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1 AS TERRAS DEVOLUTAS E O NOVO CÓDIGO CIVIL Denis Domingues Hermida Advogado, especialista em Direito da Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio Vargas/SP, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários e Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP e Doutorando em Direito do Trabalho pela PUC/SP Sumário : 1. Introdução. 2. Conceito e classificação de bem público. 2.1.Conceito de bem público. 2.2. Classificação dos bens públicos (de uso comum, de uso especial e dominiais). 2.2.1. Os bens públicos de uso comum. 2.2.2. Os bens públicos de uso especial. 2.2.3. Os bens públicos dominicais 3. Conceito de terras devolutas. 4. Terras devolutas como bem público 5. Terras devolutas e o usucapião 5.1. O usucapião de bens públicos na Constituição Federal de 1988 5.2. O usucapião de bens públicos no novo código civil 6. Conclusão 1 - Introdução O presente estudo tem como objetivo analisar a situação jurídica das terras devolutas frente às alterações trazidas pelo novo código civil. Isso se faz em razão da nova codificação ter, em seus artigos 98 a 103, emitido normas a respeito dos bens públicos, sendo necessária uma nova leitura não só do conceito de bem público, como também do conteúdo de suas modalidades. No sentido de cumprir com os seus objetivos, este trabalho abordará temas sobre o conceito de bem público e as suas modalidades, o conceito de terras devolutas e o seu enquadramento na classe dos bens públicos e a atual situação jurídica das terras devolutas no que se refere às suas destinação, forma de alienação e relevância na realização da política agrária e no plano nacional de reforma agrária. Sob o pano de fundo de análise das terras devolutas, o presente trabalho pretende fazer uma nova leitura da situação jurídica do bem público no Brasil.

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AS TERRAS DEVOLUTAS E O NOVO CÓDIGO CIVIL

Denis Domingues Hermida

Advogado, especialista em Direito da Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio Vargas/SP, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários e Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP e Doutorando em Direito do Trabalho pela PUC/SP

Sumário : 1. Introdução. 2. Conceito e classificação de bem público. 2.1.Conceito de bem público. 2.2. Classificação dos bens públicos (de uso comum, de uso especial e dominiais). 2.2.1. Os bens públicos de uso comum. 2.2.2. Os bens públicos de uso especial. 2.2.3. Os bens públicos dominicais 3. Conceito de terras devolutas. 4. Terras devolutas como bem público 5. Terras devolutas e o usucapião 5.1. O usucapião de bens públicos na Constituição Federal de 1988 5.2. O usucapião de bens públicos no novo código civil 6. Conclusão

1 - Introdução

O presente estudo tem como objetivo analisar a situação jurídica das terras

devolutas frente às alterações trazidas pelo novo código civil. Isso se faz em razão da

nova codificação ter, em seus artigos 98 a 103, emitido normas a respeito dos bens

públicos, sendo necessária uma nova leitura não só do conceito de bem público, como

também do conteúdo de suas modalidades.

No sentido de cumprir com os seus objetivos, este trabalho abordará temas sobre

o conceito de bem público e as suas modalidades, o conceito de terras devolutas e o seu

enquadramento na classe dos bens públicos e a atual situação jurídica das terras

devolutas no que se refere às suas destinação, forma de alienação e relevância na

realização da política agrária e no plano nacional de reforma agrária.

Sob o pano de fundo de análise das terras devolutas, o presente trabalho pretende

fazer uma nova leitura da situação jurídica do bem público no Brasil.

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2- Conceito e classificação de bem público

É importante para esse nosso estudo posicionarmos as terras devolutas frente ao

direito de propriedade pública. Assim, abordaremos na presente parte o conceito de bem

público e a sua classificação para, após, fixando o conceito de “terras públicas”,

verificarmos serem ou não estas espécie de bem público.

2.1 – Conceito de bem público

O conceito de ‘domínio público’ é de crucial importância no estudo dos bens

públicos, isto porque, se é verdade que o Estado exerce, em decorrência de sua

soberania, poder sobre tudo aquilo que se encontre em seu território, não menos

verdadeiro é que existe diferença no conteúdo e no exercício desses poderes quando se

trata de bem particular e quando se trata de bem público.

Desde já esclarecemos que o sentido que adotamos nesse trabalho para a

expressão ‘domínio público’ é diferente daquele apontado por Maria Sylvia Zanella Di

Pietro, para quem a denominação ‘domínio público’ é utilizada para designar os bens

afetados a um fim público, que compreendem os bens de uso comum e os de uso

especial1.

Utilizamos ‘domínio público’ no sentido adotado por Hely Lopes Meirelles, para

quem “o Estado, como Nação politicamente organizada, exerce poderes de Soberania

sobre todas as coisas que se encontram em seu território. Alguns bens pertencem ao

próprio Estado; outros, embora pertencentes a particulares, ficam sujeitos às

limitações administrativas impostas pelo Estado; outros, finalmente, não pertencem a

ninguém, por inapropriáveis, mas sua utilização subordina-se às normas estabelecidas

pelo Estado. Este conjunto de bens sujeitos ou pertencentes ao Estado constitui o

domínio publico, em seus vários desdobramentos(...)”2

1 DI PIETRO, MariA Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo : Editora Atlas, 8a edição, 1997, p. 427 2 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo : Malheiros Editora, 22a edição, 1997, p. 432

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O ‘domínio público’ possui duas acepções, o domínio público eminente e o

domínio público patrimonial, sendo que o primeiro se refere ao poder estatal de

regulamentar todas as coisas de interesse público, inclusive os bens do patrimônio

privado, tendo como fonte o exercício dos poderes de Soberania, e o segundo é

entendido como o poder de dominação do Estado sobre os bens do patrimônio público,

exteriorizando-se em efetivo direito de propriedade.

Partimos, agora, para o conceito de bens públicos, que são aqueles submetidos

ao domínio público patrimonial, sobre o qual o Estado exerce efetivo direito de

propriedade.

Washington de Barros Monteiro, após afirmar que “juridicamente falando, bens

são valores materiais ou imateriais, que podem ser objeto de uma relação de direito. O

vocábulo, que é amplo no seu significado, abrange coisas corpóreas e incorpóreas,

coisas materiais ou imponderáveis, fatos e abstenções humanas”3, aponta para a

existência de numerosas categorias de bens, quais sejam : dos bens considerados em si

mesmos, dos bens reciprocamente considerados, das coisas que estão fora do comércio,

do bem de família e, finalmente, dos bens públicos e particulares. Quanto a essa última

categoria, Barros Monteiro aponta que, para a distinção entre bens públicos e bens

privados, as coisas são consideradas em relação aos respectivos proprietários, sendo

“públicos os bens do domínio nacional pertencentes à União, aos Estados, ou aos

Municípios. Todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que

pertencerem”4.

Os administrativistas, a seu turno, não se afastam do conceito apontado por

Barros Monteiro, dando, entretanto, em seus conceitos, especial atenção às entidades

publicas detentoras dos bens públicos, bem como o regime especial a que são

subordinados tais bens.

José Cretella Júnior conceitua bem público como “o conjunto das coisas móveis

e imóveis de que é detentora a Administração, afetados quer a seu próprio uso, quer ao

uso direto ou indireto da coletividade, submetidos a regime jurídico de direito público

derrogatório e exorbitante do direito comum”5.

Hely Lopes Meirelles, a seu turno, ensina que “bens públicos, em sentido

amplo, são todas as coisas, corpóreas ou incorpóreas, imóveis, móveis e semoventes,

3 BARROS MONTEIRO, Washington de. Curso de Direito Civil. 1o Volume. São Paulo : Editora Saraiva, 1995, p. 135 4 Op. Cit. p. 152 5 CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado do domínio público. Rio de Janeiro : Editora Forense, 1984, p. 29

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créditos, direitos e ações, que pertençam, a qualquer título, às entidades estatais,

autárquicas, fundacionais e paraestatais”6.

Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que “bens públicos são todos os bens

que pertencem as pessoas jurídicas de Direito Público, isto é, União, Estados, Distrito

Federal, Municípios, respectivas autarquias e fundações de Direito Público(estas

últimas, aliás, não passam de autarquias designadas pela base estrutural que possuem),

bem como os que, embora não pertencentes a tais pessoas, estejam afetados à prestação

de um serviço público”7 e, complementa que “a noção de bem público, tal como

qualquer outra noção de direito, só interessa se for correlata a um dado regime jurídico.

Assim, todos os bens que estiverem sujeitos ao mesmo regime público deverão ser

havidos como bens públicos”8

A Constituição Federal de 1988 não conceitua ‘bem público”, mas tão somente

elenca nos seus artigos 20 e 26 quais seriam os bens da União e dos Estados Federados,

sendo certo que, no que tange aos bens dos Estados, o conteúdo do artigo 26 da Lei

Maior não é taxativo, é o que se conclui da leitura do referido artigo que consta do seu

caput que “Incluem-se entre os bens dos Estados...”, não afastando, assim, a existência

de outros bens do Estado. Quanto aos municípios, não há especificação constitucional

quanto ao elenco de seus bens, parecendo-nos que o Constituinte adotou a técnica de,

delimitando os bens da União e dos Estados Federados, deixar ao campo residual o

conjunto de bens municipais.

O Novo Código Civil, conforme seu artigo 98, conceitua bens públicos como

“os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público

interno” e, ainda, apresenta no seu artigo 99 os “”bens públicos’ como um gênero

compostos por três espécies, quais sejam : os bens públicos de uso comum, os bens

públicos de uso especial e os bens públicos dominicais. Em realidade, o artigo 99 do

Código Civil de 2002 manteve a mesma estrutura contida no artigo 66 da Codificação

de 1916, inovando, entretanto, com a inclusão das Autarquias no inciso II do artigo 99 e

as entidades paraestatais9 no parágrafo único do mesmo artigo.

6 Op. Cit. p. 435 7 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo : Malheiros Editores, 15a edição refundida, ampliada e atualizada atté a Emenda Constitucional 39, de 19.12.2002, p. 779 8 Op. Cit. p. 780 9 Quanto ao significado do termo ‘paraestatais” existe divergência na doutrina quanto ao seu conteúdo, sendo que adotamos o conceito de Hely Lopes Meirelles (Op.cit. p. 321), para quem “Entidades paraestatais são pessoas jurídicas de Direito Privado cuja criação é autorizada por lei específica (CF, art. 37, XIX e XX), com o patrimônio público ou misto, para a realização das atividades, obras ou serviços de

5

Especificamente no que tange às paraestatais, o parágrafo único do artigo 99 do

Novo Código Civil (“ Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais bens

pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de

direito privado”), há que se analisar o conteúdo do mesmo de acordo o inciso I do

parágrafo 1o do artigo 173 da Constituição Federal de 1988 (acrescido pela Emenda

Constitucional no. 19, de 4-6-1998), in verbis :

“ Art. 173, § 1º . A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre : II – a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;”

Ora, se, conforme expõe BANDEIRA DE MELLO, “a noção de bem público, tal

como qualquer outra noção de direito, só interessa se for correlata a um dado regime

jurídico. Assim, todos os bens que estiverem sujeitos ao mesmo regime público deverão

ser havidos como bens públicos”10, o conteúdo do parágrafo único do artigo 99 do

Código Civil, ao impor tratamento de “bem público” aos bens pertencentes a pessoa

jurídica de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado, parece-nos

inconstitucional. Se o que caracteriza o bem público é a sua sujeição ao regime jurídico

especial (público) e a Lei Fundamental impõe que empresas públicas e sociedades de

economia mista que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de

bens ou de prestação de serviços terão, na forma de lei regulamentadora, sujeição a

regime jurídico privado, não pode o Código Civil, legislação de natureza

infraconstitucional, impor que os bens de tais entidades públicas sejam considerados

públicos e, por decorrência, estejam sujeitos ao regime jurídico público.

Nesse compasso de pensamento, é interessante apontarmos a juridicidade das

normas jurídicas programáticas (classe em que se enquadra o parágrafo 1o do artigo 173

da Constituição Federal) e a sua capacidade de levar à inconstitucionalidade de norma

jurídica infraconstitucional que se oponha ao seu conteúdo (hipótese em que, como

entendemos, enquadra-se o parágrafo único do artigo 99 do Código Civil), sendo que

interesse coletivo, sob normas e controle do Estado, incluindo-se entre elas as empresas públicas, as sociedades de economia mista e os serviços sociais autônomos. 10 Op. Cit. p. 780

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para isso nos utilizamos do magistério de José Afonso da Silva que, citando Vezio

Crisafulli, afirma que :

“Crisafulli, que dissecou sucessivamente a temática das normas programáticas, sustentou-lhes a juridicidade (e a eficácia, ainda que reduzida), argumentando que enunciam verdadeiras normas jurídicas e, por isso, são tão preceptivas como as outras; regulam comportamentos públicos destinados, por sua vez, a incidir sobre as matérias que lhes são objeto, sendo, nesse limite, vinculantes, como conseqüência da eficácia formal prevalecente da fonte (a Constituição), no que respeita às leis ordinárias, pelo que estas, se anteriores e contrárias, ficam invalidadas, se posteriores e conflitantes, são inconstitucionais”11

E continua DA SILVA a respeito do caráter imperativo das normas

programáticas :

“ Ora, se elas impõem certos limites à autonomia de determinados sujeitos, privados ou públicos, se ditam comportamentos públicos em razão dos interesses a serem regulados, nisso claramente se encontra seu caráter imperativo; imperatividade que se afere nos limites de sua eficácia reduzida, mas sempre imperatividade.”12

Por fim, o constitucionalista paulista avalia o tema “normas programáticas e

constitucionalidade das leis, ensinando que :

“ Assim, descortina-se a eficácia das normas programáticas em relação à legislação futura, devendando, aí, sua função de condicionamento da atividade do legislador ordinário, mas também da administração e da jurisdição, cujos atos hão de respeitar os princípios nela consagrados (...) Qualquer lei, que atente contra algum desses princípios, deve ser declarada inconstitucional.”13

Sobre o parágrafo único do artigo em discussão, o mesmo BANDEIRA DE

MELLO entende que “ a redação do dispositivo é outra, e grosseiramente errada, visto

que, de acordo com ela : “Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os

bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura

de direito privado”. Ora, não há, nem pode haver, pessoa de direito público que tenha

estrutura de direito privado, pois a estrutura destas entidades auxiliares é um dos

elementos para sua categorização como de direito público ou de direito privado”14.

11 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 1982, 2a edição, revista e atualizada, pp. 136/137 12 Op. Cit. p. 137 13 Op. Cit. pp. 141-143 14 Op. Cit. p. 780

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Respeitamos o posicionamento supracitado, entretanto, entendemos que,

tratando-se de empresas públicas e de sociedades de economia mista, é logicamente

possível a existência de estrutura de direito privado, como inclusive consta do inciso II

do parágrafo 1o do artigo 173 da Lei Maior, havendo, na verdade, inconstitucionalidade

do texto do código civil em comentário.

Do todo o exposto, parece-nos pertinente uma conceituação final de ‘bens

públicos’ como sendo o conjunto de bens - entendidos como valores materiais ou

imateriais que podem ser objeto de uma relação jurídica, incluindo-se nesses valores as

coisas corpóreas ou incorpóreas, materiais ou imateriais – que fazem parte do domínio

público patrimonial, isto é, do patrimônio dos Entes Públicos, nesses se incluindo os

Entes Públicos da Administração Pública Direta (União, os Estados Federados, os

Municípios e o Distrito Federal) e da administração pública indireta (Autarquias,

Fundações Públicas, Empresas Públicas, os Serviços Autônomos, as Sociedades de

Economia Mista e as Empresas Públicas, sendo que as duas últimas desde que não se

enquadrem na hipótese do parágrafo 1o do artigo 173 da Constituição Federal, isto é,

desde que não explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens

ou de prestação de serviços).

2.2 – Classificação dos bens públicos (de uso comum, de uso especial e dominiais)

Apresentado o conceito de bens públicos, partimos agora para a classificação

dos mesmos. As doutrinas civilista e administrativista classicamente classificam os bens

públicos em : bens de uso comum, bens de uso especial e bens dominicais .

Verdadeiro é que muitos administrativistas, sem afastar a pertinência da

classificação clássica, também agregam outras classificações, como, por exemplo,

Maria Sylvia Zanella Di Pietro15 que classifica os bens públicos em bens de domínio

público do Estado e bens de domínio privado do Estado e José Cretella Júnior16 em bens

do patrimônio disponível e bens do patrimônio indisponível.

A despeito da existência das demais classificações, muitas, inclusive, decorrendo

de reorganização da classificação clássica, fixaremos a nossa atenção para os conceitos

de bens de uso comum, bens de uso especial e bens dominicais, entendendo ser ela a

15 Op. Cit. pp. 425-430 16 CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro : Editora Forense, 13a edição, 1995, p. 556

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mais interessante para o objeto de nosso estudo, vez que é a classificação utilizada pelo

novo código civil no seu artigo 99, in verbis :

“Art. 99. São bens públicos : I – os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e

praças; II – os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a

serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias; III – os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades. Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado

Aliás, essa classificação já foi a utilizada pelo Código Civil de 1916 no seu

artigo 66, sendo, pois, uma tradição da codificação civil brasileira a sua adoção. Feita

essa introdução, avancemos para a investigação quanto ao conceito de cada uma dessas

espécies de bens públicos.

2.2.1 – Os bens públicos de uso comum

O código civil, no inciso I de seu artigo 99, no objetivo de conceituar os bens de

uso comum do povo, afirma serem “os de uso comum do povo, tais como rios, mares,

estradas, ruas e praças”, elencando alguns desses bens com objetivo exemplificativo, e

não taxativo, para que, a partir dessa amostra exemplificativa, os juristas pudessem

construir o conceito de tal modalidade de bem público obedecendo aos limites fixados

pela exemplificação legal.

Aliás, sobre o papel do cientista do Direito frente ao direito positivo, pertinente é

a transcrição do magistério de Paulo de Barros Carvalho, para quem “ o objeto da

Ciência do Direito há de ser precisamente o estudo desse feixe de proposições, vale

dizer, o contexto normativo que tem por escopo ordenar o procedimento dos seres

humanos, na vida comunitária. O cientista do Direito vai debruçar-se sobre o universo

das normas jurídicas, observando-as, investigando-as, interpretando-as e descrevendo-

as segundo determinada metodologia. Como ciência que é, o produto de seu trabalho

terá caráter descritivo, utilizando uma linguagem apta para transmitir conhecimento,

comunicar informações, dando conta de como são as normas, de que modo se

9

relacionam, que tipo de estrutura constróem e, sobretudo, como regulam a conduta

intersubjetiva”17 e, ainda afirma Barros Carvalho, “enquanto é lícito afirmar-se que o

legislador se exprime numa linguagem livre, natural, pontilhada, aqui e ali, de

símbolos científicos, o mesmo já não se passa com o discurso do cientista do Direito.

Sua linguagem, sobre ser técnica, é científica, na medida em que as proposições

descritivas que emite vêm carregadas da harmonia dos sistemas presididos pela lógica

clássica, com as unidades do conjunto arrumadas e escalonadas segundo critérios que

observam, estritamente, o princípios da identidade, da não contradição e do meio

excluído, que são as três imposições formais do pensamento, no que concerne

proposições apofânticas”18.

Sobre a enumeração contida na descrição feita pelo Código Civil, Washington

de Barros Monteiro afirma que não se deve perder de vista que “a enumeração é

meramente exemplificativa, tanto que são também do domínio público todos os animais

e vegetais que se encontrem em águas dominiais (Dec-Lei no. 221, de 28-2-1967, art.

4o, com redação determinada pela Lei 5.438, de 20-5-1968)”19.

Somando-se ao inciso II do seu artigo 99, a moderna codificação civil brasileira

impôs, no seu artigo 103, que “o uso comum dos bens públicos pode ser gratuito ou

retribuído, conforme estabelecido legalmente pela entidade a cuja administração

pertencerem”, razão pela qual não podemos vincular a modalidade de bem público em

estudo ao caráter “gratuito” do seu uso.

Hely Lopes Meirelles no trabalho de os conceituar os bens de uso comum, a

quem também denomina “bens de domínio público”, afirma que “os locais abertos à

utilização pública adquirem esse caráter de comunidade, de uso coletivo, de fruição

própria do povo” e complementa, citando Rui Cirne Lima, que sob esse aspecto “pode o

domínio público definir-se como a forma mais completa da participação de um bem na

atividade de administração pública. São os bens de uso comum, ou do domínio público,

o serviço mesmo prestado ao público pela Administração, assim como as estradas, ruas

e praças”20

José Cretella Júnior, após remontar a origem romana de tal espécie de bens

públicos, apresenta conceito que realça as características dos usuários de tais bens :

“bens de uso comum são todas as coisas imóveis ou móveis sobre as quais o público,

17 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo : Saraiva, 1995, pp. 2 18 Op. Cit. p. 3 19 Op. Cit. p. 153 20 Op. Cit. P. 437

10

anonimamente, coletivamente, exerce direitos de uso e gozo, como, por exemplo, os que

recaem sobre estradas ruas, rios, costa do mar. Qualquer pessoa, nacional ou

estrangeira, quisque de populo, sem identificação, sem título, anonimamente, pode

utilizar-se das ruas e estradas, usufruindo-as, sem que possa ser impedido,

legitimamente, por outro particular ou pelo poder público”21. Celso Antônio Bandeira

de Mello, seguindo a mesma esteira, entende que os bens de uso comum são aqueles

qualificados pela destinação “ao uso indistinto de todos”22.

Sem embargo do que aponta a doutrina, interessante é destacarmos dois

pontos que também nos parecem essenciais na fixação do conceito de bem público de

uso comum, que são :

- a possibilidade de exigência de retribuição pela utilização dos bens públicos de uso

comum, prevista pelo artigo 103 do Código Civil, e

- a possibilidade de fixação de requisitos, além do patrimonial, para a utilização de

tais bens, como, por exemplo, a proibição de trânsito de determinados tipos de

veículos por determinada estrada, a restrição de acesso a determinados setores de

parques públicos, entre outros.

A imposição de tais requisitos é fundada no domínio público eminente que,

como já analisamos, é poder estatal de regulamentar todas as coisas de interesse

público, inclusive os bens do patrimônio privado, tendo como fonte o exercício dos

poderes de Soberania, não se fundando em direito de propriedade, mas em efetivo poder

de polícia que, como dispõe o artigo 78 da Lei 5.172 de 25.10.1966 (Código Tributário

Nacional), é “a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando

direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de

interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à

disciplina da produção e do mercado, ao exercício das atividades econômicas

dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou

ao respeito à propriedade e aos direitos individuais e coletivos”.

Feitas essas observações, conceituamos bem de uso comum como todas as

coisas móveis ou imóveis que, sendo públicas, servem-se ao uso indistinto por todos, de

21 Op.cit. p. 557 22 Op. Cit. p. 780

11

forma gratuita ou mediante retribuição, com a possibilidade de restrição de uso em

razão do poder de polícia exercidos nos estritos termos do artigo 78 da Lei 5.172/66.

2.2.2 – Os bens públicos de uso especial

O código civil, no item II de seu artigo 99 – “ os de uso especial, tais como

edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal,

estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias” -, tal como acontece

com os bens de uso comum, entendeu por bem apresentar o bem público de uso especial

elencando alguns exemplos, para que, a partir daí, a doutrina pudesse descrever o

conceito de tal espécie do gênero “bem público”.

Estudando os bens de uso especial, Lopes Meirelles, que também denomina tal

categoria de bens públicos como “patrimônio administrativo” ou “bens patrimoniais

indisponíveis”, esta última denominação em razão de possuirem uma finalidade pública

permanente, enuncia que são eles “os que se destinam especialmente à execução dos

serviços públicos e, por isso mesmo, são considerados instrumentos desses serviços; não

integram propriamente a Administração, mas constituem o aparelhamento

administrativo, tais como edifícios das repartições públicas, os terrenos aplicados aos

serviços públicos, os veículos da Administração, os matadouros, os mercados e outras

serventias que o Estado põe à disposição do público, mas com destinação especial” 23.

Criticando a expressão “uso especial” “porque se confunde com outro sentido

em que é utilizada para indicar o uso privativo de bem público por particular e também

para abranger determinada modalidade de uso comum sujeito a maiores restrições,

como pagamento de pedágio e autorização para circulação de veículos especiais”24, Di

Pietro, dando especial atenção ao necessário enfoque da expressão serviço da

administração, ensina que quando se fala que o bem de uso especial está afetado à

realização de um serviço público, “tem-se que entender a expressão “serviço público”

em sentido amplo, para abranger toda atividade de interesse geral exercida sob a

autoridade ou sob fiscalização do poder público”; nem sempre se destina ao uso direto

23 Op. Cit. p. 437 24 Op. Cit. p. 427

12

da Administração, podendo ter por objeto o uso por particular, como ocorre com o

mercado municipal, o cemitério, o aeroporto, a terra dos silvícolas etc.”25.

José Cretella Júnior entende bens de uso especial como sendo “todas as coisas

imóveis (casas, terrenos) ou móveis (máquinas, mobiliário) sobre as quais o estado

exerce direitos de uso e gozo, normalmente, podendo, entretanto, outorgar-lhes a

utilização ao particular, privativamente, mediante os institutos da admissão,

autorização, permissão ou concessão”26. Constata-se da leitura dos ensinamentos de

Cretella Júnior que não houve uma preocupação em centrar o conceito de bens de uso

especial na sua destinação a serviço público, afastando-se do constante do inciso II do

artigo 99 do novo código civil (e do inciso I do artigo 66 do código civil de 1916, que

foi copiado literalmente pelo legislador civil de 2002).

Entendemos que, ante a redação do código civil relativa aos bens públicos de

uso especial, não há como se afastar a sua afetação a serviço púbico como elemento

essencial à sua conceituação, motivo pelo qual entendemos que bem público de uso

especial é a classe formada pelo conjunto de bens que é utilizado como instrumento para

o exercício de um serviço público, seja pela administração pública direta, seja pela

administração pública indireta, incluindo-se aqueles que tem por objeto o uso por

particular, como ocorre, na exemplificação de Di Pietro27, com o mercado municipal, o

cemitério, o aeroporto e a terra dos silvícolas.

2.2.3 – Os bens públicos dominicais

O código civil de 2002, no inciso III do seu artigo 99, praticamente repetiu os

termos do inciso III do artigo 66 do Código Bevilácqua, substituindo a expressão “ que

constituem o patrimônio da União dos estados, ou dos Municípios” pela “que

constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público”. Tal modificação se

deve à evolução da administração pública, especialmente no que tange à expansão dos

órgãos tanto da administração pública direta, onde se integraram as autarquias e as

fundações públicas, como da administração pública indireta, como se verifica do

próprio conteúdo do parágrafo único do artigo 99 do novo código.

25 Op. Cit. p. 428 26 Op. Cit. p.557 27 Op. Cit. p. 428

13

A comparação entre os textos do novo código e do código de 1916 é relevante,

principalmente tendo em vista que, como informa Miguel Reale28, a “Comissão

Revisora e Elaboradora do Código Civil, criada em 1969, fixou, entre as diretrizes na

elaboração do anteprojeto do novo código civil, a “preservação do Código vigente

sempre que possível, não só pelos seus méritos intrínsecos, mas também pelo acervo de

doutrina e de jurisprudência que em razão dele se constitui” e a “orientação de somente

inserir no Código matéria já consolidada ou com relevante grau de experiência crítica”,

motivo pelo qual há que se considerar as modificações acima citadas no trabalho

interpretativo do inciso II do artigo 99 do Novo Código Civil, especialmente no que

tange ao rol de pessoas jurídicas de direito público cujos bens se enquadram no conceito

de bens públicos dominicais.

Celso Antônio Bandeira de Mello, tratando dos bens dominicais, também

denominados dominiais, afirma que “são os próprios do Estado como objeto de direito

real, não aplicados nem ao uso comum, nem ao uso especiais, tais os terrenos ou terras

em geral, sobre os quais tem senhoria, à moda de qualquer proprietário, ou que, do

mesmo modo, lhe assistam em conta de direito pessoal. O parágrafo único do citado

artigo pretendeu dizer que são considerados dominicais os bens das pessoas da

Administração indireta que tenham estrutura de direito privado, salvo se a lei dispuser

em contrário”29

Maria Sylvia Zanella Di Pietro aponta as características principais dos bens

públicos dominiais, que serão relevantes na procura do conceito de tais bens, a que

denomina como bens de “domínio privado do Estado”. Transcrevamos a lição da

Professora Titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade

de São Paulo :

“Tradicionalmente, apontam-se as seguintes características para os bens dominiais : 1- comportam uma função patrimonial ou financeira, porque se destinam a assegurar rendas ao Estado, em oposição aos demais bens públicos, que são afetados a uma destinação de interesse social; a conseqüência disso é que a gestão dos bens dominicais não era considerada serviço público, mas uma atividade privada da Administração;”

28 REALE, Miguel. Visão geral do novo código civil. Jus navegandi, Teresina, a.6, n.54, fev. 2002. Disponível em http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2718. Acesso em : 15 mar. 2004 29 Op. Cit. p. 780

14

2- submetem-se a um regime jurídico de direito privado, pois a Administração Pública age, em relação a eles, como um proprietário privado.”30 Entende que, hoje, a natureza dos bens dominiais não é exclusivamente patrimonial, já que a sua administração pode visar, paralelamente, a objetivos de interesse geral. sendo que tais bens são freqüentemente utilizados como sede de obras públicas e também cedidos a particulares para fins de utilidade pública.”31

Hely Lopes Meirelles ensina que bens dominiais “são aqueles que, embora

integrando o domínio público como os demais, deles diferem pela possibilidade sempre

presente de serem utilizados em qualquer fim ou, mesmo, alienados pela Administração,

se assim o desejar” e, continua o Saudoso Mestre, além dos bens originariamente

integrantes do patrimônio disponível da Administração, ”por não terem uma destinação

pública determinada, nem um fim administrativo específico, outros poderão ser

transferidos, por lei, para esta categoria, ficando desafetados de sua primitiva finalidade

pública, para subseqüente alienação” 32.

O caráter de exclusão dos bens dominiais também é realçado por Lopes

Meirelles, para quem “todas as entidades públicas podem ter bens patrimoniais

disponíveis, isto é, bens não destinados ao povo em geral, nem empregados no serviço

público, os quais permanecem à disposição da Administração para qualquer uso ou

alienação, na forma que a lei autorizar”33.

A partir da doutrina transcrita, já podemos afirmar que a principal característica

do bem público denominado como “dominial” é a sua não destinação pública

determinada, entendendo-se como “destinação pública” o uso indistinto típico dos bens

de uso comum ou o uso específico para serviço público característico dos bens de uso

especial. Isto é, para efeito de caracterização dos bens dominiais, entendemos que

devem inexistir as destinações públicas típicas de bens de uso comum ou de bens de uso

especial, nada impedindo que o direito positivo pátrio determine uma destinação aos

bens dominiais, como acontece com as terras públicas no caput do artigo 188 da

Constituição Federal - “a destinação de terras públicas e devolutas será

compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária” -

30 Op. Cit. pp. 430/431 31 Op. Cit. pp. 430/431 32 Op. Cit. pp. 437/438 33 Op. Cit. p. 438

15

ou impondo requisitos para a sua alienação para determinados fins, como acontece no

parágrafo 1o do mesmo artigo 188 da Lei Maior - “a alienação ou a concessão, a

qualquer título, de terras públicas com área superior a dois mil e quinhentos hectares a

pessoa física ou jurídica, ainda que por interposta pessoa, dependerá de prévia

aprovação do Congresso Nacional”-.

Existem duas espécies de bens dominicais, os que são tipicamente dominicais

por não possuirem uma destinação pública específicas de bens de uso comum ou de uso

especial, e aqueles que são desafetados, sendo transferidos de outra categoria para a

dominical.

Não concordamos com a afirmação de que os bens dominiais não possam ter

finalidade social. Tais bens não possuem as destinações públicas dos bens de uso

comum e de uso especial, mas nada impede que se fixe um fim social para tais bens,

como acontece no já transcrito caput do artigo 188 da Carta de 1988.

Por outro lado, é patente o caráter de exceção dos bens dominiais. Melhor

esclarecendo, uma vez enquadrado o bem no conceito de bem público, se não se

compatibiliza com as destinações típicas dos bens de uso comum e de uso especial,

então é certa a sua característica de bem dominial.

Finalmente, enquanto o código civil de 1916 fixava a regra de inalienabilidade a

todos os bens públicos, inclusive os dominicais, especificando no seu artigo 67 que os

bens públicos somente “perderão a inalienabilidade, que lhes é peculiar, nos casos e

forma que a lei prescrever”, o Novel Código Civil, no artigo 101, prevê que “os bens

públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei” e que os

“bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto

conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar”, isto é a regra da

alienabilidade dos bens dominicais.

3 – Conceito de terras devolutas

Dentro de nossa meta, que é analisar a situação jurídica das terras devolutas

frente às alterações trazidas pelo novo código civil, é necessário encontrarmos o

conceito de terras devolutas para que, após, possamos verificar o seu enquadramento no

conceito de bem público e a sua sujeição ao conteúdo do artigo 102 do novo código

civil que impõe a não sujeição dos bens públicos a usucapião.

16

Uma investigação mais efetiva sobre terras devolutas deve partir

necessariamente do conceito de terras públicas. Dirley da Cunha Júnior em sua

monografia intitulada “Terras devolutas nas constituições republicanas” ensina que

“isoladamente tomada, a expressão terras públicas é gênero. É o que se pode chamar de

terras públicas lato sensu. Nesse sentido amplo, são terras públicas todas aquelas

pertencentes ao poder público, ou seja, são bens públicos determinados ou

determináveis que integram o patrimônio público”34. Ainda quanto ao significado lato

da expressão terras públicas, citamos De Plácido e Silva, para quem “ao contrário das

terras particulares, as terras públicas são aquelas que ainda pertencem ao domínio

público, sejam ou não destinadas a fins ou uso público”35.

Quanto às espécies do gênero terras públicas, existem duas espécies do gênero

“terras públicas lato sensu”, que são: as terras públicas stricto sensu e as terras

devolutas. Enquanto as terras públicas stricto sensu são os bens determinados que

compõem o patrimônio público como bem de uso especial ou patrimonial, as terras

devolutas caracterizam-se pela não determinação (apesar de serem determináveis) e pela

ausência de uma destinação pública típica dos bens de uso especial ou dos bens de uso

comum e, como veremos mais a frente, pela sua natureza histórica. Assim, na busca de

um conceito de terras devolutas devemos sempre ter em mente serem estas uma espécie

do gênero terras públicas.

A busca do conceito de terras devolutas sempre foi missão trabalhosa para a

doutrina, como se verifica das palavras de Adroaldo Furtado Fabrício : “É praticamente

impossível fixar-se uma conceituação jurídica positiva de terras devolutas, a partir da

legislação existente: a definição só se pode fazer por exclusão, e a sua característica é a

da inexistência de titulação." 36

Muitos, na busca insaciável para uma resposta rápida e prática, apresentaram

conceitos por demais vagos, baseados em características que não são capazes de

individualizar as devolutas frente aos demais bens e, em especial, bens públicos, como

se vê em Afonso Borges, para quem, “deixando de lado digressões doutrinárias, pode-se

34 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Terras devolutas nas Constituições Republicanas. Home page do Poder Judiciário Federal do Estado do Sergipe. Aracaju. Disponível em http://www.jfse.gov.br/obras%20mag/artigoterrasdevdirley.html . Acesso em : 18. maio. 2004 35 DE PlÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro : Editora Forense, 4a edição, 1975, p. 1542 36 FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. VIII. Tomo III. Rio de Janeiro : Forense, 1981, p. 649.

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conceituar como terras devolutas as do domínio privado do que não têm divisas certas,

não são determinadas na quantidade, nem jamais foram medidas e demarcadas”37.

Pinto Ferreira, em seus comentários à Constituição, constata que “duas correntes

doutrinárias e jurisprudenciais contradizem a matéria do domínio da União sobre as

terras devolutas. Uma corrente jurisprudencial minoritária considera como devoluta toda

a terra sobre a qual não recai título devidamente registrado da União (...). A Segunda

orientação é defendida por Pontes de Miranda, em seu Tratado de direito privado, bem

como por mais ampla jurisprudência (...). Ela pretende que o fato de o bem imóvel não

se encontrar registrado em nome do particular não signifique a terra seja devoluta. A

falta de registro imobiliário não significa a caracterização do domínio público, não é o

suficiente para caracterizá-lo. É necessário que o Poder Público prove ser o de sua

propriedade (...).”38

Celso Antônio Bandeira de Mello entende “as terras devolutas como sendo as

que, dada a origem pública da propriedade fundiária no Brasil, pertencem ao Estado –

sem estarem aplicadas a qualquer uso público – porque nem foram trespassadas do

Poder Público aos particulares, ou, se o foram, caíram em comisso, nem se integraram

no domínio privado por algum título reconhecido como legítimo”39, em opinião

semelhante, Hely Lopes Meirelles afirma que “terras devolutas são todas aquelas que,

pertencentes ao domínio público de qualquer das atividades, não se acham utilizadas

pelo Poder Público, nem destinadas a fins administrativos específicos.”40

Entendemos que o conceito de terras devolutas deve ser buscado dentro de um

contexto histórico ou, melhor dizendo, a partir da origem história e do tratamento que

vem se dando a essa espécie de bens no decorrer dos tempos.

A história das terras devolutas confunde-se com a própria história da ocupação

das terras brasileiras. Quando da descoberta do Brasil por Portugal todo o território

brasileiro passou a ser do domínio da Coroa Portuguesa, cabendo a esta nortear as

formas de ocupação e de distribuição do território. A partir daí, Portugal começou a

conceder partes da terra do Brasil-Colônia através do regime das capitanias hereditárias,

que restou por fracassar, quando, então Dom João III criou, em 1548, o Governo-Geral.

37 BORGES, José Afonso. Terras devolutas e sua proteção jurídica. Goiânia : Oriente, 1976. P. 15 38 PINTO FERREIRA. Comentários à Constituição Brasileira, 1o volume. São Paulo : Editora Saraiva, 1989, p. 465 39 Op. Cit. P. 787 40 Op. Cit. P. 464

18

Tinham o poder de conceder sesmarias não só o Governador-Geral, mas também

os donatários e o Capitão-mor Martim Afonso de Souza, a quem fora concedido tal

poder pela Coroa Lusitana numa das três cartas régias trazidas por Martim Afonso para

o Brasil quando de sua expedição de 1530.

Pelo regime de sesmarias, ao sesmeiro era entregue uma porção de terra, a que

precisava ocupar e, em contraprestação, pagar o tributo do dízimo à Ordem de Cristo.

Em 1549 o regime de concessão de sesmarias sofreu alterações com a imposição do

pagamento de um “foro”, além do dízimo, e em 1795, com o Alvará de 05 de Outubro

daquele ano, passaram a ser exigidas medições e demarcações, além de restrições ao

tamanho das sesmarias concedidas. O não cumprimento das exigências para a

manutenção das sesmarias, levava a perda das mesmas pelo Sesmeiro. Finalmente, em

1822 o regime de concessão de sesmarias foi encerrado e, em 18 de setembro de 1850

foi promulgada a Lei número 601, que foi um verdadeiro divisor de águas na legislação

agrária brasileira, vez que com o encerramento do regime de sesmarias, surgiu um

“vácuo” na legislação que acabou por tornar confusa a situação fundiária no Brasil.

Esclareça-se que, com a independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822, o

domínio das terras brasileiras passou a pertencer à nação brasileira.

A dita Lei 601 de 1850, denominada “Lei de Terras” é por demais importante,

vez que conceituou, à época, em seu artigo 3o, as terras jurídicas da seguinte forma :

“ Art. 3o. São terras devolutas : § 1o As que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial ou municipal §2o As que não se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta de cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura. §3o As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta lei §4o As que não se acharem ocupadas por posses, que, apear de não se fundarem em título legal, forem legitimadas por esta lei.”

Comentando a influência dessa legislação no conceito de terras devolutas, Maria

Sylvia Zanella Di Pietro, afirma que, “pelo conceito legal, terras devolutas eram terras

vagas, abandonadas, não utilizadas quer pelo poder público quer por particulares. Essa

19

concepção corresponde ao sentido etimológico do vocábulo “devoluto” : devolvido,

vazio, desocupado “ e que “excluíam-se do conceito de terras devolutas : as utilizadas

pelo poder público, as que fossem objeto de sesmarias legítimas ou mesmo de sesmarias

ilegítimas, porém revalidáveis, e as que fossem objeto de posse (moradia e cultivo). As

demais eram consideradas devolutas” e, enfatiza, “não se pode dizer que fossem terras

sem dono, porque pertenciam ao patrimônio público, que poderia vende-las ou doá-las

(art. 1o)”41

Prosseguindo na análise histórica da regulação jurídica das terras devolutas, a

Constituição de 1891, a primeira da República, não se preocupou em conceituar as

terras devolutas, mas, sim, em afirmar a que entes federativos caberia o domínio sobre

tais bens, impondo a regra do domínio dos Estados sobre essas terras, cabendo à União

somente “a porção de território que for indispensável para a defesa das fronteira,

fortificações, construções militares e estradas de ferro federais”, é o que se conclui da

leitura do artigo 64 da referida Carta Constitucional.

A Constituição de 1934 manteve o mesmo direcionamento da carta anterior,

determinado no inciso I de seu artigo 20 que são do domínio da União “os bens que a

esta pertencem, nos termos das leis atualmente em vigor, e o mesmo procedimento foi

adotado para os Estados que, na forma do inciso I do artigo 21, tinham o domínio sobre

“os bens da propriedade destes pela legislação atualmente em vigor, com as restrições

do artigo antecedente”. O mesmo tratamento foi mantido pela Constituição de 1937

que, em seus artigos 36 e 37, manteve a mesma redação dos artigos 20 e 21 da Carta de

1934.

Em 05 de setembro de 1946, foi editado o Decreto-Lei no. 9.760, que

aproveitando o conteúdo do artigo 3o da Lei 601 de 1850, elasteceu, em seu artigo 5o, o

conceito de terras devolutas. Eis o que disse o Decreto-Lei 9760 :

“Art. 5o – São terras devolutas, na faixa de fronteiras, nos Territórios Federais e no Distrito Federal, as terras que, não sendo próprias nem aplicadas a algum uso público federal, estadual, territorial ou municipal, não se incorporam ao domínio privado : a) por força da Lei 601, de 18 de setembro de 1850, Decreto no. 1.318, de

30 de janeiro de 1854, e outras leis e decretos gerais, federais e estaduais;

41 Op. Cit. p.466

20

b) em virtude de alienação, concessão ou reconhecimento por parte da União ou dos Estados;

c) em virtude de lei ou concessão emanada do governo estrangeiro e ratificada ou reconhecida, expressa ou implicitamente, pelo Brasil, em tratado ou convenção de limites;

d) em virtude de sentença judicial com força de coisa julgada; e) por se acharem em posse contínua e incontestada, por justo título e boa

fé, por termo superior a 20 (vinte) anos; f) por se acharem em posse pacífica e ininterrupta, por 30(trinta) anos,

independentemente de justo título e boa fé; g) por força de sentença declaratória proferida nos termos do artigo 148,

da Constituição Federal, de 10 de novembro de 1937.”

O Decreto-Lei 9.760, em realidade, repetiu o conteúdo da Lei 601, alterando os

requisitos da posse para ser considerada forma de incorporação ao domínio privado,

impondo, na existência de justo título, posse contínua e incontestada por tempo superior

a vinte anos e, inexistindo justo título, por mais de trinta anos. Também acresceu ao rol

dos bens incorporado pelo domínio privado aqueles bens cuja propriedade tinha sido

adquirida por sentença judicial transitada em julgado, as terras transmitidas ao particular

em virtude de lei ou de concessão feita por governo estrangeiro ratificada ou

reconhecida pelo Brasil e aquelas obtidas através do artigo 148 da Constituição de 1937,

que determinava que “todo brasileiro que, não sendo proprietário rural ou urbano,

ocupar, por dez anos contínuos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio,

um trecho de terra até dez hectares, tornando-o produtivo com o seu trabalho e tendo

nele a sua morada, adquirirá o domínio, mediante sentença declaratória devidamente

transcrita”.

Acrescente-se que nessa transição entre a Lei 601 e o Decreto-lei 9.760 deve-se

levar em consideração também as terras que o Brasil adquiriu por compra ou permuta,

como aquelas referentes ao Estado do Acre, que, por óbvio, não estavam circunscritas

na regulamentação da lei de 1850.

As duas legislações que objetivaram conceituar as terras devolutas foram a Lei

601 e o Decreto-Lei 9.760, sendo que a legislação posterior normatizou as terras

devolutas sob um conceito já dado, já existente, sobre o qual não haveria mais o que se

acrescentar. Nesse compasso, a Constituição de 1946 limitou-se a determinar no seu

artigo 34 que “Incluem-se entre os bens da União : II – a porção de terras devolutas

indispensáveis à defesa das fronteiras, às fortificações, construções militares e estradas

de ferro”, o mesmo acontecendo na Constituição de 1967 que atribuiu à União,

conforme artigo 4o, inciso I, “a porção de terras devolutas indispensáveis à defesa

21

nacional ou essencial ao seu desenvolvimento econômico”, repetindo, a Emenda no. 01

de 1969 essa mesma redação.

A Constituição Federal de 1988, da mesma forma, dedicou-se somente à

distribuição do domínio das terras devolutas entre os entes federados, estatuindo no seu

artigo 20, inciso II, que “as terras devolutas indispensáveis à defesa das frontes, das

fortificações militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental”

cabem ao domínio da União e aos Estados cabem, na forma do artigo 6, inciso IV, “as

terras devolutas não compreendidas entre as da União”.

Assim, quando procuramos o conceito de terras devolutas, queremos encontrar

uma fórmula, uma regra, um conjunto de elementos que, analisados conjuntamente,

sejam capazes de individualizar o “ser” das terras devolutas, diferenciando-as dos

demais bens juridicamente tutelados, entendendo-se, após toda essa explanação, que o

conceito de terras devolutas deve ser extraído da análise conjunta da Lei 601 de 1850 e

do Decreto-Lei 9.760 de 1946, sendo a classe de bens formada pela terras adquiridas

pelo Brasil, seja em decorrência da sua independência de Portugal, seja pela compra ou

troca com outras nações, que não se encontram determinadas e não foram adquiridas

pelo domínio privado por nenhuma das formas especificadas nos parágrafos 2o, 3o e 4o

da Lei 601 e nas alíneas “a” a “g” do artigo 5o do Decreto-Lei 9.760 ou por usucapião,

nem sequer estão sendo destinadas ao uso público típico dos bens de uso comum ou de

uso especial.

4- Terras devolutas como bem público Do conceito apontado, não temos dúvida de que as terras devolutas se

enquadram perfeitamente na classe dos bens públicos, cujas características foram

exaustivamente exploradas no item “2.1” deste estudo, e, mais especificamente, na

modalidade “dominical” conceituada no item “2.3.3”.

Nesse sentido, vale citar o magistério de Marcello Caetano : “Alguns autores

invocam aqui a distinção entre domínio natural e domínio artificial; ou formulam outra

distinção entre domínio necessário e domínio acidental. Na verdade, certos elementos

do domínio público pertencem-lhe por imposição da própria natureza : é o caso dos

espaços, - o espaço aéreo, o espaço das águas marítimas territoriais, as terras vagas dos

paises de colonização... Embora já não com o mesmo carácter de necessidade, estão em

22

análogas condições os rios, as praia, os portos, os lagos..., de tal modo que a lei se limita

a reconhecer uma realidade preexistente”42. Portanto, podemos dizer que o domínio

público patrimonial a que se sujeitam as terras devolutas é um domínio natural.

Ademais, a própria Constituição Federal de 1988 explicita a condição de bem

público das terras devolutas ao impor, nos seus artigos 20, inciso II, e 21, inciso IV, o

domínio dessas terras em regra aos Estados e, em caráter de exceção, à União quando

“indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e das construções militares, das

vias federais de comunicação e à preservação ambiental”, sendo que pela leitura do

texto constitucional, temos que tal domínio, não é somente um domínio eminente, de

mera regulação, mas um efetivo domínio patrimonial, vez que o Constituinte, na

distribuição desse domínio utilizou-se das expressões “São bens da União” (art.20) e

“Incluem-se entre os bens dos Estados” (art.26).

O Constituinte de 1988 não especificou a destinação da terras devolutas (não as

enquadrando, pois, como bens de uso comum do povo ou de uso especial), mas exigiu,

no caput do artigo 188 que “a destinação de terras públicas e devolutas será

compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária”.

Quanto ao código civil de 2002, o mesmo ao elencar os “bens públicos” no seu

artigo 99, não poderia excluir desse rol as terras devolutas, sob pena de afrontar o texto

constitucional, em especial os artigos 20, II, e 26, IV, da Constituição de 1988. É

verdadeiro, também, que o código civil não especificou cada um dos bens públicos, mas

os distribui em categorias, que são os bens de uso comum, os de uso especial e os

dominicais, estando as terras devolutas incluídas nessa última.

A doutrina é pacífica no sentido de fixar as terras devolutas como bens públicos

dominicais. Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Júnior afirmam que “as terras

devolutas não são destinadas ao uso comum ou especial, podendo, assim, ser incluídas

na classe dos bens dominicais, e que pertencem à União, exclusivamente as terras

devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções

militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, remanescendo as

demais dentro da órbita patrimonial”43. Da mesma opinião comunga Maria Sylvia

Zanella Di Pietro no sentido de que “elas integram a categoria de bens dominicais,

42 CAETANO, Marcello. Manual de Direito Administrativo. Coimbra : Coimbra Editora, 5a edição atualizada e novamente revista, 1960, p. 558/559 43 ARAUJO, Luiz Alberto David e NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. São Paulo : Saraiva, 7a edição revista e atualizada, 2003, p. 243

23

precisamente pelo fato de não terem qualquer destinação pública”44 e Celso Antônio

Bandeira de Mello para quem “as terras devolutas são bens públicos dominicais”45.

E, sendo as terras devolutas bens públicos, várias conseqüências acabam por

surgir em razão da necessária sujeição ao regime jurídico de direito público que, como

afirma Cretella Júnior, é “derrogatório e exorbitante do direito comum”46. Daí decorre a

regra da imprescritibilidade, da impenhorabilidade e não oneração dos bens públicos, a

que se encontram sujeitas as devolutas.

Tratando da imprescritibilidade dos bens públicos, Hely Lopes Meirelles ensina

que a “imprescritibilidade dos bens públicos decorre como conseqüência lógica de sua

inalienabilidade” originária. E é fácil demonstrar a assertiva : se os bens públicos são

originariamente inalienáveis, segue-se que ninguém os pode adquirir enquanto

guardarem essa condição”47. Ainda quanto à inalienabilidade, importante destacar o

conteúdo do artigo 101 do novo código civil no sentido de que “os bens públicos

dominiais podem ser alienados, observadas as exigências legais.

Sobre a impenhorabilidade e a não oneração, Bandeira de Mello diz serem “uma

conseqüência do disposto no art. 100 da Constituição. Com efeito, de acordo com ele,

há uma forma específica para satisfação de créditos contra o Poder Público

inadimplente. Os bens públicos não podem ser praceados para que o credor neles se

sacie. Assim, bem se vê que não podem também ser gravados com direitos reais de

garantia, pois seria inconseqüente qualquer oneração com tal fim”48.

5 – Terras devolutas e o usucapião

O conceito de usucapião é uníssono na doutrina no sentido de que é uma

forma de aquisição de propriedade e de outros direitos reais tendo como fundamento a

posse sobre o bem, de acordo com os requisitos impostos pela lei. Sérgio Ferraz escreve

que o “usucapião constitui modalidade originária de aquisição. É dizer, não se adquire,

por usucapião, de um titular. A aquisição é direta, não intermediada, não sucedida,

44 Op.cit. p. 468 45 Op.cit. p. 788 46 CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado do domínio público. Rio de Janeiro : Editora Forense, 1984, p. 29 47 Op. Cit. P. 456 48 Op. Cit. P. 783

24

produzindo-se pelo simples fato da posse prolongada, como disposto na lei”49. Para

Maria Helena Diniz, “a usucapião é um modo de aquisição de propriedade e de outros

direitos reais (usufruto, uso, habitação, enfiteuse ...,servidões prediais...) pela posse

prolongada da coisa com a observância dos requisitos legais, como prefere dizer Clóvis

Bevilácqua)”50.

Importante desde já destacarmos que, se de um lado o usucapião tem

como fundamento uma situação de fato - com repercussões jurídicas -, que é a posse, de

outro lado, trata-se de um instituto necessariamente limitado pela lei, inclusive em razão

do disposto no inciso XXII do artigo 5o da Constituição Federal - “é garantido o direito

de propriedade “ -, visto que a aquisição da propriedade por uma pessoa, através do

usucapião, repercute na perda da propriedade por outrem. Assim, só há que se falar em

aquisição de propriedade por usucapião nos casos e circunstâncias em que legislação

assim o autorizar.

Existem, no direito brasileiro, quatro espécies de usucapião de bem imóvel, o

extraordinário, o ordinário, o urbano e o especial (também denominado pro labore).

O usucapião extraordinário é previsto no artigo 1.238 do código civil e tem

como fato gerador a posse pacífica como se próprio lhe fosse o bem, independente de

título e boa-fé, por 15 (quinze) anos, sem interrupção nem oposição, reduzindo-se tal

prazo para 10 (dez) anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel sua moradia

habitual ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.

O usucapião ordinário é aquele previsto pelo artigo 1.242 do código civil e que

se fundamenta na posse contínua e incontestável, com justo título e boa-fé, pelo período

de 10 (dez) anos.

Já o usucapião urbano, também denominado pro habitatione, é o previsto pelo

artigo 183 da Constituição Federal e pelos artigos 1.240 do código civil e 9o a 14 do

estatuto da cidade (Lei 10.257, de 10.7.2001), e tem como fundamento a posse como

moradia própria ou da família, daquele que não é prioprietário de outro imóvel urbano

ou rural, de área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos

ininterruptos e sem oposição.

49 DALLARI, Adilson Abreu e FERRAZ, Sérgio (Coord.). Estatuto da Cidade (Comentários à Lei Federal 10.257/2001). São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 139 50 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 4o volume. São Paulo : Saraiva, 18a edição aumentada e atualizada de acordo com o novo Código Civil (Lei no. 10.406, de 10-1-2002), 2002, p. 144

25

Por fim, o usucapião especial ou pro labore consta do artigo 191 da Constituição

Federal e se funda na posse como se sua a coisa fosse, por quem não é proprietário de

imóvel rural ou urbano, por 5 (cinco) anos ininterruptos e sem oposição, de área de terra

em zona rural não superior a 50 (cinqüenta) hectares, tornando-a produtiva por seu

trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia.

Feitas essas necessárias notas sobre o usucapião, vamos agora à análise da

possibilidade ou não de usucapião de bens públicos, classe em que se enquadram as

terras devolutas.

5.1 – O usucapião de bens públicos na Constituição Federal de 1988

Maria Sylvia Zanella Di Pietro apresenta histórico do tema do usucapião de bens

públicos, que merece transcrição : “.depois de larga divergência doutrinária e

jurisprudencial, o Decreto no. 22.785, de 31-5-33, veio expressamente proibi-lo,

seguindo-se norma semelhante no Decreto-lei no. 710, de 17-9-38 e, depois, no

Decreto-lei no. 9.760, de 5-9-46 (este último apenas aos bens imóveis da União)” e,

continua, “no entanto, tem havido exceções, como a prevista nas Constituições de 1934,

1937 e 1946, que previam o chamado usucapião pro labore, cujo objetivo era assegurar

o direito de propriedade àquele que cultivasse a terra com o próprio trabalho e o de sua

família; a Constituição de 1967 mão mais contemplou essa modalidade de usucapião,

porém valorizava o trabalho produtivo do homem do campo, permitindo que lei federal

estabecesse as condições de legitimação de posse e de preferência para aquisição, até

10 há, de terras públicas por aqueles que as tornassem produtivas com seu trabalho e o

de sua família (art. 171).”51

Até a Constituição Federal de 1988, vigia a Lei 6.969, de 10 de dezembro

de 1981, que previa, no seu artigo 1o o usucapião especial aquele que possuísse área

rural contínua não excedente de 25(vinte e cinco) hectares e no seu artigo 2o previa

especificamente a possibilidade de usucapião especial de terras devolutas. Vale

transcrição desse artigo : “A usucapião especial, a que se refere esta Lei, abrange as

terras particulares e as terras devolutas, em geral, sem prejuízo de outros direitos

51 Op.cit. p. 432

26

conferidos ao posseiro, pelo Estatuto da Terra ou pelas leis que dispõem sobre processo

discriminatório de terras devolutas”.

É certo, entretanto, que a Constituição de 1988, no parágrafo único do artigo 191

e no parágrafo 3o do artigo 183, foi certeira ao determinar que “os imóveis públicos não

serão adquiridos por usucapião”.

Num primeiro olhar, poderia se cogitar que tal determinação fosse destinada tão

somente ao usucapião urbano (previsto no artigo 183) e ao usucapião especial (previsto

no artigo 191a), sendo certo que, numa análise sistemática da Constituição, essa

primeira impressão não poderia prosperar. Primeiramente, porque a proibição de

usucapião de bens públicos somente foi apontada nesses artigos em razão de serem eles

os únicos que, na Constituição, se referem à aquisição de propriedade por usucapião,

não havendo, pois, razão para repetição de tal disposição em outros artigos

constitucionais. Segundo, as modalidades de usucapião previstas na Constituição

(usucapião urbano do artigo 183 e usucapião espacial do artigo 191) são aquelas que

mais relevância social têm, sendo efetivo instrumento da função social propriedade

prevista no inciso XXIII do artigo 5o da Lei Maior, não haveria, assim, razão lógica para

a proibição de usucapião de bens públicos para essas modalidades e não estende-la às

demais modalidades de usucapião, com menor relevância social. Terceiro, a repetição

da expressão “os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião” no parágrafo 3o

do artigo 183 e no parágrafo único do artigo 191 teve por função sedimentar que a

proibição se estende não só ao usucapião de bem público urbano, como também ao

rural. Reforçando ainda mais a nossa conclusão, temos que o artigo 188 impõe que as

terras públicas e as devolutas tenham destinação compatível com a política agrícola e

com o plano nacional de reforma agrária, isto é, as devolutas devem estar à disposição

estatal para o cumprimento de seus programas agrícola e agrário, não se cogitando a

possibilidade de transferência, por usucapião, ao particular.

Portanto, clara é a norma constitucional que impossibilita o usucapião de bem

público, em qualquer de suas espécies e em qualquer modalidade de usucapião. Sobre a

matéria, Bandeira de Mello afirma que “... a Constituição vigente é expressa, em seus

artigos 183, §3o, e 191, parágrafo único, ao dispor que “os imóveis públicos não serão

adquiridos por usucapião”. Assim, as normas sobre a usucapião pro labore, previstas no

artigo 191, caput, não podem ser invocadas em relação a bens públicos. No passado,

27

podiam. É que os textos constitucionais anteriores que previam tal modalidade de

usucapião não mencionavam a imprescritibilidade dos imóveis públicos. Era cabível,

entender que prevaleciam sobre a proteção que lhes era dada pela legislação ordinária.

Hoje isto não é mais possível, ante a clareza do precitado parágrafo único do art. 191.”52

5.2 – O usucapião de bens públicos no novo código civil

Sob a égide do Código Civil de 1916 já havia sido construída doutrina no

sentido da impossibilidade de aquisição, por particular, de imóvel público por

usucapião. Isso se dava em razão da interpretação dada ao artigo 67 do antigo Código

Civil cujo texto era : “Os bens de que trata o artigo antecedente (que se referia aos bens

públicos) só perderão a inalienabilidade, que lhes é peculiar, nos casos e forma que a lei

prescrever”.

A “inalienabilidade” como característica dos bens públicos fora fonte da

afirmação doutrinária da impossibilidade de alienação, penhora ou prescrição aquisitiva

de usucapião de tais bens. A jurisprudência fundada nessa interpretação do antigo

Código Civil se tornou pacificada através da Súmula 340 do STF, in verbis : “Desde a

vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não

podem ser adquiridos por usucapião”.

O novo Código Civil, a seu turno, não modificou tal panorama, vez que no seu

artigo 99 manteve o conteúdo do conceito de “bem público”, onde se incluem os bens

de uso comum do povo, os de uso especial e os dominicais e, a despeito de no seu artigo

101 ter afastado os bens dominicais da regra de inalienabilidade, apontou expressamente

que “os bens públicos não estão sujeitos a usucapião”.

Por fim, enquadrando-se as terras devolutas na classe dos bens públicos, não há

como se afastar que lhe incida o artigo 101 do novo código civil, impossibilitando a sua

aquisição por usucapião. 6 - Conclusão Do todo exposto neste estudo, pudemos concluir que as terras devolutas são

verdadeiros bens públicos dominicais, não possuindo destinação típica de bens de uso

comum ou de uso especial, e podendo, na forma do artigo 101 do novo código civil, ser

52 Op. Cit. pp. 783/784

28

alienadas, “observadas as exigências da lei”, desde que respeitada a compatibilidade da

alienação com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária, como

determina o caput do artigo 188 da Constituição Federal.

Também, sendo bens públicos, não são as terras devolutas sujeitas ao usucapião,

por expressa disposição do artigo 102 da codificação civil e dos parágrafos 3o e único,

respectivamente dos artigos 183 e 191 da Constituição, devendo, inclusive, ser mantido

o conteúdo da súmula 340 do STF.

No que se refere ao tratamento dado pelo novo código civil aos bens públicos,

verificamos que a nova legislação serve como instrumento das disposições

constitucionais sobre a matéria, cumprindo o seu papel dentro de uma visão de direito

civil constitucionalizado, merecendo, entretanto, especial atenção pela doutrina a análise

da compatibilidade do parágrafo único do artigo 99 do novel código civil, que

entendemos – como exposto no item 2.1 deste trabalho - ser inconstitucional, com os

termos do inciso II do parágrafo 1o do artigo 173 da Constituição Federal.

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