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FREDERICO VIEIRA GOMIDE
AS CONSEQUÊNCIAS DA MODERNIDADE
A NOÇÃO DE BLASÉ E O MAL-ESTAR NAS RELAÇÕES PÓS-MODERNAS
CURITIBA
2007
i
FREDERICO VIEIRA GOMIDE
AS CONSEQUÊNCIAS DA MODERNIDADE
A NOÇÃO DE BLASÉ E O MAL-ESTAR NAS RELAÇÕES PÓS-MODERNAS
Monografia apresentada para a obtenção do Grau
de Bacharel no Curso de Ciências Sociais, Setor
de Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal do Paraná.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Miriam Adelman.
CURITIBA
2007
ii
AGRADECIMENTOS
Agradeço inicialmente o esforço e dedicação de Miriam Adelman em minha formação
enquanto sociólogo e pessoa. O exercício de nossas reflexões me levou a um amadurecimento
pessoal, teórico e, certamente, epistemológico em minhas relações e representações com e do
mundo.
Igualmente, agradeço Ana Luísa Sallas e Marlene Taminini a aceitação do convite em
participarem da minha banca. Certamente é revigorante pensá-las como leitoras críticas do meu
trabalho. Em especial agradeço a Marlene, com quem tive bons momentos de reflexão acerca da
metodologia sociológica em nossas aulas de Métodos e a Ana, pelo modo como conduzia nossas
discussões nas aulas de Imagem e Conhecimento.
Agradeço também o esforço de Benilde Motim junto a Asociación de Universidades
Grupo Montevidéo (AUGM), o qual me levou a experimentar 4 maravilhosos meses na
Argentina. Em particular agradeço também aos professores Dimas Floriani e Alexandro Dantas,
pelas incursões epistemológicas e o modo como me fizeram pensar a essência do (ser) sociólogo.
De uma maneira extremamente especial, agradeço aos meus pais, peças-chave da minha
formação e a quem devo muito do que sou, do que já fui e do que quero ser. Pessoas a quem hoje
reconheço e agradeço com a maturidade, sensibilidade e humildade de um filho eternamente
agradecido e imensamente lisonjeado pelo esforço e paciência dedicados em minha educação.
Vocês são pessoas maravilhosas, obrigado!
Por fim, agradeço a pessoa com quem há mais 3 anos re-organizo e re-articulo minha
experiência e o modo como represento meu mundo. Esta pessoa acompanha, incentiva e participa
das minhas conquistas, meus projetos, minhas realizações, minhas expectativas e frustrações,
fazendo com que cada dia mais o meu se torno nosso. Cris, devo a você muito da forma como me
fez amadurecer e crescer, fazendo com que eu olhasse para quem eu quero ser com os olhos de
quem já sou. Te amo.
Agora sim, que venha o mundo!
iii
Não há, pois, razão de duvidar da eficácia de certas
práticas mágicas. Mas, vê-se, ao mesmo tempo, que a
eficácia da magia implica na crença da magia, e que
esta se apresenta sob três aspectos complementares:
existe, inicialmente, a crença do feiticeiro na eficácia de
suas técnicas; em seguida, a crença do doente que ele
cura, ou da vítima que ele persegue, no poder do próprio
feiticeiro; finalmente, a confiança e as exigências da
opinião coletiva, que formam à cada instante uma
espécie de campo de gravitação no seio do qual se
definem e se situam as relações entre o feiticeiro e
aqueles que ele enfeitiça.
Claude Lévi-Strauss, O feiticeiro e sua magia.
Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de
nós mesmos somos desconhecidos – e não sem motivo.
Nunca nos procuramos: como poderia acontecer que um
dia nos encontrássemos? Com razão alguém disse:
“onde estiver teu tesouro, estará também teu coração”.
Nosso tesouro está onde estão as colméias do nosso conhecimento. Estamos sempre a caminho delas, sendo
por natureza criaturas aladas e coletoras do mel do
espírito, tendo no coração apenas um propósito – levar
algo “para casa”. Quanto ao mais da vida, as chamadas
“vivências”, qual de nós pode levá-las a sério? Ou ter
tempo para elas? Nas experiências presentes, receio,
estamos sempre “ausentes”: nelas não temos nosso
coração – para elas não temos ouvidos. Antes, como
alguém divinamente imerso em si, a quem os sinos
acabam de estrondear no ouvido as doze batidas do
meio-dia, e súbito acorda e se pergunta “o que foi que
soou?”, também nós por vezes abrimos depois os
ouvidos e perguntamos, surpresos e perplexos
inteiramente, “o que foi que vivemos?”, e também
“quem somos realmente?”, e em seguida contamos,
depois, como disse, as doze vibrantes batidas da nossa
vivência, da nossa vida, nosso ser – ah! e contamos errado...
Friedrich Nietzsche, Genealogia da Moral.
v
SUMÁRIO
RESUMO ........................................................................................................................... vi
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 7
1. AS CONSEQUÊNCIAS DA MODERNIDADE ......................................................... 14
2. A NOÇÃO DE BLASÉ .................................................................................................. 24
3. O MAL-ESTAR NAS RELAÇÕES PÓS-MODERNAS ........................................... 35
4. RELAÇÕES E REPRESENTAÇÕES DA PÓS-MODERNIDADE EM CRASH
E CLUBE DA LUTA ........................................................................................................ 44
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 51
REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 54
vi
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo o resgate de algumas das colocações mais persuasivas sobre o processo de modernização das esferas objetiva e subjetiva da vida humana. A partir de uma re-articulação de conceitos de Giddens, Simmel e Bauman, a proposta teórica deste texto é identificar as relações e as possibilidades de diálogo entre as conseqüências da modernidade, a noção de blasé e o mal-estar nas relações pós-modernas. Partindo do pressuposto de que a forma como o processo de desencaixe institucional da modernidade opera mudanças significativas no processo como re-organizamos e re-articulamos o modo como (nos) relacionamos e (nos) representamos entre si e com nós mesmos, trataremos aqui este processo sob as noções de reflexividade, da construção de um projeto através do qual o indivíduo organiza sua experiência no mundo, do surgimento de uma vida mental própria da (pós-)modernidade e de novas relações negociadas entre o local e o global no sentimento e noção de mal-estar que a modernidade líquida imputa às nossas relações e representações. Num último momento, abordo estas premissas através da importância e viabilidade em pensarmos estes termos em manifestações artísticas através dos filmes Crash – No Limite e Clube da Luta. Desta forma, este texto trata dos impactos, ou antes das conseqüências da modernidade no processo de constante e crescente (re)visão do mundo através das idéias lançadas de reflexivização do social, blaseificação da vida e o princípio fundante da pós-modernidade através da renegociação entre os ideais de pureza e ordem.
Palavras-chave: reflexividade, blasé, pós-modernidade, identidade, representação.
7
INTRODUÇÃO
Gostaria de iniciar este trabalho fazendo um resgate da trajetória pela qual seu projeto
inicial passou até que tivéssemos hoje o presente texto. Certamente a partir desta retrospectiva
não apenas meu objeto, meu objetivo e minhas pretensões ficarão mais claros, mas também o
modo como (re)construí ao longo dos últimos dois anos cada idéia e cada nuance deste texto.
Queiram me permitir aqui que eu dê voz e forma aos pensamentos, frustrações e expectativas que
venho experimentando ao longo deste projeto e da minha trajetória acadêmica.
A idéia original deste trabalho surgiu em 2005 do convite da Profª Miriam Adelman para
que eu participasse como bolsista do Grupo de Estudos Cinema e Violência. Desde então, passei
a me interessar por questões ligadas às formas e representações da violência no cinema,
sobretudo no que tange à cinematografia dos últimos 10 anos. Paralelo a este período, dei início
aos estudos de Métodos e Técnicas de Pesquisa em Sociologia com a Profª Marlene Taminini.
Não por acaso, decidi por bem juntar meu interesse em estudar o modo como diferentes
representações/relações da violência se davam em filmes das décadas de 1990 e 2000 à
necessidade do momento de se formular e pensar um projeto de pesquisa, já com olhos no texto
que viria a apresentar como trabalho final de conclusão do curso.
Daí surgiu a primeira idéia para este trabalho. O projeto inicial foi intitulado
“Representações da pós-modernidade no cinema: Uma pretendida correlação entre sujeito pós-
moderno e indivíduo blasé” e visava, como seu título mesmo sugere, abordar representações da
pós-modernidade nos filmes Fight Club (EUA, 1999, David Fincher) e Crash (EUA, 2004, Paul
Haggis) sob um olhar epistemologicamente aguçado e a fim de lançar uma correlação entre
sujeito pós-moderno e indivíduo blasé. Na realidade, introduzir a questão do cinema naquele
momento poderia ser um modo através do qual eu buscaria legitimar os enunciados que, não por
acaso, davam e dariam base ao trabalho. Ainda hoje acredito que trabalhar com esta idéia não me
deixa numa posição metodológica, epistemológica e teórica muito confortável, já que desde
aquele momento sentia que introduzir estes filmes em minha discussão poderia comprometer
numa certa medida a idéia mesmo de fazer destes filmes representações per si da pós-
modernidade, no sentido talvez de que reificar meu objeto através do cinema poderia ser um
modo não muito “objetivo” de dar ao trabalho sua legitimidade. Contudo, as vantagens e
8
benefícios de fazê-lo acabaram sobrepujando minha flagrante suspeita. Desta forma, tomo neste
trabalho o cinema como fonte não apenas de novas sociabilidades, mas também como elemento
estruturante e estruturado de novas possibilidades e subjetividades na pós-modernidade, na
medida em que o cinema e, de modo particular os filmes aqui presentes, são representações
representadas e representantes de um novo arranjo de relações instaurado pelas consequências
da modernidade. A inserção destes dois filmes no projeto se dá pela importância de (re)conhecer
novos aspectos das sociabilidades e subjetividades pós-modernas, trazendo à luz um novo viés na
constante e crescente (re)visão das relações e representações que os indivíduos mantêm com e em
seus meios sociais.
No entanto, à despeito da tentadora idéia de se introduzir o cinema nesta discussão, desde
o começo o objetivo inicial e majoritário era abordar as relações e as representações da/na pós-
modernidade, sobretudo no sentido de dar-lhe forma sob o conceito simmeliano de blasé,
sugerindo que o indivíduo pós-moderno seria, por essência e por escolha1, blasé em seu íntimo
subjetivo. Esta parte do projeto segue quase inalterada em grande parte, mas um processo foi
fazendo com que eu gradativamente revisse o nível de interação concebido e projetado entre os
conceitos de blasé e pós-moderno.
Embora o propósito do presente texto ainda seja abordar estes conceitos, o grau de
(inter)ação que naquele momento eu sugeria entre estas noções deixou e deixava de ser o foco
predominante. Aos poucos abandonava o projeto se de construir uma “pretendida correlação”
entre o blasé e o pós-moderno, adotando cada vez mais uma postura de possibilidade entre estes
termos. Esta possibilidade aqui não se refere ao seu significado lógico nem matemático, mas
senão a uma vigilância epistemológica que procuro dedicar e ter no tratamento do meu recorte
teórico, conceptual e metodológico.
Aqui compreendida, esta possibilidade seria a maneira através da qual estaria analisando
as representações da pós-modernidade no cinema, trazendo para o cerne da discussão as
possibilidades de tangência entre a noção de blasé e a noção de pós-moderno.
No entanto, este projeto e texto foram recebendo seus últimos contornos à medida que
(re)pensava minha temática e minhas perspectivas. Isso me levou a repensar o objeto, o tema e as
hipóteses deste projeto, sobretudo as hipóteses... Ao abandonar a idéia de “pretendida correlação”
1 Pretendia por esta (suposta) escolha um diálogo com autores pós-modernos que apregoam a possibilidade de se escolher as identidades em tempos recentes, deslocando para o sujeito as razões – e também as consequências -, de seus comportamentos.
9
de se trabalhar com as noções de blasé e pós-moderno, abandonava na realidade algo da
concepção que tinha de pós-modernidade, de suas relações e de suas representações. Esta
mudança se dava na exata medida em que a sugestão de que o sujeito pós-moderno seria por
essência e por escolha blasé me parecia cada vez mais autoritária e impositiva da minha parte.
Talvez neste momento tenha adotado uma postura menos blasé e mais pós-moderna ao repensar o
escopo deste trabalho. Veremos.
O resultado final desta trajetória é o presente texto, intitulado de uma maneira bastante
estratégica e concisa como “As consequências da modernidade: A noção de blasé e o mal-estar
nas relações pós-modernas”. É o produto final de todas as reflexões, decepções, expectativas e
esperanças que venho experimentando ao longo dos últimos dois anos. Não apenas no sentido de
conceber corpo e alma a este projeto, mas sobretudo no sentido de (re)pensar e (res)significar
minha trajetória acadêmica a partir de um conjunto de conceitos, teorias e experiências
epistemológicas.
Primeiramente, este título foi pensando e construído na medida em que retrata fielmente o
que aqui hoje se propõe, a saber, um resgate teórico de algumas das mais discutidas idéias e
conceitos da teoria sociológica contemporânea a partir de uma ressignificação da noção
simmeliana de blasé. Num segundo momento, este título é oportuno também porque reflete o
modo lógico e cronológico com o qual vou trabalhar na análise e reflexão das relações e
representações pós-modernas. Por fim, reflete a essência deste trabalho, um texto despretensioso,
simples e bastante lógico e que tem por objetivo implícito valorar um exercício de “vigilância
epistemológica” no tratamento das temáticas pós-modernas.
Num primeiro momento serão abordadas as consequências da modernidade através da
teoria de Anthony Giddens, atualmente um dos nomes mais expressivos da teoria social
contemporânea. Aqui pretendo dedicar espaço para discutirmos e pensarmos seus principais
conceitos e a forma como estes podem ser articulados na compreensão dos fenômenos pós-
modernos. Noções como as de reflexividade, encaixe/desencaixe, identidade e subjetividade
estarão aqui presentes a fim de que possamos construir um eixo teórico e conceptual no qual a
“noção de blasé e o mal-estar nas relações pós-modernas” não apenas façam sentido e sejam
viáveis de análise e reflexão, mas também que possam permitir melhor entendimento da lógica e
(des)continuidades da (pós-)modernidade.
10
Seguindo suas principais colocações, estaremos neste primeiro momento entrando em
contato com a constituição da modernidade e a forma como ela transfere à alta modernidade ou
modernidade tardia seu legado de “radicalização” do que lhe é próprio e do que lhe constitui:
em vez de estarmos entrando num período de pós-modernidade, estamos alcançando um
período em que as consequências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas
e universalizadas do que antes. Além da modernidade, devo argumentar, podemos
perceber os contornos de uma ordem nova e diferente, que é “pós-moderna”; mas isto é
bem diferente do que é atualmente chamado por muitos de “pós-modernidade”. [...] O
que quero sublinhar é aquela descontinuidade específica, ou conjunto de
descontinuidades, associados ao período moderno. (GIDDENS, 1991, p. 13-14).
A construção desta primeira parte permite que não apenas introduzamos os temas e
nuances próprios da pós-modernidade, mas senão também elementos fundamentais que deram
origem aos contornos e estruturas que perpassam a alta modernidade de modo a lhe imputar
características tão distintas e peculiares experimentadas pela sociedade humana. É justamente
neste sentido que em seguida dou inicio à discussão da teoria simmeliana, na medida em que a
modernidade e a pós-modernidade gozam de fronteiras e (des)continuidades elementares para o
entendimento dos processos de objetivação e subjetivação da cultura e das relações sociais.
Deste modo, em Georg Simmel encontraremos nossas bases teóricas e conceptuais para
entendermos e discutirmos a constituição de uma vida mental particular às relações e
representações estabelecidas na modernidade, de tal modo a introduzir a noção de blasé já num
ambiente propício para pensarmos sua relação com as consequências da modernidade e o mal-
estar nas relações pós-modernas. Esta parte se dará novamente fazendo um resgate dos principais
conceitos da teoria de Simmel e trazendo à luz sua concepção dos fenômenos modernos, no
sentido em que “os mesmos fatores que assim redundaram na exatidão e precisão da forma de
vida [moderna] redundaram também em uma estrutura da mais alta impessoalidade; por outro
lado, promoveram uma subjetividade altamente pessoal” (SIMMEL, 1987, p. 18).
É através deste recorte e entendimento epistemológico que introduzirei Zygmunt Bauman
em minha discussão, na medida em que o processo de (pós-)modernização das relações e
representações atuam no duplo sentido subjetivar e objetivar a cultura e seus processos de
construção de identidade. É no momento em que o indivíduo se encontra livre dos seus laços
pessoais mais antigos que ele se vê preso numa nova lógica de relações e representações, estas
11
agora pautadas por uma busca incessante de satisfação, identidade e liberdade. A noção de mal-
estar com a qual quero aqui trabalhar é justamente esta que nos permite lembrar do blasé
simmeliano, já que a constituição da vida social e mental deste indivíduo tem origem nas
fronteiras e (des)continuidades entre a modernidade e a pós-modernidade.
O resgate teórico desta parte do trabalho se dará baseado nos conceitos de Bauman ou,
antes disso, tal qual opero no decorrer de todo o texto, o elementar aqui é a concepção do autor
acerca da modernidade e das relações e representações pós-modernas, de tal forma que tenhamos
além de um recorte teórico também um recorte conceptual e epistemológico. Aqui estaremos
portanto lançando mão da noção de modernidade líquida e, evidentemente, da noção de “mal-
estar da pós-modernidade”, a qual aparece incrustada no processo de trocas e re(significações) a
que as relações e representações pós-modernas impelem os indivíduos nos processos de
objetivação e subjetivação de suas identidades.
Em se tratando de um trabalho essencialmente teórico, permitam aqui que eu lance mão
de uma idéia utilizada por Pedro Paulo de Oliveira no momento de esboçar a metodologia do seu
trabalho:
para realizar este intento parto da premissa de que a masculinidade articula e constitui
um dos estratos da região do socius, esse espaço-processual ou processo-espacializante
dinâmico, intangível, mas efetivo, que compreende todos os objetos da vida social
(agentes, leis, instituições, símbolos, valores etc.), ao lado ou mesmo articulada a outros
como nacionalidade, religião, profissão, grupos de status, posição de inserção social,
região de origem, etnia, grupo de idade etc. Esta premissa deve ser considerada dentro
daquilo que chamo de teoria da imbricação dos estratos sociais (entendidos aqui como
lugares simbólicos de sentido estruturante), pois, enquanto estrato, a masculinidade
articula-se, ladeia, esparrama-se rizomaticamente junto aos demais (OLIVEIRA, 2004,
p. 15).
Não obstante as evidentes diferenças entre cada trabalho em termos de objeto, o que se
pretende aqui em termos de metodologia é algo bastante semelhante ao utilizado por Oliveira, já
que este texto trabalha com a noção de relações e representações pós-modernas dentro de um
conjunto teórico e de premissas conceptuais bem e previamente estabelecidas, tal como
comentado acima. A partir do recorte teórico a ser realizado, chamo a atenção para o recorte
conceptual e epistemológico efetuado no sentido de associar e dialogar os três momentos
12
teórico-conceptuais deste trabalho, principalmente na e pela medida em que se pretende tomar a
(pós-) modernidade em seus movimentos se objetivação e subjetivação da vida a partir de uma
dialética bastante específica entre o local e o global.
Em suma, a (pós-)modernidade será aqui abordada a partir das premissas teóricas e
conceptuais dos três autores com os quais decidi trabalhar, de tal modo que nos permita um
arcabouço onde a análise das relações e representações da pós-modernidade esteja dada com
vistas a formar um todo lógico, coerente e dinâmico, através do qual possamos entender a forma
como as sociabilidades pós-modernas estão relacionadas aos processos de subjetivação e
objetivação próprios das fronteiras e (des)continuidades experimentadas pelos atores sociais na
passagem da modernidade para a pós-modernidade.
A metodologia deste trabalho não se resume apenas os vieses teóricos com os quais decidi
abordar a temática, mas também, e digo sobretudo, está relacionada a escolha mesmo destas
perspectivas. Ao fazer um recorte do objeto, automática e paralelamente a isso operei um recorte
das teorias e perspectivas nas quais este trabalho se estrutura e sustenta. Noutras palavras, e
seguindo as idéias de Oliveira acerca do resgate feito da construção sócio-histórica da
masculinidade a partir de um conjunto de premissas teóricas e conceituais, a análise que se
pretende aqui da (pós-)modernidade é algo assim semelhante em sua metodologia, já que reitero a
idéia deste projeto em se efetuar uma (re)construção da pós-modernidade a partir de conceitos
específicos e previamente estabelecidos como perspectivas e pressupostos. Neste sentido, será
possível observar a relação da noção do pós-moderno em ação com e nos processos de
subjetivação e objetivação, atendo-nos sempre aos três aspectos estruturantes deste trabalho: as
conseqüências da modernidade, a noção simmeliana de blasé e o mal-estar nas relações pós-
modernas. De igual maneira, os filmes com os quais trabalho neste texto são em grande medida
reflexo do recorte teórico e conceptual efetuado no sentido de abordar o objeto proposto. Por
conseguinte, a metodologia de sua abordagem se dará na mesma proporção e extensionalidade
das perspectivas teóricas aqui lançadas, fazendo um constante esforço de (se) pensar o objeto e as
possibilidades de suas relações teóricas internas e externas em seu duplo e simultâneo caráter de
elementos de uma significação epistemológica e de elementos de uma significação em seu
aspecto teórico-metodológico. Desta forma, a metodologia deste trabalho é senão o próprio
arcabouço teórico-conceptual sobre e sob o qual se busca significar e representar As
consequências da modernidade: a noção de blasé e o mal-estar nas relações pós-modernas.
13
É este tipo de “vigilância epistemológica” que pretendo assumir e ter neste trabalho no
sentido de ser claro e responsável com o objeto, as perspectivas e os pressupostos meus e dos
autores com os quais decidi trabalhar. Em certa medida, concordo com Clifford Geertz quando
diz que “se você quer compreender o que é ciência, você deve olhar, em primeiro lugar, não para
as suas teorias ou as suas descobertas, e certamente não para o que seus apologistas dizem sobre
ela; você deve ver o que os praticantes da ciência fazem” (GEERTZ, 1998, p. 4).
Finalmente, queiram me permitir que, num sentido epistemológico mais amplo, este
trabalho se dê implícita e silenciosamente ao exercício de pensar e significar sua temática, seu
objeto, sua perspectiva e sua metodologia na medida em que
a questão de saber o que é fazer ciência ou, mais precisamente, o esforço dispendido
para saber o que faz o cientista, quer ele saiba ou não o que faz, não é somente uma
indagação sobre a eficácia e o rigor formal das teorias e métodos disponíveis, mas um
questionamento dos métodos e teorias em sua própria utilização para determinar o que
fazem aos objetos e os objetos que fazem (BOURDIEU, 2004, p. 21).
14
CAPÍTULO 1: AS CONSEQUÊNCIAS DA MODERNIDADE
Anthony Giddens define sua abordagem da modernidade como “cultural e
epistemológica” na medida em que procura articular e desenvolver as descontinuidades que
marcam as esferas social e individual do processo de radicalização de sua própria natureza
constitutiva, trazendo ao cerne da discussão o fato de que “uma das características distintivas da
modernidade, de fato, é a crescente interconexão entre os dois ‘extremos’ da extensão e da
intencionalidade: influências globalizantes de um lado e disposições pessoais de outro”
(GIDDENS, 2002b, p.9). Neste sentido, sua perspectiva perpassa não apenas a dimensão
institucional da modernidade, mas também uma abordagem de suas consequências em termos das
transformações da identidade e subjetividade dos indivíduos2.
Arriscando uma primeira definição de modernidade, para o autor este termo seria uma
referência ao estilo e costume de vida ou organização social que surgiram na Europa a partir do
século XVII, e que gradativamente se tornavam mundiais em sua influência. Os detalhes e
especificidades histórico-sociais deste período estão dados na forma como Giddens sugere sua
análise, a qual repousa numa “interpretação descontinuísta” do desenvolvimento social moderno.
Neste sentido, o que se pretende é dizer que “as instituições sociais modernas são, sob alguns
aspectos, únicas – diferentes em forma de todos os tipos de ordem tradicional” (GIDDENS,
2002a, p.13). Para isso, identificar a natureza e a constituição das descontinuidades em questão é
um pressuposto para a análise do que a modernidade realmente é, bem como para que possamos
efetuar um recorte de sua concepção acerca de suas consequências no processo de transformação
da intimidade e identidade dos indivíduos (pós-)modernos.
2 A teoria de Giddens neste sentido em nada difere da de muitos outros autores que trabalharam sobre o a dicotomia indivíduo/sociedade. Sigmund Freud, Émile Durkheim, Max Weber, Alain Touraine, Norbert Elias, Theodor Adorno, Fyodor Dostoievski, Honoré de Balzac e até mesmo Karl Marx, todos estes intelectuais são exemplos de pessoas que em certa medida e cada qual a seu modo trabalharam sob e sobre a influência paradigmática das ações e reações entre as noções de indivíduo e sociedade. Não que isso necessariamente enfraqueça seus argumentos, pelo contrário, esta observação é apenas no sentido de se fazer jus às categorias de análise que há muito perpassam o modo como (re)conhecemos o mundo e o modo como o mundo organiza a forma como o conhecemos, sem necessariamente redundar numa naturalização destas categorias. Neste sentido, vale acompanhar Elias: “caso se chegue a efetuar o procedimento do distanciamento, fica-se em condições, nos degraus da escada em espiral da consciência, de se reconhecer a si próprio, aparentemente no degrau precedente, enquanto homem entre outros homens, e de reconhecer a sociedade como uma figuração constituída de numerosos indivíduos fundamentalmente interdependentes, ou seja, tributários e dependentes uns dos outros; só então se é capaz de superar intelectualmente a polarização entre indivíduo e sociedade” (ELIAS, 2001, p.149).
15
O que Giddens pretende em termos de descontinuidade é em algo semelhante ao sugerido
por Foucault em sua arqueologia do conhecimento, na medida em que visa trabalhar as
“condições de possibilidade” no processo histórico e no processo de construção de realidades a
partir do surgimento de novas formações sociais3. Ainda que nem tão claro nem tão interessado
em matéria e em termos de se realizar uma episteme deste período, o que pretende a análise das
consequências da modernidade é “aquela descontinuidade específica, ou conjunto de
descontinuidades, associados ao período moderno” (GIDDENS, 2002a, p.14). A unicidade deste
período é dada devido a que os modos de vida produzidos pela modernidade nos desvencilharam
de todos os tipos tradicionais de ordem social de uma maneira sem precedentes na história
humana. Este movimento se dá tanto em termos de sua extensionalidade como em termos de sua
intencionalidade, produzindo um conjunto de condições e possibilidades no qual o processo de
radicalização do que lhe é próprio e constitui esteja dado a ponto de ser irreversível e inevitável
para o sistema de encaixe e desencaixe das relações e representações sociais.
Segundo o autor, três características predominam no processo de identificação das
descontinuidades que separam as instituições sociais modernas das ordens sociais tradicionais.
Primeiramente, o ritmo de mudança engendrado pela modernidade. Esta mudança, ou melhor, o
ritmo destas mudanças, atua na modernidade diretamente no sentido de conferir ao processo de
subjetivação um dos aspectos de sua estruturação simbólica, já que está acompanhada também da
própria noção que se faz de modernidade4. Em seguida, uma segunda característica advém do
3 A este respeito, Foucault me parece ter sido bastante feliz ao sugerir a arqueologia do saber como mecanismo a partir do qual se pode conhecer as condições do conhecimento e do pensamento humanos. Assim, diz ele ao propor-la, “não se tratará, portanto, de conhecimentos descritos no seu progresso em direção a uma objetividade na qual nossa ciência de hoje pudesse enfim se reconhecer; o que se quer trazer à luz é o campo epistemológico, a epistémê onde os conhecimentos, encarados fora de qualquer critério referente a seu valor racional ou a suas formas objetivas, enraízam sua positividade e manifestam assim uma história que não é a de sua perfeição crescente, mas, antes, a de suas condições de possibilidade. [...] Mais que de uma história no sentido tradicional da palavra, trata-se de uma “arqueologia” (Cf. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. p.11-12). 4 Comumente atribulada às noções de tecnologia, progresso e velocidade, a modernidade engendra a partir do ritmo de suas mudanças uma nova forma de se perceber e conhecer o mundo. Neste sentido, vale citar Elias acerca da importância da noção de tempo no processo de construção e percepção do conhecimento e do mundo e da forma como este nos é (re)apresentado: “Nos tempos atuais, o ‘tempo’ é um instrumento de orientação indispensável para realizarmos uma multiplicidade de tarefas variadas. [...] Ele é também uma instituição cujo caráter varia conforme o estágio de desenvolvimento atingido pelas sociedades. O indivíduo, ao crescer, aprende a interpretar os sinais temporais usados em sua sociedade e a orientar sua conduta em função deles. A imagem mnêmica e a representação do tempo num dado indivíduo dependem, pois, do nível de desenvolvimento das instituições sociais que representam o tempo e difundem seu conhecimento, assim como das experiências que o indivíduo tem delas desde a mais tenra idade” (ELIAS, 1998, p.15). Além de apontar para a possibilidade de discutirmos o ideal social moderno versus o ideal societário que a modernidade engendra em suas relações e representações, esta observação será também bastante válida quando estivermos analisando a concepção de Simmel acerca da “vida mental” na metrópole, posto
16
escopo da mudança, quando a modernidade atinge níveis globais de existência e “ondas de
transformação social penetram através de virtualmente toda a superfície da Terra” (op. cit., p.16).
Por fim, a terceira característica do processo de descontinuidade diz respeito à natureza
intrínseca das instituições modernas, o que por sua vez faz referência ao conteúdo único das
instituições da modernidade no que se refere às instituições que dominaram o ancién regime.
Paralelamente a estas três características, Giddens desenvolve três dimensões
institucionais da modernidade. A primeira está associada ao fato de a modernidade poder ser
entendida como aproximadamente equivalente ao mundo industrializado, fazendo referência às
relações sociais implicadas no uso generalizado da força material e do maquinário nos processos
de produção. A segunda dimensão é o capitalismo enquanto sistema de produção de mercadorias,
o qual envolve tanto mercados competitivos de produtos quanto a mercantilização da força de
trabalho. Por fim, a terceira dimensão institucional da modernidade é a reflexividade, constante e
crescente capacidade de os indivíduos (re)organizarem suas relações e representações do mundo
a partir da experiência e conhecimento propiciados pelas instituições (GIDDENS, 2002b).
Como já nos havia alertado Weber acerca da racionalização do mundo moderno sob a
forma de burocratização da política e desencantamento da mundo, Giddens coloca a “ascensão da
organização” como a característica mais geral da modernidade:
o que distingue as organizações modernas não é tanto seu tamanho, ou seu caráter
burocrático, quanto o monitoramento reflexivo que elas permitem e implicam. Dizer
modernidade é dizer não só organizações mas organização – o controle regular das
relações sociais dentro de distâncias especiais e temporais indeterminadas (GIDDENS,
2002b, p.22).
Novamente, Giddens indica três elementos responsáveis pelo dinamismo, amplitude e
profundidade das características constituintes da modernidade. Estes aspectos, juntamente com
sua perspectiva multidimensional da modernidade e a abordagem da ordem “pós-moderna” como
o momento em que estas dimensões estão dadas de forma a exacerbar e radicalizar as
consequências da modernidade, são para este trabalho de fundamental importância para o recorte
do objeto e da perspectiva que aqui se propõe das relações e representações pós-modernas. Digo
que neste momento estaremos analisando a forma como ocorre a mediação entre o individual e o social através das representações e relações do tempo na vida na metrópole.
17
isto porque estes elementos sintetizam não apenas a concepção de Giddens acerca (das
consequências) da modernidade, mas sobretudo porque eles nos permitem contextualizar a
discussão que faremos futuramente da noção e concepção de Simmel acerca do blasé e da “vida
mental” na modernidade, da mesma forma como nos introduz a temática de Bauman sobre o mal-
estar da pós-modernidade, o qual se vê presente nas relações engendradas pelos indivíduos e no
modo como a sociabilidade reflete o modo como experimentamos, significamos e representamos
o mundo.
Assim sendo, o primeiro destes elementos é a separação de tempo e espaço. Este
elemento diz respeito à forma como as sociedades organizam suas culturas de forma a localizar e
introduzir seus indivíduos em relações espacial e temporalmente contextualizadas e significadas.
Aqui compreendido, o autor chama a atenção para a forma como a modernidade reestrutura o
sentido e o modo como tempo e espaço são organizados em nossa cultura, além claro de apontar
a influência deste elemento nas ações e relações sociais: “a separação de tempo e espaço
envolveu acima de tudo o desenvolvimento de uma dimensão ‘vazia’ de tempo, a alavanca
principal que também separou o espaço do lugar” (op. cit., p.22). Esta separação fornece a
própria base na qual as recombinações dos sistemas sociais em termos de relações e
representações sociais estão dadas de forma a coordenar as atividades sociais sem
necessariamente fazer referência às particularidades do lugar; o “quando” e o “onde” ganharam
complexidade no processo de significação e organização da experiência individual e social dado
seu esvaziamento.
Intrinsecamente associado ao movimento de separação de tempo e espaço, o segundo
elemento introduz e reflete a forma como as relações sociais se vêem impactadas por estas
descontinuidades. O desencaixe das instituições sociais, termo análogo ao de “diferenciação”
porém, segundo o autor, mais dinâmico e abrangente que este, reflete o modo como as relações
sociais “descolam-se” dos contextos locais e sua rearticulação através de partes indeterminadas
do espaço-tempo. São dois os mecanismos de desencaixe das instituições modernas: fichas
simbólicas e sistemas especializados. Por fichas simbólicas Giddens entende “meios de troca que
têm um valor padrão, sendo assim intercambiáveis numa pluralidade de contextos” (op. cit.,
p.24). O maior exemplo deste conceito é o dinheiro e, ainda que já presente em formas anteriores
de formação social, na modernidade ele assume um papel simbólico e efetivo extremamente
notório, já que reflete e atua no crescimento da importância da economia monetária para as
18
instituições modernas5. O dinheiro relativiza o tempo e o espaço, já que é um meio de crédito
padronizado que permite transações entre vários indivíduos que nunca se encontraram
fisicamente: “nessa função, o dinheiro confere, por um lado, um caráter impessoal, anteriormente
desconhecido, a toda atividade econômica, por outro lado, aumenta, proporcionalmente, a
autonomia e a independência da pessoa” (SIMMEL, 1998, p.24). Por fim, pode-se argumentar
que “o dinheiro não se relaciona ao tempo (ou, mais precisamente, ao tempo-espaço) como um
fluxo, mas exatamente como um meio de vincular tempo-espaço associando instantaneidade e
adiamento, presença e ausência” (GIDDENS, 2002a, p.33).
Seguindo a mesma lógica de desencaixe, os sistemas especializados (ou sistemas peritos)
se referem a sistemas de excelência técnica ou competência profissional que (re)organizam
grandes áreas funcionais e sociais da vida moderna, lhes imputando a condição para a
continuidade e normalidade das atividades sociais. Tais sistemas penetram virtualmente em todos
os aspectos da vida social nas condições da modernidade: saúde, educação, transporte, segurança,
conhecimento, poder, comunicação etc. Em comum com as fichas simbólicas, os sistemas peritos
removem as relações sociais das imediações do contexto ou, até melhor dito, removem das
relações sociais seu caráter de contextualidade lhes imputando apenas a noção de imediatismo:
“ambos os tipos de mecanismo de desencaixe pressupõem, embora também promovam, a
separação entre tempo e espaço que eles realizam” (op. cit., p.36).
Ultrapassando os limites da área tecnológica e técnica, os sistemas especializados
estendem-se às próprias relações sociais e às intimidades do eu na medida em que estão
associados ao modo como os indivíduos refletem suas ações e experimentam o mundo. Neste
sentido, Giddens afirma que os dois tipos de sistema especializado dependem essencialmente da
confiança, aqui entendida como elemento norteador e anterior às decisões tomadas diariamente
pelos indivíduos: “a confiança nem sempre é o resultado de decisões conscientes: é mais
frequentemente uma atitude geral da mente que subjaz a essas decisões, algo que tem suas raízes
na conexão entre confiança e desenvolvimento da personalidade” (GIDDENS, 2002b, p.25). A
confiança está portanto envolvida de uma maneira fundamental com as instituições da
5 Vale aqui já chamar a atenção para a importância destacada por Simmel no papel da “economia do dinheiro” no processo de separação e automação entre o sujeito e o objeto operado pela modernidade e, sobretudo, pelo crescimento da economia monetária: “conforme a nossa caracterização da época moderna, a organização monetária possibilita, diferentemente dos tempos nos quais cada relação externa era simultaneamente pessoal, uma distinção mais pura entre a ação econômica objetiva do homem e a sua coloração individual, o seu próprio ego, que agora se afasta daquelas relações e quase se retira em direção às suas esferas mais íntimas” (SIMMEL, 1998, p.28).
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modernidade e atua direta e paralelamente à noção de segurança psicológica dos indivíduos.
Com isso, confiança e segurança estão presentes no sentido de dar credibilidade aos sistemas
abstratos além de estarem presentes no processo de formação de identidade e intimidade dos
indivíduos.
Finalmente, o terceiro elemento responsável pela dinâmica, amplitude e profundidade das
instituições modernas – e de suas conseqüências – é a reflexividade, o qual está estritamente
relacionado aos conceitos de separação de/entre tempo e espaço e a noção de desencaixe das
instituições sociais. Esta atitude de “monitoração reflexiva da ação” faz referência à possibilidade
constante e crescente que os indivíduos possuem junto às instituições modernas de pensarem,
significarem e representarem suas ações. Esta reflexividade institucional envolve a incorporação
rotineira de conhecimento ou informação novos em situações de ação que são desta forma
reconstituídas e reorganizadas. Por conseguinte, esta reflexividade está associada às idéias de
auto-identidade, projeto reflexivo do eu e mesmo reflexividade do eu, na medida em que dota os
indivíduos de informações, sentidos e experiências capazes de segregar e significar a experiência
social junto às instituições (pós-)modernas. É através deste conceito que nos aproximamos cada
vez mais do que este trabalho se propõe. A noção de reflexividade é para este intento importante
porque é capaz de resumir muito do que aqui se pretende em termos de perspectiva analítica,
tendo em vista que coloca em movimento a dialética entre local e global da mesma forma como
insere na discussão margem epistemológica para discutirmos as relações e representações
sociais/societárias engendradas na pós-modernidade.
Tendo em vista que a reflexividade atua no processo de organização e/do conhecimento
do mundo através das relações e representações experimentadas pelo indivíduo junto às
instituições (pós-)modernas, podemos considerar que “quanto mais a tradição perde seu domínio,
e quanto mais a vida diária é reconstituída em termos do jogo dialético entre o local e o global,
tanto mais os indivíduos são forçados a escolher um estilo de vida a partir de uma diversidade de
opções” (op. cit., p.13). É na medida em que a reflexividade atua como mediadora entre o local e
o global que quero chamar a atenção para a importância deste conceito na análise e compreensão
da formação e constituição da subjetividade nas relações pós-modernas. É a partir deste resgate
que poderemos entender e viabilizar o que aqui se pretende trazendo a noção de blasé e o
conceito de mal-estar da pós-modernidade para o cerne desta discussão, a fim de construir e
20
lançar talvez uma nova perspectiva na compreensão das relações e representações pós-modernas6.
Sugiro isso presumindo que, como veremos adiante, esta noção de “jogo dialético” entre local e
global é uma forma bastante razoável de sugerirmos a abordagem da vida mental na metrópole a
la Simmel, da mesma forma como nos será útil para pensarmos a noção de mal-estar da pós-
modernidade com Bauman. Portanto, a noção de reflexividade, aqui entendida como constante e
crescente possibilidade de o indivíduo pensar e significar sua ação a partir do conjunto de
relações e representações nos quais se vê inserido e junto às instituições que orientam o modo
como se conhece e se concebe o mundo, será o fio condutor para pensarmos as relações, as
representações e o modo como o indivíduo traduz e articula estas categorias na pós-modernidade.
Neste sentido, acompanhemos as primeiras colocações de Marshall Berman em Tudo que é sólido
se desmancha no ar
existe um tipo de experiência vital – experiência de tempo e espaço, de si mesmo e dos
outros, das possibilidades e perigos da vida – que é compartilhada por homens e
mulheres em todo o mundo, hoje. Designarei esse conjunto de experiências como
“modernidade”. Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura,
poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor –
mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o
que somos. A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras
geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido,
pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade
paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de
permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia.
Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, “tudo o que é
sólido se desmancha no ar” (BERMAN, 1986, p.15).
As tendências globalizantes da modernidade são inerentes às influências dinâmicas que
acabamos de esboçar. A reorganização do tempo e espaço, os mecanismos de desencaixe e a
reflexividade da modernidade supõem propriedades universalizantes que explicam a natureza
fulgurante e expansionista da vida social moderna em seus encontros com práticas
tradicionalmente estabelecidas. A globalização, como cada um dos processos acima descritos,
6 Chamo a atenção para o fato de o viés aqui tomado ser apenas uma possibilidade. Não do ponto de vista de sua refutabilidade, mas do ponto de vista de que esta foi uma escolha temática dentre outras possíveis na abordagem das relações e representações engendradas pela dialética entre o local e o global.
21
entendida aqui em seu sentido espacial e não temporal, deve ser entendida como um fenêmeno
dialético em que eventos de um pólo de uma relação muitas vezes produzem resultados
divergentes ou menos contrários em outro. É, pois, neste sentido que sugerimos a compreensão
das transformações da subjetividade/reflexividade, na medida em que este processo se articula
nos movimentos entre local e global, os quais são mediados pela experiência do indivíduo através
de suas relações e representações. Como coloca Giddens, “virtualmente toda experiência humana
é mediada – pela socialização e em particular pela aquisição de linguagem. A linguagem e a
memória estão intrinsecamente ligadas, tanto ao nível da lembrança individual quanto ao da
institucionalização da experiência coletiva” (GIDDENS, 2002b, p.28). Desta forma, o
desenvolvimento e expansão das instituições modernas está diretamente envolvido com o imenso
aumento na mediação da experiência que essas formas de comunicação propiciaram, partindo do
pressuposto de que, “nas condições da modernidade, os meios de comunicação não espelham
realidades, mas em parte as formam” (op. cit., p.32)7.
As transformações na auto-identidade e a globalização, como propõe Giddens, são os dois
pólos da dialética do local e do global nas condições da alta modernidade. Em outras palavras,
mudanças em aspectos íntimos da vida pessoal estão diretamente ligadas ao estabelecimento de
conexões sociais de grande amplitude. Segundo o autor, “o nível de distanciamento tempo-espaço
introduzido pela alta modernidade é tão amplo que, pela primeira vez na história humana, ‘eu’ e
‘sociedade’ estão inter-relacionados num meio global” (op. cit., p.36). Neste sentido, a noção de
projeto reflexivo traduz a noção de eu e faz menção à reflexividade institucional própria da
modernidade, a qual, tal como colocado acima, atua no sentido de promover sentido e significado
7 Cabe aqui algumas reflexões acerca particularmente do cinema e da imagem no processo de construção de subjetividade, tomando estes elementos como mediadores no processo de experimentação, conhecimento e representação do mundo. Com o desenvolvimento da economia capitalista e as paralelas transformações nas esferas da cultura, comunicação, política e conhecimento, a forma como a imagem representa e se representa no mundo moderno é bastante distinta da forma como se articulava momentos antes da “reprodutibilidade técnica” e da “indústria cultural”. Sob estes processos, a imagem se transformou em elemento esvaziador de sentido e experiência, ao mesmo tempo em que dotava os indivíduos de novas formas de significação e reconhecimento do mundo através dela. Como coloca John Berger, “nunca olhamos para uma coisa apenas; estamos sempre olhando para a relação entre as coisas e nós mesmos” (BERGER, 1999, p.11). Neste sentido, não apenas a forma como experimentamos o mundo e significamos nossas experiências mudou, mas também o que somos e como nos vemos, nossa constituição enquanto intimidade e subjetividade passou por um processo de reorganização através das instituições modernas: “o modo como uma moça aceita e executa o seu date obrigatório, o tom da voz ao telefone e na situação mais familiar, a escolha das palavras na conversação, e toda a vida íntima ordenada segundo os conceitos da psicanálise vulgarizada, documenta a tentativa de fazer de si um aparelho adaptado ao sucesso, correspondendo, até nos movimentos instintivos, ao modelo oferecido pela indústria cultural. As reações mais secretas dos homens são assim tão perfeitamente reificadas diante de seus próprios olhos que a idéia do que lhes é específico e peculiar apenas
22
para o indivíduo na medida em que este interage com as instituições (pós-)modernas através de
suas relações e representações. Em tais circunstâncias, os sistemas abstratos passam a estar
centralmente envolvidos não só na ordem institucional da modernidade, mas também na
formação e continuidade do eu. Neste sentido, a modernidade rompe o referencial protetor da
pequena comunidade e da tradição, substituindo-as por organizações muito maiores e impessoais.
Neste momento, o indivíduo se sente privado e só num mundo em que lhe falta o apoio
psicológico e o sentido de segurança oferecidos em ambientes mais tradicionais:
você ganha alguma coisa e, em troca, perde alguma outra coisa: a antiga norma
mantém-se hoje tão verdadeira quanto o era então. Só que os ganhos e perdas mudaram
de lugar: os homens e as mulheres pós-modernos trocaram um quinhão de suas
possibilidades de segurança por um quinhão de felicidade. Os mal-estares da
modernidade provinham de uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade
pequena demais na busca da felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade
provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança
individual pequena demais (BAUMAN, 1998, p.10).
Através do recorte teórico e conceptual que realizamos aqui das principais posições de
Giddens no que se refere à modernidade e aos contornos que ela imputa à modernidade tardia,
sobretudo no sentido de identificar e acompanhar as consequências no processo de reflexivização
da vida cotidiana, pudemos ver como os sistemas e movimentos de desencaixe atuam como
(re)organizadores da experiência social humana, (re)ordenando o conjunto de relações e
representações através das quais o indivíduo constrói seu projeto reflexivo e através do qual a
própria sociedade se projeta e reflete8.
sobrevive sob a forma mais abstrata: personality não significa praticamente – para eles – outra coisa senão dentes brancos e liberdade de suor e de emoções” (ADORNO, 2002, p.73). 8 Esta premissa de (re)organizção dos ideais societários (pós-)modernos estará novamente presente quando estivermos vendo os ideais de pureza e ordem instaurados pela pós-modernidade. Segundo Bauman, “em sua versão presente e pós-moderna, a modernidade parece ter encontrado a pedra filosofal que Freud repudiou como uma fantasia ingênua e perniciosa: ela pretende fundir os metais preciosos da ordem limpa e da limpeza ordeira diretamente a partir do ouro do humano, do demasiadamente humano reclamo do prazer, de sempre mais prazer e sempre mais aprazível prazer – um reclamo outrora desacreditado como base e condenado como autodestrutivo” (op. cit., p.9). Ademais, estender a discussão da modernidade não apenas como ideal social mas também como ideal societário é válida e útil no sentido de nos fazer pensar o papel das instituições em seu duplo sentido de organizadora e refletora de re(a)presentações e conhecimentos do mundo. Aqui compreendida, esta idéia pode clarificar a dimensão institucional da modernidade salientada por Giddens no processo de radicalização de suas consequências, percebida a partir do momento em que engendra novas formas através das quais os indivíduos concebem sua experiência da mesma forma como a sociedade se representa a si mesma.
23
É através desta contextualização que iniciamos a discussão da noção simmeliana de blasé.
Tal como realizamos nesta primeira parte, onde construímos um conjunto de argumentos gerais
ao redor das consequências da modernidade, neste segundo momento pretendemos ampliar a
extensão e profundidade da assertividade dos condicionantes modernos no processo de
subjetivação, focalizando a discussão através da noção de Simmel de blasé e a importância deste
conceito para entendermos a forma como as relações e representações pós-modernas
(re)organizam e significam a experiência e o sentido da vida dos indivíduos. Assim sendo, esta
segunda parte se pretende uma continuidade da discussão dos fenômenos modernos e suas
consequências no processo de construção de identidade e subjetividade, de tal forma que esta
abordagem nos permita melhor compreender a noção de mal-estar da pós-modernidade, ponto
final de nossa discussão. A partir deste momento os conceitos aqui lançados passam a ganhar
mais dinamismo e perspectiva, visto que neste primeiro momento estivemos essencialmente
reconstruindo um arcabouço teórico e conceptual mais firme onde pudéssemos repousar nosso
objeto e abordagem no sentido de dar-lhes condições de possibilidade em termos de premissas
teóricas e epistemológicas.
24
CAPÍTULO 2: A NOÇÃO DE BLASÉ
Como apontamos acima, a expansão e desenvolvimento da economia monetária é para
Simmel um dos fenômenos constituintes da modernidade e do novo conjunto de relações e
representações que ela engendra, senão o mais importante em sua forma estruturante quando
visto à luz de sua sociologia. Sua análise subtrai os efeitos da monetarização da vida além do
aspecto meramente produtivo e técnico sob o qual as relações sociais se (re)articulam na
modernidade. O intento simmeliano é outro: identificar e analisar a cultura, ou antes, a tragédia
da cultura moderna sob os aspectos estruturantes da modernidade, estes vistos a partir do
processo de separação entre objeto e sujeito operado pela instauração das instituições modernas.
É desde este resgate e abordagem simmelianos que construiremos aqui uma análise de como os
fatores estruturais que constituíram a tragédia da cultura moderna estão relacionados com os fatos
mais cotidianos dos indivíduos, sobretudo no que se refere à vida mental9 destes indivíduos em
seu meio social mais característico: a metrópole10.
O fator estrutural mais importante da modernidade, para Simmel, é o advento da
economia monetária, cuja análise é marcada por uma ambigüidade fundamental: o dinheiro
desempenha um papel central tanto na constituição da liberdade quanto da tragédia modernas. A
partir da generalização11 desse processo, com a consolidação da economia monetária, podemos
falar, do ponto de vista subjetivo, que o dinheiro permite uma margem importante de liberdade
pessoal na medida em que separa o desempenho, o qual pode ser comprado por dinheiro, da
personalidade, a qual permanece inalienável. A economia monetária, em conjunção com a divisão
9 Esta tomada não tanto sob o ponto de vista neurológico, tal como enfatiza Simmel, mas sim sob a perspectiva de que esta vida mental pode ser aproximada da noção giddensiana de reflexividade a partir do momento em que nos permite pensar o modo como os indivíduos (re)organizam o mundo através das relações e representações do mundo que dele fazem. 10 A noção simmeliana de metrópole para este trabalho é bastante interessante porque dá contexto àquilo que estamos falando desde o início, de indivíduos que se vêem constante e crescentemente confrontados com a possibilidade (e necessidade!) de (re)organizarem o modo como experimentam e significam o mundo. É neste contexto que se dá o surgimento do sujeito a partir do momento em que ele é subtraído dos laços sociais tradicionais. Em Richard Sennett, por exemplo, temos justamente que uma das características da cidade moderna é seu elemento revelador de significado. A cidade aqui é um lugar que autoriza as diferenças e que encoraja a concentração destas diferenças: “desta forma, tudo aquilo que antes representaria elementos de perturbação e descaracterização – a impessoalidade, o anonimato, a diferença, a complexidade, a separação entre o interior e o exterior, entre o privado e o público – pode ser tornar o elemento de reeducação do olhar, oportunizando uma revelação e uma nova coerência para o mundo” (PESAVENTO, 1995, p.12).
25
social do trabalho, permite a essa personalidade libertada de constrangimentos éticos e pessoais
uma maior oportunidade de autodeterminação e desenvolvimento, posto que tornou a teia de
dependência sociais mais rarefeita e múltipla. Neste sentido, Simmel aponta que a multiplicidade
de vínculos e relações é a própria pré-condição objetiva para o aparecimento da noção de
indivíduo, sendo assim, portanto, da própria idéia de que o indivíduo pode possuir uma
identidade própria apartada do social e, até mesmo, definida em oposição/negação a ela12.
O mesmo processo reificador que substitui relações pessoais por relações monetárias
impessoais, conferindo o pano de fundo para a percepção e constituição da noção de
subjetividade, cria, também, aquilo que Simmel chama de objetividade. Toda a ambivalência da
modernidade ocidental parece estar contida nesse processo que, simultaneamente, forma o mundo
moderno reificado e reificador das coisas e a possibilidade da constituição da personalidade:
“assim, a época moderna conseguiu separar e autonomizar o sujeito e o objeto, para que ambos
realizassem o próprio desenvolvimento de forma mais pura e rica” (SIMMEL, 1998, p.23). O
ponto positivamente valorizado por Simmel nesse processo é o de que o dinheiro, ao separar as
esferas subjetiva e objetiva, contribui para o desenvolvimento de ambas, na medida em que
permite que cada qual siga uma lógica intrínseca.
Diferentemente do que acontecia em sociedade pré-modernas, quando as relações e
transações que o indivíduo mantinha com a comunidade eram caracterizadas pelo fato de sua
personalidade estar ali associada, com a monetarização da vida moderna esta unidade é destruída,
dotando esta personalidade de uma liberdade de movimento interna e externamente
incomensurável, dando por sua vez este mesmo caráter de objetividade aos conteúdos práticos da
vida. Assim, o dinheiro se impôs entre posse e proprietário, separando-os de um lado e ligando-os
11 Lembremo-nos de Giddens: “estamos alcançando um período em que as consequências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que antes” (GIDDENS, 2002a, p.13). O grifo é meu. 12 Observemos dois momentos distintos da aplicação desta idéia no processo de formação e institucionalização do conhecimento: “O preço da dominação não é meramente a alienação dos homens com relação aos objetos dominados; com a coisificação do espírito, as próprias relações dos homens foram enfeitiçadas, inclusive as relações de cada indivíduo consigo mesmo” (ADORNO, 1985, p.40). Noutro momento, temos que “com a vitória do ponto de vista da norma, da regra e do sistema sobre o ponto de vista da função, do conflito e da significação, a episteme moderna se aproxima de uma nova configuração, que se desenha de forma ainda indecisa no horizonte do saber. Mais uma vez: o próprio das ciências sociais não é o homem. Não foi o homem que as criou, mas a episteme moderna, que as institui, e lhes dá possibilidade de tomar o homem como objeto” (ROUANET, 1971, p.128-129). Chamo com isso a atenção para o processo e fenômeno modernos de separação entre sujeito e objeto não apenas no sentido que Simmel e outros autores lhe concebem de estruturante condicional da vida moderna, mas também na medida em que atua no processo de (con)figuração da própria epistemologia das ciências humanas. Aqui compreendido, atento neste trabalho apenas para a importância deste evento no modo como passamos a representar e a conhecer o mundo através das relações e representações modernas.
26
de outro. É exatamente neste momento de dupla e simultânea libertação e alienação propiciadas
pela economia monetária na modernidade, e mais precisamente através da concepção de dinheiro,
que temos o surgimento de uma nova fonte de sociabilidade, já que temos a formação de “um
novo fio condutor para os conteúdos de vida que podem ser associados” (op. cit., p.25). Assim
como o dinheiro em geral tornou favorável e possível, uma proporção radicalmente nova entre
liberdade e compromisso, a reunificação, enfaticamente estreita e inevitável, efetuada por ele
provoca, por outro lado, a consequência “estranha” de abrir um espaço extraordinariamente vasto
para a individualidade e para o sentimento de independência:
precisamente uma tal relação tem de gerar um forte individualismo, pois não é o
isolamento em si que aliena e distancia os homens, reduzindo-os a si próprios. Pelo
contrário, é uma forma específica de se relacionar com eles, de tal modo que implica
anonimidade e desinteresse pela individualidade do outro, que provoca o
individualismo (op. cit., p.28).
Desta forma, a cultura moderna possui para Simmel um duplo movimento que a
caracteriza. Por um lado, é marcada pela nivelação e compensação no estabelecimento de círculos
sociais cada vez mais abrangentes por meio de ligações com o mais remoto sob as mesmas
condições. De outro, é predominantemente marcada no destaque do mais individual, na
independência da pessoa e na forma como lhe é possível sua autonomia. Estas direções atuam no
sentido de criar um interesse comum, um meio de relacionamento e de comunicação totalmente
universal e efetivo no mesmo nível e em todos os lugares, da mesma forma como possibilita à
personalidade uma reserva maximizada, permitindo aos indivíduos o exercício e cultivo de sua
liberdade e individualidade.
Antes porém de adentrarmos em como as instituições modernas estão presentes no
processo de (re)conhecimento do mundo por parte dos indivíduos através das forças
socializadoras a partir das quais eles se relacionam e se representam, vejamos outra tese
simmeliana fundamental para a compreensão do fenômeno moderno. A tese da diferenciação da
cultura subjetiva e objetiva é não apenas premissa para que compreendamos a sociedade moderna
per si, mas também pressuposto para que tenhamos claro suas consequências no modo como
experimentamos e (re)conhecemos o mundo.
Da mesma forma como nossa vida exterior é envolta por um número crescente de
objetos, cujo espírito objetivo empregado em seus processos de produção geralmente não
27
examinamos a fundo, de uma maneira distanciada, também a nossa vida íntima e social é
preenchida por construções tomadas simbólicas, nas quais uma espiritualidade abrangente é
armazenada – o espírito individual, no entanto, aproveita-se apenas minimamente delas. Esta é a
idéia central de Simmel acerca do fato de que “o acervo da cultura objetiva é aumentado
diariamente e de todos os lados, enquanto o espírito individual somente pode estender as formas e
conteúdos de sua constituição em uma aceleração contida, seguindo apenas de longe a cultura
objetiva” (op. cit., p.45)13.
O fato de o conjunto dos conteúdos das visões de nossa vida cultural ter se separado em
uma multiplicidade de estilos quebra aquela relação original com eles, na qual sujeito e objeto
ainda estavam unidos, e nos contrapõe a um mundo de possibilidades de expressão desenvolvidas
a partir de normas próprias e de formas de representar, (re)conhecer e expressar o mundo. Esta
contraposição dá-se de tal modo que estas formas, por um lado, e nossa subjetividade, por outro,
constituem duas partes distintas, entre as quais predomina uma relação puramente casual de
contatos e (re)organizações. A partir disso é composta a formação total, na qual o conteúdo da
cultura se torna cada vez mais, e com consciência crescente, um espírito objetivo, perante não
somente aqueles que o recebem, mas também perante aqueles que o produzem. Além disso, alerta
Simmel, “no ritmo em que essa objetivação progride, torna-se cada vez mais compreensível o
fenômeno maravilhoso, do qual nós partimos: a elevação cultural dos indivíduos pode
manifestamente ficar abaixo da elevação cultural das coisas – em termos concretos, funcionais e
espirituais” (op. cit., p.66)14.
O dualismo dos valores, que se manifesta deste modo no desenvolvimento da cultura,
baseia-se, portanto, em um único fato: a separação e especialização tanto dos fenômenos
13 Ainda que de forma um pouco distinta, encontramos perspectiva semelhante da modernidade em Alain Touraine. A proposta de sua Crítica da modernidade é justamente acompanhar os processos de racionalização e subjetivação que marcam e caracterizam a experiência moderna: “A modernidade não se define por um princípio único: ela não se reduz mais à subjetivação do que à racionalização; ela se define por sua separação crescente. Eis o motivo pelo qual, após alguns séculos dominados por modelos políticos confiantes em si mesmos como agentes do progresso, a após mais longos períodos enquadrados nas grandes civilizações com fundamentos religiosos, hoje nós vivemos em um mundo frágil, pois não existe nenhuma força superior nem mesmo qualquer instância de arbitragem capaz de proteger com eficácia a interdependência indispensável entre as duas faces da modernidade” (TOURAINE, 1994, p.227). 14 Tenhamos em conta que este texto foi escrito em 1900. À guisa de ilustração e de modo a evidenciar o caráter de possibilidade que Simmel dava à colocação “a elevação cultural dos indivíduos pode ficar manifestamente abaixo da elevação cultural das coisas”, citemos novamente o texto de Adorno e Horkheimer de 1947: “O comportamento a que cada um é constrangido para, em cada oportunidade, provar que pertence moralmente a essa sociedade, faz pensar nos rapazes que, no rito de admissão à tribo, se movem em círculo, com um sorriso idiota, sob as pancadas do
28
objetivos da alma como dos fenômenos objetivos constituem o centro de rotação, ao redor do
qual se movimentam os dois valores. A diferenciação afasta cada vez mais a cultura subjetiva da
objetiva, de tal modo que, nesta movimentação paralela, o último aparece como o elemento
propriamente móvel enquanto o primeiro possui uma estabilidade considerável. Contudo, na
medida em que este movimento tem simultaneamente duas direções, a saber, a elevação do
espírito e o rebaixamento da alma, mesmo quando o elemento subjetivo permanece inalterado, ele
modifica sua posição relativa com respeito ao elemento objetivo, e aparece, por um lado,
empurrado para baixo e, por outro, deslocado para cima. Desta forma, sob os termos espírito e
alma, Simmel chama a atenção para a forma como o processo de diferenciação das culturas
objetiva e subjetiva atua no processo de (re)conhecimento do mundo: “espírito é o conteúdo
objetivo daquilo que na alma se torna consciente em uma função viva; a alma é a forma na qual o
espírito, ou seja, o conteúdo lógico-objetivo do pensamento, vive para nós” (op. cit., p.70).
Assim sendo, na medida em que se coloca entre o indivíduo e as coisas (sujeito e
objeto), o dinheiro possibilita ao indivíduo uma existência por assim dizer abstrata, livre de
considerações imediatas sobre as coisas e de relações imediatas com elas, sem prejuízo de uma
certa probabilidade de desenvolvimento de nossa interioridade. Se o indivíduo moderno, sob
circunstâncias favoráveis, conquista uma reserva de subjetividade, um mistério e um isolamento
do ser mais pessoal, isso é condicionado pelo fato de o dinheiro nos poupar, de um modo sempre
crescente, do contato imediato com as coisas, aliviando, ao mesmo tempo, a dominação das
coisas e facilitando a escolha do que nos convém. No entanto, esses caminhos opostos, uma vez
tomados, aspiram a um ideal de separação absoluta, no qual todo o conteúdo objetivo da vida se
torna cada vez mais objetivo e impessoal, para que o resto não reificado da mesma se torne mais
pessoal, mais próprio do eu: “o fato de ele [o dinheiro] ajudar ambas as relações possíveis entre o
espírito objetivo e o subjetivo a alcançar a elevação e a maturação implica não a anulação e sim o
aumento, não a refutação e sim a comprovação de sua significação para o estilo de vida” (op. cit.,
p.77).
Ora, é justamente na medida em que o dinheiro se torna um novo elemento libertador e
alienante da modernidade, atuando amplamente como uma nova fonte de sociabilidade, e aqui
leia-se também como uma nova referência no modo como se representa e se relaciona (com) o
sacerdote. A vida no capitalismo tardio é um rito permanente de iniciação. Todos devem mostrar que se identificam sem a mínima resistência com os poderes aos quais estão submetidos” (ADORNO, 2002, p.58).
29
mundo, que podemos dizer que ele se torna tanto símbolo como causa da postura indiferente e da
exteriorização de tudo aquilo que se deixa tornar indiferente e exteriorizar. Acabado por
transformar, e por ser transformado, em fim absoluto em termos da motivação dos indivíduos em
terem e acumularem dinheiro sob a forma de algum tipo de posse, neste contexto adquire todo o
sentido falar da fórmula simmeliana de Deus moderno. Para o autor, sua significação divina teria
sua base mais profunda no fato de que todas as contradições e multiplicidades do mundo
ganhariam unidade por referência à divindade onipotente absoluta. Da idéia da reconciliação e da
reunião de todas as heterogeneidades e de todas as diferenças não reconciliadas no deus resultam
a paz, a segurança, a riqueza abrangente do sentimento que acompanham a apresentação e a posse
de Deus. Segundo Simmel, o dinheiro apresenta uma extraordinária afinidade psicológica com
essa idéia, dado que produz a expressão e a equivalência de todos os valores, unindo os contrários
e os estranhos. É precisamente a partir essa busca apaixonada – e que se transforma em
necessidade psicológica através da idéia de consumo na modernidade - pelo dinheiro que se
constitui e produz o ritmo nervoso e o estresse da vida moderna: “esse estado de ânimo é o fiel
reflexo subjetivo da economia do dinheiro completamente interiorizada. Sendo o equivalente a
todas as múltiplas coisas de uma e mesma forma, o dinheiro torna-se o mais assustador dos
niveladores” (SIMMEL, 1987, p.18).
Feito por sua vez o resgate dos principais pontos para este trabalho da abordagem de
Simmel do fenômeno moderno, vamos agora entrar no que se pretende constitutivo para este
texto. Como já dissemos acima, a monetarização da economia e a diferenciação entre espírito
subjetivo e objetivo são dois dos elementos constitutivos da era moderna, através dos quais o
conjunto de relações e representações sociais pôde ser (re)organizado. Assim sendo, é a partir das
consequências destes processos no modo de vida moderno que estaremos analisando a noção de
blasé, suas condições de (re)produção como forma de (re)conhecimento do mundo e sua
assertividade na vida mental (pós-)moderna.
Tal como comentávamos no início deste capítulo, a noção simmeliana de tragédia está
relacionada, agora podemos dizer com mais clareza, ao fato de que apenas a cultura objetiva se
tornar crescentemente cultivada e rica, seja em relação à técnica, ciência ou arte, enquanto os
indivíduos se tornam, paradoxalmente, cada vez mais pobres e pouco cultivados. Nas palavras de
Touraine, “nos nossos dias, a imagem mais visível da modernidade é a do vazio, de uma
economia fluida, de um poder sem centro, sociedade muito mais de troca que de produção.
30
Resumindo, a imagem da sociedade moderna é a de uma sociedade sem atores” (TOURAINE,
1994, p.216)15. Nesse contexto, Simmel percebe a tendência do desejo moderno por estímulos e
impressões extremas e por rápidas mudanças, na tentativa de minimizar os perigos e sofrimentos
da vida moderna a que os indivíduos estão crescentemente expostos. A partir destas condições de
existência, devemos assinalar que o dinheiro confere às metrópoles suas duas características mais
marcantes: o intelectualismo e a calculabilidade por um lado, e a indiferença de outro. A ênfase
nas faculdades intelectuais, em oposição às relações baseadas no sentimento e na pessoalidade
típicas das pequenas cidades, é produto da necessidade de medidas objetivas para comparar
desempenhos, produzir previsibilidades e regularidades, sem as quais seriam impossível a
economia monetária e a manutenção dos serviços em uma metrópole. A ênfase na pontualidade,
previsiblidade, exatidão e competição impregna o indivíduo, de tal forma que lhe confere um
ritmo nervoso, ansioso e repressivo com relação a seus instintos e necessidades.
Neste sentido, a indiferença nasce parte como efeito da calculabilidade que embota as
emoções e parte como produto do efeito nivelador do dinheiro, acarretando perda da
sensibilidade para nuances e uma concentração no mero estímulo. A distância e a reserva que a
calculabilidade e a indiferença produzem na vida citadina são, simultaneamente, a possibilidade
de garantia de uma liberdade individual inimaginável em outros contextos. Desta forma, a
metrópole reproduz a ambigüidade típica da vida sob o signo do dinheiro, criando tanto
possibilidade da individualidade como os obstáculos para que ela se realize:
pontualidade, calculabilidade, exatidão, são introduzidas à força na vida pela
complexidade e extensão da existência metropolitana e não estão apenas muito
intimamente ligadas à sua economia do dinheiro e caráter intelectualístico. Tais traços
também devem colorir o conteúdo da vida e favorecer a esclusão daqueles traços e
imulsos irracionais, instintivos, soberanos que visam a determinar o modo de vida de
dentro, ao invés de receber a forma de vida geral e precisamente esquematizada de fora
(SIMMEL, 1987, p.17).
15 Por outro lado, tenhamos em mente que “o sujeito não se define senão pela sua relação, ao mesmo tempo de complementaridade e de oposição, com a racionalização. É até o triunfo da ação instrumental, pelo fato de desencantar o mundo, que torna possível o aparecimento do sujeito. Este não pode existir enquanto o mundo for animado, mágico. É no momento em que o mundo perde seu sentido que pode começar o reencantamento do sujeito” (TOURAINE, op. cit., p.242). É justamente este o movimento e experiência espetaculares proporcionados pela (pós)-modernidade, uma constante e efervescente capacidade e possibilidade de reinventar as identidades e as subjetividades. Este é o caráter de possibilidade tomado por este trabalho.
31
Segundo Simmel, uma investigação que penetre no significado íntimo da vida
especificamente moderno e seus produtos, que penetre na alma do corpo cultural, por assim dizer,
deve buscar resolver a equação que estruturas como a metrópole dispõem entre os conteúdos
individual e superindividual da vida. Desta forma, tal investigação deve responder à pergunta de
como a personalidade se (re)organiza às forças externas que sobre ela trabalham as relações e
representações do mundo. Assim sendo, cabe aqui descrevermos como se dá a vida na metrópole
e quais seus condicionantes para que aí sim possamos ver suas consequências no processo de
formação e reflexivização da personalidade individual.
A base psicológica do tipo metropolitano de individualidade consiste na idéia de
intensificação dos estímulos nervosos, que resulta da alternação brusca e ininterrupta entre
estímulos exteriores e interiores16. Assim, este tipo metropolitano de indivíduo desenvolve uma
faculdade que o protege das correntes e discrepâncias externas, as quais, do contrário, o
desenraizariam: o indivíduo passa a reagir com a cabeça, através de uma mente crescentemente
calculista e objetiva. Neste sentido, uma conscientização igualmente crescente assume a
prerrogativa do psíquico, se tornando o meio através do qual o indivíduo passa a lidar com os
estímulos internos e externos, dando à sua vida subjetiva resistência para equilibrar a dialética
entre o local e o global. Consequentemente, a forma como experimentamos e vemos o mundo
está diretamente associada à forma como nos relacionamos e nos representamos na metrópole: “A
pessoa intelectualmente sofisticada é indiferente a toda individualidade genuína, porque dela
resultam relacionamentos e reações que não podem ser exauridos com operações lógicas”
(SIMMEL, 1987, p.15).
16 Gosto particularmente de pensar o enfoque neurológico atribuído por Simmel em sua análise da vida mental à noção durhkeimniana de homo duplex, quando teríamos uma perfeita perspectiva das relações entre o biológico e o social mediada através do psicológico (consciência): “Há, de um lado, nossa individualidade, e, mais especialmente, nosso corpo que a funda; de outro, tudo aquilo que, em nós, exprime outra coisa que não nós mesmos” (DURKHEIM, 1970, p.318). A importância deste noção, e de sua necessidade em empreendimentos sociológicos, está presente no estudo de Marcel Mauss acerca do Efeito físico no indivíduo da idéia de morte sugerida pela coletividade: “Trata-se de um gênero de fatos que, no meu entender, deveriam ser estudados com urgência, aqueles em que a natureza social reencontra muito diretamente a natureza biológica do homem. Esse medo pânico que desorganiza tudo na consciência, até mesmo o que chamamos o instinto de conservação, desorganiza sobretudo a própria vida. O elo psicológico é visível, sólido: a consciência” (MAUSS, 2003, p.364). Por último, a fim de corroborar com a abordagem multidisciplinar de fenômenos que trabalham a tríade social, biológico e psicológico, cito uma reflexão de Elias acerca de sua própria formação: “Só mais tarde compreendi com clareza que o estudo da medicina fora uma das experiências fundamentais que me estimularam a abandonar a filosofia para me consagrar à sociologia. Mas até os anos 60, quando dava minhas aulas de introdução a alunos de sociologia, tinha às vezes ao alcance da mãe um crânio humano desmontável. Parecia-me que um estudante de sociologia devia ter algumas noções essências da estrutura do sistema nervoso humano para ser capaz de se aproximar da concepção do homem
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Com isso, temos um duplo movimento, qual seja, o de que os mesmos fatores que assim
redundaram na exatidão e precisão da forma de vida metropolitana redundaram também em uma
estrutura da mais alta impessoalidade, ao mesmo tempo em que promoveram uma subjetividade
altamente pessoal. É justamente esta duplicidade que marca o processo de blaseificação da vida
na modernidade, a partir do momento em que engendra uma nova forma se sociabilidade sob, de
um lado, a forma de extrema impessoalidade que às relações imputa e, de outro, na medida em
que confere à personalidade seus novos contornos de identidade e subjetividade.
Segundo Simmel, não há talvez fenômeno psíquico que tenha sido tão incondicionalmente
reservado à metrópole quanto a atitude blasé. Esta atitude está associada à incapacidade de reagir
a novas sensações com a energia apropriada, consistindo no embotamento ou ausência do poder
de discriminar. É essa desubstancialização do sentido e valor das coisas que caracteriza o blasé, e
não uma possível não-percepção da coisa. É antes o não-reconhecimento do conteúdo que a
negação da forma. É na realidade a desensibilização da capacidade de sentir sob sua forma mais
latente e ordinária, e é justamente isso que quero dizer quando aproximo a noção de blasé da
noção de pós-moderno. Mais que uma atitude, podemos dizer, e gostaria de afirmar, que o blasé
se tornou uma maneira de agir, de pensar e de sentir17 nas/as relações modernas, especificamente
estas contextualizadas entre os arranhe-céus da metrópole.
Este blasé que aqui chamamos é o personagem característico da (pós-)modernidade e está
presente em nós e no modo como nos relacionamos e representamos aquilo que experimentamos
e (re)conhecemos. Esta blaseificação do espírito atua na mesma proporção e sentido em que se dá
a reflexivização do sujeito e é aqui compreendida como a forma mediadora da dialética do local e
global. Como a noção de homo duplex, através da qual as esferas do biológico, do social e do
psicológico atuam na (re)organização da experiência do indivíduo no mundo, da mesma forma o
faz a noção de blasé, a qual permite que ante todos os estímulos exteriores aos quais estamos
expostos sejamos capazes de dar sentido e significado às experiências e representações que
decidimos escolher. Muito além do que uma configuração neurológica da vida mental dos
indivíduos na (pós-)modernidade, o “agir, pensar e sentir” blasé é antes o modo como a cultura
subjetiva legitimou a possibilidade da escolha individual na modernidade, imputando à
indispensável à compreensão de contextos sociais, ou seja, uma concepção do homem como fundamentalmente organizado para viver em meio a homens, animais, plantas e minerais” (ELIAS, 2001, p.99). 17 Sugiro este trocadilho com a noção de Durkheim de fato social (cf. Durkheim, 1999).
33
personalidade a faculdade do discernimento e escolha, ainda que estas estivessem, segundo
Simmel, restritas à condição de identificação intelectual entre os pares.
As consequências da modernidade testemunham assim o surgimento de uma vida mental
própria das relações e representações que este período engendra, fazendo das noções de
reflexividade e blasé aspectos fundamentais do processo de (re)organização da experiência
social. Desta forma, chamo a atenção especialmente para a necessidade de assim ser, já que o
fenômeno de blasé surge como demanda do próprio arranjo dos estruturantes modernos no
processo de distanciamento e diferenciação entre sujeito e objeto:
se se perguntar pela posição histórica dessas duas formas de individualismo que se
nutrem da relação quantitativa da metrópole, a saber, a independência individual e a
elaboração da própria individualidade, então a metrópole assume uma situação relativa
inteiramente nova na história mundial do espírito (SIMMEL, 1987, p.27).
Além disso, se tomarmos por base que, de um lado, a indústria cultural constantemente
nega aquilo que nos oferece18, ao mesmo tempo em que, de outro lado, “a maneira como vemos
as coisas é afetada pelo que sabemos ou pelo que acreditamos. [...] Só vemos aquilo que olhamos.
Olhar é um ato de escolha” (BERGER, 1999, p.10), concluímos novamente que aquele modo
específico de ser, agir e pensar instaurado pelas relações e representações da modernidade
perpassa toda a estrutura da vida mental dos indivíduos. Para além mesmo de seus limites
neurológicos, esta vida mental a que se refere Simmel abrange também o que, como e porque
pensamos aquilo que pensamos. Assim como dizíamos do tempo e de sua nova significação na
modernidade (ver nota 3), aqui a mentalidade e reflexividade dos indivíduos ultrapassam seu
contorno mera e propriamente neurológico, já que o que realmente queremos chamar a atenção é
para sua (re)organização no processo de (re)visão dos valores e significados das experiências do
mundo moderno.
Desta forma, nos resta falar do mal-estar da pós-modernidade. A última parte deste texto
se pretende a parte mais ensaística, já que os conceitos e perspectivas teóricos com os quais
estamos trabalhando já estão dados e já foram devidamente esclarecidos. Como temos trabalhado,
procederemos primeiramente a um breve resgate da abordagem do autor acerca da
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(pós-)modernidade e dos novos arranjos que ela engendra em seu conjunto de relações e
representações, para em seguida adentrar na noção de mal-estar. Pela primeira vez neste trabalho,
lidaremos de maneira direita com as consequências da modernidade sentidas propriamente
na/pela pós-modernidade, de forma a lançar luz sobre seus contornos e, novamente, sobre suas
próprias consequências no projeto reflexivo do eu e do nós19.
Do que se pretende, chamaremos a atenção sobretudo para a noção de Bauman de mal-
estar nas relações pós-modernas, tendo em vista seu caráter englobante das características da pós-
modernidade na medida em que encerra o modo como os indivíduos passam a representar,
relacionar e reorganizar suas experiências e conhecimentos do mundo:
talvez nós vivamos em uma era pós-moderna, talvez não. Mas de fato vivemos em uma
era de tribos e tribalismo. É o tribalismo, miraculosamente renascido, que injeta espírito
e vitalidade no louvor da comunidade, na aclamação de fazer parte, na apaixonada
busca da tradição. Neste sentido, pelo menos, o longo desvio da modernidade levou-nos
aonde nossos antepassados outrora principiaram. Ou assim talvez pareça. O fim da
modernidade? Não necessariamente. Sob outro aspecto, afinal, a modernidade está
muito conosco. Está conosco na forma do mais definidor dos seus traços definidores: o
da esperança, a esperança de tornar as coisas melhores do que são – já que elas, até
então, não são suficientemente boas (BAUMAN, 1198, p.101).
18 “A indústria cultural continuamente priva seus consumidores do que continuamente lhes promete. [...] Este o segredo da sublimação estética: representar a satisfação na sua própria negação. A indústria cultural não sublima, mas reprime e sufoca” (ADORNO, 2002, p.37). 19 Volto àquela discussão do ideal social de modernidade versus seu ideal societário, fazendo aqui referência às colocações de Elias quanto à formação da “identidade-eu” e “identidade-nós”, apenas no sentido de neste momento
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CAPÍTULO 3: O MAL-ESTAR NAS RELAÇÕES PÓS-MODERNAS
Este capítulo se pretende uma continuidade das reflexões que neste trabalho vendo
levando à cabo sobre a modernidade e o modo como suas consequências impactam a maneira
através da qual os indivíduos são levados a (re)construir as relações e representações sociais e
societárias engendradas pela época moderna. Mais especificamente, este momento nos permite
um contato maior com o que de próprio possui e constitui aquilo que aqui temos chamado de pós-
modernidade20.
Embora inscrito num contexto onde as relações e representações experimentadas e vividas
pelos indivíduos se aproximam mais do termo pós-moderno que qualquer outro jamais
vivenciado pela sociedade humana, Bauman não deixa com isso de perceber as nuances da
modernidade atuando sob a forma líquida (re)organizadora do mundo e de suas interações.
Talvez se dê justamente o contrário, na medida em que esta re-ambientalização pode lhe permitir
um novo tipo de alteridade na forma como se (re)conhece o mundo, tanto em termos práticos
como em termos científicos21.
Desta forma, acompanhando o raciocínio do autor, vamos introduzir sua concepção de
modernidade e suas consequências líquidas no processo de representação e interação sociais pós-
modernas. Este resgate nos levará a considerar a idéia de mal-estar da pós-modernidade como
elemento final da dialética do local e do global engendrada pelas relações e representações pós-
modernas. Este será aqui o nosso intento.
já podermos pensar mais concretamente as relações e representações dos indivíduos sob a forma como estão dados previamente na forma mesmo como a sociedade se representa a si mesmo (Cf. Elias, 1994). 20 A utilização do termo pós-modernidade neste trabalho não pretende negligenciar o fato de que este ainda é um conceito por fazer-se completamente no meio acadêmico, já que os próprios autores com os quais decidi trabalhar relutam em lançar mão desta nomenclatura, preferindo termos como alta modernidade, modernidade tardia ou modernidade líquida. Sua utilização aqui é apenas uma estratégia de tornar o discurso mais conciso e categorizado. 21 Cabe aqui citar a problemática levantada por Clifford Geertz em Obras e vidas. Neste texto, Geertz chama atenção para o movimento de aproximação entre as experiências do “Estar Lá” e “Estar Aqui” e o modo como isso (re)organiza mesmo a experiência antropológica, etnográfica e epistemológica do fazer antropologia: “O vínculo textual entre as facetas do Estar Lá e do Estar Aqui da antropologia, a construção imaginativa de um terreno comum entre o Escrito A e o Escrito Sobre (que, hoje em dia, como foi mencionado, não raro são as mesmas pessoas, em estados de espírito diferentes), é a fons et origo de qualquer capacidade que tenha a antropologia de convencer alguém de alguma coisa – não uma teoria nem um método, nem tampouco a aura da cátedra professoral, por mais importantes que sejam estes últimos” (GEERTZ, 2002, p.187-188). Para além do campo antropológico, estas observações repercutem, como temos salientado neste trabalho, no modo mesmo como se dá a (re)organização das estruturas de significação e conhecimento das relações e representações vivenciadas pelo indivíduo e pela sociedade.
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Tendo herdado de Freud a concepção de mal-estar, Bauman realiza um resgate da
modernidade e de seus elementos estruturantes a partir das condições que possibilitaram a própria
continuidade deste sentimento de mal-estar na pós-modernidade. Ao se erigir sobre uma renúncia
ao instinto, a civilização impõe ao indivíduo grandes sacrifícios à sua sexualidade e agressividade
enquanto ser humano, de tal forma que o anseio por liberdade passa a ser dirigido contra formas e
exigências particulares da civilização ou mesmo contra a própria civilização. Os prazeres da vida
civilizada (moderna), conclui Freud, vêm num pacote fechado com os sofrimentos, a satisfação
com o mal-estar e a submissão com a rebelião. Esses mal-estares que eram a marca predominante
da modernidade resultaram do excesso de ordem e de sua conseqüente escassez de liberdade.
Assim sendo, “dentro da estrutura de uma civilização que escolheu limitar a liberdade em nome
da segurança, mais ordem significa mais mal-estar” (BAUMAN, 1998, p.9).
Meio século após a publicação de O mal-estar na civilização, a liberdade individual se
tornou a referência maior da modernidade e das relações e representações que ela engendra,
impelindo os indivíduos a disputarem (por) cada vez mais prazer e satisfação em suas investidas
diárias. Como aponta Bauman, os mal-estares da modernidade decorriam de uma espécie de
segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade individual,
enquanto que os mal-estares da pós-modernidade advêm de uma espécie de liberdade de procura
do prazer que tolera uma segurança individual pequena demais. A este processo denomino
inversão fundante da pós-modernidade e é justamente essa idéia de troca (lembremo-nos da
dialética proposta por Giddens) que perpassa o processo de (re)organização das experiência
individual a partir das relações e representações lançadas pela pós-modernidade.
Atuando paralelamente a este processo de inversão estruturante, Bauman indica outros
dois aspectos que se revelam presentes no modo como a modernidade (re)articula as relações e
representações entre os indivíduos e as coisas: o sonho da pureza e o reclamo da ordem. Aqui
compreendidos, estes dois elementos apontam para a reconstituição da vida mental e da
reflexividade dos indivíduos sob os efeitos das instituições modernas, os quais infligem
constantes e crescentes mudanças no modo como se articula e organiza as relações e
representações entre sujeitos e objetos.
Isso se dá no plano individual na forma de sua reflexivização e subjetivização, do mesmo modo como se dá também na esfera das instituições sob a forma de institucionalização da ciência e daquilo que é fazer ciência.
37
Neste sentido, o sonho da pureza moderno e pós-moderno diz respeito à busca e atividade
humanas investidas numa constante demanda por ordem e limpeza no modo como se vê as coisas
e os lugares que estas coisas ocupam. A intervenção humana insere na natureza a própria
distinção entre pureza e imundície, ordem e desordem. A pureza aqui é uma visão das coisas
colocadas em lugares diferentes dos que elas ocupariam, se não fossem levadas a se mudar para o
outro, do mesmo modo como é também uma visão da ordem, isto é, de uma situação em que cada
coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum outro. Assim, não são as características imanentes
das coisas que as transformam em “sujas”, mas tão-somente sua localização e, talvez ainda mais
precisamente, sua localização na ordem das coisas idealizada pelos que procuram a pureza. Desta
noção de pureza e de sua incessante busca na atividade humana desvela-se a noção de ordem, a
qual vem a significar um meio regular (e regulador) para os nossos atos num mundo em que não
se pode confiar na ordem cuidando dela própria, num mundo em que as probabilidades dos
acontecimentos não estejam dadas ao acaso mas distribuídas a partir de um hierarquia estrita de
possibilidade.
Para que a ordem e pureza das coisas se mantenham, é necessário que os indivíduos
partilhem dos mesmos referencias que orientam diariamente a construção destas duas noções em
nossa personalidade. Como afirma Bauman, “nenhum de nós pode construir o mundo das
significações e sentidos a partir do nada: cada um ingressa num mundo ‘pré-fabricado’, em que
certas coisas são importantes e outras não o são; em que as conveniências estabelecidas trazem
certas coisas para a luz e deixam outras na sombra” (op. cit., p.17)22. Aqui, a idéia de
“perspectivas recíprocas” deve-se basear num pressuposto ainda mais profundo, qual seja, o de
que não sou exatamente eu quem assume a reciprocidade da perspectiva e se comporta em
conformidade com isso, mas de que essa própria suposição de reciprocidade é retribuída. Sem
esta base de confiança, o sistema social de relações e representações que os indivíduos
diariamente mantêm de e sobre si mesmos entraria em colapso a ponto de colocar em risco as
próprias condições da sociabilidade23.
22 Com isso, temos novamente presente a idéia da necessidade/possibilidade de se escolher o que ver e representar, do mesmo modo como esta escolha também atua na esfera do ser, agir e pensar para a qual chamava a atenção em Simmel. 23 Vale relembrar aqui as asserções de Giddens com respeito às noções de confiança e risco. Estas duas categorias estão presentes no pensamento giddensiano a partir do momento em que o movimento de desencaixe operado pelas instituições modernas impele o indíviduo a conferir credibilidade aos sistemas abstratos, os quais se encontram mais e mais presentes tanto na esfera objetiva como na subjetiva da vida (pós-)moderna. Mais precisamente, esta nova configuração social demanda uma nova configuração individual: “Viver na ‘sociedade de risco’ significa viver com
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A fim de colocar esta rede de “suposições recíprocas” à prova, Bauman nos encaminha a
pensar o impacto causado pela presença de um estranho num meio onde se partilhe as mesmas
concepções de ordem e pureza. Tendo em mente que a noção de confiança advém justamente da
reciprocidade de supor como “naturais” a ordem da pureza e a pureza da ordem estabelecidas no
meio social, o impacto da chegada do estranho neste meio “despedaça a rocha sobre a qual
repousa a segurança da vida diária” (op. cit., p.19). Através desta metáfora, Bauman nos alerta
para o fato de que, num mundo constantemente em movimento, a angústia que se condensou no
medo dos estranhos impregna a totalidade da vida diária:
ao mesmo tempo que traça suas fronteiras e desenha seus mapas cognitivos, estéticos e
morais, ela [a sociedade] não pode senão gerar pessoas que encobrem limites julgados
fundamentais para a sua vida ordeira e significativa, sendo assim acusadas de causar a
experiência do mal-estar como as mais dolorosa e menos tolerável (BAUMAN, op. cit.,
p.27).
Assim, uma vez que cada esquema de pureza gera sua própria sujeira e cada ordem gera
seus próprios estranhos, preparando o estranho à sua própria semelhança e medida, o estranho
agora é tão resistente à fixação como ao próprio espaço social. No mundo pós-moderno de estilos
e padrões de vida “livremente concorrentes”, há ainda um severo teste de pureza que sequer seja
transposto por todo aquele que solicite ser ali admitido. Aqueles que não podem passar por esta
iniciação constituem a “sujeira” da pureza pós-moderna. Como o mundo pós-moderno é marcado
pela insígnia do consumo, o indivíduo precisa revelar-se capaz de ser seduzido pela infinita
possibilidade e constante renovação promovida pelo mercado consumidor, de se regozijar com a
sorte de vestir e despir identidades, da passar a vida na caça interminável de cada vez mais
intensas sensações e cada vez mais inebriante experiência. Noutras palavras, “encarados a partir
da nova perspectiva do mercado consumidor, eles são redundantes – verdadeiramente ‘objetos
fora do lugar’” (op. cit.,p.24).
Resgatando a idéia giddensiana de desencaixe, Bauman afirma que o projeto moderno
prometia libertar o indivíduo da identidade herdada, mas que este movimento não se deu por
completo na realidade. Prometendo libertar o indivíduo de seu fardo social, a modernidade não
uma atitude calculista em relação às possibilidades de ação, positivas e negativas, com que somos continuamente confrontados, como indivíduos e globalmente em nossa existência social contemporânea” (GIDDENS, 2002b, p.33).
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tomou porém uma firme posição contra a identidade como tal, contra se ter uma identidade,
mesmo uma sólida, exuberante e mesmo imutável identidade. O projeto moderno neste sentido
apenas transformou a identidade, que era uma questão de atribuição, em realização, fazendo dela,
assim, uma tarefa individual e da responsabilidade do indivíduo. Tal como já indicamos acima,
havia desta forma um vínculo bastante estrito entre a ordem social como projeto e a vida
individual como projeto. Encontrando talvez uma explicação pelo vazio deixado por Simmel
entre a crescente diferenciação e distanciamento das culturas objetiva e subjetiva, podemos
afirmar que os projetos de vida individuais não encontraram nenhum terreno estável em que
pudessem acomodar uma base segura onde fosse possível estabelecer novos parâmetros e
referencias para o processo de subjetivação, e os esforços da constituição não podem deter por si
só as consequências do desencaixe:
o sentimento dominante, agora, é a sensação de um novo tipo de incerteza, não limitada
à própria sorte e aos dons de uma pessoa, mas igualmente a respeito da futura
configuração do mundo, a maneira correta de viver nele e os critérios pelos quais os
acertos e erros da maneira de viver (BAUMAN, op. cit., p.32).
Assim sendo, se pode afirmar que o mundo pós-moderno está se preparando para a vida
sob uma condição de incerteza que é permanente e irredutível. A pragmática em mudança nas
relações interpessoais, e aqui lembremo-nos da noção de “política da vida” de Giddens, agora
permeada pelo dominante espírito do consumismo e, desse modo, dispondo do outro como a
fonte potencial de experiência agradável, em parte merece uma censura. Para o que quer que a
nova pragmática ainda seja boa, ela não tem como gerar laços duradouros nem, mais
seguramente, laços que suponham duradouros e tratados como tais. Percebemos com isso a
encarnação e reprodução das mudanças engendradas pela (pós-)modernidade no processo como
(nos) relacionamos e (nos) representamos através de relações e representações que mantemos em
sociedade. Vejamos como o autor percebe isso quando trata especificamente dos relacionamentos
da modernidade líquida:
elas são “relações virtuais”. Ao contrário dos relacionamentos antiquados (para não
falar daqueles com “compromisso”, muito menos dos compromissos de longo prazo),
elas parecem feitas sob medida para o líquido cenário da vida moderna, em que se
espera e se deseja que as “possibilidades românticas” (e não apenas românticas) surjam
40
e desapareçam numa velocidade crescente e em volume cada vez maior, aniquilando-se
mutuamente e tentando impor aos gritos a promessa de “ser a mais satisfatória e a mais
completa” (BAUMAN, 2004, p.12).
Como se dá em termos mais amplos, a imagem de si mesmo se parte numa coleção de
instantâneos, e que cada pessoa deve evocar, transportar e exprimir seu próprio significado, mais
frequentemente do que abstrair os instantâneos do outro. Ao invés de construir sua identidade,
gradual e constantemente, uma série de “novos começos”, os quais são experimentados como
formas instantaneamente agrupadas, toma conta do processo de (re)organização da vida subjetiva.
Segundo Bauman, essa é a identidade que se ajusta ao mundo em que a arte de esquecer é um
bem não menos, se não mais, importante do que a arte de memorizar, em que esquecer, mais do
que aprender, é a condição de contínua adaptação. A isso Bauman chamou de identidade de
palimpsesto.
Lançadas pois as principais vias de análise que Bauman utiliza para compreender e
analisar o fenômeno da modernidade e o modo como ela lança sobre a modernidade líquida seus
contornos e condicionantes, vejamos agora mais propriamente o modo como podemos articular a
idéia deste mal-estar experimentado na pós-modernidade com a possibilidade de pensarmos isso
no processo de (re)articulação e (re)organização na maneira como (nos) relacionamos e (nos)
representamos (a) nós mesmos e entre si.
Como acentuado acima, a base para pensarmos a noção e o conceito de mal-estar é o grau
de proporção que a sociedade permite, e em parte possibilita, entre liberdade, segurança e
felicidade. Desta forma, se na modernidade o mal-estar era advento de uma espécie de segurança
que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade individual, na modernidade
líquida o mal-estar provém de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma
segurança individual pequena demais.
Se pensarmos portanto que a pós-modernidade engendra novas formas de mal-estar a
partir do momento em que tolera pouca segurança individual e no sentido e simultaneamente em
que oferece muita liberdade (pelo menos de movimento) na busca da felicidade individual,
podemos realmente tomar este processo num primeiro momento como uma forma de
funcionamento da dialética entre o local e o global. Com isso, afirmo que o fato de estarmos
impelidos a experimentar este mal-estar em nossas relações nos leva a reproduzi-lo sob a forma
de representações, a partir do momento em que esta experiência nos leva a uma (re)articulação e
41
(re)organização do sentido e significado do mundo. A noção de Giddens de projeto reflexivo do
eu se faz aqui bastante interessante porque nos dá margem concreta para pensarmos estes dois
movimentos num só conceito: a (re)articulação do modo como representamos e (nos)
relacionamos com o mundo e os simultâneos efeitos global e individualizantes das consequências
da (pós-)modernidade:
o pano de fundo é o terreno existencial da vida moderna tardia. Num universo social
pós-tradicional, organizado reflexivamente, permeado por sistemas abstratos, e no qual
o re-ordenamento do tempo e do espaço re-alinha o local com o global, o eu sofre
mudança maciça. A terapia, inclusive a auto-terapia, tanto exprime a mudança como
fornece programas de efetiva-la em termos de auto-realização. No nível do eu, um
componente fundamental da atividade do dia-a-dia é simplesmente o da escolha.
Obviamente nenhuma cultura elimina inteiramente a escolha dos assuntos cotidianos, e
todas as tradições são efetivamente escolhas entre uma gama indeterminada de padrões
possíveis de comportamento. Mas, por definição, a tradição, ou os hábitos
estabelecidos, ordena a vida dentro de canais relativamente fixos. A modernidade
confronta o indivíduo com uma complexa variedade de escolhas e ao mesmo tempo
oferece pouca ajuda sobre as opções que devem ser selecionadas (GIDDENS, 2002b,
p.79).
Disso decorre a possibilidade de pensarmos este mal-estar como elemento paralelo à
noção de blasé em termos da vida mental que a (pós-)modernidade inaugura. Não é apenas no
sentido da forma que os desencaixes institucionais, o crescente distanciamento entre as culturas
objetiva e subjetiva ou mesmo a re-organização dos ideais de pureza e ordem na sociedade atuam
sobre aquilo que pensamos e representamos. É também, e talvez sobretudo, no sentido do
conteúdo que este processo deve ser levado em consideração. Tanto a forma como o conteúdo
deste processo devem ser priorizados no momento de indicar as consequências da modernidade
no modo como (re)conhecemos, representamos e experimentamos o mundo. O sentimento de
mal-estar atua neste processo no sentido de clarificar e reificar as noções de ordem e pureza, as
quais, como dito acima, guardam muito da forma como a sociedade pensa a si e a seus
indivíduos.
Desta forma, não posso deixar de pensar neste tema sem lembrar-me da feliz colocação de
Bourdieu quanto ao paradoxo da dóxa, quando amargaríamos uma certa ambigüidade entre a
42
dominação e a adesão/passividade expressas pelos dominados frente à estrutura que os domina e
relaciona:
de fato, jamais deixei de me espantar diante do que poderíamos chamar de o paradoxo
da dóxa: o fato de que a ordem do mundo, tal como está, com seus sentidos únicos
eseus sentidos proibidos, em sentido próprio ou figurado, suas obrigações e suas
sanções, seja grosso modo respeitada, que não haja um maior número de transgressões
ou subversões, delitos e “loucuras” [...] ou, o que é ainda mais surpreendente, que a
ordem estabelecida, com suas relações de dominação, seus direitos e suas imunidades,
seus privilégios e suas injustiças, salvo uns poucos acidentes históricos, perpetue-se
apesar de tudo tão facilmente, e que condições de existência das mais intoleráveis
possam permanentemente ser vistas como aceitáveis ou até mesmo como naturais
(BOURDIEU, 2005, p.7).
Se concluirmos com Bauman, devemos dizer que o aspecto novo, caracteristicamente pós-
moderno e possivelmente inaudito da diversidade dos nossos dias é a fraca, lenta e ineficiente
institucionalização das diferenças e sua resultante intangibilidade, maleabilidade e curto período
de vida. Se desde a época do desencaixe e ao longo da era moderna, dos projetos de vida, o
problema da identidade era a questão de como construir a própria identidade, como construí-la
coerentemente e como dotá-la de uma forma universalmente reconhecível – atualmente, o
problema da identidade resulta principalmente da dificuldade de se manter fiel a qualquer
identidade por muito tempo, da virtual impossibilidade de achar uma forma de expressão da
identidade que tenha boa probabilidade de reconhecimento vitalício, e a resultante necessidade de
não adotar nenhuma identidade com excessiva firmeza, a fim de poder abandoná-la de uma hora
para outra, se assim for preciso (BAUMAN: 1998).
É justamente este caráter de ambigüidade e ambivalência que caracteriza a pós-
modernidade e as relações e representações aí negociadas, na medida em que se dá a
institucionalização da diferença a partir de seu simultâneo processo de substancialização e
esvaziamento de sentidos. Como afirmava Adorno e Horkheimer, “a indústria cultural
continuamente priva seus consumidores do que continuamente lhes promete” (2002: 37). De
forma análoga, sob o ponto de vista deste trabalho, a pós-modernidade opera lógica semelhante
na medida em que põe em movimento um concomitante processo de institucionalização e
desubstancialização das diferenças. Se por um lado opera o culto da forma, por outro opera o
43
esvaziamento do conteúdo; se por um lado oferece a possibilidade, por outro lhe imputa o caráter
de obrigação; se por um lado possibilita o diferente, por outro impõe a indiferença.
Desta forma, nos aproximamos do momento final deste trabalho, onde trabalharemos as
noções centrais lançadas neste texto a partir de suas representações nos filmes Clube da Luta e
Crash – No Limite. Permitam-me que eu não aborde os aspectos metodológicos e propriamente
fílmicos destes dois trailers, mas que simplesmente os tome como representações artísticas
daquilo que aqui desenvolvemos no plano teórico e conceptual.
Ainda que, como coloquei logo no começo deste texto, a escolha por estes filmes seja ela
mesma já baseada nas premissas teóricas deste trabalho, não é meu propósito lançar mão de
metodologias de análise para interpretar estes filmes. O objetivo em introduzi-los se dá na medida
pura e simples de que o cinema atua socialmente como um elemento (re)articulador e
(re)organizador das relações e representações experimentadas e formadas pelo indivíduo na pós-
modernidade, de forma que sua inserção aqui dinamiza e oxigena as premissas que dão
sustentabilidade a este trabalho na mesma proporção em que simultaneamente sua escolha reflete
o modo através do qual estamos abordando e problematizando o objeto aqui proposto:
a pós-modernidade não abandona os imperativos de racionalidade crítica, ao contrário,
leva a crítica às mais profundas consequências, questionando os conceitos e
pressupostos da modernidade. E há boas “razões” para isso, que se revelam pela própria
crise na cultura moderna. As “razoes” da pós-modernidade são “razões” para que se
reavaliem os “desacertos do projeto”, para que sejam revistas as noções mais
fundamentais da modernidade, incluindo o próprio conceito de “Razão”; são “razões”
para que se mantenha a autonomia das esferas culturais, evitando reducionismos de
qualquer espécie – seja do cientificismo, ou, na condição pós-moderna, do esteticismo.
A cultura pós-moderna não tem mais “Razão”, tem “razões” (CHEVITARESE, 2001,
p.46-47).
44
CAPÍTULO 4: RELAÇÕES E REPRESETAÇÕES DA PÓS-MODERNIDADE EM
CRASH – NO LIMITE E CLUBE DA LUTA
Como desenvolvemos no decorrer deste trabalho, a pós-modernidade, e mais
precisamente as relações e representações que ela opera e engendra, são marcadas por um duplo
movimento que a caracteriza: a crescente e constante capacidade de os indivíduos refletirem o
mundo está associada ao fato de os processos de desencaixe subtraírem a subjetividade de um
novo arranjo institucional da mesma forma como estes mesmos processos subtraem da
subjetividade aquilo que lhe significa e substancializa em seu conteúdo. Retomando a idéia
daquela inversão fundante da pós-modernidade, a modernidade líquida lança novos processos de
negociação na dialética entre o local e o global, trazendo à luz novas formas através das quais os
sujeitos pós-modernos (se) relacionam e (se) representam no mundo. Esta vida mental a que nos
referimos, esta reflexividade própria dos arranjos da alta modernidade é justamente o elemento
desta última parte do trabalho. É sob este processo de (re)articulação e (re)organização da
experiência pós-moderna que quero introduzir e sugerir os filmes Crash – No Limite e Clube da
Luta como elementos constituintes e refletores das novas sociabilidades e subjetividades da pós-
modernidade. É na medida em que este novo arranjo institucional nos permite crescente e
constantemente (re)pensarmos nossas representações e experiências que tomamos o cinema como
aspecto refletor e produtor de identidades. Muito além de seu aspecto representante da vida e dos
conteúdos nos quais se inspira, o cinema pode ser tomado também como “representações de
representações”, isto é, no sentido em que se vale ele próprio de representações para se fazer
representante.
Como muitos estudiosos da cultura e sociedade contemporâneas já apontaram, o cinema
vem ocupando um papel cada vez mais central na produção de subjetividades e das narrativas
culturais hegemônicas ao longo do século XX. As linguagens desenvolvidas por e através do
cinema trazem para dentro de si as expectativas e ansiedades sociais mais profundas. Como
primeiro grande meio de comunicação de massas que se vale da imagem em movimento para
construir significados, inicia um novo momento da cultura da modernidade, criando novas formas
de articular sentidos e de produzir experiências (ADELMAN, 2005). É na medida em que o
objeto artístico cria um público sensível à arte e capaz do prazer estético que a produção cria não
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apenas um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto. É este duplo movimento
da arte de representar como (re)conhecimento do mundo que tentaremos encerrar com esta
discussão.
A representação não é redutível ao objeto externo, assim como não é produto imediato da
memória ou uma tradução mimética da experiência. A representação possui um caráter
construtivo e relativamente autônomo que comporta a percepção, interpretação e reconstrução do
objeto e a expressão do sujeito. A representação é uma criação, por isso, plena de historicidade no
seu movimento de enunciar ou revelar pelo discurso e pela imagem o movimento do mundo.
Segundo Henri Lefebvre (2006), a extensão do campo das imagens faz com que o sentido do
imaginário seja deslocado na direção dos aparelhos da visão. Instituem-se novas mediações tanto
na composição de imagens como na sua recepção e incorporação pelos sujeitos e espaços sociais.
No entanto, o imaginário ainda designa a relação da consciência com o real, com outro lugar e
com outro corpo por mediação das imagens. Desta forma, o possível, o virtual e o futuro não são
representados senão através do imaginário. Trabalhadas e elaboradas as imagens se tornam
potências da experiência social, conferindo ao imaginário um papel igual ou superior ao do saber
que se refere ao real (BARBOSA, 2000)24.
O cinema, ou até mesmo a obra de arte e a produção social artística per si, além de uma
forma de percepção e interpretação do mundo, é também a representação de projetos de mundo e,
como tal, é capaz de impulsionar transformações na sociedade e na constituição de seus
indivíduos. Para Walter Benjamin, além das já comentadas alusões de Adorno e Horkheimer
quanto à indústria cultural, a sociedade moderna operou uma radical transubstanciação da arte
como objeto de culto em arte como objeto da reprodução em massa. Assim sendo, essa nova
experiência estética de (re)produção e recepção das obras de arte configuram e expressam
mudanças radicais na forma de perceber, conceber e representar o mundo. Neste sentido devemos
atentar também para o fato de metrópole ter se tornado o espaço das transformações políticas,
culturais e técnicas que definiam os rumos da cultura (pós-)moderna e desta forma inventavam
novos sentidos para a arte e a arte de se fazer arte.
24 Vale dizer que esta noção de imaginário aqui colocada pode ser aproximada das noções de reflexividade e vida mental com as quais estamos trabalhando no desenvolvimento deste trabalho. É através desta mentalidade própria da vida (pós-)moderna que chamamos a atenção para a reorganização no modo como representamos e relacionamos no e com o mundo. Esta última parte do trabalho pretende contribuir para esta discussão na medida em que trabalha mais precisamente o processo de representação e reconhecimento do mundo através do cinema, este aqui tomado como elemento refletor e formador de novas sociabilidades e subjetividades.
46
O cinema surgia com isso como uma arte destinada a ser exibida às massas, não apenas no
sentido de suas condições de (re)produção, mas sobretudo porque constituía a forma de
manifestação artística que mais se aproximava da sensibilidade do indivíduo moderno. A imagem
do real fornecida pelo cinema seria para Benjamin infinitamente mais significativa do que
qualquer outro instrumento ou meio. Essa característica do cinema anunciava-se não apenas no
modo pelo qual o indivíduo se apresentava ao aparelho mas, essencialmente, na maneira pela
qual ele representa para si o mundo que o rodeia:
procedendo ao levantamento das realidades através de seus primeiros planos que
também sublinham os detalhes ocultos nos acessórios familiares, perscrutando as
ambiências banais sob a direção engenhosa da objetiva, se o cinema, de um lado, nos
faz enxergar melhor as necessidades dominantes sobre nossa vida, consegue, de outro,
abrir um imenso campo de ação do qual não suspeitávamos (BENJAMIN, 1983, p.22)
Do ponto de vista da (re)produção de imagens, o cinema pode ser entendido como um
sistema complexo incorporando tanto tecnologia como discursos da câmera, da iluminação,
edição, cenário e som, elementos que contribuem no processo de constituição de representações
do mundo através da experiência estética. Desta forma, podemos afirmar que a representação
fílmica cria o visível, porém imaginário, que possui como referente imediato a realidade. Abre-se
com isso a possibilidade do jogo da imaginação e da simulação, uma vez que as representações
audiovisuais criam possibilidades de (re)conhecimento e identificação com o real em movimento.
Portanto, as representações cinematográficas estabelecem relações entre o visível e o invisível,
permitindo uma interação entre o ver imediato (a forma) e sua significação (o conteúdo)
(BARBOSA, 2000)25.
Desta forma, representação artística e vida social estão profundamente entrelaçados de
modo bastante reflexivo. O objeto estético com a sua capacidade de fazer (e dar) sentido é com
isso visto não simplesmente como produto das experiências individual e coletiva, mas senão
como elemento formador e constituinte destas experiências. Nesta perspectiva, a arte é entendida
não como um simulacro da vida humana ou como sua representação mecânica, mas como uma
25 Este pode ser outro viés para se abordar a dialética entre o local e o global, na medida em que a representação artística trabalha tanto a formação do objeto como a percepção e interpretação que os indivíduos dela fazem. Desta forma, não é apenas a formação de um sujeito sensível à experiência estética e de um objeto inteligível a esta
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forma específica de experiência simbólica. O entendimento desta experiência é tomado pela
crescente e constante possibilidade de sentirmos, refletirmos e representarmos o mundo sob
diferentes formas, fazendo com que a relação que mantemos com e entre nós mesmos esteja dada
na mesma proporção como representamos estas relações. Com isso,
a compreensão desta realidade, ou seja, de que estudar arte é explorar uma
sensibilidade; de que esta sensibilidade é essencialmente uma formação coletiva, e de
que as bases de tal formação são tão amplas e tão profundas como a própria vida social,
nos afasta daquela visão que considera a força estética como uma expressão
grandiloquente dos prazeres do artesanato. Afasta-nos também da visão a que
chamamos de funcionalista, que, na maioria das vezes, se opôs à anterior, e para a qual
as obras de arte são mecanismos elaborados para definir as relações sociais, manter as
regras sociais e fortalecer os valores sociais (GEERTZ, 1997, p.50).
Com isso, a forma e o conteúdo da representação e do objeto artísticos estão
completamente entrelaçados no processo de representação e constituição de novas subjetividades
e sociabilidades. Enquanto narrativas e discursos, os filmes se caracterizam como elementos
formadores e refletores dos novos sujeitos na (pós-)modernidade, abrindo, como colocou
Benjamin, “um imenso campo de ação” no projeto moderno de indivíduo e sociedade e no modo
como suas consequências engendrariam novas formas de (re)conhecimento e representação do
mundo. É a partir deste ponto de vista que chamo a atenção para os filmes Crash – No Limite e
Clube da Luta, na medida em que simultaneamente refletem e inspiram os novos arranjos da pós-
modernidade na maneira como (nos) relacionamos e (nos) representamos diante dos estímulos e
condições de vida pós-modernos. Como desenvolvido acima, esta pós-modernização de nossas
relações e representações não nos leva necessariamente a uma incapacidade de sentir diferenças e
nuances da vida social, mas sim a uma forma tipicamente líquida de percebermos os objetos e os
sujeitos, própria da pós-modernidade. É justamente este movimento de trazer à luz o modo
especificamente pós-moderno de sentir, agir e (re)conhecer o/no mundo que este trabalho tenta
dar conta através de algumas de suas possibilidades analíticas. De igual maneira, é dentro destas
possibilidades que indico a leitura e interpretação destes filmes.
experiência que estão em jogo na (pós-)modernidade, mas sobretudo o modo como a partir desta reorganização passamos a representar, (re)conhecer e agir no mundo.
48
Como comentado acima, não é interesse e objetivo deste trabalho um resgate amiúde
destes filmes, mas sim comentá-los e relacioná-los a partir do já colocado quanto às
consequências da modernidade no processo de (re)articulação e (re)organização reflexiva do eu e
do mundo. A escolha destes dois filmes se deu primeiramente por uma identificação estética
decorrentes das premissas teóricas e conceptuais deste trabalho. Neste caso, sugiro que estes
filmes representam esteticamente as relações e representações pós-modernas aqui sugeridas como
características da contemporaneidade. Num segundo momento, esta escolha se deu também em
função de serem filmes conhecidos para além dos círculos intelectuais, com amplo respaldo de
público. Falar aqui de filmes “estranhos” poderia fazer sentido apenas para um número bastante
reduzido de pessoas. No entanto, escolher filmes cujo sucesso de público abarcasse outras esferas
sociais seria uma maneira mais interessante até mesmo de trazer à luz a amplitude e
extensionalidade das consequências das quais estamos tratando aqui. Por fim, são filmes que não
apenas representam e inspiram representações per si das relações pós-modernas, como aqui se
sugere, mas também que são capazes de engendrar sociabilidades e subjetividades outras para
além do espectro do status quo. Além disso, ambos tratam internamente de uma re-organização
da experiência no mundo contemporâneo a partir de uma re-visão dos valores, hábitos e
sentimentos vigentes no processo de subjetivação e socialização.
Não por acaso, ambos retratam grandes metrópoles mundiais, condições nas quais Simmel
sugeria o surgimento do blasé embotando a experiência humana. Crash – No limite é vivenciado
em Los Angeles a partir de uma mistura de estereótipos no cenário urbano norte-americano:
negros, iranianos, ricos, policiais, brancos, pobres, coreanos e latinos disputam ali as (di)visões
do espaço e cenário metropolitanos. Claramente destinado a abordar a questão do racismo e da
discriminação nas relações mantidas entre os personagens do filme, o diretor Paul Haggis
reconstrói um cenário onde a (in)diferença e o sentimento blasé típico das relações
contemporâneas estejam dados de modo a refletir a própria representação e experiência pós-
modernas. Seguindo uma trama não-linear e com histórias paralelas acontecendo, o filme reporta
a organização do social/urbano a partir das relações e representações de cada grupo dentro da
sociedade. Aliás, sua própria construção já reflete e representa um quê de pós-moderno: esferas
autônomas e relativamente (in)diferentes entre si que se mantêm através da (in)diferença do
outro. Aí temos aquilo que Bauman dizia ser o sentimento de mal-estar na pós-modernidade, na
medida em que a re-organização dos ideais de pureza e ordem disputam neste cenário espaço com
49
a re-organização da liberdade e segurança individuais. É deste movimento que temos a sensação
de mal-estar quando assistimos ao filme, um sentimento duplo e ambíguo de angústia e alívio que
nos impele a considerar a noção do eu e dos outros em nossas relações e representações
contemporâneas.
Em Clube da Luta, filme retratado em New York, os ideais de pureza e ordem pós-
modernos novamente aparecem sob a forma de uma constante re-articulação e re-organização da
experiência individual do estar e ser no mundo contemporâneo. Seus protagonistas Jack (Edward
Norton) e Tyler (Brad Pitt) surgem nesta trama como arquétipos de uma sociedade hedonista e
espetacularizada onde os indivíduos amargam o sentimento de solidão e desamparo. Neste
cenário, não apenas a sociedade pós-moderna surge representada, mas também o indivíduo
projetado por esta sociedade e o modo como eles se relacionam e representam aquilo que dá
sentido às suas vidas. Neste filme, Jack abandona sua vida de executiva de uma companhia de
seguros para fundar com Tyler uma organização de resistência ao estilo de vida contemporâneo.
A metáfora do clube da luta fundado é justamente o fato de expressar um movimento de
resistência ao embotamento da sensibilidade imputado às relações pós-modernas, da mesma
forma como reflete a liquidez da qual tenta escapar. Não por acaso, e aqui voltamos ao colocado
por Simmel quanto a monetarização da vida, esta organização visa abalar e modificar o estilo de
vida contemporâneo a partir da destruição de instituições financeiras, símbolos da era do
consumo experimentada e representada pelos indivíduos e pelas sociabilidades pós-modernas.
Antes mesmo de refletir e representar o sentimento e noção de blasé, Clube da Luta nos
ajuda a perceber as nuances do processo de (re)conhecimento e (re)presentação do mundo
engendrados pela modernidade tardia. Aqui compreendido, este filme lança luz sobre a forma
como a estetização da vida pós-moderna e a importância do consumo na re-organização da
liberdade e segurança individuais atuam no processo de subjetivação e socialização das dos
indivíduos. Antes mesmo de operar um esvaziamento da experiência humana na pós-
modernidade, este filme representa o novo contorno da forma como representamos, sentimos e
somos no mundo contemporâneo. Muito além de apenas representar as sociabilidades, inspira sua
transformação e sua re-visão.
Advém daí aquele recorrente sentimento de mal-estar que por vezes estamos suscetíveis a
sentir em nossas relações e representações, de uma constante e crescente (in)capacidade em lidar
com a multiplicidade e variedade de formas e conteúdos. Não somos facultados a fazer escolhas,
50
nos vemos constrangidos a escolher. A liberdade neste sentido se torna um fardo, justamente,
como dizia Bauman, porque comporta uma segurança individual pequena demais na construção
de nossa reflexividade. Neste mundo estamos constantemente obrigados a ser livres, talvez
demasiado livres. E é justamente este o paradoxo que impõe aos indivíduos o mal-estar pós-
moderno, o fato de, como colocava Adorno, nos ser negado aquilo que justo nos é
deliberadamente prometido e oferecido. Este é o paradoxo da pós-modernidade, uma constante e
crescente afirmação e negação de suas próprias promessas e possibilidades.
51
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como salientava na Introdução deste, o que se pretendia aqui era um texto simples e
despretensioso sobre a modernidade e suas consequências na pós-modernidade, sobretudo no
modo como passamos a representar o mundo a partir da experiência das nossas relações. Em se
tratando de um trabalho essencialmente teórico em sua proposta e inspiração, tinha por objetivo
apenas um resgate dos principais conceitos e concepções dos três autores com os quais trabalhos
de modo a colocá-los em diálogo e debate, o que nos proporcionou uma análise mais integrada e
dinâmica das consequências da modernidade, da noção simmeliana de blasé e do mal-estar nas
relações pós-modernas.
Desta forma, no primeiro capítulo nos concentramos na forma como o processo de
desencaixe institucional trabalha os conceitos de reflexividade, projeto reflexivo e a dialética
entre o local e o global na teoria de Giddens. Daí foi possível destacar a possibilidade de imbricar
estes conceitos e perspectivas com a análise que Simmel opera do fenômeno da vida mental na
metrópole, além de lançar luz sobre a questão de como a experiência de (re)conhecimento do
mundo se vê alterada na modernidade tardia. A fim de viabilizar esta proposta, lançamos mão da
idéia de reflexivização da vida cotidiana na (pós-)modernidade, a fim de nos tornar mais
próximas as consequências deste processo na re-articulação e re-organização daquilo que
projetamos sobre e para nós.
O segundo capítulo foi dedicado à discussão dos principais pontos da perspectiva
simmeliana para este trabalho, sobretudo no sentido de trazer ao cerne da discussão sua noção de
blasé e a possibilidade de através dela fazermos um resgate e ponte com a noção giddensiana de
reflexividade e já introduzir a questão do mal-estar da pós-modernidade. Além de identificarmos
seus impactos no modo mesmo como vemos e percebemos o mundo, chamamos de blaseificação
a possibilidade de encararmos com maior naturalidade aqui que na realidade surgiu como uma
necessidade: a atitude blasé. Daí introduzimos a idéia de a vida mental na (pós-)modernidade
representar um modo bastante particular de ser, sentir e agir no mundo moderno.
O terceiro capítulo foi destinado a dar continuidade na perspectiva de Bauman das idéias
discutidas até então neste trabalho, salientando sobretudo a idéia de um mal-estar experimentado
pelos indivíduos na modernidade e em sua forma líquida e relações e representações. Neste ponto
52
novamente indicamos a possibilidade de pensarmos esta perspectiva através da idéia de
reflexividade e de uma vida mental blasé, resgate que nos levou a considerar a importância de
termos em conta da margem existente entre liberdade, segurança individual e felicidade na
compreensão do como se dá a (re)organização da experiência da vida na (pós-)modernidade.
O quarto e último capítulo, como coloquei anteriormente, não se dedicou a um resgate
propriamente fílmico dos dois trailers aqui sugeridos. O que fizemos foi, do ponto de vista deste
trabalho, algo mais saudável e interessante para a discussão que se propôs: o resgate da
importância e da possibilidade de tomarmos manifestações artísticas, em particular o cinema,
como expressões e promoções do processo de representação e experiência do mundo através das
sociabilidades e subjetividades que elas inspirar e refletir. Desta forma, fizemos uma
reconstrução conceptual do cinema enquanto um elemento artístico de “representação de
representações”, justamente por partilhar com a realidade que expressa, manifesta e cria em suas
expressões. A partir desta premissa, re-articulamos algo destes dois filmes com o
desenvolvimento teórico e conceptual que desenvolvemos ao longo do trabalho.
Com isso, a idéia de que a modernidade (re)organiza e (re)articula o modo como
conhecemos e percebemos o mundo nada mais é do que uma forma um pouco mais integrada que
afirmar que as conseqüências da modernidade atuam na transformação da intimidade, da
identidade e da subjetividade do indivíduo. Aqui compreendida, esta idéia pretende chamar a
atenção para a possibilidade de pensarmos as instituições modernas, senão mesmo a própria
modernidade, a partir de uma epistemologização de suas bases. É isto o que queremos ao afirmar
que a modernidade re-articula a maneira como sentimos, pensamos e agimos no mundo, na
medida em que transforma o modo como (nos) representamos e (nos) relacionamos. Tal como
trabalhado acima, esta transformação se dá tanto no sentido sujeito-sujeito como no sentido
sujeito-objeto, tornando aquela inversão fundante da modernidade algo mais palpável e visível.
Contudo, antes mesmo de uma sociologia da cultura da modernidade, ou antes mesmo de
realizar uma sociologia do conhecimento da modernidade, este trabalho pretendeu, por vezes
flagrante mas discretamente, defender tudo que aqui que constatou e destacou como
conseqüências da modernidade. Antes mesmo que uma sociologia dos outros da
(pós-)modernidade, este trabalho foi uma sociologia do eu, uma forma através da qual pude
racionalizar minha experiência enquanto sociólogo e enquanto indivíduo na medida em que re-
organizava e re-articulava o modo como (me) relacionava com os “outros”, com as coisas e
53
comigo mesmo. Daí a importância de pensar os termos aqui colocados sob a acuidade de uma
epistemologia vigilante, justamente a fim de não permitir que sujeito e objeto se confundissem.
Como afirmei acima, a pós-modernidade é uma terra de possibilidades, e este trabalho e a
forma como articulou suas premissas teóricas de modo a re-construir uma abordagem do pós-
moderno é apenas uma delas. De certa maneira, ainda concordo com Marx quando diz que os
indivíduos fazem sua própria história, mas talvez não totalmente do modo como gostariam.
Antes mesmo de encurralar o blasé e o mal-estar que sentimos e por vezes somos nas
nossas líquidas relações e representações, me permiti aqui defender e abordar estes conceitos
como produtos culturais necessários para a vida na pós-modernidade, não porque a constituição
de uma nova vida mental assim o exija, mas talvez porque precisemos por vezes ser blasé e sentir
este mal-estar no modo como nos relacionamos e nos representamos. Este é um sentimento
vivificante que nos torna únicos e simultaneamente idênticos e distintos entre nós e para nós
mesmos. É uma nova possibilidade de estarmos, sermos e sentirmos no mundo.
Desta forma concluo, se é que este termo aqui realmente se aplica, que a pós-modernidade
instaura em nós uma certa paixão e afinidade psicológica pela (in)diferença, pela angústia, pela
ansiedade e pelo modo por vezes sombrio como lidados com a própria (in)diferença. Precisamos
não apenas agir, pensar, estar e sentir a pós-modernidade em nossas relações e representações
com e no mundo, mas essencialmente descobrir e experimentar a vida sob termos. Este processo
nos abre um novo panorama de subjetividades e sociabilidade no cerne do processo de
subjetivação capaz de re-alocar e até mesmo reanimar o mundo pós-moderno no modo como
(nos) representamos e (nos) relacionamos entre nós e com nós mesmos.
Para mim, este blasé e este pós-moderno representam o modo como o fazer ciência e o ser
sociólogo fazem com que eu represente, descubra e experimente o mundo nas relações que
mantenho com meus objetos, com o mundo e comigo mesmo.
54
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