Arthur Schopenhauer e Ludwig van Beethoven - diálogos possíveis entre música e filosofia

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    Arthur Schopenhauer e Ludwig van Beethoven:

    dilogos possveis entre msica e filosofia

    Raimundo Rajobac*

    Resumo: No decorrer do trabalho, procuraremos evidenciar a posio deSchopenhauer sobre os conceitos deRepresentao e Vontade. Analisaremos

    sua esttica observando a relao hierrquica existente entre as belas artes ea capacidade residente em cada arte de expresso da essncia ntima domundo, chegando msica, como arte que nos transmite o em-si do mundo.Partindo da, tomaremos como referncia o compositor clssico/romnticoBeethoven e a 6 Sinfonia em F Maior, Op. 68-Pastoral, maisespecificamente o IV movimento Tempestade (Gewitter Sturm).Apontaremos, portanto, a ideia de que a obra de arte beethoveniana nosconduz ao que nomeado por Schopenhauer como sentimento esttico e quenos vem sempre atravs de uma intuio pura, devendo ser interpretadocomo um sentimento metafsico, uma vez que nele o intelecto atinge o nvelde contemplao esttica, o que implica o mergulho do sujeito cognoscentedentro do objeto conhecido, ao qual se funde.

    Palavras-chave: Msica, Filosofia, Linguagem, Schopenhauer, Beethoven.

    Abstract: During this work, we will try to show the position ofSchopenhauer on the concepts of representation and Will; analyze youraesthetics, noting the hierarchical relationship between the fine arts, thecapability resident in every art of expressing the inner essence of the world,and we arrive at music, like art that gives us the in-itself in the world.Proceeding from this, we take as reference the composer classical/romanticBeethoven and 6th Symphony in F Major, Op 68 - Pastoral, morespecifically the movement IV Storm (Sturm Gewitter). We considertherefore the idea that the artwork Beethoven leads us to what is named bySchopenhauer and aesthetic feeling, and we always come through a pureintuition, and should be interpreted as a metaphysical sense, since in it theintellect reaches the level of aesthetic contemplation, which results in the dipof the knowing subject in the known object, which melts.

    Key words: Music, Philosophy, Language, Schopenhauer, Beethoven.

    * RAIMUNDO RAJOBAC Mestre em Educao (UPF) e integra o Grupo de Pesquisa sobre

    Teorias da Ao e Educao e Iluminismo e Pedagogia na Universidade de Passo Fundo e do grupo depesquisa Racionalidade e Formao PUC RS.

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    Beethoven e Schopenhauer

    Nosso ponto de partida

    A tese de que o mundo minhaRepresentao (SCHOPENHAEUR,2001, p. 9) tomada como ncleocentral do primeiro livro que compe aobra O mundo como vontade erepresentao. No segundo livro daobra, a tese de que o mundo minhaVontade (SCHOPENHAUER, 2001,

    p.10). Para o filsofo, o corpo surgecomo um ato da Vontade objetivado,encontrado e visto na Representao.

    Assim, por trs de todo fenmenoencontra-se a Vontade, responsvel pelaessncia ntima de tudo que representado. A Vontade , portanto, oconhecimento a priori de tudo queexiste no mundo fenomenal. Ao seobjetivar, a Vontade, o faz tornando-seideia, que, de acordo com o grau deobjetivao, prope uma hierarquia.

    Nessa perspectiva, o autor apresentauma srie das belas artes que

    reproduzem uma hierarquia no que dizrespeito ao modo de conhecer ecomunicar a ideia como Vontadeobjetivada, no mais como um simplesobjeto (fenmeno/Representao) quese situa no tempo e espao.Trata-se deuma investigao a respeito da essnciantima da beleza, onde tanto investigado o sujeito que experiencia etem como sensao o belo, como oobjeto ocasionador dessa experincia.

    Nesse processo, o sujeito deixa de ser

    simplesmente individual e torna-se puramente um sujeito que conhece e,isento de Vontade, j no est obrigadoa procurar as relaes em conformidade

    com o princpio da razo; absorvidodaqui em diante na contemplao profunda do objeto que se lhe oferece,livre de qualquer outra dependncia.(SCHOPENHAUER, 2001, p. 186 187).

    Hierarquia das Belas Artes na

    Esttica Schopenhaueriana

    Arquitetura

    A arquitetura tomada porSchopenhauer, em seu sentido artstico,fugindo, portanto, ao seu sentidoutilitrio. Do ponto de vista utilitrio, aarquitetura encontrar-se-ia a servio daverdade, enquanto, como arte, podecontribuir para o alcance doconhecimento puro. A misso atribuda arquitetura no pode ser outra seno ade facilitar a intuio clara de algumasdessas ideias que constituem os graus

    inferiores da objetividade da Vontade: agravidade, a coeso, a resistncia, adureza, as propriedades gerais da pedra,as representaes mais rudimentares emais simples da Vontade dos baixos

    profundos da natureza(SCHOPENHAUER, 2001, p. 225).Temos, nessas condies, a arquiteturarepresentando como mais baixo grau deobjetivao a Vontade (ideia).Objetivaes dizem respeito a

    qualidades ocultas da fsica, prpriasda natureza (gravidade, coeso, rigidez,dureza), as quais, em relaocontrastante com a luz, revelam oconflito perene entre gravidade eresistncia: reconhecem a matemtica, adinmica, a simetria, formas primitivasda natureza. um conjunto relacionadoentre partes que cooperam entre si econtribuem para a beleza. Schopenhaueracredita que a significao objetiva

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    daquilo que a arquitetura1 nos revela relativamente fraca; da resulta que, vista de um belo edifcio, habilmenteiluminado, a fruio esttica provm

    menos da concepo da ideia do que daconscincia do correlativo subjetivo queessa concepo arrasta consigo; elaconsiste, sobretudo, no fator de peloqual, perante o aspecto do edifcio, oespectador liberta-se do conhecimentoindividual, submetido Vontade e ao

    princpio da razo, e eleva-se at oconhecimento do prprio sujeito queconhece, isento da Vontade. Nesse casoo prazer consiste na prpria

    contemplao, liberta de todas asmisrias do querer e da individualidade(SCHOPENHAUER, 2001, p. 229). Oslimites de capacidade de reproduo daarquitetura encontram-se no fato de queno reproduz, como as outras artes, aideia a partir da viso do artista, dognio. Na arquitetura, procede-se a umaapresentao do prprio objeto aoespectador; embora cause espanto eexija contemplao, ele apenas posto frente do mesmo. Essas duas artesraramente tm um destino puramenteesttico: esto submetidas a outrascondies completamente estranhas arte, completamente utilitrias.(SCHOPENHAUER, 2001, p. 228).

    Escultura e Pintura

    A escultura e a pintura, por sua vez,correspondem a graus mais elevados da

    1 Ao lado da arquitetura o autor pe ainda a artehidrulica, as duas representando a ideia degravidade, encontrada na arquitetura, com aideia de resistncia, e na arte hidrulica,associada ideia de fluidez, nas quais ascaractersticas predominantes passam a ser aausncia de formas, a mobilidade perfeita, atransparncia. Correlata ao papel exercido pelaarquitetura e pela arte hidrulica encontra-se aarte dos jardins. As paisagens naturais podemtambm se tornar belas. Para tanto, a riqueza em produes naturais distintas entre si deve ser

    apresentada com clareza, a ponto de expressarsua unidade e variedade.

    objetivao da Vontade; constituem omundo de representaes dotadas deinteligncias. O principal motivoencontra-se no fato de as duas

    objetivarem adequadamente, a Vontadee a ideia de humanidade. Destacam-sedois nveis. O nvel inferior encontra-sena pintura de animais, notado

    principalmente numa belezaconfundida, traduzida na expressividadede caracteres especficos que dispensamcaracteres individuais. A caracterizaoindividual s exercida quando se

    pretende expor a ideia de humanidade:este o segundo nvel. Quando se trata

    de representar artisticamente o homem,nunca se faz no geral; alm de sedestacar o que especfico, precisoque entre em destaque o que individual. A individualidade o quelhe confere originalidade no interior deuma particularidade infinita, submersa

    por uma generalidade,multiparticularizada. O pice daescultura e da pintura encontra-se em

    poder tornar belo o homem: A belezahumana [...] expresso objetiva quefigura a objetivao mais perfeita daVontade no mais alto grau em que ela conhecvel (SCHOPENHAUER, 2001,

    p. 232). Essa experincia carregaconsigo a possibilidade extrema de nosaproximar do inefvel. Somos, num sinstante, postos para alm de nsmesmos, na condio de superao

    principalmente do que nos aflige.

    Encontramo-nos, neste ponto,desobrigados da nossa personalidade,do nosso querer e de todas as misriasque eles arrastam consigo(SCHOPENHAUER, 2001, p. 232).

    A Poesia

    A poesia constitui mais um passo nodegrau hierrquico estabelecido entre as

    belas artes: surge como dotada dainteno de revelar as ideias, os graus

    da objetivao da Vontade,

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    comunicando-as aos ouvintes comclareza e vivacidade com que soapreendidas pela sensibilidade potica(SCHOPENHAUER, 1974, p. 68). Na

    poesia, as ideias, essencialmenteintuitivas, exprimem-se ao que ascontempla (ouvinte/leitor) por meio de

    palavras (sinais), que, como conceitosabstratos, transmitem as ideias da vida,do cotidiano, da fantasia, do universo, oque se faz possvel quando o ouvinteemprestar ao poeta a participao da sua

    prpria imaginao(SCHOPENHAUER, 2001, p. 255). Aexperincia pessoal torna-se a condio

    necessria para a contemplao, oumesmo para o entendimento do que

    prope a poesia: isso pelo fato de o poeta abarcar a ideia ou essncia dahumanidade, transpondo-a para fora dotempo, favorecendo uma apreensoadequada da coisa-em-si. A

    Representao da ideia, que para oautor constitui a finalidade do poeta,faz-se possvel onde o poeta prima peladescrio subjetiva, por meio de umaintuio viva, na qual entram emdestaque os prprios sentimentos do

    poeta. So considerados tpicos destescasos a romana, o gnero lrico. Nestecaso, o poeta o espelho dahumanidade, e coloca-lhe na frente dosolhos todos os sentimentos que ela estcheia e animada (SCHOPENAHUER,2001, p. 262). A poesia , portanto, ombito artstico de grande capacidade

    de Representao do mundo, pela ideiaessencial que se faz presente no gnio eque se torna para o espectador ocaminho adequado para que se chegue coisa-em-si, Vontade.

    A Sinfonia Pastoral

    importante que saibamos, ao iniciaresse tpico, que para Schopenhauer amsica se diferencia de todas as outrasartes, por no ser reproduo do

    fenmeno, ou mais corretamente, da

    objetividade adequada da Vontade, mascpia imediata da Vontade ela prpria,apresentando, portanto, para tudo que fsico no mundo, o metafsico, para todo

    fenmeno, a coisa-em-si. Sendo quedessa forma, poderamos denominar omundo tanto msica corporificada,quanto Vontade corporificada. (1974, p.84). Deter-nos-emos, por um instante,em observar de que forma essacapacidade de expresso do mundo sefaz possvel no mbito artstico-musical.Delimitaremos para exemplificar acapacidade de expressividade dalinguagem musical o quarto movimento

    da Sinfonia Pastoral de Beethoven. Asinfonia encontra-se dividida em cincomovimentos e como principal objetivotem o de descrever as sensaesexperimentadas na vida campestre daEuropa do sculo XIX. Deter-nos-emosem observar alguns aspectosimportantes do quarto movimento,

    principalmente no que diz respeito aoseu potencial descritivo. Trata-se daseo da Tempestade (Gewitter Sturm).

    Obra de Arte, Representatividade,Expresso

    J no final do Scherzo, nos compassos261 a 264, anunciado o incio daTempestade. O quarto movimento iniciaininterruptamente em f menor. Osrecursos explorados ritmicamente,melodicamente e harmonicamenteconcentram-se no esforo de representardiretamente a chuva, os troves, osrelmpagos, a aflio causada pelatormenta. No se restringindo apenas relao som e representatividade, a obradesperta para o sentimento relacionadodiretamente com o clima que pode sergerado quando se experimentam ainsegurana e fragilidade do homemdiante da fria da natureza.Oscompassos iniciais da obra apresentamum trmulo nas cordas graves,

    anunciando a chegada das nuvens

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    carregadas, que apontam o mau tempo.Do compasso 4 em diante, os segundosviolinos tecem uma linha meldica em

    staccato, que representa o comeo da

    chuva. Nos compassos seguintes ascordas permanecem em destaque, ostrmulos mantm a base nas cordasgrave e pequenos trechos meldicossurgem nos primeiros violinos. Aestrutura orquestral aumenta

    progressivamente sua intensidade,caracterizando o incio da tempestadeestrondosa. Os compassos 13 a 16apresentam pontualmente esse clima

    progressivo. Nos compassos 17 a 20,

    um crescendo gradual do piano aofortssimo representa a intensidade datempestade, que culmina no compasso21 com um acorde fortssimo, um tutino primeiro tempo do compasso. Nestemomento, dando consistncia densidade orquestral, entram ostmpanos, trompetes e trombones, nousados at ento. Os trmulos ganhamdestaque nos compassos seguinte (22 32), e as cordas graves com linhasmeldicas contnuas ajudam a reforar aideia de um tempo tempestuoso. Atempestade agora se encontra formada echegar a seu auge, que identificado

    principalmente na dinmica indicada, naexplorao dos recursos referentes densidade orquestral e nos baixos(cordas), que do a ideia de um tempofurioso e escurecido.

    Dos compassos 33 aos 39 segue-se uma

    seo de raios e troves que seexpressam magistralmente com o usoexpressivo do tmpano em temposfortes, seguidos de acentuaesmarcantes pelo restante dos naipes daorquestra, tambm em tempo forte,sendo que em alguns momentos aacentuao se desloca para o terceirotempo do compasso. Do compasso 40ao 51, os trmulos nos segundosviolinos, nas violas, e a base constante

    nas cordas graves do a densidade e

    reforam a ideia de tempestadeestrondosa. Raios e troves, chuva evento so representados pela estruturaorquestral, que apresenta o modo

    informe de ser da natureza, atravs domodo preciso e expressivo da relaoentre os naipes dos instrumentos e asdinmicas possveis de serem usadas.Do compasso 52 ao 56 desdobra-semais uma sequncia de raios e troves,com acentuaes nas madeiras e metais,contrastando com a acentuao precisados tmpanos. Tudo isso sustentado portrmulos que tornam densa toda aestrutura. So apresentados

    seguidamente sete raios, que cessam apartir do compasso 59, quando por umrecurso de dinmica so enfatizadostrmulos empiano, em todas as cordas.Essa calmaria acentuada quando ascordas chegam ao trmulopianssimo,nos compassos 64 e 65. Do compasso66 ao 68, juntamente com os trmulosem pianssimo, surge uma tmidamarcao rtmica nos obos e fagotes,concomitante a uma melodia suave quese destaca no clarinete. Este momentochega a soar como contradio: O que

    poderiam representar a doura ecompaixo dessa melodia em meio violenta tempestade? Propositalmente, omsico procurou apontar para asrealidades amedrontadas e indefesas emrelao tempestade impiedosa eincontrolvel. Do compasso 72 ao 89entram em destaque sequncias

    meldicas de trs notas, que se dividemem duas para cada trs instrumentos, partindo do fagote, passando peloclarinete at o obo. Esse tema vai ser acaracterstica central de todo essetrecho, marcado por um crescendocontnuo que culminar num fortssimono compasso 78, com toda a orquestra(tuti) pontuando o ritmo. Nessemomento entram em cena os piccolos euma melodia irrequieta e rpida nos

    violinos apresentando escalas

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    descendentes: a densidade orquestralaponta aqui para o clmax datempestade, o qual se estender at ocompasso 94.

    As grandes correntes de ventosincessantes encontram-se representadasdo compasso 95 ao 102, coincidindocom uma longa escala descendente nosviolinos, com significativas ligaduras deexpresso. O ritmo sincopado marcante e caracterstico nos compassosseguintes, que seguem um crescendogradual que culminar no compasso 106com um tutifortssimo no ltimo tempo

    do compasso. Deste momento at ocompasso 124, a densidade orquestral tremenda. Mantm-se em destaque amelodia frentica e contundente dos

    baixos (cordas) e a marcao, pormomentos, trmula da melodia dosviolinos. Um diminuendo gradual indicado a partir do compasso 119,apontando para um clima de calmaria,que ainda no se completa. Odiminuendo gradual se prolonga at o

    compasso 129, onde os trmulos ajudama transmitir a sensao de que est sedissipando a tempestade. No compasso132 indicado um piu diminuendo, noqual ocorrem alguns raios e troves.Procede, ento, a uma alternncia de

    pianos com intervenes marcantes dostmpanos, que aos poucos tambmfazem um diminuendo. Tudo isso afirmaa ideia clara de que a tempestade estchegando ao fim ou se distanciando.

    Sugerem-se nuvens se dissipando docompasso 133 ao 145, e os trmulos nascordas em diminuendo so a expressomxima dessa inteno. Do compasso146 ao 155, o sentimento de alvio porestar chegando o fim da tempestade acentuado; estabelece-se na dinmica edensidade orquestral a indicao dodolce que j apresenta fragmentos dotema que caracterizar o movimentoseguinte. Esse tema, que passa do f

    menor para o f maior, finaliza o 4

    movimento frisando o sentimento dealvio diante da tempestade que enfimse dissipa.

    Linguagem Musical e o Em-si das

    Coisas

    A anlise musical realizada ajuda-nos aperceber o porqu da posio da msicana esttica de Schopenhauer. De todasas artes a msica surge com o potencialcomunicativo do em-si das coisas.Schopenhauer esclarece esta questo aoconsiderar que na msica noreconhecemos qualquer cpia. Trata-sede uma linguagem totalmente comum,

    cuja clareza ultrapassa mesmo a do prprio mundo intuitivo. Portanto,devemos lhe atribuir um significadosrio e profundo relacionado com aessncia mais ntima do mundo e de nsmesmos (SCHOPENHAUER, 1974, p.79). A msica no se reduz reproduo de ideias sobre o mundofenomnico; ela a reproduo da

    prpria vontade, ou seja, a essnciantima do mundo. Ao propor uma

    analogia entre msica e mundo, o autorequipara diferentes graus deobjetividade da vontade estruturaharmnico-orquestral. ParaSchopenhauer, o baixo fundamental, noqual se encontram os tons mais gravesda estrutura harmnica, representa osgraus mais inferiores da objetivao daVontade: a natureza orgnica formadorada massa do planeta. Os sons maisagudos e com maior mobilidade soconsiderados como originrios dasvibraes concomitantes do baixofundamental, relao estabelecidanaturalmente que constitui a lei daharmonia: so os harmoniques. Essaestruturao harmnica apresentada deforma anloga ao conjunto de corpos eorganizaes da natureza, originados

    pelo desenvolvimento gradual a partirda massa do planeta. Ao limite para a

    gravidade dos sons, alm do qual nada

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    mais pode ser ouvido, encontra-se emcorrespondncia a afirmao de quenenhuma matria perceptvel semforma e qualidade, ou seja, que matria

    alguma pode ser desprovida da vontade. Nesse sentido, assim como do tom inseparvel certo grau de altura,tambm na matria se torna inseparvelcerto grau de expresso da Vontade.Justifica-se aqui a ideia de que o baixofundamental representa o que no mundoexiste como matria inorgnicaformadora da massa bruta na qual tudoo que existe repousa e de onde tudo seorigina e desenvolve. Entre os baixos e

    as vozes mais agudas que conduzem amelodia, o autor reconhece a totalidadegradual de uma srie de ideias em que aVontade se objetiva. Nas mais prximasdo baixo encontram-se os graus maisinferiores: corpos ainda no orgnicos,mas que j se expressam de algumamaneira. Acima se encontram os grausmais elevados, que para o autorrepresentam o mundo vegetal e animal.

    Nesse contexto, a medida exata dosintervalos determinados pela escalatonal anloga aos graus de objetivaoda Vontade, que determinam as espciesda natureza. O desvio dessa correoaritmtica, produzida tanto intencionalcomo naturalmente, justifica a ideia deque o mundo pode ser entendido comodivergncia entre indivduos que domargem formao das diversasespcies.

    Acima das vozes intermediriasencontra-se a voz mais alta que canta amelodia e se move com rapidez,enquanto as demais executam ummovimento lento. Por esta voz apresentada a direo a ser seguida portodas as outras vozes do incio ao fim;trata-se de uma conexo contnua quecaracteriza um s pensamento. Nessavoz Schopenhauer reconhece o graumais elevado da objetivao daVontade: nela se encontram a vida e as

    aspiraes provindas da reflexo dohomem dotado de razo. Temos aquium homem que, ao se valer da razo,lana continuamente seu olhar para

    frente e para trs, tendo em vista suaexistncia e suas infinitaspossibilidades. Analogamente, apenas amelodia principal possui essa conexosignificativa e intencional do incio aofim; ela apresenta um relato da histriada vontade guiada pela reflexoracional, revelando toda a agitao e ossegredos mais profundos, tudo o que arazo rene sob o conceito desentimento. A inveno da melodia, e o

    desvelar de todos os mais profundossegredos do querer e do sentir humano, propriamente a obra do gnio. Ocompositor a essncia mais ntima domundo e a mais profunda sabedoria,numa linguagem que incompreensvel razo. No contexto da obra, asmelodias ligeiras so alegres, as lentas edissonantes ligam-nos ao triste edoloroso. Motivos curtos de danasreferem-se a felicidade; o alegromajestoso em grandes motivos designadesejos mais nobres; o adgio poderepresentar o sofrimento de grandesambies e o despertar de felicidadesmesquinhas. O efeito produzido pelosmodos menor e maior algoesplndido; torna-se espantoso como aalterao de um semitom; pode forarimediatamente no espectadorsentimentos contrrios, nos quais a

    angstia produzida pelo modo menor pode ser superada surpreendentemente pela entrada do modo maior. ParaSchopenhauer, a modulao repentinaentre tons distintos assemelha-se morte, o momento em que os homenschegam ao fim, embora a vontadecontinue a viver em outros indivduos.Por esse caminho, a msica manifesta aessncia interna e o em-si de todos osfenmenos, a Vontade mesma, nunca

    somente o fenmeno, embora tenha com

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    este relao direta e mediata.(SCHOPENHAUER, 1974). Dessaforma, a msica como expresso domundo, uma linguagem do mais alto

    grau de generalidade, que se refere generalidade dos conceitos quase comoestes s coisas individuais. A msicafornece a semente interna anterior atodas as formaes, ou o corao dascoisas. (SCHOPENHAUER, 1974, p.84). Expressa em sua linguagem aessncia interna do mundo, pensada porSchopenhauer como o conceito devontade. associada pelo autor

    prpria filosofia, tomada como perfeita

    e correta expresso da essncia domundo, chegando a ser definida comoMusica est exertitium metaphysicesoccultum, nescientis se philosophari

    animi (a msica um exerccio ocultoda metafsica, sem que o esprito saibaque est filosofando). Por esse caminho,o autor apresenta a msica como artesuperior s demais, no que diz respeito capacidade deRepresentao conceitualda vontade essncia de todo o mundofenomnico.

    Referncias

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