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O Sigilo de Dados e a Vinculação do Poder Público aos Direitos Fundamentais.

Sibele Cristina Boger Feitosa**

O Sigilo de Dados e a Vinculação do Poder Público aos Direitos Fundamentais.

462 ESAP-MS - Escola Superior de Advocacia Pública de Mato Grosso do Sul

**ProcuradoradoEstadodeMatoGrossodoSul,desde2010.1 TeseapresentadaeaprovadanoXXVIICongressoNacionaldeProcuradoresdoEstado,realizadoemBeloHorizonte/MGem2011.

2 DentreasprincipaisinovaçõestrazidaspelaConstituiçãode1988,IngoSarletdestacaasituaçãotopográficadosdireitosfundamentaisnoiníciodaLeiMaior,aprevisãodedireitossociaisemcapítulopróprionocatálogodos direitos fundamentais, a ampliação do rol de direitos protegidos pelo constituinte e a positivaçãoda aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais. SARLET, IngoWolfgang.Aeficáciadosdireitosfundamentais:umateoriageraldosdireitosfundamentaisnaperspectivaconstitucional.10ed.rev.atual.eampl.PortoAlegre:LivrariadoAdvogado,2009.p.66-67.

3 Sobreo tema:PEREIRA, JaneReisGonçalves. InterpretaçãoConstitucionaleDireitosFundamentais:umacontribuiçãoaoestudodasrestriçõesaosdireitosfundamentaisnaperspectivadateoriadosprincípios.RiodeJaneiro:Renovar,2006;BARCELLOS,AnaPaulade.Ponderação,racionalidadeeatividadejurisdicional.RiodeJaneiro:Renovar,2005.

AConstituiçãode1988introduziuinovaçõessignificativasnasearadosdireitos fundamentais2. A importância atribuída aos direitos fundamentaise o reforço do seu sistema jurídico são resultado da reação do legisladorconstituinte originário ao regime autoritário da ditadura militar e frutodo processo de redemocratização do país, fortemente influenciado peloconstitucionalismo do pós-guerra. A previsão expressa da aplicabilidadeimediata das normas definidoras de direitos fundamentais (artigo 5º, §1º,CRFB/88)eavinculaçãodosPoderesPúblicosaosseuspreceitospodemserapontadascomoinovaçõesexpressivasveiculadaspelaConstituiçãovigente.

Considerando o caráter compromissório da Constituição de 1988 e aimpossibilidadedolegisladorregulartodososconflitosjurídicos,écorriqueiraasituaçãoemqueaausênciadelegislaçãoexigedointérpreteaconciliaçãoharmônicadevaloresconstitucionaisque incidemaomesmotemposobredeterminadocasoconcreto,masapontampararesultadosdistintos.Partedaproduçãocientíficapátriatemsidodedicadaaodesenvolvimentodemétodosaptos a solucionar o conflito entreprincípios constitucionais, bem comoàdefiniçãodeparâmetrosparaaponderaçãodevaloreseinteresses3.

A questão referente ao sigilo a ser conferido pelo Estado aos bancosde dados públicos e à importância do crédito para o desenvolvimento do

1.Introdução1

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mercadodeconsumorecainestetipodecontraposição,comoseráanalisadonostópicosseguintes.

Estando intimamente relacionadoaodireito àprivacidade,o sigilodedadosconstituitemadecrucialimportânciaparaagarantiadadignidadedapessoa humana, especialmente na sociedade capitalista atual, em que asmudanças tecnológicas e a evolução da informática permitemuma rápidatrocadeinformaçõesarespeitodoindivíduo.

O objetivo precípuo do presente trabalho é analisar a possibilidadejurídicadoEstado franquearàempresadeproteçãoaocréditooacessoainformações pessoais constantes do banco de dados públicos, através dacelebraçãodeconvêniocomafinalidadedereduziraquantidadedefraudesocorridasnoâmbitoempresarial.Aquestãoatraiaincidênciasimultâneadodireitofundamentalaosigilodedadosedosprincípiosrelacionadosàordemeconômica,valoresconstitucionaisqueapontamparadireçõesopostas.

Tendoemvistaaausênciaderegulamentaçãoespecífica,utilizaremos,emprimeiro lugar,ométododaponderaçãode interesseseoprincípiodaproporcionalidadeparaequacionaro impasse.Emseguida,analisaremosaLei12.414/2011eoprincípiodaanalogiacomometodologiacomplementaràinterpretaçãoconstitucionalanteriormenterealizada.

O presente estudo está dividido em duas partes. Em um primeiromomento, serão apresentadas as premissas teóricas necessárias àcompreensão do raciocínio a ser desenvolvido, sistematização que se faráda seguinte forma: (i) considerações a respeito da nova hermenêuticaconstitucional, em especial sobre a teoria dos princípios, ponderação deinteresseseaimportânciadosdireitosfundamentaisnoconstitucionalismocontemporâneo; (ii) eficácia dos direitos fundamentais e a vinculação doPoderPúblicoaos seuspreceitos; (iii) possibilidadede restriçãoaoâmbitonormativo dos direitos fundamentais e o princípio da proporcionalidadecomolimite.

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Em um segundo momento, buscar-se-á harmonizar os princípiosconstitucionais incidentes sobre o caso concreto supracitado, a partir daconstrução de argumentação jurídica pautada nas seguintes premissas:(i) utilização do método da ponderação de interesses e do princípioda proporcionalidade como parâmetros norteadores da interpretaçãoconstitucionalaserempreendida; (ii)análisedaLeiFederal12.414/2011–LeidoCadastroPositivo–econsideraçõessobreatécnicadaanalogiacomométodohermenêuticocomplementar.

AanálisequeseseguepartedeconsultaformuladaàProcuradoria-GeraldoEstadoemqueempresadeproteçãoaocréditorequer,aoPoderPúblico,oacessoaosdadosdeidentificaçãodocadastrodeCarteiradeIdentidadeCivil,aosregistrosdeboletinsdeocorrênciarelacionadosaroubodedocumentos,bem como ao cadastro de veículos do DETRAN, com vistas à redução donúmerodefraudesperpetradasnastratativasempresariais.

Trata-se de questão de viés eminentemente constitucional, tendo emvistaquesuasoluçãoexigeaconciliaçãoharmônicadedoisgruposdebensjurídicos constitucionalmente protegidos – de um lado, o direito ao sigilode dados e o direito à privacidade; de outro, os princípios relacionadosà ordem econômica, em especial a livre iniciativa e o desenvolvimentonacional,esteúltimoapontadopelolegisladorconstituinteorigináriocomoobjetivofundamentaldaRepúblicaFederativadoBrasil(art.3º,II,CRFB/88).O equacionamento do conflito pressupõe a ponderação dos valoresconstitucionaisaplicáveisaocasoconcreto,razãopelaqualsefazadequadauma breve apresentação de premissas teóricas inerentes à hermenêuticaconstitucionalcontemporânea,essenciaisparaacompreensãodoraciocíniojurídicoaserdelineado.

2.Apré-compreensãodotemaeanovahermenêuticaconstitucional

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Antesdareferidaexposição,valeapenaressaltarquea interpretaçãoconstitucionalnãotemapretensãodedefinirverdadesabsolutaseatemporais.Como bem observado por Luís Roberto Barroso, “toda interpretação éproduto de uma época, de um momento histórico e envolve os fatos aseremenquadrados,o sistema jurídico,as circunstânciasdo intérpreteeoimagináriodecadaum”4.Nãoobstante,oresultadodoprocessoexegéticorequerargumentaçãojurídicaconsistenteeracionalquepossibiliteaaferiçãodocaminhopercorridopelointérpretenabuscadedeterminadaconclusão,pressupostoquesebuscarásatisfazernopresenteestudo.

A seguir, algumas sucintas considerações sobre as premissas teóricasnecessáriasàcompreensãodateseaserdesenvolvida:ateoriadosprincípios,aponderaçãodeinteressesenoçõesbásicassobreasupremaciadosdireitosfundamentais.

A teoria dos princípios5, um dos pilares da moderna dogmáticaconstitucional,foiconstruídaapartirdaideiadequeasnormasjurídicassesubdividememduascategoriasdistintas:princípioseregras.Comamudançade paradigma consagrada pelo Pós-Positivismo, a Constituição passa a serconsideradacomoumsistemajurídicocompostoporprincípioseregras,demodoqueacargavalorativa inerenteaosprincípiosdeixadeterdimensãopuramente axiológica epassa a gozardenormatividade6, pressupostoqueanteriormenteselimitavaàsregras.

4 BARROSO,LuísRoberto.RegimeConstitucionaldoserviçopostal.Legitimidadedaatuaçãodainiciativaprivada.RevistadeDireitoAdministrativo,RiodeJaneiro.nº222,p.179-212,out./dez.2000.

5 Existevastaproduçãoacadêmica, inclusivenadoutrinanacional,a respeitodadiferençaentreprincípioseregras: SILVA, Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normasconstitucionais. Revista de Direito do Estado nº 4, out./dez.2006, p. 23-51; BARROSO, Luís Roberto.InterpretaçãoeAplicaçãodaConstituição:Fundamentosdeumadogmáticaconstitucionaltransformadora.6ªediçãorev.atual.eampl.–SãoPaulo:Saraiva,2004.

6 A diferença entre princípios e regras e o postulado da normatividade dos princípios são premissasfrequentementeutilizadaspeloSupremoTribunalFederal.Nessesentido:“Aforçanormativadequeseachamimpregnados os princípios constitucionais e a intervenção decisiva representada pelo fortalecimento dajurisdiçãoconstitucionalexprimemaspectosdealtorelevoquedelineiamalgunsdoselementosquecompõemo marco doutrinário que confere suporte teórico ao neoconstitucionalismo, em ordem a permitir, numaperspectivadeimplementaçãoconcretizadora,aplenarealização,emsuadimensãoglobal,doprópriotextonormativodaConstituição”.(ADI4277/DFeADPF132/RJ,Rel.Min.AyresBritto.Julgamento:04e05/05/2011.Informativo625,STF).

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De acordo com as concepções doutrinárias de Ronald Dworkin eRobertAlexy7,asregraspossuemcaráterobjetivoeveiculam“mandadosdedefinição”quefuncionamnamodalidadedo“tudoounada”.Aaplicaçãodasregrassedáatravésdomecanismotradicionaldesubsunção,demodoqueocorrendoasituaçãoprevistanoseurelato,aregraseráaplicável.Existindoconflitoentreregras,apenasumadelasiráprevalecer.

De outro lado, os princípios são considerados “mandados deotimização”quepossuemummaiorgraudeabstraçãoeincidemsobreumconjuntoindeterminadodesituações.Éinviáveldefinir,a priori,ashipótesescontempladasemseuconteúdo.Osprincípiossãonormasjurídicasdotadasde forte dimensão axiológica que veiculam valores a serem protegidos efinalidades públicas a serem perseguidas, razão pela qual, diferentementedasregras, suaaplicaçãonãosedásoba lógicado“tudoounada”.Tendoemvistaainsuficiênciadométodosubsuntivopararesolverconflitosentreprincípios,ainterpretaçãoconstitucionalrequermétodosexegéticoscapazesde“lidarcomofatodequeaConstituiçãoéumdocumentodialético–quetutelavaloreseinteressespotencialmenteconflitantes–equeosprincípiosnelaconsagradosfrequentementeentramemrotadecolisão”8.

Nessecontexto,surgeaponderaçãodeinteressescomotécnicaaptaasolucionaroconflitoentreprincípiosatravésdoqueseconvencionouchamarde “balanceamento e sopesamento” dos bens jurídicos incidentes sobredeterminada situação concreta, premissametodológica adotada de formarecorrentepelajurisprudênciadoSupremoTribunalFederal9.

7 Autoresresponsáveispelamudançadeparadigmaintroduzidapelateoriadosprincípios:DWORKIN,Ronald.Takingrightsseriously.Cambridge,HarvardUniversityPress,1997;ALEXY,Robert.Teoríade losderechosfundamentales.Madrid,CentrodeEstudiosConstitucionales,1993.

8 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição: Fundamentos de uma dogmáticaconstitucionaltransformadora.6ªediçãorev.atual.eampl.–SãoPaulo:Saraiva,2004.p.357.

9 Nessesentido:“Osdoisvetoresmostram-se,assim,inconciliáveis,demodoqueaprevalênciadeumlevaaoafastamentodaeficácianormativadooutroparaasoluçãodapresentecontrovérsia.Emumcenáriocomoeste,enalinhadoquejámencionado,aúnicaopçãometodologicamenteválidaéautilização,porestaCorteConstitucional,datécnicadaponderação”(RE363889/DF,Rel.Min.DiasToffoli.Voto-vistadoMin.LuizFux.Acórdãopendentedepublicação–TranscriçõesdoInformativo631,STF).

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Deformabastanteresumida,ométodoponderativosedivideemtrêsprincipais fases: (i) preliminarmente, o intérprete deve identificar quais osprincípios,valoresouinteressesconstitucionaisrelevantesparaasoluçãodoimpasseeospossíveisconflitosentreeles;(ii)emsegundolugar,oaplicadordo direito deve analisar as circunstâncias fáticas inerentes ao conflitoe verificar como se dá a sua interação com os enunciados normativos10 identificados na primeira etapa; (iii) por fim, o exegeta deve sopesar osprincípiosaplicáveisaocasoconcreto,definiropesoaseratribuídoacadaumedecidirqualnormajurídicadevepreponderarnaquelasituaçãoespecífica.Esseprocessode “balanceamentoe sopesamento”dosbens jurídicos temcomo parâmetro norteador o princípio da proporcionalidade, premissaconsagrada na doutrina11 e jurisprudência12 comométodo de controle dadiscricionariedadedosatosdoPoderPúblico,comvistasàmelhorrealizaçãodavontadeconstitucional.

Porfim,éimportanteressaltarasupremaciadosdireitosfundamentaisno constitucionalismo moderno e sua indissociável vinculação com aspremissas teóricas já apresentadas. As ideias de Constituição, Estado deDireito e direitos fundamentais estão intimamente relacionadas, tendoemvistaquesurgiramcomafinalidadecomumdeestabelecer limitesaosPoderesPúblicos.

10Nesse contexto, é importante que se compreenda a diferença entre norma e enunciado normativo. Oenunciadonormativodiz respeitoà literalidadedodispositivo legal,nasuadicçãoabstrata.Anormaéoresultadodoprocessoexegéticoerepresentaasoluçãoconstitucionalmenteadequadaparasolucionaroconflito.

11BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição: Fundamentos de uma dogmáticaconstitucionaltransformadora.6ªediçãorev.atual.eampl.–SãoPaulo:Saraiva,2004;PEREIRA,JaneReisGonçalves.InterpretaçãoConstitucionaleDireitosFundamentais:umacontribuiçãoaoestudodasrestriçõesaosdireitosfundamentaisnaperspectivadateoriadosprincípios.RiodeJaneiro:Renovar,2006.

12Confira-se: “Todo esse caminho lógico a ser percorrido para a harmonização de comandos normativosindicandosoluçõesopostasdemandadoaplicadordaConstituiçãoareconstruçãodosistemadeprincípioseregrasexpostonoseutexto,guiadoporuminafastáveldeverdecoerência.(...)Eésomentequandoessatentativadedefiniçãodoslimitesprópriosacadanormafundamentalsemostrarinfrutífera,jáquesobrepostososrespectivosâmbitosdeproteção,quecabeaointérpretefazerousodatécnicadaponderaçãodevalores,instrumentalizadaapartirdomanuseiodopostuladodaproporcionalidade”. (RE363889/DF,Rel.Min.DiasToffoli.Voto-vistadoMin.LuizFux.Acórdãopendentedepublicação–TranscriçõesdoInformativo631,STF).

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Percebeu-se, ao longo da história, que a previsão de procedimentosrelacionadosàorganizaçãodopodereàrepartiçãodecompetênciasentreosórgãosestataiséinsuficienteparapromoverjustiça,sendoindispensávelqueaConstituiçãoalberguevalores,direitoseliberdadesfundamentaisquelimitemeaomesmo tempo legitimemoexercíciodopoderestatal.Nessecontexto,osdireitosfundamentais,alémderepresentareminstrumentosdedefesadoindivíduoemfacedaarbitrariedadeestatal,passamagozardeumadimensãoaxiológicadesumaimportânciacapazdelhesatribuirostatusdefundamentomaterialdetodooordenamentojurídico13.

A questão referente à eficácia das normas constitucionais passou aocuparpapeldedestaquenodireitoconstitucionalapartirdaconsagraçãodoprincípiodaforçanormativadaConstituição.AperspectivasegundoaqualaConstituiçãonão se reduzaum“simplespedaçodepapel”14que refleteas relações de poder existentes,mas, ao contrário, possui uma pretensãode eficácia capaz de ordenar e conformar a realidade política e social foidesenvolvidaporKonradHesse15.

3.Eficáciadosdireitosfundamentaise avinculaçãodoPoderPúblico aosseuspreceitos

13Nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet: “Os direitos fundamentais, como resultado da personalização epositivaçãoconstitucionaldedeterminadosvaloresbásicos (daíoseuconteúdoaxiológico), integram,aoladodosprincípiosestruturaiseorganizacionais (aassimdenominadaparteorgânicaouorganizatóriadaConstituição),asubstânciapropriamentedita,onúcleosubstancial,formadopelasdecisõesfundamentais,daordemnormativa,revelandoquemesmonumEstadoconstitucionaldemocráticosetornamnecessárias(necessidade que se fez sentir da formamais contundente no período que sucedeu à Segunda GrandeGuerra)certasvinculaçõesdecunhomaterialparafazerfrenteaosespectrosdaditaduraedototalitarismo”.SARLET,IngoWolfgang.Aeficáciadosdireitosfundamentais:umateoriageraldosdireitosfundamentaisnaperspectivaconstitucional.10ed.rev.atual.eampl.PortoAlegre:LivrariadoAdvogado,2009.p.61.

14Expressão desenvolvida por Ferdinand Lassalle. LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. Rio deJaneiro:Ed.LiberJuris,1985.

15HESSE,Konrad.AForçaNormativadaConstituição.PortoAlegre:SergioAntonioFabrisEditor,1991.

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16NSARLET,IngoWolfgang.Aeficáciadosdireitosfundamentais:umateoriageraldosdireitosfundamentaisnaperspectivaconstitucional.10ed.rev.atual.eampl.PortoAlegre:LivrariadoAdvogado,2009.p.251.

17Ibidem,p.252-253.18“Se, portanto, todas as normas constitucionais sempre são dotadas de ummínimo de eficácia, no casodosdireitosfundamentais,àluzdosignificadooutorgadoaoart.5º,§1º,denossaLeiFundamental,podeafirmar-sequeaospoderespúblicosincumbematarefaeodeverdeextrairdasnormasqueosconsagram(os direitos fundamentais) a maior eficácia possível, outorgando-lhes, neste sentido, efeitos reforçadosrelativamente às demais normas constitucionais, já que não há como desconsiderar a circunstância dequeapresunçãodaaplicabilidadeimediataeplenaeficáciaquemilitaemfavordosdireitosfundamentaisconstitui, em verdade, um dos esteios de sua fundamentalidade formal no âmbito da Constituição. (...)Negar-seaosdireitosfundamentaisestacondiçãoprivilegiadasignificaria,emúltimaanálise,negar-lhesaprópriafundamentalidade”.Ibidem,p.271-272.

AsideiasformuladasporHesseforamfundamentaisparasechegaraoconsensodoutrinário deque inexiste preceito constitucional destituído deeficácia, sem prejuízo da possibilidade de se estabelecer “uma graduaçãoda carga eficacial das normas constitucionais”16. Analisando as diferentespropostasdoutrináriassobreaquestão,IngoSarletconcluiquetodasasnormasconstitucionaisapresentamcertograudeeficáciajurídicaindependentedocoeficientededensidadenormativa,emvirtudedanormatividadeinerenteatodosospreceitosinsertosnaCartaMagna17.

No que tange à eficácia e aplicabilidade dos direitos fundamentais,a Constituição vigente prevê que “as normas definidoras dos direitos egarantias fundamentais têmaplicação imediata” (artigo 5º, §1º, CRFB/88).Embora não haja consenso acerca do significado e do alcance do referidopreceito,épossívelafirmarqueolegisladorconstituintepretendeu(i)evitaro esvaziamento dos direitos fundamentais; (ii) reforçar a importância dosreferidos preceitos em relação às normas constitucionais em geral e (iii)atribuir aos Poderes Públicos a incumbência de conferir a maior eficáciapossívelàsnormasqueosintroduzem18.

A eficácia e aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais estãointimamente relacionadas à questão da vinculação dos Poderes Públicosaos seus preceitos. Nesse contexto, cumpre destacar, sem pretensão deaprofundamentodotema,quealémdevincularemosPoderesPúblicos,com

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adenominada“eficáciavertical”,osdireitosfundamentaistambémexercemeficácia vinculante no âmbito das relações jurídicas entre particulares.Cuida-sedaeficáciaprivadaouhorizontaldosdireitos fundamentais, temacontroversoedevastaproduçãodoutrinárianodireitopátrio19.

Embora a Constituição de 1988 não tenha sido expressa quanto àvinculaçãodasentidadespúblicasedosparticularesaosdireitosfundamentais,talpostuladodecorredaaplicabilidadeimediataprevistanoartigo5º,§1º,demodoquequalqueratopraticadodevelevaremcontaosdireitosfundamentaiscomo “baliza e referencial”20. Cumpre observar que a eficácia vinculantese verifica sob duas perspectivas: (i) dimensão negativa ou proibitiva: dizrespeitoànecessidadedoPoderPúblicorespeitaroâmbitodeproteçãodosdireitosfundamentais,demodoqueeventuaisingerênciassedarãodeformaexcepcional, desde que existam motivos relevantes que as justifiquem; (ii)dimensãopositiva:oEstadoestáobrigadoaatuarcomoobjetivodeconcretizarosdireitosfundamentaisdaformamaisamplapossível.

Épacíficooentendimentodequeostrêstradicionaispoderesestatais- Legislativo, Executivo e Judiciário – encontram-se adstritos aos direitosfundamentais.Paraosfinsdopresentetrabalho,éimportantedestacarquetambémaProcuradoria-GeraldoEstado,comoumadasfunçõesessenciaisàJustiça,deveobservarosvaloresveiculadospelosdireitosfundamentaisaoexercer o seumister constitucional de representação judicial e consultoriajurídicadasrespectivasunidadesfederadas(artigo132,CRBF/88).

Partindo da premissa de que as atividades desempenhadas pelosProcuradoresdoEstadotêmcomoobjetivoprecípuoocontroledajuridicidadedaAdministraçãoPública,“comvistasaqueaaçãodosentesestatais seja

19Destacam-se, nesse contexto, as contribuições de SARMENTO,Daniel. Direitos Fundamentais e RelaçõesPrivadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003; SILVA, Virgílio Afonsoda. A Constitucionalização doDireito.Osdireitosfundamentaisnasrelaçõesentreparticulares,SãoPaulo:Malheiros,2005;PEREIRA,JaneReisGonçalves.InterpretaçãoConstitucionaleDireitosFundamentais:umacontribuiçãoaoestudodasrestriçõesaosdireitosfundamentaisnaperspectivadateoriadosprincípios.RiodeJaneiro:Renovar,2006.

20MIRANDA,Jorge.ManualdeDireitoConstitucional,vol.IV,2.ed.,Coimbra:Coimbra,1993.p.279.

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21NETO,DiogodeFigueiredoMoreira.IndependênciaTécnico-FuncionaldaAdvocaciadeEstado.RevistadeDireitodaAssociaçãodosProcuradoresdoNovoEstadodoRiodeJaneiro,volumeXVI:AdvocaciaPública.RiodeJaneiro:LumenJuris,2006.p.7.

22Aodiscorrer sobreoprincípiodaeficiência, introduzidopela EmendaConstitucional nº19/98,DiogodeFigueiredoMoreiraNetosustentaquesuaaplicaçãonãodeveserestringiraosPoderesLegislativo,Executivoe Judiciário, sendonecessária aextensãode sua cargavalorativaàs funçõesessenciais à Justiça, atravésdeumainterpretaçãoextensiva.Commaiorrazão,épossívelafirmarqueaeficáciavinculantedosdireitosfundamentaisseestendeàsfunçõesessenciaisàJustiça,maisespecificamenteàatuaçãodaProcuradoria-GeraldoEstado.Ibidem.p.3-23.

23SARLET,IngoWolfgang.Aeficáciadosdireitosfundamentais:umateoriageraldosdireitosfundamentaisnaperspectivaconstitucional.10ed.rev.atual.eampl.PortoAlegre:LivrariadoAdvogado,2009.p.387.

cadavezmaisobedienteàordem jurídica”21econsiderandoa importânciados direitos fundamentais para a preservação e consolidação do regimedemocrático brasileiro, resta claro que a eficácia vinculante dos referidospreceitosseestendetambémàProcuradoria-GeraldoEstado22.

Oâmbitodeproteçãodedeterminadodireitofundamentalcorrespondeao campo de incidência normativa, ou seja, ao bem jurídico protegidopelo ordenamento.Não obstante a aparente simplicidade da definição doconceito,aindeterminaçãosemânticadosenunciadosnormativosaliadaaocaráteraxiológicodosdireitosfundamentaisfazcomqueaidentificaçãodoâmbitodeproteçãonãosejatarefasimples.

Considerandoqueaordemjurídicanãopodeconferirproteçãoilimitadaaos direitos fundamentais, tornou-se corrente o entendimento de que osdireitos fundamentais não se encontram “absolutamente blindados contraqualquertipoderestriçãonasuaesferasubjetivaouobjetiva”23,admitindo-seintervençõesemseuâmbitodeproteção.

4.PossibilidadederestriçãoaoâmbitonormativodosdireitosfundamentaiseoPrincípiodaProporcionalidade comolimite

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ATeoriaExterna24,concepçãoteóricaadotadaporpartesubstancialdadoutrinapátria25,consideraqueodireitofundamentalnãopossuiumúnicoobjeto jurídico constitucionalmente definido e constrói sua argumentaçãocombaseemdoiselementos:odireitoprima facieearestriçãoataldireito.

Deacordocomareferidaconcepção,oprocessointerpretativoconsiste,em primeiro lugar, em identificar as posições jurídicas relacionadas aosdireitos fundamentais em jogo, elementos que configurarão o conteúdoprima faciedoreferidobemjurídico.Emseguida,ointérpretedevequestionarse o conteúdo prima facie do direito é passível de sofrer restrições porlimitesexternosveiculadosporoutrosdireitosouprincípiosconstitucionaistambémincidentessobreocasoconcreto.Paratanto,oaplicadordodireitodeve sopesar o conteúdo prima facie identificado com os demais valoresconstitucionais contrapostos, valendo-se do método de ponderação deinteressespara,atravésdoprincípiodaproporcionalidade,definiroconteúdodo direito aplicável na situação concreta. Segundo Jane Reis GonçalvesPereira, “são traçados, assim, os limites definitivos do direito, os quais,paraessaconcepção, são limitesexternos, jáque resultamdo ‘recorte’doconteúdoinicialmenteprotegidododireitofundamental”26.

Tendo em vista a dificuldade do legislador disciplinar todas aspossibilidadesdecolisãoentredireitosfundamentais,éfrequenteasituação

24NomenclaturautilizadaporALEXY,Robert.Teoriadelosderechosfundamentales.Madrid:CentrodeEstúdiosConstitucionales,1997.Deoutro lado,aTeoria Internaentendequeo legisladorpodeapenasconfigurardireitos fundamentais, seja concretizando o seu conteúdo ou detalhando suas formas de exercício, namedidaemquearestriçãoefetivaapenasseráadmitidanashipótesesemqueaConstituiçãoautorizardeformaexpressa.ParaaTeoriaInternaaaplicaçãodosdireitosfundamentaissedáatravésdaidentificaçãodoseuconteúdoconstitucionalmentedefinidoeseuajustamentoaocasoconcreto.Assim,restaexcluídaapossibilidadedelimitaçõesdeorigemexterna,comoéocasodasrestriçõesdecorrentesdacolisãoentreprincípios.

25PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais: uma contribuiçãoaoestudodasrestriçõesaosdireitosfundamentaisnaperspectivadateoriadosprincípios.RiodeJaneiro:Renovar,2006;SILVA,VirgílioAfonsoda.Oconteúdoessencialdosdireitosfundamentaiseaeficáciadasnormasconstitucionais.RevistadeDireitodoEstadonº4,out./dez.2006,p.23-51.

26PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais: uma contribuiçãoaoestudodasrestriçõesaosdireitosfundamentaisnaperspectivadateoriadosprincípios.RiodeJaneiro:Renovar,2006.p.147.

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27Nãoobstanteaexistênciadecontrovérsiaarespeitodafungibilidadedosprincípiosdaproporcionalidadeedarazoabilidade,adoutrinamajoritária,bemcomoajurisprudênciadoSupremoTribunalFederal,admitea intercambialidadedosreferidospreceitos.Note-sequeoprincípiodaproporcionalidadeseoriginounodireitogermânicoetemcomofundamentoacláusuladoEstadodeDireito.Oprincípiodarazoabilidade,porsuavez,surgiunodireitoamericanoapartirdocarátersubstancialdacláusuladodevidoprocessolegal.

28BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição: Fundamentos de uma dogmáticaconstitucionaltransformadora.6ªediçãorev.atual.eampl.–SãoPaulo:Saraiva,2004;PEREIRA,JaneReisGonçalves.InterpretaçãoConstitucionaleDireitosFundamentais:umacontribuiçãoaoestudodasrestriçõesaosdireitosfundamentaisnaperspectivadateoriadosprincípios.RiodeJaneiro:Renovar,2006.

29Cumpredestacaradupladimensãodoprincípiodaproporcionalidade:a)proibiçãodoexcesso:perspectivasegundo a qual o princípio da proporcionalidade tem por objeto o controle de constitucionalidade dasmedidasrestritivasdedireitosfundamentais,ouseja,verificarseaatuaçãodoPoderPúblicocorreoriscodeafetar, de formadesproporcional, osdireitos fundamentais; b)proibiçãode insuficiência: controledaomissãoouatuação insuficientedoEstadono cumprimentodos seusdeveresdeproteção.Nopresentetrabalho,enfocaremosoprincípiodaproporcionalidadesobaperspectivadaproibiçãodoexcesso.

emqueaausênciaderegulamentaçãoconduzànecessidadedeseresolvero impassedecorrentededoisbens jurídicosconstitucionalmentetuteladosqueincidem,deformasimultânea,sobreocasoconcreto,masapontamemdireçõesopostas.Considerandoainexistênciadehierarquiaentreosvaloresconstitucionais,ideiadecorrentedoprincípiodaunidadedaConstituição,ointérpretedevebuscarumasoluçãoqueharmonizeospreceitosemconflito.

Não obstante, as restrições ao âmbito normativo dos direitosfundamentaisdevemobservardeterminados limites.Antea inevitabilidadedecolisãoentreosdireitosfundamentaisveiculadossobaformadeprincípios,especialmente tratando-se de Constituições compromissórias como é ocasodaConstituiçãovigente,eanecessidadedeseestabelecerparâmetrosa seremobservadospelosaplicadoresdodireito, comvistasà soluçãodosreferidos impasses,adoutrinaconstitucional contemporânea introduziuosprincípios da proporcionalidade27 e da proteção do núcleo essencial comolimitesaseremobservadospeloEstadoquandosetratadeimporlimitaçõesaosdireitosfundamentais.

Deacordocomaposiçãoamplamenteacolhidaemsededoutrinária28,oprincípiodaproporcionalidade,sobaperspectivadaproibiçãodoexcesso29,subdivide-seemtrêssubprincípios:(i)adequação:omeioeleitodeveserapto

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àpromoçãodofimpretendido;(ii)necessidade:impossibilidadedoobjetivoalmejado ser promovido, com a mesma intensidade, através de meiosalternativosquerestrinjamemmenorescalaodireitofundamentalafetado;(iii)proporcionalidadeemsentidoestrito:ponderaçãoentreaintensidadedarestriçãoaodireito fundamentalatingidoea importânciada realizaçãodovalorconstitucionalquecomelecolideequefundamentaaimplementaçãodamedidarestritiva.

Alémdoprincípiodaproporcionalidade,adoutrinaapontacomolimiteo princípio da proteção do núcleo essencial, segundo o qual os direitosfundamentaispossuemumnúcleoimodificávelquerepresentaumaparcelado direito imune à ação dos Poderes Públicos. Trata-se de um conteúdomínimoindisponívelàintervençãoestatal,dentrodoqualnenhumarestriçãoseafiguralegítima.

Assentadas as premissas teóricas necessárias à compreensão doraciocínio a ser desenvolvido, passa-se à análise do caso concreto que dizrespeitoaosigilodedados-direitofundamentalprevistonoartigo5º,XIIdaConstituiçãodaRepúblicade1988-eàintensidadedaproteçãoqueoEstadodeveconferirataldireitonoquetangeàsinformaçõespessoaisconstantesdosbancosdedadospúblicos.

Trata-se de consulta formulada à Procuradoria-Geral do Estado arespeitodapossibilidadejurídicadecelebraçãodeparceriaentreoEstadoeempresadeproteçãoaocréditocomoobjetivodefranquearaestaúltimaoacessoadadosdeidentificaçãodocadastrodeCarteiradeIdentidadeCivil,aosregistrosdeboletinsdeocorrênciarelacionadosaroubodedocumentos,bemcomoaocadastrodeveículosdoDETRAN,comoobjetivodereduzironúmerodefraudes.

5.Análisedaconsultaàluzdoprincípio daproporcionalidade

Sibele Cristina Boger Feitosa

475PGE-MS - Procuradoria-Geral do Estado de Mato Grosso do Sul

30NSILVA,JoséAfonsoda.ComentáriotextualàConstituição.5ªed.SãoPaulo:Malheiros,2008.p.100.

A abordagem do tema será feita, inicialmente, sob a perspectivaconstitucional considerando que o equacionamento da questão exige aconciliação harmônica de dois grupos de bens jurídicos, ambos tuteladospela Constituição de República de 1988. Buscar-se-á solucionar o conflitoatravés do “balanceamento e sopesamento” dos referidos bens jurídicosatravésdatécnicadaponderaçãodeinteressesquepressupõe,emprimeirolugar, a identificação dos princípios ou valores constitucionais relevantesparaasoluçãodoimpasseeaverificaçãodainteraçãodosmesmoscomascircunstânciasfáticassubjacentes.

Emprimeirolugar,destacam-seodireitoaosigilodedadoseodireitoàprivacidade, ambosdireitos fundamentais consagradospelaConstituiçãodaRepública(artigo5º,incisosXeXII,CRFB/88)equeserelacionamcomoprincípiofundamentaldadignidadedapessoahumana(artigo1º,III,CRFB/88).Sãodireitosquesecaracterizamporestabeleceremumaesferadeautonomiaindividual,demarcandoumespaçodentrodoqualnãosedeveinterferir.JoséAfonsodaSilvadefineprivacidadecomoo“conjuntodeinformaçãoacercadoindivíduoqueelepodemantersobseuexclusivocontrole,oucomunicar,decidindoaquem,quando,ondeeemquecondições,semaissopoderserlegalmente sujeito”30.Assim,o conteúdoprima facie dos referidosdireitosremeteàconclusãodequeoEstadodevepreservarosigilodasinformaçõesconstantesdosbancosdedadospúblicos.

Por outro lado, o tema se relaciona com os princípios da ordemeconômica,emespecialavalorizaçãodalivreiniciativa,ecomanecessidadedepromoverodesenvolvimentonacional,finalidadeerigidacomoobjetivofundamental da República Federativa do Brasil (artigo 3º, II, CRFB/88).A consagração da livre iniciativa como princípio fundamental da ordemeconômica(artigo170,caput,CRFB/88)edaRepúblicaFederativadoBrasil(artigo1º,IV,CRFB/88)remeteàpremissadeque“oconstituinteprestigiou

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31BULOS,UadiLammêgo.ConstituiçãoFederalanotada.5ªed.rev.eatual.SãoPaulo:Saraiva,2003.p.1219.32GRAU,ErosRoberto.AordemeconômicanaConstituiçãode1988(Interpretaçãoecrítica).8ªed.rev.eatual.SãoPaulo:Malheiros,2003.p.187.

33Note-sequeoprincípiodaproteçãoaoconsumidorpodefigurardosdois ladosdaequação.Deum lado,oconsumidortemdireitoaqueosseusdadosnãosejamdisponibilizadosaterceirossemoseuconsentimento.Deoutraparte,oacessoaosboletinsdeocorrênciapoderesultaremumamaiorproteçãoaoconsumidor,namedidaemqueseevitaautilizaçãodedocumentoroubadoporfinsimpróprios.Nãoobstante,opresenteestudoseráconduzidosobaperspectivadodireitoàprivacidadeedosprincípiosrelacionadosàordemeconômica.

uma economia demercado, de cunho capitalista”31, cujo desenvolvimentodeveserperseguido.

Alémdisso,alivreiniciativa,comodesdobramentodaliberdade32,introduza ideiadequea intervençãodoPoderPúbliconaordemeconômica,sobaformadeaçãoouomissão,nãodeveimpedirqueasatividadeseconômicassedesenvolvamdeformasatisfatória.Sobessaperspectiva,poder-se-iaalegarque a negativa do acesso pretendido prejudicará a liberdade de iniciativaeconômica,emrazãodoaumentodonúmerodecontrataçõesfraudulentas.

As empresas de proteção ao crédito têm por objetivo reduzir ainadimplência e promover o desenvolvimento do mercado de consumo,atravésdaformaçãodeumbancodedadoscominformaçõesarespeitodepessoasfísicasejurídicas,comvistasaconferirmaiorsegurançaàsempresasquerealizamnegociaçõesqueimpliquememconcessãodecrédito.

Emboraacelebraçãodoconvêniopossaviracontribuircomareduçãoda taxa de juros, conferir maior proteção ao consumidor33 ao evitar quealguémseutilizededocumentoroubadoparapleitearcréditoemaximizarodesenvolvimentonacional,oaplicadordodireitonãopodedesconsideraros demais princípios constitucionais aplicáveis ao caso. Tratando-se de“mandados de otimização”, os princípios se aplicam emmaior ou menorgrau de intensidade, de acordo com a realidade fática subjacente. Assim,o intérprete deve sopesar os valores em jogo a fim de buscar a soluçãoconstitucionalmenteadequadaparaodeslindedaquestão,utilizandoparatantooprincípiodaproporcionalidadecomoparâmetro.

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34PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais: uma contribuiçãoaoestudodasrestriçõesaosdireitosfundamentaisnaperspectivadateoriadosprincípios.RiodeJaneiro:Renovar,2006.p.324.

Naprimeiraetapadoprocessodeverificaçãodaproporcionalidadedeumarestriçãoadireitofundamental,ointérpretedeveanalisarseestaatendeao subprincípio da adequação que exige que “toda restrição aos direitosfundamentais seja idônea para o atendimento de fim constitucionalmentelegítimo”34. Nesse sentido, o hermeneuta deve verificar se os meiosrestritivoscontribuemparasealcançarafinalidadepretendidaeseestefiméconsentâneocomosistemaconstitucional.

O crédito é fator importante para o desenvolvimento do mercadode consumo, pois possibilita a aquisição de bens e serviços por váriosconsumidoresquenãopoderiamcomprar, casonãopudessemsevalerdaconcessãodocréditooudarealizaçãodevendaaprazo.Osbancosdedadosdeproteçãoaocréditotêmcomofinalidadeoarmazenamentodeinformaçõesarespeitodoconsumidor,comoobjetivodereduziroriscodeinadimplementoeconferirsegurançaàstratativasempresariais.Aempresainteressadapodeconsultaroreferidobancodedadosecombasenasinformaçõesalicontidasdecidirarespeitodaconcessãoounãodocrédito.

Éevidentequequantomaioronúmerodeinformaçõessobreocandidatoa crédito,menoraprobabilidadede fraudeseo riscode inadimplemento,fatoresqueprejudicamodesenvolvimentodomercadonacional.Assim,pode-seconsiderarsuperadaaprimeiraetapadoprincípiodaproporcionalidade,tendoemvistaqueamedidarequeridapelaempresadeproteçãodecréditoé adequada, aomenosemprincípio, aofimpor ela apontado,qual seja areduçãodefraudesedoriscodeinadimplementocomapromoçãodemaiorsegurançaaomercadodeconsumoe,emúltimaratio,comapotencializaçãododesenvolvimentonacional,umdosobjetivosfundamentaisdaRepúblicaFederativadoBrasil(artigo3º,II,CRFB/88).

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Asegundaetapadoprincípiodaproporcionalidadeconsistenaverificaçãodosubprincípiodanecessidade,tambémconhecidocomoproibiçãodoexcesso,segundo o qual dentre váriasmedidas restritivas aos direitos fundamentaisigualmente aptas para alcançar a finalidade pretendida, o intérprete deveoptarporaquelamenoslesivaaodireitofundamentalafetado.Nessesentido,amedidaserá“entendidacomonecessáriasemprequenãohouveroutromeiomenosonerosoqueviabilizeaconsecuçãodofim”35.Deacordocomoreferidopostulado,ointérpretedeveverificardoisaspectos:(i)seosmeiosalternativospossuemumgrausuperiorouidênticodeaptidãoparaalcançarafinalidadepretendida;(ii)seasmedidasqueatingemomesmograudesatisfaçãoafetamosdireitosfundamentaisemmenorescala.

Quantoaopretendidoacessoaosdadosde identificaçãocivil,cumpreobservar que aopleitear a concessãode empréstimoou realizar qualquercompraaprazo,oconsumidoréobrigadoaforneceràempresacontratantealguns documentos, rol que abrange, necessariamente, seu documentode identidade com os respectivos dados de identificação. O consumidorinteressadonaconcessãodocréditonãosenegaráaforneceradocumentaçãoexigida.Assimsendo,nãosevislumbrabenefíciodecorrentedaconsultaaobancodedadosdasempresasdeproteçãoaocréditocomoobjetivodeobterinformaçãojáfornecidapeloprópriointeressadoemcontratar.

Alémdisso,osdadosdeidentificaçãocivilnãoseprestamàfinalidadedeavaliarasituaçãofinanceiraeacapacidadedoconsumidordeadimplirasobrigaçõeseventualmentecontraídas.Claramente,ofornecimentodosdadosdeidentificaçãocivilpeloconsumidorimplicaemmenorrestriçãoaodireitofundamentalàprivacidade,namedidaemqueotitulardasinformaçõesavaliaaconveniênciaeoportunidadederepassarseusdadospessoaisaterceiros.

No que tange ao acesso aos boletins de ocorrência policial onde seregistram roubos de documentos, a fim de se verificar se o documento

35Ibidem,p.339.

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apresentado pelo consumidor nomomento da contratação realmente lhepertence ou foi obtido de forma ilícita, o acesso da empresa requerenteaosbancosdedadosdoPoderPúbliconãoé aúnica formade seobter asegurançapretendida.Emprimeirolugar,existemdiversosmeiosatravésdosquaisotitulardosdadospoderáinformarasempresasdeproteçãoaocréditoarespeitodorouboouextraviodeseudocumento.

Em particular, algumas empresas oferecem mecanismos virtuais quepermitem a referida comunicação, como acontece com os registros deboletinsdeocorrênciaon line.Atítulodeexemplo,oSerasaofereceoserviçode cadastramento de documentos roubados, furtados ou perdidos comoobjetivodeevitar fraudesenvolvendoonomeedocumentodocidadão.Atravésdessemecanismo,o consumidor comunicao Serasadoocorridoeeste se encarrega de avisar as empresas, lojas e estabelecimentos que seutilizamdosseusserviços36.

Porfim,quantoaocadastrodeveículosdoDETRANépossívelvislumbrarque o acesso será útil sob duas perspectivas. Primeiramente, o acesso aoreferido cadastro é uma forma de conhecer o número de veículos que oindivíduopossui,informaçãoindicativadeseupatrimônioedesuacapacidadefinanceira. Não obstante, o objeto principal da empresa de proteção decréditoécoletarinformaçõesquedigamrespeitoaobrigaçõesinadimplidas,demodoqueapretensãodeobteracessoadadosqueinformemasituaçãoeconômicaoufinanceiradepessoasfísicasoujurídicasesbarranaproteçãoconferidapelolegisladorconstituinteaodireitoàprivacidade.Guardadasasdevidasproporções,seriaomesmoquepretenderqueaSecretariadaReceitaFederalfranqueasseoacessoàsdeclaraçõesdeImpostodeRenda.Emquepesesejapossívelrealizarum“cruzamento”dedadosentreopatrimôniodoconsumidoresuasdívidasafimdeverificarseopatrimônioésuficienteparagarantirocumprimentodasobrigaçõescontraídas,oacessoaocadastrode

36Paramaioresdetalhes,conferirwww.serasaexperian.com.br

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veículosdoDETRANnãoéessencialàatividadedesenvolvidapelasempresasdeproteçãoaocrédito.

Em segundo lugar, pode-se vislumbrar que o objetivo do acessopretendido sejaobter informaçõesa respeitodeeventuaisfinanciamentosde veículos não quitados. Todavia, o acesso ao cadastro de veículos doDETRANnãopoderárevelaraexistênciadecontratosinadimplidos,umavezquetais informaçõesnãoconstamdocadastrodoórgãodefiscalizaçãodetrânsito.Ademais,ainstituiçãofinanceirafinanciadorajáteráconhecimentode eventual inadimplemento, assim como as empresas de proteção aocrédito,tendoemvistaqueestassãoinformadasimediatamentearespeitodequalquerfinanciamentonãocumprido.

Soma-seatudoisso,ofatodequeasempresasdeproteçãoaocréditodesenvolvemsuasatividadesháanossemacessoaosdadosdeidentificaçãodo cadastro de Carteira de Identidade Civil, aos registros de boletins deocorrência relacionados a roubo de documentos, bem como ao cadastrodeveículosdoDETRAN.Talconstataçãoprejudicaaargumentaçãodequeoacessoàsreferidasinformaçõeséindispensáveledequenãoexistemoutrosmeios,menosgravososaodireitoàprivacidade,paraaelaboraçãodobancodedadosde“mauspagadores”.

Apresentados os motivos pelos quais entendemos que o convêniopretendido não supera o subprincípio da necessidade e considerando apremissadequeapenassepassaparaosubprincípiosubsequenteseoanteriorfor satisfeito, jáestá suficientementedemonstradaadesproporcionalidadeda restrição ao direito fundamental à privacidade e, por conseguinte, aimpossibilidadejurídicadecelebraçãodoajuste.

Todavia, admitindo a hipótese do leitor discordar da argumentaçãoapresentadaeentenderqueoacessoaosdadospleiteadoséindispensávelaodesenvolvimentodomercadoconsumidor,passa-seàanálisedosubprincípioda proporcionalidade em sentido estrito, última etapa do processo de

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soluçãodeantinomiasentreprincípiosconstitucionaispautadanoprincípiodaproporcionalidade.

Segundooreferidosubprincípio,“umarestriçãoadireitosfundamentaisé constitucional se pode ser justificada pela relevância da satisfação doprincípio cuja implementação é buscada pela intervenção”37. Nessa etapa,ointérpretedevecompararograuderestriçãoaodireitofundamentalcoma importânciado valorqueaele se contrapõeeque servede justificativaà restrição. Ou seja, é necessário verificar “se o atendimento à finalidadebuscadapelamedidarestritivacompensaosprejuízosquedestaadvenhamparaosdireitosfundamentais”38.

Trata-se de estabelecer uma “atribuição de peso” ou uma “relaçãode precedência”39 entre os princípios aplicáveis e determinar qual delesprevaleceráemdeterminadasituaçãohermenêutica.Parafinsdeidentificaçãodo bem jurídico preponderante, a doutrina especializada faz a seguintedistinção:(i)pesoconcreto:édefinidoapartirdacomparaçãoquantitativaentreaintensidadedarestriçãoimpostaaodireitofundamentaleograudesatisfaçãodoprincípiocontrapostoqueservedefundamentoàrestrição;(ii)pesoabstrato:édeterminadodeacordocomarelevânciaaxiológicaqueoprincípioassumenosistemaconstitucional40.

Emprimeirolugar,ograuderestriçãoaodireitofundamentalàprivacidadeé intenso e imediato. A celebração de convênio entre o Poder Público eempresadeproteção ao crédito, comoobjetivode franquear o acesso aosbancos de dados públicos, afeta o direito à privacidade dos indivíduos queteriam seus dados disponibilizados sem qualquer manifestação de vontade

37PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais: uma contribuiçãoaoestudodasrestriçõesaosdireitosfundamentaisnaperspectivadateoriadosprincípios.RiodeJaneiro:Renovar,2006.p.346.

38Ibidem,p.346.39Ibidem,p.346.40Ibidem,p.347.

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nessesentido.Poroutrolado,opretendidodesenvolvimentonacionaléumamerasuposição,poisnadagarantequeoacessoaosbancosdedadospúblicosreduzirá a taxa de juros ou aumentará o número de obrigações adimplidas.Assim,odesenvolvimentonacionaléumaconjecturaincerta,cujosefeitosnãosãoobserváveisnocurtoprazo.

Quantoàdeterminaçãodopesoconcretodosprincípioscontrapostos,entendemos que o desenvolvimento nacional vislumbrado, incerto efuturo,nãoésuficienteparacompensarosprejuízos,intensoseimediatos,advindosdarestriçãoaodireito fundamentalàprivacidadedoscidadãos.A celebração do convênio pretendido será excessivamente onerosa em vista dos duvidosos efeitos que gerará para o desenvolvimento dasatividadeseconômicas.

Porfim,naúltimaetapadaproporcionalidadeemsentidoescrito, ointérpretedevedecidirpelapreponderânciadoprincípioquetenhamaiorrelevância material na axiologia constitucional, decisão esta que develevaremconsideraçãooconceitodepesoabstrato.Esteestárelacionadoao grau de fundamentalidade do direito que será proporcional à suacapacidadede realizarosvalores inerentesaoconstitucionalismo,dentreosquaissedestacaoprincípiodadignidadedapessoahumana41.Deacordocom o Supremo Tribunal Federal, o postulado da dignidade da pessoahumanapossuiumaprevalênciaaxiológicasobretodasasdemaisnormasconstitucionais e “deve servir como fiel da balança para a definição do peso abstrato de cada princípio jurídico estabelecido na ConstituiçãoFederalde1988”42.

O direito à privacidade introduz a ideia da “existência de um âmbitopróprio e reservado em face de atuação e conhecimento dos demais,

41Ibidem,p.347-348.42RE 363889/DF, Rel. Min. Dias Toffoli. Voto-vista do Min. Luiz Fux. Acórdão pendente de publicação –TranscriçõesdoInformativo631,STF.

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43ConsideraçõesdeIngoWolfganfSarletarespeitodadecisãoproferidapeloTribunalConstitucionaldaEspanhanorecursodeamparonº4015/96.SARLET,IngoWolfgang.DignidadedaPessoaHumanaeDireitosFundamentaisnaConstituiçãoFederalde1988.9ªed.rev.eatual.PortoAlegre:LivrariadoAdvogado,2011.p.104.

44BARCELLOS,AnaPaulade.Ponderação,racionalidadeeatividadejurisdicional.RiodeJaneiro:Renovar,2005.

indispensávelàmanutençãodeumaqualidademínimadevidahumana”43.De outro lado, os princípios relacionados à atividade econômica visam,em primeiro plano, interesses patrimoniais. Embora o desenvolvimentonacional resulte, indiretamente, na melhoria da qualidade de vida doscidadãos,odireitofundamentalàprivacidadepossuiumgraumaisintensode fundamentalidade, namedida em que contribui emmaior escala coma promoção da dignidade da pessoa humana. Além disso, é corrente oentendimentodoutrinárionosentidodequeanormaquedeformadiretaprotejaadignidadedapessoahumanadeveprevalecersobreoutranormaqueapenasindiretamentepromovaoreferidoprincípio44.

Feitaaanálisedaquestãosobaperspectivaconstitucional,éelucidativoverificarseaquestãojáfoiregulamentadaemâmbitoinfraconstitucionalequaloresultadodaponderaçãoempreendidapelolegisladordemocraticamenteeleito. Para tanto, deve-se investigar a existência de legislação que versesobreo graude sigilo a ser conferido aos bancos dedados públicos, bemcomoseexisteautorização legislativaparaqueoPoderPúblico restrinjaoâmbito normativo do referido direito fundamental em prol de outro bemjurídicoconstitucionalmentetutelado.

Para tanto, cumpre analisar a Lei Federal 12.414 de 09 de junho de2011,legislaçãoquetemcomoobjetivocriarochamado“cadastropositivodecrédito”,comvistasapossibilitarumamelhoranálisedoriscodecrédito,promoverareduçãodataxadejurosereduzirainadimplêncianomercadode

6.Análisedaconsultaàluzda Lei12.414/2011

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consumo.Aregulamentaçãoarespeitoda“formaçãoeconsultaabancodedadoscominformaçõesdeadimplementodepessoasnaturaisoudepessoasjurídicas,paraa formaçãodehistóricodecrédito”se iniciouemdezembrode2010,comaMedidaProvisória518/2010,cujoconteúdodeuorigemàLei12.414/2011,recentementepublicada.

O“cadastropositivodecrédito”temcomoobjetivoformarumbancodedadosquereúnainformaçõespositivassobreosconsumidores,relacionadasà satisfaçãode suasobrigaçõesfinanceirase creditícias. Éumaespéciedecadastrode“bonspagadores”quepossibilitaoregistrodocomportamentofinanceirodoconsumidor,bemcomoseuconhecimentopelasentidadesquerealizamtransaçõesqueimpliquemriscofinanceiro,visandoconferirmaiorsegurança às negociações empresariais que se utilizem da concessão decrédito,reduzirataxadejurosanteomenorriscodeinadimplementoe,porfim,fomentarodesenvolvimentodomercadofinanceironacional.

Depreende-se da leitura da Lei 12.414/2011 que o legisladorinfraconstitucionalsepreocupou,emdiversosmomentos,comapreservaçãododireitoàprivacidadedointeressadoemobterum“cadastropositivodecrédito”.

Em primeiro lugar, a abertura do cadastro depende de autorizaçãopréviadopotencialcadastrado,medianteconsentimentoinequívoco(artigos4º,capute8º,incisoI),requisitoqueseextraidaprópriadefiniçãolegaldecadastradoprevistanoartigo2º,incisoIIIdaLei12.414/2011:“pessoanaturaloujurídicaquetenhaautorizadoinclusãodesuasinformaçõesnobancodedados”. Os cadastros não autorizados eventualmente abertos devem sercancelados,semprejuízodaaplicaçãodesançõespelosórgãosdeproteçãoe defesa do consumidor da União, dos Estados, do Distrito Federal e dosMunicípios,nassuasrespectivasáreasdecompetência(artigo17).

Alémdecondicionaraformaçãodobancodedadosàautorizaçãoformaldointeressado,olegisladorcrioumecanismosquetêmcomoobjetivoconferirsegurançaao cadastradoquantoao tratamentoa serdispensadoaosdadospessoais fornecidos. O cadastrado tem o direito de ser informado sobre a

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identidade da pessoa jurídica responsável pela administração do banco dedados, bem como sobre as entidades que tiveram acesso aos seus dadosnocasodecompartilhamento(artigos5º,incisoV;6º,IIIeIV).Alémdisso,olegisladorrestringiuautilizaçãodasinformaçõesdisponibilizadasnosbancosdedados,demodoqueelasapenaspoderãosercompartilhadascomoobjetivode analisar o riscode créditodo cadastrado afimde subsidiar negociaçõesempresariaisqueimpliquememalgumaespéciederiscofinanceiro(artigos5º,VII;7º),sendovedadoocompartilhamentodosdadospessoaisparaoutrosfins.

Acrescenta-se, ainda, que a lei faculta ao cadastrado a solicitação decancelamento do cadastro, quando assim entender conveniente (artigo5º, inciso I). Tal possibilidadedeixa clara apreocupaçãodo legislador coma voluntariedade do cadastro positivo, posto que ao mesmo tempo emque condicionaa aberturado cadastroà autorizaçãopréviaeexpressadointeressado,admitearevogaçãodoconsentimentoanterior,desdequehajasolicitaçãodotitulardosdadosnessesentido.

Emquepeseaexistênciadecríticasnosentidodequeaexigênciadeautorizaçãopréviaparaaberturadocadastropositivonãoésuficienteparaprotegeraprivacidadedoscidadãos45,ficaclaroqueodireitofundamentalà privacidade foi considerado como valor de extrema relevância pelolegisladorinfraconstitucional.

Taisconsideraçõessereforçamnamedidaemquedoisdostrêsdispositivoslegaisvetadostiveramcomojustificativaaviolaçãoaodireitoàprivacidadedocadastradoeaocarátervoluntárioinerenteàformaçãodocadastropositivo46.

45“Otemaébastantepolêmicoetemdivididoasopiniõesdeórgãoseentidadesdedefesadoconsumidor.Afinal,qualooutroladodamoeda?Sesetratadepossívelbenefícioaoconsumidor,porqueo“cadastropositivo”estálongedeserumaunanimidade?Basicamenteporduasrazões.Primeira:muitosnãoacreditamnumaefetivareduçãodejurosaotomadordeempréstimo.Segunda:otratamentodeinformaçõespositivasrepresenta,emúltimaanálise,ofensaàprivacidadedoconsumidor.(...)Alémdisso,oaumentodenúmerodeinformaçõespessoaispoderepresentarofensaàdignidadedapessoahumana,aosdireitosdapersonalidade(privacidadeehonra).Atualmente,amaiorpreocupaçãoemtornodotemadizrespeitojustamenteàexistênciadelimitesaotratamento(coleta,armazenamentoedifusão)deinformaçõespessoais,considerandoagrandefacilidadequeaevoluçãoinformáticapermitenestaárea”.BESSA,LeonardoRoscoe.CadastroPositivo.Disponívelem:<http://www.brasilcon.org.br/web/artigos/artigosver.asp?id=28>.Acessoem:08ago.2011.

46MensagemdeVetonº188de09jun.2011.

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Note-se que o direito fundamental à privacidade foi privilegiado pelolegisladorordinário,emquepeseoobjetodaLei12.414/2011seracriaçãode banco de dados com informações relacionadas ao adimplemento deobrigações com vistas à formação de histórico de crédito que beneficie oprópriocadastrado.Ouseja,mesmoqueobancodedadossejaformadoporinformaçõespositivase tenhacomofinalidadeprincipal favorecerotitulardosdadosnoquetangeàconcessãodecrédito,considerou-seimprescindívelaproteçãododireitoàprivacidadedoscidadãos.

Percebe-se que a argumentação constitucional anteriormenteempreendida é corroborada pela ponderação realizada pelo legisladorinfraconstitucional que, ao editar da Lei 12.414/2011, deixou clara a suapreferênciapelaprivacidade.

AleituraatentadaLei12.414/2011levaàconclusãodequeareferidalegislaçãonãodispõearespeitodograudesigiloaserconferidoaosbancosdedadosmantidospeloPoderPúblico.Talconstataçãoéavalizadapelapróprialei do “cadastro positivo” que no artigo 1º, § único47 remete a disciplinadosbancosdedadosinstituídosemantidosporpessoasjurídicasdedireitopúblicointernoàlegislaçãoespecífica,atéopresentemomentoinexistente.

Constatada a ausência de regulamentação a respeito do sigilo a serconferido aos bancos de dados públicos, torna-se possível a utilização daanalogiacomotécnicaaptaapreencheralacunanormativa.Ainterpretaçãoanalógica, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal48,

47Artigo 1º, parágrafo único, Lei 12.414/2011: “Os bancos de dados instituídos oumantidos por pessoasjurídicasdedireitopúblicoserãoregidosporlegislaçãoespecífica”.

48Em recente julgamento sobreauniãohomoafetiva,o SupremoTribunal Federal reconheceuaexistênciadelacunanormativasobreaquestãoe“consideroucabívelomecanismodaintegraçãoanalógicaparaquesejamaplicadas àsuniõeshomoafetivas asprescrições legais relativas àsuniõesestáveisheterossexuais,excluídasaquelasqueexijamadiversidadedesexoparaoseuexercício,atéqueoCongressoNacionallhedê tratamento legislativo. (…) O Presidente aludiu que a aplicação da analogia decorreria da similitudefactualentreauniãoestáveleahomoafetiva,contudo,nãoincidiriamtodasasnormasconcernentesàquelaentidade,porquenãosetratariadeequiparação.”Informativo625,STF(ADI4277/DFeADPF132/RJ,Rel.Min.AyresBritto.Julgamento:04e05/05/2011).

Sibele Cristina Boger Feitosa

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pressupõeque,existindosemelhançaentreashipóteses,ocasodesprovidoderegulamentaçãonormativadevereceberomesmotratamentoatribuídoàsituaçãoreguladapelanorma.

Ora, se o legislador exige autorização prévia do potencial cadastradoparaaaberturadecadastroqueobjetivaarmazenarinformaçõespositivas,éilógicoadmitirqueoPoderPúblicofranqueieoacessoaosbancosdedadospúblicosàempresaprivadadeproteçãoaocréditoparaformaçãodecadastroquetemcomofimidentificaros“mauspagadores”,semqualquerautorizaçãodotitulardosdadosnessesentido.

Ante o exposto, seja pela argumentação constitucional pautada noprincípio da proporcionalidade, seja pela interpretação analógica realizadacom fulcro nas diretrizes estabelecidas pela Lei 12.4141/2011, chega-se aconclusãodequeodireitoàprivacidadedeveprevaleceremdetrimentodosinteressespatrimoniaiseeconômicos relacionadosaodesenvolvimentodomercadonacional.

Por todas essas razões, concluímos pela impossibilidade jurídica dacelebração de convênio entre o Poder Público e empresa de proteção aocréditocomoobjetivodefraquearoacessoaosbancosdedadospúblicos.OEstado,como instituiçãopoliticamenteorganizadaeadstritaaosdireitosfundamentais, deve proteger o direito à privacidade e preservar o sigilodos dados constantes dos cadastros públicos. A materialização do ajustepretendido pela empresa requerente será demasiadamente prejudicialao direito à privacidade dos cidadãos quando comparada aos eventuais eincertosbenefíciosquegeraráparaodesenvolvimentodomercadonacional.

Opresenteestudobuscousolucionaratensãoentreodireitoaosigilode dados e a preocupação do constituinte de garantir o desenvolvimento

7.Conclusões

O Sigilo de Dados e a Vinculação do Poder Público aos Direitos Fundamentais.

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econômico. A questão analisada diz respeito à consulta formulada àProcuradoria-Geral do Estado a respeito da possibilidade de celebraçãode convênio entre o Estado e empresa de proteção ao crédito visando àliberaçãodoacessoaosdadosde identificaçãodo cadastrodeCarteiradeIdentidadeCivil,aosregistrosdeboletinsdeocorrênciarelacionadosaroubode documentos, bem como ao cadastro de veículos do DETRAN, com oobjetivodereduzironúmerodefraudescometidasnoâmbitoempresarial.

Otrabalhofoiconduzidosobduasperspectivas.Sobaóticaconstitucional,o equacionamento do impasse se pautou pelo “balanceamento esopesamento”dosreferidosbensjurídicos,atravésdométododaponderaçãodeinteressesedoprincípiodaproporcionalidade,noquetangeaosseustrêssubprincípios.Poroutrolado,analisou-seaLei12.414/2011sobaperspectivadainterpretaçãoanalógica,admitindo-sesemelhançaentreashipóteses.

Oestudolevouàsseguintesconclusões:

1. Sobo enfoque constitucional, concluiu-se, emprimeiro lugar queamedidapleiteadapelaempresarequerenteéaptaapromoverafinalidadepretendida,razãopelaqualrestasuperadoosubprincípiodaadequação.Ummaiornúmerodeinformaçõescontribui,emtese,paraamaiorsegurançanastratativasempresariaisepotencializaodesenvolvimentodaeconomiacapitalistademercado.

2. Sobamesmaperspectiva,entendeu-sequeasituaçãoconcretanãoultrapassaosubprincípiodanecessidade,tendoemvistaaexistênciademeiosmenosonerososaodireitofundamentalàprivacidadequepromovemoobjetivoalmejadocomamesmaintensidade.

3. Ainda sob a ótica constitucional, no que tange à última etapa, ocaráter incertoefuturododesenvolvimentodomercadonacionalconduz à conclusão de que o atendimento da finalidade buscadanão compensa os prejuízos acarretados ao direito fundamental àprivacidadedosindivíduos,situaçãoqueesbarranosubprincípiodaproporcionalidadeemsentidoestrito.

Sibele Cristina Boger Feitosa

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4. Quantoàinterpretaçãoanalógica,concluiu-sequeinexistelegislaçãoinfraconstitucional dispondo sobreaproteçãoa ser conferidaaosbancosdedadospúblicos.Emparticular,aLei12.414/2011apesardenãodispor sobreo sigilo a ser atribuído aos bancos dedadosmantidos pelo Poder Público, disciplina a construção de bancosdedadoscom informaçõesdeadimplementoparaa formaçãodehistórico de crédito. Assim, a analogia surge como técnica apta apreencheralacunanormativa.

5. A interpretação analógica conduz à impossibilidade do Estadopermitir o acesso das empresas de proteção ao crédito àsinformações pessoais constantes dos bancos de dados públicos,pois,seolegisladorexigeaautorizaçãodotitulardosdadosparaaaberturadecadastroqueobjetivaarmazenarinformaçõespositivasa respeito do indivíduo, commaior razão a autorização deve serexigidaparaocompartilhamentodedadoscomvistasàformaçãodecadastrode“mauspagadores”.

6. Em síntese, seja pela argumentação constitucional pautada noprincípio da proporcionalidade, seja pela interpretação analógicarealizada com fulcro nas diretrizes estabelecidas pela Lei12.414/2011, concluiu-se pela impossibilidade da celebração doconvêniopretendidopelaempresarequerente.