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Entre Keynes e Marx existe um Gesell Everton Sotto Tibiriçá Rosa 1 e Tiago Camarinha Lopes 2 RESUMO É argumentado no artigo que a linha de estudo que aproxima as teorias econômicas de Keynes e Marx precisa considerar mediações importantes em relação aos fundamentos da teoria do dinheiro e do capital. Uma destas mediações é explicitar que Silvio Gesell, economista da virada do século XIX para o século XX, pouco relembrado na história do pensamento econômico, forma ao mesmo tempo um vínculo de Keynes com certa corrente do movimento socialista e justifica o seu afastamento brusco em relação ao socialismo de Marx. Indicar a existência de Gesell entre Keynes e Marx é uma maneira segura de contrapor não só suas posições 1 Professor da UFG (Universidade Federal de Goiás), Goiânia, GO. E-mail: [email protected]. 2 Professor da UFG (Universidade Federal de Goiás), Goiânia, GO. E-mail: [email protected] 1

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Entre Keynes e Marx existe um Gesell

Everton Sotto Tibiriçá Rosa1 e Tiago Camarinha Lopes2

RESUMO

É argumentado no artigo que a linha de estudo que aproxima as teorias econômicas de Keynes e Marx precisa considerar mediações importantes em relação aos fundamentos da teoria do dinheiro e do capital. Uma destas mediações é explicitar que Silvio Gesell, economista da virada do século XIX para o século XX, pouco relembrado na história do pensamento econômico, forma ao mesmo tempo um vínculo de Keynes com certa corrente do movimento socialista e justifica o seu afastamento brusco em relação ao socialismo de Marx. Indicar a existência de Gesell entre Keynes e Marx é uma maneira segura de contrapor não só suas posições políticas e ideológicas identificadas com as ações de reforma e a revolução, mas suas teorias econômicas, em particular quanto à moeda, aos juros e, portanto, ao capital.

Palavras-chave: Keynes, Gesell, Marx, moeda, juros, teoria do capital.

ABSTRACT

It is argued in the article that the line of study that approximates the economic theories of

1 Professor da UFG (Universidade Federal de Goiás), Goiânia, GO. E-mail: [email protected].

2 Professor da UFG (Universidade Federal de Goiás), Goiânia, GO. E-mail: [email protected]

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Keynes and Marx needs to consider important mediations in relation to the fundamentals of the theory of money and capital. One of these mediations is to explain that Silvio Gesell, an economist from the turn of the nineteenth century to the twentieth century, little remembered in the history of economic thought, forms at the same time a link of Keynes with a certain current of the socialist movement and justifies its abrupt departure from Marx's socialism. To indicate the existence of Gesell between Keynes and Marx is a sure way to counterpose not only his political and ideological positions identified with the actions of reform and the revolution, but his economic theories, in particular with regard to money, interest and, therefore, to the capital.

Key words: Keynes, Gesell, Marx, money, interest, capital theory.

JEL: B00, E11, E12.

Área 3 – História do Pensamento Econômico e MétodoINTRODUÇÃO

Desde a decisiva influência de John Maynard Keynes sobre a teoria econômica a partir dos anos 1920 e 1930, variadas tentativas de relacionar seu pensamento da economia monetária com o sistema econômico marxista foram iniciadas. Diferente da tradição clássica e do mainstream macroeconômico, ambos autores tinham de fato algo a dizer sobre o fenômeno da dinâmica capitalista e suas crises. Além disso, os dois autores eram transformadores do mundo ao seu redor e traçaram perspectivas de ação para o avanço da organização social da produção.

Em geral é possível dizer que existem duas grandes vertentes destas tentativas de relacionamento entre Marx e Keynes: uma que enfatiza a conciliação entre eles e outra que destaca suas posições opostas. Sem cair no erro de considerar as vertentes como excludentes, é preciso lembrar que elas expressam o mesmo nexo dialético entre a reforma e a revolução3. Por esta razão, antes de julgar a adequação de uma ou de outra vertente é necessário considerar que a resolução da mescla teórica entre Marx e Keynes só será atingida com a retomada sistemática e consequente dos pontos de contato e ruptura entre os dois economistas.

3 Ver Rosa e Camarinha Lopes (2015).

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Neste sentido, aquela vertente que crê em uma aproximação entre os dois economistas expressa apenas um desejo genérico de regulação e controle do capitalismo para que se garantam direitos sociais do ponto de vista da filosofia humanista, tal como expressos nos ideais da Revolução Francesa. Aquela vertente que anuncia as disparidades e conciliação impossível, por sua vez, indica apenas que o último passo da dança entre a reforma e a revolução foi dado e que, nesta situação, nenhuma cooperação adiante é viável para que a classe trabalhadora resolva de uma vez por todas os problemas econômicos e sociais que decorrem do modo de produção capitalista. Considerando que ambas as vertentes se referem a agentes ativos no processo da luta dos trabalhadores pelo domínio do processo de reprodução econômica, e que estes agentes têm interesse em ampliar seus conhecimentos sobre o método, é útil esmiuçar os fundamentos teóricos que explicitam sua posição nesta empreitada porque isto ajudará a revelar a relação de reforma e revolução conforme Rosa Luxemburgo4 ([1900] 1986).

Estes fundamentos teóricos são tocados neste artigo pelo estudo da relação entre Marx e Keynes com base em um momento específico do desenvolvimento do movimento comunista e de crise do capitalismo laissez-faire. A formação do socialismo que se apropria da Economia Política Clássica influenciou toda produção teórica da economia desde os anos 1820 e, no caso particular de Keynes, a repercussão deste processo assumiu a forma final do sistema econômico de Silvio Gesell. Apesar de ser amplamente reconhecido como um autor não simpático ao comunismo, Keynes está sob forte influência desta modificação sofrida pela Economia Política Clássica e pode, assim, ser posto dentro de certa corrente que o aproxima do socialismo não marxista. É absolutamente necessário temporizar a visão sobre o socialismo marxista de Keynes por diversos motivos, mas principalmente porque sua filosofia social, na forma de uma proposta de ação econômica e política explicitada na Teoria Geral, tem o objetivo de equacionar os principais problemas do sistema econômico vigente, que segundo ele são: "sua incapacidade

4 Nexo dialético entre reforma e revolução, um não exclui o outro.

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para proporcionar o pleno emprego e a sua arbitrária e desigual distribuição da riqueza e das rendas" [Keynes [1936] 1996, p. 341] . Assim, por mais que se exclua o comunismo como alternativa (ou o “socialismo marxista”), Keynes se mostra como um economista progressista, similar aos pensadores da social-democracia e de esquerda, em especial, os socialistas.

Desta forma é relevante apontar que talvez Keynes não seja contra a ideia geral de socialismo, mas apenas contra o socialismo real que ele observou nascer na Rússia na forma da União Soviética a partir da liderança de Lênin. Em outras palavras, a contraposição imediata de Keynes se refere mais estritamente ao Marxismo e não ao socialismo em toda sua amplitude de movimento social, político e filosófico.

Para desenvolver esse paralelo entre Keynes e Marx, apresentamos inicialmente o sistema econômico de Gesell e como os sistemas dos dois economistas reagem a ele.

1. GESELL E SUA PROPOSTA DE REFORMA MONETÁRIA COMO PONTE PARA UMA NOVA SOCIEDADE

Silvio Gesell foi um comerciante alemão que migrou para a Argentina no último quarto do século XIX. Segundo Keynes (1936), Gesell voltou-se para o estudo dos problemas monetários no fim dos anos 1880, em decorrência da crise econômica internacional. Sua primeira obra, de 1891, denomina-se "A Reforma Monetária como ponte para o Estado Social" (Die Reformation im Münzwesen als Brücke zum socialen Staat) na qual o autor se dedica à investigação de como a instituição da moeda pode ser utilizada para a criação consciente de um sistema econômico e social que seja mais adequado, segundo ele, à natureza humana5. O ponto de Gesell, é que a forma moeda adotada desde os primórdios da civilização e presente na sociedade moderna é inadequada para a liberação da potencialidade humana, pois ela não funciona como deveria - exclusivamente como meio de troca - o que põe em xeque os avanços da divisão do trabalho que fundamenta a organização econômica da civilização moderna.

A principal obra de Gesell chamada "A Ordem Econômica Natural por meio da Terra Livre e do Dinheiro Livre" (Die natürliche Wirtschaftsordnung durch Freiland und Freigeld), publicada em 1916, corresponde à junção de duas obras prévias: a primeira de 1906, chamada "A

5 Aspecto comum em outras tradições econômicas, como dos institucionalistas, a exemplo de Veblen (1899).

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Realização do Direito sobre todo o Produto do Trabalho" (Die Verwirklichung des Rechtes auf dem vollen Arbeitsertrag) e a segunda, de 1911, “A Nova Doutrina dos Juros” (Die neue Lehre vom Zins).

No prefácio da quarta edição de A Ordem Econômica Natural, em 1920, Gesell afirma que a Primeira Guerra Mundial confirmou toda sua teoria econômica e suas propostas de reforma social, pois capitalistas, comunistas e marxistas tiveram muito que refletir com a emergência e resultados da Guerra, uma vez que tiveram que equacionar falhas no funcionamento de seus sistemas econômicos e nos ideais propostos de sociedade. Para Gesell, a Guerra explicitou tanto o fim do laissez-faire quanto a emergência de uma bifurcação a que se chegou para a definição da organização econômica da sociedade. Segundo o autor, a população dos anos de 1920 precisava realizar a escolha entre duas alternativas: de um lado existiria o caminho do comunismo, de outro, a ordem econômica natural proposta pelo próprio Gesell.

Para Gesell, o colapso do laissez-faire ainda não havia culminado com a escolha entre os dois extremos. Desta forma, a sociedade estaria em uma posição provisória, cuja realidade seria a de um sistema econômico híbrido e indefinido, onde o Estado faz a mediação e permite a convivência de características particulares das duas alternativas. De fato, era como se o sistema econômico estivesse num estágio de definição, apresentando características do comunismo ideal, enquanto sistema da propriedade comum e busca da igualdade, mas, que ao mesmo tempo, apresentasse aspectos da ordem econômica natural, fundada no homem verdadeiramente independente e livre que é recompensado pelo seu próprio esforço.

Esta situação, para o autor alemão, seria insustentável ao longo do tempo, pois na sua visão, comunismo e ordem natural são incompatíveis por construção, tendo em comum apenas o fato que emergem em resposta ao laissez-faire6. Como Gesell define, a ordem econômica natural é fundada no interesse pessoal, no esforço humano realmente livre, onde o privilégio e a moeda não influem na “seleção natural” da competição do mercado e do trabalho, diferindo do laissez-faire. O comunismo, por outro lado, não seria fundado nesta base, uma vez que o interesse pessoal estaria subordinado ao impulso solidário. Segundo Gesell, a experiência teria mostrado que os impulsos de preservação do grupo ou da espécie seriam mais fracos do que o egoísmo ou

6 Pensamento similar ao de Mannhein (1954), no que diz respeito à emergência da ação social do Estado em resposta ao fracasso do laissez-faire, tanto nas sociedades democráticas, quanto nas totalitárias.

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a autopreservação do indivíduo. Neste sentido, partindo do comunismo primitivo, a produção de bens e a divisão do trabalho tornaram o comunismo impossível, uma vez que o aumento da impessoalidade das relações foi tornando o ganho pessoal mais relevante do que o benefício coletivo.

Dessa forma, os indivíduos mais eficientes ou que se destacavam em suas atividades diárias de sobrevivência foram rompendo com o comunismo, o que ajudaria a explicar do ponto de vista da evolução natural, porque teriam se formado classes sociais na dissolução do comunismo primitivo7. Gesell ([1916] 1958, p. 6) afirma que “se o bem de todos fosse um impulso mais forte do que o bem pessoal, o comunismo teria permanecido”. Ou seja, o bem comum é diluído pelo bem pessoal, por conta do instinto de autopreservação. Quanto maior a sociedade e mais complexa a divisão do trabalho, maior é a diluição do bem comum. A única possibilidade para o comunismo vingar em uma sociedade sofisticada na divisão do trabalho seria a substituição dos impulsos pessoais pelas atribuições compulsórias, uma vez que as tarefas não podem deixar de ser realizadas8. Neste ponto, Gesell defende que o comunismo não é factível com a natureza humana, assim como o sistema econômico em vigor, o laissez-faire.

Em relação ao laissez-faire, o problema de Gesell não é tanto com o discurso, mas com a estrutura de fato da organização econômica que profere o discurso. Gesell observa que a reprodução do privilégio e do poder da moeda não fazem com que os indivíduos sejam verdadeiramente livres, ademais, ele irá criticar os excessos do liberalismo. Segundo o autor, o egoísmo não deve ser confundido com interesse pessoal a qualquer custo, ou seja, “o homem sábio logo nota que seu interesse próprio é melhor atendido com a prosperidade do todo”9. Para

7 Ponto de vista similar ao de Veblen (1899) sobre o surgimento da classe ociosa com o avanço da divisão social do trabalho e o distanciamento da sociedade primitiva não predatória.

8 Na interpretação de Gesell, a seleção natural passaria a ser a seleção realizada por um homem nesse sistema chamado comunismo. Ou seja, ao adotar o comunismo na sociedade moderna e industrial, estaríamos substituindo a natureza do processo de seleção, de tal forma que o sucesso de cada indivíduo estaria pautado, não pelo seu esforço e trabalho, mas pelo seu grau de proximidade com o partido. Não mais se escolhe, cumpre-se ordens.

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Gesell, a existência de propriedade de recursos escassos e a forma que a moeda assume nessa sociedade é incompatível com a liberação do homem.

Dessa forma, o colapso do laissez-faire finalmente colocou a sociedade na posição de escolha da nova organização social da produção, porém, a escolha não foi tomada, permanecendo características da sociedade do laissez-faire (sua estrutura econômica), características da solidariedade do comunismo e do interesse pessoal e do esforço da ordem natural. Essa indefinição seria transitória e a sociedade estava em um momento de tomar a sua decisão.

Curiosamente, o “sistema híbrido”, tido como insustentável por Gesell, é justamente a escolha de Keynes, sendo sua teoria da economia monetária, uma forma de dar sustentabilidade para este sistema econômico que não é mais laissez-faire, mas também não chega a ser centralmente planejado. Enquanto, os extremos foram defendidos por diferentes autores ao longo da história do pensamento econômico - Marx, Gesell, Proudhon, Sismondi, bem como a própria volta do laissez-faire - Hayek, Friedman -, poucos autores, no entanto, escolheram o sistema híbrido tal como Keynes. E os que fizeram a mesma escolha, não tinham meios para que ele funcionasse adequadamente. Estes economistas foram, em seu tempo, chamados de socialistas utópicos.

Gesell defende a Ordem Econômica Natural uma vez que entende que o comunismo é incompatível com o homem e com uma sociedade com alto desenvolvimento da divisão social do trabalho. Isto é, a sociedade assentada na divisão e especialização do trabalho, com infinidade de etapas, processos, esforços e produtos seria incompatível com o ideal comunal presente nas sociedades primitivas. Com isso, uma vez em curso a divisão do trabalho não haveria caminho de volta ao comunismo. Por isso, toda sua elaboração teórica busca fundamentar o caminho político para a criação da ordem econômica natural que será uma resposta tanto para o laissez-faire derrotado pela realidade das crises, dos privilégios e das guerras, quanto para os desdobramentos do caminho revolucionário seguido pelos marxistas que romperam com a Social-Democracia Alemã, ou seja, Lênin e seus seguidores.

A ordem econômica natural é um sistema delineado por Gesell para compatibilizar a organização econômica da espécie humana com as diretrizes da teoria da evolução de Darwin. A

9 Gesell ([1916] 1958, p. 2).

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integração da teoria de Darwin para o campo da ciência econômica e social foi levada adiante por diversos autores como Thorstein Veblen, Alfred Marshall, Friedrich Hayek e Herbert Spencer. Nesse ponto, a particularidade de Gesell é que ele se esforça em ser extremamente fiel ao modo de estudo da biologia. Gesell percebeu que a competição de mercado que a maioria dos autores descreve e exalta não corresponde à competição natural. De outra forma, a livre manifestação das forças de mercado, tal como a seleção natural, não está selecionando os indivíduos e espécies aptas, pois os indivíduos estão utilizando-se de meios artificiais que lhes dão vantagem - a propriedade e a moeda ou a estrutura de poder e privilégio - não o esforço individual verdadeiro. Gesell está ciente de que o homem em sociedade, pelas relações de poder e propriedade, não está submetido diretamente às leis biológicas de seleção: a competição do mercado favorece quem tem propriedades, e não quem possui as características funcionais que ampliam a probabilidade de sobrevivência da espécie. Isso quer dizer que o sistema como está não permite o livre desenvolvimento das qualidades humanas responsáveis pelo progresso da espécie, do ponto de vista da biologia. O homem enquanto espécie animal consegue usar ferramentas sociais para influir em seu próprio processo de adaptação na natureza. Em relação ao esquema mais estreito que é a organização econômica de mercado, o homem enquanto indivíduo social utiliza essas ferramentas a seu favor com a peculiaridade de que isso possa compensar uma falta de habilidade natural, como por exemplo, a força física ou a inteligência.

O processo de evolução descrito por Darwin na A Origem das Espécies poderia ser aplicado ao estudo da formação do sistema econômico. Para Gesell haveria um sistema econômico a ser construído compatível com o livre desenvolvimento da espécie humana do ponto de vista biológico. Em seu intento de ser o mais fiel possível a Darwin, Gesell absorve a noção de competição da teoria da evolução mas sempre ressalta que o resultado dessa competição deve refletir as contribuições concretas de cada um ao processo de produção social. A ideia dele é a de que não adianta defender os princípios da liberdade econômica e humana sem dar as condições de igualdade de oportunidades. Vale dizer, deve-se adotar um sistema econômico cujo padrão de distribuição siga estritamente o esforço individual10. Desta forma, as recompensas e propriedades que o indivíduo venha a obter tornar-se-ão verdadeiramente reflexo

10 Gesell quer construir uma sociedade que seja verdadeiramente meritocrática. A diferença entre a Ordem Econômica Natural e o laissez-faire é que o último alega que nossa sociedade já é esta, enquanto o primeiro se dá

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de sua capacidade individual e não dos feitos de seus antepassados. Em sua descrição, existem dois elementos que se tornam propriedade e que podem

deturpar essa ordem econômica natural: a terra e a moeda. A propriedade não é em absoluto o problema para Gesell. A propriedade só passa a ser

um problema quando ela é escassa e quando não deriva do esforço individual. O que ele quer dizer é que a propriedade se torna um problema quando o item em questão é escasso de forma absoluta/natural, por exemplo, a terra, ou quando é mantido escasso de forma artificial, por exemplo, a moeda. Essa é a mesma percepção de Keynes nos capítulos finais da Teoria Geral. Gesell, diferentemente de Senior, Clark, Spencer, Marshall e Fisher não busca justificar a renda e riqueza oriunda do “não trabalho”, como recompensa pelo sacrifício da abstinência, espera ou risco. Ele assume a mesma posição dos autores que não encontram justificativas universais para o “ganho” que não derive do trabalho. Ou seja, toda renda que não seja contrapartida de trabalho está em um processo de contestação e Gesell partilha dessa visão.

Os juros em seu sistema representam a renda que deriva da existência de propriedade sobre o item que é escasso (relativamente)11. Politicamente, portanto, Gesell, junto com esses denunciadores do “ganho imerecido”, quer acabar com as rendas de propriedade, mas não necessariamente com a propriedade. Este ponto é similar ao de Keynes (1936), porém, Keynes não quer acabar nem com a propriedade, nem com a sua renda, mas quer garantir que esta renda do não trabalho não se torne um entrave para o avanço do sistema econômico, como é nítido em sua preocupação com os juros e com o papel do rentier. Para Gesell, de outro lado, nada justificaria essa renda em primeiro lugar, mesmo que a propriedade fosse obtida pelo esforço individual direto, não caberia a existência de rendas do não trabalho.

conta de que apenas o discurso do laissez-faire é humanista, meritocrático e libertário, mas as condições para atingir essa situação ainda não existem.

11 Keynes ([1936], 1996. p.343-344) reafirma esta ideia com clareza, quando diz que embora existam razões para a escassez da terra, não existem razões para a escassez da moeda.Toda a teoria de Keynes é de combate à escassez

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Qual seria o mecanismo concreto que Gesell sugere para atingir isso? Primeiro, acabar com a propriedade do que é escasso em termos absolutos. Em sua terminologia essa proposta aparece sob o nome de “free-land”. Segundo o autor: “Nenhum indivíduo particular, nem Estado, nem sociedade deve reter qualquer espécie de privilégio sobre a terra. Pois todos nós somos nativos da terra.”12 O segundo ponto seria acabar com a escassez artificial. Neste sentido, a moeda tem que se tornar uma moeda-livre, ou seja, a moeda tem que ser livre para assumir a sua posição de meio de troca, sendo impedida ou desestimulada a se tornar objeto de acumulação e de geração de renda do não trabalho.

Keynes incorpora parte destes elementos, pois, ao tratar da filosofia a que pode levar a Teoria Geral, ele aponta para o fim da escassez relativa do capital e, consequentemente, para redução do lucro a longo prazo, bem como para o fim do rentista, pois este já teria cumprido a sua função. Neste estágio do capitalismo, a remuneração da situação de escassez - capital e juros - seria gradativamente eliminada pela abundância de bens de capital e liquidez, de forma que apenas a remuneração do trabalho - do trabalhador e do empresário -, permaneceriam como fonte de renda, a não ser quando houvesse a perturbação de eventos extraordinários, como uma inovação que gerasse lucros até ser inteiramente difundida ou disfunções entre a oferta e a demanda, como uma quebra de safra ou desastre natural. Diferente de Gesell, Keynes não critica os ganhos derivados do não trabalho apenas pela ótica moral, mas pela ótica de ineficiência sobre o funcionamento do sistema econômico. Até superar a escassez, os lucros e os juros são de suma importância para o processo de desenvolvimento e transformação da estrutura econômica. Sem juros, não há oferta de liquidez, se os juros forem excessivos, não há demanda por liquidez. Diferente de Gesell, o problema de Keynes é com o nível mais adequado destas remunerações para o funcionamento do sistema e, não simplesmente o fato delas existirem, mesmo porque, se combatida sistematicamente a insuficiência da demanda efetiva, estas rendas tenderão a

relativa de moeda (liquidez) e bens de capital.

12 Gesell ([1916] 1958, p. 36).

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desaparecer.A Ordem Econômica Natural de Gesell se baseia na análise do sistema econômico de sua

época e das tentativas fracassadas do liberalismo, socialismo e comunismo na criação de sociedades experimentais (comunidades reais), laboratórios para a futura organização econômica da sociedade. Gesell afirma que o problema de todas as tentativas foi construir uma nova sociedade sem eliminar os elementos característicos da sociedade que se critica, em especial, utilizar a moeda da mesma forma. Para Gesell, enquanto a moeda não funcionar prioritariamente como meio de troca ou enquanto existir vantagem para o seu detentor em mantê-la ociosa em termos de não aquisição do produto, a sociedade vai reproduzir os episódios de crise, desemprego, ineficiência produtiva e não aproveitamento pleno da capacidade do homem e da divisão do trabalho. Neste sentido, a “moeda livre” teria o objetivo, tal como em Proudhon (1847), de colocar a moeda em pé de igualdade com as mercadorias. De outra forma, tal como os mercantilistas, Gesell observa que não existe troca de equivalentes entre moeda e mercadorias, porém, a implementação da “moeda livre” poderia fazer as trocas do mercado serem realmente de equivalentes13, corrigindo a restrição da teoria dos economistas clássicos e Marx que admitiram a equivalência nas trocas por hipótese e a noção equivocada de “valor intrínseco”, inclusive no dinheiro, bem como o erro dos economistas neoclássicos, que tratavam a moeda como mercadoria ou simples intermediário.

A moeda tem que sofrer a mesma degradação que as mercadorias sofrem, caso contrário ela pode ficar ociosa e pode dar vantagem a quem a acumula. Se os produtos sofrem com a passagem do tempo, com a depreciação, com os custos de armazenagem, com o declínio de suas propriedades físicas, a moeda teria que sofrer da mesma forma, caso contrário, sempre haverá vantagem na posse de moeda, sempre haverá juros, logo, capitalização que caracteriza a acumulação capitalista.

A reforma monetária de Gesell para libertação da moeda consistia na eliminação do privilégio do dinheiro, o qual seria obtido pela depreciação da moeda ao longo do ano, através de um processo de destruição do poder de compra de cada nota não gasta que seria previsível e conhecido por toda a sociedade, de tal forma que os estoques de moeda perderiam uma fração do poder de compra a cada mês14. O objetivo, segundo Gesell, era fazer a moeda retornar para a

13 Esse é um dos pontos de discórdia entre Proudhon (Sistema de Contradições Econômicas) e Marx (O Capital).

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circulação das mercadorias o mais rápido o possível, permitindo a operação da produção e da divisão do trabalho sem quebras e interrupções. No limite, a instituição da moeda carimbada significa fazer com que a moeda suporte artificialmente as mesmas desvantagens de manutenção das mercadorias, tornando-se equivalentes ao se destituir a vantagem de sua posse.

Keynes atesta que a proposta da moeda carimbada teria o mérito de estar na direção correta:

“Ele formulou apenas pela metade uma teoria da taxa de juros. O caráter incompleto de sua teoria explica-se, sem dúvida, pelo fato de sua obra ter sido ignorada pelos meios acadêmicos. Contudo, ele aprofundou-a suficientemente para levá-la a uma recomendação prática que talvez contenha a essência das soluções necessárias, embora não aplicável na forma que ele propôs”. [Keynes ([1936] 1996, p.327), grifo nosso].

“A ideia em que se baseia a moeda carimbada é válida”15, ou seja, contornar a insuficiência da demanda efetiva em uma economia monetária, porém Keynes põem em dúvida a praticidade e a efetividade real solução, uma vez que para Keynes, não só a moeda apresenta um

14 Em 1923, Keynes atesta que a inflação é preferível à deflação, embora ambos sejam males, pois a primeira superestimula o sistema econômico através da produção e do comércio, enquanto a segunda inibe o fluxo produtivo. A noção de Keynes com a inflação é similar à de Gesell com a moeda carimbada. A diferença está no fato de que a moeda carimbada estabelece a priori a velocidade de destruição do poder de compra (torna previsível), já a inflação dependeria das expectativas dos agentes sobre a mudança dos preços, que podem ser maior ou menor (pouco previsível).

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problema para a aquisição do produto da economia, mas todas as formas de liquidez. Todos os ativos financeiros, tal como a moeda, são alternativas à aquisição do produto. Neste sentido, carimbar a moeda para que ela mantenha uma depreciação constante, não seria suficiente para condicionar a liquidez do sistema financeiro para o produtivo. Ademais, a solução não resolveria o problema de equacionar o volume de consumo, investimento e poupança da sociedade, de modo que, poderia inclusive ser inflacionária. Por isso, Keynes vai defender instrumentos diferentes para resolver o mesmo problema através da Política Monetária e da Política Fiscal. A tributação sobre ativos financeiros e a inflação fazem o mesmo papel da moeda carimbada16, porém atinge todos os ativos que apresentem liquidez no sistema, não apenas a moeda.

Na proposta da “moeda livre”, Gesell explica porque apenas a moeda tem a capacidade de gerar juros, no entanto, como recorda Keynes, Gesell explicou porque as mercadorias não portam juros17 e porque a moeda não tem juros negativos, porém, não teria explicado porque os juros podem ser positivos. Assim como Keynes se posiciona em relação a Malthus, ou seja, encontra no economista um antecessor de suas ideias, ele também reconhece que os seus predecessores ainda não tinham uma teoria completa do sistema econômico - uma teoria geral. Keynes afirma que Malthus formulou o princípio da demanda efetiva, mas não tinha uma teoria dos juros. No caso de Gesell, ele tem a mesma noção da demanda efetiva, uma teoria da moeda e

15 Keynes ([1936] 1996, p. 327).

16 A política fiscal é anunciada, a inflação é menos previsível. Tanto tributos quanto deterioração do poder de compra são dois instrumentos que operam no mesmo sentido da moeda carimbada, ou seja, reduzir a vantagem de se acumular liquidez em detrimento da aquisição do produto.

17 Ou na linguagem de Keynes, portam juros negativos. Lembrando que Keynes desenvolve no capítulo 17, uma teoria em que expressa o rendimento global dos ativos em termos de taxas próprias, sendo a taxa de juros monetária a taxas de juros própria da moeda em termos de moeda.

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uma série de teorias dos juros, porém, de acordo com Keynes, Gesell não consegue explicar o que determina os juros, ainda que saiba que apenas a moeda tenha a capacidade de portar juros. Faltou a Gesell, tal como faltou a Malthus, ainda que o economista alemão tenha avançado mais e na direção correta, uma teoria da preferência pela liquidez.

2. PROUDHON, GESELL E KEYNES: EVOLUÇÃO DAS INSTITUIÇÕES (HUMANAS) E REFORMA

Keynes concorda com a linha apresentada por Gesell e derivada de Proudhon, o problema do sistema econômico existente não estaria em sua base na propriedade privada, mas sobre os níveis de remuneração da propriedade18. Neste ponto, a questão da moeda e da reforma social pela adequada administração do sistema monetário é coincidente entre os três autores, ainda que as propostas sejam institucionalmente diferentes. Há o consenso de a moeda tem que se tornar equivalente das mercadorias, sem privilégios especiais.

A proposta de Proudhon de um Banco, “Banco do Povo”, que coloque em pé de igualdade a posse de mercadorias e de moeda é apenas uma institucionalidade diferente da proposta de Gesell de carimbar a moeda que é acumulada. Ambas são formas diferentes de lidar com o mesmo problema solucionado por Keynes, por meio do Tesouro e do Banco Central, a partir da adequação da preferência da liquidez em níveis compatíveis com o necessário para a demanda efetiva deixar de ser insuficiente e caminhar para o pleno emprego, ou seja, o estado de maior eficiência econômica. Contudo Keynes chega à institucionalidade mais completa, quando considera que a remuneração da propriedade da moeda, ou a taxa de retorno na dimensão financeira (taxa de juros), não pode ser incompatível com o que é exigido para a promoção da atividade econômica na dimensão produtiva (eficiência marginal do capital).

Em suma, reformar a sociedade por meio da reforma monetária, isto é, retirar/diminuir a atratividade da moeda, do sistema financeiro e da riqueza financeira em favor da produção, do trabalho, da riqueza material, sem eliminar a moeda, mas administrando-a adequadamente. A eliminação do privilégio do dinheiro é vista como condição para acabar com a escassez de bens e ativos. Neste ponto, pergunta colocada por Proudhon, por que temos poucas máquinas, barcos e

18 Sobre aspectos de proximidade entre Keynes e Proudhon, ver Dillard (1942).

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casas?, é respondida de forma similar, mas não idêntica, por Gesell e Keynes. Para Gesell o dinheiro limita a sua construção. Para Keynes, o dinheiro tem uma posição privilegiada no sistema, mas é a preferência pela liquidez (que pode ser satisfeita por dinheiro, mas também por diferentes ativos financeiros e até produtivos) que limita a produção.

Segundo Gesell, em consonância com Proudhon e Keynes:

“porque o dinheiro é um sentinela colocado na entrada dos mercados, com ordens para não deixar ninguém passar. Dinheiro, você imagina, é a chave que abre os portões do mercado, isso não é a verdade do dinheiro, ele é o que trava os portões” (Gesell, [1916] 1958, p. 10)

Para Marx ([1867] 1996 p. 195), essa saída, de reforma do dinheiro, seria uma “utopia filistéia”, uma proposição “pequeno burguesa” de defesa da liberdade e individualidade por meio da propriedade privada. Marx concorda que há um problema entre o equivalente geral e as mercadorias, mas parece não aceitar a possibilidade de solução do problema por meio da reforma monetária, justamente a posição do socialismo de Proudhon, da ordem econômica natural de Gesell e da economia monetária administrada de Keynes. De acordo com o autor, a transformação do produto do trabalho em mercadoria, completa-se com a transformação da mercadoria em dinheiro ou na forma dinheiro. Deste modo, a singularidade das propostas anteriores seria a “a habilidade do socialismo pequeno-burguês que quer eternizar a produção de mercadorias e, ao mesmo tempo, abolir a “antítese entre dinheiro e mercadoria” e, portanto, o próprio dinheiro.” (Marx [1867] 1996 p. 212).

Para Marx, parece ser inconcebível essa ideia, haja vista que em sua construção teórica comprometida com a teoria do valor trabalho, supõem-se que existe uma “gelatina” comum à todas as mercadorias - o tempo de trabalho socialmente necessário -. Dessa forma, o dinheiro tem que ser mercadoria, tem que ser equivalente em termos de trabalho socialmente necessário para

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estar de acordo com a hipótese smithiana adotada de troca de equivalentes no mercado19. Como Proudhon e Gesell identificam que o sistema atual já não opera com troca de equivalentes, o diálogo entre os teóricos passa a ser irreconciliável a partir daqui. Assim, para Marx, qualquer reforma no dinheiro é vista como inconsistente, pois exigiria tratar o dinheiro como não mercadoria, algo que rompe com a sua hipótese, e por isso passa a ser ridicularizada20. Contudo, Proudhon, Gesell e Keynes constatam que o problema econômico está justamente no fato do dinheiro não ser uma mercadoria21, justamente por ser algo não reprodutível pelo trabalho e desejado per si e não apenas como meio de troca. Este ponto é irreconciliável entre os autores. Não a toa, um lado e outro vai se criticar mutuamente em termos levemente ácidos, no entanto, não se pode dizer que os autores não estivessem cientes das posições teóricas de uns e outros.

No entendimento de Keynes ([1933] 1973, p. 77-78), uma economia que opera com troca de equivalentes é um tipo de economia dentre as possíveis: a economia empresarial neutra ou economia neutra. Onde o valor de troca da renda monetária dos fatores de produção é garantido, por algum mecanismo (hipótese), à magnitude da fração de produto corrente que já seria destinado aos fatores em uma economia cooperativa ou de rendas-reais (sociedade de trocas reais). Adicionalmente à estas duas economias, características da exposição dos economistas clássicos, incluindo Marx, Keynes apresenta o que seria a economia empresarial ou de renda-

19 A partir desta hipótese, a exploração fica restrita à produção no conceito de Mais-Valia, perdendo-se de vista o caráter exploratório no mercado desde os mercantilistas: comprar barato e vender caro.

20 Segundo Marx, a proposta de reforma de Proudhon (que é resgata por Gesell e similar a de Keynes) seria algo como: “Do mesmo modo poder-se-ia abolir o papa e deixar permanecer o catolicismo”. (Marx [1867] 1996 p. 212).

21 Em Proudhon, tal fato é destacado pela proposta de criar uma forma monetária, um certificado de trabalho (“valor constituído”). Em Keynes, com o reconhecimento da “economia empresarial” ou “monetária da produção” em contraste com a “economia de moeda neutra” ou de “trocas reais”.

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monetária, “a economia em que realmente vivemos”, na qual não haveria tal mecanismo, ou seja, as rendas monetárias, a depender da magnitude da demanda efetiva, podem ser superiores ou inferiores à parcela de produto real resultante dos esforço produtivos. Como afirma Keynes:

Um empresário está interessado, não na quantidade de produto, mas na quantidade de moeda que será sua. Ele irá aumentar seu produto se, ao fazer isso, ele espera um aumento do seu lucro monetário, mesmo que seu lucro represente uma quantidade de produto menor do que antes. [Keynes, [1933] 1973, p. 81, grifo nosso].

Isso porque, o emprego dos fatores de produção pelo empresário exige cessão de moeda, não de produto, o cálculo é sempre a taxa monetária de capitalização, ou seja, ceder moeda para obter tanto mais de moeda no futuro neste emprego ou em outro, independentemente, se a moeda compraria mais produto no passado do que hoje.

A proximidade das propostas dos três autores, bem como a divergência entre Marx e Proudhon, entre Gesell e Marx, e de Keynes com Marx e com laissez-faire (ou tradição ricardiana), são elementos mais do que suficientes para apontar que a conexão entre Marx e Keynes, na melhor das hipóteses, é limitada22. E a principal razão para a limitação está no que Marx preservou da Economia Clássica em sua Crítica: a troca de equivalentes; a moeda-mercadoria; o trabalho como fonte do valor; a tentativa de explicar preços a partir de valor; a busca de um padrão de valor; a ênfase sobre a produção em detrimento da circulação, a reação ácida do liberalismo ao mercantilismo.

22 Esta parece ser a posição também expressa em Dillard (1942) e Dillard (1984).

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Exemplo destes limites são encontrados a partir do próprio Smith. Antes do autor definir o que é “Valor” e seus dois significados “Valor de Uso” e “Valor de Troca”23, no Capítulo V, ele discorre sobre o dinheiro e sua generalização como instrumento de trocas, mesmo notando que algo frontal à sua hipótese da troca de equivalentes ocorre na realidade. Mesmo frente à a progressiva e contínua eliminação do conteúdo metálico das moedas, Smith observou corretamente a generalização da moeda-mercadoria como instrumento das trocas24. Ou seja, o poder de compra do dinheiro na sociedade moderna, já em Smith, não tem lastro material, ou em trabalho, restando enquanto símbolo conveniente. A base da troca e da confiança em ceder o fruto do trabalho por outros produtos do trabalho, de acordo com a teoria do valor, já não se verifica na prática com o dinheiro, ainda que o dinheiro tenha assumido a forma mercadoria no passado.

Gesell, por sua vez, é muito claro com relação a importância da moeda na sociedade moderna, não por seu lastro ou valor intrínseco, mas como símbolo primordial para expansão da divisão do trabalho e acesso aos frutos desta, independentemente do que é “moeda” e de seu conteúdo “intrínseco”, chegando a dizer que se a moeda prometesse “chibatas a seu proprietário”, ainda assim ela seria demandada, pois não interessa o que ela promete com seu peso, conteúdo ou promessa pública, só interessa que ela seja aceita para sancionar a troca. Em outras palavras, a moeda só é confiável porque permite acessar as vantagens da divisão do trabalho, não porque seja fruto do trabalho (mercadoria). A aceitação da moeda, como Smith acidentalmente discorre e Gesell enfatiza, não depende da confiança do “conteúdo” da moeda, mas na sua conveniência para o ato de comércio.

23 “Importa observar que a palavra VALOR tem dois significados: às vezes designa a utilidade de um determinado objeto, e outras vezes o poder de compra que o referido objeto possui, em relação a outras mercadorias. O primeiro pode chamar-se “valor de uso”, e o segundo, “valor de troca”. (Smith [1776] 1996, 85).

24 “Foi dessa maneira que em todas as nações civilizadas o dinheiro se transformou no instrumento universal de comércio, através do qual são compradas e vendidas — ou trocadas entre si — mercadorias de todos os tipos” (Smith [1776] 1996, 85).

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Onde fica Marx nesta questão? Ainda que Marx seja crítico à Teoria Quantitativa da Moeda, tal como Keynes e Gesell, no sentido de que não é o aumento da oferta de dinheiro que determina a relação de troca entre dinheiro e mercadorias, ele adota a noção de que o “valor” do dinheiro deriva de seu conteúdo (trabalho socialmente necessário), a expansão da mercadoria monetária é, por hipótese, expansão do trabalho socialmente necessário, haja visto que a definição de dinheiro é intimamente conectada com a de trabalho contido. Considerar que dinheiro é mercadoria e o valor da mercadoria é trabalho socialmente necessário protegeu Marx da conclusão limitada de que a inflação deriva a emissão monetária. Contudo, a partir do momento que o autor passa a trabalhar com papel-moeda lastreado em ouro, ou seja, da passagem de um sistema baseado na moeda-mercadoria para a moeda-representativa, as limitações da teoria do valor aplicadas ao dinheiro ficaram claras:

Se o próprio curso do dinheiro dissocia o conteúdo real do conteúdo nominal da moeda, sua existência metálica de sua existência funcional, ele já contém latentemente a possibilidade de substituir o dinheiro metálico em sua função de moeda por senhas de outro material ou por símbolos. (Marx [1867] 1996 p. 246)

A moeda papel é o signo de ouro ou signo de dinheiro. [...] Somente na medida em que representa quantidades de ouro, que são também, como todas as quantidades de mercadorias, quantidades de valor, a moeda papel é signo de valor. (Marx [1867] 1996 p. 249)

Gesell e Keynes, comparativamente, já estavam lidando com um sistema mais avançado,

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em que existem bancos e Estado Moderno, quando a moeda representativa passa a fiat money25, em que não há vínculo material no dinheiro e a moeda passa a ser apenas símbolo. Diferentemente de Marx, a moeda pode se relacionar consigo mesmo e expressar seu próprio preço a partir da taxa de juros monetária. Desta forma, ao invés de “preço irracional”, a taxa de juros do dinheiro passa ser explicada internamente no sistema econômico. Gesell se aproximou dessa percepção, mas é Keynes que realiza o feito com a teoria da preferência da liquidez conectada ao princípio da demanda efetiva enquanto uma teoria (geral) que unifica o lado monetário e o real, o presente e o futuro, através da moeda, da taxa de juros e do investimento.

O entendimento do dinheiro em Marx não é a razão para a teoria da mais-valia e para a exploração capitalista no chão de fábrica. É a razão para não ver que um sistema guiado por D-M-D’ e D-D’ apresenta exploração nas atividades cotidianas que envolvem dinheiro no mercado, ou seja, não reconhecer o sistema do “comprar barato e vender caro”e depois se surpreender que “os preços não correspondem aos valores” ou admitir que “uma coisa pode, formalmente, ter preço, sem ter valor”, por exemplo “o preço da terra não cultivada, não tem valor” (Marx [1867] 1996, p. 226). Evidentemente, ver a economia monetária desta forma elimina a nitidez do conflito de classes, e impede a visão de que o conflito é o da desigualdade, não necessariamente da função exercida [trabalhador, banqueiro, empresário], como nos modos de produção passados [senhor e servo, senhor e escravo, soberano e povo].

Por fim, não há reconciliação de Keynes e Gesell com Marx na questão monetária, na medida em que o último autor afirma que “o dinheiro não tem preço” (Marx [1867] 1996, p. 220), ainda que sua grandeza de valor possa ser expressa em outras mercadorias. Este ponto é central, pois é daqui que parte a noção de carimbar a moeda de Gesell e a teoria da preferência pela liquidez de Keynes. O dinheiro ou a moeda tem dois preços, afirmam os autores, um medido com base nos produtos e outro medido com base na própria moeda: a taxa de juros monetária. Assim, a produção e as finanças se unem em torno da dualidade do conflito entre o retorno produtivo em termos monetários e a taxa monetária de juros. Neste ponto, o cap. 17 é central em mostrar porque a taxa de juros da moeda é especial em relação às taxas de juros próprias de qualquer mercadoria, ou seja, o reconhecimento da subordinação da eficiência marginal do capital de qualquer ativo à taxa de juros do dinheiro. E portanto, da necessidade de inverter essa

25 Keynes ([1930], 1971).

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subordinação.A reforma social, que é uma reforma econômica, é, na verdade, uma reforma financeira.

A moeda foi integrada em uma teoria do produto como um todo, avançando em relação à Economia Política Clássica e suas tradições preservadas nos pólos do mainstream econômico e da tradição marxista. Não à toa, a crítica de Proudhon (1847) aos economistas clássicos e socialistas de seu tempo é similar à crítica de Gesell aos defensores do liberalismo convencional e aos reformadores sociais de seu tempo, e leva a Keynes, enquanto um outro representante de uma terceira via ao liberalismo dogmático e ao marxismo, reconhecer em Gesell uma alternativa ao “socialismo não-marxista” e ele próprio como alternativa às tradições de base ricardiana.

Apesar da divergência de Marx com Proudhon, de Gesell com Marx, e do próprio Keynes como Marx, Keynes possui aproximações com Marx:

A distinção entre uma economia cooperativa e uma economia empresarial mantém alguma relação com a observação frutífera feita por Karl Marx, - embora o uso subsequente que ele fez dessa observação tenha sido altamente ilógico. Ele destacou que a natureza da produção no mundo real não é, como os economistas parecem frequentemente supor, um caso de M-D-M’, i.e. de troca de uma mercadoria (ou esforço) por moeda de modo a obter outra mercadoria (ou esforço). Este deve ser o ponto de partida para o consumo privado. Mas não é a atitude dos negócios, que são um caso de D-M-D’, i.e. de partida da moeda para a mercadoria (ou esforço) de modo a obter mais moeda. (Keynes [1933], p.81, grifo nosso).

A divergência, portanto, não é sobre a centralidade da moeda no sistema de Marx e

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Keynes26, mas do que é a moeda e as implicações dessa definição para a dinâmica estudada. Esse ponto é crucial para as tentativas de aproximação e separação dos autores. Pois a limitação em entender a moeda como ativo/dívida, não reprodutível pelo trabalho, isto é, como uma não-mercadoria, limita a análise de Marx sobre os impactos e soluções propostas pelos reformadores monetários, identificados simplificadamente como defensores de um capitalismo assentado na propriedade privada. Haja vista que a moeda-mercadoria, propriedade privada reprodutível pelo trabalho, que mede o trabalho socialmente necessário manifesto nas demais mercadorias enquanto equivalente geral, é a âncora de gravitação do sistema. Isto é, aumentar ou diminuir a liquidez neste sistema é violar a lei do valor, por isso a crise ocorre. Enquanto, a moeda for aprisionada como se fosse uma mercadoria (Padrão-ouro, Regime de Metas de Inflação, Independência do Banco Central, Controle de Agregados Monetários, Monetarismo) os economistas vão comprometer a economia com uma moeda inadequada para a sua plena operação e com estabilidade.

A riqueza material criada pelo homem é definitivamente fruto do trabalho, neste ponto, Keynes afirma:

eu aceito a doutrina pré-clássica de que tudo é produzido pelo trabalho” […] “É preferível considerar o trabalho, incluindo, naturalmente, os serviços pessoais do empresário e de seus colaboradores, como o único fator da produção, operando dentro de um ambiente de técnica recursos naturais, equipamentos e procura efetiva. (Keynes [1936] 1996, p. 211).

O que não implica adotar a hipótese de que os preços ou valores de troca das mercadorias

26 Ver Rosa (2016) e Rosa & Camarinha Lopes (2015).

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correspondam a algo inerente às mercadorias. Outro aspecto inegável é que não só a riqueza material é riqueza, mas os símbolos que dão acesso à riqueza material também o são. A moeda, os ativos financeiros, passivos existentes na economia existente, são riqueza, riqueza financeira não criada pelo trabalho, mas permite comandar trabalho alheio.

O problema da transformação de valores em preços, em Marx, pode decorrer justamente do compromisso do autor de manter o dinheiro como mercadoria sem preço, bem como por transformar o símbolo em coisa corpórea que não apenas reconhece o trabalho incorporado nas demais mercadorias, mas que também contém, ainda que não possa expressar a si mesmo27. Como a moeda não se refere a ela própria, surge a indeterminação da conversão final de valores em preços, pois o dinheiro, “Como medida de valor, serve para transformar os valores das mais variadas mercadorias em preços, em quantidades imaginárias de ouro; como padrão dos preços, mede estas quantidades de ouro.” (Marx [1867] 1996, p. 222, destaque nosso). É por isso que Marx não apresenta uma teoria da taxa de juros em O Capital; por isso também, o juro é tido como “preço irracional”. Logo, é por isso que não há possibilidade de preservar o capitalismo na perspectiva de Marx, pois a busca de D’ não é entendida como determinada, não apenas submetida, à taxa de juros monetária (ainda que o juro consuma parte da mais-valia). Marx não vê a reforma do dinheiro como uma reforma completa do sistema capitalista, nem a vê como possível por conta de seu entendimento do dinheiro como mercadoria que tem trabalho, mas que não tem preço. Por conta disso, as soluções de reforma financeira são utópicas para Marx, quando não, “socialismo pequeno burguês”.

De outro lado, “capital” para estes autores reformistas, não é um conceito restrito à dimensão industrial/produtivo28, sendo a noção de “capitalismo financeirizado” até redundante.

27 O fenômeno da inflação levou Smith a buscar uma medida de valor no trigo (subsistência do trabalhador) ao invés da moeda de ouro ou prata. Tal caminho é o trilhado por Ricardo na busca de uma padrão invariável de valor. Marx, contudo, irá manter a ideia do dinheiro com valor intrínseco e a forma de moeda-mercadoria.

28 Em Proudhon (1847), o conflito do sistema pode ser expresso entre a dinâmica do “capital livre” (moeda) e “capital engajado” (empregado na produção).

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De acordo com Proudhon29: “Não é a multiplicação do capital que reduz a taxa de juros, é a redução da taxa de juros que multiplica o capital”, ou com Keynes:

“[...] ainda que uma elevação na taxa de juros possibilite à comunidade maior poupança com determinada renda, pode-se ter a certeza de que a elevação da taxa de juros (se não ocorrer nenhuma mudança favorável na escala da procura de investimento) fará diminuir o próprio montante agregado da poupança.” (Keynes [1936] 1996, p. 130).

Os males do capitalismo estariam, portanto, justamente na capitalização financeira, livre, especulativa e dissociada da acumulação material proporcionada pela produção e pelo trabalho. Assim, o problema não está na simples acumulação de dinheiro, mas na existência de uma renda do dinheiro e da propriedade. Logo, não é a propriedade privada o entrave do sistema, mas os rendimentos que não se originam do trabalho30. A eliminação da renda do não trabalho - Proudhon e Gesell, ou a redução de seu nível a ponto de não prejudicar a atividade econômica e agravar a desigualdade de renda e riqueza - Keynes, portanto, são vistas como soluções possíveis e adequadas ao sistema em que se vive. A “exploração” neste sistema estaria na manutenção

29 Proudhon (1847, cap. 2).

30 O trabalho não só da “classe trabalhadora”, mas dos próprios empresários.

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artificial da escassez econômica, não necessariamente na exploração do trabalho. Por isso, a posição de reforma. Os termos “capital”, “capitalismo”, “capitalização” e

“capitalista” voltam às suas origens: a do emprestador do dinheiro a juros. Origem associada à “circulação do capital”, ou esfera da circulação”, e não a adotada pela Economia Política Clássica, a partir dos Fisiocratas, associada ao conceito de acumulação na produção. A solução de Keynes, de regular a taxa de juros monetária, assim se apresenta:

Se tenho razão em supor que é relativamente fácil tornar os bens de capital tão abundantes que sua eficiência marginal seja zero, este pode ser o caminho mais razoável para eliminar gradualmente a maioria das características repreensíveis do capitalismo. (Keynes [1936] 1996, p. 216, grifo nosso).

Nesta economia monetária da produção, onde tudo é produzido pelo trabalho e na qual o objetivo da produção de quem dirige o processo é a acumulação monetária, a única razão para se esperar que um ativo tenha um rendimento monetário superior ao seu custo de produção deriva do fato dele ser escasso. Este ativo continuará escasso enquanto a taxa de juros monetária representar um custo de oportunidade atrativo. Dentro do capitalismo, a única forma de eliminar esta exploração é por meio da reforma monetária que torne a liquidez abundante e o preço do dinheiro insignificante. É, de fato, um socialismo com propriedade privada e assentado sobre o trabalho. Mais concreto (menos utópico) do que constituir uma sociedade de massas assentada no controle do trabalho social por quem executa o trabalho e se dedica mais aos outros do que a si mesmo. A primeira sociedade tem sido construída com idas e vindas, sobretudo no século XX, e, não parece ser um obstáculo, talvez sendo até o caminho, para a segunda sociedade, caso esta seja adequada à solução dos conflitos humanos.

3. MARX: ABOLIÇÃO DAS INSTITUIÇÕES (BURGUESAS)

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A partir da perspectiva do sistema de Marx, a crítica à Economia Política de Gesell se fundamenta na desconstrução da naturalização da relação social mercadoria e da propriedade privada. O que isso significa? Isso significa que, por mais progressista que as propostas de reforma social de Gesell sejam, toda a sua análise está circunscrita à naturalização de determinada maneira de organizar o sistema econômico. Apesar desse ponto ser importante, vamos nos ater aos aspectos estritamente técnicos de regulação da dinâmica econômica capitalista ensejados por Gesell, para verificar em que medida elas se coadunam com o sistema de Marx.

A ideia de Gesell é tratar de um problema central que acomete o sistema econômico sob análise. Tal problema é o fato de que, no processo de desenvolvimento da troca, o dinheiro se transforma em um fim em si mesmo, o que abre a possibilidade da ruptura da expansão da riqueza desencadeada pela generalização da produção para a venda. A ideia de que o dinheiro adquire movimento próprio de automultiplicação remete aos pensadores mais antigos, como Aristóteles, que chamou tal fenômeno de crematística. Na linguagem aristotélica, a crematística é o oposto do que deveria ser a economia. É a arte de fazer dinheiro sem contrapartida para a arte de cuidar da casa. A expansão do dinheiro sem qualquer contribuição para a economia do ponto de vista de suas necessidades basilares para a boa vida é assim um terrível fenômeno que deve ser combatido pela política.

O esquema de Gesell remonta a essa tradição com um diferencial: como o modo de produção capitalista já está consolidado, não há mais espaço para a contestação moral para a arte do enriquecimento pelos meios legais do comércio. O mercado do dinheiro a juros respeita as mesmas leis que o mercado de qualquer outro item em negociação. Como Gesell pode então se contrapor à doença do amor pelo dinheiro sem recair nos escritos pré-mercantilistas da Idade Média anti-usura ou na condenação ética de Aristóteles em relação à crematística? Ele precisa colocar o dinheiro em pé de igualdade com todos os outros itens transacionados no mercado. O dinheiro precisa ter seu status “rebaixado”, para que seja classificado como os demais itens da economia, como o trigo, o ferro, o porco etc. E ele faz isso submetendo a doença ao âmbito real da economia por meio da aplicação de uma política econômica que impede que o capital se descole da produção. Em outras palavras: ao invés de eliminar a doença, ele a coloca sob controle para que ela não crie resultados negativos do ponto de vista da reprodução do sistema. O sistema vai continuar expandindo, mas sem interrupções e quebras.

Em linhas gerais, Gesell propõe um controle político sobre o dinheiro que bloqueia sua multiplicação “vazia”. Fica proibido todo incremento de dinheiro sem que exista um montante de

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excedente real para cobrir esse volume a mais de valor indicado pelo contrato de empréstimo a juros. Como isso é possível, já que não se pode decretar o fim dos juros por força da lei? Isso pode ser tentado a partir do dinheiro sem lastro cuja confiança já tenha se alastrado bastante pela economia. A manutenção do dinheiro recebe um custo artificial por meio da autoridade monetária, obrigando todo proprietário de dinheiro a usá-lo produtivamente. Caso o proprietário não queira ter sua riqueza diminuída, ele precisa colocar seu dinheiro à disposição para financiar atividades produtivas cuja demanda esteja garantida (o proprietário não é livre, portanto, para usar o capital como quiser: projetos cuja demanda seja incerta provavelmente não farão parte das opções de projetos induzidos pelo Estado). A expansão do capital fica assim totalmente atrelada à esfera da produção, com o que desaparece o jogo do empréstimo a juros sem lastro com investimentos produtivos de itens demandados socialmente. A disposição de terras livres para receberem os trabalhadores assalariados não absorvidos pelo sistema é o outro elemento que complementa a política monetária radical de Gesell. Esse grupo se enquadra no sistema à medida que se torna pequeno produtor.31

Esse é o cerne da política econômica que se estabeleceu no Ocidente após a crise de 1929: induzir a redução dos juros para que o investimento produtivo aumente e colonizar o campo para a produção mercantil. São os dois pilares que sustentam a política econômica da social-democracia, a reforma monetária e a reforma agrária.

Qual é o significado desse resultado no sistema de Marx? Aqui, temos uma situação ideal em que todo o ímpeto de expansão do capital está enquadrado em atividades produtivas pré-determinadas, que foram esboçadas por algum plano político que indica o caminho do desenvolvimento econômico. A população é absorvida pelo sistema, “resolvendo” a questão social da exclusão e permitindo seu acesso ao conforto material crescente possibilitado pelo avanço da produtividade. A jornada de trabalho pode então diminuir continuamente para um contingente cada vez mais maior de trabalhadores através também da organização premeditada da divisão das tarefas de produção. Abre-se então um cenário de viabilidade econômica real para que a classe trabalhadora assalariada possa educar-se. O vislumbre da possibilidade otimista de Keynes (1930)32 em relação ao desenvolvimento das artes e dos prazeres da vida devido ao

31 Nesse modelo, o trabalhador assalariado e o pequeno produtor rural que trabalha para si mesmo (não é empregado nem emprega ninguém) são duas modalidades em mesmo nível hierárquico do ponto de vista econômico. Na

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tempo livre que se democratiza tem assim uma faceta positiva inegável do ponto de vista da luta do proletariado pelo controle do sistema econômico.

Por outro lado essa viabilidade econômica real é apenas uma possibilidade. A sua concretização depende do sucesso da politização e organização da massa submetida ao trabalho sob o capital em nível internacional. Em plena era da informação em rede, alguém tem dúvidas de que essa possibilidade se transforme numa situação na qual as potencialidades de cada um são sugadas pela espiral infinita do consumo passivo de entretenimento? Portanto, o fracasso dessa tomada de consciência pode gerar também um cenário distópico, onde o delicado controle sócio econômico do sistema restrito aos limites nacionais acaba sendo transformado no eixo central do esforço para a destruição, em continuidade ao conflito imperialista aberto entre 1914 e 1918. Na ausência da aplicação dessa política em um ambiente diplomático de total solidariedade entre todos os povos do mundo, a chance da guerra é praticamente certa. A Segunda Guerra Mundial é o exemplo histórico concreto desse tipo de saída. Os esforços para a paz de Keynes, como sua proposta de um sistema financeiro internacional original, devem ser aqui recuperados33.

Agora, em um nível ainda mais profundo vem o contraponto de Marx. Mesmo nesse ambiente global de paz entre as nações, com pleno emprego e com as questões mais elementares de distribuição e pobreza resolvidos, permanece sua análise crítica em relação ao fenômeno da alienação que acomete não só o capitalismo mas todas as sociedades divididas em exploradores e explorados. Do ponto de vista marxista, a naturalização da alienação (a ideia de que alguns

linguagem neoclássica que avalia as escolhas de acordo com uma função utilidade, o agente é indiferente entre ser assalariado ou pequeno produtor autônomo.

32 Economic possibilities for our grandchildren, em Keynes (1931).

33 Ver Fernandes (1991).

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devem comandar e outros serem comandados devido a algum desígnio da natureza) continua, e com ela, a justificativa ideológica para a estrutura do poder dada34. O capital ainda é a forma social de produção dominante. Nesse sentido, as propostas de Gesell e Keynes só são absorvidas pelo sistema de Marx à medida que contribuam para subverter a ordem colocada. A partir do momento em que elas se transformam em mecanismos de justificativa do poder político do capital, o diálogo termina e a luta começa.

Resumindo: o sistema de Gesell parece ser logicamente viável e sua implementação amplia oportunidades de transformação da sociedade, mas essa transformação também pode ser controlada, conduzida ou inibida por aqueles cujo interesse econômico seja exatamente a manutenção do trabalho assalariado e da forma de extração de mais-trabalho sem propósito definido, como é com o capital, na interpretação de Marx. O “sistema híbrido” de Keynes, ou terceira via, parece ser a forma mais segura de avanço progressista, mas pelas mesmas razões, não é uma certeza de avanço sistemático, caso os interesses que ganham com a volatilidade, instabilidade e renda do não trabalho prosperem em travar as reformas e o sistema produtivo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Destacamos aqui alguns elementos para a continuação da pesquisa.Primeiro, em relação à convergência, ambos, Keynes e Marx, apresentam teorias

monetárias da produção, onde o dinheiro possui papel de destaque e a crise econômica é inerente ao sistema capitalista. Este é um ponto de acordo fundamental e de aproximação inegável.

Segundo, parece existir disparidades de dois tipos. A de tipo teórico se refere ao conceito de dinheiro e a derivação da teoria da taxa de juros monetária, bem como à maneira sobre como a propriedade privada deve ser investigada e considerada nas soluções econômicas. A de tipo prático se refere à proposta de política econômica que Proudhon, Gesell e Keynes acham viável de ser aplicada para que o sistema real possa se aproximar do sistema ideal que têm em mente e

34 Este ponto é passível de discussão, sobretudo por parte de outras correntes que destacam o processo histórico da divisão do trabalho, mas também destacam os aspectos instintivos do ser humano, como representado em Veblen (1899).

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está em consonância com as metas da Revolução Francesa, mas que se fundamenta em condicionar o aspecto monetário como subordinado à produção. Esses dois tipos de divergências precisam ser aprofundados antes que possamos concluir com segurança de que maneira os dois sistemas em questão (de um lado o de Proudhon, Gesell e Keynes e do outro o de Marx) se relacionam.

Terceiro, a conexão entre Keynes e Gesell, sugere que revisitar o debate entre Marx e Proudhon é necessário, sobretudo pela aproximação sobre as causas dos problemas no sistema econômico em que existe moeda. Por outro lado, destaca-se que, ainda que não aderentes e opositores da revolução ou do socialismo marxista, o papel do Estado é diferente entre os reformadores da moeda. Sendo o sistema-híbrido de Keynes, considerado insustentável por Gesell, o único verdadeiramente adotado em escala global.

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