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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global 1 Aula 9 Análise do Filme “Eles não usam black-tie” O filme “Eles não usam black-tie”, de Leon Hirzsman (1981), expõe a problemática da consciência de classe a partir da dialética entre contingencia e necessidade (das respostas) da classe do proletariado à condição existencial de proletariedade. Eis a questão: a consciência de classe necessária – que constitui a classe social do proletariado – emerge das respostas que as individualidades pessoais de classe são obrigadas a dar – no plano da contingencia da vida cotidiana – à condição existencial de proletariedade. No caso do filme de Leon Hirzsman as respostas dadas pelos homens e mulheres operárias à condição de proletariedade exposta no decorrer do filme assumiram um caráter coletivo, organizado no movimento sindical.

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

 

Aula 9

Análise do Filme

“Eles não usam black-tie”

O filme “Eles não usam black-tie”, de Leon Hirzsman (1981), expõe a

problemática da consciência de classe a partir da dialética entre contingencia e

necessidade (das respostas) da classe do proletariado à condição existencial de

proletariedade. Eis a questão: a consciência de classe necessária – que constitui

a classe social do proletariado – emerge das respostas que as individualidades

pessoais de classe são obrigadas a dar – no plano da contingencia da vida

cotidiana – à condição existencial de proletariedade. No caso do filme de Leon

Hirzsman as respostas dadas pelos homens e mulheres operárias à condição de

proletariedade exposta no decorrer do filme assumiram um caráter coletivo,

organizado no movimento sindical.

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Ora, como observou Georg Lukács, “o homem é um ser que dá respostas”.

O que significa que, homens e mulheres proletárias imersas em sua condição de

proletariedade são obrigados a dar resposta à alienação/estranhamento que

permeiam suas vidas cotidianas. Na verdade, o que se coloca como questão

essencial é a natureza das respostas humanas contingentes e necessárias

capazes de constituírem, no plano do imaginário social, a identidade de classe

do proletariado.

É claro que as respostas existenciais das individualidades pessoais de

classe às misérias da proletariedade são múltiplas. Elas perpassam um largo

espectro que vai da pura contingencia à mais consciente necessidade da ação

coletiva sindical ou política. Assim, num extremo, as respostas humanas podem

assumir dimensões puramente contingentes, meramente individuais no sentido

de serem intrinsecamente corporativo-particularistas; e noutro extremo, podem

assumir um caráter coletivo, organizado no sentido sindical, quando

permanecem numa dimensão econômico-corporativa; ou ainda organizadas no

sentido politico, quando a resposta coletiva assume um caráter geral, de cariz

ético-politico na medida em que se generaliza, envolvendo homens e mulheres

proletárias das mais diversas inserções sócio-profissionais, num projeto político

de transformação social do terreno nacional-popular, abrangendo, deste modo,

a totalidade viva do complexo do trabalho social.

Portanto, o movimento de formação da consciência de classe é

intrinsecamente o movimento de respostas que o homem que trabalha dá à sua

condição de proletariedade, surgindo, deste modo, como solução de resposta ao

carecimento que a provoca, carecimentos originários da própria

alienação/estranhamento que constitui o ser do proletariado como “classe”.

Deve-se salientar também que essas respostas humanas ocorrem sempre a

partir da vida cotidiana como espaço concreto das atividades prático-sensível

de homens e mulheres proletários.

O movimento cotidiano de formação da classe do proletariado expressa

tão-somente, mutatis mutantis, o movimento histórico-ontológico da própria

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formação da humanidade. Nesse sentido, é interessante apreender que a

consciência social se forma no próprio devir humano dos homens e mulheres,

sendo a consciência de classe uma forma histórico-concreta de consciência

social - a consciência social capaz de fazer a história sob as condições da

dominação do capital. O que significa que não existe história sem consciência de

classe.

Lukács desvela o “mecanismo” intrincado da formação da consciência

social (e por conseguinte, da consciência de classe) a partir da dialética histórica

do movimento respostas (que pressupõem perguntas) aos carecimentos sociais.

Diz ele: “...o homem torna-se um ser que dá respostas precisamente na medida

em que - paralelamente ao desenvolvimento social e em proporção crescente -

ele generaliza, transformando em perguntas seus próprios carecimentos e suas

possibilidades de satisfazê-los; e quando, em sua resposta ao carecimento que a

provoca, funda e enriquece a própria atividade com tais mediações,

freqüentemente bastante articuladas”.

Nessa passagem, Lukács busca salientar não apenas que o homem que

trabalha é um ser que dá respostas, mas também – e vale a pena destacar isso -

a importância da capacidade de generalizar e transformar em perguntas seus

próprios carecimentos e suas possibilidades de satisfaze-los. Esta, inclusive, é

um pressuposto fundamental (e fundante) do próprio ato (e processo) da

solução de respostas humanas aos carecimentos que a provoca.

Portanto, o processo de conscientização (de classe) envolve não apenas

respostas, mas também perguntas que emergem dos carecimentos materiais

postos pela condição existencial de proletariedade – perguntas que se

interrogam sobre as possibilidades de satisfazer os carecimentos cotidianos de

homens e mulheres proletárias.

Deste modo, o homem que trabalha é um ser que transforma em

perguntas seus próprios carecimentos, perguntas sobre a possibilidade de

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satisfaze-los. Enfim, conscientizar não é apenas dar respostas, mas saber

elaborar perguntas a partir dos próprios carecimentos cotidianos.

Nesse caso, podemos distinguir “experiência” da simples “vivência”. Uma

experiencia (de classe) vivida e percebida, implica a capacidade de dar respostas

e elaborar perguntas, que são a verdadeira matriz consciente da formação da

consciência de classe e da própria classe como sujeito histórico-social.

Na verdade, o capital como relação social estranhada busca corroer a

capacidade do homem proletário de viver experiências de classe – mesmo no

plano contingente, tornando-o meramente um “ente vivencial”, “sujeito” de

vivências cotidianas pseudo-concretas, incapaz tanto de elaborar perguntas

sobre seus carecimentos e a possibilidade de satisfaze-los, quanto de dar

respostas efetivas capazes de ir além da fixação fetichizada da ordem burguesa.

Sob o capitalismo tardio, agudiza-se a manipulação que visa a destruir a

capacidade de viver experiencias de classe e portanto, do homem fazer história.

Vivência (de “massa”)

Certeza sensível/pseudo-concreticidade da vida

cotidiana

Experiência (de classe)

Entendimento/Razão/concreção da vida cotidiana

A simples vivência é a dimensão da mera certeza sensível que impregna a

pseudo-concreticidade da vida cotidiana. Neste plano pré-contingente,

construção social da ideologia do capital, a experiência (de classe) não tem o seu

lugar. A “classe” é mera massa de vivências alienadas de si e dos outros. A

ordem da experiencia – que torna-se possível pela capacidade social não apenas

de dar respostas, mas de perguntar sobre seus próprios carecimentos e a

possibilidade de satisfaze-los – põe-se como o campo sócio-histórico de

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formação da consciência de classe, seja ela consciência contingente ou

consciência necessária.

Um detalhe: um filme clássico que expressa com vigor o papel do

interrogar-se no processo de conscientização de classe é o filme “Vinhas da Ira”

(1941), de John Ford. Mais do que o filme de Leon Hirszman “Eles não usam

Black-tie”, o filme “Vinhas da Ira”, de John Ford, é capaz de expor por meio da

experiencia vivida do personagem Tom Joad, o movimento de formação da

consciência de classe do proletariado.

Ainda tratando da dialética da práxis social, Lukács observa: “De modo

que não apenas a resposta, mas também a pergunta é um produto imediato da

consciência que guia a atividade; todavia, isso não anula o fato de que o ato de

responder é o elemento ontologicamente primário nesse complexo dinâmico”.

O que significa que, numa situação de aguda manipulação social, as

perguntas de homens e mulheres proletárias podem até expressar, em si e para

si, contéudos da contingência da ordem da proletariedade, assumindo, deste

modo, pelo menos no plano da elaboração consciente – no sentido

propriamente dito – um caráter de critica do mundo burguês. É o caso de

inúmeras narrativas que denunciam o prosaísmo da vida burguesa com seu

vazio sem esperança. Entretanto, no plano das respostas, a vivência critica não

se traduz em elementos de experiencia de classe, mesmo no plano contingente,

mas sim como mero sentido irracional (por exemplo, o estranhamento como

condição humana e a deriva como sina do destino). Na medida em que o ato de

responder, como observa Lukács, é o “elemento ontologicamente primário nesse

complexo dinâmico”, o equívoco da resposta intrinsecamente manipulada

obstaculiza o trabalho de “negação da negação” (com suas cadeia de mediações)

– cujo movimento implica a passagem da contingencia à necessidade da classe

do proletariado. Nesse caso, a manipulação incide hoje com vigor, mais sobre o

ato de responder (a corrosão da política) que propriamente sobre o ato de

perguntar. A corrosão do complexo dinâmico do movimento de formação da

classe do proletariado como sujeito histórico limita (e invalida) o próprio

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sentido da experiência (de classe) como salientamos acima, abrindo espaços de

vivências pseudo-concretas que permeiam as narrativas da proletariedade pós-

moderna.

O que se visamos destacar, em nossa análise crítica do filme, é menos a

“consciência de classe” e mais a “conscientização de classe”, isto é, o processo de

formação da classe em si e para si (a passagem da contingência à necessidade

da classe do proletariado). O termo “conscientização” é mais adequado que a

palavra “consciência” para expor a dimensão processual da formação do sujeito

coletivo “classe social”. Até hoje, os marxistas não atentaram para a diferença

categórica entre “conscientização” e “consciência”. Enquanto o último remete

para um estado do ser (a consciência), o primeiro implica um processo de

formação com tudo aquilo que lhe é intrínseco (o movimento da contingência à

necessidade, como salientamos acima).

Consciência de classe

(estado do ser)

Conscientização de classe

(movimento do ser da contingência em-si à necessidade para-si)

Na medida em que se trata aqui da conscientização de classe, devemos

considerar o movimento em si e para si, com suas idas e vindas, impregnado da

dialética entre individualidades pessoais e ser social, contingencias e

necessidade (no sentido de respostas efetivas - com sua cadeia de mediações - à

condições objetivas dadas pelo mundo do capital).

Mias uma vez salientamos que conscientização (de classe) nos remete ao

espaço-tempo da vida cotidiana, verdadeiro território de construção/formação

da classe que se dá intrinsecamente a partir das respostas humanas, sejam elas

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impregnadas de particularismo individual (a contingencia do em-si), ou ainda

respostas na direção da ação coletiva da classe como sujeito histórico para-si ou

mesmo para além-de-si (necessidade).

É importante salientar que a luta de classes – seja ela sindical ou politica

– é eixo estruturante da consciência (ou conscientização) de classe necessária.

Ao dizermos consciência de classe necessária, exprimimos a necessidade de dar

resposta à condição de proletariedade no sentido radical (ser radical, na ótica

dialética, é ir até as raízes Mas a raiz é o próprio homem como ser social).

Portanto, a consciência necessária da classe implica – como a própria

constituição da classe social – a apreensão da necessidade do movimento

coletivo contraposto à resposta meramente individual no sentido particularista.

E mais – movimento coletivo que articula em si, a identidade entre homens e

mulheres proletários, identidade que nasce da não-identidade com o mundo do

capital, isto é, emerge da luta contra o capital e suas personas estranhadas. Em

síntese: a identidade da classe – como matriz da consciência necessária da

classe - nasce da própria luta da classe (o que explicita a função pedagógico-

moral da luta de classe).

Na verdade, a narrativa do filme “Eles não usam black-tie” trata, em si,

da natureza íntima – intrinsecamente dialética, e, portanto, contraditória - da

formação da classe do proletariado no Brasil. Ela articula, objetividade do ser

social (o que se expressa na condição de proletariedade particular de uma

formação capitalista de industrialização hipertardia e de via colonial-prussiana);

e subjetividade de homens e mulheres proletários impregnados – no sentido da

representação cultural - pelas clivagens de geração, gênero e etnia. O filme nos

apresenta uma verdadeira totalidade concreta da vida (e trabalho) de homens e

mulheres proletários, operários empregados e desempregados, à mercê do

mundo social do capital.

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Num primeiro momento, não temos a classe social do proletariado, mas

sim a “classe” do proletariado como conjunto de individualidades pessoais de

homens e mulheres, jovens, adultos e idosos, operários e operárias empregadas

na indústria absorvidos pela vida cotidiana do emprego (ou desemprego). Nesta

apreensão imediata da narrativa do filme “Eles não usam Black-tie”, é

perceptível o universo da família como realidade efetiva ou em desefetivação do

ser genérico do homem (família no sentido da comunidade humano-genérica

originária) – aliás, a narrativa do filme gira em torno da família de Otávio, o

metalúrgico; ou mesmo o universo da família como utopia pessoal das

individualidades de classe – projetos de vida constituídos pelo afeto mútuo de

casais (como o casal Tião e Maria que planejam – ou se vêem diante da –

constituição da família).

Aos poucos, no decorrer da narrativa fílmica, constitui-se – aparece – a

classe como movimento de resposta organizada (no sentido coletivo) à condição

de proletariedade. A classe social aparece em sua forma econômico-corporativa.

É a contingência da classe em-si em seu nivel superior (expressas pela

organização sindical e a greve).

Nas condições históricas da industrialização hipertardia em ascensão –

como ocorreu no Brasil da década de 1970 – o locus de formação da classe social

do proletariado é o espaço-tempo da fábrica, o local de trabalho organizado,

onde o capital estrutura a exploração e acumulação de valor. Inclusive as outras

instancias da vida cotidiana se articulam em torno da fábrica, como não poderia

deixar de ser no caso de uma sociedade do trabalho.

Naquela época, a classe operária – no sentido de proletários industriais -

está no centro do movimento de formação da classe do proletariado, tendo em

vista que constituem coletivos mais organizados – tanto no sentido da produção

em si, com o capital concentrando-os num território da produção de valor (a

grande indústria), quanto no sentido da organização sindical com entidades

associativas consolidadas (estrutura sindical). É em torno da classe operária

organizada que se articula a resistência em suas múltiplas gradações (a idéia de

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resistência vincula-se a própria idéia de movimento de formação da classe – o

que significa que percorre uma complexa gradação da contingencia à

necessidade).

Mas a classe operária que aparece no filme não esta só na fábrica, como

iremos ver adiante. Ela está em múltiplos espaços da vida cotidiana – com

destaque para o espaço do lar e espaços do lazer (cinema, barzinho, futebol).

Enfim, dimensões da sociabilidade da “classe” que se faz classe. Aliás, a

formação da consciência de classe ou a conscientização de classe percorre

fundamentalmente dimensões da sociabilidade do complexo vivo do trabalho. A

classe social do proletariado se forma ou se constitui nos espaços de

sociabilidade e não apenas nos espaços de trabalho propriamente dito – embora

não haja uma barreira intransponível entre as instâncias do trabalho e

instancias da vida. Aliás, a natureza do trabalho – no caso de operários e

operárias da grande indústria capitalista fordista-taylorista – coloca

determinações à própria natureza da sociabilidade como espaço de formação da

classe social do proletariado.

A conscientização de classe é um processo de gradação – é claro – levado

a cabo por homens (e mulheres) mais ou menos conscientes da necessidade de

resposta coletiva e não apenas individuais à miséria da vida cotidiana. É

importante que se diga que a resposta é sempre uma resposta concreta às

condições existenciais da vida cotidiana organizada em torno do

trabalho/emprego (em sua forma particular-concreta). Assim, o filme “Eles não

usam Black-tie” trata do proletariado industrial da grande indústria fordista-

taylorista num país de formação capitalista colonial-prussiana de

industrialização hipetardia.

Outra coisa: o processo de conscientização de classe ocorre sempre em

contraposição a obstáculos internos e externos à morfologia social da classe e de

seus agentes/sujeitos pessoais. Por exemplo, no caso da narrativa fílmica, como

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iremos ver, a contraposição dilacerante ocorre não apenas na sociedade civil

propriamente dita, no interior do lar da família operária onde o conflito

candente entre pai e filho expõe o movimento desigual e combinado do processo

de conscientização de classe. O conflito entre Tião e Otávio é quase um conflito

edipiano clássico que contém elementos do processo de formação da classe do

proletariado.

Antes de avançarmos para a análise critica do filme – expondo mais

elementos da relação dialética entre consciência contingente e consciência

necessária de classe – seria interessante apresentarmos alguns elementos sócio-

históricos no plano da objetividade do ser social que condicionam o processo de

conscientização da classe do proletariado industrial no Brasil. O drama social

exposto no filme de Leon Hirszman é a síntese concreta de uma forma de ser do

capitalismo sob as condições da modernidade capitalista periférica. Como

salientamos acima, o Brasil é país de formação capitalista colonial-prussiana

de industrialização hipertardia.

É importante que se diga que a natureza da formação da classe do

proletariado é condicionada – no sentido de condições herdadas de gerações

passadas, como diria Marx - num primeiro momento, pela objetividade do ser

social enquanto modo particular-concreto de objetivação do capitalismo (no

caso do Brasil, via não-clássica de cariz colonial-prussiano); e num segundo

momento, pela própria luta de classes como resposta contingente às condições

sócio-históricas herdadas do passado.

Isto é, o movimento da classe – no sentido da formação da sua

efetividade social como sujeito histórico – é determinado tanto pelo passado

quanto pelo presente – ou seja, condições históricas herdadas do passado, que

colocam limites e alcances da efetividade de classe social (a dimensão da

estrutura social), e escolhas políticas feitas no tempo presente diante do cenário

concreto de luta de classes (a dimensão da contingencia).

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No escrito “18 Brumário de Luis Bonaparte” (1852), Karl Marx expressou

numa frase lapidar, a dialética da história como devir humano dos homens, que

é a própria dialética da formação da classe do proletariado. Disse ele:

“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre

vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se

defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.

Num prmeiro momento, Marx observa: “os homens fazem sua propria história”.

O que significa o reconhecimento da subjetividade na história e o papel da liberdade

como resposta humana que implica escolhas contingentes e ações politicas

propriamente ditas. Mas logo a seguir, Marx alerta: “...mas a não fazem segundo a sua

livre vontade, não a fazem sob circunstâncias de sua escolha...”. Enfim, o fazer histórico

– que é o fazer da classe social do proletariado – é um fazer condicionado pelas

circunstâncias legadas e transmitidas do passado.

O filosófo Jean Paul Sartre observou certa vez: “O importante não é aquilo que

fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós.” Mas,

segundo Marx, o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós é

condicionado pelas circunstâncias herdadas e transmitidas do passado. A práxis

histórica, matriz da própria formação da classe social, articula a dialética entre liberdade

e necessidade, passado e presente, trabalho morto que oprime trabalho vivo. O processo

de conscientização de classe é um processo intrinsecamente contraditório. No processo

de conscientização de classe, as circunstâncias herdadas e transmitidas do passado – no

sentido da pura contingencia viva que contém em si, resíduos do conservantismo social,

limitam a efetividade da formação do sujeito histórico coletivo, agente da transformação

histórica social.

Marx, ao afirmar que “a tradição de todas as gerações mortas oprime como um

pesadelo o cérebro dos vivos”, trata, de fato, da consciência social e da sua efetividade

histórica para além de si (problema do devir histórico). A contingencia pura oprime a

necessidade histórica como movimento da classe do proletariado que nega o estado de

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coisas existentes. A própria “classe” do proletariado imersa na pseudo-concreticidade da

vida cotidiana, como Tião (do filme “Eles não usam black-tie”) com seus interesses

particularistas condicionado pela auto-preservação egoísta, é elemento compositivo do

statu quo contingente.

A condição de proletariedade – como o próprio nome diz – é uma condição

existencial. Como uma tradição histórica quase naturalizada, oprime – em si e para si –

homens e mulheres proletárias. Ao mesmo tempo, obriga – sob pena deles irem à ruina

– uma resposta contundetente, mesmo que limitada, às miserias da proletariedade. Os

proletários em seu processo de conscientização de classe lutam não apenas contra o

capital, mas também consigo mesmo, afinal eles são partes compositiva deste mundo

social.

Noutra passagem brilhante do texto “18 Brumário de Luis Bonaparte”, Marx

traduz o movimento dramático da classe do proletariado como sujeito histórico coletivo

da revolução proletária que convulsiona a modernidade do capital. Observem a

atualidade candente da reflexão marxiana no sentido de expressar o movimento

histórico contraditório da classe do proletariado. Diz ele:

“As revoluções proletárias, como as do século XIX, se criticam constantemente

a si próprias, interrompem continuamente seu curso, voltam ao que parecia resolvido

para recomeçá-lo outra vez, escarnecem com impiedosa consciência as deficiências,

fraquezas e misérias de seus primeiros esforços, parecem derrubar seu adversário apenas

para que este possa retirar da terra novas forças e erguer-se novamente, agigantado,

diante delas, recuam constantemente ante a magnitude infinita de seus próprios

objetivos até que se cria uma situação que toma impossível qualquer retrocesso e na

qual as próprias condições gritam: ‘Hic Rhodus, hic salta! Aqui está Rodes, salta aqui!’”

.

Uma observação: “Hic Rhodus, hic salta!” (Aqui está Rodes, salta aqui!):

expressão de uma fábula de Esopo sobre um fanfarrão que, invocando testemunhas,

afirmava que uma vez, em Rodes, conseguira dar um salto enorme. Os que o escutavam

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responderam-lhe:"Para que é preciso testemunhas? Aqui está Rodes, agora salta!" No

sentido figurado significa: aqui é que está o essencial, agora é preciso demonstrar.

Enfim, a frase esopiana utilizada por Marx expressa o desafio histórico constante

que o capital coloca para a “classe” do proletariado, submersa nas misérias do

estranhamento social, e que é obrigada – nas condições de proletariedade extrema – a

saltar sobre Rodes, isto é, a demonstrar, sob pena de ir a ruina, que é capaz de colocar –

pelo menos - obstáculos à sanha do capital (como aconteceu nas experiencias

revolucionárias do século XX). Para isso, homens e mulheres proletários – como

verdadeira lei histórica – precisam converter-se em classe em si e para si.

Esta passagem brilhante do “18 Brumário...” é quase visionária em sua acuidade

histórica. Diz Marx com respeito as “revoluções proletárias” – que podemos traduzir

como sendo o movimento da própria classe do proletariado como movimento que nega

o estado de coisas existentes: “...voltam ao que parecia resolvido para recomeçá-lo outra

vez...”. É o que ocorre no século XXI – o movimento da classe do proletaridao son as

condições da reação histórica do capital em sua crise estrutural parece ser obrigado a

recomeçar outra vez.

E prosssegue: “...escarnecem com impiedosa consciência as deficiências,

fraquezas e misérias de seus primeiros esforços...”. Eis a necesidade historica de critica

(e autocritica) das experiencias de revolução pós-capitalistas do século XX que não

conseguiram ir além do capital e que obrigam a classe do proletariado – na medida em

que ela se forma – a ir além das misérias dos primeiros esforços de construção do

socialismo no século XX.

E Marx conclui, quase que antevendo a reação do capital no limiar do nosso

século: “...parecem derrubar seu adversário apenas para que este possa retirar da terra

novas forças e erguer-se novamente, agigantado, diante delas, recuam constantemente

ante a magnitude infinita de seus próprios objetivos ...”. Ora, nos últimos trinta anos, o

capital ergueu-se agigantado diante do proletariado que se invisibiliza como classe

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social. O capital retirou da tera novas forças, fazendo recuar o mundo do trabalho

organizado. É o sentido da reestruturação capitalista e da ofensiva do capital.

Mas, Marx, com dramaticidade critica, reconhece na dialética do movimento

social, a necessidade historica do socialismo (o que não significa o determinismo de sua

efetividade histórica). Diz ele: “...até que se cria uma situação que toma impossível

qualquer retrocesso e na qual as próprias condições gritam: ‘Hic Rhodus, hic salta! Aqui

está Rodes, salta aqui!’”

Enfim, sob a crise estrutural do capital, as margens de recomposição civilizatória

da ordem burguesa se estreitam. Está colocada para a humanidade proletária a

necessidade histórica do avanço social, sob pena dela ir a ruina. A universalizaçào da

condição de proletariedade com a agudização da alienação/estranhamento que lhe é

intrinseca, desafiam – objetivamente - o proletariado a dar uma resposta radical, mesmo

que desigual e limitada – em sua efetividade social – pelas circunstâncias do tempo

passado – cristalizada nos mecanismos do presente fetichizado da ordem burguesa que

ainda oprime o trabalho vivo em processo de desefetivação.

Perguntemos: Qual a “tradição de todas as gerações mortas” que oprime, “como

um pesadelo”, a “classe” do proletariado que se faz classe social no Brasil?

Resposta: primeiro, a tradição histórica da herança colonial (Caio Prado Jr.

diria: o “sentido da colonização”) e a tradição histórica da herança politico-autocrática

no sentido de um Estado burguês despótico e voraz na repressão e/ou incorporação do

movimento social autonomo da classe do proletariado. Em nossa história social, sempre

que o povo organziado se levantada e caminhava com suas proprias pernas, o capital

como sistema de poder da burguesia, reprimia ou incorporava utilizando seus aparatos

de manipulação sistêmica (o Estado político de Vargas e Lula ou o neoliberalismo de

Collor ou FHC).

Enfim, neste primeiro momento é o que tentaremos esclarecer. Este “pesadelo

histórico-genético” da objetividade capitalista no Brasil

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limita/oprime/perverte/inverte/trasverte o processo de conscientização de classe do

proletariado nos últimos séculos.

A tradição histórica da herança colonial está nos preconceitos escravistas-

coloniais que permeiam o próprio metabolismo social impedindo o desenvolvimento de

sujietos autonomos capazes de irem além da servidão intrisneca à lógica escravista.

Estes preconceitos sociais permeiam o próprio metabolismo social da classe,

expressando com clareza na discrminação intra classe entre barncos formalziados e

negros/mulatos informalizados. Por exemplo, no filme, não deixa de ser curioso que

Braulio, operário negro, é o personagem assassinado na narrativa do filme.

A tradição histórica da herança prussiana – no sentido de Estado burguês

despótico - está visivel na autocracia policial-estatal secular que oprime a “rale”

proletária na vida cotidiana e nos espaços da produção social. Por exemplo, o

mandonismo das chefias e a truculencia policial contra pobres expressam, na narrativa

do filme “Eles não usam black-tie”, a misério do autocratismo burguês que permeia

nossa vida social. Ao mesmo tempo, o próprio proletário incorpora/introjeta – nas

atitudes machistas, por exemplo, – a truculencia autocrática do Estado burguês

colonial-prussiano que, no caso do Brasil, criou – quase a sua imagem e semelhança - a

própria “sociedade civil” (o que explica outra miséria – a miséria do corporativismo que

crassa na sociedade brasileira). A repressão politica violenta obstaculiza a organização

da classe – eis um traço histórico da república burguesa no Brasil, onde tivemos poucos

momentos de liberdade politica e democrática (com muita dificuldade, apenas o periodo

de 1945-1964 e hoje – desde 1985). A ditadura militar (1964-1985) nos seus quase vinte

anos de vigência autocrática, teve só uma função histórica: destruir – por meio da

violência policial -militar, lideranças orgânicas do movimento da classe do proletariado

e reforçar, à exaustão, a tradição histórica do fardo colonial-prussiano e todas as suas

miséria sociais. Mesmo hoje, sob a “democracia politica”, a lógica protagônica do

mercado e a corrosão do espaço público levado a cabo pelo neoliberalismo, não deixam

de ser traços indeleveis do que poderia ser um “prussianismo de mercado” que oprime –

como um pesadelo - homens e mulheres proletárias no Brasil.

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A análise crítica do filme “Eles não usam Black-tie” irá desvelar

elementos do processo de conscientização da classe do proletariado e as

particularidades histórico-concretas intrínsecas à ordem burguesa no Brasil.

Iremos apreender, num primeiro momento, traços da condição de

proletariedade no Brasil que sempre aparece vinculada com o terreno nacional-

popular em sua dimensão concreta. Como condição existencial de homens e

mulheres proletárias, a condição de proletariedade, com seu rol de misérias

sociais, possui um vínculo orgânico com a formação social histórico-concreta do

país capitalista.

Primeiro, vejamos a sinopse da narrativa do filme: o jovem Tião, operário

metalúrgico da região metropolitana de São Paulo, ao tomar conhecimento que

sua namorada, Maria, está grávida, decide noivar e casar. Por outro lado,

Otávio, pai de Tião, velho militante sindical metalúrgico, está envolvido na

organização de uma greve operária. O conflito entre pai e filho torna-se

inevitável quando Tião decide “furar” a greve metalúrgica. Ao assumir atitude

de “fura-greve”, ele entra também em conflito com a noiva, que apóia o

movimento sindical metalúrgica.

O filme “Eles não usam black-tie”, de Leon Hirszman, baseia-se na peça

teatral homônima de Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), que estreiou em

São Paulo em 22 de fevereiro de 1958, iniciando a fase nacionalista do Teatro de

Arena. Foi esta peça teatral, escrita em 1956, que lançou o jovem Gianfrancesco

Guarnieri, então com 24 anos de idade. Em 1958, devido a um período

tumultuado pelas discussões políticas internas e escassas possibilidades de

público, o Teatro de Arena pensa em fechar as portas. Pressionado pelo grupo

originário do Teatro Paulista do Estudante (criado por Gianfrancesco Guarnieri

e Oduvaldo Viana Filho em 1954), fundido com o Arena desde 1956, José

Renato Pécora, fundador e idealizador do Teatro de Arena, resolve assumir a

produção de “O Cruzeiro Lá no Alto”, texto de Gianfrancesco Guarnieri.

Antevisto como o último ímpeto da companhia é rebatizado como “Eles Não

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Usam Black-Tie”, provocativa referência ao Teatro Brasileiro de Comédia (TBC)

e seu público, uma vez que a peça trata da greve operária, colocando em cena

moradores de uma favela e seus problemas socioeconômicos. O texto faz um

recorte preciso de um momento altamente dramático: o jovem operário Tião

fura o movimento grevista, pois tendo engravidado a namorada teme perder o

emprego na hora em que mais necessita de recursos. As conseqüências de sua

atitude são dolorosas, enfrentando não apenas seu pai, o líder grevista, como

sua própria namorada grávida, que o impele a frente de luta e o abandona ao

final.

O ano de 1958, ano de lançamento da peça teatral “Eles não usam black-

tie”, é marcado por candentes acontecimentos políticos e sociais. O Brasil de

1958, sob o governo Juscelino Kubitsckek, era um país que vivia a expansão do

capitalismo industrial, com afluência do movimento operário. Alguns fatos

históricos que marcaram o ano de 1958: 21 de janeiro de 1958, greve dos têxteis

no Recife; greve geral no Recife em 13 de março; em 30 de outubro de 1958,

grande manifestação do Pacto de Unidade Intersindical (PUI), em S. Paulo,

contra o aumento do transporte. Há repressão e resistência com 5 mortos; 2 de

dezembro de 1958, ocorreu a greve geral em São Paulo contra a carestia, e em 23

de dezembro de 1958, greve nos transportes coletivos de São Paulo. Em 21 de

novembro de 1958 é inaugurada a fábrica da Ford, S. Bernardo (SP) - JK

comparece. Em São Paulo, é eleito Carvalho Pinto como governador. No cenário

internacional, a guerrilha cubana toma a cidade de Santa Clara; em 1958, o

Brasil vence a sua primeira Copa do Mundo de Futebol e pela primeira vez

aconteceu no Maracanãzinho o concurso Miss Brasil; nos EUA, ocorre a

fundação da NASA para coordenar o programa espacial norte-americano. Morre

o papa Pio XII e João XXIII é escolhido o novo papa; Nikita Kruchov é escolhido

primeiro ministro da URSS.

O ano de 1981, ano de lançamento do filme “Eles não usam black-tie”, de

Leon Hirzsman, o Brasil, sob o governo militar do General João Batista

Figueiredo, assiste os seguintes fatos históricos: em 2 de janeiro de 1981,

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assassinado por grileiros no Estado do Pará, José Manuel de Sousa, o Zé Piauí;

em 5 de janeiro, a Volkswagem demite 3.750 operários em 1 só dia ; em 7 de

janeiro, grileiros assassinam no Estado do Pará, o líder rural Sebastião Mearim;

em 6 de fevereiro, quebra-quebra nos trens suburbanos da Zona leste de S.

Paulo; em 20 de fevereiro, Congresso de professores em Campinas (SP), cria a

Andes (Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior); em 25 de

fevereiro, a Justiça Militar condena Lula e mais dez sindicalistas do ABC, com

base na Lei de Segurança Nacional, pela greve de 1980 (as penas mais tarde

serão revogadas); em 9 de abril, quebra-quebra de trens em S. Paulo; em 28 de

abril, greve de 60 mil médicos em Dia Nacional de Protesto; em 30 de abril,

durante show realizado no Riocentro, no Rio de Janeiro, por entidades de

oposição em comemoração ao Dia do Trabalho, duas bombas explodem; em 4

de maio, greve na FIAT do Rio barra demissões; em 2 de junho, o cel. Moacyr

Coelho, diretor da PF, divulga lista de comunistas e simpatizantes, que inclui

Fernando Henrique Cardoso e Chico Buarque; em 13 de junho, assassinado

Joaquim Neves Norte, advogado dos Trabalhadores Rurais de Naviraí (PR); em

6 de julho, greve de 9 mil, contra 400 demissões, conquista comissão de fábrica

na Ford do ABC (SP); em 7 de agosto, acaba, após 15 meses, a intervenção no

Sindicato dos Metalúrgicos de S. Bernardo (SP). Jair Menegueli é eleito

presidente ; em 20 de agosto, quebra-quebra de 750 ônibus em Salvador, após

ato contra alta da tarifa; em 21 de agosto, em Praia Grande (SSP, 5 mil

delegados de 1.126 entidades realizam a CONCLAT (Conferencia Nacional das

Classes Trabalhadoras), que elege Comissão Pró-CUT ; greve na Embraer, de S.

José dos Campos (SP), contra 400 demissões. No cenário internacional de 1981,

temos o seguinte: 20 de Janeiro, Ronald Reagan torna-se o 40º presidente dos

Estados Unidos da América, substituindo Jimmy Carter; em 9 de fevereiro,

golpe na Polônia. O general Jaruzelsky sobe ao poder, em meio a onda de

greves; em 10 de maio, François Mitterrand elege-se presidente da França que

vive seu 1º governo de esquerda desde o da Frente Popular, em 1936 ; em 5 de

junho, descoberto o 1º caso de AIDS (Califórnia, EUA); em 11 de dezembro,

golpe militar na Argentina, assumindo o governo o general Leopoldo Galtieri.

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A peça teatral de Gian Francesco Guarnieri traduziu em sua narrativa,

um traço histórico-estrutural da sociabilidade urbano-industrial em expansão

no Brasil: a luta de classes, cujo metabolismo social perpassa gerações de

operários e empregados. Na verdade, o autor conseguiu traduzir de forma

histórico-concreta uma lei histórica geral expressas por Karl Marx e Friedrich

Engels no Manifesto Comunista de 1848: “A história de todas as sociedades até

hoje existentes é a história das lutas de classes”.

Ao ser reescrita como roteiro de filme para o Brasil de 1981, o texto de

Guarnieri preservou, como valor histórico-ontológico da formação social do

capitalismo no Brasil, o traço essencial da processualidade histórica da

sociedade brasileira: a luta de classe em suas múltiplas manifestações sócio-

metabólicas.

A partir do conflito antagônico-estrutural entre capital e trabalho, o

autor explicitou por meio da narrativa dramática da vida cotidiana de operários

industrias na região metropolitana de São Paulo, a maior região industrial do

País, os conflitos internos ao metabolismo social da própria classe do

proletariado no Brasil, perpassados, por um lado, pela diferença contingente da

“consciência de classe” entre os própios operários – diferenças que assumem, no

filme, a dimensão do “conflito de geração” (por exemplo, o conflito candente

entre Tião, o pai e Otávio, o filho); e, por outro lado, pelas diferenças de

percepção e entendimento sindical e político da práxis do proletariado (por

exemplo, o embate politico entre Tião e Bráulio, por um lado, e Santini, pelo

outro).

Enfim, em torno do conflito principal entre capital e trabalho, com a luta

de classes em seu âmago estrutural organizando a narrativa do filme, temos um

conjunto complexo de conflitos derivados no interior do metabolismo social da

própria classe do proletariado (por exemplo, os conflitos entre operários e

chefias, pai e filho, homem e mulher, policia e povo, empregados e

desempregados marginais, etc). O filme “Eles não usam Black-tie” é uma

narrativa permeada de tensão candente – intensa e extensa - entre classes –

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

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afinal trata-se, em última instância, da luta de classe entre burguesia e

proletariado - e tensão candente intra-classe do proletariado (o sujeito

histórico-coletivo da transformação social). Na verdade, o conflito social em

suas múltiplas dimensões cotidianas é um traço indelével da processualidade

histórica brasileira marcada historicamente pelo autocratismo estatal-burguês,

pela superexploração do trabalho e pela desigualdade e misérias sociais

crônicas. Uma obra de arte realista como a peça teatral/filme escrito por Gian

Francesco Guarnieri, não poderia deixar de explicitar, em sua rica complexidade

típica, esses traços essenciais da formação social do capitalismo histórico no

Brasil.

Antes de expormos a análise critica do filme propriamente dita, seria

interessante desenvolver mais uma digressão teórico-analitica sobre o

significado de classe e a consciência de classe. Na verdade, como salientamos

acima, o filme “Eles não usam Black-tie” é um narrativa de formação da classe

do proletariado em sua dimensão contingente (classe em-si). O nexo mediativo

essencial da formação da classe é a conscientização de classe – ou o processo

(movimento) da consciência social do proletariado da dimensão pré-

contingente, contingente e necessária.

O mundo do trabalho é constituído, em si e para si, pela “classe social” do

proletariado no sentido sociológico propriamente dito. Utilizamos a expressão

“classe do proletariado” no sentido de homens e mulheres subsumidos à

condição de proletariedade, isto é, alienados do controle dos meios de

produção da vida social. Devido a sua posição estrutural na divisão social do

trabalho, a “classe social” do proletariado tende a ser os verdadeiros agentes

histórico-coletivos da transformação histórico-social da modernidade do capital.

Mas classe social pressupõe consciência de classe. Na verdade, só se pode

tratar de classe social, no sentido de agente da transformação social, se houver,

de fato, consciência de classe, em seus diversos graus de desenvolvimento (da

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

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consciência de classe pré-contingente à consciência de classe necessária –

para-si da classe- passando pela consciência contingente – o em-si da classe).

O que significa que há na sociedade, processos sócio-institucionais múltiplos de

formação de classe, desde processos pré-contingentes, contingentes e processos

necessários que implicam (ou levam a) intervenção social e política da classe.

É importante distinguir, no sentido analítico, (1) “classe” (com aspas), no

sentido de contingentes de homens e mulheres imersos na “condição de

proletariedade” (condição de existência marcada, em maior ou menor grau, pela

contingência, acaso, alienação e deriva pessoal); (2) de classe (sem aspas), no

sentido de trabalhadores organizados, conscientes – no sentido de consciência

de classe, capazes de intervenção coletiva, no plano econômico-corporativo ou

no plano ético-politico (respectivamente, classe em–si ou classe para-si). A

dinâmica da transformação social no capitalismo moderno exige a presença da

classe e portanto, da consciência de classe, com a formação da classe a partir da

“classe”.

“classe”

pré-contingencia

Classe “em-si”

Contingencia

Classe “para-si”/para-além-

de-si

necessidade

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

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A constituição da classe através da formação da consciência de classe

ocorre a partir de múltiplos processos sócio-institucionais (sujeitos/agentes

politico-culturais e instituições de formação) mediado irremediavelmente pela

luta de classe em sua dimensão histórico-estrutural (o conflito antagônio-

estrutural capital versus trabalho). A luta de classes produz conflitos derivados

no interior da própria classe por conta da diferença pré-

contingente/contingente de consciência de classe entre proletários.

É no movimento da consciência de classe pré-

contingente/contingente/necessária (nos níveis do senso comum, percepção e

entendimento) que ocorrem os conflitos derivados internos à “classe” do

proletariado. Um detalhe: a consciência de classe pré-contingente não é, a rigor,

consciência de classe – no sentido usual utilizada no marxismo. É uma forma

incipiente de consciência social cotidiana que constitui a pseudo-concreticidade

da vida cotidiana da “classe” do proletariado. Portanto, o verdadeiro

movimento da classe in fieri é o movimento do “em-si” da contingencia para o

“para-si” necessário. É claro que não se deve desprezar a dimensão da pré-

contingencia da “classe”, mas, neste caso, não temos propriamnete a classe (e,

portanto, consciência de classe).

Num primeiro momento, a dialética contingencia-necessidade

caracteriza o movimento desigual e combinado da “classe” que reage – isto é,

uma “classe” que consegue ir além da sua coisidade (o puro Eu que marca a

certeza sensível de Hegel na “Fenomenologia do Espírito”). Nesse caso, o

movimento da consciência pré-contingencia/contingencia/necessidade da

classe tende a assumir múltiplas formas, seja como senso comum ou mera

certeza de si impregnada de particularismos e singularidades pessoais

(consciência social pré-politica propriamente dita ou contingencia pura da

individualidade isolada); seja como percepção e entendimento, opiniões e

interesses organizados em “corpus” de ideologia econômico-corporativo (o nivel

sindical propriamente dito); ou ainda “corpus” de ideologia politica da classe

que se coloca contra outra classe com projeto politico de transformação social

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

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de acordo com seus interesses históricos (tanto o “em-si”, quanto o “para-si” da

classe tratam da formação de individualidades coletivas e não apenas

individualidade isoladas (nesse caso, estamos no nivel do em-si/para-si da

classe).

pré-contingencia da “classe” (individualidade isolada)

contingência – “em-si” da classe

(nivel econômico-corporativo)

(individualidade coletiva)

necessidade – “para-si” da classe

(nivel ético-politico)

Por exemplo, vejamos Tião, em “Eles não usam Black-tie”, enquanto

individualidade pessoal de classe/individualidade isolada, está no limiar do

senso comum, sendo movido pelo seu particularismo singular (para isso se

impregna da ideologia dominante do individualismo). Tião está impregnado da

pré-contingencia imbuída de particularismo pessoal.

Por outro lado, a contingencia de Bráulio, Otávio e Santini é outra: é a

contingencia impregnada da necessidade coletiva da luta de classe. Eles

conseguem ir além do nivel da pré-contingencia da resposta particularista de

Tião à sua condição de proletariedade. Nesse caso, em Bráulio, Otávio e Santini,

a consciência de classe – que se constitui a partir do momento em que aparece a

individualidade coletiva - opera no nível sindical propriamente dito, onde atuam

modos de percepção e entendimento da estratégia/tática de luta de classes

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(nesse momento, põe-se o embate de teleologias politicas sobre a direção da luta

de classes em sua dimensão contingente – por exemplo, uma das discussões

candentes entre Bráulio e Otávio, de um lado, e Santini, de outro, é, por

exemplo, se deve ou não fazer a greve naquele momento (enfim, sob o

movimento da práxis coletiva que constitui o “em-si” da classe coloca-se

sempre, irremediavelmente, para os sujeitos sociais, a necessidade de escolhas

politicas entre alternativas concretas postas.

Como na vida cotidiana, as individualidade coletivas são convocadas a

escolher quais os caminhos de sua própria formação como classe social. Eis o

sentido da política – primeiro, organizar-se como movimento coletivo e

segundo, fazer escolhas entre alternativas de ação coletiva para dar resposta à

condição de proletariedade. Deste modo, o homem proletário é um ser que dá

resposta (e elabora perguntas) à condição de proletariedade, como salientamos

no começo deste texto. Nesse caso, a resposta no sentido da ação coletiva é a

própria natureza da resistência de classe (seja “em-si” ou “para-si”).

Formas de resistência social

Resistência de classe

Resistência pessoal

Um detalhe: pode-se admitir um outro sentido categorial de resistência:

a resistência pessoal que ocorre no nível da individualidade isolada imersa na

pré-contingencia de classe. Ela não opera, é claro, escolhas políticas

propriamente dita, no sentido que não se configura como ação coletiva, muito

embora, no plano objetivo, possa ter repercussões políticas na medida em que se

vincula, em si, a uma condição social de “classe”.

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

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Por exemplo: um operário ou empregado, decide por conta própria,

indignado com as condições degradantes do trabalho, agredir fisicamente a

chefia imediata. Ou ainda: sob pressão de intenso assédio moral, um operário

ou empregado adoece. Podemos considerar o adoecimento provocado pelo

trabalho como uma forma de resistência pessoal à exploração do capital. É um

tipo de resistência que opera no plano da pré-contingencia da “classe”. Assim, a

resistência pessoal é a resposta categórica das individualidades isoladas dada

no plano da individualidade pessoal de classe às misérias da proletariedade. Ela

opera na dimensão da singularidade do homem singular, isto é, ela é marcada

por reações idiossincráticas categóricas, inclusive mobilizando as dimensões

pré-conscientes e inconscientes da alma humana.

O que significa que, por exemplo, num local de trabalho, apenas um ou

outro operário ou empregado pode adoecer, mas não todos – enfim, por que uns

adoecem e outros, não?. O adoecimento de um número significativo de

operários e empregados submetidos às mesmas condições de trabalho pode

explicitar o nexo causal do adoecimento provocado pelo trabalho. Mas, é claro,

que não houve, nesse caso, uma concertação sobre o adoecer coletivo (operários

e empregados não se reuniram num assembléia para decidir coletivamente –

vamos adoecer!). Obviamente não se trata de uma ação coletiva ou resistência

de classe, mas sim uma multiplicidade de resistências pessoais involuntárias às

condições degradantes de exploração do trabalho.

Mas é importante salientar que a resistência pessoal, embora esteja num

patamar de pré-contingencia da “classe”, estando imbuída de particularismos,

inclusive particularismos idiossincráticos oriundos da singularidade do homem

singular, não pode ser desqualificada meramente por ser um ato pré-politico

propriamente dito. Aliás, embora não seja uma resistência de classe ou ação

política propriamente dita – tendo em vista que não se origina de uma teleologia

politico-coletiva organizada – a resistência pessoal é sim, resistência social no

sentido da individualidade pessoal de classe enquanto individualidade isolada;

ela possui agudo conteúdo politico pressuposto objetivamente. O que significa

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que – dependendo das circunstâncias da luta de classes – o movimento social do

proletariado pode “politizar” – no sentido pleno de “in-corporar” - as

resistências pessoais esparsas dando-lhe o devido significado categórico como

resistências humano-sociais às misérias da proletariedade.

No filme “Eles não usam black-tie” são perceptíveis uma série de

elementos compositivos da condição de proletariedade, marcada pela

espoliação, exploração e opressão social, traços estruturais que se traduzem, no

plano das individualidades de classe, em sentimentos de indignação individual

(e coletiva) e ambições individuais contingentes. A exploração da força de

trabalho, ocorre nas fábricas metalúrgicas; a espoliação do homem que

trabalha ocorre, por exemplo, com o trabalho não-pago e tempo de vida

ocupado por preocupações do trabalho estranhado; e a opressão social, perpassa

a vida cotidiana de operários e operárias. Por exemplo, a truculencia policial na

abordagem de proletários empregados e desempregados é um exemplo de

opressão social. Além da violência cotidiana, perseguida pelos aparatos

policiais, são vítimas de preconceito explicito ou oculto, contra negros e

nordestinos.

O metabolismo social da condição de proletariedade

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O mundo do trabalho é constituído pela “classe” do proletariado no

sentido sociológico propriamente dito. Utilizamos o termo “classe” do

proletariado (com aspas em classe) no sentido de homens e mulheres

submersos na condição de proletariedade, alienados do controle dos meios de

produção da vida social. Só na medida em que se tornam agentes histórico-

coletivos da transformação histórico-social da modernidade do capital é que

aparecem como classe social do proletariado (sem aspas em classe).

Portanto, classe pressupõe consciência de classe – e nesse caso, temos o

“em-si” e o “para-si” da classe. Na verdade, só se pode tratar de classe social, no

sentido de agente da transformação social, se houver, de fato, consciência de

classe, em seus diversos graus de desenvolvimento (da consciência de classe

contingente à consciência de classe necessária). O que significa que há na

sociedade, processos sócio-institucionais e sócio-históricos múltiplos de

formação de classe, desde processos contingentes de luta e enfrentamento com

o mundo do capital até processos necessários que implicam a intervenção social

e política consciente da classe para si.

É importante distinguir, no sentido analítico, (1) “classe” (com aspas), no

sentido de contingentes de homens e mulheres imersos na “condição de

proletariedade” (condição de existência marcada, em maior ou menor grau, por

uma série de atributos existenciais); (2) de classe (sem aspas), no sentido de

trabalhadores organizados, conscientes – no sentido de consciência de classe -

capazes de intervenção coletiva, no plano econômico-corporativo ou dimensão

ético-politico (classe em –si ou clase para-si). A dinâmica da transformação

social no capitalismo moderno exige a consciência de classe e portanto a

formação da classe a partir da “classe”.

Nos primórdios do capitalismo moderno, os atributos existenciais da

proletariedade se reduziam ao núcleo proletário propriamnete dito. Nesse caso,

a condição de proletariedade se confundia com a condição proletária.

Mas, com o desenvolvimento histórico do capitalismo e a expansão da relação-

capital sob o capitalismo monopolista, os atributos da proletariedade atingem,

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em maior ou menor medida, contingentes de homens e mulheres que trabalham

não implicados diretamente com a exploração do capital, como, por exemplo,

empregados de “colarinho branco”, gestores, profissionais, pequenos e médios

proprietários, etc.

Enfim, a condição de proletariedade se universaliza sob o mundo do

capital, ampliando a “classe” do proletariado. Entretanto, a formação da classe

se dá de forma diferenciada entre os vários contingentes laborais, onde alguns,

mesmo imersos na condição de proletariedade, são incapazes de desenvolverem

– em virtude dos fetichismos sociais - a consciência de classe.

Atributos existenciais da proletariedade

Subalternidade

Acaso e contingencia

Insegurança e descontrole

existencial

Incomunicabilidade

Deriva pessoal e sofrimento

Risco e periculosidade

Invisibilidade social

Corrosão do caráter

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Prosaísmo e desencantamento

Experimentação e manipulação

Carecimento de sentido de vida

O filme “Eles não usam black-tie” é um filme que retrata o mundo da

proletariedade a partir da condição proletária de operários e operárias da cidade

de São Paulo (Brasil). É um mundo social permeado de conflitos – conflitos

entre classes (capital versus trabalho) e conflitos intraclasses (por exemplo,

operário empregado versus operário empregado, e ainda operário empregado

versus operário lumpenizado). No centro dos conflitos está Otávio, lider sindical

em conflito com o capital e com outras lideranças operárias divergente de sua

orientação politica (Santini); ou ainda, pai de família em conflito com o filho

operário (Tião). São as dimensões da luta de classes que contém em si, conflitos

intrageracional no interior do movimento da classe do proletariado.

Condição proletária

Núcleo proletário propriamente dito

diretamente explorado pelo capital

Condição de proletariedade

Homens e mulheres que trabalham

implicados nos atributos existenciais da

proletariedade

No filme “Eles não usam black-tie” são perceptíveis alguns elementos

compositivos da condição de proletariedade. Em primeiro lugar, temos (1) a

violência policial. Por exemplo, logo na abertura do filme, ao retornarem para

casa, Tião e Maria presenciam à noite, uma batida policial no barzinho do bairro

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

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operário. É flagrante atitudes autoritárias, preconceituosas e arrogantes dos

policiais com os trabalhadores pobres. Diz um policial: “Não pode andar sem

documento não. Viu, ó panaca!”. Indignada, Maria observa: “Corre não que é

pior. Esse pessoal não pensa não, atira.”

A presença da polícia nos bairros operários é marcada pela truculência

policial na abordagem de proletários empregados e desempregados. Além da

violência cotidiana, perseguida pelos aparatos policiais, operários empregados

ou desempregados são vítimas de preconceito explícito ou oculto, contra negros

e nordestinos. O (2) preconceito – outro elemento compositivo da condição de

proletariedade - é um traço da opressão social cotidiana que atinge as “classes

pobres”. Como elemento constitutivo da sociabilidade de um país capitalista de

extração colonial-prussiana, sob a ditadura militar, o preconceito fortaleceu-se,

devido a transgressão institucionalziada de direitos da cidadania.

É visível na mise-en-scene do filme “Eles não usam black-tie”, a (3)

situação de pobreza do cotidiano operário, seja na degradação do local de

moradia (bairros sem infra-estrutura urbana), seja no ambiente do lar, simples

e sem requintes de luxo.

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Por exemplo, o lar de Otávio e Romana é o típico lar operário, lar simples,

humilde e modesto, expressando um padrão de vida e consumo nos limites da

comodidade moderna. Embora Otávio seja operário especializado (torneiro-

mecânico), com os filhos Tião e Chiquinho complementando a renda familiar, o

lar não possui requintes de luxo. O lar de Maria, namorada de Tião, que vive

com a mãe doente e o pai operário da construção civil desempregado, é mais

modesto ainda, expressando de forma singela, a pobreza operária no Brasil de

1981.

A frugalidade do lar operário e a precariedade do local de moradia

explicitam de forma candente, a condição de proletariedade de homens e

mulheres alienados do controle da vida social, explorados e oprimidos pelo

modo de produção capitalista (numa cena do filme, por exemplo, Otávio

reclama do descaso do poder público com o bairro operário, explicitando uma

insatisfação candente com a classe política). Na verdade, o núcleo proletário

vive com intensidade os atributos existenciais da condição de proletariedade.

Outro elemento compositivo da condição de proletariedade que aparece

no filme é o (3) desejo de consumo. Ao saírem do cinema, Tião e Maria passeiam

a noite pelo centro comercial em direção ao ponto de ônibus O olhar de Maria

expressa seu desejo de consumo das mercadorias exibidas nas vitrines.

Operários e operários fascinados pelos apelos das mercadorias, alimentam

sonhos legítimos de melhores salários para terem acesso às comodidades da

sociedade de consumo. Por exemplo, o pai de Maria pede emprestado ao

mestre-de-obras um adiantamento de 200 cruzeiros. Numa das primeiras cenas

do filme, uma mercadoria em promoção está em oferta por 30 cruzeiros, pouco

menos de ¼ do valor adiantado do salário do operário da construção civil.

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A (4) “ambição de ascensão social” é um traço contingente compositivo

da condição existencial de proletariedade. Este é um dos sentimentos

contingentes intrínseco às individualidades pessoais de classe imersas na

condição de proletariedade. O candente anseio de ascensão social de Tião tem

que ser apreendido, por um lado, no contexto da percepção (de Tião) do

fracasso do pai em dar um melhor padrão de vida para a família; e, por outro

lado, mediado pelo sentimentos de medo do pai perder o emprego e ele tornar-

se provedor de duas famílias.

O tempo de trabalho estranhado impõe um tempo de lazer como

entretenimento para os homens que trabalham. Portanto, o (5) lazer operário

como entretenimento é outro traço compositivo da condição de proletariedade.

Além disso, é um espaço de sociabilidade necessária na instância da reprodução

social (por exemplo nas cenas do filme “Eles não usam Black-tie”, o jovem casal

operário Tião e Maria freqüenta o cinema, que em 1981, ainda não estava

localizada nos shopping center; Maria flerta com as mercadorias, sonhos de

consumo nas vitrines da loja; no final de semana, Tião freqüenta a mesa do bar

e a sinuca e depois, passeia com a namorada num parque/balneário público.

Noutra cena do filme, alguns operários jogam futebol de areia, enquanto outros

companheiros discutem a greve).

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

33 

 

Finalmente, outro traço compositvo da condição de proletariedade que se

explicita no filme é (6) risco e periculosidade. Traumatizada pelos “anos de

chumbo” da ditadura militar, Romana vive temendo que algo possa acontecer

com o filho (ou com o marido) e ela demore a saber. Por isso, ela sempre insiste,

no decorrer do filme, que Tião ou Otávio leve o endereço de casa consigo . É o

espírito da mãe que se angustia com outro atributo da proletariedade moderna:

risco e periculosidade. No mundo do capital, como diz a canção, “são demais os

perigos desta vida”.

Na abertura do filme “Eles não usam Black-tie”, configura-se na cena da

sala de estar da casa de Otávio, os elementos de conflito que irão envolver

irremediavelmente pai e filho. De um lado, o jovem operário Tião depara-se com

a perspectiva de constituição da nova família; de outro, o pai Otávio, trabalha a

perspectiva da greve operária que irá confrontá-lo com o filho. Na verdade,

temos um conflito intergeracional no interior do movimento da classe. De um

lado, o fato social da Família; do outro, o fato social da Greve. De um lado, o

fetiche da Reprodução Social, cuja responsabilidade paralisa de medo e

apreensão o jovem Tião; de outro lado, a desfetichização da Produção Social que

impulsiona a indignação candente do operário Otávio.

O jovem Tião está marcado pela experiência pessoal de Otávio, seu pai,

velho militante sindical, que, apesar de ter dedicado parte de sua vida à luta

sindical e política, não conseguiu dar um melhor padrão de vida para mulher e

filhos. Ele teme que, seguindo a opção moral do pai, que subsumiu-se no

coletivo político, se arrisque a ver, como ele diz, “minha mulher sofrer como

minha mãe sofre”. Para Tião, o pai fracassou em dar um melhor padrão de vida

para a família. Diz ele: “Desde que eu me conheço por gente que ouço esse

papinho, mas é a mesma merda.” Na verdade, ele acredita que sua opção pela

saída individualista possa significar melhores possibilidades de realização

familiar.

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

34 

 

Ora, medos e desejos compõem inconscientemente a singularidade do

homem singular Tião. Ele se projeta no pai. O pai é a figura do fracasso. Assim,

ao projetar-se no pai, visa, ao mesmo tempo, distinguir-se dele

irremediavelmente por oposição. Tião não consegue particularizar sua projeção

fantasmática. Faz uma projeção abstrata que perde a diferença essencial do

espaço-tempo histórico. Otávio tem a percepção da diferença essencial. Diz ele

para o filho: “Quando casei com a tua mãe, eu estava numa situação muito pior

que a tua.”

O jovem Tião, apesar de estar imerso na condição de proletariedade como

seu pai, pertence como individualidade pessoal de classe, a outra geração

operária. Os valores morais de Tião são outros. Como homem singular, Tião

possui uma personalidade forte, cuja auto-confiança, orgulho e teimosia o levam

a apostar com vigor em suas utopias pessoais com conteúdo individualista. Tião

exclama: “Sabe, mãe? Ainda ganho essa parada”.

A ideologia de Tião é apostar na profissão e arrumar sua vida para

constituir sua familia. É um telos particularista que exclui, sob as condições da

luta de classes, a participação dele no movimento coletivo da classe. Naquelas

condições históricas de luta de classe, o jovem Tião imbuído do seu telos

egoistico, escolhe o caminho contrário de seu pai, Otávio. Não aposta na classe

em luta, mas sim na profissão (que é ideologia) e no esforço pessoal (“[Eu]

ainda ganho essa parada”).

Nesta cena final do filme, Romana, a mãe, apenas ouve o filho, evitando

intervir na decisão pessoal do filho. Ela respeita a autonomia pessoal do filho,

apostando talvez, que a sua decisão possa contribuir para sua auto-educação. É

a vida (e a história) que talvez ensine Tião o valor do movimento coletivo para a

realização dos anseios pessoais das individualidades de classe.

Numa das cenas do filme, Tião e Maria passeiam no domingo num

parque público. É o tempo do lazer operário. A imagem quase metafórica de

Tião no teleférico projetando-se para o alto, explícita seus anseios de ascensão

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

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social. Naquele momento, Tião carrega em si, a preocupação com a nova

condição de pai de família. “Acabou a poesia”, diz ele. E logo a seguir, diz que as

coisas não caem do céu. Ele confessa que está preocupado pois agora tem que

cuidar de um lugar para morar e dinheiro para comprar as coisas. Tião é um

homem preocupado com as coisas. Mas logo a seguir, exclama: “Eu me

arrumo”. Eis um traço de sua personalidade: é um homem orgulhoso de sua

capacidade de “vencer na vida” (por isso diz que o filho que vai nascer, vai ser

homem, parecido com ele, “para poder vencer na vida”).

As forças ideológicas da instituição família exercem pressão

conservadora sobre o jovem operário que planeja casar e constituir o novo

grupo social. Tião é convulsionado pela expectativa de ser o provedor daquele

núcleo orgânico da ordem burguesa. Enquanto Otávio. essa singularidade

pessoal moldada pelas experiencias de luta política e luta de classes em sua

juventude (Otávio cresceu na década de 1950 e 1960), tem paixão pelo macro-

coletivo (o coletivo político), o jovem Tião, que cresceu no período histórico da

ditadura militar, tem paixão pelo micro-coletivo egoístico, o coletivo

egocentrado na sua família em vias de constituição. Tião se convulsiona

intimamente a partir do momento em que percebe que será pai e irá constituir

um novo grupo social. O medo (de “fracassar” como o pai) e paixão (pela mulher

e sua prole) confundem-se com interesses meramente particularistas que

amesquinham a sua ambição pessoal.

O jovem Tião possui uma ideologia pessoal impregnada de valores-

fetiches de sua geração castrada da perspectiva coletiva: a ideologia da

ascensão social por conta própria. Eis a força (ou fardo) ideológica de seu

tempo histórico. Esta ideia-força de cariz individualista (“vencer na vida”)

implica alienar-se do movimento da classe (e por conseguinte, de seus entes

queridos e de si próprio). Na verdade, “Vencer na vida” é o discurso da

individualidade pessoal de classe imersa numa ótica meramente individualista.

A ascensão social é da personalidade singular e não da classe que ele representa.

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Não se faz movimento coletivo para vencer na vida. Tião – como o pai Otávio –

assume, com paixão e decisão, a sua própria briga.

Mas ao invés de Otávio, o “coletivo” de Tião é um coletivo amesquinhado

em seu particularismo. Noutro momento, Tião chegou a afirmar que, como o

pai, “é de briga”. Mas a briga de Tião é, no fundo, por si mesmo. Tião é o

antípoda do pai – fura a greve. Ele é movido por duas teleologias íntimas –

primeiro, coloca como obsessão o “vencer na vida” no sentido pessoal; segundo,

visa “vencer na vida” porque avalia – a partir de seus referentes mentais - que o

pai, militante do coletivo político, fracassou. Mesmo sendo o antípoda do pai,

age conforme ele, pois ele só quer realizar aquilo que o pai foi incapaz de dar por

conta de circunstâncias intrinsecamente históricas.

A conversa entre Tião e Otávio no bar do Alípio explicita alguns

elementos interessantes sobre os dois homens em conflito (pai e filho). São duas

gerações operárias (não deixa de ser sintomático que o pai pede para beber,

cachaça; e o filho, cerveja). O pai tenta explicar a mudança do perfil ideológico

do filho pela sua história de vida. A ironia da história é que a sua própria

história de militância sindical e politica continha dentro de si a sua própria

negação. Para Otávio, Tião se afastou das suas idéias porque foi viver com os

padrinhos, tendo em vista que ele, Otávio, perseguido e desempregado, não

poderia cuidar do filho adolescente. “Quem muda de casa, muda de idéias”,

disse ele. Assim, Tião cresceu noutro ambiente ideológico, distanciando-se do

pai. Otávio diz ter impressão que o filho Tião está um pouco perdido. O pai tenta

retomar o diálogo com o filho, oferecendo-se a ajuda-lo. Diz: “Às vezes, a gente

tem um problema e só vê o problema; não vê mais nada adiante”. Mas Tião,

orgulhoso e teimoso, recusa a ajuda do pai: “Sei onde me aperta o sapato e

porquê.”

Eis o mote do individualismo heróico: “Quem pode me ajudar sou eu”.

Tião recusa a ajuda do pai. Ele busca auto-afirmar-se através de sua própria

ação individualista heróica expressa na frase “vencer na vida”. Como observou

Braulio, Tião é o “bunda-mole que não enxerga ninguém a não ser ele mesmo”.

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

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É um jovem autocentrado eu sua ambição pessoal de ascensão social. Na

medida em que anseia ir além da proletariedade, afirma sua condição proletária.

Tião e Otávio – eis o contraste de atitudes: uma, coletiva solidária; outra

individualista egocentrada. Otávio e Tião são personalidades antípodas

contrastantes que expressam pólos antitéticos do movimento da consciência de

classe. Um, o pólo no limiar da consciência ingênua, imersa na certeza de si; o

outro, o pólo no limiar da consciência de classe para si, quase na perspectiva do

entendimento do mundo como produto da luta de classes.

Convulsionado intimamente pelo casamento e família, Tião está

dilacerado por papéis sociais impostos pela ordem burguesa – ser o provedor da

família operária (embora Maria possa trabalhar). É ele que se angustia para

sustentar a família e projeta sonhos de ascensão social tendo em vista que o

horizonte operário não lhe é suficiente. Busca uma saída individual para se

posicionar melhor no interior da condição existencial de proletariedade. O pólo

trabalho e família, sob determinadas condições, possui uma tensão ideológica

interna no sentido da conformação, tendo em vista que implica a adoção de

estratégias individuais por parte de personalidades singulares (o que significa

que nem os pais de família operária todos são assim). Na verdade, Tião é um

personagem singular em sua tipicidade – ele é o alter ego antitético do pai

Otávio. Inclusive, talvez o conflito aberto com o pai seja parte de sua evolução

humano-pessoal singular).

No filme “Eles não usam black-tie”, o proletariado aparece sob várias

formas de ser: operários e operárias metalúrgicos empregados e

desempregados; operários da construção civil; jovens proletários marginas que

estão na senda do crime; o jovem office-boy, empregado de escritório. Além

disso, outra fração de classe que aparece é o pequeno comerciante, trabalhador

por conta própria, dono do barzinho no bairro operário. Enfim, são múltiplas as

formas de ser da “classe” do proletariado na indústria e nas atividades de

serviços.

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

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No filme, a presença do operário desempregado que se lumpeniza,

tornando-se marginal na ordem do capital é flagrante. Ora, o lumpen-proletário

aparece como síntese negativa do proletariado. É o espectro negativo do

proletariado “incluído” que persegue homens e mulheres que trabalham,

convulsionando a ordem pública do capital. Primeiro, o lumpen é produto em si,

da ordem burguesa – uma ordem do capital que tende a lumpenizar uma

parcela de homens e mulheres proletários. A lumpenização é um processo social

intrínseco à ordem do capital. Ao escolher a senda do crime, o proletário se

lumpeniza. Enquanto, lumpen-proletário, é um estrato marginal ao núcleo

produtivo do capital.

Entretanto, embora seja parte orgânica da ordem burguesa, o lumpen-

proletário como operário desempregado que “escolhe” a senda do crime, não

tem condições, em si e para si, de negá-la efetivamente (eis a tragédia do

lumpen-proletariado. Ora, na medida em que o lumpen não vive a experiencia

civilizatória da exploração do trabalho, no sentido amplo da palavra, ele tende a

não possuir o horizonte da ação coletiva contra o capital). A estratégia de

sobrevivência dos proletários lumpenziados, principalmente daqueles que

“escolhem” a senda do crime, tende a ser meramente egoístico-individualista.

Por exemplo, no filme, ao ser perseguido pelos policiais, o jovem

proletário marginalizado esconde no bar do Alípio, isto é, recolhe-se no espaço

dos proletários organizados incluídos na ordem do capital. No filme “Eles não

usam Black-tie”, o lumpen-proletário marginalizado é um espectro social que

persegue os proletários incluídos no mercado de trabalho (noutro momento do

filme, o pai de Maria é assaltado e morto por um lúmpen-proletário

marginalizado). É interessante a curiosa similitude entre os assaltantes lumpen

e o jovem operário Tião – ambos buscam saídas individuais para sua miséria

humana, sendo eles formas de negação da ação coletiva sob a ordem burguesa

hipertardia.

No filme, a “classe” do proletariado ou homens e mulheres proletários

circulam e habitam espaços delimitados pela sua condição de proletariedade.

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

39 

 

Temos a fábrica e o lar operário – é de seu lar que Otávio vislumbra a cidade. O

espaço da cidade sempre está no horizonte da classe operária como algo ao

longe. Morando na periferia urbana, o proletariado é alienado da cidade como

espaço público e da fábrica, local da exploração. Talvez seu único espaço seja o

lar, território de sua autonomia humano-pessoal.

O filme “Eles não usam black-tie” explícita dimensões da consciência de

classe do proletariado brasileiro, expondo suas fragilidades e fraturas internas,

expressas, por exemplo, pelo contraponto de posições típicas unilaterais: de um

lado, o esquerdista Santini e de outro o pragmático Tião. Como contraponto à

unilateralidade, outras posições de classe que são exemplos pessoais da busca

de uma mediação essencial entre contingencia e necessidade, estão expressos

nos personagens Otávio e Bráulio. Aliás, Bráulio – que morre no final do filme,

executado por agentes policiais – é o personagem que busca, com dificuldades,

um meio-termo entre as posições unilaterais do esquerdismo e do fura-

grevismo. (o destino trágico de Bráulio expressa a tragicidade da consciência de

classe no Brasil).

O personagem Tião é o jovem operário pragmático, que se contrapõe ao

pai, velho militante sindical. Por um lado, expressa um conflito geracional, onde

pai e filho, embora tendo o mesmo pertencimento de classe, explicitam um

acervo de valores morais antípodas (coletivismo versus individualismo – por

exemplo). O pragmatismo de Tião não possui um viés idiossincrático – ele não

age por covardia, mas por convicção (ele acredita que se possa ter ascensão

social por conta própria, prescindindo do movimento coletivo da classe). É um

tipo de pragmatismo moral de viés individualista que se distingue do

pragmatismo neocorporativo que não despreza a ação coletiva, mas a reduz (e a

restringe) à ação corporativa de escopo imediato.

A cena do diálogo entre Tião e Otávio na mesa do jantar é elucidativa das

diferenças cruciais de visões de mundo (e consciência contingente da “classe”)

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

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entre pai e filho. Enfim, existe um “abismo ideológico” entre os dois. Primeiro,

Otávio observa que despediram oito na fábrica metalúrgica. Tião diz: “Vê se te

cuida pai. É bom você tomar cuidado. Se perder esse emprego não vai ser fácil

encontrar outro.” Na verdade, Tião se preocupa com o emprego do pai pensando

em si. Diz ele: “Não vai ser fácil para mim sozinho sustentar duas famílias”.

Otávio logo percebe que o filho está “se borrando de medo”. Diz: “Esse teu

casamento às pressas está deixando você mais medroso ainda.” E atenta que o

filho tem “medo da própria sombra” e “vive olhando para o próprio pé”.

Irritado, Otávio diz que os tempos são outros. Enfim, segundo ele, é hora de

batalhar e que Tião procure “viver mais com os companheiros” nas assembléias

sindicais. Reconhece que Tião foi socializado na época da ditadura militar e que

isso marcou ele. Mas salienta que as coisas mudam. Tião desabafa culpando o

pai pela miséria que a família vive e exclama que a visão de mundo do pai com

suas idéias de que “precisa organizar a classe operária” e “num sei lá de

história”, é que levou a familia a ficar “na mesma merda”.

Ora, como salientamos acima, Tião, o jovem operário, cresceu durante a

ditadura militar e suas utopias pessoais estão “contaminadas” pela ideologia da

conformação particularista. É uma geração castrada em sua capacidade de

perceber que o novo sempre vem a partir da ação coletiva. A dimensão do

coletivo é meramente uma abstração para Tião (diferentemente de Otávio, onde

o coletivo político é um eixo prático-ontológico que organiza suas escolhas

morais). É a partir do coletivo político, com sua manifestação prático-sensível,

que Otávio pode afirmar que os tempos são outros. Diz ele: “Os trabalhadores

estão se organizando”. Por isso, ele diz: “É hora de batalha. Vai lá, Tião. Aparece

nas reuniões.” Tião só percebe a si mesmo e a sua dimensão do coletivo é

egoisticamente autocentrada.

Embora Tião tenha dito que não é covarde, sua atitude em “furar” a

greve, possui um fundo idiossincrático: ele tem medo (é o que observou Otávio)

– medo de assumir responsabilidades pelas quais ele não está preparado (eis o

inferno astral de Tião: vai constituir família, tendo em vista que Maria está

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grávida; vai sustentar a família da noiva, tendo em vista que o pai de Maria foi

morto num assalto e a mãe e irmãos de Maria devem morar com ele; e

finalmente, diante do risco da greve, Tião vislumbra a possibilidade do pais ser

demitido e ele ter que assumir também a família do pai). Por isso, é o mundo

das responsabilidades familiares que submete (e transtorna) o jovem operário

às contingencias instrumentais da classe. O medo é o afeto regressivo na alma

de Tião – através dele, negocia seu consentimento à ordem do capital.

Mas a atitude moral de Tião representa uma visão de mundo antípoda a

de Otávio. Ele não percebe que a dialética do real e o movimento da classe no

sentido de negação da negação – mesmo que assumindo formas contingentes.

Otávio procura ensinar-lhe isso utilizando a metáfora da poça d’água versus a

corrente do riacho. Mas Tião não se convence: há um abismo geracional entre

pai e filho.

O jovem operário Tião expressa a visão da presentificação crônica onde o

impulso para a futuridade inexiste. As escolhas morais de Tião são adequadas a

essa visão de mundo. Na verdade, ele não é um imobilista que nada faça. Pelo

contrário, como o pai, Tião é um homem de ação, só que noutra direção – das

saídas individuais e da busca por conta própria de sua ascensão social. Ora,

tanto Otávio quanto Tião acreditam que as coisas mudam e o que os tempos são

outros – mas se o primeiro vê a mudança na perspectiva da ação coletiva da

classe; o segundo, a partir da experiência do pai e da situação familiar,

incorpora outros valores morais, e acredita na mudança numa perspectiva da

ação meramente individual (ele quer realizar o que – na percepção dele - o pai

não conseguiu – “vencer na vida”).

Em vários momentos, Tião desabafa diante do pai e da noiva Maria,

dizendo que o mundo está enlouquecido. Ele vê o mundo social a partir de

outros valores morais – os valores burgueses baseados no individualismo

egoístico. Ele olha tão-somente para si. Naquelas condições da luta de classes, a

visão de mundo de Tião expressa uma certa alucinação – para ele, o mundo da

luta de classes está enlouquecido. Ele só vê loucura nos outros. Num certo

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momento, exclama: “Pô, merda! O quê que é? Está todo mundo ficando louco,

é? “. Noutro momento, exclama para o pai: “Fala que nem louco, pai. Porra!”. E

noutra cena, Tião diz para Maria: “Está meio maluca ai, como todo mundo.”

Talvez seja Tião que esteja enlouquecido e não o pai ou Maria.

Depois da séria discussão na mesa de jantar, no dia seguinte, antes de

irem para a fábrica, no café da manhã, Tião e Otávio têm uma rápida conversa.

Fazem as pazes, embora tenha sido estabelecida – no plano ideológica – a

diferença crucial entre a visão de mundo do pai e a visão de mundo do filho. É

claro que Tião chega a reconhecer que o pai está certo e que ele está “meio

perdidão”. E diz: “Muita responsabilidade a gente acaba dizendo o que não

pensa e o que não quer, que nem de porre”. E diz para o pai que o respeita e que

o admira muito. Se o conflito ideológico na mesa do jantar permitiu no dia

seguinte, a paz entre os dois; com a greve, o conflito prático entre pai e filho,

com Tião furando o movimento grevista, irá significar efetivamente a ruptura

entre Otávio e seu filho pródigo.

Enquanto, por um lado, Tião “fura” a greve utilizando argumentos

racionais (como diz Otávio, ele “furou a greve fazendo comício”) – no fundo,

adotando um argumento liberal, embora sua motivação intrínseca seja o medo e

visão de mundo que possui com respeito a forma de ascensão social de classe;

por outro lado, Jesuino é o típico filisteu que age por motivações mesquinhas –

dinheiro e ascensão funcional (diz ele: “E é sempre umas milhas a mais,

falou?”). Ele oculta sua traição de classe.

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

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O recurso eufemístico é utilizado sempre de forma cinica para ocultar, no

plano lingüístico, as estratégias de dominação de classe. Tião tem que ocultar

não apenas para os outros, mas para si, que é um espião do capital. Para

cumprir seu papel de traidor da categoria assalariada (um “traidor por

convicção”), tem que ocultar inclusive de si a vergonha de ser persona do

capital. Para isso, mobiliza o recurso lingüístico, utilizando palavras que

consigam não apenas ocultar, mas dar um tom de dignidade moral, a uma

prática degradante.

A prática do transformismo ideológico de proletários ocorre, no plano de

individualidades pessoais, que assumem, de forma consciente, serem personas

do capital. É a consciência contingente que nega a si própria como consciência

de classe, tornando meramente consciência cínica de individualidades isoladas.

É o proletário que se recusa a ir assumir uma atitude classe, alienando-se das

possibilidades de formação em si e para si, da classe. Subsumido aos seus

motivos pessoais e interesses egoísticos, as escolhas individuais atuam para

sedimentar a ideologia da classe dominante.

A consciência cinica possui características como renegação de práticas

coletivas, opção por saídas individuais, atitudes oportunistas visando ascensão

pessoal no interior da ordem, aceitação da ideologia dominante, subsumindo-se

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aos valores-fetiches. As atitudes de Tião e do Jesuino expressam a psicologia do

cinismo conformista que busca auto-justificar-se utilizando-se a ótica liberal do

direito. No centro da argumentação sempre a ótica do individuo abstrato

burguês em detrimento da perspectiva coletiva.

Dimensões da consciência cínica

renegação de práticas coletivas,

atitudes oportunistas visando ascensão pessoal no

interior da ordem

aceitação da ideologia dominante, subsumindo-se aos

valores-fetiches

Incapaz de vislumbrar a mudança social e os saltos de qualidade na

praxis cotidiana do movimento da classe, a consciência cínica justifica sua

adesão à classe dominante como um gesto pragmático. Diz Jesuino: “A turma

não fez greve ano passado? E agora está precisando de outra. E vai precisar de

mais outra, e mais outra, e nunca vai acabar”. Diante do eterno retorno da

contingencia, “o jeito é ficar do lado de quem manda. Esses é que estão

sabendo.” Assim, incapaz de vislumbrar para além da contingencia da pseudo-

concreticidade da vida cotidiana, a consciência cinica legitima seu conformismo

paradigmático.

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O filme “Eles não usam black-tie” confronta duas lógicas de pensamento

– a lógica da individualidade coletiva e a lógica das individualidades isoladas.

Jesuino expressa com desenvoltura a lógica das individualidades isoladas que

pensam por si e agem de modo egoístico, calculando seus ganhos

particularistas. Diz ele para Tião: “Que cada um quebre os seus galhos do jeito

que pode”. Ele não pondera: “Que a união de todos quebre os galhos de cada

um”, ele não concebe que os galhos que atingem as individualidades pessoas de

classe são galhos sociais que só podem ser efetivamente solucionados de modo

coletivo pela organização da categoria assalariada e pelo movimento social da

classe do proletariado.

A ótica de Jesuino é a ótica neoliberal do “salve-se quem puder”, que

nega a vigência da coletividade em prol da vigência das individualidades

isoladas. É a lógica social que marcou a sociedade brasileira desde a Colônia. Ele

expressa um pensamento social adequado a uma formação capitalista colonial-

prussiana onde o movimento do coletivo (a contestação social) sempre foi

reprimida pelas forças politicas dominantes. Com a ditadura militar e mais

tarde, com a ofensiva neoliberal, a cultura da individualidade isolada adquiriu

uma força maior visando destruir os esforços coletivos de mudança social.

O diálogo entre Tião e Jesuíno no restaurante da fábrica explicita a

traição de classe levada a cabo por Jesuino que assumiu o papel oculto de

“agente do capital” no interior da categoria assalariada. Jesuino entrega à

gerência de recursos humanos, nomes de ativistas sindicais para serem

demitidos. Ele sugere que Tião adote a mesma postura. Diz: “Vai inventando os

nomes que eles vão cobrar também.” É claro que Tião acha “sacanagem”,

dedurar companheiros de trabalho. Na verdade, enquanto Jesuino traí a classe

de modo oportunista e covarde (“Aproveitei a chance, companheiro!”) (Otávio

dirá mais tarde, “traidor por covardia”); Tião apenas adota valores morais

compatíveis com o mundo do capital, escolhendo “vencer na vida” por conta

própria (o que explicita o sentido candente da “captura” da subjetividade do

trabalho pelo capital). Enfim, Tião traí a classe por convicção.

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A vigência da lógica individualista que corrói o espírito do movimento

coletivo é explicito quando Jesuino observa para Tião: “É a nossa chance,

companheiro. É preciso levar vantagem em tudo.” É a lei de Gerson que traduz a

vigência conservadora intrinseca à nossa formação colonial-prussiana. Na

verdade, a ditadura militar e o neoliberalismo só tenderam a reforçar esta tara

originária da objetivação capitalista colonial-prussiana (a chamada “lei de

Gérson” é a lei daqueles que gostam de levar vantagem em tudo. Nesta

propaganda do cigarro Vila Rica, exibido na televisão brasileira na década de

1970, tendo como garoto-propagando o jogador Gérson, “cerébro do time

campeão do mundo de 70”, temos a expressão candente da ideologia do

oportunismo que caracteriza o metabolismo social do capitalismo brasileiro. É

um recurso ideológico que visa “quebrar por dentro” o protagonismo dos

movimentos coletivos no País. “Levar vantagem em tudo” tornou-se a prática

social sob o protagonismo do mercado. O neoliberalismo acirrou um traço

crônico da miséria brasileira, destilado pela ditadura militar (1964-1985) cuja

função histórica foi “quebrar” o ânimo coletivista da sociedade brasileira por

meio de uma “modernização conservadora” do capitalismo tupiniquim).

O pragmatismo de Jesuino expressa um certo tipo de realismo

intrinsecamente oportunista. Por exemplo, ele diz: “Calma, garoto! A vida não é

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

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assim como a gente quer, não!”. Na verdade, trata-se de uma atitude de

conformação que visa adequar-se às factualidades da vida cotidiana. Ao dizer

que “a vida não é assim como a gente quer”, ele tende – em última instância - a

negar a ação do sujeito e o enfrentamento das circunstâncias impostas pelo

capital (na verdade, o sujeito deve apenas se aproveitar das oportunidades

dadas pelo statu quo). Trata-se da negação da dialética da práxis histórica. Ora,

se por um lado, é verdade que existem condições objetivas que constrangem a

vontade e a ação dos sujeitos sociais; por outro lado, as circunstâncias herdadas

do passado não eliminam absolutamente as escolhas e as possibilidades da

práxis histórica. Além disso, na medida em que o referente praxiológico de

Jesuino é meramente individualista – ele age por si só – o poder dos fetiches

sociais torna-se quase absoluto, invalidando assim, a “negação da negação” cujo

movimento é intrinsecamente coletivo.

Otávio é o velho militante operário, homem político no sentido pleno da

palavra, sempre indignado com as misérias do mundo burguês. É um agitador

(e organizador) da classe operária com posições ponderadas que se contrasta,

por exemplo, com Santini, cujo perfil de militância operária tem um viés

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

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esquerdista. Otávio é um homem moral no sentido da ação coletiva organizada

deliberada democraticamente. Chefe de família, é o principal provedor do lar

constituída por trabalhadores (Romana, trabalhadora do lar; e os filhos

Chiquinho e Tião: um, office boy e outro, operário, como o pai, de fábrica

metalúrgica).

Romana, mulher de Otávio, é a organizadora do lar operário. Como

“intelectual orgânica” do lar operário, é uma trabalhadora doméstica incansável

que contribui para a reprodução da força de trabalho de Otávio, Tião e

Chiquinho – aliás, a função estrutural da trabalhadora doméstica que executa

um trabalho não-pago é reduzir o valor da mercadoria força de trabalho dos

membros da família operária. Madrugadora, é ela que prepara o café da manhã.

Diz ela: “Trabalhando, acordando antes para acordar eles”. Preocupa-se com

Otávio, marido e companheiro, provedor do lar. Ela exclama: “Não se meta em

confusão de novo Otávio”. Diante do conflito crucial entre pai e filho, Romana é

a mediação vital que busca equilibrar o lar operário. Num certo momento,

numa observação metafórica, Romana chega a dizer: “Preciso reforçar essa

porta senão ela não agüenta”. Apóia Otávio ao expulsar o filho “fura-greve” de

casa. Mas não deixa de expressar seu amor e carinho pelo filho pródigo: “Dá cá

um abraço, meu filho”, diz ela.

Romana é mulher supersticiosa que joga cartas para saber o futuro do

movimento grevista que convulsiona sua família. Na medida em que se

aproxima do clímax grevista, ela se preocupa com o marido (como salientamos,

ela chega a exclamar: “Não se meta em confusão de novo, Otávio”). Ela é mulher

calejada pela intempéries da luta social cujo espectro da repressão política

ameaça seu núcleo familiar. Na verdade, ela teme ver aquele núcleo humano-

familiar dissolver-se pelas forças estranhadas do mundo social do capital. Presa

à domesticidade do lar, comunidade humana primordial, Romana, mulher do

povo, busca dar um sentido – ou apreender o sentido - da contingencia do real

histórico. Diferentemente da religião, a superstição é uma técnica mística de

racionalização do mundo social alienado. Ao jogar cartas, Romana põe um telos

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

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“previsível” da ação histórica contingente. Fechada naquele mundo da

domesticidade proletária, as cartas criam um suposto horizonte de

previsibilidade instrumental. Se como Marx disse, a religião é a “teoria geral

deste mundo da alienação”, a superstição é sua técnica geral, racionalidade

mistificada, que visa dar para homens e mulheres comuns, um horizonte de

previsibilidade cotidiana.

A cena final do filme “Eles não usam black-tie” é uma cena metafórica

onde Romana , sentada à mesa, cata feijão. O marido Otávio a ajuda. Jogam no

lixo os grãos que não prestam. Talvez o filho Tião, o fura-greve, seja o grão que

não presta. A luta de classes que perpassa a reprodução social dilacera os laços

humano-familiares. No movimento da classe enquanto uns se perdem na

ideologia do capital, tornando-se grãos que não prestam, outros conseguem

avançar na sua consciência social, contribuindo para o processo de

desenvolvimento histórico. Ocorre irremediavelmente uma seleção moral que

exclui aqueles que – como grãos de feijão imprestáveis – devem ser excluídos

Ao expulsar o filho Tião de casa, Otávio reafirma o valor do núcleo humano-

familiar a partir de valores da classe social do proletariado. O valor moral

fundamental e fundante da classe do proletariado é a solidariedade. É um valor

moral sagrado que está na base ontológica da comunidade humana. Ao tornar-

se fura-greve, Tião renegou àquilo que sempre marcou o militante Otávio. Por

iss, como um grão de feijão que não presta, precisava ser jogado fora.

A jovem operária Maria, noiva de Tião, é a figura da nova mulher que

busca uma vida digna diante da miséria humana do mundo social do capital. Ela

vem de uma família pobre, cujo pai é operário da construção civil desempregado

(que depois consegue um emprego) e a mãe adoentada, sofre com a embriaguez

recorrente do marido. Quando o pai bebe, para desafogar a angústia do

desemprego, oprime a família. Maria Chega a exclamar para si: “Não agüento

mais essa vida”. Ela divide o quarto com o irmão mais novo (Bié). Maria vive o

drama da jovem operária oprimida pela miséria da família e cujo horizonte de

vida está além daquele berço originário. Como Tião, ela está insatisfeita com a

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

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miséria operária. É a jovem geração operária que diante do mundo das

mercadorias sonha com uma vida melhor. Mas, ao invés de Tião, Maria

alimenta o valor da solidariedade de classe.

Maria é a mulher operária digna que luta não apenas pelos seus direitos

de mulher, mas pela dignidade da classe que almeja uma vida melhor. Não

possui um discurso feminista, mas sim, um discurso de afirmação da classe

social do proletariado onde a luta necessária é a luta social contra toda forma de

exploração (de classe) e opressão (inclusive, a opressão de gênero). O machismo

de Tião está subsumido ao seu filisteísmo de classe. Talvez, Maria perdoasse

Tião se ele fosse tão-somente machista, mas ela não o perdoaria jamais se ele

traísse a classe, como o fez. Ora, o machismo como deformação humano-

genérica de homens na sociedade do capital, é superado por meio de um longo

processo de socialização emancipada; mas atitudes de traição de classe tende a

abortar qualquer movimento de “negação da negação” do capital.

A jovem operária Maria sonha com uma vida decente. Exclama para Tião:

“Eu também quero limpo e gostoso. Eu também quero uma vida decente.” Mas,

Maria não se submete à ideologia do capital. Não pensa só em si, como Tião;

mas cultiva o valor moral da solidariedade. Fica indignada com o noivo. Diz ela:

“Eles estão fodendo a gente e tu ajudando a foder”.

O operário Santini, como Bráulio e Otávio, é uma das lideranças

sindicais metalúrgicas no filme. É o tipo esquerdista de liderança sindical que

tende a desprezar as mediações sociais no processo de luta de classes. Por um

lado, ele é um homem moralmente indignado com a exploração e opressão do

capital. Por exemplo, exclama, diante das demissões de operários: “Não pode,

Otávio, não pode, não pode despedir desse jeito, porra!”. Noutro momento, ele

descreve, indignado, a situação de carência operária: “O salário verdadeiro

diminuindo. O trabalhador está na miséria. Comida na mesa, que é bom, não

tem. A inflação comendo…”.

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

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Por outro lado, traduz a indignação (e revolta) moral com a ação imediata

contra o capital. Grita: “Vamos parar a fábrica é agora!”. É a expressão típica do

esquerdismo sindical. Ora, o operário Bráulio sabe que entre a miséria do

capital e a resposta efetiva contra a exploração e opressão existe um complexo

de mediações (formação da consciência e organização, etc). Ele contesta Santini:

“Sossega, italiano! Não é bem assim!”. Uma ação imediata de reação à

provocação do capital, sem preparação e organização, pode significar a derrota

prévia da classe. Bráulio observa: “Todo mundo pro trabalho. Eles estão

querendo que percamos a cabeça”.

No filme, a posição de Santini se caracteriza pelo culto da imediaticidade

da ação operária – isto é, o desprezo pelas mediações concretas na luta de

classes. Na ação espontânea – quase espontaneíssima – ele tende a desprezar

elementos de organização e consciência de classe, além de importantes

particularidades concretas na ação da classe.

Por exemplo, num certo momento, Otávio exclama: “Está pensando o

quê, Santini, que estamos em São Bernardo? Não temos organização prá isso

ainda não!”. Eis uma das características cruciais do esquerdismo politico:

desprezar o concreto em sua dimensão territorial (São Paulo não é São

Bernardo – o que significa que Santini, em sua fantasia esquerdista, projetava

na sua localidade, a ação operária de massa que ocorria em São Bernardo,

desprezando a natureza social local).

O esquerdismo de Santini, como todo esquerdismo politico, tende a

superestimar o poder de luta da classe. É o discurso da ofensiva direta e da

guerra de movimento. Mas o esquerdismo de Santini é um esquerdismo

meramente sindical – o discurso dele é contra a exploração e opressão do

capital no âmbito fabril (por exemplo, no filme, Santini não fala em socialismo;

o que significa que seu esquerdismo se restringe à luta econômico-politica

imediata). Ele exclama: “Diálogo com o patrão, é isso aí, é máquina parada,

produção parada. Aí que eles entendem a linguagem da gente.” Noutro

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

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momento, Santini dissera a mesma coisa: “Negociação é com máquina parada, o

único argumento que patrão entende”.

Otávio e Bráulio discordam veementemente de Santini. Otávio diz:

“Estamos contra a porra-louquice. Queremos a greve, mas quando a categoria

quiser.” E Santini pergunta: “Vai me dizer que a categoria não quer.” Para

Otávio, Santini e sua facção politica, “querem ensinar a greve no golpe.” É

curioso que a categoria metalúrgica decide em assembléia pela greve (contra a

posição de Otávio e Bráulio). Mesmo assim, Bráulio e Otávio se envolvem de

corpo e alma com o movimento grevista respeitando a deliberação coletiva da

categoria (a greve provoca prejuízos pessoais significativos para os dois

camaradas metalúrgicos – Bráulio, perde a vida e Otávio, perde o filho).

Talvez, na narrativa de “Eles não usam black-tie”, de Léon Hirzman,

Otávio e Bráulio sejam a representação política das lideranças comunistas

durante a greve metalúrgica do ABC paulista nos anos 1978/1979/1980, que

adotaram tons moderado no confronto com o capital; enquanto Santini possa

representar as lideranças do “sindicalismo autêntico”, de viés esquerdista, que

mais tarde fundariam em 1979, o PT. e a CUT. No filme (como na história), a

posição de Santini (e do PT/CUT) se impuseram nos rumos da luta metalúrgica

em São Bernardo.

No filme “Eles não usam black-tie”, a greve dos metalúrgicos é decidida

em assembléia da categoria (a deliberação da assembléia não aparece na

narrativa fílmica). É por meio da fala de Otávio que sabemos que essa greve foi

“arrancada no golpe”. É uma crítica à atuação de Santini e sua facção política

que conseguiu convencer a maioria dos operários presentes na assembléia a

votar pela greve naquele momento. Lidando com o instinto de classe, a posturas

esquerdistas tende, algumas vezes, a obter sucesso. Muitas vezes, elas apelam

para a imediaticidade (e espontaneidade) da categoria assalariada imersa na

miséria do capital. Entre a deliberação da greve e a sua realização efetiva

existem as mediações organizativas. Otávio e Braulio vêem dificuldade em parar

as fábricas. Santini exclama: “Vamos é se preparar pro pau. Organizar piquete

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

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na porta das fábricas.”. Otávio observa: “Vocês precipitaram tudo e vocês

confundem tudo.”

Diante da movimentação grevista, com piquetes buscando impedir o

acesso às fábricas, a repressão policial à serviço dos capitalistas é a decorrência

efetiva da ordem burguesa. No filme “Eles não usam Black-tie”, o momento da

greve operária é o momento não apenas da denúncia sindical que explicita a

exploração capitalista, mas o momento da repressão policial que busca restaurar

a ordem burguesa. Estamos diante de uma lei histórica: o movimento de

constituição da classe contém em si, irremediavelmente, elementos de contra-

movimento (e de repressão) instaurados pela ordem burguesa. Enfim, como

observou Marx no “18 Brumário”, toda revolução social contém como germe, a

contra-revolução.

Indignado, Otávio, agredido pelo policial militar, exclama, quase em tom

pedagógico: “Olha, gente, é assim que tratam o proletário brasileiro”. As

lideranças operárias clamam pela união – “todo mundo unido. Ninguém vai

trabalhar” Ou ainda: “Todo mundo pro estádio. Patrão só entende quando a

gente pára”. Para confrontar a concentração do capital, que reúne o trabalhador

coletivo nas fábricas para explorar, as lideranças operárias criaram a

concentração do trabalho, que reúnem os operários no estádio, re-significando o

trabalhador coletivo como sujeito histórico de sua própria emancipação social.

Exclama Otávio: ”Vamos pro estádio, pra assembléia, companheiro.”

Embora tenha sido contra a greve operária naquele momento, Otávio (e

Bráulio), após a deliberação da assembléia dos metalúrgicos pela greve, decide

acatar a decisão da maioria. Otávio se envolve fazendo agitação na porta da

fábrica. Diz: “E nós, que produzimos essa riqueza, nós vivemos na miséria,

porra!”. Ou ainda: “É de nossas mãos que sai a riqueza desses poucos que estão

ai”. Na verdade, Otávio usa a greve operária como um instrumento pedagógico.

Ele procura agitar, ensinando alguns princípios da luta operária. Noutro

momento, exclama: “Olha, companheiro. A greve é a nossa arma de luta”. Ou

ainda: “Companheiros, a greve é o direito sagrado do trabalhador.”

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O filme “Eles não usam black-tie”, é um filme que organiza a sua

narrativa em torno do conflito candente entre ação individual e ação coletiva

da categoria assalariada. No decorrer do filme, em cada momento, existe uma

tensão contraditória entre movimento individual no sentido de ação

particularista e egoística (como Jesuino e Tião) e movimento coletivo no sentido

da ação da categoria assalariada em prol de interesses da classe (como Otávio,

Bráulio e Maria).

Eis o princípio da formação da consciência de classe – ir além da ação

particularista da individualidade pessoal de classe. Ela implica ir além da

espontaneidade da pseudo-concreticidade da vida cotidiana. Durante o

movimento grevista, o fura-greve Tião sai da fábrica e é abordado por um grupo

de operários piqueteiros que tentam espanca-lo, vingando-se da atitude

egoística do companheiro de fábrica. Bráulio intervém para evitar o

espancamento de Tião pelos operários grevistas revoltados. Como Otávio,

Bráulio exerce uma intervenção pedagógica durante a greve. Aliás, com Otávio

e Bráulio aprendemos a dialética da greve. Diz ele: “Ele não é nosso inimigo!

Nosso inimigo é quem explora a gente!” E ainda: “O nosso inimigo é a repressão

que arrebenta coma gente”. E arremata: “Vão bater em todo mundo que furar a

greve? E vão descontar nesse bunda-mole que não enxerga a não ser ele

mesmo? “.

O movimento da greve operária ocorre num crescendo de enfrentamento

entre operários grevistas e o aparato policial a serviço dos capitalistas. Por um

lado, os piquetes operários tentam impedir que companheiros e companheiros

entrem na fábrica para trabalhar. Por outro lado, a repressão policial tenta

dispersar a concentração operária na frente das fábricas.

A formação da consciência de classe implica intrinsecamente luta de

classe onde se explicitam os interesses estruturais antagônicos entre capital e

trabalho. A greve é o momento privilegiado de formação da consciência de

classe do proletariado, impulsionando o movimento para a constituição do “em-

si” da classe. O “em-si” da classe é o primeiro modo de aparição da classe social

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do proletariado na história. É a classe social que age de modo coletivo e se

distingue diante das personas do capital. Torna-se muito claro o “nós” e “eles”.

Os patrões aumentaram o policiamento para impedir piquetes. Santini

exclama: “A turma da noite não entra”. A multidão da classe exclama:

“Trabalhador unido jamais será vencido” ou ainda “A greve continua”. Sempre

voluntarista, Santini grita: “Não tem essa de ter medo de repressão, não!”.

Nesta cena do filme vemos com clareza as diferenças políticas de

encaminhamento da ação grevista numa situação tensa – por exemplo,

enquanto o italiano Santini exacerba o confronto, visando garantir o piquete, o

negro Bráulio procura evitar o enfrentamento com o aparato policial, inclusive

recuando caso seja necessário. Bráulio exclama: “Não precisa violência! Vamos

dispersar!”. Ou ainda: “Calma, gente!”. Ora, Bráulio é o homem da mediação

política do processo de luta de classe, evitando aceitar provocações que possam

significar a derrota da luta sindical da categoria assalariada

O aparato repressivo do capital sempre se utiliza de provocações para

provar o movimento coletivo da classe. Não existe movimento coletivo da classe

que não seja provocado pelo statu quo. Nesse caso, prova-se a inteligência

politica do movimento social que deve, por um lado, contornar as provocações

politicas e por outro, avançar em sua organização e luta.

O processo de luta de classe no plano do “em-si” e do “para-si” da classe é

sempre um processo concreto, com um complexo de mediações sob múltiplas

determinações. Na cena-climax da greve operária, quando o aparato policial

tenta evitar o piquete que impede a entrada do turno da noite na fábrica, o

confronto entre polícia e piquetes operários parece ser inevitável. Percebe-se a

infiltração no aparato repressivo de policiais à paisana, policiais civis ligados aos

organismos de repressão politica do regime militar. Enquanto Santini, acirra a

concentração operária visando a garantia do piquete operário., Bráulio busca

dispersar a multidão de operários grevistas visando evitar o confronto direto

com o aparato policial. Exclama: “Nada de confronto, companheiros!”. Mas,

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

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logo Bráulio é atingido por um tiro e morre. Um policial civil, eivado de

preconceito racial, ordena a execução da liderança operária negra: “O crioulo, o

crioulo”.

Por ironia da história, Bráulio, o que evitava o confronto, é sacrificado,

tornando-se símbolo da luta operária. A imagem da cena-climax do filme, que

retrata o momento exato do tiro que executa Bráulio, tem ao fundo, um muro

pichado com a frase emblemática do próprio movimento grevista: “Chega de

Arrocho”. A partir de 1978, a luta operária dos metalúrgicos paulistas

concentrados na região mais industrializada do País (o ABC paulista), teve como

motivação contingente, a luta contra a superexploração da força do trabalho.

A composição das imagens do filme é imbuída da dialética do movimento

da classe que se constitui enquanto “em-si”. O filme “Eles não usam Black-tie” é

composto por pares dialéticos no interior do próprio movimento da categoria

assalariada que constitui o “em-si” da classe. Como temos salientado, o filme

expressa, é claro, a contradição estrutural antagônica entre Capital e Trabalho,

que impulsiona inclusive o movimento de insatisfação operária e greve de

massa. Mas o que deve-se perceber são os múltiplos conflitos intraclasse que

explodem no interior do próprio movimento da classe: não apenas movimento

sindical, com as divergências politicas entre Santini e Bráulio, por exemplo; mas

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

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movimento sócio-reprodutivo, com os conflitos intergeracionais, como o

conflito candente entre o jovem operário Tião e seu pai Otávio; ou entre Tião e

sua noiva operária Maria.

Como metabolismo social, o capital explicita em si e para si,

dilaceramentos no interior da classe que se constitui em movimento. É curiosa a

fotografia do filme abaixo. Apesar das divergências politicas candentes, o

trabalhador enquanto categoria assalariada da classe que se constitui “em si”,

está unido!

O pai de Maria vive o drama do operário desempregado. Ele é um

operário da construção civil que afoga suas mágoas do desemprego na bebida. O

desemprego dilacera sua individualidade pessoal, na medida em que anula sua

função de provedor familiar. Antes de ser um problema econômico, o

desemprego é um problema moral que desconstitui a capacidade de reação

pessoal do homem que trabalha.

Ao conseguir um emprego numa obra de construção civil, ele recupera o

ânimo de vida. Diz ele: “Estou aproveitando não estar bêbado pra poder

pensar”. E depois: “Quem sabe a gente melhora. A bebida atrapalhava um

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pouco.” A bebida é uma forma extrema de desefetivação pessoal das

individualidades de classe. Bêbedo, o proletário não pensa, apenas age

instintivamente (como animais). Com o emprego, o pai de Maria consegue mais

sossego para se recompor como individualidade pessoal de classe.

Na cena de abertura do filme “Eles não usam black-tie”, o casal Tião e

Maria saem de uma sessão de cinema. Os cartazes de entrada do cinema

anunciam o filme “Jornada nas Estrelas – O Filme” (1979) (Star Trek - The

Movie), cujo diretor é Robert Wise. No filme, os tripulantes da nave Enterprise

buscam solucionar um mistério envolvendo um campo gravitacional que avança

na direção da Terra e destrói tudo em seu caminho. Mas, de fato, Tião e Maria

acabaram de ver outro filme: “O Campeão” (1979), cuja direção é de Franco

Zefirelli. No filme, Billy Flynn (Jon Voight) é um ex-campeão do boxe, mas que

agora está na pior, afundado nas bebidas e nos jogos. Porém, seu filho T.J.

(Rick Schroder) acredita no potencial de seu pai, sabe de sua condição, mas

nunca deixa de afirmar que ele é seu eterno campeão (é refilmagem de um filme

homônimo de 1931). Ambos os filmes são narrativas carregadas de valores

morais implicados com a conquista de sonhos pessoais. A indústria cultural

tende a desprezar em sua s narrativas filmicas a capacidade moral da classe em

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conquistar coletivamente seus anseios pessoais, investindo mais na saga de

heróis individuais (ou saga de equipes, como em “Star Trek”) rumo ao sucesso.

É ironia que “Eles não usam black-tie” rompe com a lógica da saga individual,

embora, no filme, por exemplo, o operário Tião, esteja imbuido desta ideologia

do capital.

As imagens fílmicas em “Eles não usam Black-tie” são carregadas de

significados candentes. Por exemplo, ainda na abertura do filme, por alguns

segundos, Tião e Maria conversam no ônibus, e, ao fundo, brilha um letreiro em

neón das Lojas G. Aronson, empresa de venda popular de bens de consumo

duráveis para a classe operária. De capital nacional, a empresa G. Aronson

marcou o sonho de consumo de inúmeras famílias operárias no auge do

desenvolvimento industrial do “milagre brasileiro”.

G. Aronson foi uma rede de varejo com sede em São Paulo especializada na venda de eletrodomésticos.

Controlada por Girzs Aronson, teve sua falência decretada em 1998. Seu Fundador, nasceu em 18 de

janeiro 1917, o russo de origem judaica construiu um império de lojas que chegou a contar com 38

unidades no Estado, e um faturamento de R$ 350 milhões por ano. Ele chegou ao Brasil com 2 anos e

começou no comércio aos 12, vendendo bilhetes de loteria em Curitiba (PR), onde morava com a mãe -

viúva- e os irmãos. A fama veio quando Aronson vendeu um bilhete premiado e recebeu do apostador

parte do dinheiro. Em 1944, uma empresa de casacos de pele do Rio o convidou para ser representante de

vendas em São Paulo. Foi naquele ano que ele abriu a empresa G. Aronson. Chegou a vender 170 casacos

em um mês, comprou um Dodge, carro cobiçado da época, e expandiu os negócios. Nos anos 1960, criou a

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

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Gurilândia, especializada em artigos infantis. A rede G. Aronson começou a se expandir nos anos 70,

após comprar uma loja de fogões em dificuldade financeira. Em junho de 1999, a G. Aronson faliu, com

dívidas de R$ 65 milhões. Na época, o comerciante culpou a explosão da inadimplência e a redução do

poder de consumo da população. No dia 17 de setembro de 1998, o dono da G. Aronson foi vítima de um

seqüestro dentro de sua empresa. Passou 14 dias no cativeiro e só foi solto, à noite, na rodovia Castello

Branco, sob chuva, após o pagamento de um resgate de R$ 120 mil. No cativeiro, chegou a quebrar o nariz

e sofrer hematomas. O caso teve repercussão nacional. Girsz Aronson descobriu que sofria de um câncer

em novembro de 2007. Morreu em 19 de junho de 2008, os 91 anos.

Jurandir, pai de Maria, operário da construção desempregado,

embriagado pela cachaça, senta-se à noite diante da TV, em alto som, e curte

angustiado sua deriva pessoal. Já é madrugada, e ele, bêbado, prosta-se diante

dos programas de TV. Para a classe operária, núcleo proletário primordial, a TV

é seu ópio mental. Prostado diante dos programas de TV, Jurandir se entretém.

A mulher clama: “Vem pra cama, Jurandir. Desliga essa televisão”. Talvez a TV

seja a “cachaça da mente” para Jurandir.

Por alguns segundos, o filme “Eles não usam black-tie” retrata cenas da

linha de produção no interior da fábrica. O chão-de-fábrica é campo minado do

capital. É uma “caixa-preta” que oculta a exploração da força de trabalho.

Imagens da linha de produção das empresas são proibidas a título de sigilo

industrial. Na verdade, oculta-se a miséria humana da produção de mercadoria,

com seu trabalho monótono e repetitivo, desprovido de significado para o

homem que trabalha. As fábricas do filme são fábricas de médio porte; não são

grandes indústrias metalúrgicas como as montadoras da indústria

automobilística no ABC paulista. Percebe-se numa das imagens que Tião

trabalha próximo de Jesuino. Noutra, Otávio está atento no torno mecânico.

Maria exerce um trabalho de menor qualificação profissional na esteira

mecânica. Ao fundo, próximo a ela, está sua amiga Cilene, mulher de Bráulio. As

amizades do filme se fazem no chão-de-fábrica.

O bar do Alípio é um dos espaços privilegiados de sociabilidade do filme.

Várias cenas importantes do filme se passam no bar do Alípio. O pequeno

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comerciante é parte da comunidade operária. Nela os proletários, empregados e

desempregados, bebem, jogam e conversam. Talvez, o tempo de vida de alguns

operários seja ocupado no espaço de sociabilidade do bar do Alípio (mais do que

no lar, igreja ou outros locais de lazer). No final do filme, é Alipio que carrega o

caixão de Bráulio, ao lado de Otávio (o que demonstra a importância social

deste pequeno comerciante local para a comunidade operária).

A cena final do filme “Eles não usam Black-tie” é o enterro de Bráulio que

se confunde com a passeata dos operários em greve pelas ruas centrais da

cidade, sob o aplauso com papel picado da população local. Exclama-se: “A

greve continua! A greve continua! A greve continua”. Bráulio tornou-se um

símbolo de luta operária (no velório de Bráulio, Otávio chegara a dizer para o

filho Chiquinho: “O teu filho vai estudar o Bráulio na História do Brasil”. Nesta

cena, ao lado da mulher de Bráulio, Santini, rival politico de Bráulio, está

consternado). Na passeata, coroas de flores se confundem com faixas de

protesto e agitação. Na história imediata do Brasil, o assassinato de Bráulio

reproduz, no plano ficcional, o assassinato do operário Manuel Fiel Filho, morto

pelos orgãos de repressão da ditadura militar em 1976.

Manuel Fiel Filho (Quebrangulo, 7 de janeiro de 1927 — São Paulo, 17 de janeiro de 1976) foi um

operário metalúrgico brasileiro morto por tortura durante a ditadura militar. Foi preso em 16 de janeiro

de 1976 ao meio-dia fábrica onde trabalhava, a Metal Arte, por dois agentes do DOI-CODI/SP, que se

diziam funcionários da Prefeitura, sob a acusação de pertencer ao Partido Comunista Brasileiro. No dia

seguinte os órgãos de segurança emitiram nota oficial afirmando que Manuel havia se enforcado em sua

cela com as próprias meias, naquele mesmo dia 17, por volta das 13 horas. O corpo apresentava sinais

evidentes de torturas, em especial hematomas generalizados, principalmente na região da testa, pulsos e

pescoço. As circunstâncias da sua morte são idênticas as de Alexandre Vannucchi Leme e Vladimir

Herzog. As evidentes torturas feitas a ele dentro do II Exército de São Paulo provocaram o afastamento do

general Ednardo d'Ávila Melo, ocorrido três dias após a divulgação da sua morte. Em ação judicial movida

pela família, a União foi responsabilizada pela tortura e assassinato. O exame necroscópico, solicitado

pelo delegado de polícia Orlando D. Jerônimo e assinado pelos médicos legistas José Antônio de Melo e

José Henrique da Fonseca, confirma a versão oficial. Segundo relato de sua esposa, no dia seguinte de sua

prisão, um sábado, às 22 horas, um desconhecido, dirigindo um Dodge Dart, parou em frente à sua casa e,

diante de sua mulher, suas duas filhas e alguns parentes, disse secamente: "O Manuel suicidou-se. Aqui

estão suas roupas." Em seguida, jogou na calçada um saco de lixo azul com as roupas do operário morto.

Sua mulher então teria começado a gritar: Vocês o mataram! Vocês o mataram!. Em documento

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

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confidencial encontrado nos arquivos do antigo DOPS/SP seu crime seria receber o jornal Voz Operária. A

entrega de corpo a família só foi realizada com a condição de que os parentes o sepultassem o mais

rapidamente possível e que não se falasse nada sobre sua morte. No domingo, dia 18, às 8 horas da

manhã, ele foi sepultado por seus familiares no Cemitério da IV Parada, em São Paulo.

O diálogo final entre Tião e Otávio – ao invés da conversa matinal no dia

seguinte após a discussão na mesa de jantar – é um diálogo de ruptura. Tião

escolheu – por convicção - o outro lado. Aquele não é mais o território de Tião,

o fura-greve. Não pertence mais àquela casa. Otá vio está indignado, pois Tião

transgrediu um valor moral fundamental: a solidariedade de classe. A alcunha

de “fura-greve” diz respeito a uma escolha prática efetiva. Otávio conseguiu

perceber um detalhe crucial – Tião furou a greve por convicção. Diz ele: “Você

furou a greve fazendo comício”. Eis a diferença essencial entre Tião e Jesuino,

como salientamos acima. Diz Otávio: “Você não é um traidor por covardia; é um

traidor por convicção.” No final, Otávio diz assumir a culpa pelas atitudes de

Tião. Assim, o pai sofreria menos na medida em que poderia considerar que o

filho “não é um safado de nascença”. Tião insiste com o pai (e com a mãe): “Não

foi por covardia, não me arrependo”.

O último diálogo do filme é entre Tião e sua mãe. Trata-se de uma

despedida. Se o diálogo entre Tião e Otávio teve um caráter conclusivo, com a

declaração justificada da expulsão do filho, Romana apenas acata a decisão do

marido, concordando com seu teor moral, embora exclame: “Vocês estão todos

com a cabeça virada, meu filho”. Com a mãe, Tião insiste que não furou a greve

por covardia e que não se arrepende. Romana sabe que ele não é covarde, mas

sim um teimoso. Mas além de teimoso, Tião tem orgulho pessoal: “Eu tenho

minha profissão. Arranjo minha vida e venho buscar”. A mãe pergunta: “Você

acha que valeu a pena, Tião?”. Ele diz: “O que tá feito, tá feito”. Finalmente,

Romana observa: “Você vai ver que é melhor passar fome entre os amigos do

que passar fome entre os estranhos.” E o orgulho pessoal de Tião fala mais alto

– ele exclama: “Sabe, mãe! Ainda ganho essa parada!”.

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Curso de Extensão Universitária A Precariedade do Trabalho no Capitalismo Global

 

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Questionamentos

1. Em que situações históricas emerge este tipo de consciência social

bastante peculiar da modernidade do capital – a consciência de classe – e

quais as formas sociais que pode assumir?

2. Qual a distinção entre condição proletária e condição de proletariedade?

3. Qual o significado da morte de Bráulio no filme “Eles não usam black-

tie”?

Giovanni Alves

(2009)