.

O Presidente já esperava que o Dr. Carl-isle Perera se mostrasse mais assertivo e

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dogmático que de costume depois que seconfirmara o seu prognóstico de um furacãoem Rama. Para assombro de Sua Excelência,Perera foi notavelmente comedido e aceitouas congratulações de seus colegas com um artão sugestivo de embaraço quanto era pos-sível em tal homem.

Em realidade, o exobiologista estavaprofundamente mortificado. O degelo es-petacular do Mar Cilíndrico era um fenô-meno muito mais óbvio do que os vendavais– e contudo, não soubera prevê-lo. Lembrar-se de que o ar quente se eleva, mas esquecerque o gelo aquecido se contrai, era uma coisade que ele não podia orgulhar-se. Nãotardaria, contudo, a vencer essa pequenacrise e a recuperar a autoconfiança olímpicaque lhe era normal.

Quando o Presidente lhe deu a palavra,perguntando-lhe que novas alterações cli-máticas esperava, ele pôs o máximo decautela no que dizia.

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– Os senhores devem compreender quea meteorologia de um mundo tão estranhoquanto Rama pode nos reservar muitas out-ras surpresas. Mas, se os meus cálculos estãocorretos, não haverá mais tempestades e ascondições não tardarão a estabilizar-se. Atemperatura vai subir lentamente até o per-iélio – e além dele – mas isso não nos in-teressará, pois a Endeavour terá que retirar-se muito antes.

– Então, dentro em pouco se poderá vol-tar ao interior de Rama sem perigo?

– Hã... provavelmente. Dentro de quar-enta e oito horas deveremos saber comcerteza.

– Essa volta é uma necessidade imperi-osa – disse o Embaixador de Mercúrio. Te-mos de saber tudo que for possível sobreRama. A situação mudou agoracompletamente.

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– Creio que nós sabemos o que o senhorquer dizer, mas quer fazer-nos o favor de daralguns pormenores?

– Com muito gosto. Até agora, havíamospresumido que Rama fosse um mundo semvida – ou, em todo caso, um mundo não con-trolado. Mas já não podemos tratá-lo comose fosse um barco abandonado. Mesmo quenão existam formas de vida a bordo, ele podeser dirigido por mecanismos de robôs pro-gramados para cumprirem uma missãoqualquer – talvez uma missão altamente des-vantajosa para nós. Por mais desagradávelque isso seja, devemos considerar a questãoda nossa defesa.

Houve uma confusão de vozes deprotesto e o Presidente teve 'de erguer a mãopara restabelecer a ordem.

– Deixem Sua Excelência terminar! –rogou ele. – Quer a idéia nos agrade, quernão, é preciso considerá-la seriamente.

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– Com todo o respeito que se deve ao Sr.Embaixador – disse o Dr. Conrad Taylor noseu tom mais desrespeitoso, – creio que po-demos excluir como ingênuo o temor de umaintervenção malévola. Criaturas tão avança-das como são os ramaianos devem ter umamoral não menos desenvolvida. Se assim nãofosse teriam destruído uns aos outros –como estivemos a ponto de fazer no séculoXX.

Esclareci bem este ponto no meu novolivro, Ethos e Cosmos. Espero que o senhortenha recebido o seu exemplar.

– Sim, e muito obrigado, embora, infel-izmente, a premência de outros assuntos nãome tenha permitido lê-lo além da in-trodução. Todavia, a tese geral não é novid-ade para mim. Talvez não tenhamos in-tenções malévolas para com um formigueiro,mas, se desejamos construir uma casa nomesmo local...

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– Isto é tão ruim quanto as idéias dopartido pandorista! Nada menos que xenofo-bia interestelar!

– Por favor, cavalheiros! Assim não va-mos a parte alguma. O Sr.

Embaixador continua com a palavra.O Presidente enviou um olhar severo at-

ravés de trezentos e oitenta mil quilômetrosde espaço a Conrad Taylor, que se calou acontragosto, como um vulcão que aguarda hásua hora.

– Obrigado – disse o Embaixador deMercúrio. – O perigo pode ser poucoprovável, mas quando está em jogo o futuroda espécie não podemos nos arriscar.

E, se me permitem dizê-lo, a nós, osmercurianos, isso interessa particularmente.

Talvez tenhamos mais razão para nosalarmarmos do que quaisquer outros.

O Dr. Taylor emitiu um "pfu!" bemaudível, mas outra carranca proveniente daLua lhe impôs silêncio.

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– Por que Mercúrio mais do quequalquer outro planeta? – perguntou oPresidente.

– Vejam a dinâmica da situação. Ramajá se acha dentro da nossa órbita.

Que vai dar volta ao Sol e partir nova-mente para o espaço não é mais do que umasuposição. E se ele executar uma manobra defreagem? Se o fizer, será no periélio, dentrode uns trinta dias. Os meus cientistas medizem que, se toda essa mudança de velocid-ade se realizar aqui, Rama terminará numaórbita circular a apenas vinte e cinco milhõesde quilômetros do Sol. Dessa posição, poder-ia dominar o Sistema Solar.

Por longo tempo ninguém – nemmesmo Conrad Taylor – pronunciou uma sópalavra. Todos os membros do Comitê con-centravam o seu pensamento nessa gente in-tratável, os mercurianos, tão bem repres-entados ali pelo seu Embaixador.

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Para a maioria das pessoas, Mercúrioera uma imagem bastante aproximada do In-ferno. Pelo menos, servia enquanto nãoaparecesse outra pior.

Mas os mercurianos se orgulhavam doseu esquisito planeta, com seus dias maislongos do que os anos, seus duplos nascerese pores-do-sol, seus rios de metal derretido...Em comparação, a Lua e Marte e tinhamsido, por assim dizer, meras brincadeiras. Sódepois que os homens houvessem pousadoem Vênus (se algum dia lá pousassem), iriamdeparar-se com um ambiente mais hostil queo de Mercúrio.

E contudo, esse mundo se revelara, sobmuitos aspectos, a chave do Sistema Solar.Em retrospecto isso parecia óbvio, mas haviajá quase um século que durava a Era Espa-cial quando o fato foi percebido. Agora, osmercurianos nunca deixavam que ninguémos esquecesse.

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Muito antes de os homens chegarem lá,a densidade anormal de Mercúrio estava aindicar os elementos pesados que ele con-tinha; mesmo assim, a sua riqueza aindacausava pasmo, e adiara por mil anos todotemor de que os metais essenciais à civiliza-ção humana viessem a exaurir-se. É esses te-souros estavam localizados, como por en-comenda, num mundo em que a força do Solera dez vezes maior do que na frígida Terra.

Energia sem limites; metais sem limites:eis o que era Mercúrio. Seus grandes lança-foguetes magnéticos podiam enviar produtosmanufaturados a qualquer ponto do sistemasolar. O planeta também podia exportar en-ergia, tanto sob a forma de isótopos transur-anianos sintéticos como de radiação pura.

Alguém chegara a propor que se descon-gelasse um dia o gigantesco Júpiter com oslasers mercurianos, mas essa idéia não forabem recebida nos outros mundos.

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Uma tecnologia capaz de cozinharJúpiter ofereceria muitas e1 tentadoras pos-sibilidades de chantagem interplanetária.

Só o fato de se ter expressado uma talpreocupação dizia muito sobre a atitude ger-al para com os mercurianos. Eram respeita-dos pela sua rijeza e sua habilidade como en-genheiros, e admirados pela maneira comotinham conquistado um mundo tão espan-toso. Mas não os estimavam, e muito menosdepositavam neles inteira confiança.

Ao mesmo tempo, era possível apreciar-lhes o ponto de vista. Os mercurianos, se-gundo um gracejo corrente, portavam-secomo se o Sol fosse sua propriedade particu-lar. Estavam presos a ele por uma entran-hada relação de amor e ódio, como os vikingsde outrora tinham sido ligados ao mar, osnepaleses ao Himalaia e os esquimós àtundra. Sentir-se-iam os mais infelizes dosseres se alguma coisa se interpusesse entre

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eles e a força natural que lhes dominava econtrolava a vida.

Por fim o Presidente rompeu o silêncio.Ainda se lembrava do sol da índia e es-tremecia só de pensar no sol de Mercúrio.Tomava, por isso, muito a sério os mercuri-anos, embora os considerasse como rudesbárbaros tecnológicos.

– Seu argumento me parece ter algummérito, Sr. Embaixador – disse, falandolentamente. – Tem alguma proposta a fazer?

– Sim, senhor. Antes de sabermos quemedidas tomar, precisamos conhecer os fa-tos. Conhecemos a geografia de Rama – se élícito usar essa expressão – mas não fazemosidéia de suas potencialidades. E a chave detodo o problema é este: Rama possui um sis-tema de propulsão? Pode ele mudar de ór-bita? Seria muito interessante ouvir a opin-ião do Dr. Perera.

– Tenho refletido muito sobre esse as-sunto – respondeu o exobiologista. –

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Evidentemente, Rama deve ter recebido oseu impulso inicial de algum dispositivo delançamento, mas talvez não tenha sido maisque um empurrão exterior. Se, em verdade,tem propulsão instalada a bordo, não encon-tramos vestígios dela. É

certo que não há canos de descarga defoguetes nem coisa parecida em qualquerponto do casco externo.

– Podiam estar escondidos.– É verdade, mas qual seria a vantagem

disso? E onde estão os tanques de com-bustível, as fontes de energia? O casco prin-cipal é inteiriço – verificamos isso por meiode testes sísmicos. As cavidades da calotasetentrional podem ser explicadas pelo sis-tema de eclusas de ar.

– Resta, pois, a extremidade meridionalde Rama, que o Comandante Norton nãoconseguiu atingir devido àquela cintura deágua com dez quilômetros de largo. Há todasorte de mecanismos'e estruturas curiosas

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nesse Pólo Sul – os senhores viram as fotos.Para que servem, é o que ninguém sabe atéagora.

"Mas há uma coisa de que estoubastante certo. Se Rama possui de fato umsistema de propulsão, é algo completamenteinacessível aos nossos atuais conhecimentos.Teria, mesmo, de ser a fabulosa "propulsãoespacial", de que se vem falando há duzentosanos.

– O senhor não a poria fora decogitação?

– Certamente que não. Se pudermosprovar que Rama tem uma propulsão espa-cial – ainda que não aprendamos nada sobreo seu modo de operar – teremos feito umagrande descoberta. Pelo menos, saberemosque tal coisa é possível.

– Mas que é, enfim, essa propulsão es-pacial? – perguntou o Embaixador da Terranum tom de voz meio queixoso.

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– Qualquer sistema de propulsão, SirRobert, que não funcione com base noprincípio do foguete. O termo antigravidade– se isso é possível – seria muito apropriado.De momento, não sabemos onde procuraruma tal propulsão e a maioria dos cientistasduvidam que ela exista.

– Não existe – atalhou o Prof. Davidson.– Newton estabeleceu isso uma vez por to-das. Não se pode ter ação sem reação>Aspropulsões espaciais são um contra-senso,podem crer no que lhes digo.

– Talvez o senhor tenha razão – replicouPerera com uma brandura desacostumada. –Mas, se Rama não tem uma propulsão espa-cial, não tem propulsão nenhuma. Simples-mente não há espaço para um sistema depropulsão convencional, com os seusenormes tanques de combustível.

– É difícil imaginar um mundo inteirosendo empurrado de cá para lá – disse

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Dennis Solomons. – Que aconteceria aos ob-jetos que vão no seu interior?

Seria preciso aparafusar tudo. Extrema-mente incômodo.

– Bem, a aceleração seria provavelmentemuito baixa. O maior problema seria a águado Mar Cilíndrico. Como impedir que ela... AVoz de Perera apagouse de repente e seus ol-hos se vidraram. Parecia estar à beira de umacrise epiléptica ou mesmo de um ataquecardíaco. Os colegas olhavam-no alarmados;mas, refazendo-se subitamente, ele deu ummurro na mesa e gritou:

– Pois claro! Isso explica tudo! A es-carpa meridional! Agora sim, faz sentido!

– Não para mim – resmungou o Em-baixador da Lua, exprimindo o sentir de to-dos os presentes.

– Vejam esta seção longitudinal deRama – continuou Perera, alvoroçado, des-dobrando o seu mapa. – Têm as suas cópiasaí? O Mar Cilíndrico está contido entre duas

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escarpas, que circundam completamente ointerior de Rama. A do norte só tem cin-quenta metros de altura; a do sul, por outrolado, se eleva a quase meio quilômetro dealtitude. Por que essa diferença? Ninguém,até agora, pôde encontrar uma razãoplausível.

"Mas suponhamos que Rama seja real-mente capaz de propelir a si mesmo,

– acelerando de modo que a extremid-ade norte fique virada para a frente. A águado Mar tenderia a mover-se para trás; seunível subiria no sul, talvez centenas de met-ros. Daí a escarpa. Vejamos...

Perera começou a rabiscar com frenéticarapidez no seu bloco. Ao cabo de um tempoespantosamente curto – não podia terdurado mais de vinte segundos – alçou acabeça com um ar triunfante.

– Dada a altura dessas escarpas, pode-secalcular o máximo de aceleração que Rama écapaz de receber. Se fosse superior a dois por

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cento de gravidade, o mar transbordariasobre o continente meridional.

– Um cinquenta avôs de g? Não é muito.– É, sim – para uma massa de dez mil-

hões de megatons. Não se faz necessáriomais para manobras astronômicas.

– Muito obrigado, Dr. Perera. – disse oEmbaixador de Mercúrio. – O senhor nosdeu bastante assunto para reflexão. Sr. Pres-idente... podemos encarecer ao ComandanteNorton a importância de inspecionar a re-gião polar sul?

– Ele está fazendo o possível. O Mar é oobstáculo, naturalmente. Estão tentandoconstruir uma espécie de jangada – para verse ao menos conseguem chegar até NovaIorque.

– Talvez a região do Pólo Sul seja aindamais importante. Enquanto isso, tencionolevar estes assuntos à atenção da AssembléiaGeral. Posso contar com a aprovação dossenhores?

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Não houve objeções, nem mesmo porparte do Dr. Taylor. Mas, justamente quandoos membros do comitê se preparavam paradesligar o circuito, Sir Lewis alçou & mão.

O velho historiador falava muito rara-mente; quando o fazia, todos escutavam.

– Talvez venhamos a descobrir queRama é... ativo, e tem essas potencialidades.Em questões militares há um velho rifão, se-gundo o qual potencialidade não implicaintenção.

– Quanto tempo devemos esperar paradescobrir que intenções ele traz consigo? –perguntou o mercuriano. – Quando asdescobrirmos, talvez seja tarde demais.

– Já é tarde demais. Nada podemosfazer para influenciar Rama. Duvido,mesmo, que isso nos tenha sido possível emalgum momento.

– Não reconheço isso, Sir Lewis. Po-demos fazer muita coisa ainda... se for ne-cessário. Mas o tempo é muito curto. Rama é

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um ovo cósmico que está sendo chocadopelas chamas do Sol. Pode descascar aqualquer momento.

O Presidente do Comitê olhou para oEmbaixador de Mercúrio com indisfarçadopasmo. Poucas vezes havia sentido tamanhasurpresa em toda a sua carreira diplomática.

Jamais teria sonhado que um mercuri-ano fosse capaz de exprimir-se em lin-guagem tão poética.

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20 - APOCALIPSESEMPRE que alguém da sua tripulação o

chamava de "Comandante" ou – o que eraainda pior – de Sr. Norton, tratava-se de al-gum assunto grave. Não se lembrava de terjamais ouvido Boris Rodrigo dirigir-se a elenesses termos, de modo que a coisa devia serduplamente grave. O Capitão-de-corvetaRodrigo era uma pessoa muito séria eponderada.

– Qual é o problema, Boris? – pergun-tou depois que a porta da cabina se fechouatrás deles.

– Desejava a sua permissão, Comand-ante, para usar a prioridade da Nave, poisquero enviar uma mensagem à Terra.

Isto era realmente incomum, emboranão sem precedentes. Os sinais de rotinaeram encaminhados ao mais próximo posto

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planetário de retransmissão – de momento,estavam se comunicando através de Mer-cúrio – e, embora o tempo de trânsito fosseuma questão de minutos, muitas vezes umamensagem levava cinco ou seis horas parachegar à escrivaninha do destinatário. Emnoventa e nove por cento dos casos isso erasuficiente; mas, numa emergência, podia-seempregar canais mais diretos e muito maisdispendiosos, ao alvitre do comandante.

– Você sabe, naturalmente, que é pre-ciso me dar uma boa razão para isso.

Toda a nossa faixa de onda disponível jáestá atulhada com transmissões de dados.Trata-se de uma emergência pessoal?

– Não, Comandante. Ê um assuntomuito mais importante. Quero mandar umamensagem à Madre Igreja.

"Ahã", disse o Comandante lá consigo."Que faço eu agora?"

– Gostaria muito se você explicasse.

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Não foi a simples curiosidade que in-spirou este pedido de Norton, emborahouvesse certamente curiosidade. Se desse aBoris a prioridade solicitada, teria de justifi-car a sua ação.

Os calmos olhos azuis fitavam os seus.Nunca ouvira dizer que Boris houvesse per-dido o autocontrole, que deixasse, por ummomento, de ser completamente senhor desi. Todos os Cosmo-Christers eram assim –um dos benefícios da sua fé, que contribuíapara fazer deles excelentes astronautas. Àsvezes, porém, a sua certeza inabalável era umtantinho exasperante para os infortunados aquem fora negada a Revolução.

– É a respeito da finalidade de Rama,Comandante. Creio que a descobri.

– Continue.– Considere a situação. Temos aí um

mundo completamente vazio e sem vida; e,contudo, é apropriado aos seres humanos.Possui água e uma atmosfera que nós

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podemos respirar. Vem das remotas profun-dezas do espaço, visando com precisão aosistema solar – uma coisa completamente in-crível, se fosse obra do puro acaso. E não sóparece novo, mas tem o ar de nunca ter sidousado.

"Todos nós temos refletido sobre issodúzias de vezes", pensou Norton.

Que poderia Boris acrescentar de novo?– Nossa fé nos ensinou a esperar uma

visitação como esta, só que não sabemos ex-atamente que forma ela assumirá. A Bíbliadá algumas indicações. Se este não é o Se-gundo Advento, pode ser o Segundo Juízo: ahistória de Noé é a descrição do primeiro.Acredito que Rama é uma Arca cósmica, quefoi mandada para cá a fim de salvar...aqueles que merecem ser salvos.

Por um tempo bastante longo reinousilêncio na cabina do Comandante.

Não é que Norton não encontrasse pa-lavras com que se expressar. Ao contrário,

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podia imaginar um número excessivo de per-guntas, mas não sabia ao certo quais delasseria prudente fazer.

Finalmente fez este comentário, no tommais benigno e inofensivo que pôde arranjar:

– Esta é uma concepção muito interess-ante e, embora eu não compartilhe a sua fé, étantalizantemente plausível.

Não estava sendo hipócrita nem lison-jeiro. Despida de suas conotações religiosas,a teoria de Rodrigo era, pelo menos, tão con-vincente quanto meia dúzia de outras que eletinha ouvido expor. Suponhamos que umacatástrofe estivesse prestes a abater-se sobrea raça humana e uma inteligência superior ebenévola o soubesse: isso explicaria tudoperfeitamente. Contudo, ainda restavam al-guns problemas...

– Permita-me fazer um par de pergun-tas, Boris. Rama estará no periélio dentro detrês semanas; aí rodeará o Sol e deixará oSistema Solar com a mesma rapidez com que

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veio. Não há muito tempo para um Dia doJuízo, ou para embarcar aqueles que... hã...foram escolhidos – como quer que isso sefaça.

– É verdade. De modo que, quandochegar ao periélio, Rama terá de desacelerare entrar numa órbita de estacionamento –provavelmente tendo como afélio a órbita daTerra. Aí talvez faça outra mudança de velo-cidade e vá ao encontro da Terra.

Estas palavras eram perturbadoramentepersuasivas. Se Rama queria ficar no SistemaSolar, estava fazendo exatamente o que erapreciso para isso. O modo mais eficiente dedesacelerar era chegar tão perto do Solquanto possível e executar ali a manobra defreagem. Se houvesse algo de verdadeiro nateoria de Rodrigo – ou em alguma varianteda mesma – não tardaria a ser posto à prova.

– Mais uma perguntinha, Boris. Quemestá controlando Rama agora?

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– Não há nenhuma doutrina que es-clareça este ponto. Poderia ser um purorobô. Ou poderia ser um... espírito. Aí estápor que não foi encontrada nenhuma formade vida biológica.

O asteróide assombrado: por que tin-ham estas palavras surgido das profundezasda memória? Norton lembrou-se então deum continho ridículo que lera anos atrás,mas achou melhor não perguntar a Boris se oconhecia também.

Duvidava que o outro tivesse gosto poresse gênero de leitura.

– Vou lhe dizer o que faremos, Boris –disse ele, decidindo-se repentinamente.Queria pôr fim à entrevista antes que se tor-nasse demasiado espinhosa e julgou ter en-contrado uma boa saída. – Você pode resum-ir suas idéias em menos de... digamos, milpalavras?

– Creio que posso.

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– Pois bem, se conseguir dar-lhes aforma de uma teoria científica coerente, eu aenviarei, com prioridade absoluta, ao ComitêRama. Pode-se mandar ao mesmo tempouma cópia à sua Igreja, e assim todos ficarãosatisfeitos.

– Obrigado, Comandante. Realmente,eu lhe fico muito grato.

– Não estou fazendo isto para salvar aminha consciência. Gostaria de ver a im-pressão que vai produzir no Comitê. Emboranão concorde com você em toda a linha,talvez tenha acertado com alguma coisamuito importante.

– Bom, nós o saberemos quando estiver-mos no periélio, não é verdade?

– Sim, saberemos no periélio.Depois que Boris Rodrigo se retirou,

Norton chamou a ponte de comando e deu anecessária autorização. Pensava ter resolvidoo problema com bastante habilidade; além

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disso, na hipótese de que Boris estivesse coma razão...

Ele podia ter aumentado suas chancesde ser um dos que se salvariam.

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21 - DEPOIS DATEMPESTADE

ENQUANTO OS quatro homens passavam,flutuando como nuvens viajantes, ao longodo corredor, tão já seu conhecido, do com-plexo Alfa de eclusas de ar, Norton pergun-tou a si mesmo se a impaciência não os teriafeito esquecer a cautela. Haviam esperado abordo da Endeavour durante quarenta e oitohoras – dois dias preciosos – prontos parauma retirada instantânea, se os aconteci-mentos a justificassem. Mas nada aconte-cera. Os instrumentos deixados em Ramanão tinham detectado nenhuma atividadefora do comum. A câmara de televisão in-stalada no Cubo fora ofuscada por um frus-trativo nevoeiro que reduzira a visibilidade a

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cinco metros e só agora começava a dissipar-se.

Quando fizeram funcionar o mecanismoda última porta da eclusa e saíram flutuandopara a cama-de-gato de cordas de segurançaem volta do Cubo, o que primeiro impres-sionou Norton foi a mudança da luz. Já nãoera aquele azul agressivo, porém muito maistemperado e suave, lembrando um dia de sole bruma na Terra.

Olhou ao longo do eixo daquele mundoe nada pôde ver exceto um túnel branco, bril-hante e vazio de quaisquer acidentes, que sealongava até as esquisitas montanhas doPólo Sul. O interior de Rama estava com-pletamente amortalhado por nuvens, semnenhuma aberta visível. A superfície superi-or da camada de nuvens era nitidamentedefinida; formava um cilindro menor dentrodo cilindro maior que era esse mundo rotat-ivo, deixando uma alma central com cinco ouseis quilômetros de diâmetro, perfeitamente

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clara com exceção de alguns fiapos perdidosde cirro.

O imenso tubo de nuvem era iluminadode baixo para cima pelos seis sóis artificiaisde Rama. As localizações dos três situadosneste continente setentrional era claramentedefinida por bandas de luz difusa, mas osque ficavam no outro lado do Mar Cilíndricose confundiam numa só banda contínua erebrilhante.

"Que estará acontecendo lá longe, em-baixo dessas nuvens?" perguntou Norton a simesmo. Mas pelo menos a tempestade, queas havia centrifugado com tão perfeita si-metria em torno do eixo de Rama, já amain-ara. A não ser que houvesse outrassurpresas, podia-se descer sem perigo.

Pareceu apropriado, nessa segunda vis-ita, usar a mesma turma que realizara aprimeira penetração profunda no interior deRama. O Sargento Myron – como todos osoutros membros da tripulação da Endeavour

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– satisfazia plenamente, agora, os requisitosfísicos da Médica-Chefe Ernst; afirmava até,com uma sinceridade muito convincente,que nunca mais tornaria a vestir os seus vel-hos uniformes.

Enquanto olhava Mercer, Calvert eMyron "nadarem" rápidos e despreocupadosescada de mão abaixo, Norton lembrou-se dequanto as coisas haviam mudado. Naprimeira vez, tinham descido no frio e na es-curidão; agora, iam a caminho da luz e docalor. E, nas visitas anteriores, tinham a con-vicção de que Rama era um mundo morto.Isso ainda podia ser verdade, no sentido bio-lógico. Mas algo se movia ali; e a expressãode Boris Rodrigo servia tão bem como outraqualquer. O espírito de Rama haviadespertado.

Quando alcançaram a plataforma ao péda escada de mão e se preparavam paracomeçar a descer a escadaria, Mercerrealizou o seu teste habitual da atmosfera.

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Havia certas coisas que ele nunca aceitavasem exame; ainda que as pessoas ao seuredor estivessem respirando tranquilamente,confortavelmente, sem aparelhos auxiliares,tinham-no visto algumas vezes deterse parafazer uma testagem do ar antes de abrir o seucapacete. Quando lhe pediam que justificassetal excesso de cautela, respondia:

– É porque os sentidos humanos nãomerecem inteira confiança, aí está. A gentepode sentir que está perfeitamente bem, darmais uns passos e cair de cara no chão àpróxima respiração profunda.

– Olhou o seu medidor e exclamou:– Raios!– Que é que há? – perguntou Calvert.– Está pifado. A indicação é muito alta.

Estranho, nunca vi isto acontecer antes. Voutestar no meu circuito respiratório.

Ligou o pequeno e compacto analisadorno ponto de testagem do seu suprimento de

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oxigênio, depois ficou alguns momentos re-fletindo em silêncio.

Seus companheiros o olhavam com an-siedade e preocupação; tudo que perturbasseKarl devia ser algo muito sério.

Desligou o medidor, usou-o para colhernovamente uma amostra da atmosfera deRama, depois chamou o Controle Central.

– Capitão! Quer fazer uma leitura deO2?

A resposta levou muito mais tempo achegar do que o pedido justificava.

Por fim a voz de Norton falou:– Acho que o meu medidor não está fun-

cionando bem. Um lento sorriso se espalhousobre a cara de Mercer.

– Cinquenta por cento mais alto, não é?– Sim; que significa isto?– Significa que podemos tirar nossas

máscaras. Não é uma beleza?

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– Não estou certo disso – replicou Nor-ton, ecoando o sarcasmo da voz de Mercer. –Parece bom demais para ser verdade.

Não era preciso dizer mais nada. Comotodos os astronautas, o Comandante Nortonolhava com profunda desconfiança tudo quefosse bom demais para ser verdade.

Mercer entreabriu um tudo-nada a suamáscara e fungou cautelosamente.

Pela primeira vez nessa altitude, o ar eraperfeitamente respirável. O cheiro bolorentode coisa morta havia desaparecido; o mesmosucedera com a excessiva sequidão, que an-teriormente havia causado vários distúrbiosrespiratórios. A umidade alcançava agora apasmosa cifra de oitenta por cento; in-dubitavelmente, o descongelo do Mar era re-sponsável por esse fato. Havia algo de mor-macento no ar, se bem que a sensação nãofosse desagradável. Era como uma noite deverão em alguma costa tropical, pensou Nor-ton. O clima do interior de Rama havia

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melhorado surpreendentemente naqueles úl-timos dias...

E por quê? O aumento de umidade nãoera problema; muito mais difícil de explicarera aquela elevação surpreendente do teor deoxigênio. Ao mesmo tempo que recomeçavaa descida, Mercer deu início a uma longasérie de cálculos mentais. Não tinha, porém,chegado a nenhum resultado satisfatórioquando penetraram na camada de nuvens.

Foi uma experiência impressionante,pois a transição era muito abrupta.

Em dado momento, estavam escor-regando para baixo com ar claro, segurandoo metal liso do corrimão para não ganharemvelocidade muito depressa nessa região deum quarto de gravidade, quando, de súbito,penetraram num ofuscante nevoeiro brancoe a visibilidade baixou a uns poucos metros.Mercer freou de maneira tão repentina queCalvert quase veio chocar-se contra ele;Myron é que realmente se chocou contra

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Calvert, por pouco não o jogando fora dabalaustrada.

– Calma! – disse Mercer. – Vamos abrirmais a fila, de modo que mal possamos veruns aos outros. E não se deixem acelerar,pois eu posso ser obrigado a parar derepente.

Num fantasmagórico silêncio, continu-aram a descer escorregando através do ne-voeiro. Calvert conseguiu ainda ver Mercercomo uma vaga sombra dez metros adiantedele, e quando olhava para trás distinguiu ovulto de Myron às suas costas, separado pelamesma distância. Sob certos aspectos, issoera ainda mais fantástico do que descer naescuridão total da noite ramaiana; naquelaocasião, pelo menos, a luz do projetor lhesmostrava o caminho. Mas agora, era comomergulhar em alto mar com poucavisibilidade.

Impossível calcular que distânciahaviam percorrido. Calvert conjeturou que

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estivessem quase a alcançar o quarto nívelquando Mercer repentinamente tornou afrear. Depois que os três se reuniram, elecochichou:

– Prestem atenção! Vocês não ouvem al-guma coisa?

– Sim – disse Myron depois de escutardurante um minuto. – Parece ser o vento.

Calvert tinha suas dúvidas. Voltou acabeça para todos os lados, procurando de-terminar a direção de onde provinha o de-bilíssimo murmúrio que chegava até eles at-ravés do nevoeiro. Por fim abandonou a tent-ativa como inútil.

Continuaram a descida, alcançaram oquarto nível e partiram para o quinto. O somia se tornando cada vez mais forte – e maisobsessivamente familiar. Estavam na metadedo quarto lance de escadaria quando Myrongritou:

– Agora reconhecem?

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Teriam identificado o som há muitotempo se fosse algo que pudessem associarcom qualquer mundo que não fosse a Terra.Através da neblina, vindo de uma origemcuja distância não podia ser avaliada,chegava aos ouvidos dos três homens o re-boar ininterrupto de uma cascata. Algunsminutos depois o teto de nuvens cessou tãoabruptamente como havia começado. Os trêsmergulharam na intensa claridade do dia ra-maiano, que a luz refletida pelas nuvensbaixas tornava mais ofuscante ainda. Lá es-tava a já conhecida planície curva – agoramais aceitável ao espírito e aos sentidosporque já não se podia ver o seu círculo com-pleto. Não era muito difícil fazer de contaque estavam olhando ao longo de um largovale e que a curva ascendente do Mar era emrealidade uma curva para fora.

Pararam na quinta e penúltima plata-forma a fim de informar que haviam atraves-sado a cobertura de nuvens e proceder a uma

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cuidadosa observação do terreno. Tantoquanto pudessem ver, nada mudara lá em-baixo na planície; mas cá em cima, na cúpulasetentrional, Rama havia engendrado umnovo portento.

Era essa, pois, a origem do som que tin-ham ouvido! Descendo de uma fonte ocultaentre as nuvens a três ou quatro quilômetrosdali, havia uma catarata, que por longosminutos eles contemplaram em silêncio,quase sem poder acreditar nos seus olhos. Alógica lhes dizia que nesse mundo rodopi-ante nenhum objeto em queda livre podiamover-se em linha reta, mas havia qualquercoisa de horrivelmente inatural numa quedadágua que se curvava lateralmente para irterminar a muitos quilômetros do pontosituado diretamente abaixo da sua origem...

– Se Galileu tivesse nascido nestemundo – disse Mercer afinal, – teria en-louquecido procurando deduzir as leis dadinâmica.

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– Pois eu, que pensava conhecê-las, es-tou enlouquecendo de qualquer jeito – rep-licou Calvert. – Isto não o perturba,Professor?

– Por que havia de me perturbar? –disse o Sargento Myron. – É uma demon-stração perfeitamente natural do Efeito deCoriolis. Quem me dera poder mostrar isto aalguns de meus alunos!

Mercer contemplava pensativo a faixalíquida do Mar Cilíndrico que circundavaRama.

– Repararam no que aconteceu à água?– perguntou finalmente.

– É verdade, já não é tão azul. Eu diriaque ficou verde-ervilha. Que significa isso?

– Talvez o mesmo que significa naTerra. Laura disse que o Mar era uma sopaorgânica à espera de que algo a sacudissepara cobrar vida.Talvez tenha sido exata-mente isso o que aconteceu.

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– No espaço de dois dias! Na Terra, le-vou milhões de anos a acontecer.

– Trezentos e setenta e cinco milhões,de acordo com as últimas estimativas. Entãofoi daí que veio o oxigênio! Rama passoucomo um relâmpago pelo estádio anaeróbioe chegou às plantas fotossintéticas... emcerca de quarenta e oito horas. Queproduzirá ele amanhã?

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22 - SINGRAR OMAR CILÍNDRICO

OUTRO CHOQUE OS esperava ao pé da es-cadaria. No começo, pareceu que algumacoisa havia atravessado o acampamento, der-rubando aparelhos e até reunindo pequenosobjetos e levando-os consigo. Após um breveexame, porém, o sentimento de alarmacedeu o lugar a um aborrecimentoenvergonhado.

O único culpado era o vento. Emborativessem amarrado todos os objetos soltosantes de partir, algumas cordas deviam terrebentado sob o tirão de rajadas excepcional-mente fortes. Vários dias se passaram atéque conseguissem recuperar todas as suaspropriedades dispersas. Fora isso, não pare-cia ter havido alterações de vulto. O próprio

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silêncio de Rama voltara a reinar, agora queestavam findas as efêmeras tormentas deprimavera. E lá longe, na orla da planície,havia um mar calmo à espera do primeironavio num milhão de anos.

– Um barco novo não deve ser batizadocom uma garrafa de champanha?

– Mesmo que tivéssemos champanha abordo, eu não permitiria tão criminoso des-perdício. De todo modo, agora é tarde. Jálançamos o barco. ,

– Pelo menos, flutua. Você ganhou aaposta, Jimmy. Pagarei quando voltarmos àTerra.

– É preciso dar-lhe um nome. Alguémtem uma idéia?

O objeto destes comentários poucolisonjeiros balouçava-se junto aos primeirosdegraus da escadaria que conduzia ao MarCilíndrico. Era uma pequena jangada con-struída com seis tambores vazios e uma levearmação metálica. Sua construção,

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montagem no acampamento Alfa e trans-porte a reboque, sobre rodas desmontáveis,através de mais de dez quilômetros deplanície, haviam absorvido todas as energiasda tripulação durante vários dias.

Era um empate de capital humano queprecisava render.

O prêmio valia o risco. As enigmáticastorres de Nova Iorque, que reluziam a cincoquilômetros de distância na luz sem som-bras, os tinham intrigado desde que penet-raram em Roma. Ninguém duvidava de que acidade – ou fosse lá o que fosse – era o ver-dadeiro coração daquele mundo. Tinham dealcançar Nova Iorque, ainda que nãofizessem outra coisa.

Ainda não achamos um nome, Capitão.Que pensa o senhor?

Norton riu e ficou subitamente sério.– Eu tenho um. Chamem de Resolution.– Por quê?

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– Era uma das naus do Capitão Cook.Bonito nome. Meus votos são de que nossajangada faça jus a ele.

Houve um silêncio pensativo, e final-mente a Sargenta Barnes, que fora a princip-al responsável pelo desenho, solicitou trêsvoluntários. Todos os presentes ergueram amão.

– Lamento, mas só temos quatrocasacos salva-vidas. Boris, Jimmy, Pieter...Vocês já foram marinheiros. Vamosexperimentá-la.

Ninguém estranhou que uma sargentativesse assumido o comando das atividades:Ruby Barnes era a única que tinha carta decapitão a bordo, e isso resolvia a questão.Havia navegado trimarãs de corrida de umlado ao outro do Pacífico e uns poucos quilô-metros de calmaria podre não poderiam rep-resentar um desafio para as suas habilidades.

Desde que vira pela primeira vez o Martinha resolvido fazer essa viagem.

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Havia milênios que o homem vinha ar-rostando as águas do seu próprio mundo enunca marinheiro algum enfrentara algo quemesmo remotamente se parecesse comaquilo. Nos últimos dias, obsedara-a umatola taodinha que não podia libertar-se. "Sin-grar o Mar Cilíndrico..." Pois era exatamenteisso o que ia fazer.

Seus passageiros instalaram-se nos as-sentos improvisados e Ruby ligou o acel-erador. O motorzinho de vinte quilowattscomeçou a roncar, a transmissão por cor-rente da engrenagem de redução fez corocom ele e a Resolution saltou para a frentesob os aplausos dos espectadores. Ruby es-perava obter 15km/h com aquela carga, masse contentaria com qualquer cifra superior adez. Haviam marcado uma pista de meioquilômetro ao longo da escarpa e o percursode ida e volta foi completado em cincominutos e meio. Fazendo-se o desconto dotempo necessário para dar a volta, isso

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correspondia a 12 km/h, o que satisfez Rubyplenamente.

Sem força, mas com três vigorosos re-madores a ajudá-la, Ruby podia conseguirum quarto dessa velocidade; portanto,mesmo que o motor falhasse estariam devolta num par de horas. As baterias extrafortes podiam fornecer energia suficientepara circunavegar o mundo ramaiano; paramaior segurança, Ruby levava duas desobressalente. E, agora que a cerração se dis-sipara completamente, mesmo uma marin-heira cautelosa como ela não vacilou emlançar-se ao mar sem bússola.

Fez uma bela continência ao pôr o pé emterra.

– Viagem inaugural da Resolution com-pletada com êxito, senhor. Aguardo agorasuas ordens.

– Muito bem... Almirante. Quando es-tarão prontos para partir?

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– Logo que as provisões forem colocadasa bordo e o Capitão do Porto nos der licença.

– Então partiremos ao amanhecer.– Sim, senhor.Cinco quilômetros de água não parecem

grande coisa num mapa; o caso é bem difer-ente quando se está no meio dela. Haviaapenas dez minutos que navegavam, e a es-carpa de cinquenta metros que fazia face aocontinente setentrional já parecia sur-preender longe. Mas Nova Iorque, misteri-osamente, não dava a impressão de ter-seaproximado nem um pouco...

Contudo, a maior parte do tempo derampouca atenção à terra, tão absortos estavamna contemplação do portentoso Mar. Já nãodiziam as piadas nervosas que tinham pontu-ado o começo da travessia; esta nova exper-iência era por demais assoberbante.

Todas as vezes que pensava ter-se acos-tumado a Rama, dizia Norton de si para si,vinha ele com um novo prodígio. Ã medida

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que a Resolution avançava, firme no seurumo, parecia cada vez mais que a pequenajangada fora apanhada num entresseio deondas gigantescas – ondas que se con-tinuavam à direita e à esquerda até se torn-arem verticais, depois continuavam a curvar-se até se encontrarem formando um arcolíquido dezesseis quilômetros acima dascabeças dos navegantes. A despeito de tudoque lhes diziam a razão e a lógica, nenhumdeles podia fugir por muito tempo à im-pressão de que a qualquer instante aquelesmilhões de toneladas desabariam do céusobre eles.

Em que pese a isso, o sentimento pre-dominante era de euforia; havia umasensação de perigo, sem nenhum perigo real.A menos, naturalmente, que também o Marlhes reservasse novas surpresas.

Essa era uma evidente possibilidade,pois como tinha adivinhado Mercer, a água,agora, estava cheia de vida. Cada tonelada

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continha milhares de microrganismos esféri-cos, monocelulares, semelhantes às maisprimitivas formas de plâncton que haviamexistido nos oceanos da Terra.

Contudo, havia diferenças inexplicáveis.Esses microrganismos careciam de núcleo,assim como de muitos outros requisitos mín-imos das mais rudimentares formas de vidana Terra. E embora Laura Ernst – que agoraacumulava as funções de pesquisadoracientífica com as de médica de bordo –tivesse provado que eles positivamentegeravam oxigênio, seu número era muitopequeno para explicar o aumento da atmos-fera de Rama. Deviam existir aos milhões, enão apenas aos milhares.

Foi quando descobriu que esse númerodiminuía rapidamente e devia ter sido muitomais alto durante as primeiras horas daalvorada ramaiana. Era como se tivessehavido uma breve explosão de vida, recapitu-lando, numa escala cronológica trilhões de

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vezes mais rápida, a história primitiva daTerra. Agora, talvez se tivesse exaurido; osmicrorganismos arrastados pelas correntesse estariam desintegrando, devolvendo aoMar as suas reservas de substânciasquímicas.

– Se tiverem de salvar-se a nado – avis-ara a Dra. Ernst, – conservem a bocafechada. Umas poucas gotas não lhes farãomal, se as cuspirem fora imediatamente. Mastodos esses estranhos sais metálicos dão umamistura bastante venenosa, e eu teria um tra-balho infernal para descobrir um antídoto.

Por sorte, esse perigo parecia muito im-provável. A Resolution podia continuar àtona se um de seus dois tanques de flutuaçãosofresse uma ruptura.

(Ao ouvir isto, Calvert murmurara:“Lembrem-se do Titanic!” ) E, mesmo quefosse a pique, os toscos mas eficientescasacos salva-vidas conservariam as cabeçasdos náufragos acima d'água. Se bem que

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Laura tivesse relutado em dar uma respostapositiva à questão, não pensava que umaspoucas horas de imersão no Mar seriamfatais; entretanto, não o recomendava.

Após vinte minutos de navegação inin-terrupta, Nova Iorque já não era uma ilhadistante. Tornava-se uma localidade con-creta, e detalhes que eles só tinham vistocom o auxílio de telescópios ou de ampli-ações fotográficas se revelavam agora comoestruturas sólidas e maciças. E uma coisanotável se evidenciava: que a "cidade", comotantas coisas em Rama, era triplicada; con-sistia em três complexos ou superestruturascirculares idênticas, elevando-se de umlongo fundamento oval. As fotografias tira-das do Cubo também indicavam que cadacomplexo, por sua vez, se dividia em trêscomponentes iguais, como um pastelão, emtrês setores de 120 graus. Isso simplificariamuito o trabalho de exploração; presumivel-mente, bastava examinar uma nona parte de

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Nova Iorque e ter-se-ia visto uma cidade in-teira. Mesmo isso, porém, seria um for-midável empreendimento, pois importavaem investigar pelo menos um quilômetroquadrado de edifícios e maquinaria, algunsdos quais se elevavam a centenas de metrosacima do solo. Os ramaianos, ao que parecia,tinham levado a um alto grau de perfeição aarte tríplice da redundância. Isso era demon-strado pelo sistema de eclusas de ar, as es-cadarias que partiam do Cubo, os sóisartificiais.

E, onde isso realmente importava,haviam inclusive dado o passo seguinte.Nova Iorque era um exemplo de redundânciatriplamente tríplice.

Ruby governou a Resolution na direçãodo complexo central, onde um lance de es-cada conduzia da superfície da água ao topodo muro ou dique que circundava a ilha.Havia até um pilar muito bem colocado, aoqual se podiam amarrar botes.. Ao ver isso,

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Ruby ficou toda alvoroçada; agora, nãoficaria satisfeita enquanto não descobrisseuma das embarcações em que os ramaianossingravam o seu extraordinário mar.

Norton foi o primeiro a pisar em terra.Virou-se para seus três companheiros edisse:

– Esperem aqui no barco enquanto eusubo ao alto do muro. Quando eu abanarcom a mão, Pieter e Boris irão ter comigo.Você fica no leme, Ruby, de modo que pos-samos nos fazer ao largo ao primeiro sinal.Se me acontecer alguma coisa, comunique aKarl e siga as ordens dele. Use o seu dis-cernimento, mas olhe lá: nada de heroísmos.Entendeu?

– Sim, Capitão. Boa sorte!O Comandante Norton não acreditava

realmente na sorte; nunca se metia numasituação enquanto não tivesse analisado to-dos os fatores em jogo e garantido uma linhade retirada. Mas, uma vez mais, Rama o

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estava forçando a violar uma de suas sagra-das regras. Quase todos os fatores, aqui,eram desconhecidos – tão desconhecidosquanto o Pacífico e os recifes da Grande Bar-reira tinham sido para o seu herói, três sécu-los e meio atrás... Sim, desta vez não seriademais um pouco de sorte.

A escada era uma duplicata virtualdaquela que haviam descido no outro ladodo Mar; sem dúvida, seus amigos o estavamolhando diretamente com os telescópios. E"diretamente" era agora a expressão correta;nessa direção, paralela ao eixo de Rama, oMar era, em verdade, perfeitamente plano.Talvez, plano mesmo, pois, em todos osmundos, qualquer lago ou mar devia aco-modarse à superfície de uma esfera, comuma curvatura igual em todas as direções.

– Estou quase no topo – falou ele para ogravador e o seu subcomandante, que escut-avam atentamente a cinco quilômetros dali.

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–Tudo continua perfeitamente tranquilo. Asradiações, normais.

Estou segurando o medidor acima daminha cabeça, para o caso de este muro ser-vir de anteparo contra alguma coisa. E, sehouver elementos hostis no outro lado, alve-jarão primeiro o medidor.

Estava gracejando, naturalmente. E con-tudo... por que arriscar-se, quando era tãofácil evitar qualquer risco?

Ao galgar o último degrau, descobriuque o dique terraceado tinha uns dez metrosde espessura. Na face interna, uma série derampas e escadas alternadas descia até onível principal da cidade, vinte metrosabaixo. Estava, em verdade, no topo de umaalta muralha que cercava completamenteNova Iorque, oferecendo-lhe uma vista pan-orâmica desta última.

Era uma vista quase estonteante na suacomplexidade, e a primeira coisa que Norton

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fez foi percorrê-la vagarosamente com a câ-mara cinematográfica.

Abanou então a mão aos seus compan-heiros e falou pelo rádio para o outro lado doMar:

– Não há sinais de qualquer atividade.Tudo tranquilo. Subam, vamos começar aexplorar.

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23 - NOVA IORQUE,RAMA

NÃO ERA uma cidade, era uma máquina.Norton tinha chegado a esta conclusão emdez minutos e não via razão para modificá-ladepois de terem feito uma travessia completada ilha. Uma cidade – fosse qual fosse anatureza de seus habitantes – devia ofereceralguma forma de acomodação; e aqui nãohavia nada dessa espécie, a menos que fosseno subsolo. E, se tal era o caso, onde estavamas entradas, as escadarias, os elevadores?

Não encontrara nada que fosse sequer oarremedo de uma simples porta...

A analogia mais aproximada que tinhavisto para esse lugar na Terra era uma gi-gantesca fábrica de processamento químico.Mas em parte nenhuma se viam as pilhas de

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matérias-primas ou qualquer indício de umsistema de transporte para movimentá-las.Tampouco podia imaginar onde surgiria oproduto acabado – e ainda menos o que seriaesse produto. Tudo isso era muito frustrativoe desconcertante.

– Alguém tem uma sugestão a fazer? –perguntou finalmente, a quem quer que est-ivesse escutando. – Se isto é uma fábrica,que é que ela faz? E de onde vêm asmatérias-primas?

– Eu tenho uma, Capitão – respondeuKarl Mercer lá da outra margem. – Supon-hamos que ela utilize o Mar. De acordo coma Doutora, este contém praticamentequalquer coisa que se possa imaginar.

A resposta era plausível e Norton já atinha considerado. Era bem possível quehouvesse encanamentos subterrâneos con-duzindo ao Mar – aliás, devia haver, poisqualquer indústria química que se podia con-ceber requereria grandes quantidades de

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água. Mas ele sempre desconfiara das ex-plicações plausíveis, que muitas vezes eramfalsas explicações.

– É uma boa idéia, Karl; mas que é queNova Iorque faz com a água do mar?

Durante largos momentos, ninguém re-spondeu da nave, do Cubo ou da planíciesetentrional. Então uma voz inesperadafalou.

– Isso é fácil, Capitão. Mas todos aí vãorir de mim.

– Não vamos, não, Ravi. Continue.O Sargento Ravi McAndrews,

despenseiro-chefe e mestre dos simps, era aúltima pessoa a bordo dessa nave que nor-malmente se teria envolvido numa discussãotécnica. Com um Q.I. modesto e conheci-mentos científicos mínimos, não era, con-tudo, nenhum tolo e tinha uma perspicácianatural que todos respeitavam.

– Bem, é de fato uma fábrica, Capitão, etalvez o Mar forneça a matériaprima...

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Afinal de contas, foi assim que tudoaconteceu na Terra, se bem que de um mododiferente... Creio que Nova Iorque é umafábrica para fazer ramaianos...

Alguém, algures, deixou escapar umrisinho de mofa, mas logo silenciou sem seidentificar.

– Sabe de uma coisa, Ravi? – disse o Co-mandante afinal. – Essa teoria é bastantemaluca para ser verdadeira. E não sei segostaria de vê-la testada, pelo menos en-quanto não tiver voltado a terra firme.

Esta Nova Iorque celeste tinha mais oumenos a mesma largura que a ilha de Man-hattan, mas sua geometria era totalmente di-versa. Existiam poucas vias de comunicaçãoretilíneas; era um dédalo de arcos curtosconcêntricos, ligados entre si por vias radi-ais. Por sorte, era impossível perder a ori-entação no interior de Rama; bastava um ol-har para estabelecer o eixo norte-sul daquelemundo.

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Pararam em quase todas as interseçõespara fazer um apanhado panorâmico.

Quando essas centenas de fotos fossemclassificadas, seria um trabalho enfadonho,mas bastante simples, construir um modeloda cidade em escala. Norton suspeitava que oquebra-cabeças daí resultante daria o quefazer aos cientistas durante gerações.

Foi ainda mais difícil acostumar-se aosilêncio aqui reinante do que tinha sido láfora, na planície de Rama. Uma cidade-má-quina devia produzir algum ruído; contudo,não se ouvia nem o mais fraco zumbido demotor elétrico, nem um sussurro que fossede movimento mecânico. Por várias vezesNorton encostou o ouvido ao chão ou àparede de um edifício, e escutou atenta-mente. Nada pôde distinguir, a não ser aspulsações do seu próprio sangue.

As máquinas dormiam; nem sequer dav-am um tique para marcar o tempo.

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Iriam elas acordar um dia, e para quefim? Tudo estava em perfeitas condições,como de costume. Era fácil acreditar que ofechar-se de um simples circuito de um pa-ciente, oculto computador, devolveria a vidaa todo esse labirinto.

Quando, por fim, chegaram ao outrolado da cidade, subiram ao topo do dique cir-cundante e olharam para a margem opostado braço meridional do Mar.

Por longo tempo Norton ficou contem-plando a escarpa de quinhentos metros dealtura que os separava de quase metade deRama – e, a julgar pelos apanhadostelescópicos, a metade mais complexa e vari-ada. Daquele ângulo, parecia ser de umaaziaga e rebarbativa cor negra, e lembravaum muro de prisão rodeando um continenteinteiro. Em parte alguma, ao longo de todo oseu circuito, havia uma escada ou qualqueroutro meio de acesso.

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Como seria que os ramaianos iam deNova Iorque às terras meridionais?

Provavelmente, havia um sistema detransportes subterrâneos passando por baixodo Mar, mas também deviam ter aeronaves;não faltavam, aqui na cidade, áreas abertasque pudessem ser usadas como pistas depouso. A descoberta de um veículo ramaianoseria memorável – especialmente seconseguissem fazê-lo funcionar. (Mas poder-ia qualquer gerador de força estar ainda fun-cionando depois de várias centenas deanos?) Havia ali numerosas estruturas quetinham um ar funcional de hangares ou gara-gens, mas eram todas lisas e sem janelas,como se tivessem sido banhadas com betumede vedação. "Mais cedo ou mais tarde", disseNorton lá consigo, de sobrolho franzido,"seremos forçados a usar explosivos ou raioslaser."

Estava resolvido a adiar essa decisão atéo último momento possível.

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Sua relutância a empregar a força brutabaseava-se em parte no orgulho e em parteno temor. Não desejava comportar-se comoum bárbaro tecnológico, destruindo o quenão podia compreender. Afinal de contas,era um visitante que não fora convidadoneste mundo e devia agir como tal.

Quanto ao seu temor – talvez o termofosse forte demais; apreensão seria maisapropriado. Os ramaianos pareciam ter prev-isto tudo em seus planos; Norton não estavanada ansioso por descobrir as precauçõesque eles haviam tomado para salvaguardaros seus bens. Quando voltasse ao continente,iria com as mãos vazias.

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24 - "LIBÉLULA"O TENENTE JAMES PAK era o oficial mais

jovem a bordo da Endeavour e estava em suaquarta missão no espaço profundo; eraambicioso e seu nome figurava na lista demerecimento; mas também tinha cometidouma séria infração. Não admirava, pois, quetardasse tanto a decidir-se.

Seria um jogo; se perdesse, as con-sequências seriam talvez desastrosas paraele. Não só podia estar arriscando a sua car-reira como também o seu pescoço. Mas, selograsse êxito, seria um herói. O que final-mente o decidiu foi a certeza de que, se nadafizesse, passaria o resto de sua existêncialamentando essa oportunidade perdida. Nãoobstante, ainda hesitava quando solicitouuma conferência privada com o Capitão.

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"Que será desta vez?" pensou Norton,analisando a expressão dúbia do rosto dojovem oficial. Lembrou-se da delicada en-trevista com Boris Rodrigo; não, não serianada de semelhante. Jimmy não era do tiporeligioso; os únicos interesses que já haviamanifestado fora do seu trabalho eram o es-porte e o sexo, preferivelmente combinados.

Dificilmente poderia tratar-se doprimeiro, e Norton fez votos para que nãofosse o segundo. Tinha enfrentado a maioriados problemas que um oficial comandantepodia encontrar neste campo – exceto o clás-sico problema de um nascimento imprevistodurante uma missão. Embora essa situaçãofosse objeto de inúmeros gracejos, nunca seconcretizara até então; mas uma incom-petência tão crassa era, talvez, uma simplesquestão de tempo.

– Então, Jimmy, de que se trata?

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– Tenho uma idéia, Comandante. Seicomo alcançar o continente meridional – in-clusive o Pólo Sul.

– Estou ouvindo. Como pretende fazerisso?

– Hã... Voando até lá.– Jimmy, já recebi, pelo menos, cinco

propostas nesse sentido – mais, se levarmosem conta algumas sugestões doidas proveni-entes da Terra.

Examinamos a possibilidade de adaptaros nosso propulsores de trajes espaciais, masa resistência do ar os tornaria completa-mente ineficientes. Ficariam sem com-bustível antes de percorrer dez quilômetros.

– Isso eu sei. Mas tenho a solução.A atitude do Ten. Pak era uma curiosa

mistura de perfeita confiança e nervosismomal reprimido. Norton estava intri-gadíssimo; que é que tanto inquietava orapaz? Devia conhecer bastante bem o seuoficial comandante para ter certeza de que

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nenhuma proposta razoável seria leviana-mente desprezada.

– Bem, continue. Se funcionar, tratareide fazer com que a sua promoção sejaretroativa.

Esta pequena semipromessa e semig-racejo não foi tão bem recebida como ele es-perava. Jimmy fez um sorriso amarelo, abriua boca várias vezes para falar e finalmenteoptou por uma abordagem oblíqua doassunto.

– Como o senhor sabe, Comandante,participei das Olimpíadas Lunares no anopassado.

– Pois claro. Lamento que não tenhaganho.

– Questão de mau equipamento. Eu seiqual foi a falha. Tenho amigos em Marte queestiveram trabalhando no aparelho, em se-gredo. Queremos dar uma surpresa a todomundo.

– Marte? Mas eu não sabia...

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– Não são muitos os que sabem. O es-porte ainda é novo ali; até agora, só foi ex-perimentado no Estádio Xante. Mas os mel-hores aerodinamicistas do Sistema Solar es-tão em Marte; quem pode voar naquela at-mosfera, pode voar em qualquer lugar.

"Bem, a minha idéia foi que, se os mar-cianos pudessem construir uma boa má-quina, com todo o seu know-how, ela real-mente voaria na Lua, onde a gravidade temapenas metade da força.”

– Isto parece plausível, mas de que nosserve?

Norton estava começando a adivinhar,mas queria dar bastante corda a Jimmy.

– Bem, fiz sociedade com alguns amigosem Lowell City. Eles construíram uma má-quina voadora perfeitamente aerobática,com alguns aperfeiçoamentos que ninguémviu até hoje. Na gravidade lunar, sob o DomoOlímpico, deve causar sensação.

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– E ganhar para você a medalha deouro.

– Assim espero.– Vamos ver se eu sigo corretamente o

seu raciocínio. Uma bicicleta celeste quepôde participar das Olimpíadas Lunares, aum sexto de gravidade, seria mais sensacion-al no interior de Rama, onde a gravidade ézero. Você poderia voar com ela ao longo doeixo, do Pólo Norte ao Pólo Sul... e vice-versa.

– Sim, facilmente. A travessia simpleslevaria três horas de voo ininterrupto. Masestá claro que o ciclista poderia descansaronde quisesse, contanto que não saísse dasproximidades do eixo.

– A idéia é brilhante. Meus parabéns. Épena que as bicicletas celestes não façamparte do equipamento regular da ObservaçãoEspacial.

Jimmy pareceu ter uma certa di-ficuldade em encontrar palavras com que se

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expressar. Abriu a boca várias vezes, masnão dizia nada.

– Muito bem, Jimmy. Por uma questãode interesse mórbido e estritamente entrenós, me diga como foi que introduziu oaparelho a bordo.

– Hã... "Material Recreativo".– Bom, mentindo não estava. E quanto

ao peso?– Apenas vinte quilogramas.– Apenas! Enfim, não é tão mau como

eu pensava. Estou mesmo assombrado de verque se pode construir uma bicicleta com essepeso.

– Algumas só pesavam quinze, maseram muito frágeis e em geral se dobravamao fazer uma curva. Não há perigo de aconte-cer isso com a Libélula.

Como já disse, ela é perfeitamenteaerobática.

– Libélula... Bonito nome. Pois bem,agora me diga como pensa usá-la; depois

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verei o que é mais indicado no caso, se umapromoção ou um conselho de guerra... ouambos.

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25 - VOOINAUGURAL

"LIBÉLULA" era realmente um belo nome.As longas e afiladas asas eram quase invisí-veis, salvo quando a luz incidia nelas sob cer-tos ângulos e se retratava em matizes dearco-íris. Era como se um fino rendilhado desuperfícies aerodinâmicas tivesse sido en-volvido por uma bolha de sabão; o envoltórioque cercava a pequena máquina voadora erauma película orgânica de apenas algumasmoléculas de espessura, e contudo bastanteforte para controlar e dirigir os movimentosde uma corrente de ar de 50 km/h. O piloto(que era também o gerador de força e o sis-tema de direção) ia instalado num assentopequenino, bem no centro de gravidade, emposição semi-reclinada a fim de reduzir a

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resistência do ar. O controle se fazia por ummanete único que podia ser movido para tráse para diante, para a esquerda e para adireita; o único "instrumento" era uma fitachumbada e presa pela outra extremidade àaresta de ataque, para mostrar a direção dovento relativo.

Depois que a máquina fora montada noCubo, Jimmy Pak não' permitia que ninguéma tocasse. O manuseio inábil podia rebentarum dos membros estruturais, formados deuma só fibra, e aquelas asas irisadas eramuma tentação quase irresistível para os dedosexploradores. Custava acreditar que haviarealmente alguma coisa ali...

Ao ver Jimmy embarcar na engenhoca, oComandante Norton começou a sentir-se in-quieto. Se um daqueles montantes finoscomo arame rebentasse quando a Libélulaestivesse no outro lado do Mar Cilíndrico,Jimmy não teria meio de voltar, mesmo queconseguisse pousar incólume. Estavam

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também violando uma das regras sac-rossantas da exploração espacial: um homemia penetrar sozinho em território descon-hecido, sem qualquer possibilidade de so-corro. O único consolo era que estariasempre bem à vista e em plena comunicaçãocom os outros; se tivesse mau fim, estessaberiam exatamente o que lhe haviaacontecido.

Todavia, a oportunidade era boa demaispara que a deixassem escapar; se um homemacreditava no destino, seria desafiar ospróprios deuses negligenciar o único ensejoque teriam, talvez, de chegar ao outro ladode Rama e ver de perto os mistérios do PóloSul. Jimmy sabia ó que estavaempreendendo, muito melhor do que lhe po-deria dizer qualquer outro membro da tripu-lação. Essa era exatamente a espécie de riscoque se devia assumir; se fracassasse, seria oazar do jogo. Não se pode ganhar todas...

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– Escute com todo o cuidado, Jimmy –disse a Médica-chefe Ernst. – É

muito importante que você não se es-falfe. Não se esqueça de que o nível de ox-igênio aqui no eixo é ainda muito baixo. Sepor acaso sentir falta de ar, pare e respirefundo durante trinta segundos – porém nãomais.

Distraidamente, Jimmy fez que sim coma cabeça enquanto testava os controles. Todoo mecanismo de elevação do leme, que form-ava uma só unidade sobre um prolonga-mento do chassi, cinco metros atrás da rudi-mentar nacele, começou a girar sobre simesmo; as aletas, na parte média da asa,moveram-se alternativamente para cima epara baixo.

– Quer que eu dê impulso à hélice? –perguntou Joe Calvert, incapaz de reprimiras recordações dos filmes de guerra duasvezes seculares. – Ignição!

Contato!

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Provavelmente ninguém, à exceção deJimmy, entendia o que ele estava falando,mas isso contribuiu para aliviar a tensão.

Jimmy começou, muito vagarosamente,a mover os pedais. A larga e frágil hélice, del-icado esqueleto forrado de uma películarebrilhante, pôs-se em movimento. Depoisde completar algumas revoluções, desapare-ceu por completo – a Libélula estava empleno voo.

Afastou-se do Cubo em linha reta,movendo-se lentamente ao longo do eixo deRama. Depois de percorrer uma centena demetros, Jimmy parou de pedalar. Era es-tranho ver um veículo obviamente aerod-inâmico pairar imóvel na atmosfera. Deviaser a primeira vez que tal coisa acontecia,salvo, talvez, em escala muito limitada no in-terior de uma das grandes estações espaciais.

Que tal vai o manejo? – perguntouNorton.

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– Responde bem; estabilidade pouca.Mas eu sei de que se trata: é a falta degravidade. Um quilômetro mais abaixo es-taremos melhor.

– Mas espere um pouco... Não háperigo?

Ao perder altitude, Jimmy estaria sacri-ficando a sua principal vantagem.

Enquanto permanecesse exatamente noeixo, ele e a Libélula não teriam nenhumpeso. Podia pairar em completo repouso, eaté dormir, se quisesse. Mas logo que se afas-tasse da linha central em torno da qualgirava Rama, tornaria a aparecer opseudopeso da força centrífuga.

E assim, a menos que conseguissemanter-se a essa altitude, continuaria a per-der altura – e, ao mesmo tempo, a ganharpeso. Seria um processo acelerativo, que po-dia terminar em catástrofe. A gravidade láembaixo, na planície de Rama, era duasvezes maior do que aquela em que a Libélula

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se destinava a operar. Talvez Jimmy pudessepousar sem incidentes, mas certamente nãoconseguiria tornar a partir.

Mas já havia considerado todas essaseventualidades e respondeu com bastanteconfiança:

– Posso me arranjar num terço degravidade sem dificuldade alguma. E a má-quina será mais fácil de manejar no ar maisdenso.

Numa lenta e folgada espiral, & Libélulaplanava no céu, seguindo mais ou menos alinha da Escadaria Alfa em direção àplanície. Olhada de certos ângulos, apequena bicicleta celeste era quase invisível;Jimmy parecia estar sentado no ar, ped-alando furiosamente. Às vezes movia-se emarrancos de até trinta quilômetros por hora,depois diminuía a velocidade e parava, ex-perimentando os controles, antes de tornar aacelerar. E tinha sempre muito cuidado em

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conservar-se à distância da extremidadecurva de Rama.

Não tardou a confirmar-se a previsão deque a Libélula obedeceria muito melhor àdireção nas baixas altitudes; já não rolavasobre si mesma ao fazer qualquer ângulo,mas estabilizou-se de tal modo que suas asasse mantinham paralelas com a planície, em-bora andasse a sete mil metros acima desta.Jimmy completou várias amplas órbitas, de-pois começou de novo a ganhar altitude.

Finalmente, parou a alguns metros doscolegas que o esperavam e deu-se conta, umpouco tarde, de que não sabia ao certo comopousar a sua frágil máquina.

– Quer que lhe atiremos uma corda? –perguntou Norton, meio caçoando, meio asério.

– Não, Capitão... eu mesmo preciso re-solver isto. Não quero pedir ajuda a ninguémna hora da chegada.

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Ficou refletindo alguns momentos, de-pois começou a aproximar com cuidado &Libélula do Cubo, mediante breves impulsosde força.

A máquina perdia rapidamente o seuímpeto entre um e outro empurrão, devido àresistência do ar que a fazia parar de novo.Quando chegou a apenas cinco metros dedistância e viu mais uma vez que a bicicletaceleste mal se movia, Jimmy saltou. Deixou-se flutuar em direção à corda de segurançamais próxima na cama-de-gato do Cubo,segurou-a e deu meia volta ao corpo, a tempode agarrar a bicicleta que se aproximava. Amanobra foi executada com tanta elegânciaque provocou uma salva de palmas.

– Para o meu próximo número... –começou Joe Calvert. Jimmy apressouse anegar qualquer mérito à sua proeza.

– Isso foi mal feito. Mas agora sim, seicomo fazer. Levarei comigo uma bomba desucção na ponta de um cordel de vinte

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metros; então poderei subir pelo cordel aolugar que quiser.

– Dê cá o seu pulso, Jimmy, e sopreneste saco – ordenou a doutora. – Vou pre-cisar de uma amostra do seu sangue tam-bém. Você teve alguma dificuldade emrespirar?

– Só nesta altitude. Mas para que quer osangue?

– Teor de glicose; por meio dela possosaber quanta energia você usou.

Precisamos ter certeza de que vocêlevará consigo combustível suficiente para amissão. A propósito, qual é o recorde de res-istência para o ciclismo celeste?

– Duas horas, vinte e cinco minutos etrês vírgula seis segundos. Na Lua, é claro.Um circuito de dois quilômetros no DomoOlímpico.

– E você pensa que pode elevá-lo paraseis horas?

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– Facilmente, uma vez que posso pararpara descansar quando quiser. O ciclismoceleste na Lua é pelo menos duas vezes maisdifícil do que aqui.

– Muito bem, Jimmy. Volte para olaboratório. Vou lhe dar o Sim ou Não logoque tiver analisado essas amostras. Nãoquero inspirar falsas esperanças, mas meparece que você dará conta do recado.

Um largo sorriso de satisfação alastrou-se pela cara cor de marfim de Jimmy Pak.Enquanto seguia a Médica-chefe até a eclusade ar, virou-se para gritar aos companheiros:

– É favor não porem as mãos! Nãoquero que ninguém me fure uma asa com opunho.

– Eu me encarregarei disso, Jimmy –prometeu o Comandante. - O acesso àLibélula fica proibido a todos, inclusive eupróprio.

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26 - A VOZ DE RAMAJIMMY PAK não teve consciência da ver-

dadeira magnitude dessa aventura enquantonão alcançou a costa do Mar Cilíndrico. Atéagora tinha voado sobre território conhecido;a menos que ocorresse uma catastrófica falhaestrutural, sempre podia aterrissar e voltar apé para á base numa questão de poucashoras.

Essa opção já não existia. Se descesse noMar, se afogaria provavelmente, de maneirabem desagradável, aliás, naquela água ven-enosa. E, mesmo que pousasse incólume nocontinente meridional, seria impossívelrecuperá-lo antes que a Endeavour fosseobrigada a abandonar a órbita de Rama emdireção ao Sol.

Também percebia agudamente que osdesastres previsíveis eram os que tinham

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menos probabilidade de acontecer. A regiãototalmente desconhecida sobre a qual estavavoando podia deparar-lhe toda sorte de sur-presas; suponhamos que houvesse ali cri-aturas voadoras que se opusessem à sua in-trusão? Detestaria ter de travar um combateaéreo com qualquer coisa que fosse maior doque um pombo. Umas poucas bicadas bemcolocadas podiam arruinar a aerodinâmicada Libélula.

Entretanto, se não houvesse riscos nãohaveria glória, nem sentimento de aventura.Milhões de homens desejariam estar na suapele agora. Não se dirigia apenas para umlugar onde ninguém havia posto os pésantes, – mas onde ninguém jamais tornaria apôr os pés. Seria ele, em toda a História, oúnico ser humano que visitara as regiões me-ridionais de Rama. Sempre que sentisse aaproximação do medo, poderia lembrar-sedisso.

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Já se acostumara a ficar sentado no ar,com o mundo à sua volta. Por ter descido adois quilômetros sob o eixo central, adquiri-ra um senso definido do "acima" e do"abaixo". O chão estava a apenas seis quilô-metros lá embaixo, mas o céu se arqueavadez quilômetros acima da sua cabeça. A "cid-ade" de Londres pairava lá no alto, perto dozênite; Nova Iorque, pôr sua vez, ficava bemem frente.

– Libélula – disse o Controle Central, –você está baixando um pouco. Dois mil eduzentos metros do eixo.

– Obrigado – respondeu ele. – Vou gan-har altura. Me avisem quando tiver voltadoaos dois mil.

Era uma coisa que teria de vigiar. Haviauma tendência natural para perder altura, eJimmy não tinha instrumentos que lhe dis-sessem exatamente onde se achava. Se seafastasse demasiado da gravidade zero doeixo, talvez nunca pudesse retornar a ela. Por

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sorte, a margem tolerável de erro erabastante grande, e sempre havia alguém aobservar-lhe os movimentos com um telescó-pio lá em cima, no Cubo.

Tinha já percorrido uma boa distânciasobre as águas do Mar Cilíndrico, pedalandofirme a vinte quilômetros por hora. Dentrode cinco minutos passaria sobre NovaIorque; já tinha a ilha à vista, bastante pare-cida com um navio que circunavegasse etern-amente o Mar Cilíndrico.

Quando alcançou Nova Iorque,sobrevoou-a em círculo, parando váriasvezes para que a sua pequena câmara de TVenviasse imagens nítidas, sem vibrações. Opanorama de edifícios, torres, instalações in-dustriais, usinas geradoras de força oufossem lá o que fossem, era fascinante masessencialmente sem nenhum sentido. Pormais tempo que se detivesse a contemplar asua complexidade, não tinha probabilidadede apreender nada. A câmara registraria

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muito mais detalhes do que ele podia assim-ilar; e um dia – talvez anos depois, – algumestudioso descobriria entre eles, quem sabe,a chave dos segredos de Rama.

Após deixar Nova Iorque, cruzou a outrametade do Mar em quinze minutos apenas.Embora não se desse conta disso, tinhavoado mais depressa sobre a água, mas as-sim que atingiu a costa meridional relaxouinconscientemente e sua velocidade caiuvários quilômetros por hora. Podia estarsobrevoando território estranho – mas, pelomenos, era terra firme.

Logo após atravessar a grande escarpaque formava o limite meridional do Mar, deuuma volta completa à câmara, numa tomadapanorâmica do mundo inteiro em derredor.

– Lindo! – disse o Controle Central. –Os cartógrafos terão com que se entreterem.Como se sente você?

– Muito bem... um pouquinho decansaço, porém não mais do que esperava. A

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que distância calculam que eu esteja doPólo?

– Quinze vírgula seis quilômetros.– Me avisem quando chegar a dez; des-

cansarei então. E não me deixem perder al-tura outra vez. Começarei a subir quando fal-tarem cinco quilômetros.

Vinte minutos mais tarde, o mundoparecia descer sobre ele; tinha chegado aofim da seção cilíndrica e estava penetrandono domo meridional.

Tinha-o estudado durante horas pelostelescópios, da outra extremidade de Rama,e aprendera a sua geografia de cor. Mesmoassim, não estava plenamente preparadopara o espetáculo que o cercava agora por to-dos os lados.

Sob quase todos os aspectos, as ex-tremidades sul e norte de Rama diferiamradicalmente uma da outra. Aqui não haviatríade de escadarias, nem série de platôsconcêntricos, nem vasta curva unindo o cubo

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à planície. Em lugar disso tudo, um imensoespigão central, com mais de cinco quilômet-ros de comprimento, estendendo-se ao longodo eixo. Seis outros, menores, com metadedo tamanho, rodeavam-no igualmente es-paçados entre si; o conjunto tinha o ar de umgrupo de estalactites notavelmentesimétricas, pendendo do teto de uma cav-erna. Ou, invertendo-se o ponto de vista, ascúspides de algum templo cambojanoplantadas no fundo de uma cratera...

Ligando umas às outras essas esguias epontiagudas torres, das quais desciam emcurva para terminar formando corpo com aplanície cilíndrica, havia botaréus que pare-ciam bastante maciços para suportar o pesode um mundo. E essa, talvez, era a sua fun-ção, se efetivamente se tratava de exóticasunidades de propulsão, como alguém haviasugerido.

O Tenente Pak aproximou-se caute-losamente do espigão central, parou de

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pedalar a uns cem metros de distância edeixou que a Libélula gastasse o impulso ad-quirido até imobilizar-se. Verificou o nível deradiação e encontrou apenas o baixíssimovalor básico de Rama. Ali podia haver forçasem ação que nenhum instrumento humanoera capaz de detectar, mas esse era outrorisco inevitável.

– Que é que você pode ver? – perguntoua voz ansiosa do Controle Central.

– Apenas o Chifre Grande. Ê perfeita-mente liso... não tem marca nenhuma... e aponta é tão aguda que se poderia usá-lacomo agulha de costurar.

Quase chego a ter medo de me aproxim-ar dela.

Não gracejava totalmente. Parecia in-crível que um objeto tão maciço se afilasseaté terminar num ponto geometricamenteperfeito. Jimmy tinha visto coleções de inse-tos empalados em alfinetes e não queria quea sua Libélula tivesse semelhante destino.

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Pedalou devagar para a frente até que oespigão, alargando-se progressivamente, me-disse vários metros de diâmetro. Entãotornou a parar e, abrindo um pequeno recipi-ente, extraiu dele com muita cautela uma es-fera do tamanho aproximado de uma bola debaseball e atirou-a na direção do espigão.

Enquanto percorria a sua lenta tra-jetória, a esfera foi deixando após si um fioquase invisível.

A bomba adesiva bateu na superfíciesuavemente curva – e não ressaltou.

Jimmy deu ao fio uma puxadela experi-mental, depois um tirão mais forte. Comoum pescador que puxa a sua presa, enrolan-do a linha, aproximou devagar & Libélula daponta do apropriadamente batizado ChifreGrande, até que pôde estender a mão e es-tabelecer contato com ele.

– Suponho que isto equivale a umtouch-down no futebol americano – comu-nicou ao Controle Central. – Dá a impressão

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de vidro: quase sem atrito e ligeiramentemorno. A bomba de sucção funcionou muitobem. Agora estou experimentando o micro-fone... Vamos ver se o disco de sucção tam-bém pega...

estou encaixando os fios de contato...Ouvem alguma coisa?

Houve um longo silêncio, depois o Con-trole disse, aborrecido:

– Nada de nada, salvo os ruídos térmi-cos usuais. Quer fazer o favor de bater nelecom um objeto metálico? Assim, pelo menossaberemos se é oco.

– O.K. E agora, que tal?– Gostaríamos que você voasse ao longo

do espigão, fazendo uma exploração com-pleta a cada meio quilômetro e prestandoatenção a tudo que for fora do comum. De-pois, se tiver certeza de que não há perigo,poderia passar a um dos Pequenos Chifres.Mas somente se estiver seguro de que poderávoltar a zero g sem nenhum problema.

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Três quilômetros de distância do eixo...dá um pouco mais do que a gravidade lunar.A Libélula foi projetada para isso. Terei defazer mais força, e acabou-se.

– Jimmy, aqui fala o Capitão. Recon-siderei esse assunto. A julgar pelas suas fo-tos, os espigões menores são exatamenteiguais ao grande. Obtenha a melhor cober-tura deles que puder com a lente zum. Nãoquero que você deixe a região de baixagravidade... salvo se vir alguma coisa quepareça muito importante. Entãoconversaremos.

– O.K., Capitão. – disse Jimmy, em cujavoz os outros julgaram notar um leve tom dealívio. – Não me afastarei do Chifre Grande.Lá: vamos nós de novo.

Sentiu que ia em queda vertical, nadireção de um vale entre montanhas incrivel-mente altas e esguias. O Chifre Grande pair-ava agora a um quilômetro acima dele e osseis espigões dos Pequenos Chifres faziam

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círculo em torno. O complexo de contrafortese arcobotantes que cercavam as encostas in-feriores se aproximava rapidamente. Poderiaele pousar sem perigo em algum ponto láembaixo, no meio daquela arquiteturaciclópica? Já não era possível pousar nopróprio Chifre Grande, pois a gravidade, nosseus declives que se alargavam cada vezmais, tornara-se demasiado forte para serneutralizada pela débil força da bombaadesiva.

Ao aproximar-se cada vez mais do PóloSul, começou a sentir-se como um pardalque voasse sob as abóbadas de algumagrande catedral – embora nenhuma catedralconhecida tivesse sequer a centésima partedo tamanho daquele lugar. Chegou mesmo aimaginar se de fato se trataria de uma es-pécie de templo ou coisa parecida, mas logotirou a idéia de seus pensamentos. Em nen-huma parte de Rama havia qualquer sinal deexpressão artística; tudo ali era puramente

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funcional. Talvez os ramaianos julgassemque já conheciam os segredos últimos douniverso e se tivessem libertado dos anelos easpirações que agitavam a humanidade.

Era um pensamento que arrepiava,completamente estranho à filosofia habitualde Jimmy, a qual não era muito profunda.Sentiu uma necessidade urgente derestabelecer o contato e comunicou sua situ-ação aos amigos distantes.

– Repita isso, Libélula – respondeu oControle Central. – Não podemos entendê-lo... Sua transmissão está sendo distorcida.

– Vou repetir: estou perto da base doPequeno Chifre número 6, e vou usar abomba adesiva para encostar nele.

– Só o entendo parcialmente. Você podeme ouvir?

– Sim, perfeitamente. Repito:perfeitamente.

– Faça o favor de contar os números emordem.

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– Um, dois, três, quatro...– Peguei uma parte. Dê o farol durante

quinze segundos, depois retorne à voz.Jimmy ligou o radiofarol de pouca

potência que o localizaria em qualquer pontode Rama, e contou os segundos. Quando re-tornou à voz, perguntou em tom de queixa:

– Que está acontecendo? Podem ouvir-me agora? Presumivelmente o pessoal doCubo não ouvia, pois o controlador pediuquinze segundos de TV. Só depois de duasrepetições a pergunta foi entendida.

– Ainda bem que você nos ouve perfeita-mente, Jimmy. Mas está acontecendo al-guma coisa muito esquisita aí para as suasbandas. Escute.

Através do rádio, Jimmy ouviu o assobiofamiliar do seu farol, que lhe era retrans-mitido lá de cima. Durante um momento osom foi perfeitamente normal, depoisinsinuou-se nele uma estranhíssima dis-torção. O assobio de mil ciclos começou a ser

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modulado por uma pulsação profunda, late-jante, no próprio limiar da audição; era umaespécie de trêmulo em baixo profundo, noqual se podia distinguir cada vibração sep-arada. E a própria modulação era modulada;subia e baixava, com um período de cinco se-gundos aproximadamente.

Nem sequer por um instante ocorreu aJimmy que houvesse algum desarranjo noseu radio transmissor. Aquilo vinha de fora,se bem que ele não pudesse imaginar o queera nem o que significava.

O Controle Central não estava melhorinformado, mas pelo menos tinha umateoria.

– Pensamos que você deve estar em al-guma espécie de campo muito intenso –provavelmente magnético – com uma fre-quência de dez ciclos mais ou menos. Talvezseja bastante forte para representar umperigo. Sugerimos que você se afaste imedi-atamente de onde está; é possível que seja

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apenas local. Ligue de novo o seu radiofarol enós o retransmitiremos. Desse modo poderásaber quando estiver escapando àinterferência.

Jimmy deu um puxão apressado ao fioda bomba adesiva para despegá-la e aban-donou a tentativa de pousar. Fez a Libéluladescrever um vasto círculo, atento ao somque oscilava nos seus fones de ouvido. Nãotinha voado mais que alguns metros quandopercebeu que a intensidade desse som caíarapidamente; como adivinhara o ControleCentral, o fenômeno era extremamentelocalizado.

Deteve-se um momento no último pontoem que podia ouvi-lo, como um débil pulsarnas profundezas do seu cérebro. Assim,talvez, teria escutado um selvagem primitivo,com aterrorizada ignorância, o surdo zumbirde um gigantesco transformador de força. Eaté o selvagem poderia ter adivinhado, nosom que ouvia, as migalhas extraviadas de

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colossais energias, plenamente controladas,mas aguardando o seu ensejo...

O que quer que esse som significasse, foicom prazer que Jimmy se afastou dele.Aquele não era lugar, entre a esmagadora ar-quitetura do Pólo Sul, para um homemsolitário escutar a voz de Rama.

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27 - VENTOELÉTRICO

QUANDO JIMMY deu volta à sua máquinapara regressar, a extremidade norte de Ramaparecia incrivelmente longínqua. Até as trêsescadarias gigantescas mal-e-mal podiam seravistadas, como um quase apagado Y estam-pado no domo que encerrava o mundo. Abanda do Mar Cilíndrico era uma larga eameaçadora barreira à espera para engoli-lose, como Ícaro, suas delicadas rêmiges separtissem.

Mas tinha ido até ali sem problemas e,embora se sentisse levemente fatigado,parecia-lhe, agora, que não tinha razão parapreocupar-se. Nem sequer tocara na comidae na água que levava consigo e, na sua excit-ação, não lhe sobrara tempo para descansar.

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Na viagem de regresso iria com mais vagar ecalma. Também o alegrava o pensamento deque a volta poderia ser vinte quilômetrosmais curta do que a vinda, pois, com a con-dição de evitar o Mar, havia a possibilidadede fazer um pouso de emergência emqualquer ponto do continente setentrional.Isso seria tedioso porque lhe impunha umalonga caminhada e, o que era muito pior, ter-ia de abandonar a Libélula – mas lhe ofere-cia uma confortadora margem de segurança.

Estava, agora, ganhando altura, subindonovamente em direção ao espigão central; aafilada agulha do Chifre Grande alongava-sepor um quilômetro à sua frente, e às vezesJimmy sentia que aquele era o eixo em tornodo qual girava todo este mundo.

Havia quase alcançado o pico do ChifreGrande quando teve consciência de umacuriosa sensação; um como pressentimentoe, em verdade, um desconforto tanto físicocomo psicológico, se tinham apoderado dele.

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De repente lembrou-se – e isso não con-tribuiu em absoluto para aliviar a sua in-quietude – de uma frase que encontraracerta vez, num livro: "alguém está camin-hando sobre a sua sepultura."

A princípio, deu de ombros e continuoua pedalar firme. Não tinha nenhuma in-tenção de comunicar ao Controle Centraluma coisa tão tênue como esse vago mal-es-tar, mas, como o sentisse agravar-se cada vezmais, foi tentado a fazê-lo. Não podia sermeramente psicológico; ou, se o fosse, a suamente era muito mais poderosa do quepensava – pois sentia, literalmente, que suapele começava a arrepiar-se...

Já seriamente alarmado, parou no ar epôs-se a considerar a situação. O que a tor-nava ainda mais estranha era o fato de essepesado sentimento de depressão não lhe sercompletamente desconhecido;experimentara-o antes, mas não saberiadizer onde.

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Olhou em volta de si. Nada haviamudado. A extremidade pontiaguda do Chi-fre Grande pairava algumas centenas de met-ros acima dele, tendo por fundo o céu dooutro lado de Rama. Oito quilômetrosabaixo, desdobrava-se a complicada var-iedade do continente meridional, cheio deportentos que nenhum outro homem veriajamais. Nessa paisagem totalmente exóticaque, no entanto, já se lhe tornara familiar,não pôde encontrar nenhum motivo para oseu desconforto.

Alguma coisa lhe fazia cócega nas costasda mão; por um momento pensou que uminseto houvesse pousado ali e enxotou-o semolhar. Não havia ainda completado o rápidogesto quando se deu conta do que estavafazendo e parou, sentindo-se ligeiramenteridículo. Pois se ninguém jamais tinha vistoum inseto em Rama...

Ergueu a mão e olhou-a um tanto intri-gado; a sensação de cócega continuava. Só

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então notou que todos os seus pelos estavamem pé; e não só os da mão como também doantebraço inteiro; e a mesma coisa nacabeça, quando pôs ali a mão para explorar ocabelo.

Então era isso... Estava num campoelétrico tremendamente poderoso. Asensação de pesadume e opressão que exper-imentara era a que às vezes precede umatrovoada na Terra.

A súbita compreensão do perigo quecorria pôs Jimmy num estado muito próx-imo do pânico. Nunca em sua Vida enfrent-ara uma verdadeira ameaça física.

Como todos os espaçonautas, conheceramomentos de frustração com equipamentode difícil manuseio, e ocasiões em que,devido a erros ou à inexperiência, julgara er-roneamente que se encontrava numa situ-ação perigosa.

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Mas nenhum desses episódios duraramais de alguns minutos, e em geral podia rirdeles instantes depois.

Desta vez não houve saída rápida.Jimmy sentia-se nu e sozinho num céu re-pentinamente hostil, cercado por forçastitânicas que podiam desencadear sua fúria aqualquer momento. A Libélula, que já de siera bastante frágil, parecia agora mais insub-stancial do que a mais fina teia de aranha. Oprimeiro estampido da tempestade que seestava preparando a reduziria a frangalhos.

– Controle Central – chamou ele numavoz urgente. – Uma carga elétrica está seacumulando em redor de mim. Acho que aqualquer momento vai estalar uma trovoada.

Mal havia acabado de falar quando umrelâmpago luziu às suas costas; pôs-se a con-tar os segundos, e estava em dez quandochegou o primeiro estalejante ribombo. Trêsquilômetros: isso situava a faísca lá atrás,entre os Pequenos Chifres; olhou para eles e

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viu que cada uma das seis agulhas pareciaestar em chamas. Descargas luminosas comcentenas de metros de comprido dançavamequilibrando-se nas suas pontas, como sefossem gigantescos páraraios.

O que ali estava acontecendo poderiaocorrer em escala ainda maior nas proximid-ades da ponta afilada do Chifre Grande. Omelhor seria distanciar-se tanto quanto pos-sível da perigosa estrutura e buscar uma at-mosfera serena.

Começou de novo a pedalar, acelerandoo quanto era possível sem forçar demasiadoa Libélula. Ao mesmo tempo ia perdendo al-tura; embora isto significasse penetrar na re-gião de maior gravidade, estava disposto,agora, a assumir esse risco. Oito quilômetrosera muito longe do solo para que pudessesentir-se tranquilo.

O ominoso espigão negro do Chifre con-tinuava isento de descargas visíveis, mas elenão duvidou que tremendos potenciais se

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estivessem acumulando ali. De tempos atempos o trovão ainda ecoava às suas costas,percorrendo a circunferência do mundo. Derepente, Jimmy se deu conta de como era es-tranha uma tal tempestade num céu perfeita-mente claro; compreendeu, então, que não setratava em absoluto de um fenômeno met-eorológico. Podia, inclusive, ser um trivialescape de energia proveniente de algumafonte oculta, nas profundezas da calota meri-dional de Rama. Mas por que agora? E, oque era ainda mais importante: que aconte-ceria em seguida?

Já havia deixado bastante para trás aagulha do Chifre Grande e esperava estar,dentro em pouco, fora do alcance dequaisquer descargas elétricas. Mas agoratinha outro problema: o ar estava se tor-nando turbulento e ele tinha dificuldade emcontrolar a Libélula. Levantara-se um ventoque aparentemente não provinha de parte al-guma, e se as condições piorassem o frágil

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esqueleto da bicicleta correria perigo. Jimmypedalava pertinazmente, procurando amort-ecer os embates do vento com variações deforça e movimentos do corpo. Como aLibélula era quase um prolongamento dele,teve êxito em parte; mas não lhe agradavamos débeis estalidos de protesto que se ouviamna verga mestra, nem o jeito como se torciamas asas a cada lufada.

E havia outra coisa que o preocupava:um pequeno som precípite que foi cobrandocada vez mais força e que parecia vir dasbandas do Chifre Grande. Dirse-ia um gásque escapasse de uma válvula sob fortepressão, e Jimmy perguntou a si mesmo seaquilo teria algo que ver com a turbulênciacom que estava lutando. Fosse qual fosse acausa, dava-lhe novas razões para inquietar-se.

De quando em quando comunicavaesses fenômenos, de modo bastante concisoe ofegante, ao Controle Central. Ninguém lá

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podia dar-lhe qualquer orientação ou mesmosugerir o que talvez estivesse acontecendo.Mas era confortador ouvir as vozes de seusamigos, embora estivesse começando a re-cear que nunca mais tornaria a vê-los.

A turbulência aumentava sempre. Eraquase como se estivesse penetrando numacorrente de jato – o que ele fizera uma vez naTerra, quando pilotava um planador degrande altitude, procurando bater um re-corde. Mas o que poderia criar uma correntede jato no interior de Rama?

Havia feito a si mesmo a pergunta apro-priada; e, assim que a formulou, conheceu aresposta. O som que tinha ouvido era o ventoelétrico que levava consigo a tremenda ioniz-ação que devia estar se acumulando emredor do Chifre Grande. O ar carregado deeletricidade precipitava-se como um es-guicho ao longo do eixo de Rama, e mais arafluía à área de baixa pressão que ele deixavaatrás de si. Virou-se para olhar aquela

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gigantesca e agora duplamente ameaçadoraagulha, tentando visualizar os limites do ven-daval que dali soprava. Talvez a melhor tát-ica fosse voar de ouvido, distanciando-se omais possível do agourento assobio.

Rama poupou-lhe o embaraço daescolha. Um lençol de chama rebentou àssuas costas, enchendo o céu. Ainda tevetempo de vê-lo dividir-se em seis listas defogo que se estendiam do pico do ChifreGrande a cada um dos Pequenos Chifres.Então foi alcançado pela concussão.

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28 - ÍCAROJIMMY mal teve tempo de falar pelo rá-

dio: "A asa está vergando... vou cair... voucair!" quando a Libélula começou a dobrar-se graciosamente em torno dele. A asaesquerda partiu-se pelo meio e a metade ex-terior se afastou pouco a pouco, como uniafolha que cai suavemente. A performance daasa direita foi mais complicada. Torceu-sepela raiz e dobrou para trás com tanta forçaque foi enredar-se na cauda. Jimmy teve aimpressão de estar sentado num papagaioquebrado que baixava lentamente do céu.Contudo, não estava completamente sem re-cursos: a hélice ainda funcionava, e en-quanto ele tivesse força motriz lhe restariauma certa medida de controle. Dispunha,talvez, de cinco minutos para usá-lo.

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Haveria alguma esperança de atingir oMar? Não: ficava muito longe.

Notou, então, que ainda pensava em ter-mos terrestres; embora fosse bom nadador,passariam horas antes que os outroschegassem lá para socorrê-lo, e durante essetempo as águas venenosas o matariam in-falivelmente. Sua única esperança era pousarem seco; quanto ao problema da escarpa ver-tical, pensaria nisso depois – se houvesse"depois".

Ia caindo muito devagar naquela zonade um décimo de gravidade, mas dentro empouco principiaria a acelerar à proporçãoque se afastasse do eixo. No entanto a res-istência do ar complicaria a situação, nãopermitindo que a aceleração fosse demasiadorápida. Mesmo sem força motriz, a Libélulafaria o papel de um pára-quedas improvis-ado. Os poucos quilogramas de forçapropulsora que ele ainda podia fornecer

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fariam toda a diferença entre a vida e amorte; essa era a sua única esperança.

O Cubo parará de falar; seus amigosviam exatamente o que estava lhe aconte-cendo e sabiam que com palavras não lhe po-diam prestar nenhuma ajuda.

Jimmy estava dando provas de uma ha-bilidade aviatória como nunca tinhamostrado igual em sua vida; era pena, pen-sou ele com soturno humorismo, que opúblico fosse tão reduzido e não tivesse con-dições de apreciar os detalhes mais sutis doseu desempenho.

Ia baixando numa vasta espiral, e en-quanto o passo dessa espiral se mantivessesuficientemente curto suas probabilidades desobreviver eram boas. O vigor com que peda-lava contribuía para manter a Libélula no ar,embora receasse empregar o máximo de suaforça, pois as asas quebradas podiam soltar-se completamente. E todas as vezes quevirava de frente para o sul, podia apreciar o

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fantástico espetáculo que Rama prepararaespecialmente para ele.

As serpentinas de fogo ainda voavam daponta do Chifre Grande para os picosmenores à sua volta, mas agora o conjuntointeiro estava animado de um movimento derotação. A coroa luminosa de seis dentesgirava em sentido contrário ao de Rama,completando uma revolução em poucos se-gundos. Jimmy teve a impressão de estarcontemplando um gigantesco motor elétricoem operação, e talvez isso não estivessemuito longe da verdade.

Ia a meio caminho da planície, sempreem órbita numa lenta espiral, quando o jogopirotécnico subitamente cessou. Pôde sentira tensão desaparecer do céu e não precisoude olhar para saber que os pelos dos seusbraços já não estavam em pé. Não havia,agora, mais nada que o distraísse ou lhefizesse obstáculo durante os últimos minutosde sua luta pela vida.

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Agora que podia ter certeza da área emque iria pousar, começou a estudá-la atenta-mente. Grande parte dessa região era umtabuleiro de damas composto de ambientesos mais disparatados, como se a umjardineiro paisagista maluco se tivesse dadoplena liberdade de exercer a sua imaginação.As casas desse tabuleiro mediam quase umquilômetro de lado, e embora a maioria delasfossem planas ele não estava seguro de quefossem sólidas, tamanha era a variedade desuas cores e texturas. Resolveu esperar até oúltimo minuto possível antes de tomar umadecisão– se ainda pudesse escolher.

Quando faltavam umas poucas centenasde metros para bater no chão, chamou pelaúltima vez o Cubo.

– Ainda tenho algum controle sobre amáquina... Tocarei no solo dentro de meiominuto. Tornarei a chamar então.

Eram palavras otimistas, e todos o com-preenderam. Mas Jimmy se recusava a dizer

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adeus; queria que seus camaradassoubessem que ele caíra lutando, e semmedo.

Em verdade sentia muito pouco medo, eisso o surpreendia, pois nunca se consideraraum homem particularmente bravo. Eraquase como se estivesse observando os em-bates de um indivíduo completamente es-tranho, em que ele não estivesse pessoal-mente envolvido. Ou melhor, como se estu-dasse um interessante problema de aerod-inâmica, mudando vários parâmetros paraver o que aconteceria. Quase a única emoçãoque sentia era uma certa pena distante pelasoportunidades perdidas – a mais importantedas quais eram as próximas Olimpíadas Lun-ares. Um futuro, pelo menos, estava de-cidido: a Libélula jamais mostraria as suashabilidades na Lua.

Ainda cem metros. Sua velocidade hori-zontal parecia aceitável, mas com que

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rapidez estava caindo? E, por sorte, o terrenoera completamente plano.

Empregaria toda a sua força num ím-peto final, a começar de... AGORA!

A asa direita, tendo cumprido a suaobrigação, finalmente desprendeu-se pelabase. A Libélula começou a rolar sobre simesma e ele tentou corrigir esse movimentolançando todo o peso do seu corpo no sen-tido contrário ao da rotação.

Olhava diretamente para a extensacurva da paisagem que se arqueava a dezes-seis quilômetros de distância quando bateu.

Pareceu-lhe o cúmulo da injustiça e.doabsurdo que o céu fosse tão duro assim.

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29 - PRIMEIROCONTATO

QUANDO JIMMY PAK recobrou a consciên-cia, a primeira coisa que sentiu foi uma lan-cinante dor de cabeça. Quase lhe deu asboas-vindas: pelo menos, provava que eleainda vivia.

Procurou então mover-se, e uma var-iedade de dores simultâneas o fez desistir.Mas, tanto quanto lhe era dado saber, nãoparecia ter nenhuma fratura.

Depois aventurou-se a abrir os olhos,mas tornou a fechá-los imediatamentequando percebeu que estava olhando para afaixa de luz no teto do mundo. Como curapara dor de cabeça, essa vista não serecomendava.

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Ainda estava estirado no chão, tratandode recobrar as forças e perguntando-sequanto tempo deveria deixar passar antes deabrir novamente os olhos, quando se fezouvir um súbito, triturante ruído ali bemperto. Virando a cabeça muito devagar nadireção da origem do som, arriscou uma es-piadela – e quase voltou a perder os sen-tidos. A cinco metros dele, no máximo, umgrande bicho com jeito de caranguejo pareciaestar devorando os destroços da pobreLibélula. Quando conseguiu pôr suas idéiasem ordem, Jimmy rolou sobre si mesmo vag-arosamente, em silêncio, afastando-se domonstro, e esperando ser apresado aqualquer momento pelas garras deste,quando descobrisse que havia alguma coisamais apetitosa ao seu alcance. No entanto, acriatura não lhe prestou a menor atenção, edepois de aumentar para dez metros a dis-tância que os separava sentou o corpocautelosamente, apoiando-se nas mãos.

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Vista dessa distância maior, a coisa nãoparecia tão temível. Tinha um corpo baixo echato, com cerca de três metros decomprimento e um de largura, suportado porseis patas triarticuladas. Jimmy viu que seenganara ao supor que tivesse estado acomer, pois nem sequer parecia ter boca. Oque realmente fazia era um belo trabalho dedemolição, utilizando as garras semelhantesa tesouras para cortar em pedacinhos a bi-cicleta celeste. Toda uma fila de manipu-ladores, que se pareciam extraordinaria-mente com mãos humanas, transferia entãoos fragmentos para uma pilha que cresciacada vez mais no lombo do animal.

Mas seria mesmo um animal? Se bemque essa tivesse sido a primeira reação deJimmy, agora tinha outras idéias. No com-portamento da criatura havia uma espécie dedesígnio que sugeria uma inteligênciabastante elevada; Jimmy não via por que umanimal guiado pelo puro instinto havia de

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juntar cuidadosamente os pedaços esparsosda sua bicicleta celeste – a menos, talvez, queestivesse colhendo material para um ninho.

Sempre trazendo de olho o caranguejo,que ainda parecia não fazer o menor casodele, Jimmy pôs-se laboriosamente em pé.Alguns passos vacilantes demonstraram queele ainda podia caminhar, embora nãotivesse certeza de que poderia deixar paratrás aquelas seis patas na corrida. Ligou en-tão o seu rádio, seguro de que estaria aindafuncionando. Um choque a que ele sobre-vivera nem teria sido notado pelo sólidoaparelho eletrônico.

– Controle Central – disse baixinho.Estão me recebendo?

– Graças a Deus! Você está bem?– Só um pouco abalado. Olhem isto

aqui.Voltou a objetiva da câmara para o

caranguejo, a tempo de apanhar a demoliçãofinal da asa da Libélula.

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– Que diabo de coisa é essa, e por queestá mastigando a sua bicicleta?

– Isso é o que eu gostaria de saber. Jáacabou com a Libélula e vou me pôr à fresca,para o caso de que queira fazer o mesmocomigo.

Jimmy retirou-se devagar, sem tirar osolhos de cima do caranguejo. Este, agora,dava_ voltas e mais voltas, numa espiralcrescente – pelo visto, em busca de fragmen-tos que tivessem escapado à sua atenção; eassim, Jimmy pôde observá-lo pela primeiravez em sua totalidade.

Agora que o choque inicial havia pas-sado, podia reconhecer que não faltavabeleza ao animal. O nome de "caranguejo",que lhe dera automaticamente, era talvez um.tanto inadequado; porque, se não fosse tãogrande, poderia ter dito escaravelho. A car-apaça tinha um magnífico brilho metálico; eJimmy teria quase jurado que se tratavaefetivamente de metal.

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Era uma idéia interessante. Poderia serum robô, e não um animal? Olhou atenta-mente o caranguejo, com esse pensamentono cérebro, analisando todos os detalhes dasua anatomia. No lugar onde devia estar aboca via-se uma coleção de manipuladores,lembrando fortemente os canivetes multil-aminados, que são o deleite de todo garotobuliçoso; havia tenazes, sondas, grosas, e atéuma coisa que se parecia com uma broca.Nada disso, porém, era decisivo. Na Terra, omundo dos insetos podia exibir réplicas detodas essas ferramentas e de muitas outras.O problema animal-ou-robô permanecia emperfeito equilíbrio na sua mente.

Os olhos, que poderiam ter resolvido aquestão, deixavam-na ainda mais ambígua.Estavam tão profundamente engastados nosseus capuchos protetores que não se podiasaber se os cristalinos eram feitos de cristalou de gelatina.

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Totalmente destituídos de expressão,tinham uma cor azul surpreendentementeviva. Embora se tivessem dirigido váriasvezes para Jimmy, não mostraram o menorsinal, de interesse. Na opinião dele, talvezpreconceituosa, isso decidia o nível de in-teligência da criatura. Uma entidade – robôou animal – capaz de desdenhar um ser hu-mano não podia ser muito perspicaz.

Havia parado de dar voltas e ficouimóvel durante alguns momentos, como seescutasse alguma mensagem inaudível. De-pois partiu, com uma curiosa andadura bam-boleante, na direção do Mar. Andava emlinha perfeitamente reta, a cinco ou seisquilômetros por hora, e já tinha percorridouns duzentos metros quanto a mente deJimmy, ainda não de todo refeita do choque,registrou o fato de que as relíquias da suabem-amada Libélula lhe estavam sendoarrebatadas.

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Lançou-se, indignado, em perseguiçãodo raptor.

Seu ato não foi de todo ilógico. Ocaranguejo ia em direção ao Mar – e, sehavia socorro possível, só poderia vir de lá.Além disso, queria descobrir o que a criaturafaria com o seu troféu; isso devia revelar al-guma coisa no tocante à sua motivação einteligência.

Por estar ainda machucado e rengo,Jimmy levou vários minutos a alcançar ocaranguejo, que avançava resolutamente.Quando lhe chegou perto, seguiu-o a umadistância respeitosa, até certificar-se de queele não se ressentia da sua presença. Foi en-tão que notou entre os destroços da Libélulao seu cantil de água e a sua ração de emer-gência, e imediatamente sentiu fome e sede.

Ali, fugindo dele implacavelmente acinco quilômetros por hora, iam o único ali-mento e a única bebida que havia naquela

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metade do mundo. Era preciso apoderar-sedeles a todo custo.

Cautelosamente, foi se chegando aocaranguejo pela traseira direita.

Enquanto marcava passo com ele,estudou-lhe o complicado ritmo das patasaté poder prever qual delas se adiantaria emqualquer momento. Quando se sentiupronto, murmurou um rápido "Com licença"e avançou lesto para deitar a mão aos seusbens. Nunca sonhara que um dia teria de ex-ercer as habilidades de um escrunchador, eestava encantado com o seu sucesso. Emmenos de um segundo tornou a pôr pé emterra e o caranguejo nem sequer diminuiu asua marcha regular.

Deixou-se ficar uns doze metros paratrás, molhou os lábios no cantil e começou amastigar uma barra de concentrado decarne. A pequena vitória o fazia sentir-semuito mais feliz. Agora podia até aventurar-se a pensar no seu futuro sombrio.

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Enquanto há vida, há esperança; e con-tudo, ele não podia imaginar um meio de sersalvo. Mesmo que seus colegas atravessas-sem o Mar, como alcançálos meio quilô-metro lá embaixo? "Havemos de encontrarum meio de descer", prometera o ControleCentral. "Essa escarpa não pode dar volta aomundo inteiro sem uma interrupção em al-guma parte." Jimmy fora tentado a pergun-tar "Por quê?", mas preferira calar.

Uma das coisas mais estranhas, paraquem caminhava no interior de Rama, eraque sempre podia ver o seu ponto de destino.Aqui, a curva do mundo não escondia, rev-elava. Havia já algum tempo que Jimmysabia qual o objetivo do caranguejo; além,naquela terra que parecia subir diante dele,havia uma cova de meio quilômetro de largo.Fazia parte de um grupo de três, no contin-ente meridional; fora impossível, do Cubo,ver-lhes a profundidade. Todas haviam rece-bido os nomes de grandes crateras lunares, e

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aquela de que se aproximava agora era a deCopérnico. A denominação era pouco apro-priada, pois faltavam as colinas circundantese os picos centrais. Esta não passava de umpoço profundo, com paredes perfeitamenteverticais.

Quando se aproximou o suficiente parapoder olhar o fundo, Jimmy viu uma águaparada, de um ominoso verde plúmbeo, pelomenos meio quilômetro mais abaixo. Isto acolocava aproximadamente ao nível do Mar,e Jimmy perguntou-se se haveria algumacomunicação entre ambos.

Pelo interior do poço descia uma rampaem espiral, completamente escavada naparede vertical, de modo que o efeito separecia bastante com o estriamento de umaimensa alma de canhão. Impressionava onúmero de voltas; só depois de acompanhá-las através de várias revoluções,embaralhando-as cada vez mais, foi queJimmy compreendeu que não se tratava de

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uma rampa, mas de três, completamente in-dependentes e separadas umas das outraspor uma distância angular de cento e vintegraus. Em qualquer ambiente que não fosseRama, esse conceito teria sido um sur-preendente tour de force arquitetônico. Astrês rampas conduziam diretamente para aágua e mergulhavam na sua superfície opaca.Próximo à linha d'água Jimmy pôde distin-guir um grupo de túneis ou cavernas negras;tinham um ar bastante sinistro, e ele pergun-tou a si mesmo se seriam habitadas. Talvezos ramaianos fossem anfíbios...

O caranguejo aproximou-se da beira dopoço e Jimmy presumiu que ele fosse desceruma das rampas – talvez levando osdestroços da Libélula a alguma entidade quefosse capaz de avaliá-la. Ao invés disso, a cri-atura caminhou direto até a beira, estendeuquase metade do corpo sobre o abismo sem amenor hesitação, se bem que um erro de al-guns centímetros poderia ser desastroso – e

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sacudiu vigorosamente os ombros. Os frag-mentos da Libélula desceram, esvoaçantes,para as profundezas; foi com lágrimas nosolhos que Jimmy os viu desaparecer. Eis emque redundava, pensou amargamente, a in-teligência daquela criatura.

Depois de jogar fora o cisco, ocaranguejo deu meia volta e começou a cam-inhar na direção de Jimmy, de quem não oseparavam mais de dez metros.

Irei receber o mesmo tratamento?perguntava-se este. Enquanto exibia ao Con-trole Central o monstro que se aproximavarapidamente, esperou que a câmara não est-ivesse tremendo muito.

– Que conselho me dão? – perguntou,ansioso, sem muita esperança de receberuma resposta útil. Era um pequeno consolepensar que estava fazendo história, e viu des-filar diante dos seus olhos, como um relâm-pago, os padrões aceitos para um talencontro.

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Até agora, todos esses padrões tinhamsido puramente teóricos. Ele seria o primeirohomem a testá-los na prática.

– Não corra enquanto não tiver certezade que ele é hostil – respondeu o ControleCentral, também cochichando. Mas correrpara onde? Ele pensava que podia venceraquela coisa numa corrida de cem metros,mas em longa distância – e sentia um frionas entranhas ao imaginar isso – seria certa-mente derrotado pelo cansaço.

Lentamente, Jimmy ergueu as mãosabertas com as palmas para a frente.

Havia duzentos anos que se discutiasobre esse gesto: qualquer criatura, emqualquer parte do universo, o interpretariacomo "Está vendo? Não tenho armas"? Masninguém tinha algo melhor a sugerir.

O caranguejo não mostrou nenhumareação, e tampouco afrouxou a sua marcha.Sem fazer o menor caso de Jimmy, passoupor ele caminhando resolutamente para o

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sul. O representante do Homo sapiens, quese sentia perfeitamente ridículo, viu o seuPrimeiro Contato dirigir-se para a planícieramaiana, numa total insensibilidade à suapresença.

Raramente fora tão humilhado em suavida. Então veio-lhe em socorro o senso dehumor. Afinal de contas, que importânciatinha o sofrer uma desfeita de um caminhãode lixo animado? Seria pior se ele corresse aabraçá-lo como a um irmão desaparecido hámuitos anos...

Voltou à orla de Copérnico e pôs-se a ol-har as águas opacas lá no fundo.

Pela primeira vez notou a presença deformas vagas, algumas delas bem grandes, amover-se de um lado para outro sob a super-fície. Momentos depois, uma dessas formasdirigiu-se para a mais próxima espiral, e al-guma coisa que parecia um tanque centípededeu início à longa subida. Na marcha em queia, calculou Jimmy, levaria quase uma hora

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para chegar lá em cima; se era uma ameaça,era uma ameaça a muito longo prazo.

Notou, então, sinais de movimentomuito mais rápido perto de uma daquelasaberturas com ar de cavernas, ao nível daágua. Alguma coisa se deslocava com grandevelocidade ao longo da rampa, mas ele nãopodia focalizála claramente, nem distinguiruma forma definida. Era como se estivesseolhando um pequeno ciclone ou torvelinhode vento, mais ou menos do tamanho de umhomem...

Pestanejou e sacudiu a cabeça, conser-vando os olhos fechados durante alguns se-gundos. Quando tornou a abri-los, a apariçãose dissipara.

Talvez o impacto o tivesse abalado maisdo que pensava; esta era a primeira vez quesofria uma alucinação visual. Não mencion-aria o fato ao Controle Central.

Tampouco se daria ao trabalho de ex-plorar aquelas rampas, como quase se

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resolvera a fazer. Seria um evidente desper-dício de energia.

O fantasma rodopiante que apenas ima-ginara ver não tinha relação nenhuma com a.sua decisão.

Absolutamente nenhuma; pois, natural-mente, Jimmy não acreditava em fantasmas.

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30 - A FLORAS PERIPÉCIAS de Jimmy tinham-lhe dado

sede, e ele tinha perfeita consciência de queem toda aquela terra não havia uma gota deágua que um homem pudesse beber. Com oconteúdo do seu cantil poderia talvez sobre-viver uma semana... mas para quê? Os mel-hores cérebros da Terra não tardariam afocalizar-se no seu problema; sem dúvida oComandante Norton seria bombardeado porsugestões. Mas como encontrar um meio dedescer aquela escarpa vertical de quinhentosmetros? Mesmo que tivesse uma corda sufi-cientemente longa, não havia onde amarrá-la.

Não obstante, era uma tolice – e umafalta de varonilidade – desistir sem luta.Todo socorro teria que vir do Mar, e en-quanto para lá caminhava podia continuar o

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seu trabalho como se nada houvesse aconte-cido. Nenhum outro jamais observaria e fo-tografaria o variado terreno pelo qual deviapassar, e isso lhe garantiria uma glória pós-tuma. Embora tivesse preferido muitas out-ras honras, sempre era melhor do que nada.

A distância que mediava entre ele e oMar seria, para a pobre Libélula, de apenastrês quilômetros, mas parecia improvávelque pudesse alcançá-lo em linha reta; talvezfosse dificílimo atravessar alguns trechos doterreno à sua frente. Isso, todavia, não eraproblema, pois não faltavam outros camin-hos que escolher. Jimmy podia vê-los todos,espalhados sobre o grande mapa curvo quese elevava lentamente à direita e à esquerda.

Sobrava-lhe tempo. Começaria pelocenário mais interessante, embora o desvi-asse do caminho reto. A cerca de um quilô-metro dali havia um quadrado que reluziacomo cristal – ou como uma gigantesca exib-ição de pedras preciosas.

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Foi talvez esse pensamento que estugouos passos de Jimmy.

Mesmo de um condenado à morte nãoseria de estranhar que se interessasse umpouco por alguns milhares de metros quad-rados de gemas. Não ficou muito desapon-tado quando descobriu que eram cristais dequartzo, engastados, aos milhões, num leitode areia. A casa contígua do tabuleiro eramais interessante, pois estava coberta porum padrão de colunas metálicas ocas, dis-tribuídas aparentemente por acaso, muitochegadas umas às outras, e cuja alturavariava de um a cinco metros. Era completa-mente impérvia; só um tanque, derrubandotudo, poderia atravessar aquela floresta detubos.

Jimmy caminhou entre os cristais ecolunas até chegar à primeira encruzilhada.O quadrado à esquerda era um enorme ta-pete de arame trançado; procurou soltar umfio, mas sua força não bastou para rompê-lo.

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A esquerda havia um mosaico de tijoletashexagonais, tão bem embutidas que não sepodia ver as juntas. Daria a impressão deuma superfície contínua se as tijoletas nãotivessem todas as cores do arco-íris. Jimmygastou muitos minutos procurando descobrirduas delas que fossem da mesma cor, paraver se poderia então distinguir os seus lim-ites, mas não encontrou um único exemplode tal coincidência.

Enquanto tomava uma lenta vista pan-orâmica em volta da encruzilhada, falou parao Controle Central em tom queixoso:

– Que pensam disto? Eu cá tenho a im-pressão de ter sido encaixado numgigantesco quebra-cabeças de armar. Ou seráque é a Galeria de Arte Ramaiana?

– Estamos tão perplexos quanto você,Jimmy. Mas nunca se viu o menor sinal deque os ramaianos fossem também artistas.Vamos esperar até que tenhamos mais al-guns exemplos antes de tirar conclusões.

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Os dois exemplos que ele foi encontrarna próxima encruzilhada não ajudarammuito. Um deles era a própria imagem dodesnudamento – um cinzento liso e neutro,duro mas escorregadio ao tato. O outro erauma esponja macia, perfurada por bilhões ebilhões de buraquinhos. Experimentou-ocom o pé, e toda a superfície ondulou demaneira nauseante debaixo dele, como umaareiaengolideira mal-e-mal estabilizada.

Na encruzilhada seguinte encontroualgo que se parecia notavelmente com umcampo lavrado – só que os sulcos mediamuniformemente um metro de profundidade eo material de que eram feitos tinha a texturade uma lima ou grosa; mas deu poucaatenção a isso, porque o quadrado adjacenteera, de todos os que tinha visto até agora, oque mais fazia pensar. Finalmente havia al-guma coisa que podia compreender; e erabastante perturbadora.

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Todo o quadrado era circundado poruma cerca, tão convencional que não teria ol-hado duas vezes para ela se a visse na Terra.Tinha mourões – aparentemente de metal,com cinco metros de intervalo, e seis fios dearame muito esticado.

Além dessa cerca havia outra, idêntica aela, e além dessa uma terceira.

Era mais um exemplo típico da redun-dância ramaiana; tudo que estivesse presonessa encerra não teria possibilidade de es-capar. Não havia entradas – nenhum portãoque se pudesse abrir para encurralar ali o an-imal ou animais que presumivelmente a hab-itavam. Em compensação, no centro doquadrado havia um poço único, como umaversão menor de Copérnico.

Mesmo em outras circunstâncias eraprovável que Jimmy não tivesse hesitado,mas agora não tinha nada a perder. Escalourapidamente as três cercas, caminhou para opoço e olhou para baixo.

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À diferença de Copérnico, este só tinhacinquenta metros de profundidade.

No fundo havia três bocas de túnel, cadauma das quais parecia bastante grande paradar passagem a um elefante. E era tudo.

Depois de olhar durante algum tempo,Jimmy concluiu que a única coisa que poder-ia fazer sentido em todo aquele arranjo eraque o fundo do poço fosse um elevador. Masque é que esse elevador transportava? Talveznunca viesse a sabê-lo. Só podia conjeturarque devia ser algo muito grande e possivel-mente muito perigoso.

Durante as próximas horas, caminhoumais de dez quilômetros pela beira do Mar, eas casas do tabuleiro começaram aconfundir-se na sua memória.

Tinha visto algumas que estavam total-mente encerradas em estruturas semel-hantes a barracas feitas de tela de arame,como se fossem enormes gaiolas.

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Outras pareciam ser poças de líquidocongelado, com marcas de remoinhos; no en-tanto, quando as testara com cautela achara-as perfeitamente sólidas. E havia uma tãoabsolutamente negra que nem sequer a po-dia ver com clareza; só o sentido do tato lhemostrava que havia qualquer coisa ali. Con-tudo, graças a uma sutil modulação, agorasurgia algo que ele podia compreender.Sucedendo-se uns aos outros em direção aosul, havia uma série de – nenhuma outra pa-lavra podia servir – campos. Era como se es-tivesse passando por uma fazenda experi-mental na Terra; cada casa do tabuleiro eraum quadrado de terra cuidadosamente nive-lada, a primeira que ele via nas paisagensmetálicas de Rama.

Os extensos campos eram virgens e semvida – à espera de searas que nunca tinhamsido plantadas. Qual seria o seu propósito,visto ser incrível que criaturas tão avançadascomo os ramaianos se dedicassem a uma

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forma qualquer de agricultura quando até naTerra esta não era mais do que um hobbymuito em voga e uma fonte de alimentos ex-óticos de luxo? Mas Jimmy teria jurado quese tratava de fazendas potenciais, preparadascom o máximo carinho. Nunca tinha vistouma terra que parecesse tão limpa; cadaquadrado era recoberto por um lençol deplástico duro e transparente. Tentou cortá-lopara obter uma amostra, mas o seu canivetenão fez mais do que arranhar a superfície.

Mais para o interior havia outros cam-pos, e muitos deles continham complicadasestruturas de varas e arames, presumivel-mente destinadas a servir de suporte paraplantas trepadeiras. Pareciam muito despi-das e desoladas, como árvores sem folhas nomais forte do inverno. O inverno que tinhamconhecido devia ter sido longo e realmenteterrível, e essas poucas semanas de luz e cal-or não representavam mais que um breve in-terlúdio até que ele voltasse.

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Jimmy não saberia dizer o que o fezparar e olhar com mais atenção aquelelabirinto metálico. Inconscientemente, seuespírito devia estar tomando nota de todosos detalhes da paisagem; e registrara, nessapaisagem fantástica, alguma coisa aindamais anômala.

Cerca de um quarto de quilômetro adi-ante, no meio de uma latada de varas earames, destacava-se uma mancha isolada decor. Era tão pequena e modesta que seachava, por assim dizer, no limite da visibil-idade; na Terra, ninguém teria olhado duasvezes para ela. Contudo, uma das razões dehaver reparado nela agora era, indubitavel-mente, o fato de lembrar-lhe a Terra...

Não comunicou o fato ao Controle Cent-ral enquanto não teve certeza de que não sehavia enganado, de que não estava sendo ilu-dido por uma fantasia do seu próprio desejo.Só quando chegou a poucos metros do objetode sua curiosidade pôde ter certeza de que a

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vida, tal como a conhecia, se havia introduz-ido no mundo estéril e asséptico de Rama.Porque ali, em solitário esplendor na orla docontinente meridional, havia desabrochadouma flor.

Ao aproximar-se ainda mais, tornou-se-lhe evidente que alguma coisa falhara nosplanos dos construtores de Rama. Havia umburaco no forro que, presumivelmente, pro-tegia a camada de terra de contaminação porformas indesejadas de vida. Por essa soluçãode continuidade saía uma haste verde, maisou menos da grossura de um dedo mínimode homem, que trepava enroscando-se nosarames da latada. A um metro do solo,rebentava numa erupção de folhas azuladas,mais parecidas com penas do que com a fol-hagem de qualquer planta conhecida porJimmy. A haste terminava, ao nível do olho,por aquilo que, a princípio, ele tomara poruma flor só. Agora via, sem nenhuma

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surpresa em absoluto, que eram, em realid-ade, três flores compacta-mente unidas.

As pétalas eram tubos de cor viva, comuns cinco centímetros de comprimento;havia pelo menos cinquenta em cada flor, erebrilhavam com azuis, violetas e verdes tãometálicos que mais pareciam asas de bor-boleta do que uma coisa pertencente ao reinovegetal. Jimmy não sabia praticamente nadade Botânica, mas intrigava-o a ausência dequaisquer estruturas que se assemelhassema pétalas ou estames. A parecença com asflores terrestres seria pura coincidência?Talvez houvesse mais afinidade com umpólipo de coral; fosse como fosse, parecia im-plicar a existência de pequenos seresvoadores que serviriam ou como agentes fer-tilizantes – ou de alimento.

Na verdade, isso não tinha importância.Qualquer que fosse a definição científica,para Jimmy era uma flor. O estranho mil-agre, o acidente tão insólito em Rama,

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lembrava-lhe todas as coisas que nunca torn-aria a ver; e estava decidido a apossar-sedela.

Isso não seria fácil. Separavam-nos maisde dez metros e uma latada feita de delgadasvaras que formavam um padrão cúbico vári-as vezes repetido, com menos de quarentacentímetros de aresta. Jimmy não andariapilotando bicicletas celestes se não fosse umhomem esguio e musculoso; tinha, pois, cer-teza de que poderia meter-se pelos interstí-cios da grade. Mas a dificuldade estaria emsair lá de dentro: ser-lhe-ia certamenteimpossível virar-se, de modo que teria deretirar-se em marcha à ré.

O Controle Central ficara encantadocom a sua descoberta quando descrevera aflor e a filmara sob todos os ângulos possí-veis. Ninguém objetou quando ele disse:"Vou buscá-la". Não esperava, mesmo, queobjetassem; sua vida lhe pertencia agora, epodia fazer dela o que lhe aprouvesse.

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Tirou toda a roupa, segurou as varasmetálicas e começou a enfiar-se na armação.Mal havia espaço para passar, e tinha a im-pressão de ser um prisioneiro escapandoentre as barras da sua cela. Depois deinserir-se completamente na latada, experi-mentou sair de novo, para ver se haveriaproblemas. Era consideravelmente mais difí-cil, visto que agora tinha de usar os braçosestendidos para empurrar em vez de puxar,mas não via por que ficar preso ali semapelação. Jimmy era um homem de ação eimpulso, não de introspecção. Enquanto pro-gredia penosamente, retorcendo-se, ao longodo estreito corredor de varas metálicas, nãoperdeu tempo em indagar por que estavarealizando uma façanha tão quixotesca. Emtoda a sua vida nunca se interessara porflores, e agora estava gastando suas últimasreservas de energia para colher uma.

Em verdade, este espécime era único, ede enorme valor científico. Mas queria-o

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para si porque era o derradeiro elo que o lig-ava à vida e ao seu planeta natal.

Não obstante, quando viu a flor ao al-cance da sua mão, teve um escrúpulo re-pentino. Talvez fosse a única flor existenteem Rama: era justo que a apanhasse?

Se precisasse de uma justificativa, podiaconsolar-se com o pensamento de que ospróprios ramaianos não a tinham incluídoem seus planos. Era, evidentemente, umaanomalia que germinara com um atraso – ouuma antecipação – de centenas de milharesde anos. Mas em realidade ele não neces-sitava de uma escusa, e sua hesitação eraapenas momentânea. Estendeu a mão, se-gurou a haste e deu um forte puxão.

A flor desprendeu-se com muita facilid-ade; Jimmy arrancou também duas folhas ecomeçou a recuar lentamente através dalatada. Agora que só tinha uma mão livre eraextremamente difícil e mesmo dolorosodeslocar-se, e logo teve de parar a fim de

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recobrar o fôlego. Foi então que notou que asfolhas peniformes se estavam fechando e quea haste decapitada se desprendia lentamentedos seus suportes. Enquanto observava essascoisas com um misto de fascínio e con-sternação, viu que toda a planta se retiravapara o solo, como uma serpente mortal-mente ferida se arrasta para a sua toca.

"Matei uma coisa bela", disse Jimmy a simesmo. Mas Rama não o tinha matado tam-bém? Estava apenas cobrando o que era seude direito.

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31 - VELOCIDADETERMINAL

O COMANDANTE NORTON nunca perderaainda um homem e não pretendia começaragora. Mesmo antes de Jimmy ter partidopara o Pólo Sul, estivera estudando os meiosde salvá-lo em caso de acidente. O problema,contudo, se revelara muito difícil, e não tinhaencontrado uma resposta. Só conseguirauma coisa, que era eliminar todas assoluções óbvias.

Como se sobe uma escarpa vertical demeio quilômetro de altura, mesmo numagravidade reduzida? Com o equipamento e otreinamento adequados, seria bastante fácil.Não havia lança-arpões a bordo da Endeav-our e ninguém podia imaginar outro meioprático de cravar as centenas de pregões

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necessários naquela superfície dura eespelhada.

Dera um breve relance de olhos a outrassoluções mais exóticas, algumas delas fran-camente malucas. Talvez um simp, munidode discos de sucção, pudesse fazer a escal-ada. Mas, embora esse plano fosse prático,quanto tempo seria preciso para fabricar etestar o equipamento e treinar um simp noseu uso?

Norton duvidava que um homem tivessea força necessária para levar a façanha até ofim.

Mas havia uma tecnologia maisavançada. As unidades de propulsão de AEVeram tentadoras, mas tinham uma forçapropulsora muito fraca por se destinarem aoperar em gravidade zero. Eram incapazesde erguer o peso de um homem, mesmo con-tra a modesta gravidade de Rama.

Seria possível enviar um propulsor deAEV pelo controle automático, levando

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apenas uma corda de salvação? Havia exper-imentado essa idéia com o Sargento Myron,que prontamente abatera a máquina, envoltaem chamas.

Segundo frisara o engenheiro, haviasérios problemas de estabilidade; podiam serresolvidos, mas isso tomaria muito tempo –muito mais do que lhes convinha.

E quanto a balões? Parecia haver umaleve possibilidade nesse setor, se conseguis-sem arranjar um envoltório e uma fonte sufi-cientemente compacta de calor. Esse era oúnico enfoque que Norton não tinha rejeit-ado quando o problema cessou repentina-mente de ser teórico para se converter numaquestão de vida ou de morte, dominando osnoticiários em todos os mundos habitados.

Enquanto Jimmy fazia a sua peregrin-ação pela beira do Mar, metade dos alopra-dos do Sistema Solar estavam procurandosalvá-lo. No Quartel-General da Frota, todasas sugestões eram levadas em consideração,

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e cerca de uma em mil era encaminhada àEndeavour. A do Dr. Carlisle Perera chegouduas vezes – uma pela rede do próprio Ser-viço de Observação e a outra peloPLANETCOM, Prioridade Rama. Absorveraaproximadamente cinco minutos de reflexãopor parte do cientista e um milissegundo detempo de computador.

A princípio, o Comandante Nortonachou que aquilo era uma pilhéria de muitomau gosto. Depois viu o nome do remetentee os cálculos anexos, e mudou rapidamentede atitude. Passou a mensagem a KarlMercer.

– Que pensa você disto? – perguntou navoz mais neutra que pôde arranjar.

Karl leu tudo num instante e disse:– Pois diabos me levem! Ele tem razão,

é claro.– Tem certeza?

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– Ele acertou no caso da tempestade,não acertou? Nós devíamos ter pensadonisto. Faz com que eu me sinta um imbecil.

– Você não é o único. O problemaseguinte é: como dar a notícia a Jimmy?

– Não creio que devamos dá-la... Só noúltimo momento possível.

– Isso é o que eu preferiria se estivesseno lugar dele. Diga-lhe apenas que nós va-mos lá.

Embora pudesse enxergar o outro ladodo Mar Cilíndrico e soubesse mais ou menosa direção em que vinha a Resolution, Jimmysó avistou o pequenino barco depois que estehavia passado Nova Iorque. Parecia incrívelque ele pudesse acomodar seis homens – e oequipamento, fosse lá qual fosse, que traziampara socorrê-lo.

A um quilômetro de distância recon-heceu o Comandante Norton e começou aabanar a mão. Momentos depois Nortonavistou-o e retribuiu a saudação.

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– Prazer em vê-lo tão bem disposto,Jimmy – disse pelo rádio.

– Eu lhe prometi que não o deixaríamospara trás. Me acredita agora?

Não de todo, pensou Jimmy. Até estemomento desconfiara de que aquilo fosseuma bondosa conspiração para levantar-lheo moral. Mas o Comandante não teria at-ravessado o Mar só para lhe dizer adeus; de-via ter arquitetado algum plano.

– Acreditarei, Capitão, quando estiver aíno convés com os senhores – respondeu. –Mas como chegarei lá?

A Resolution estava diminuindo amarcha, a cem metros da base da escarpa.Que Jimmy pudesse ver, não trazia nenhumequipamento fora do comum – embora elenão soubesse dizer exatamente o queesperava.

– Lamento muito, Jimmy... masqueríamos evitar-lhe tanto quanto possívelos motivos de preocupação.

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Hum... Estas palavras não auguravamnada de bom. Que diabo queria ele dizer?

A Resolution parou a cinquenta metrosde distância na horizontal e quinhentos navertical. Jimmy viu quase a voo de pássaro oComandante falando ao microfone.

– Este é o negócio, Jimmy. Você nãocorrerá nenhum perigo, mas será preciso tercoragem. Sabemos que coragem não lhefalta. Você vai saltar.

– Quinhentos metros!– Sim, mas em meia gravidade apenas.– E daí? O senhor já saltou cinquenta

metros na Terra?– Cale a boca, senão eu cancelo a sua

próxima licença. Você mesmo devia ter feitoo cálculo. É simplesmente uma questão develocidade terminal. Nesta atmosfera, nãopode ir além de noventa quilômetros porhora, quer caia de duzentos, quer de dois milmetros.

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Noventa já e bastante, é verdade, mas agente pode reduzir isso um pouco.

Eis o que você terá de fazer; ouça, port-anto, com cuidado.

– Estou ouvindo - disse Jimmy. - Tratede ser convincente senão...

Não tornou a interromper o Comand-ante, nem fez qualquer comentário quandoNorton terminou. Sim, a proposta fazia sen-tido, e era tão absurdamente simples que sóum gênio podia ter concebido tal idéia. Ou,talvez, alguém que não esperasse pô-la emprática pessoalmente...

Jimmy nunca havia experimentado omergulho de grande altura nem dado umsalto retardado de pára-quedas, o que lheteria proporcionado uma certa preparaçãopsicológica para esta façanha. Podia-se expli-car a um homem que era perfeitamente se-guro atravessar um abismo caminhandosobre uma prancha – e contudo, ainda queos cálculos estruturais fossem impecáveis,

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ele seria, talvez, incapaz de fazê-lo. Jimmycompreendia agora por que o Comandantetinha sido tão evasivo no que dizia respeitoaos detalhes do salvamento. Não lhe haviamdado tempo para refletir nem para encontrarobjeções.

– Não desejo apressá-lo – disse a vozpersuasiva de Norton meio quilômetro láembaixo, – mas quanto mais cedo, melhor.

Jimmy olhou para o seu preciososouvenir, a única flor encontrada em Rama.Envolveu-a com o maior cuidado no seulenço sujo, deu um nó no tecido e atirou-osobre a borda da escarpa.

O conjunto desceu flutuando com tran-quilizadora lentidão, mas também demoroumuito tempo a cair, diminuindo cada vezmais de tamanho até que não pôde mais vê-lo. Mas então a Resolution deu um arrancopara a frente e ele compreendeu que o objetotinha sido avistado.

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– Lindo! – exclamou o Comandante,entusiasmado. – Tenho certeza de que lhedarão o seu nome. Muito bem – estamosesperando...

Jimmy tirou a camisa – a única peça deroupa superior que se usava naquele climaagora tropical – e estirou-a pensativamente.Por várias vezes em suas caminhadas est-ivera a ponto de lançá-la fora; agora, talvezcontribuísse para salvar-lhe a vida.

Pela última vez, virou-se para o mundooco que só ele havia explorado, e os dis-tantes, ominosos pináculos do Chifre Grandee dos Pequenos Chifres.

Depois, segurando firmemente a camisacom a mão direita, deu uma corrida para sal-tar tão longe quanto possível da beira daescarpa.

Agora não havia pressa, pois dispunhade vinte segundos para deleitar-se com a ex-periência. Mas não perdeu tempo enquanto ovento se fazia mais rijo à sua volta e a

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Resolution se expandia lentamente no seucampo de visão.

Segurando a camisa com ambas asmãos, estendeu os braços acima da cabeça,para que o ar fragoroso enfunasse o pano e otransformasse num tubo retesado.

Como pára-quedas, não se podia dizerque fosse um sucesso; os poucos quilômetroshorários eram úteis, porém não vitais. Estavaprestando um serviço muito mais import-ante, que era conservar-lhe o corpo emposição vertical, de modo que mergulhariano Mar direito como uma flecha.

Ainda tinha a impressão de que não semovia em absoluto, mas a água lá embaixo éque se arremessava na sua direção. Depoisde ter-se decidido, não sentiu medo; estavaaté um pouco indignado com o capitão pornão lhe ter dito nada. Pensaria realmenteque ele teria medo de saltar se meditassemuito tempo sobre isso?

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No último momento largou a camisa,encheu os pulmões de ar e apertou a boca e onariz com ambas as mãos. De acordo com asinstruções que recebera, endureceu o corpoaté tornar-se como uma barra rígida, ecruzou os pés com força. Entraria na águacomo uma lança que cai...

– Será exatamente o mesmo que dar umpasso além da extremidade de um trampolimna Terra. – Não há nenhum problema... sevocê entra bem na água.

– E se não entro? – perguntou ele.– Então terá de voltar e tentar de novo.Alguma coisa bateu-lhe nos pés – com

força, porém não violentamente.Um milhão de mãos viscosas lhe dila-

ceravam o corpo; havia uma atroada nosseus ouvidos, uma crescente pressão – e, em-bora conservasse os olhos firmemente cerra-dos, podia notar que ia escurecendo à me-dida que mergulhava nas profundezas doMar Cilíndrico.

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Com toda a sua força, começou a nadarpara cima em direção à desmaiada luz. Nãopodia abrir os olhos por mais tempo do quedurava uma piscadela; quando o fazia, sentiaa água venenosa como se fosse um ácido.

Parecia estar lutando há milênios, emais de uma vez teve medo, como numpesadelo, de haver perdido a orientação e es-tar, em verdade, nadando para baixo.

Arriscava então outra rápida olhadela, ede cada vez a luz era mais forte. Ainda tinhaos olhos apertados com força quando asso-mou à tona. Engoliu um precioso hausto dear, ficou boiando de costas e olhou em redorde si.

A Resolution dirigia-se para ele a toda avelocidade; segundos depois, mãos ansiosaso agarravam e arrastavam para bordo.

– Engoliu alguma água? – foi a perguntaapreensiva do Comandante.

– Não creio.

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– Enxágue a boca com isto, em todocaso. Assim! Como se sente?

– Não sei dizer ao certo. Daqui a poucolhes digo. Olhem... muito obrigado a todos.

Mal se havia passado um minuto eJimmy sabia perfeitamente como se sentia.

– Vou vomitar – disse, branco como umlençol. Seus salvadores ficaram incrédulos.

– Numa calmaria morta... num mar lisocomo um espelho? – protestou a SargentaBarnes, que parecia considerar a indis-posição de Jimmy como um ataque frontal àsua competência.

– Eu não chamaria isso de mar liso –disse o Comandante, abarcando com umgesto do braço a banda de água que fazia avolta, do céu. – Mas não se envergonhe...Você pode ter engolido um pouco dessacoisa. Ponha-a para fora o mais cedopossível.

Jimmy ainda fazia força, las-timosamente e sem nenhum sucesso, quando

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houve um súbito relâmpago no céu às costasdo grupo que o assistia. Todos os olhares sevoltaram para o Pólo Sul e Jimmy esqueceuinstantaneamente as suas náuseas. Os Chi-fres haviam recomeçado a sua exibiçãopirotécnica.

Lá estavam as serpentinas de fogo,medindo um quilômetro de comprimento,que dançavam do espigão central para osseus companheiros menores. Mais uma vezderam início àquela majestosa rotação, comose dançarinas invisíveis enrolassem fitas nomaypole* elétrico. Mas agora começaram aacelerar, movendo-se cada vez mais depressaaté se confundirem num cintilante cone deluz.

Era um espetáculo ainda mais intimid-ador do que todos os demais que tinhamvisto ali até agora,e fazia-se acompanhar poraquele distante bramido entrecortado de es-talos que aumentava a impressão de umaforça irresistível.

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Durou cerca de cinco minutos, depoiscessou abruptamente, como se alguémhouvesse desligado um comutador elétrico.

– Eu gostaria de saber o que o ComitêRama pensa disto – murmurou Norton, semse dirigir a ninguém em particular. – Alguémaqui tem uma teoria?

Não houve tempo para responderem,pois nesse momento o Comitê Centralchamou com uma voz muito excitada.

– Resolution! Estão bem? Sentiramisso?

– Sentimos o quê?– Pensamos que foi um terremoto. Deve

ter acontecido no momento em que pararamos fogos.

– Alguma alteração?– Não creio. Não chegou a ser violento...

mas nos sacudiu um pouco.– Nós não sentimos absolutamente

nada. Mas isso é natural, aqui no mar.

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– Sim, claro. Que tolice a minha! Dequalquer forma, tudo parece estar tranquiloagora... até a próxima vez.

– Sim, até a próxima vez – ecoou Nor-ton. O mistério de Rama crescia cada vezmais; quanto mais coisas descobriam, menoscompreendiam.

Ouviu-se um grito repentino datimoneira.

– Capitão, olhe! Lá em cima, no céu!Norton alçou os olhos e percorreu rapi-

damente o circuito do mar. Nada viu en-quanto o seu olhar não alcançou o zênite,fixando-se no outro lado do mundo.

– Meu Deus! – murmurou lentamente,como se compreendesse que a "próxima vez"já tinha chegado.

Um enorme vagalhão corria na direçãodeles, descendo a eterna curva do MarCilíndrico.

* Mastro enfeitado dos festejos da primavera,em 1º de maio, no Reino Unido (N. do T.).

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32 - A ONDACONTUDO, mesmo nesse momento de

choque, o primeiro cuidado de Norton foicom a sua nave.

– Endeavour! – gritou. – Comunique asituação!

– Tudo O.K., Capitão – respondeu a voztranquilizadora do imediato. – Sentimos umleve tremor, porém nada que pudesse causardanos. Houve uma pequena mudança deposição... A ponte diz que cerca de zero vír-gula dois graus.

Também pensa que a velocidade derotação se alterou ligeiramente; teremosuma leitura exata dentro de dois minutos.

"Então a coisa já começou", pensou Nor-ton, "e muito mais cedo do que esperávamos;ainda estamos longe do periélio e do mo-mento indicado para uma mudança de

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órbita." Mas alguma espécie de centragemestava indubitavelmente ocorrendo – etalvez viessem a sofrer ainda outros choques.

Entrementes, os efeitos deste primeiroeram bem evidentes lá em cima, no lençolcurvo de água que parecia estar a cair per-petuamente do céu. A onda ainda vinha auns dez quilômetros de distância, e estendia-se sobre toda a largura do Mar, da margemsetentrional à meridional. Nas proximidadesda terra, era uma espumejante paredebranca, mas em águas mais profundas erauma linha azul quase invisível, que se moviamuito mais depressa do que a arrebentaçãonos dois flancos. A resistência dos baixios dacosta já começara a curvá-la em arco, com aparte central ganhando cada vez maisdianteira.

– Sargenta – disse Norton numa voz ur-gente. – Isto compete a você. Que podemosfazer?

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A Sargenta Barnes já imobilizara com-pletamente a jangada e estudava a situação,atenta. Norton observou com alívio que suaexpressão não mostrava sinais de alarma – esim de uma certa excitação eufórica, comoum bom atleta que vai aceitar um desafio.

– Precisávamos fazer algumas sonda-gens – disse ela. – Se a água é funda aqui,não há motivo para preocupações.

– Então não há perigo. Estamos ainda aquatro quilômetros da praia.

– Assim espero, mas preciso estudar asituação.

Tornou a acionar o motor e fez a Resolu-tion dar meia volta, até que se pôs de novoem marcha, de proa para a onda que seaproximava. Norton calculou que a partecentral, no seu célere avanço, os alcançariaem menos de cinco minutos; mas tambémpodia ver que ela não representava um sérioperigo. Não era mais do que uma mareta ve-loz, com uma fração de metro de altura, e

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mal sacudiria o barco. As muralhas de es-puma que vinham muito atrás é que con-stituíam a verdadeira ameaça.

De repente, bem no centro do mar,apareceu uma linha de ondas de rebentação.O vagalhão chocara-se, evidentemente, con-tra uma muralha submersa, medindo váriosquilômetros de largura e situada não muitoabaixo da superfície. Ao mesmo tempo, asrebentações dos dois flancos se aplanaramao encontrar água mais funda.

"Chapas anti-esparrinho", pensou Nor-ton. "Exatamente o mesmo que nos tanquesde combustível da Endeavour, mas em es-cala mil vezes maior. Deve haver um sistemacomplexo dessas chapas em toda a volta doMar, para amortecer qualquer onda o maisrapidamente possível. A única coisa que im-porta de momento é: estaremos em cima deuma delas?"

A Sargenta Barnes ia um pulo à frentedele. Fez logo parar a Resolution e lançou

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ferro. Este tocou no fundo a apenas cincometros.

– Puxem o barco! – gritou ela aos seuscompanheiros de tripulação. – Temos de sairdaqui!

Norton concordou pressurosamente;mas em que direção? A Sargenta ia a toda ve-locidade para a onda, que só cinco quilômet-ros separavam agora deles.

Pela primeira vez o Comandante pôdeouvi-la aproximar-se – um distante, incon-fundível bramido que nunca esperara escutarno interior de Rama. De repente, mudou deintensidade; a porção central se estavaaplanando mais uma vez – enquanto os flan-cos tornavam a crescer.

Norton tentou estimar a distância entreos defletores submersos, na hipótese de queestivessem separados por intervalos iguais. Aser assim, faltava vir um ainda; se conseguis-sem imobilizar a jangada na água profunda

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entre dois deles, estariam perfeitamente asalvo.

A Sargenta Barnes desligou o motor elançou de novo a âncora, que desta vez des-ceu trinta metros sem tocar no fundo.

– Estamos fora de perigo - disse ela comum suspiro de alívio. – Mas vou conservar omotor em funcionamento.

Só restavam, agora, as paredes retarda-das de espuma ao longo da costa; além, nocentro do Mar, reinava novamente a calma,com exceção da modesta onda azul que aindacorria na direção deles. A Sargenta limitava-se a manter a Resolution na rota, a proavoltada para a agitação, pronta para dar todaforça ao motor a qualquer momento.

Foi então que, apenas dois quilômetrosdiante deles, o Mar pôs-se de novo a es-pumar. Corcoveou, sacudindo furioso a jubabranca, e o seu bramido pareceu encher omundo inteiro. Ã onda do próprio MarCilíndrico, com os seus dezesseis

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quilômetros de altura, sobrepunha-se umaonda menor, como uma avalancha que sedespenha tonitruante pela falda de umamontanha.

A Sargenta Barnes devia ter visto a ex-pressão dos rostos de seus companheiros,pois gritou, mais forte do que o rugir daságuas:

– Por que têm medo? Já cavalguei out-ras maiores do que esta. Isso não era bemverdade, e tampouco quis ela acrescentarque suas experiências anteriores tinhamocorrido a bordo de um sólido barco de surf-ing e não numa jangada improvisada.

– Mas, se tivermos de saltar, esperemque eu lhes diga. Verifiquem como estão assuas jaquetas salva-vidas.

"Ela é magnífica", pensou o Comand-ante, visivelmente tão encantado como umguerreiro viking que se lança ao combate. "Eé provável que tenha razão... a menos que

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tenhamos cometido um grave erro decálculo."

A onda continuava a crescer, curvando-se no alto e preparando-se para desabar. Ainclinação do Mar diante deles deviaexagerar-lhe a altura, pois parecia enorme –uma força irresistível da natureza que es-magaria tudo quanto encontrasse pelafrente.

Foi então que, num espaço de segundos,o vagalhão se aplanou como se os seus fun-damentos tivessem sido arrancados de baixodele. Tinha passado a barreira submersa eestava de novo em água profunda. Umminuto depois, quando os alcançou, tudoque fez a Resolution foi balouçar váriasvezes, até que a Sargenta Barnes deu meiavolta e lançou a jangada a toda a velocidadepara o norte.

– Obrigado, Ruby. Isso foi esplêndido.Mas estaremos em casa antes que ela voltepela segunda vez?

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– Provavelmente não. Voltará dentro deuns vinte minutos, mas terá perdido toda asua força e mal repararemos nela.

Agora que a onda havia passado, po-diam ficar tranquilos e gozar a viagem – sebem que ninguém se sentiria à vontade en-quanto não tivessem tornado a pôr os pés emterra. A perturbação enchera o Mar deremoinhos errantes, além de levantar umsingularíssimo cheiro acídico – "como deformigas esmagadas", na acertada com-paração de Jimmy. Conquanto desagradável,o cheiro não provocou nenhum dos ataquesde enjôo que seriam de esperar;.era algo tãoinsólito que a filosofia humana não tinhareação apropriada.

Um minuto depois a onda chocou-secom a seguinte barreira submarina, en-quanto se afastava deles em curva ascend-ente para o céu. Dessa vez, visto pela reta-guarda, o espetáculo era insignificante e fezcom que os viajantes se envergonhassem de

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seu susto anterior. Começavam a sentir-sesenhores do Mar Cilíndrico.

Tanto maior foi, pois, o choque quando,não mais de cem metros adiante, algo queparecia uma roda a girar lentamentecomeçou a surgir à tona.

Reluzentes raios metálicos, com cincometros de comprido, emergiram do marpingando água, continuaram sua rotação porum momento na crua luz ramaiana e torn-aram a mergulhar esparrinhando água. Eracomo se uma estrela-do-mar gigante, debraços tubulares, houvesse aparecido àsuperfície.

À primeira vista, era impossível dizer sese tratava de um animal ou de uma máquina.Depois aquilo tombou e ficou semicobertopela água, balouçandose nos débeis reman-escentes da onda.

Podiam ver agora que o objeto tinhanove braços, aparentemente articulados, ir-radiando de um disco central. Dois desses

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braços estavam mutilados, com a últimajunta arrancada. Os outros terminavamnuma complicada coleção de manipuladoresque lembrou vivamente a Jimmy ocaranguejo que tinha encontrado. As duascriaturas procediam da mesma linha evol-utiva – ou da mesma prancheta de desenho.

No centro do disco havia um pequenotorreão em que se alojavam três grandes ol-hos. Dois deles estavam fechados, um aberto– mas até esse parecia vazio e cego. Ninguémduvidou de que estivessem assistindo aos úl-timos estertores de algum estranho monstrojogado à tona pela perturbação submarinaque acabava de passar.

Viram, então, que a estrela-do-mar nãoestava só. Ã sua volta nadavam, beliscando-lhe os membros que se moviam debilmente,dois pequenos animais que tinham o ar deavantajadas lagostas. Estavam despedaçandoeficientemente o monstro e este não resistia,embora as suas próprias pinças se

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afigurassem muito capazes de aniquilar osatacantes. Mais uma vez Jimmy lembrou-sedo caranguejo que demolira a Libélula.Observou atentamente o conflito unilateralque prosseguia e não tardou a confirmar asua impressão.

– Olhe, Capitão – cochichou ele. – Estávendo? Não estão comendo o outro.

Nem sequer têm boca. Estão simples-mente dividindo-o em pedaços. Foi exata-mente o que aconteceu com a Libélula.

– Você tem razão. Estão desmontando-o... como a uma máquina quebrada. – Nor-ton franziu o nariz. – Mas jamais uma má-quina morta cheirou assim!

De repente teve outro pensamento.– Meu Deus... e se eles vêm atrás de nós!

Ruby, nos leve de volta à terra o mais de-pressa que puder!

A Resolution deu uma violenta arran-cada, com a maior desconsideração pela vidade suas pilhas. Lá atrás, os nove braços da

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grande estrela-do-mar – não tinham podidoencontrar um nome melhor para ela – iamencurtando cada vez mais, e daí a pouco osatores da fantástica cena tornavam a desa-parecer no fundo do Mar.

Ninguém os perseguiu, mas não respir-aram tranquilos enquanto a Resolution nãoencostou ao desembarcadouro mais próximoe, agradecidos, puseram pé em terra.Virando-se para olhar aquela misteriosa e,agora, repentinamente sinistra banda deágua, o Comandante Norton decidiu de umavez por todas que ninguém jamais tornaria anavegá-la. Continha muitas incógnitas, mui-tos perigos...

Seus olhos voltaram-se para as torres emuralhas de Nova Iorque e, mais além, a es-cura escarpa do continente. De agora em di-ante estariam resguardadas da curiosidadehumana.

Era a última vez que tentava os deusesde Rama.

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33 - ARANHAA PARTIR DESSE DIA, decretara Norton,

sempre haveria pelo menos três pessoas noAcampamento Alfa, revezando-se perman-entemente no serviço de plantão. Além disso,todos os grupos exploradores observariam amesma rotina.

Havia criaturas potencialmente perigo-sas à solta no interior de Rama, e, emboranenhuma se tivesse mostrado ativamentehostil, um chefe prudente devia tomar suasprecauções.

Como salvaguarda adicional, haviasempre um observador postado no Cubo, es-preitando por um poderoso telescópio.Daquele ponto podia ser esquadrinhado todoo interior de Rama e até o Pólo Sul pareciaestar a poucas centenas de metros de distân-cia. O território nas cercanias de todo grupo

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de exploradores seria mantido sob constanteobservação; desta maneira esperava-se elim-inar toda possibilidade de surpresa. O planoera bom – e falhou redondamente.

Após a última refeição do dia e poucoantes do período de repouso das 22

horas, Norton, Rodrigo, Calvert e LauraErnst estavam olhando o telenoticiário de to-das as noites, em onda dirigida especial-mente para eles pela estação transmissora deInferno, em Mercúrio. Estavam particular-mente interessados em ver o continente me-ridional filmado por Jimmy e o regresso at-ravés do Mar Cilíndrico – um episódio quehavia emocionado todos os espectadores.

Cientistas, comentaristas e membros doComitê Rama, todos deram as sua opiniões,e a maioria destas contradiziam umas às out-ras. Não havia duas pessoas que pensassemda mesma forma sobre se a criatura queJimmy descrevera como um caranguejo eraum animal, uma máquina, um autêntico

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ramaiano, ou algo que não se enquadrava emnenhuma dessas categorias.

Acabavam de ver, com uma positivasensação de mal-estar, a estrela-domar gi-gante sendo demolida pelos seus predadores,quando descobriram que já não estavam sós.Havia um intruso no acampamento.

Laura Ernst foi a primeira que o notou.Ficou como paralisada pelo choque re-pentino, mas volvidos alguns instantes con-seguiu falar:

– Não se mova, Bill. Agora olhe devagarpara a direita. Norton virou a cabeça naqueladireção. A dez metros do grupo estava umatripeça de pernas esguias, encimada por umcorpo esférico não maior do que uma bola defutebol. Engastados nesse corpo, trêsgrandes olhos inexpressivos pareciam darum campo de visão de 360 graus, e por de-baixo pendiam três longos apêndices lem-brando chicotes. A criatura não era tão altaquanto um homem e parecia demasiado

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frágil para ser perigosa, mas isso não des-culpava o descuido do grupo, que a deixaraintroduzir-se ali sem ser notada. A Norton, omelhor termo de comparação que ocorreu foiuma aranha ou opilião de três patas; teria elaresolvido o problema, jamais tentado por umanimal terrestre, da locomoção tripedal?

– Que pensa disso, Doutora? –cochichou, tirando o som da TV.

– A usual simetria tríplice dos ramai-anos. Não vejo que mal nos possa fazer – anão ser, talvez, com os flagelos, que inclusivepodem ser venenosos, como os de um celen-terado. Fiquem bem quietos nas suas cadeir-as e vejam o que a criatura vai fazer.

Depois de olhá-los, impassível, durantevários minutos, o visitante se moveu desúbito – e então puderam compreender porque não lhe haviam notado a aproximação.Era muito veloz e deslocava-se com um ex-traordinário movimento rotativo que o olho

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e a mente humanos tinham grande di-ficuldade em acompanhar.

Tanto quanto Norton podia discernir – esó uma câmara de alta velocidade teria con-dições para elucidar a questão – cada pata,por sua vez, funcionava como um pivô emtorno do qual girava o corpo da criatura. E oComandante não tinha certeza, mas tambémlhe parecia que de poucos em poucos"passos" ela invertia o sentido da rotação,enquanto os três flagelos varriam o chão coma rapidez do relâmpago.

Sua velocidade máxima – embora tam-bém fosse difícil estimá-la – seria de pelomenos trinta quilômetros por hora.

Deu, rápida, uma volta ao acampa-mento, examinando tudo que encontrava,tocando delicadamente nas camas, cadeiras emesas improvisadas, aparelhagem de comu-nicação, recipientes de comida, "electro-sans", câmaras, tanques de água, ferra-mentas – nada parecia escapar à sua

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atenção, exceto as quatro pessoas que a ob-servavam. Evidentemente, possuía bastanteinteligência para distinguir entre os seres hu-manos e suas propriedades inanimadas; suasações davam a nítida impressão de uma curi-osidade extremamente metódica.

– Quem me dera poder examiná-la! –exclamou Laura cheia de frustração, en-quanto a criatura continuava com as suasrápidas piruetas. – Vamos procurar apanhá-la?

– Como? – foi a razoável pergunta deCalvert.

– Por aquele processo que os caçadoresprimitivos usam para derrubar animais ve-lozes – dois pesos rodopiando nas extremid-ades de uma corda. Nem chega a machucar acaça.

– Isso eu duvido – acudiu Norton. –Mas, ainda que funcione, não podemos ar-riscar tal método. Não sabemos até onde vaia inteligência desta criatura, e o tal truque

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facilmente poderia quebrar-lhe as pernas. Aíé que.

estaríamos enrascados – com Rama,com a Terra e com todo o mundo.

– Mas eu tenho de arranjar umespécime!

– Talvez tenha de contentar-se com aflor de Jimmy... amenos que uma dessas cri-aturas coopere com você. O uso da força estáfora de cogitação.

Gostaria se alguma coisa pousasse naTerra e achasse que você seria um belo es-pécime para dessecação?

– Não pretendo dissecá-la – respondeuLaura num tom que nada tinha de convin-cente. – Só quero examiná-la.

– Pois os visitantes vindos de outromundo poderiam ter a mesma atitude paracom você, mas isso não impediria que vocêpassasse um tremendo susto antes de acred-itar neles. Não devemos fazer nada que possaser interpretado como uma ameaça.

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Norton estava citando o Regulamento deBordo, naturalmente, e Laura não o ig-norava. A diplomacia espacial tinha priorid-ade sobre os interesses da ciência.

O fato é que não havia necessidade deinvocar considerações tão elevadas; era umasimples questão de boa educação. Todos eleseram forasteiros ali, e ninguém se dera aotrabalho de pedir licença para entrar...

A criatura parecia haver terminado a suainspeção. Deu mais uma volta em alta velo-cidade ao acampamento, depois na tan-gente... rumo à escadaria.

– Como será que vai subir os degraus? –especulou Laura. À pergunta foi logo respon-dida: a aranha não fez o menor caso deles efoi galgando a suave rampa em curva sem di-minuir sua velocidade.

– Controle Central – chamou Norton, –vocês poderão receber uma visita daqui apouco. Observem a Escadaria Alfa, Seção 6.

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E a propósito, muito obrigado pelo ótimoserviço de vigilância que nos prestaram.

O sarcasmo levou um minuto para serpercebido; então o observador do Cubocomeçou a proferir vozes contritas.

– Hã... posso ver que há alguma coisa,Capitão, depois que o senhor disse que elaestá ali. Mas o que é aquilo?

– Sei tanto quanto você – respondeuNorton, apertando o botão de Alarma Geral.– Acampamento Alfa chamando todos ospostos. Acabamos de ser visitados por umacriatura parecida com uma aranha de trêspatas muito finas, com cerca de dois metrosde altura, pequeno corpo esférico,deslocando-se com grande rapidez graças aum movimento giratório. Parece inofensiva,mas curiosa. Pode introduzir-se no meio devocês sem que dêem pela sua presença. É fa-vor acusar recebimento.

A primeira resposta veio de Londres,quinze quilômetros a leste.

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– Nada de inusitado aqui, Capitão.Roma respondeu da mesma distância a

oeste, numa voz sonolenta.– Aqui idem, idem, Capitão. Ah, um

momentinho...– Que foi?– Larguei minha caneta há um in-

stante... desapareceu! O que... oh!– Diga algo que faça sentido!– O senhor não vai me acreditar, Cap-

itão. Estava tomando algumas notas... o sen-hor sabe que eu gosto de escrever, e isso nãoprejudica ninguém...

Estava usando a minha esferográfica fa-vorita, que tem quase duzentos anos de id-ade... pois agora está no chão, a cinco metrosdaqui! Apanhei-a... Graças a Deus, estáinteirinha.

– E como pensa que ela foi parar lá?– Hã... Posso ter cochilado alguns mo-

mentos. Foi um dia muito trabalhoso.

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Norton suspirou, mas absteve-se defazer comentários; eram tão poucos e tinhamtão pouco tempo par a explorar um mundo!Nem sempre o entusiasmo podia vencer aexaustão. Imaginou se não estariam assum-indo riscos desnecessários. Talvez nãodevesse dividir os seus homens em grupostão pequenos, procurando cobrir um ter-ritório tão vasto. Mas nunca esquecia os diasque passavam rápidos e os mistérios que osrodeavam, ainda à espera de solução.

Crescia nele a certeza de que algumacoisa ia acontecer e de que seriam forçados aabandonar Rama antes mesmo de estechegar ao periélio – o momento da verdade,quando inevitavelmente teria de ocorrerqualquer mudança de órbita.

– Escutem com atenção, Cubo, Roma,Londres... todo mundo – disse ele. – Queroque se comuniquem comigo de meia emmeia hora durante a noite. De agora em di-ante devemos estar preparados para receber

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quaisquer visitantes a qualquer momento.Alguns deles podem ser perigosos, mas pre-cisamos evitar incidentes a todo custo. Todosvocês conhecem as nossas diretrizes nesseponto.

Isto era bem verdade, e fazia mesmoparte do treinamento de todos ali – mastalvez nenhum deles tivesse acreditado que otantas vezes debatido "contato físico comseres inteligentes de outros mundos" ocor-reria no seu tempo, e muito menos que elespróprios o experimentariam.

O treinamento era uma coisa; a realid-ade, outra; e ninguém podia ter certeza deque os velhos instintos humanos de autode-fesa não dominariam o campo numa emer-gência. Contudo, era essencial fiar-se nasboas intenções de toda entidade que encon-trassem no interior de Rama, até o últimomomento possível – e mesmo além. O Co-mandante Norton não queria ser lembradopela História como o homem que

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desencadeara a primeira guerrainterplanetária.

Poucas horas depois as aranhas eramcentenas e andavam por toda a planície. Pelotelescópio podia-se ver que o continente me-ridional também estava infestado por elas –mas, ao que parecia, não a ilha de NovaIorque.

Já não prestavam atenção aos explor-adores, e depois de algum tempo os explor-adores passaram a prestar pouca atenção aelas – se bem que, por momentos, o Co-mandante Norton notasse um lampejo pred-atório no olho de sua Médica-chefe. Tinhacerteza de que nada lhe agradaria mais doque ver uma das aranhas ser vítima de umacidente infeliz, e não a julgava incapaz defacilitar tal acontecimento no interesse daciência.

Todos estavam mais ou menos conven-cidos de que as aranhas não podiam ser in-teligentes; tinham o corpo pequeno demais

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para conter muita massa cerebral, e eramesmo difícil imaginar onde armazenavamtanta energia para movimentar-se. Seu com-portamento era curiosamente propositado ecoordenado; pareciam'andar por toda parte,mas nunca visitavam duas vezes o mesmolugar. Norton tinha frequentemente a im-pressão de que andavam buscando algumacoisa; mas, fosse lá o que fosse, não pareciamtê-la descoberto.

Iam até o Cubo central, sempre desprez-ando as três grandes escadarias.

Era difícil explicar como conseguiamgalgar as seções verticais, mesmo numagravidade quase nula; Laura supunha que es-tivessem munidas de discos de sucção.

Foi então que, com visível deleite de suaparte, conseguiu o tão almejado espécime. OControle Central comunicou que uma aranhahavia tombado da escarpa vertical e jazia noprimeiro socalco, morta ou incapacitada.

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Laura foi da planície até lá num tempo re-corde que nunca seria batido.

Quando chegou na plataforma,descobriu que, a despeito da baixa velocid-ade do impacto, a criatura quebrara todas assuas patas. Ainda tinha os olhos abertos, masnão reagia a nenhum estimulante externo.Laura achou que até um cadáver humanofresco mostraria mais vida; assim que con-seguiu levar a sua presa para dentro da En-deavour, começou a trabalhar com o seuequipamento de dissecação.

A aranha era tão frágil que por pouconão se desfez em pedaços sem a cooperaçãodela. Laura desarticulou as pernas, depoisocupou-se com a delicada carapaça, que sefendeu ao longo de três círculos máximos eabriu-se como uma laranja descascada.

Após alguns momentos de perfeita in-credulidade – pois não havia nada quepudesse reconhecer ou identificar – tirou

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cuidadosamente uma série de fotografias, epor fim apanhou o seu escalpelo.

Por onde começar? Teve vontade defechar os olhos e cravar o instrumento aoacaso, mas isso seria muito pouco científico.

A lâmina penetrou quase sem resistên-cia. Um segundo depois, o berro impub-licável da Médica-chefe Ernst foi refletidopor todos os ecos da Endeavour.

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34 - SUAEXCELÊNCIALASTIMA...

– COMO TODOS OS senhores sabem – disseo Embaixador de Marte, – muita coisaaconteceu depois de nossa última reunião.Temos muito que discutir... e decidir. Porisso, lamento particularmente que nossocolega de Mercúrio não esteja aqui hoje.

Esta última frase não era bem verídica.O Dr. Bose não lamentava particularmente aausência do Embaixador de Mercúrio. Teriasido muito mais exato dizer que estava pre-ocupado. Todos os seus instintos diplomáti-cos lhe diziam que algo estava acontecendoe, embora suas fontes de informação fossem

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excelentes, não tinha o menor indício sobre oque pudesse ser.

A carta em que o Embaixador se des-culpava era muito cortês e inteiramente in-comunicativa. Sua Excelência lastimava queassuntos urgentes e inevitáveis o impedissemde comparecer à reunião, tanto em pessoacomo por vídeo. O Dr. Bose achava muito di-fícil imaginar coisa mais urgente – ou maisimportante – do que Rama.

– Dois de nossos membros têm de-clarações a fazer. Eu gostaria de dar a palav-ra em primeiro lugar ao Professor Davidson.

Houve um zunzum alvoroçado entre osoutros cientistas integrantes do Comitê. Amaioria deles pensava que o astrônomo, como seu conhecido ponto de vista cósmico, nãoera o homem mais indicado para ser Presid-ente do Conselho Consultivo Espacial. Dava,por vezes, a impressão de que as atividadesda vida inteligente eram uma lamentável ir-relevância no majestoso universo de estrelas

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e galáxias, e que era de mau gosto dar-lhesexcessiva atenção. Isso não lhe atraíra assimpatias de exobiologistas como o Dr. Per-era, que assumia a posição diametralmenteoposta.

Para esses, a única finalidade do uni-verso era produzir inteligência, ecostumavam referir-se com escárnio aosfenômenos puramente astronômicos.

"Simples matéria inanimada" era umade suas expressões favoritas.

– Senhor Embaixador – começou ocientista, – estive analisando o singular com-portamento de Rama nestes últimos dias edesejaria apresentar minhas conclusões. Al-gumas delas são inquietantes.

O Dr. Perera pareceu surpreendido, de-pois um tanto enfatuado. Aprovava cordial-mente tudo que inquietasse o ProfessorDavidson.

– Em primeiro lugar, houve a notávelsérie de ocorrências quando aquele jovem

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tenente voou para o hemisfério sul. Quantoàs descargas elétricas em si, embora es-petaculares, não têm importância; é fácildemonstrar que continham relativamentepouca energia. Mas coincidiram com umamudança na velocidade de Rama e em suaatitude – isto é, sua orientação no espaço.Isso sim, deve ter envolvido uma enormequantidade de energia; as descargas quequase custaram a vida ao Sr... hã... Pak nãopassavam de um pequeno subproduto –talvez incômodo, e que precisava ser minim-izado por aqueles gigantescos pára-raios doPólo Sul.

"De tudo isso tiro duas conclusões.Quando uma espaçonave – e como tal deve-mos considerar Rama a despeito de suasfantásticas dimensões – quando uma es-paçonave faz uma mudança de atitude geral-mente significa que ela está se preparandopara uma mudança de órbita. Devemos,portanto, levar muito a sério a opinião

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daqueles que acreditam que Rama talveztraga o propósito de se converter num novoplaneta do sistema solar em vez de voltarpara as estrelas.

"Se isso for verdade, a Endeavour deveevidentemente estar pronta para largar (éeste o termo que se usa para as es-paçonaves?) a qualquer momento.

Pode ser que esteja correndo graveperigo enquanto continuar fisicamente lig-ada a Rama. Imagino que o ComandanteNorton já se tenha capacitado dessa possibil-idade, mas acho que devemos enviar-lheuma advertência adicional."

– Muito obrigado, Prof. Davidson. Poisnão, Dr. Solomons?

– Eu gostaria de fazer um comentário aesse respeito – disse o historiador da Ciên-cia. – Rama parece ter feito uma mudança derotação sem usar jatos ou dispositivos dereação. Isso só deixa duas possibilidades, se-gundo me parece.

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"A primeira é que tenha giroscópios in-ternos, ou um equivalente. Devem serenormes; onde estão?

"A segunda possibilidade, que sub-verteria toda a nossa Física, é que ele tenhaum sistema de propulsão não reativo. A cha-mada Propulsão Espacial, em que o Profess-or Davidson não acredita. Se assim for,Rama deve ser praticamente capaz de tudo.Não poderemos de modo nenhum prever oseu comportamento, mesmo no nívelmacrofísico."

Os diplomatas, visivelmente, nãosabiam o que pensar de toda essa conversa, eo astrônomo recusava-se a ser arrastado nadiscussão. Já se havia aventurado o sufi-ciente por um dia.

– Se me permitem, fico com as leis daFísica enquanto não me forçarem aabandoná-las. Se não encontramos giroscó-pios em Rama, talvez seja por não termosprocurado bastante, ou no lugar apropriado.

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O Embaixador Bose percebeu que o Dr.Perera estava se impacientando.

Normalmente, o exobiologista se com-prazia como qualquer outro em investigaçõesteóricas; mas agora, pela primeira vez, tinhaalguns fatos sólidos. Sua ciência, que portanto tempo vivera na penúria, havia en-riquecido da noite para o dia.

– Muito bem. Se não há outroscomentários... creio que o Dr. Perera tem al-guma informação importante para nós.

– Obrigado, Sr, Embaixador. Como to-dos os senhores viram, obtivemos afinal umespécime de ser vivo ramaiano e observamosvários outros de perto. A Médica-chefe Ernst,da Endeavour, enviou um relatório completosobre a criatura com aparência de aranha,que ela dissecou.

"Para começar, devo dizer que algunsdos resultados consignados pela Dra. Ernstsão aparentemente inexplicáveis, e em

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quaisquer outras circunstâncias eu me teriarecusado a acreditá-los.

"A aranha é positivamente um ser or-gânico, se bem que a sua química difira danossa a muitos respeitos. Contém metaisleves em quantidades consideráveis. No ent-anto, hesito em qualificá-la como um animal,por várias razões fundamentais.

"Em primeiro lugar, parece não ter boca,nem estômago, nem intestinos – nenhummeio de absorver alimentos! Também carecede vias de entrada para o ar, de pulmões, demeio circulatório, de aparelho reprodutor...

"Talvez os senhores estejam se pergunt-ando o que é que ela possui. Pois bem, possuiuma musculatura simples, que controla astrês pernas e os três apêndices em forma deflagelos ou palpos. Há um cérebro – bastantecomplexo, aliás – que preside principal-mente à bem desenvolvida visão triocular dacriatura.

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Mas oitenta por cento do corpo con-sistem num favo de células grandes, e foi issoque causou à Dra. Ernst uma surpresa tãodesagradável no momento em que se pre-parava para iniciar a dessecação. Com umpouco mais de sorte ela o teria reconhecido atempo, pois é a única estrutura dos seres ra-maianos que existe na Terra, ainda queapenas num punhado de animais marinhos.

"Em sua maior parte, a aranha ésimplesmente uma bateria, muito semel-hante às que são encontradas nas células eraias elétricas. Mas. neste caso, não parecetratar-se de uma arma de defesa. Ê a fontede energia da criatura. E aí está por que elanão tem aparelho digestivo nem respiratório:não necessita de métodos tão primitivos. E,diga-se de passagem, isto significa que aaranha se sentiria perfeitamente à vontadeno vácuo...

"Temos, pois, um ser que, para todos osefeitos, nada mais é do que um olho dotado

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de locomoção. Órgãos de manipulação, nãoos tem; aqueles palpos são fracos demaispara isso. Se me dessem tais especificações,eu diria que se tratava de um simples dispos-itivo de reconhecimento.

"O seu comportamento certamente cor-responde a esta descrição. Tudo que as aran-has fazem é correr de um lado para outro eolhar coisas. É tudo que elas podem fazer...

"Mas os outros animais são diferentes. Ocaranguejo, a estrela-do-mar. os tubarões –na falta de melhores termos – evidentementepodem manipular o seu ambiente e parecemser especializados em diversas funções. Pre-sumo que também sejam movidos por eletri-cidade, já que, como a aranha, não parecemter boca.

"Estou certo de que os senhores avaliamos problemas biológicos suscitados por tudoisso. Poderiam tais criaturas evoluirnaturalmente?

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Sinceramente, não creio. Parecem tersido projetadas, como máquinas, para ex-ecutar trabalhos específicos. Se me pedissempara dar-lhes um nome, eu diria que sãorobôs – robôs biológicos, uma coisa que nãotem analogia na Terra.

"Se Rama é uma nave espacial, talvezeles façam parte da tripulação.

Quanto ao modo como nasceram, ou fo-ram criados, é algo que não lhes sei dizer.

Mas posso imaginar que a resposta seencontra lá adiante, em Nova Iorque. Se oComandante Norton e os seus homenspuderem esperar o tempo suficiente paraisso, talvez venham a conhecer criaturasmais e mais complexas, com um comporta-mento imprevisível.

"E é possível que se encontrem com ospróprios ramaianos – os verdadeiros cri-adores deste mundo.

"Quando isso acontecer, cavalheiros, to-das as dúvidas se esfumarão..."

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35 - ENTREGAESPECIAL

O COMANDANTE NORTON estava no bomdo sono quando o seu comunicador pessoal oarrancou aos seus fagueiros sonhos. Andavaem férias com a família em Marte e sua navecontornava o temeroso e nevado cume deNix Olímpica, o mais alto vulcão do SistemaSolar. O pequeno Billie começara a lhe dizeralguma coisa. Agora, nunca saberia o queera.

– Lamento tê-lo acordado, Capitão, –disse o Subcomandante Kirchoff. –Mensagem do Quartel-General, com priorid-ade 3-A.

– Vamos ouvir – respondeu a vozsonolenta de Norton.

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– Não posso. Está escrita em código. Ex-clusivamente para o Comandante.

Norton acabou logo de acordar. Em todaa sua carreira só havia recebido três vezesuma mensagem dessas, e todas as três lhecausaram sérias dores de cabeça.

– Diabos os levem! – disse. – Que é quevamos fazer agora?

O seu Sub não se deu ao trabalho de re-sponder. Ambos compreendiam perfeita-mente o problema. Era um caso que o Regu-lamento de Bordo não tinha previsto.Normalmente, um comandante nunca seafastava mais que alguns minutos do seugabinete e do Livro de Código que guardavano cofre. Se partisse agora, poderia chegar ànave – exausto – dentro de quatro ou cincohoras. Não era assim que se tratava uma Pri-oridade Classe 3-A.

– Jerry, quem está no quadro de lig-ações? – perguntou afinal.

– Ninguém. Eu mesmo estou chamando.

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– Com o gravador desligado?– Sim, por uma singular infração ao

regulamento.Norton sorriu. Jerry era o melhor Sub

com quem já tinha trabalhado.Tudo pensava, tudo previa.– Você sabe onde guardo a minha chave.

Torne a chamar. Esperou durante dezminutos com o máximo de paciência quepôde. procurando – com medíocre sucesso –ocupar-se com outros problemas. Detestavatodo desperdício de energia mental; eramuito improvável que conseguisse adivinharo conteúdo da mensagem, de que, aliás, nãotardaria a tomar conhecimento. Então sim,poderia começar a preocupar-se com algumproveito.

Quando tornou a chamar, o Sub falavaperceptivelmente sob uma consideráveltensão.

– Não é realmente urgente, Capitão...uma hora não fará diferença alguma.

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Mas prefiro evitar o rádio. Vou enviar acoisa por mensageiro.

– Mas por quê?... Oh, está bem. Eu meguiarei por você. Quem vai atravessar aseclusas com ela?

– Vou eu pessoalmente. Chamarei o sen-hor quando chegar ao Cubo.

– De modo que fica Laura tomando con-ta da nave?

– Por uma hora, no máximo. Voltareilogo que puder.

Uma oficial médica não tinha o treina-mento especializado necessário para fazer asvezes de um comandante, assim como não sepodia esperar que um comandante fossecapaz de realizar uma operação cirúrgica.Em casos de emergência, tinha-se às vezespassado de uma função à outra; mas não erarecomendado. Enfim, não seria a primeiravez que se infringia uma ordem nessa noite...

– Oficialmente, você não saiu da nave.Já acordou Laura?

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– Já. Ela está encantada com aoportunidade.

– Felizmente, os médicos estão acos-tumados a guardar segredos. Ah...

você acusou recebimento?– Naturalmente, em seu nome.– Então fico esperando.Agora era quase impossível livrar-se da

ansiedade. "Não realmente urgente – masprefiro evitar o rádio..."

Uma coisa era certa. O Comandante difi-cilmente tornaria a conciliar o sono essanoite.

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36 - OBSERVADORDE BIÔMATOS

O SARGENTO PIETER. ROUSSEAU sabia porque se havia oferecido voluntariamente paraaquele serviço; a muitos respeitos, era a real-ização de um sonho de meninice. Tinhaapenas seis ou sete anos de idade quandofora fascinado pelos telescópios, e passarauma boa parte de sua juventude colecion-ando lentes de todas as formas e tamanhos.Montava-as em tubos de papelão, fazendoinstrumentos de potência cada vez maior, atése familiarizar com a Lua e os planetas, asmais próximas estações espaciais e toda apaisagem dentro de um raio de trinta quilô-metros em torno de sua casa.

Tivera a sorte de nascer entre asmontanhas de Colorado; em quase todas as

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direções, a vista era espetacular e in-exaurível. Passava horas explorando, em per-feita segurança, os picos que todos os anoscobravam seu tributo de alpinistas distraí-dos. Embora tivesse visto muita coisa, ima-ginara muito mais; comprazia-se em fazer deconta que além de cada crista rochosa, alémdo alcance do seu telescópio, se estendiamreinos mágicos povoados por seres maravil-hosos. E assim, durante anos evitara visitaros lugares que suas lentes lhe traziam paraperto, pois sabia que a realidade jamais po-dia igualar o sonho.

Mas agora, colocado sobre o eixo centralde Rama, podia contemplar maravilhas su-periores às mais arrojadas fantasias da suameninice. Um mundo inteiro se dilatava anteos seus olhos – um mundo pequeno, era ver-dade, e contudo um homem poderia passar avida inteira explorando quatro mil quilômet-ros quadrados, mesmo que fossem um ter-ritório morto e inalterável.

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Agora, porém, a vida, com suas infinitaspossibilidades, surgira em Rama.

Se os robôs biológicos não eram cri-aturas vivas, eram, pelo menos, excelentesimitações.

Ninguém sabia quem inventara a palav-ra "biômato". Parecia ter entrado imediata-mente em uso, por uma espécie de geraçãoespontânea. De sua atalaia no Cubo, comoObservador-Chefe dos Biômatos, Pieter es-tava começando – segundo acreditava – acompreender alguns dos padrões de com-portamento dos observados.

As Aranhas eram sensores dotados delocomoção, usando a visão – e provavel-mente o tato – para examinar todo o interiorde Rama. Em dado momento houvera cen-tenas delas a correr para cá e para lá em altavelocidade, mas em menos de dois dias tin-ham desaparecido; era uma raridade, agora,ver uma sequer.

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Substituíra-as um verdadeiro jardim zo-ológico de criaturas muito mais pitorescas, enão dera pouco trabalho inventar nomesapropriados para elas.

Havia os Limpadores de Vidraças, comgrandes pés munidos de almofadas, quepareciam polir, à medida que caminhavam,os seis sóis artificiais de Rama ao longo detodo o seu comprimento. Suas sombrasenormes, que se projetavam até o outro ex-tremo do diâmetro do mundo, por vezescausavam eclipses temporários ali. Ocaranguejo que tinha demolido a Libélulaparecia ser um Lixeiro. Uma cadeia de re-vezamento formada de criaturas idênticasaproximou-se do Acampamento Alfa e levoutodos os destroços que tinham sido correta-mente empilhados nas cercanias; teriamlevado tudo mais se Norton e Mercer não seopusessem resolutamente; a confrontação foiansiosa, mas breve; daí em diante, os Lixeir-os pareceram compreender o que lhes era e o

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que não lhes era lícito tocar, e chegavam aintervalos regulares para ver se necessitavamde seus serviços. Era um arranjo muitoprestativo e indicava um alto grau de in-teligência – ou por parte dos próprios Lixeir-os, ou de alguma entidade que os controlassede longe.

A remoção do lixo em Rama era uma op-eração muito simples: tudo era despejado noMar, onde, presumivelmente, era decom-posto em formas que pudessem ser reapro-veitadas. O processo era rápido. A Resolu-tion desaparecera da noite para o dia, comgrande aborrecimento de Ruby Barnes. Nor-ton a consolara ponderando que a jangadadesempenhara magnificamente suas funçõese ele nunca teria permitido que um outro ausasse. Talvez os Tubarões fossem menos es-crupulosos do que os Lixeiros.

Nenhum astrônomo que descobrisse umplaneta desconhecido poderia sentir-se maisfeliz do que Pieter quando avistava um novo

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tipo de biômato e conseguia uma boa fotodele através do telescópio. Infelizmente, to-das as espécies interessantes pareciam estarlá longe, no Pólo Sul, onde executavam tare-fas misteriosas em volta dos Chifres. Algumacoisa que tinha o ar de uma centopéia comdiscos de sucção era vista de tempos a tem-pos explorando o próprio Chifre Grande, ejunto aos picos menores Pieter vislumbrarauma corpulenta criatura que poderia ser umacruza de hipopótamo com bulldozer. Haviainclusive uma girafa de dois pescoços quepareci? funcionar como um guindastesemovente.

Era de supor que Rama, como qualqueroutra nave, requeresse testagem, revisão ereparos após a sua imensa viagem. A tripu-lação já estava trabalhando ativamente;quando apareceriam os passageiros?

Classificar biômatos não era a incum-bência principal de Pieter; tinha ordens paramanter sob observação os dois ou três

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grupos exploradores que estavam sempre ematividade, para evitar que lhes acontecessealgum contratempo avisando-os da aproxim-ação de qualquer perigo. Revezava-se de seisem seis horas com quem quer que estivessedisponível, se bem que, por mais de uma vez,houvesse permanecido no serviço por dozehoras consecutivas. O resultado era queagora conhecia a geografia de Rama talvezmelhor do que ninguém jamais viria aconhecê-la. Aquele mundo artificial lhe eratão familiar quanto as montanhas do Color-ado de sua juventude.

Ao ver Jerry Kirchoff surgir da EclusaAlfa, Pieter compreendeu imediatamenteque algo de inusitado estava acontecendo. Astransferências de pessoal nunca eram feitasdurante o período de sono, e já passava demeia-noite pela Hora da Missão. Pieterlembrou-se então da escassez de pessoal comque estavam lutando e pressentiu uma irreg-ularidade muito mais chocante.

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– Jerry, quem ficou no comando danave?

– Eu – disse friamente o Sub, correndoo fecho que abria o seu capacete. – Vocêpensa que eu me afastaria da ponte enquantoestivesse de guarda?

Enfiou a mão no leva-tudo da sua roupaespacial e tirou de lá uma pequena lata como rótulo: SUCO DE LARANJACONCENTRADO: DÁ PARA CINCOLITROS.

– Você é um bom atirador, Pieter. OCapitão está esperando. Pieter sopesou a latae disse:

– Espero que você tenha posto bastantemassa aqui dentro... Às vezes elas vão pararno primeiro terraço.

– Bom, você é o entendido no assunto.E era verdade. Os observadores do Cubo

tinham muita prática de mandar lá parabaixo pequenos objetos esquecidos ou de quehouvesse urgente necessidade. O meio era

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fazer com que atravessassem sem maioresincidentes a região de baixa gravidade, e im-pedir que o efeito de Coriolis os levassemuito longe do Acampamento durante a des-cida de oito quilômetros pela rampa.

Pieter plantou firmemente os pés nochão, segurou a lata e arremessou-a parabaixo, rente com a face da escarpa. Nãotomou como alvo direto o AcampamentoAlfa, mas um ponto afastado deste quasetrinta graus.

Um segundo depois, a resistência do ardespojou o objeto de sua velocidade inicial,mas então fez sentir-se a pseudogravidade deRama e iniciouse a queda a uma velocidadeconstante. Foi bater na base da escada demão e deu um salto em câmara lenta que osafou do primeiro terraço.

– Agora vai dar certo – disse Pieter. –Quer apostar?

– Não – foi a pronta resposta. – Vocêsabe demais.

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– Você não tem espírito esportivo. Masjá lhe digo como é. Ela vai parar a unstrezentos metros do Acampamento.

– Talvez pudesse ser mais perto.– Experimente uma vez. Já vi Joe errar

por uma distância de dois quilômetros.A lata já não pulava; a gravidade

tornara-se bastante forte para aderi-la à su-perfície curva da Calota Norte. Quando al-cançou o segundo terraço, ia rolando a vinteou trinta quilômetros por hora – quase a ve-locidade máxima que o atrito permitia.

– Agora temos de esperar – disse Pietersentando-se diante do telescópio para nãoperder de vista a mensageira. – Chegará ládentro de dez minutos. Ah, aí vem o Cap-itão... Já me acostumei a reconhecer as pess-oas deste ângulo. Agora está olhando paranós.

– Creio que esse telescópio lhe dá umsentimento de poder.

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– E dá. como não! Eu sou o único quesabe tudo quanto está acontecendo emRama. Pelo menos, pensava que sabia –acrescentou em tom queixoso, lançando aKirchoff um olhar cheio de censura.

– Se isto lhe serve de consolo, o Capitãodescobriu que o seu tubo de dentifrício es-tava no fim.

Neste ponto a conversa esmoreceu, masafinal Pieter retomou a palavra:

– É pena que você não tenha topadoaquela aposta... Ele não precisa andar maisde cinquenta metros... agora viu a lata... mis-são cumprida.

– Obrigado, Pieter... Bonito trabalho, oseu. Agora pode voltar para a sua cama.

– Cama! Estou de plantão até as quatro.– Sinto muito. Você deve ter dormido!

Do contrário, como poderia ter sonhado tudoisto?

QG OBSERVAÇÃO ESPACIAL AOCOMANDANTE EN ENDEAVOUR.

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PRIORIDADE 3-A.EXCLUSIVAMENTE PARA OCOMANDANTE. SEM REGISTRO

PERMANENTE.SPACEGUARD COMUNICA VEICULO

VELOCIDADE ULTRA-ALTAAPARENTEMENTE

LANÇADO MERCÚRIO DEZ A DOZEDIAS PARA INTERCEPTAR

RAMA PT NÃO HAVENDO MUDANÇAÓRBITA CHEGADA PREVISTA 15 HORAS

DIA 322 PT TALVEZ SEJANECESSÁRIO EVACUEM ANTES PTAGUARDE NOVO

AVISO.C-C

Norton leu a mensagem meia dúzia devezes para memorizar a data. Era difícilacompanhar a marcha do tempo no interiorde Rama; teve de consultar o seu relógio-calendário para ver que estavam no Dia 315.Talvez lhes sobrasse apenas uma semana...

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A mensagem era consternadora, nãotanto pelo que dizia como pelo que im-plicava. Os mercurianos tinham efetuado umlançamento clandestino, o que, em simesmo, constituía uma violação da Lei Espa-cial. A conclusão era óbvia: o seu "veículo"não podia ser outra coisa senão um míssil.

Mas por quê? Era inconcebível... bem,quase inconcebível que se arriscassem a pôrem perigo a Endeavour, de modo que nãodevia tardar a chegar um aviso bem circun-stanciado dos próprios mercurianos. Numaemergência, ela poderia partir num prazo depoucas horas, embora e fizesse sob os maisveementes protestos e apenas por ordem ex-pressa do Comandante-chefe.

Vagarosamente e imerso em suasreflexões, dirigiu-se para o complexo impro-visado de sustentação da vida e largou amensagem no Electrosan. A luz brilhante doraio laser que irrompeu pela fenda sob atampa do assento anunciou-lhe que as

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exigências da Segurança tinham sido satis-feitas. Era uma lástima, pensou Norton, quetodos os problemas não pudessem serresolvidos com tanta rapidez e de forma tãohigiênica.

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37 - MÍSSILO MÍSSIL estava ainda a cinco milhões de

quilômetros quando o clarão dos jatos deplasma que usava para frear se tornou bemvisível no telescópio principal da Endeavour.Já então o segredo deixara de ser um segredoe Norton ordenara com relutância a segundae talvez definitiva evacuação de Rama – em-bora não tivesse nenhuma intenção deretirar-se enquanto os acontecimentos não oforçassem inapelavelmente a fazê-lo.

Depois de completar a manobra de fre-agem, o indesejável viajante procedente deMercúrio ficou a apenas cinquenta quilômet-ros de Rama, e parecia estar procedendo auma inspeção com suas câmaras de TV. Es-tas eram claramente visíveis – uma à vante,outra à ré – assim como várias antenas oni-direcionais e um grande disco

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constantemente voltado para a distante es-trela de Mercúrio. Quais seriam as instruçõesque vinham por aquela faixa e quais as in-formações que voltavam por ela?perguntava-se Norton.

Contudo, os mercurianos podiam apren-der tudo o que já não soubessem; asdescobertas feitas pela Endeavour tinhamsido irradiadas através de todo o SistemaSolar. Essa espaçonave – que havia batidotodos os recordes de velocidade para chegarali – só podia ser uma extensão da vontadede seus criadores, um instrumento de seupropósito. Esse propósito não tardaria a serconhecido, pois dentro de três horas o Em-baixador de Mercúrio junto aos Planetas Un-idos falaria à Assembléia Geral.

Oficialmente, o míssil ainda não existia.Não trazia sinais de identificação nem estavairradiando em qualquer faixa de onda usual.Era uma séria infração da lei, mas nem aprópria SPACEGUARD emitira ainda um

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protesto formal. Todos esperavam impa-cientes e nervosos para ver o que iria fazerMercúrio.

Fazia três dias que a existência – e ori-gem – do míssil fora anunciada, e os mer-curianos continuavam ainda fechados numteimoso silêncio. Sabiam fazê-lo muito bem,quando isso lhes convinha.

Alguns psicólogos pretendiam que eraquase impossível compreender plenamente amentalidade de qualquer pessoa nascida ecriada em Mercúrio.

Para sempre exilados da Terra pelagravidade três vezes mais poderosa desta, osmercurianos podiam descer na Lua e con-templar através daquela pequena distância oplaneta de seus antepassados, ou mesmo deseus pais, mas jamais poderiam visitá-lo. Eassim, inevitavelmente, faziam constar quenão tinham tal desejo.

Fingiam desprezar as moles chuvas, oscampos ondulados, os lagos e mares, os céus

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azuis – todas essas coisas que só podiamconhecer através de documentários. Como oseu planeta vivia inundado por uma energiasolar tamanha que a temperatura diurnachegava muitas vezes a seiscentos graus,afetavam uma guapeza fanfarrona que nãoresistia a um momento de séria atenção. Emrealidade, tendiam a ser fisicamente fracos,já que só podiam sobreviver mantendo-secompletamente isolados do seu ambiente.Mesmo que pudesse tolerar a gravidade, ummercuriano teria sido rapidamente incapa-citado por um dia de calor forte em qualquerpaís equatorial da Terra.

Entretanto, naquelas coisas que real-mente importavam, eles eram de fato rijos.As pressões psicológicas daquela estrela de-voradora e tão próxima, os problemas de en-genharia criados pela necessidade de ir àsentranhas de um planeta renitente e arran-car de lá as coisas necessárias à vida – tudoisso havia produzido uma cultura espartana

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e, a muitos respeitos, altamente admirável.Era uma gente em quem se podia confiar; seprometiam uma coisa, faziam-na, ainda quelhes custasse caro. Corria entre eles o gracejode que, se o Sol um dia mostrasse sinais devirar nova, empreitariam a neutralização detal processo – desde que os honorários va-lessem a pena. Outro gracejo, este não mer-curiano, dizia que toda criança que revelassealgum interesse pela arte, a filosofia ou amatemática abstrata era imediatamenteaproveitada como fertilizante nas fazendashidropônicas. No caso dos criminosos e psi-copatas, isso não era nenhum gracejo. Ocrime era um dos luxos que Mercúrio nãopodia comportar. O Comandante Norton est-ivera lá uma vez, ficara enormemente im-pressionado – como a maioria dos visitantes– e fizera muitos amigos mercurianos.Enamorarase de uma moça em Port Lucifer echegara a pensar em assinar um contrato portrês anos, mas a desaprovação parental de

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toda pessoa oriunda de além da órbita deVênus fora demasiado forte. Afinal, quemsabe se não devia até agradecerlhes?...

– Mensagem 3-A da Terra, Capitão –disse a ponte. – Voz e texto confirmatório doComandante-chefe. Está pronto parareceber?

– Confira e arquive o texto. Vamos ouvira voz.

– Aqui está.O Almirante Hendrix soou calmo e pro-

saico, como se estivesse emitindo uma or-dem de rotina à Frota em vez de fazer frentea uma situação única na história do espaço.Mas a verdade é que ele não estava a dezquilômetros da bomba.

– C-C ao Comandante da Endeavour.Este é um breve sumário da situação talcomo a vemos agora. O senhor sabe que aAssembléia Geral vai reunir-se às 14 horas, eficará à escuta. É possível que tenha de agir

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imediatamente, sem consulta. Daí aspresentes instruções.

"Analisamos as fotos que o senhor nosenviou. O veículo é uma sonda espacialpadrão, modificada para receber impulso ex-tra e cavalgando um laser para a velocidadeinicial. O tamanho e a massa estão em con-formidade com uma bomba de fusão na faixade 500 a 1.000 megatons. Os mercurianosusam até 100

megatons como rotina em suas oper-ações de mineração, de modo que não teriamdificuldade em montar uma ogiva de com-bate dessa ordem.

"Nossos peritos também calculam queesse seria o tamanho mínimo necessáriopara garantir a destruição de Rama. Se fossedetonada contra a parte mais fina do casco –o fundo do Mar Cilíndrico – a carapaça seromperia e o movimento rotativo de Ramacompletaria a sua desintegração.

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"Presumimos que os mercurianos, se éverdade que estão planejando uma açãodessa espécie, lhes dêem tempo de sobrapara retirar-se. Devo informá-lo de que a lu-minosidade dos raios gama liberados poruma tal explosão poderia serlhes perigosaaté um raio de mil quilômetros. Mas esse nãoé o perigo mais sério.

Os fragmentos de Rama, pesando tone-ladas e arremessados no espaço a quase milquilômetros por hora, poderiam destruí-losnuma distância ilimitada.

Recomendamos-lhe, portanto, que seafastem ao longo do eixo de rotação, poisnessa direção não seriam arremessados frag-mentos. Dez mil quilômetros devem dar umamargem adequada de segurança.

"Esta mensagem não pode ser intercept-ada; segue um percurso múltiplo pseudo-ir-regular, e por isso posso usar o inglês cor-rente. Sua resposta talvez não esteja tão

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garantida; fale, portanto, com discrição e useo código se for necessário.

Tornarei a chamá-lo logo após a dis-cussão da Assembléia Geral. Mensagemconcluída."

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38 - ASSEMBLÉIAGERAL

DE ACORDO com os manuais de História– se bem que ninguém pudesse acreditarnisso – em dado momento as velhas NaçõesUnidas haviam contado 172 membros. OsPlanetas Unidos tinham sete – e isso, àsvezes, parecia demais. Em ordem de distân-cia do Sol, eram eles Mercúrio, Terra, Luna,Marte, Ganímedes, Titã e Tritão.

A lista padecia de várias omissões e am-biguidades que o futuro presumivelmente re-tificaria. Os críticos nunca se cansavam deapontar que a maioria dos Planetas Unidosnão eram planetas, e sim satélites. Isso paranão falar no ridículo de estarem excluídos osquatro gigantes, Júpiter, Saturno, Urano eNetuno...

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Mas ninguém vivia nos GigantesGasosos, e era muito possível que jamaisviessem a ser habitados. O mesmo podia serverdadeiro do outro grande ausente, Vênus.Até o mais entusiasta dos engenheiros plan-etários admitia que seriam precisos séculospara domesticar Vênus; entrementes, osmercurianos a traziam de olho e sem dúvidatinham sobre ela os seus planos a longoprazo.

A representação separada da Terra e deLuna também fora um pomo de discórdia; osoutros membros reclamavam que isso con-centrava demasiado poder num recanto doSistema Solar. Mas havia mais gente na Luado que em todos os outros mundos reunidos– exceto a Terra – e, afinal, não era ela oponto de reunião dos P.U.?

Acresce que a Terra e a Lua raramenteconcordavam sobre uma questão, e não eraprovável que viessem a constituir um blocoperigoso.

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Marte mantinha os asteróides emfideicomisso, exceção feita ao grupo de ícaro,supervisado por Mercúrio, e de um punhadocujos periélios se situavam além de Saturno eque eram, por isso, reivindicados por Titã.Um dia os asteróides maiores, como Pálade,Vesta, Juno e Ceres, assumiriam suficienteimportância para terem seus próprios em-baixadores , e o número de membros dosPlanetas Unidos chegaria a dois algarismos.Ganímedes não só representava Júpiter –uma massa superior, por conseguinte, a todoo resto do Sistema Solar tomado em con-junto – mas também os outros (aproximada-mente) cinquenta satélites jupiterianos,incluindo-se cativos temporários pro-cedentes do cinturão de asteróides (os ad-vogados ainda discutiam este ponto). Pelamesma razão, Titã era responsável porSaturno, seus anéis e os outros trinta e tan-tos satélites.

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No que a Tritão dizia respeito, a situaçãoera ainda mais complicada. A grande lua deNetuno era o corpo mais exterior do SistemaSolar que fosse permanentemente habitado;em consequência, seu embaixador acumu-lava um número considerável de cargos dip-lomáticos. Representava Urano com suasoito luas (nenhuma delas ainda ocupada);Netuno e seus três outros satélites; Plutão esua lua solitária; e a isolada Perséfone, semsatélites. Se houvesse planetas além de Per-séfone, também seriam fideicomissos deTritão. E, como se isso não bastasse, o Em-baixador das Trevas Exteriores, como porvezes o chamavam, fora ouvido a indagar emtom queixoso: "E quanto aos cometas?" Emgeral, sentia-se que a solução desse problemapodia ser deixada para o futuro.

E, contudo, num sentido muito real,esse futuro já havia chegado. De acordo comalgumas definições, Rama era um cometa;estes eram os únicos outros visitantes vindos

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das profundidades interestelares, e muitosdeles haviam viajado em órbitas hiperbólicasainda mais próximas do Sol que a de Rama.

Qualquer jurista espacial podia levar acausa à vitória com base nesses fatos, e oEmbaixador mercuriano era um dosmelhores.

– Reconhecemos Sua Excelência o Em-baixador de Mercúrio. Como os delegadosestavam dispostos no sentido contrário aodos ponteiros de um relógio em ordem dedistância do Sol, o mercuriano achava-se àextrema direita do Presidente. Até o últimominuto estivera confabulando com o seucomputador; retirou então os óculos sin-cronizadores que não permitiam a ninguémmais ler a mensagem rotativa na tela. Apan-hou o maço de papéis em que tinha tomadosuas notas e pôs-se vivamente em pé.

– Sr. Presidente, ilustres colegas, eugostaria de começar por um breve sumário

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da situação com que nos defrontamos nestemomento.

Pronunciado por certos delegados, a ex-pressão "um breve sumário" teria provocadosilenciosos gemidos entre todos os ouvintes;mas ninguém ignorava ali que os mercuri-anos não eram dados a usar figuras deretórica.

– A gigantesca astronave ou asteróideartificial que recebeu o nome de Rama foidetectada há cerca de um ano na região situ-ada além de Júpiter. A princípio acreditou-seque fosse um corpo natural a mover-se numaórbita hiperbólica que o faria dar volta ao Sole prosseguir rumo às estrelas.

"Quando foi descoberta a sua verdadeiranatureza, ordenou-se à nave Endeavour, doServiço de Observação Solar, que fosse aoencontro do visitante.

Estou certo de que todos nós felicitare-mos o Comandante Norton e a sua tripulaçãopela maneira eficiente como

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desempenharam uma tarefa sem paralelo atéos dias de hoje.

"A princípio, acreditou-se que Rama eraum mundo morto – congelado por tantascentenas de milhares de anos que não havianenhuma possibilidade de reviver. Isso aindapode ser verdade, num sentido estritamentebiológico. O acordo parece ser unânimeentre todos os que estudaram o assunto emque nenhum organismo vivo de certo grau decomplexidade pode sobreviver a mais de al-guns poucos séculos de vida latente. Mesmono zero absoluto, efeitos quânticos residuaisacabam por apagar as informaçõesarmazenadas nas células, a tal ponto que tor-nam impossível a revivência. Parecia, pois,que, apesar da enorme importância ar-queológica de Rama, ele não apresentavanenhum problema astropolítico sério.

"Hoje, é evidente que se tratava de umaatitude muito ingênua, se bem que, mesmono começo, não faltou quem chamasse

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atenção para o fato de Rama estar tão bemapontado para o Sol que não podia tratar-sede simples coincidência.

"Mesmo assim, podia ter-se argu-mentado – como de fato aconteceu – que eraum caso de experimento falhado. Rama al-cançara o alvo que se tinha em vista, mas ainteligência controladora não sobrevivera.Essa opinião também parece muitosimplista; certamente subestima as en-tidades com que estamos lidando.

"O que devíamos ter levado em conta enão o fizemos foi a possibilidade de umasobrevivência não biológica. Se aceitamos ateoria muito plausível do Dr.

Perera, teoria que certamente se ajusta atodos os fatos, as criaturas que foram obser-vadas no interior de Rama não existiam até abem pouco tempo. Seus padrões, ou moldes,estavam armazenados em algum banco cent-ral de informações, e quando chegou a horaprefixada foram fabricadas com as matérias-

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primas disponíveis – presumivelmente asopa metalo-orgânica do Mar Cilíndrico.Essa façanha está ainda um pouco além dasnossas capacidades, mas não apresenta nen-hum problema teórico. Sabemos que os cir-cuitos em estado sólido, ao contrário damatéria viva, podem sem nenhuma perda,guardar informações durante períodos in-definidos de tempo.

"De modo que Rama está agora em per-feitas condições de operar, cumprindo o ob-jetivo de seus construtores – sejam lá quemforem. Do nosso ponto de vista, não importaque os ramaianos propriamente ditos ten-ham todos morrido há um milhão de anos,ou que também eles venham a ser recriadosa qualquer momento para fazer companhiaaos seus servos. Com ou sem eles, a sua vont-ade está sendo feita... e continuará a serfeita.

"Rama já deu provas de que o seu sis-tema de propulsão ainda está operando.

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Daqui a poucos dias estará no periélio, ondeé lógico que se efetue qualquer mudança im-portante de órbita. Ê possível, pois, que den-tro em breve tenhamos um novo planetamovimentando-se no espaço solar submetidoà jurisdição do governo que represento.Também pode, naturalmente, fazer modi-ficações adicionais e fixar-se numa órbita fi-nal a qualquer distância do Sol.

Poderia até tornar-se satélite de um dosplanetas maiores – como a Terra, porexemplo...

"Temos pois diante de nós, estimadoscolegas, todo um espectro de possibilidades,algumas delas bem sérias, É insensato pre-tender que essas criaturas devem ser bené-volas e nos deixarão em paz. Se vieram aonosso sistema solar é porque precisam de al-guma coisa aqui. Ainda que seja apenas con-hecimento científico, pensem nos usos quepodem dar a esse conhecimento...

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"Aquilo com que nos confrontamosagora e uma tecnologia que leva centenas,talvez milhares de anos de avanço sobre anossa, e uma cultura que talvez não tenhanenhum ponto de contato com ela. Estive-mos estudando o comportamento dos robôsbiológicos – os biômatos – tal como se podever nos filmes retransmitidos pelo Comand-ante Norton, e chegamos a certas conclusõesque desejo comunicar aos senhores.

"Em Mercúrio, somos talvez infortu-nados em não possuir formas autóctones devida para observar. Mas, naturalmente,temos um registro completo da zoologia ter-restre, e ali encontramos um notável paralelocom Rama.

"Refiro-me à colônia de térmites. ComoRama, é um mundo artificial com um ambi-ente controlado. Como Rama, seu funciona-mento depende de toda uma série de máqui-nas biológicas especializadas – operários,construtores, agricultores, guerreiros. E,

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conquanto ignoremos se Rama possui umaRainha, sugiro que a ilha conhecida comoNova Iorque desempenha uma funçãocomparável.

"Ora, é evidentemente absurdo levarmuito longe esta analogia, que falha em mui-tos pontos. Mas eu a proponho aos senhorespela razão seguinte:

"Que medida de cooperação ou de com-preensão será possível entre seres humanose térmites? Quando não há conflito de in-teresses, nos toleramos uns aos outros. Masquando um necessita do território ou dos re-cursos do outro, é uma guerra sem quartel.

"Graças à nossa tecnologia e à nossa in-teligência, podemos sempre ganhar, se es-tamos suficientemente decididos a isso. Masnem sempre é fácil, e há quem acredite que avitória final será das térmites...

"Tendo isto em mente, consideremagora a pavorosa ameaça que Rama pode –notem que não digo deve – representar para

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a civilização humana. Que medida tomamosnós para rebatê-la, se as circunstâncias oexigirem?

Absolutamente nenhuma; tudo que fize-mos foi falar, especular e escrever sábiosartigos.

"Pois, meus colegas, Mercúrio fez maisdo que isso. Escudados na Cláusula 34 doTratado Espacial de 2057, que nos dá odireito de adotar todas as medidas necessári-as para resguardar a integridade do nosso es-paço solar, enviamos a Rama um dispositivonuclear dotado de alta energia. Sincera-mente, nos sentiremos felizes se nunca tiver-mos de utilizá-lo. Mas agora, pelo menos,não estamos indefesos como antes.

"Talvez nos acusem de ter agido unilat-eralmente, sem consulta prévia.

Reconhecemos esse fato. Mas porven-tura alguém aqui imagina – com todo o re-speito devido ao Sr. Presidente – que poder-íamos ter conseguido um acordo dessa

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espécie dentro do tempo disponível? Leva-mos em conta que estamos agindo não apen-as no nosso interesse, mas no interesse detoda a raça humana. É

possível que todas as gerações futurasnos venham a agradecer o fato de nos termosantecipado assim.

"Reconhecemos que seria uma tragédia,e até um crime, destruir um artefato tãomaravilhoso como é Rama. Se há algummeio de evitar isso, sem risco para a hu-manidade, estamos prontos para ouvi-lo.Nós outros não encontramos nenhum, e otempo vai se tornando escasso.

"Dentro dos próximos dias, antes queRama atinja o periélio, a escolha terá de serfeita. Avisaremos, naturalmente, a Endeav-our com bastante antecedência – mas acon-selhamos o Comandante Norton a que estejasempre preparado para partir no prazo deuma hora. Ê concebível que Rama venha a

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sofrer novas e dramáticas transformações aqualquer momento.

"Isto era tudo que tinha para dizer, Sen-hor Presidente e meus colegas.

Obrigado pela atenção que me dispens-aram. Contarei com a cooperação de todos ossenhores."

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39 - DECISÃO DECOMANDO

– BEM, ROD, como se encaixam os mer-curianos na sua teologia?

– Se encaixam até bem demais. Co-mandante – respondeu Rodrigo com um sor-riso chistoso. – É o milenar conflito entre asforças do bem e as forças do mal.

E há ocasiões em que os homens têmque tomar partido nesse conflito.

"Mais ou menos o que eu esperava",pensou Norton. "Esta situação deve ter sidoum choque para Boris, mas ele não se teriaresignado a uma aquiescência passiva."

Os adeptos do Cristo Cosmonauta eramuma gente enérgica e competente.

Em verdade, a certos respeitos se pare-ciam notavelmente com os mercurianos.

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– Imagino que você tenha um plano,Rod.

– Sim, Comandante. Aliás, um planobastante simples. Tudo que temos a fazer édesarmar a bomba.

– Oh! E como pretende fazer isso?– Com um pequeno alicate corta-fios.Se outro tivesse dito isto, Norton acharia

que era piada. Mas Boris Rodrigo?...– Espere lá. O míssil está coalhado de

câmaras. Você pensa que os mercurianos vãoficar olhando você fazer isso sem tratar deimpedi-lo?

– Claro, é a única coisa que podem fazer.Quando o sinal os alcançar, será tarde de-mais. Posso facilmente terminar o trabalhoem dez minutos.

– Estou vendo. Não há dúvida que elesficarão furiosos. Mas suponhamos que abomba tenha uma armadilha que a faça det-onar a qualquer tentativa de interferência?

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– Isso parece muito improvável. Comque finalidade? Essa bomba foi construídapara uma missão específica no espaço pro-fundo, e deve estar munida de toda sorte dedispositivos de segurança para impedir adetonação, salvo na ocorrência de umcomando positivo. Mas esse é um risco queestou preparado para enfrentar – e pode-sefazer sem perigo para a nave. Tudo foi prev-isto nos meus planos.

– Quanto a isso não tenho a menordúvida – respondeu Norton.

A idéia era sedutora, fascinante mesmo.O que mais particularmente lhe agradava erapensar na frustração dos mercurianos, emuito teria dado para verlhes as reaçõesquando percebessem – demasiado tarde – oque estava acontecendo ao seu mortíferobrinquedo.

Mas havia outras complicações quepareciam multiplicar-se à medida que Nor-ton considerava o problema. Estava fazendo

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frente à mais difícil, mais crucial decisão detoda a sua carreira.

Isto, aliás, era um ridículo eufemismo. Oque Norton tinha pela frente era a mais difí-cil decisão que qualquer comandante játivera de tornar; o futuro da raça humana in-teira bem podia depender dela. Pois supon-hamos que os mercurianos tivessem razão?...

Depois que Rodrigo se retirou, ele ligouo sinal que dizia: É FAVOR NÃOINTERROMPER. Não pode lembrar-se daúltima vez que o tinha usado, e ficou até umpouco surpreendido ao ver que ele fun-cionava. Agora, no coração da sua nave cheiade gente e movimento, estava absolutamentesó – com exceção do retrato do CapitãoJames Cook, que o contemplava lá de longe,no fundo das avenidas do tempo.

Era impossível consultar a Terra; foraprevenido de que todas as mensagens po-diam ser interceptadas – talvez por disposit-ivos de retransmissão ocultos na própria

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bomba. Isso deixava em suas mãos a re-sponsabilidade inteira.

Ouvira certa vez contar que um Presid-ente dos Estados Unidos – seria Rooseveltou Perez? – tinha em cima da sua mesa detrabalho um sinal que dizia:

"Este é o ponto final do abacaxi". Nortonnão sabia com certeza o que fosse umabacaxi, mas sabia quando um deles vinhaparar na sua mesa.

Podia ficar inativo, à espera do aviso dosmercurianos para partir. Que impressãocausaria isso nos futuros livros de História?Norton pouco se inquietava com a fama ouinfâmia póstuma, porém não gostaria de serlembrado para sempre como o cúmplice deum crime cósmico que ele poderia terimpedido.

E o plano era perfeito. Como esperava,Rodrigo tinha previsto todos os detalhes,considerado todas as possibilidades – inclus-ive o remoto perigo de que a bomba pudesse

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ser detonada por qualquer alteração do seumecanismo. Se isso acontecesse, a Endeav-our podia ainda estar a salvo, resguardadaatrás de Rama.

Quanto ao próprio Tenente Rodrigo,parecia encarar com perfeita calma a possib-ilidade de uma apoteose instantânea.

E, contudo, mesmo que a bomba fossedesarmada com êxito, o assunto não termin-aria aí. Os mercurianos podiam fazer novatentativa, a não ser que se descobrisse ummeio de dissuadi-los. Mas pelo menos seganhariam com isso algumas semanas;Rama teria deixado o periélio muito paratrás antes que um outro míssil pudessealcançá-lo. Mas esperava-se que a essa alturaos piores receios dos alarmistas se tivessemdissipado. Ou o contrário...

Agir ou não agir, eis a questão. O Co-mandante Norton nunca se sentira em tãoestreita afinidade com o Príncipe da Din-amarca. O que quer que ele fizesse, as

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responsabilidades de bem e de mal pareciamequilibrar-se perfeitamente. A decisão quelhe cabia tomar era a mais moralmente difí-cil de todas. Se errasse na escolha, havia desabê-lo bem depressa. Mas, se acertasse,talvez nunca fosse capaz de prová-lo...

De nada adiantava insistir na argu-mentação lógica e na interminável carto-grafia de futuros alternativos. Por essecaminho podia-se continuar dando voltaspara o resto da vida. Era chegada a hora deescutar as suas vozes interiores.

Fixou-se nos olhos que o contemplavam,calmos e firmes, através dos séculos, emurmurou:

– Estou de acordo com o senhor Cap-itão. A raça humana deve viver com a suaconsciência. Digam o que disserem os mer-curianos em contrário, a sobrevivência não étudo.

Apertou o botão que chamava a ponte decomando e disse numa voz pausada:

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– Tenente Rodrigo – gostaria de falarcom o senhor. Cerrou então os olhos, enfiouos polegares nos cintos de segurança da suacadeira e preparou-se para gozar alguns mo-mentos de total relaxação.

Talvez não voltasse a experimentá-la tãocedo.

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40 - SABOTADORA MOTOROLA fora despida de todo

equipamento desnecessário e ficara reduzidaa uma simples armação aberta que mantinhaunidos os sistemas de propulsão, direção esustentação de vida. Até o assento do se-gundo piloto fora retirado, pois cada quilo demassa adicional tinha de ser pago em tempode missão.

Essa era uma das razões, se bem quenão a mais importante, pelas quais Rodrigoinsistira em ir sozinho. O trabalho era tãosimples que não havia necessidade de as-sessores, e a massa de um passageiro custar-ia vários minutos de tempo de voo. Tal comoestava agora, a motorola podia acelerar amais de um terço de gravidade e completarem quatro minutos a viagem da Endeavour

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até a bomba. Sobravam, pois, seis minutos,que deviam ser suficientes.

Após deixar a nave, Rodrigo olhou paratrás uma vez e não mais; viu que, de acordocom os planos, ela se elevara acima do eixocentral e ganhava distância pouco a pouco,sobre o disco rotativo da Face Norte. Quandoatingisse a bomba, estaria separado da as-tronave por toda a espessura de Rama.Sobrevoou tranquilamente a planície polar.Não tinha por que se apressar aqui, pois ascâmaras da bomba não o podiam ver ainda, eisso lhe permitia economizar combustível.Ao contornar a orla arredondada do pequenomundo avistou o míssil, fulgurando aos raiosde um sol mais feroz do que aquele que es-torricava o seu planeta de origem.

Rodrigo já tinha ligado as orientaçõesgravadas e deu início à sequência; a motorolarodopiou sobre os seus giroscópios e numaquestão de segundos alcançou a plenapropulsão. No primeiro instante a sensação

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de peso pareceu esmagadora, mas Rodrigologo se ajustou a ela. Afinal, tinha suportadomuito bem o dobro no interior de Rama – enascera sob o triplo na Terra.

Abaixo dele, a enorme e curva paredeexterior do cilindro de cinquenta quilômet-ros descaía lentamente para longe enquantoa motorola rumava diretamente para abomba. Contudo, era impossível fazer umaidéia do tamanho de Rama, por ser com-pletamente liso e em acidentes – tão despidode acidentes, em verdade, que dificilmente sepercebia a sua rotação.

Cem segundos de missão haviam pas-sado, e ele se aproximava do ponto mediano.A bomba ainda estava longe demais pararevelar quaisquer detalhes, mas brilhavacom muito mais intensidade contra o céu deum negro absoluto.

Era estranho não avistar estrelas – nemmesmo a colorida Terra ou a ofuscanteVênus; tal era o efeito dos filtros escuros que

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protegiam seus olhos contra a mortal clarid-ade. Rodrigo suspeitou que estava batendoum recorde; provavelmente, nenhum outrohomem, até agora, havia realizado umtrabalho extra-veicular tão perto do Sol. Porsorte dele, o nível de atividade solar era, naocasião, bastante baixo.

Aos dois minutos e dez segundos a luzde pisca-pisca começou a sinalizar, apropulsão caiu a zero e a motorola girou ho-rizontalmente 180 graus. Um instante depoisa propulsão voltou com toda a sua força, masagora Rodrigo desacelerava na mesma razãogeométrica de três metros por segundo aoquadrado – em verdade, um pouco mate,visto que tinha perdido quase toda a suamassa de combustível. A distância que o sep-arava da bomba era de vinte e cinco quilô-metros; dentro de mais dois minutos iriaalcançá-la. Tinha chegado à velocidade limitede mil e quinhentos km por hora – o que,para uma motorola espacial, era uma

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legítima loucura, e provavelmente outro re-corde. Mas não se tratava precisamente deuma AEV de rotina, e ele sabia muito bem oque estava fazendo.

A bomba crescia de tamanho, e agoraRodrigo podia ver a antena principal, firm-emente dirigida para a estrela invisível deMercúrio. Por aquele comprimento de onda,havia três minutos que corria, com a velocid-ade da luz, a imagem de sua motorolaaproximando-se. Faltavam ainda doisminutos para que essa imagem alcançasseMercúrio.

Que fariam os mercurianos quando ovissem? Haveria consternação, é claro. Com-preenderiam ato contínuo que ele entrara emcontato com a bomba vários minutos antesde se darem conta de que vinha a caminho.Provavelmente o observador de plantãochamaria uma autoridade superior – o quetomaria mais tempo. Mesmo, porém, na piordas hipóteses possíveis – mesmo que o

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oficial de serviço tivesse autoridade para det-onar a bomba e premisse imediatamente obotão – o sinal levaria mais cinco minutos achegar.

Embora Rodrigo não jogasse nessaprobabilidade – os Cosmo-Christers jamaisjogavam – tinha plena certeza de que nãohaveria uma reação instantânea dessa sorte.Os mercurianos hesitariam em destruir umveículo de reconhecimento procedente daEndeavour, mesmo que suspeitassem deseus motivos. Antes de tudo, tentariam cer-tamente alguma forma de comunicação – eisso significaria uma nova demora.

E havia outra razão, ainda melhor: elesnão desperdiçariam aquela bomba de umgigaton numa simples motorola. E seria cer-tamente um desperdício detoná-la a vintequilômetros do objetivo. Teriam de pô-la emmovimento primeiro. Oh! tempo era o quenão faltava a Rodrigo... mas, fosse comofosse, toda cautela era pouca.

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Agiria como se o impulso desencadeanteestivesse para chegar no prazo mais curtopossível – exatamente cinco minutos.

Enquanto a motorola transpunha as úl-timas centenas de metros, Rodrigo cotejourapidamente os detalhes que podia distinguiragora com aqueles que estudara nas foto-grafias tiradas de longa distância. O que nãoera mais do que uma coleção de imagensconverteu-se em metal duro e plástico lus-troso – não mais abstratos, mas uma letalrealidade.

A bomba era um cilindro de uns dezmetros de comprido e três de diâmetro – porsingular coincidência, quase as mesmas pro-porções do próprio Rama. Estava ligada à es-trutura do veículo portador por uma treliçade vigas curtas em I. Por alguma razão queprovavelmente tinha que ver com a localiza-ção do centro de massa, era sustentada emângulo reto com o eixo do veículo, dando as-sim uma impressão apropriadamente

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sinistra de cabeça de martelo. E era em ver-dade um martelo, bastante poderoso paraenfardar um mundo.

Partindo de cada extremidade dabomba, um feixe de cabos trançados corriaao longo da superfície curva do cilindro e,embrenhando-se na treliça, ia desaparecerno interior do veículo. Toda a comunicação econtrole residia ali; na própria bomba nãohavia nenhuma antena de qualquer espécie.Bastava a Rodrigo cortar esses dois feixes decabos e nada restaria senão metal inerte einofensivo.

Conquanto isso fosse exatamente o queesperava, ainda lhe parecia um pouco fácildemais. Olhou o seu relógio; outros trinta se-gundos se passariam antes que os mercuri-anos, mesmo que estivessem observandoquando ele contornara a orla de Rama, to-massem conhecimento da sua existência.Dispunha de cinco minutos, absolutamentegarantidos, para trabalhar

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ininterruptamente – e 99 por cento de prob-abilidade de um tempo muito mais longo.

Assim que a motorola se imobilizou porcompleto, Rodrigo engatou-a à armação domíssil, de modo que ambos formassem umaestrutura rígida. Para isso não foram pre-cisos mais do que alguns segundos; já haviaescolhido as suas ferramentas, e num in-stante abandonou o assento do piloto, apen-as levemente estorvado pelo tecido duro dasua roupa isolante.

A primeira coisa que se pôs a inspecion-ar foi uma pequena placa de metal com ainscrição:

DEPARTAMENTO DE ENGENHARIA,DIVISÃO DE FORÇA MOTRIZSEÇÃO D 47, SUNSET BOULEVARDVULCANOPOLIS, 17464SOLICITAR INFORMAÇÕES AO SR.

HENRY K. JONES.

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Rodrigo suspeitou de que dentro de al-guns minutos Jones estaria ocupadíssimo.

O cabo não deu muito que fazer aopossante corta-fios. Enquanto rompia osprimeiros cordões, Rodrigo nem sequer pen-sou nas chamas infernais que estavamrepresadas a poucos centímetros dele; se oque estava fazendo as desencadeasse, elenem sequer o saberia.

Tornou a consultar o seu relógio; de-morara menos de um minuto naquele tra-balho, o que significava que estava dentro dohorário preestabelecido. Só faltava agora ocabo de retorno, e depois poderia voltar, bemà vista dos furiosos e frustradosmercurianos.

Ia aplicar o corta-fios ao segundo feixede cabos quando sentiu uma vibração quaseimperceptível no metal que tocava. Sobres-saltado, olhou o corpo do míssil às suascostas.

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A característica luz azul-violeta de umpropulsor de plasma em ação pairava emredor de um dos jatos de controle de alti-tude. A bomba se preparava para pôr-se emmovimento.

A mensagem de Mercúrio era breve edevastadora. Chegou dois minutos depois deRodrigo ter desaparecido atrás da orla deRama.

I COMANDANTE ENDEAVOUR VGDO CONTROLE ESPACIAL

MERCÚRIO VGINFERNO WEST PTDAMOS-LHE UMA HORA APÓS

RECEBIMENTO PARA ABANDONARIMEDIAÇÕES DE RAMA PT

SUGERIMOS RETIRADA COMMÁXIMA ACELERAÇÃO AO LONGO EIXOROTAÇÃO PT

QUEIRA ACUSAR RECEBIMENTO PTFIM DA MENSAGEM.

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O Comandante Norton leu-a primeirocom absoluta incredulidade, depois comraiva. Teve um impulso infantil de responderpelo rádio que toda a sua tripulação seachava no interior de Rama e levaria horas aevacuá-la. Mas isso não serviria de nada –salvo, talvez, para testar a força de vontade ea audácia dos mercurianos.

E por que haviam eles decidido agirvários dias antes do periélio? A pressão cres-cente da opinião pública se teria tornadogrande demais, levando-os a resolverem de-frontar o resto da raça humana com um faitaccompli? A explicação não parecia muitoconvincente. Um tal grau de sensibilidadenão se coadunava com o feitio mercuriano.

Não tinha meio de chamar Rodrigo, poisa motorola estava agora na rádiosombra deRama e continuaria inacessível até que tor-nasse à linha de visão. Isso não aconteceriaantes de se ter completado – ou falhado – amissão. Teria de esperar até lá; ainda havia

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tempo de sobra, nada menos de cinquentaminutos.

Entrementes, decidira qual seria a mel-hor maneira de responder a Mercúrio.

Não faria nenhum caso da mensagem eaguardaria a reação dos mercurianos.

A primeira reação de Rodrigo, quando abomba começou a mover-se, não foi de medofísico, mas de algo muito mais devastadorAcreditava que o universo funcionava deacordo com leis estritas a que nem o próprioDeus não podia desobedecer – quantomenos os mercurianos.

Nenhuma mensagem podia viajar maisdepressa do que a luz; ele tinha cincominutos de dianteira sobre qualquer coisaque os mercurianos pudessem fazer.

Aquilo podia ser uma simples coincidên-cia – fantástica, talvez mortal, porém nadamais do que uma coincidência. Por casualid-ade, um sinal de controle podia ter sido envi-ado à bomba no momento em que ele

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deixava a Endeavour; enquanto Rodrigopercorria trinta quilômetros, o sinal haviacoberto oitenta milhões.

Ou talvez se tratasse de uma mudançaautomática de atitude, para neutralizar o su-peraquecimento de um ponto qualquer doveículo. Havia lugares em que a temperaturasuperficial ia quase a mil e quinhentos graus,e Rodrigo tivera o maior cuidado em se con-servar tanto quanto possível na sombra.

Um segundo propulsor começou adisparar, opondo-se à rotação imprimidapelo primeiro. Não, não se tratava de umsimples reajuste térmico. A bomba estava sereorientando, a fim de apontar para Rama...

Inútil indagar por que isso acontecia,neste momento preciso. Havia uma coisa emseu favor: o míssil era um dispositivo debaixa aceleração. Um décimo de gravidadeera o máximo que poderia alcançar. Nãohavia pressa. Testou os ganchos que pren-diam a motorola à armação da bomba e

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tornou a experimentar a corda de segurançada sua roupa espacial. Ia crescendo dentrodele uma cólera fria que o consolidava na suaresolução. Significaria essa manobra que osmercurianos iam explodir a bomba semaviso, sem dar à Endeavour nenhumachance de escapar? Isso parecia incrível, umato não só de brutalidade como até deloucura, feito para voltar o resto do sistemasolar contra eles. E o que os teria levado arenegar a solene promessa dada pelo seupróprio embaixador?

Fosse qual fosse o seu intento, nãohaviam de lográ-lo.

A segunda mensagem de Mercúrio foiidêntica à primeira e chegou dez minutosmais tarde. Tinham, pois, prorrogado oprazo – Norton ainda dispunha de uma hora.E, evidentemente, haviam esperado que umaresposta à&Endeavour os alcançasse antesde tornarem a chamá-la.

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Agora, havia outro fator; a esta altura jádeviam ter visto Rodrigo e teriam tido váriosminutos para agir. Suas ordens talvez jáviessem a caminho e poderiam chegar aqualquer instante.

Devia estar preparando-se para partir.Quando menos esperasse, a massa enormede Rama, que enchia o céu, se tornaria in-candescente nas orlas e toda ela começaria afulgurar com um esplendor que eclipsaria odo Sol.

Quando chegou o impulso mais forte,Rodrigo estava firmemente ancorado. Apen-as dez segundos depois, cessou. Ele fez umrápido cálculo mental: a delta-v não podiater sido maior que quinze quilômetros porhora. A bomba levaria mais de uma horapara alcançar Rama. Talvez se estivesseapenas aproximando para obter uma reaçãomais rápida. Nesse caso, seria uma sábia pre-caução; mas os mercurianos a tinham to-mado tarde demais.

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Rodrigo deu uma olhada ao seu relógio,se bem que agora sentisse a passagem dotempo quase sem consultá-lo. Em Mercúrio,deviam estar vendo-o nesse momento adirigir-se resolutamente para a bomba e dis-tante dela menos de dois quilômetros. Nãopodiam duvidar de suas intenções e deviamestar imaginando se ele já não as teria postoem prática.

O segundo feixe de cabos deixou-se cor-tar com a mesma facilidade que o primeiro;como todo bom trabalhador, Rodrigo escol-hera bem as suas ferramentas. A bomba foradesarmada; ou, para ser mais exato, já nãopodia ser detonada por comando remoto.

Havia, porém, uma outra possibilidadeque ele não podia descurar. Não havia deton-adores externos de contato, mas podia havê-los internos, que fossem acionados pelochoque do impacto. Os mercurianos aindacontrolavam os movimentos do seu veículo epodiam arremessá-lo contra Rama quando

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quisessem. Rodrigo ainda não acabara de to-do o seu trabalho.

Daqui a cinco minutos, naquela sala decontrole num ponto qualquer de Mercúrio,vê-lo-iam voltando de rastos sobre a super-fície do veículo e trazendo consigo o modestocorta-fios que tinha neutralizado a mais po-derosa arma já construída pelo homem. Porum triz não abanou para a câmara, masachou que o gesto poderia parecer poucosério; afinal de contas, era um momentohistórico e milhões, no futuro, contemplari-am essa cena em todas as telas. A não ser, éclaro, que os despeitados mercurianosdestruíssem o vídeo; pensando nessa possib-ilidade, Rodrigo quase os desculpava.

Chegou à montagem da antena de longoalcance e lentamente, sem esforço, subiu-amão por mão até a imensa meia-laranja. Seufiel corta-fios inutilizou em dois tempos osistema multiplex de alimentação, mascandopor igual os cabos e os guias de raios laser.

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Ao fazer o último corte, a antena começou agirar lentamente sobre si mesma; esse movi-mento inesperado sobressaltou-o, mas logocompreendeu que havia destruído o seusuporte automático em Mercúrio. Daqui acinco minutos exatos, os mercurianos per-deriam todo contato com o seu servo, queagora não só estava impotente como tinhaficado cego e surdo.

Rodrigo voltou devagar à motorola,soltou-lhe as maneias fê-la girar em roda atéque os pára-choques dianteiros começaram apressionar o míssil, tão próximo quanto pos-sível do seu centro de massa. Deu, então,toda a força de propulsão ao pequeno veículoe manteve-a nesse nível durante vintesegundos.

A motorola, que empurrava uma massavinte vezes maior do que a sua, respondeumuito morosamente. Ao tornar a baixara'propulsão a zero, Rodrigo procedeu a uma

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cuidadosa leitura do novo vetor de velocid-ade da bomba.

Passaria a considerável distância deRama – e em qualquer ocasião futura sepoderia localizá-la novamente com precisão.Afinal, não deixava de ser um instrumentovalioso.

O Tenente Rodrigo era homem de umahonradez quase patológica. Não gostaria deque os mercurianos o acusassem de ter ex-traviado a sua propriedade.

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41 - HERÓI"MINHA QUERIDA", começou Norton, "es-

ta brincadeira nos custou mais de um dia,mas pelo menos me ofereceu um ensejo delhe falar. Continuo na nave, que estávoltando ao seu posto no eixo polar. Faz umahora que recolhemos Rod, com o ar de quemacaba de sair de serviço após uma guardasem novidade.

Imagino que nenhum de nós doispoderá jamais tornar a visitar Mercúrio, eme pergunto se seremos tratados como her-óis ou vilões quando voltarmos à Terra.

Mas a minha consciência, pelo menos,está tranquila; tenho certeza de que agimosbem. Será que um dia os ramaianos nosdirão "obrigados"? Só podemos ficar aquidois dias mais; não temos, como Rama, umacarapaça de um quilômetro de espessura

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para nos proteger contra o sol. O casco já es-tá começando a desenvolver perigosos pon-tos de alta temperatura e tivemos de fazer al-guma blindagem térmica local. Desculpe,não queria importuná-la com os meusproblemas...

De modo que ainda nos resta tempopara mais uma viagem a Rama, e pretendoaproveitá-lo ao máximo. Mas não se in-quiete, não vou me arriscar a nada."

Norton cessou a gravação. Esta frase fi-nal, para dizer o mínimo, era uma violência àverdade. Havia perigo e incerteza em todosos momentos no interior de Rama; ninguémpoderia jamais sentir-se à vontade ali, empresença de forças inacessíveis ao seu en-tendimento. E nessa derradeira viagem,sabendo que não tornariam a voltar e quenenhuma operação futura seria prejudicada,projetava tentar um pouco mais a sorte.

"Dentro de quarenta e oito horas, pois,teremos completado esta missão. O que

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então vai acontecer é ainda incerto; como vo-cê sabe, já usamos virtualmente todo o nossocombustível para entrar nesta órbita. Aindaestou à espera de saber se uma nave-tanquepoderá encontrar-se conosco a tempo de vol-tarmos à Terra, ou se teremos que descer emMarte. Seja como for, lá pelo Natal devereiestar em casa. Diga ao Júnior que sintomuito, mas não posso levar um filhote debiômato.

Semelhante animal não existe..."Todos vamos bem, mas nos sentimos

muito cansados. Creio que com tantas an-danças fiz jus a uma longa licença, e tratare-mos então de recuperar o tempo perdido.Digam o que disserem a meu respeito, vocêpoderá gabar-se de ser mulher de um herói.Quantas por aí terão um esposo que salvouum mundo?"

Como sempre, escutou cuidadosamentea gravação antes de duplicá-la paracertificar-se de que era aplicável a ambas as

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famílias. Como era estranho que nãosoubesse a qual das duas veria primeiro! Emgeral, o seu itinerário era determinado pelomenos com um ano de antecedência, pelosinexoráveis movimentos dos própriosplanetas.

Mas isso fora nos tempos anteriores aRama; agora, as coisas nunca mais tornari-am a ser as mesmas.

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42 - TEMPLO DEVIDRO

– SE TENTARMOS – disse Karl Mercer, – osenhor acha que os biômatos nos impedirão?

– Talvez impeçam; essa é uma dascoisas que quero verificar. Por que olha paramim desse jeito?

Mercer deu-lhe aquele seu sorriso lentoe impenetrável, mas capaz de ser sublinhado,a qualquer momento, por alguma faleciaprivada que ele podia ou não repartir com osseus companheiros de equipagem.

– Estava imaginando, Capitão, se o sen-hor pensa que é dono de Rama. Até agora,tinha vetado qualquer tentativa de penetrar àforça nos edifícios. Por que esta mudança?Será influência dos mercurianos?

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Norton riu, mas de repente ficou sério. Apergunta era arguta, e ele não sabia se as re-spostas óbvias seriam as mais acertadas.

– Talvez eu tenha sido ultra cauteloso...Queria evitar complicações. Mas esta é anossa última chance. Se formos obrigados anos retirar, a perda não será grande.

– Desde que nos retiremos em boaordem.

– Pois claro. Mas os biômatos nunca de-ram sinais de hostilidade; e, fora as aranhas,não creio que exista aqui alguma coisa capazde nos alcançar... se tivermos que correr deverdade.

– O senhor pode correr, se quiser, Cap-itão, mas eu tenciono partir com dignidade.A propósito, acho que já sei por que osbiômatos têm tantas contemplações conosco.

– Ê um pouco tarde para propor umanova teoria.

– Em todo caso, lá vai. Eles pensam quenós somos ramaianos. Não percebem a

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diferença entre um respirador de oxigênio eoutro.

– Não creio que sejam tão estúpidosassim.

– Não é uma questão de estupidez.Foram programados para as suas tarefasparticulares e nós simplesmente não estamosincluídos no seu quadro de referências.

– Talvez você tenha razão. E pode serque venhamos a averiguar isso...

logo que tenhamos começado a trabal-har em Londres.

Joe Calvert sempre se deleitara comaqueles velhos filmes em torno de assaltos abancos, porém nunca esperava ver-se um diaenvolvido num deles.

Contudo isso era, no fundo, o que estavafazendo agora.

"As ruas desertas de Londres" pareciamprenhes de ameaças, embora ele soubesseque isso não era mais do que uma ficção desua consciência culpada.

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Não acreditava realmente que as con-struções hermeticamente vedadas e semjanelas estivessem cheias de habitantes à es-preita, prontos para operar uma surtida emhordas iracundas assim que os invasorespusessem as mãos em suas propriedades.Tinha, mesmo, plena certeza de que essecomplexo, como todas as outras "cidades",era apenas uma vasta área de depósitos.

Havia, porém, um outro temor, igual-mente baseado em inúmeros dramas antigosde crime, mas que podia ser mais bem-fundado. Talvez não houvesse clamorosascampainhas de alarma nem sirenas ulu-lantes, mas era razoável supor que Ramapossuísse um sistema qualquer de aviso. Deoutra forma, como poderiam os biômatossaber quando e onde se faziam necessáriosos seus serviços?

– Os que não têm óculos protetores vir-em as costas – disse o Sargento Myron.Sentiu-se um cheiro de óxidos nítricos

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quando o próprio ar começou a arder àchama do maçarico de raios laser e se ouviuo crepitar ininterrupto da faca de fogo queabria caminho em busca de segredos que tin-ham permanecido ocultos desde as origensdo homem.

Matéria nenhuma podia resistir àquelaconcentração de força que continuava a cor-tar num ritmo uniforme de vários metros porminuto. Dentro de um tempo notavelmentecurto foi ablaqueada uma seção bastantegrande para deixar passar um homem. Comoa seção recortada não quisesse mexer-se porsi mesma, Myron bateu suavemente nelacom as pontas dos dedos – depois mais forte– depois meteu-lhe o ombro com toda aforça. A laje tombou para dentro com umcavo estrondo que ecoou em todas asdireções. Mais uma vez, como fizera duranteaquela primeira entrada em Rama, Nortonlembrou-se do arqueólogo que havia aberto oantigo túmulo egípcio. Não esperava ver um

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resplendor de ouro; não tinha, em verdade,idéias preconcebidas de espécie alguma aoenfiar-se pela abertura, com o facho da lan-terna elétrica voltado para a frente.

Um templo grego feito de vidro – essafoi a sua primeira impressão.

Enchiam todo aquele espaço fileiras emais fileiras de colunas cristalinas, comcerca de um metro de diâmetro eestendendo-se do chão até o teto. Eram cen-tenas, recuando na escuridão até que a luz dalanterna já não as podia alcançar.

Norton caminhou para a coluna maispróxima e dirigiu a luz para o seu interior.Refratados como por uma lente cilíndrica, osraios abriram-se em leque no lado opostapara focalizar-se e refocalizar-se, mais fracosa cada repetição, nas colunas que se en-fileiravam mais atrás. Norton teve a sensaçãode se encontrar no meio de uma complicadademonstração de óptica.

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– Muito bonito – disse Mercer, ohomem de espírito prático, – mas que signi-fica isto? Para que serve uma floresta de pil-ares de vidro?

Norton bateu de leve numa coluna comos nós dos dedos. Parecia sólida e inteiriça,conquanto mais metálica do que cristalina.Não sabia absolutamente o que pensar,motivo pelo qual seguiu um prestimoso con-selho que tinha ouvido muitos anos atrás:"Quando em dúvida, não diga nada e siga oseu caminho."

Ao chegar à próxima coluna, que pareciaexatamente igual à primeira, ouviu uma ex-clamação de surpresa de Mercer.

– Eu teria jurado que este pilar estavavazio... Agora há qualquer coisa aí dentro.

Norton olhou vivamente para trás.– Onde? Não vejo nada.Seguiu a direção que Mercer apontava

com o dedo. Mas apontava para o vazio. Acoluna era ainda perfeitamente transparente.

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– Não pode ver? – repetiu Mercer, in-crédulo. – Faça a volta e venha olhar destelado. Raios, agora perdi de vista!

– Que é que está acontecendo aqui? –acudiu Calvert. Vários minutos se passaramantes que ele obtivesse o começo de umaresposta.

As colunas não eram transparentes detodos os ângulos nem sob qualquer ilumin-ação. Quando se lhes dava volta, objetosapareciam subitamente à vista, como que in-crustados nas profundezas do material àguisa de moscas no âmbar – e logo tornavama desaparecer. Eram dúzias, e todos difer-entes. Pareciam absolutamente reais esólidos, e contudo muitos davam a im-pressão de ocupar o mesmíssimo lugar noespaço.

– Hologramas – disse Calvert. – Talcomo num museu da Terra.

Essa era a explicação óbvia, e por issomesmo Norton olhou-a com suspeita. Suas

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dúvidas cresceram de vulto quando examin-ou as outras colunas, fazendo surgir as im-agens guardadas no seu interior.

Ferramentas manuais (ainda que destin-adas a mãos enormes e de feitio muito es-quisito), recipientes, pequenas máquinascom teclados que pareciam dever ser acion-ados por mais de cinco dedos, instrumentoscientíficos, utensílios domésticos sur-preendentemente convencionais, inclusivefacas e pratos que, a não ser o seu tamanho,não teriam merecido um segundo olhar emqualquer mesa terrestre – de tudo havia ali,com centenas de objetos menos identificá-veis, muitas vezes reunidos no mesmo pilar.Um museu, seguramente, teria um arranjomais lógico, alguma segregação de itens cor-relacionados. Esta parecia ser uma coleçãode ferragens dispostas sem nenhuma ordem.

Haviam fotografado as fugidias imagensdentro de uma vintena daqueles pilares decristal quando a própria heterogeneidade

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dos itens forneceu uma pista a Norton.Talvez não se tratasse de uma coleção, masde um catálogo, organizado de acordo comum sistema arbitrário mas perfeitamente ló-gico. Pensou nas estranhas justaposições quedaria qualquer dicionário ou lista alfabética,e experimentou a idéia com os seuscompanheiros.

– Percebo o que o senhor quer dizer –falou Mercer. – Os ramaianos não ficariammenos surpreendidos se nos vissem juntar...hã... balões com baleias.

– Ou abóboras com abóbadas – acres-centou Calvert depois de refletir profunda-mente durante alguns segundos. Essa es-pécie de jogo podia durar horas, decidiu ele,com pares de vocábulos cada vez maisdisparatados.

– Esta é a idéia – retrucou Norton. –Isto aí pode ser um catálogo em ordem al-fabética, só que com imagens em três

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dimensões, matrizes, fotocalcos sólidos, seassim preferirem.

– Com que fim?– Bom, você conhece a teoria sobre os

biômatos... a idéia de que eles não existemenquanto não se tornam necessários, e queentão são criados – sintetizados – de acordocom modelos que se acham guardados poraí?

– Entendo – disse Mercer, lento e pens-ativo. – De modo que quando um ramaianoprecisa de uma grua canhota, perfura onúmero de código correspondente e um ex-emplar é fabricado de acordo com o padrãoaqui existente.

– Mais ou menos isso. Mas, por favor,não me peça detalhes práticos.

O tamanho dos pilares entre os quaiseles passavam ia crescendo constantemente.Mediam, agora, mais de dois metros de diâ-metro, e as imagens eram maiores na mesmaproporção; evidentemente, e sem dúvida por

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ótimas razões, os ramaianos acreditavam emfazer tudo numa escala de um por um. Se as-sim fosse, perguntava-se Norton, comoguardariam eles os modelos das coisas real-mente grandes?

A fim de aumentar a sua cobertura, osquatro exploradores se haviam espalhadoentre as colunas de cristal e iam tirando foto-grafias com a rapidez que lhes permitia otempo necessário para focalizar sua câmarasnas perecíveis imagens. Era uma sorte in-crível, pensou Norton, embora sentisse que amerecera; não podiam ter feito melhorescolha do que esse Catálogo Ilustrado deArtefatos Ramaianos. E contudo, sob outroponto de vista, dificilmente teria sido maisfrustrativa. A bem dizer, ali não havia nada anão ser impalpáveis padrões de claros eescuros; esses objetos aparentemente sólidosnão tinham existência real.

Mesmo sabendo-o, Norton sentiu maisde uma vez a tentação quase irresistível de

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penetrar com o raio laser no interior de umdesses pilares, para poder levar consigo àTerra alguma coisa material. Era o mesmoimpulso, pensou ele com uma ironia per-versa, que levaria um macaco a tentar agar-rar o reflexo de uma banana num espelho.

Estava fotografando algo que parecia seruma espécie de dispositivo óptico quando ogrito de Calvert o fez largar a correr entre ascolunas.

– Capitão... Karl... Will... Vejam isto!Joe era propenso aos entusiasmos re-

pentinos, mas o que tinha encontradobastava para justificar o maior dos alvoroços.

Dentro de uma das colunas de dois met-ros de.diâmetro via-se um complicado arnêsou uniforme, obviamente feito para um serde postura ereta, muito mais alto do que umhomem. Uma fita metálica central, muito es-treita, parecia circundar a cintura, tórax oualguma parte do corpo desconhecida pela zo-ologia terrestre. Dela partiam três esguias

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colunas, afilando-se para fora e terminandonum cinturão perfeitamente circular, comum respeitável metro de diâmetro. Umas ar-golas dispostas ao longo desse cinturão eseparadas por intervalos iguais só podiamservir para dar passagem a membros superi-ores, ou braços. Três argolas...

Não escasseavam as bolsas, fivelas, ban-doleiras, servindo de suporte a ferramentas(ou armas?), canos e fios elétricos, inclusivepequenas caixas pretas que pareceriam per-feitamente em casa num laboratórioeletrônico da Terra. Em suma, um conjuntode peças quase tão complexo quanto umaroupa espacial, embora só oferecesse, obvia-mente, uma cobertura parcial para a criaturaque a usasse.

E seria essa criatura um ramaiano?perguntou-se Norton. Provavelmente nuncao saberiam; mas devia ter sido um ser inteli-gente, pois nenhum animal poderia avir-secom um equipamento tão sofisticado.

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– Cerca de dois metros e meio de altura– disse Mercer, pensativo. – Sem contar acabeça, que sabe lá que feitio teria...

– Com três braços... e presumivelmentetrês pernas. Tal como as Aranhas, só quenuma escala muito mais maciça. Você supõeque isso seja uma coincidência?

– Provavelmente não. Nós projetamosos robôs à nossa própria imagem.

Seria de esperar que os ramaianosfizessem o mesmo.

Joe Calvert, insolitamente taciturno,contemplava toda aquela panóplia com umaespécie de terror.

– Você supõe que eles saibam da nossapresença aqui? – perguntou numsemicochicho.

– Duvido – disse Mercer. – Nem sequeratingimos o limiar da consciência deles... sebem que os mercurianos tenham feito umabela tentativa.

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Ainda estavam parados diante dacoluna, incapazes de se despegar dali,quando a voz urgente e alarmada de Pietergritou lá no Cubo:

– Capitão! Convém virem para fora.– Que é que há? Biômatos dirigindo-se

para cá?– Não, é algo muito mais sério. As luzes

estão se apagando.

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43 - RETIRADAQUANDO SAIU apressadamente pelo

buraco que haviam aberto com o laser, pare-ceu a Norton que os seis sóis de Rama con-tinuavam tão brilhantes como sempre. "Pi-eter deve ter cometido algum erro", pensou."Isso está fora dos seus hábitos..." Mas Pietertinha previsto esta reação.

– A coisa aconteceu tão devagar – ex-plicou ele, como quem se desculpa, – que sódepois de muito tempo notei alguma difer-ença. Mas não há a menor dúvida. O fotô-metro indica que o nível de iluminação baix-ou quarenta por cento.

Norton, cujos olhos já se haviamreajustado após a penumbra do templo devidro, podia acreditar nele agora. O longo diade Rama aproximava-se do fim.

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O calorzinho ambiente era ainda omesmo, e no entanto Norton sentia-se arre-piar de frio. Tivera essa sensação já uma vez,durante um belo dia de verão na Terra. A luzenfraquecera inexplicavelmente, como seuma escuridão caísse da atmosfera, ou comose o sol tivesse perdido a sua força – emboranão houvesse uma só nuvem no céu. Entãose lembrou: estava havendo na ocasião umeclipse parcial.

– Pois aí está – disse, com a testa fran-zida. – Vamos voltar para casa.

Abandonem toda a aparelhagem. Nãoprecisaremos mais dela.

Agora – assim esperava – um detalhe doplanejamento ia demonstrar o seu valor.Havia escolhido Londres para essa incursãoporque nenhuma outra cidade se achava tãopróxima de uma escadaria. A Beta começavaa apenas quatro quilômetros dali.

Puseram-se a caminho naquele marche-marche compassado que era a andadura

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mais cômoda a meia gravidade. Norton es-tabeleceu um ritmo que, pelos seus cálculos,os levaria à orla da planície num mínimo detempo e sem exaustão. De modo nenhum es-quecia os oito quilômetros que ainda teriamde subir quando chegassem a Beta, massentir-se-ia muito mais tranquilo quandotivessem iniciado a ascensão.

O primeiro tremor ocorreu já quase aoalcançarem a escadaria. Foi levíssimo, e Nor-ton se virou instintivamente para o sul, es-perando ver outra exibição pirotécnica emredor dos Chifres. Mas em Rama nuncaparecia acontecer exatamente a mesma coisaduas vezes; se havia descargas elétricasacima das pontiagudas montanhas, eramfracas demais para ser vistas.

– Ponte – chamou ele. – Repararamnisso?

– Sim, Capitão. Um choque muitopequeno. Pode ter sido outra mudança deposição. Estamos observando o girômetro...

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Por enquanto, nada. Um momentinho!Leitura positiva! Mal se pode perceber.Menos de um microrradiano por segundo,mas se mantém firme.

De modo que Rama estava começando afazer a volta, ainda que com uma lentidãoquase imperceptível. Aqueles primeiroschoques talvez tivessem sido um alarma falso– mas este sem dúvida era autêntico.

– Ritmo aumentando... cinco microrra-dianos. Alô! Ouviram este choque agora?

– Claro que ouvimos. Ponham em oper-ação todos os sistemas da nave.

Talvez tenhamos de partir às pressas.– O senhor esperava uma mudança de

órbita para já? Ainda estamos longe doperiélio.

– Não creio que Rama funcione deacordo com os nossos manuais.

Estamos chegando a Beta. Vamos des-cansar cinco minutos aí.

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Cinco minutos era o que se chama insu-ficiente, mas foi como se ele tivesse dito umséculo. Pois agora não havia dúvida de que aluz se estava apagando, e apagando-se bemdepressa.

Embora todos tivessem as suas lan-ternas, a idéia da escuridão ali tornara-se in-tolerável; a tal ponto se haviam acostumadopsicologicamente ao interminável dia que eradifícil recordar as condições em que tinhamexplorado pela primeira vez aquele mundo.Sentiam um impulso irresistível de fugir – desair para a luz do sol, de que os separavaaquela parede cilíndrica de um quilômetrode espessura.

– Controle Central! – chamou Norton. –O projetor está funcionando?

Talvez precisemos dele para logo.– Sim, Capitão. Aqui está ele.Uma tranquilizadora centelha de luz

começou a brilhar oito quilômetros acimadeles. Mesmo contra o dia agonizante de

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Rama, parecia surpreendentemente fraca;mas já lhes fora útil uma vez e tornaria aguiá-los se necessitassem dela.

Bem sabia Norton que esta seria a maislonga e torturante ascensão que até entãotinham feito. Acontecesse o que acontecesse,não podiam se apressar; se fizessem demasi-ado esforço, cairiam simplesmente extenua-dos naquela rampa vertiginosa e teriam deesperar até que os seus músculos recuper-assem a elasticidade normal e lhes permitis-sem continuar. A essa altura deviam ser umadas tripulações mais aptas que já haviamrealizado uma missão espacial; mas há lim-ites Para o que a carne e o sangue podemsuportar.

Após uma hora de ininterrupto moure-jar, haviam alcançado a Quarta seção da es-cadaria, a cerca de três quilômetros daplanície. Daí em diante a escalada seriamuito mais fácil; a gravidade já se reduzira aum terço de seu valor na Terra. Embora

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continuassem a sentir-se pequenos choquesde tempos a tempos, não ocorrera nenhumoutro fenômeno inusitado e ainda havia luzde sobra. Começaram a ficar mais otimistas eaté a desconfiar que tivessem partido cedodemais. Uma coisa era certa, porém: não ser-ia mais possível voltar. Haviam trilhado pelaúltima vez a planície de Rama.

Foi enquanto gozavam dez minutos derepouso na quarta plataforma que Joe Cal-vert exclamou subitamente:

– Que barulho é esse, Capitão?– Barulho!... Não estou ouvindo nada.– Um apito agudo, baixando de frequên-

cia... É impossível que não ouça!– Você tem um ouvido mais moço do

que o meu... Oh! Agora ouço.O apito parecia provir de todas as

direções. Logo ficou forte, até estridente, ebaixando rapidamente de tom. De súbito,cessou.

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Alguns segundos depois recomeçou, re-petindo a mesma sequência. Tinha o somlúgubre e premente de uma sirena de farol aespalhar o seu aviso na noite enfuscada pelonevoeiro. Havia naquilo uma mensagem, euma mensagem urgente. Não se destinavaaos ouvidos daqueles homens, mas eles acompreendiam. E, como para maior garantiade que seria ouvida, corroboravamna as pró-prias luzes.

Amorteciam até quase se apagarem edepois começavam a lampejar.

Glóbulos cintilantes, como fogo-de-san-telmo, corriam ao longo dos seis estreitosvales que antes haviam iluminado aquelemundo. Partiam de ambos os pólos emdireção ao Mar, num ritmo sincronizado,hipnótico, que só podia significar uma coisa."Ao Mar! Ao Mar!" bradavam as luzes. "AoMar!" E era difícil resistir a esse chamado;não houve um só homem que não sentisse o

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impulso de voltar atrás e buscar o esqueci-mento nas águas de Rama.

– Controle Central! – chamou Nortonnuma voz urgente. – Podem ver daí o que es-tá acontecendo?

Respondeu-lhe a voz de Pieter, quesoava pasmada e não pouco atemorizada.

– Sim, Capitão. Estou olhando o contin-ente meridional. Ainda se vêem dúzias debiômatos por lá – inclusive alguns dosgrandes, Guindastes, Bulldozers, e magotesde Lixeiros. E todos se precipitam para oMar; nunca os vi andar tão depressa. Lá vaium Guindaste, mergulhando do alto daplataforma! Tal como Jimmy, só que afun-dou muito mais rápido; todo ele se fez empedaços ao bater na água. E aí vêm ostubarões – já se atiraram a ele. Ui! não énada bonito de se ver.

"Agora estou olhando a planície. Aquiestá um Bulldozer que parece enguiçado.Tudo que faz é andar em roda, andar em

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roda... Agora um par de Caranguejoscomeçou a arrancar-lhe os pedaços... Cap-itão, acho que convém voltaremimediatamente.

– Pode crer – disse Norton do fundod'alma – que estamos voltando tão depressaquanto podemos.

Rama trancava as escotilhas como umnavio que se prepara para uma tormenta.Essa era a assoberbante impressão de Nor-ton, conquanto não a pudesse assentar sobreuma base lógica. Já não se sentia completa-mente irracional; duas compulsões se com-batiam no seu espírito: a necessidade de es-capar e o desejo de obedecer àqueles relâm-pagos que ainda corriam no céu, ordenando-lhe que fosse reunir-se aos biômatos em suamarcha para o mar. Mais um lance de es-cadaria... outra pausa de dez minutos, paraque os seus músculos fossem lavados dosvenenos da fadiga. E... de novo a caminho!

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Ainda dez quilômetros que andar, mas pro-curemos não pensar nisso...

De súbito, a enlouquecedora sequênciade apitos descendentes emudeceu.

No mesmo instante, deteve-se o movi-mento estroboscópico dos santelmos quecorriam pelas fendas dos Vales Retilíneosrumo ao mar; os seis sóis lineares de Ramavoltaram a ser aquelas listas contínuas de luzque sempre tinham sido.

Mas iam se apagando rapidamente, e àsvezes bruxuleavam como se tremendos im-pulsos de energia fossem arrancados àsfontes em acelerado declínio. De tempos atempos sentiam-se leves tremores do solo; aponte informou que Rama continuava amudar de posição com uma vagareza imper-ceptível, qual uma agulha de bússola re-spondendo a um campo magnético bastantefraco. Isso era talvez tranquilizador; quandoRama parasse de mudar de atitude é queNorton começaria realmente a inquietar-se.

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Todos os biômatos haviam desapare-cido, segundo informou Pieter. Em todo o in-terior de Rama, o único movimento era o deseres humanos, arrastandose com penosalentidão sobre a curva ascendente da calotasetentrional.

Há muito que Norton se havia curado davertigem que sentira naquela primeira as-censão, mas um novo temor começava ainsinuar-se nos seus pensamentos. Eram tãovulneráveis aqui, nesta interminável subidada planície para o Cubo! Suponhamos que,quando houvesse completado a sua mudançade posição, Rama começasse a acelerar?

Presumivelmente, o impulso se daria aolongo do eixo. Se fosse na direção norte, nãohaveria problema; eles se sentiriam um pou-co mais firmados na rampa que iam subindo.Mas se fosse na direção contrária podiam serarremessados no espaço, indo finalmentecair na Planície, lá embaixo.

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Procurou tranquilizar-se refletindo quetoda aceleração possível teria de ser muitofraca. Os cálculos do Dr. Perera eram incon-trovertíveis; Rama não podia acelerar a maisde um cinquenta avôs de gravidade, pois docontrário o Mar Cilíndrico galgaria o topo daescarpa meridional e inundaria um contin-ente inteiro. Mas o Dr. Perera estava numconfortável gabinete lá na Terra, e não a pou-cos quilômetros de uma semicúpula metálicaque parecia prestes a desabar sobre a suacabeça. E talvez Rama tivesse sido projetadopara sofrer inundações periódicas...

Não, a idéia era ridícula. Que absurdoimaginar que aqueles trilhões de toneladaspudessem começar de súbito a mover-se comuma aceleração suficiente para fazê-lo perdero pé e sacudi-lo no abismo! Apesar disso,durante o resto da subida Norton não seafastou um só instante do corrimão.

Muito, muito tempo depois, terminou aescadaria; só restavam algumas centenas de

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metros de escada de mão com os degrausembutidos na parede. Mas já não era precisogalgar essa parte, visto que um homempostado no Cubo, atirando uma corda, podiafacilmente puxar para cima um outro contrauma força de gravidade que diminuía rapida-mente. Mesmo no pé da escada de mão umhomem pesava menos de cinco quilos; noalto, seu peso seria praticamente zero.

E assim Norton descansou tranquila-mente no cinturão, segurando de tempos atempos um dos degraus para resistir à tênueforça de Coriolis, que ainda tentava arrancá-lo da escada. Quase esqueceu as suas cãibrasmusculares ao contemplar pela última vez opanorama ramaiano.

Estava quase tão claro agora como numanoite de lua cheia na Terra; a vista geral eraperfeitamente nítida, se bem que ele já nãopudesse distinguir os detalhes mais miúdos.O Pólo Sul estava parcialmente obliteradopor uma névoa luminosa, que só o pico do

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Chifre Grande atravessava – um pequenoponto preto, visto exatamente de cima. Ocontinente cuidadosamente cartografado,mas ainda desconhecido, que se estendiaalém do Mar, era a mesma colcha de retalhosaparentemente sem padrão definido quesempre fora. Estava muito encurtado pelaperspectiva e cheio de detalhes complexospara que o exame visual pudesse revelargrande coisa. Norton limitou-se a correrbrevemente os olhos por ele.

Fixou-se então no anel líquido do MarCilíndrico e notou pela primeira vez umpadrão regular de linhas de espuma, como seas ondas se quebrassem sobre recifes dispos-tos com intervalos geometricamente pre-cisos. A manobra de Rama estavaproduzindo algum efeito, ainda que muitoleve. Norton tinha certeza de que a SargentaBarnes teria ido satisfeitíssima em tais con-dições se ele lhe pedisse para atravessar oMar Cilíndrico na perdida Resolution.

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Nova Iorque, Londres, Paris, Moscou,Roma... O Comandante disse adeus a todasas cidades do continente setentrional e es-perou que os ramaianos lhe perdoassem osdanos que houvesse causado. Talvez com-preendessem que tudo fora feito no interesseda ciência.

De repente, havia alcançado o Cubo emãos sôfregas se estenderam para agarrá-loe fazê-lo atravessar às pressas as eclusas dear. Suas pernas e braços supersolicitadostremiam de maneira tão incontrolável quequase não podia mover-se por si e deixou-semanusear como um enfermo semiparalisado.O céu de Rama contraiu-se acima da suacabeça quando o desceram para a crateracentral do Cubo. Quando a porta da eclusainterna fechou para sempre a vista, elechegou a pensar:

"Como é estranho que esteja caindo anoite agora que Rama chegou ao ponto maispróximo do Sol!"

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44 - PROPULSÃOESPACIAL

NORTON havia decidido que cem quilô-metros era uma margem suficiente de segur-ança. Rama transformara-se agora numenorme retângulo negro, visto exatamenteem perpendicular, eclipsando o Sol. Eleaproveitara essa oportunidade para colocar aEndeavour bem no meio do cone de sombra,o que lhe permitia aliviar a carga dos sistem-as de refrigeração da nave e realizar algumasoperações de manutenção já bastante atrasa-das. O cone de escuridão protetora podia de-saparecer a qualquer momento, e tencionavautilizá-lo ao máximo.

Rama ainda estava fazendo a volta; játinha virado quase quinze graus e era impos-sível acreditar que não estivesse iminente

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alguma importante mudança de órbita. NosPlanetas Unidos o clima de excitação porpouco não chegava ao nível da histeria, masda Endeavour só se percebia um apagadoeco disso tudo.

Física e emocional-mente, a tripulaçãoestava exausta; com exceção de uma guardareduzida ao efetivo mínimo, todos haviamdormido doze horas após a decolagem daBase Polar Norte. Por ordem médica, opróprio Norton usara a eletrossedação, emesmo assim sonhara que estava subindouma escadaria infinita.

No segundo dia a bordo da nave, tudohavia praticamente voltado a normalidade; aexploração de Rama já parecia pertencer auma outra vida.

Norton começou a ocupar-se com o tra-balho de escritório acumulado e a fazer pla-nos de futuro: mas recusava os pedidos deentrevistas que de algum modo conseguiaminsinuar-se nos radio circuitos dos Serviço de

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Observação e até da SPACEGUARD. Nãovinham mensagens de Mercúrio e aAssembléia Geral dos P.U.

havia encerrado a sessão, embora est-ivesse pronta para reunir-se novamente comuma hora de aviso prévio.

Norton dormia a bom dormir pelaprimeira vez, trinta horas após a partida deRama, quando foi chamado à consciênciapor uma rude sacudidela. Praguejou eston-teado, abriu um olho turvo para Mercer – e,como todo bom comandante, acabou instant-aneamente de acordar.

– Parou de dar volta?– Sim. Está firme como uma rocha.– Vamos à ponte.Toda a tripulação estava acordada. Até

os simps sabiam que havia novidade egrazinavam ansiosos, até que o SargentoMcAndrews os sossegou fazendo rápidossinais com as mãos. E contudo, ao instalar-sena sua cadeira e afivelar o cinturão em volta

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da cintura, Norton se perguntou se não setrataria de mais um falso alarma.

A perspectiva, agora, transformavaRama num cilindro atarracado e a orla in-candescente do Sol espreitava por trás de umdos cantos. Norton conduziu suavemente aEndeavour de volta à zona de sombra do ec-lipse artificial e viu reaparecer o perladoesplendor da coroa sobre o fundo das es-trelas mais brilhantes. Havia uma enormeprotuberância, medindo pelo menos meiomilhão de quilômetros de altura, que cres-cera a tal ponto acima do globo solar quesuas ramificações superiores pareciam umaárvore de fogo carmesim.

Quer dizer que agora teremos de esper-ar. O importante é não se enfastiar,conservar-se pronto para reagir ao primeirosinal, trazer todos os instrumentos alinhadose registrando, por mais demorado que istoseja...

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Que estranho! O campo de estrelas sedeslocava, quase como se ele tivesse postoem ação os propulsores de rolamento. Masnão tocara nos controles, e se houvesse al-gum movimento real, tê-lo-ia sentido logo.

– Capitão – chamou Calvert em voz ur-gente da posição de Navegador, – Estamosrolando... olhe as estrelas! Mas os instru-mentos não indicam nada!

– Os girômetros funcionam?– Perfeitamente normais – posso ver os

ponteiros oscilarem em cima do zero. Masestamos rolando a vários graus por segundo!

– Isso é impossível!– Claro que é impossível... mas olhe o

senhor mesmo! Quando tudo mais falhava,não havia remédio senão confiar no olhô-metro. Norton não podia duvidar de que ocampo das estrelas estivesse animado de umlento movimento de rotação: lá ia Sírius, at-ravessando a beirada de bombordo. Ou ouniverso, numa reversão à cosmologia pré-

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copernicana, resolvera subitamente girar emtorno da Endeavour, ou as estrelas estavamparadas e a nave girava sobre si mesma.

A segunda explicação parecia bastantemais plausível, e contudo envolvia paradoxosaparentemente insolúveis. Se a nave est-ivesse realmente girando a essa razão, ele oteria sentido – literalmente pelas assent-adeiras, segundo a expressão popular. E osgirômetros não podiam ter falhado simul-tânea e independentemente. Só ficava em péuma resposta. Todos os átomos da Endeav-our deviam estar sob a ação de uma mesmaforça – e só um poderoso campo gravitacion-al podia produzir esse efeito. Pelo menos,nenhum outro campo conhecido...

De repente, as estrelas se desvaneceram.O disco chamejante do Sol emergira de trásdo escudo de Rama e o seu esplendor as ex-pulsara do céu.

– Você não me consegue uma leitura deradar? Qual é o efeito Doppler?

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Norton esperava ouvir que também esteúltimo estava inoperante, mas equivocava-se.

Rama ia finalmente a caminho, aceler-ando a modesta razão de 0,015

gravidade. O Dr. Perera devia estarmuito contente, pensou Norton, pois tinhapredito um máximo de 0,02. E a Endeavourfora de algum modo apanhada na sua esteiracomo um destroço flutuante de naufrágio,rolando e rolando sobre si mesma atrás deum veloz transatlântico...

Hora após hora, essa aceleração semanteve constante; Rama se afastava da En-deavour a uma velocidade cada vez maior. Ãmedida que crescia a distância, o Comporta-mento anômalo da nave foi cessando aospoucos; as leis normais da inérciacomeçaram novamente a operar. Quanto àsenergias em cujo redemoinho tinham sidoapanhados por breves momentos, tudo quepodiam fazer eram conjeturas, e Norton deu

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graças aos céus por haver estacionado a En-deavour & boa distância antes de Rama pôrem funcionamento a sua propulsão.

Quanto à natureza dessa propulsão, deuma coisa agora se tinha certeza, ainda quetudo mais fosse mistério. Não havia jatos degás nem feixes de plasma ou iontes empur-rando Rama para a sua nova órbita. Nin-guém exprimiu melhor a coisa do que oSargento-Professor Myron quando disse,chocado e incrédulo:

– Lá se vai a Terceira Lei de Newton!Foi na Terceira Lei de Newton, não ob-

stante, que teve de confiar a Endeavour nodia seguinte, ao usar as últimas reservas decombustível para afastar a sua órbita do Sol.O desvio angular foi pequeno, mas aument-aria em dez milhões de quilômetros a distân-cia do periélio. Isso fazia toda a diferençaentre operar o sistema de refrigeração danave a 95 por cento de sua capacidade máx-ima e sofrer uma morte certa pelo fogo.

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Quando eles completaram a manobra,Rama ficou a duzentos mil quilômetros daastronave e difícil de ver-se contra o fulgordo Sol. Mas ainda podiam obter, pelo radar,medidas exatas da sua órbita; e quanto maisobservavam, mais perplexos ficavam.

Conferiram dezenas de vezes as cifras,até que não houve mais meio de escapar à in-acreditável conclusão. Parecia que ostemores dos mercurianos, as heróicasproezas de Rodrigo e a retórica daAssembléia Geral, tudo tinha sido completa-mente em vão.

Que estupenda ironia, disse Norton ol-hando os resultados finais, se após um mil-hão de anos de segura orientação os com-putadores de Rama tivessem cometido umpequenino erro, mudando talvez o sinal deuma equação de mais para menos!

Estavam todos tão convencidos de queRama perderia velocidade a fim de poder sercapturado pela gravidade do Sol e tornar-se,

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desse modo, um novo planeta do sistema sol-ar... Pois era justamente o contrário que es-tava acontecendo.

Rama ganhava velocidade, e na piordireção possível. Rama ia em queda acel-erada na direção do Sol.

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45 - FÊNIXÀ MEDIDA que os detalhes da sua nova

órbita se iam definindo cada vez maisclaramente, tornava-se difícil perceber comoRama poderia escapar ao desastre. Somenteum punhado de cometas já haviam passadotão perto do Sol; no periélio, ele estaria amenos de meio milhão de quilômetros acimadaquele inferno de hidrogênio em fusão nuc-lear. Nenhum material sólido poderia resistira tal temperatura; a inquebrantável liga deque era formado o casco de Rama começariaa fundir-se numa distância dez vezes maior.

Para alívio de todos, a Endeavour haviaultrapassado o seu próprio periélio eaumentava lentamente a sua distância doSol. Rama ia muito adiante, na sua órbitamais fechada e mais veloz, e já era vistobastante para dentro das fímbrias exteriores

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da coroa. A nave ia assistir de camarote aoato final do drama.

Foi então que, a cinco milhões de quilô-metros do Sol e ainda acelerando.

Rama começou a tecer o seu casulo. Atéagora, tinha sido visível sob a máxima potên-cia dos telescópios da Endeavour como umapequenina barra luminosa; de repente,começou a cintilar como uma estrela con-templada através das névoas do horizonte.Dir-se-ia quase que se estava desintegrando.Ao ver a imagem fragmentar-se, Nortonsentiu doer-lhe o coração ante a perda detantas maravilhas. Compreendeu, então, queRama continuava lá, mas envolto numa gazetremeluzente.

De súbito, desapareceu. Em seu lugarficou um objeto brilhante como uma estrela,mas que não mostrava nenhum disco visível.Era como se Rama se tivesse contraído re-pentinamente numa bola pequenina.

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Tardaram algum tempo a compreendero que havia acontecido. Rama desaparecerarealmente: agora estava cercado por uma es-fera perfeitamente refletora, com uns cemquilômetros de diâmetro, e tudo que podiamver era o reflexo do próprio Sol na porção dasuperfície curva que se voltava para eles.

Dentro dessa bolha protetora, era depresumir que Rama estivesse imunizadocontra o inferno solar.

Com o correr das horas, a bolha mudoude forma. A imagem do Sol tornou-sealongada, distorcida. A esfera se ia trans-formando num elipsóide, com o eixo maiorapontando na direção da fuga de Rama. Foientão que as primeiras informações an-ômalas começaram a ser irradiadas pelosobservatórios-robôs que, há quase duzentosanos, mantinham o Sol sob permanentevigilância.

Alguma coisa estava acontecendo aocampo magnético solar na região

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circunvizinha a Rama. As linhas de força,longa de milhões de quilômetros, que per-corriam a coroa tangendo suas nuvenzinhasde gás tremendamente ionizado a velocid-ades que por vezes desafiavam a própriagravidade esmagadora do Sol, se estavamajustando à forma daquele cintilanteelipsóide. Nada era ainda visível ao olho,mas os instrumentos orbitais registravam to-das as mudanças de fluxo magnético e radi-ação ultravioleta. Pouco depois, o próprioolho começou a perceber as mudançasproduzidas na coroa. Um tubo ou túnelfracamente luminoso, com cem mil quilô-metros de comprimento, havia aparecido nasmais altas camadas da atmosfera exterior doSol. Era levemente curvo, acompanhando aórbita traçada por Rama, e o próprio Rama –ou o seu casulo protetor – era visível comouma rebrilhante esferazinha a correr cadavez mais célere por aquele tubo fantasmalque atravessava a coroa.

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Pois Rama continuava ganhando velo-cidade; agora se movia a mais de dois milquilômetros por hora e não havia nem a maisremota Possibilidade de permanecer cativodo Sol. Agora, finalmente, a estratégia dosramaianos era óbvia. Haviam-se aproximadotanto do Sol apenas para ir buscar sua ener-gia na fonte e partir ainda mais depressarumo à sua derradeira e desconhecidameta...

E não tardou a parecer que se estavamabastecendo de outra coisa que não só a en-ergia. Ninguém poderia jamais ter certezadisso, pois os mais próximos instrumentosobservadores se achavam a trinta milhões dequilômetros de distância, mas havia clarosindícios de que do Sol para o interior dopróprio Rama fluía matéria, como para sub-stituir os vazamentos e outras perdas de dezmil séculos no espaço.

Cada vez mais rápido, Rama deu voltaao Sol, movendo-se agora com mais

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velocidade do que qualquer objeto que játinha viajado através do sistema solar.

Em menos de duas horas a direção deseu movimento virará mais de noventa grause ele dera uma prova final, quase desden-hosa, de seu completo desinteresse por todosos mundos cuja paz de espírito havia tão ru-demente abalado.

Estava descendo da eclíptica para oscéus meridionais, muito abaixo do plano emque se movem todos os planetas. Se bem quecertamente não pudesse ser essa a sua metafinal, ia como uma flecha na direção daGrande Nuvem de Magalhães e dos ermosabismos além da Via Láctea.

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46 - INTERLÚDIO– ENTRE – disse o Comandante Norton

distraidamente ao ouvir baterem na suaporta.

– Tenho notícias para você, Bill. Quisser a primeira a dá-las, antes que a tripu-lação saiba. E, de qualquer modo, está den-tro da minha especialidade.

Norton ainda parecia muito distantedali. Estava deitado com a cabeça sobre asmãos enclavinhadas, os olhos semicerrados,com a luz da cabina muito baixa, não exata-mente cochilando, mas perdido em algumdevaneio ou sonho privado. Pestanejou umaou duas vezes, e subitamente voltou ainstalar-se no seu corpo.

– Desculpe, Laura... Não entendo bem.De que se trata? Não me diga que vocêesqueceu!

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– Pare de encher, seu chato! Tenho an-dado muito ocupada nestes últimos dias.

A Médica-chefe Ernst fez rodar uma ca-deira cativa nas suas ranhuras e sentou-se aolado dele.

– Malgrado as crises interplanetárias, asengrenagens da burocracia marciana nuncacessam de funcionar. Mas creio que Ramacontribuiu para isso. Ainda bem que vocênão precisava obter também permissão dosmercurianos.

Norton começava a compreender.– Oh... Então Port Lowell deu final-

mente a licença!– Melhor do que isso: já está sendo

posto em prática. – Laura deu um relance deolhos ao papel que tinha na mão. – "Imedi-ato" – leu – Provavelmente neste mesmo in-stante o seu novo filho está sendo concebido.Meus parabéns.

– Obrigado. Espero que não tenha seaborrecido com a demora. Como todo

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astronauta, Norton fora esterilizado ao in-gressar no serviço. Para um homem que pas-saria anos no espaço, a mutação provocadapelas radiações não era um risco, e sim umacerteza. O espermatozóide que acabava deentregar sua carga de genes em Marte, aduzentos milhões de quilômetros dali, est-ivera congelado durante trinta anos, aguard-ando o momento do seu destino.

Norton perguntou a si mesmo se estariaem casa a tempo para o nascimento. Tinhafeito jus ao descanso, a um pouco de paz.– àvida normal de família, na extensão em queum astronauta poderia conhecê-la. Agoraque a missão estava essencialmente finda,ele começava a descontrair-se e a pensarmais uma vez no seu futuro e no de ambas assuas famílias. Sim, seria bom passar umatemporada em cada e compensar – demuitas maneiras – o tempo perdido...

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– Esta visita – protestou Laura, semmuito vigor – tem um caráter puramenteprofissional.

– Depois de tantos anos – retrucou Nor-ton, – nos conhecemos bem demais para irnessa. Em todo caso, você não está de serviçoagora.

– E agora, que é que você estápensando? – perguntou a Médica-chefeErnst, muito tempo depois. Não está se tor-nando sentimental, espero.

– A respeito de nós, não. A respeito deRama. Começo a sentir falta dele.

– Muito obrigada pelo galanteio.Norton apertou-a nos braços. Uma das

mais deliciosas vantagens da ausência depeso, pensava ele muitas vezes – era querealmente se podia dormir abraçado comoutra pessoa sem cortar a circulação. Haviaquem pretendesse que o amor a um g era tãopoderoso que já não podiam sentir prazernele.

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– É um fato bem conhecido, Laura, queos homens, ao contrário das mulheres, po-dem ter dois interesses ao mesmo tempo.Mas, falando sério... bem, mais sério... eutenho uma sensação de perda.

– Posso compreender isso.Não seja tão clínica. Essa não é a única

razão. Oh, deixemos isso pra lá.Desistiu. Não era fácil explicar, mesmo a

si próprio.Havia logrado êxito além de toda ex-

pectativa razoável; o que os seus homens tin-ham descoberto em Rama daria aos cientis-tas com que ocupar-se durante decênios. E,acima de tudo, ele o fizera sem uma únicabaixa.

Mas também fracassara. A gente podiaperder-se num oceano de especulações, masa natureza e o objetivo dos ramaianos con-tinuavam totalmente desconhecidos. Tinhamusado o Sistema Solar como um posto dereabastecimento, uma estação de reforço –

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podiam chamá-lo como quisessem – e depoiso desprezaram completamente, a caminhode coisas mais importantes.

Provavelmente, jamais saberiam sequerque existia a raça humana; uma indiferençatão monumental era pior do que qualquer in-sulto propositado.

Quando Norton vislumbrara Rama pelaprimeira vez, estrela pequenina a distanciar-se já além de Vênus, sentiu que uma parte desua vida havia terminado. Tinha apenas cin-quenta e cinco anos, mas era como se tivessedeixado a sua mocidade lá embaixo, naplanície curva, entre mistérios e maravilhasque agora recuavam inexoravelmente paralonge do alcance humano.

Por mais honras e grandes feitos que lhetrouxesse o futuro, ele viveria desapontado,sentindo para sempre as oportunidadesperdidas.

Assim falava a si mesmo; porém, mesmoentão, devia saber que não seria assim.

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E, na longínqua Terra, o Dr. CarlislePerera ainda não dissera a ninguém quetinha acordado de um sonho desinquietocom a mensagem do seu subconsciente aindaa ecoar-lhe no cérebro:

Os ramaianos fazem tudo em grupos detrês.

FIM

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Sir Arthur Charles Clarke, mais con-hecido como Arthur C. Clarke (Minehead, 16de dezembro de 1917 — Colombo, 19 demarço de 2008) foi um escritor e inventorbritânico, autor de obras de divulgaçãocientífica e de ficção científica como o contoThe Sentinel, que deu origem ao filme 2001:Uma Odisséia no Espaço e o premiado En-contro com Rama.

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BigrafiaDesde pequeno mostrou sua fascinação

pela astronomia, a ponto de, utilizando umtelescópio caseiro, desenhar um mapa daLua. Durante a Segunda Guerra Mundial,serviu na Royal Air Force (Força Aérea Realbritânica) como especialista em radares,envolvendo-se no desenvolvimento de umsistema de defesa por radar, sendo uma peçaimportante do êxito na batalha da Inglaterra.Depois, estudou Física e Matemática noKing's College de Londres.

Talvez sua contribuição de maior im-portância seja o conceito de satélite geoesta-cionário como futura ferramenta para desen-volver as telecomunicações. Ele propôs essaidéia em um artigo científico intitulado "CanRocket Stations Give Worldwide RadioCoverage?", publicado na revista WirelessWorld em Outubro de 1945. A órbita geoes-tacionária também é conhecida, desde então,como órbita Clarke.

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Em 1956 mudou a sua residência paraColombo, no Sri Lanka (antigo Ceilão), emparte devido a seu interesse pela fotografia eexploração submarina, onde permaneceu atéà sua morte em 2008.

Teve dois de seus romances levados aocinema, 2001: Uma Odisséia no Espaço diri-gido por Stanley Kubrick (1968) e 2010: Oano em que faremos contato dirigido porPeter Hyams (1984), sendo o primeiro con-siderado um ícone importante da ficçãocientífica mundial, aclamado por muitoscomo um dos melhores filmes já feitos emtodos os tempos. Especialistas lhe atribuemforte influência sobre a maioria dos filmes dogênero que lhe sucederam.

Também em reconhecimento a Clarke, oasteróide 4923 foi batizado com seu nome,assim como uma espécie de dinossauro Cer-atopsiano, o Serendipaceratops ar-thurclarkei, descoberto em Inverloch,Austrália.

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Em 1998 Arthur Clarke foi descrito pelotablóide inglês Sunday Mirror como um oc-togenário fortemente atraído por crianças.Na época, Clarke morava no Sri Lanka, paísfamoso pela complacência diante da explor-ação sexual de menores, e onde morou atémorrer. A denúncia, publicada um dia antesda chegada do príncipe Charles ao país, quefoi colônia britânica, jamais ficou provada.Ainda assim, Arthur Clarke, que seria con-decorado com o título de cavaleiro do im-pério, perdeu o direito à honraria e passoupelo constrangimento de ser informado deque o príncipe não compareceria a um en-contro marcado com ele.[1] A acusação foiinvestigada e posteriormente desfeita. Dur-ante as investigações a polícia de Colombosolicitou as fitas em que o Mirror baseou suareportagem, mas elas jamais foram en-tregues ou exibidas. Segundo o Daily Tele-graph [2] o Sunday Mirror publicou um pe-dido público de desculpas ao escritor em

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maio de 2000. O direito ao título de ca-valeiro da ordem do Império Britânico foidevidamente restabelecido e concedido.

O compositor francês Jean Michel Jarrerealizou em 2001, um concerto intitulado2001: A Rendez-Vous In Space em hom-enagem a obra 2001: Uma Odisséia noEspaço. Clarke inclusive fez uma parti-cipação especial em algumas partes do show.

Fonte: Wikipédia

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