66
Acende a luz, faz clic no botão

Biblioteca poesia ag

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Biblioteca poesia ag

Acende a luz, faz clic no botão

Page 2: Biblioteca poesia ag

CONTIENE MUSICA DE FONDO

Agora acende a lareira fazendo clic no botão

Page 3: Biblioteca poesia ag

Luiz de Camões

Sá de MirandaBernardim Ribeiro

Poesia Trovadoresca

Florbela Espanca

Fernando Pessoa

José Régio

Cesário Verde

para ler os poemas escolhe a estante do autor e faz clic

Bocage

Almeida Garret

Contemporâneos

Sair

Page 4: Biblioteca poesia ag

Luis de CamõesLisboa 1524-1580 Nasceu em 1524/5, em Lisboa ou em Coimbra,

filho de Simão Vaz de Camões e D. Ana de Sá e Macedo, familia nobre.

A sua formação académica decorreu em Coimbra, onde o seu tio D. Bento de Camões

era Chanceler da Universidade É apontado como sujeito folgado e briguento e

ganha a alcunha de Trinca-Fortes Em 1542 apaixona-se por Dona Caterina de Ataíde, dama da corte, imortalizada na sua

lírica sob o anagrama de Natércia As suas desavenças e amores dão origem ao seu desterro, em 1545 para Constancia do Ribatejo até embarcar em 1547 para Ceuta

onde perde o olho direito Volta a Lisboa e após uma rixa no Rossio, é

preso e desterrado em 1553 para a India. Esteve em Macau, onde numa gruta, refúgio, passa horas a escrever Os Lusíadas. Naufraga

em 1560 na foz do rio Mecong Em 1567 segue para Moçambique e em 1570 regressa a Lisboa, saindo em 1572 a 1ª edição

de Os Lusíadas. Em 10.6.1580 morre em Lisboa

Page 5: Biblioteca poesia ag

Bárbara Endechas a üa cativa com quem andava de

amores na Índia.

Aquela cativa, que me tem cativo, porque nela vivo, já não quer que viva.

Eu nunca vi rosa, em suaves molhos, que para meus olhos, fosse mais fermosa.

Nem no campo flores, nem no céu estrelas, me parecem belas, como os meus amores.

Rosto singular, olhos sossegados, pretos e cansados, mas não de matar.

Üa graça viva, que neles lhe mora, para ser senhora, de quem é cativa... Pretos os cabelos,Onde o povo vão

Perde opinião,Que os louros são belos.

..Esta é a cativa, que me tem cativo. E pois nela vivo, é força que viva.

Redondilha menor Menina dos olhos verdes

Eles verdes são,

E têm por usança Na cor, esperança, E nas obras não Vossa condição

Não é d' olhos verdes, Porque me não vedes.

Havia de ser,Por que possa vê-los,

Que uns olhos tão belosNão se hão-de esconder;

Mas fazeis-me crerQue já não são verdes,Porque me não vedes

Verdes não o sãoNo que alcanço deles; Verdes são aqueles Que esperança dão.

Se na condição Está serem verdes

Porque me não vedes?

Page 6: Biblioteca poesia ag

Vilancete de 7 sílabas

Descalça vai para a fonteLianor pela verdura;

Vai fermosa, e não segura

Leva na cabeça o pote O testo nas mãos de prata

Cinta de fina escarlata, Sainho de chamelote;

Traz a vasquinha de cote, Mais branca que a neve pura.

Vai fermosa e não segura.

Descobre a touca a garganta, Cabelos de ouro entrançado

Fita de cor de encarnado,Tão linda que o mundo espanta

Chove nela graça tanta Que dá graça à fermosura. Vai fermosa e não segura.

Redondilha de 5 silabas:

Verdes são os campos De cor de limão:

Assim são os olhos Do meu coração.

Campo,que te estendes Com verdura bela Ovelhas,que nela Vosso pasto tendes

De ervas vos mantendes Que traz o Verão

E eu das lembranças Do meu coração.

Gados que pasceis Com contentamentoVosso mantimento Não no entendereis

Isso que comeisNão são ervas, não

São graças dos olhosDo meu coração

Page 7: Biblioteca poesia ag

Soneto

Amor é fogo que arde sem se veré ferida que dói e não se sente

é um contentamento descontenteé dor que desatina sem doer

É um não querer mais que bem querer é andar solitário entre a gente

é nunca contentar-se de contente é cuidar que se ganha em se perder

É querer estar preso por vontadeé servir a quem vence, o vencedor é ter com quem nos mata lealdade

Mas como causar pode seu favor nos corações humanos amizade

se tão contrário a si é o mesmo amor

Soneto

Erros meus, má fortuna,amor ardente em minha perdição se conjuraram

os erros e a fortuna sobejaram que pera mim bastava o amor somente

Tudo passei; mas tenho tão presente A grande dor das cousas que passaram Que as magoadas iras me ensinaram A não querer já nunca ser contente

Errei todo o discurso de meus anos; Dei causa [a] que a Fortuna castigasse, As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos. Oh! quem tanto pudesse, que fartasse Este meu duro Génio de vinganças!

Page 8: Biblioteca poesia ag

Soneto

Alma minha gentil que te partiste. Tão cedo desta vida, descontente Repousa lá no Céu eternamente

E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo,onde subiste Memória desta vida se consente

Não te esqueças daquele amor ardenteQue já nos olhos meus tão puro viste

E se vires que pode merecer-te

Algu~a cousa a dor que me ficou Da mágoa, sem remédio, de perder-te

Roga a Deus, que teus anos encurtou, Que tão cedo de cá me leve a ver-te, Quão cedo de meus olhos te levou

Soneto

O dia em que nasci moura e pereça Não o queira jamais o tempo dar

Não torne mais ao Mundo, e, se tornar Eclipse nesse passo o Sol padeça.

A luz lhe falte, O Sol se [lhe] escureça, Mostre o Mundo sinais de se acabar,

Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar, A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes As lágrimas no rosto, a cor perdida Cuidem que o mundo já se destruiu

.Ó gente temerosa, não te espantes,

Que este dia deitou ao Mundo a vida Mais desgraçada que jamais se viu!

Page 9: Biblioteca poesia ag

SonetoAh, minha Dinamene, assi deixaste

quem não deixara nunca de querer-te!Ah, Ninfa minha, já não posso ver-te

tão asinha esta vida desprezaste!

Como já para sempre te apartaste de quem tão longe estava de perder-te?

Puderam estas ondas defender-teque não visses quem tanto magoaste?

Nem falar-te somente a dura morte me deixou, que tão cedo o negro manto

em teus olhos deitado consentiste!

Ó mar, ó Céu, ó minha escura sorte! Que pena sentirei, que valha tanto,

que ainda tenho por pouco o viver triste

Soneto

Mudam-se os tempos,mudam-se as vontades Muda-se o ser, muda-se a confiança

Todo o mundo é composto de mudança Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades Diferentes em tudo da esperança

Do mal ficam as mágoas na lembrança E do bem,se algum houve, as saudades

O tempo cobre o chão de verde manto Que já coberto foi de neve fria

E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia, Outra mudança faz de mor espanto:

Que não se muda já como soía.

Page 10: Biblioteca poesia ag

Soneto

Transforma-se o amador na cousa amada por virtude do muito imaginar

Não tenho logo mais que desejarPois em mim tenho a parte desejada

Se nela está minha alma transformada Que mais deseja o corpo de alcançar?

Em si sómente pode descansar Pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia, Que, como o acidente em seu sujeito, Assim co'a alma minha se conforma,

Está no pensamento como ideia; [E] o vivo e puro amor de que sou feito,

Como matéria simples busca a forma.

Soneto

Busque Amor novas artes, novo engenhoPera matar-me, e novas esquivanças,Que não pode tirar-me as esperanças,Que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!Vede que perigosas seguranças!

Que não temo contrastes nem mudanças,Andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, enquanto não pode haver desgostoOnde esperança falta, lá me escondeAmor um mal, que mata e não se vê,

Que dias há que na alma me tem postoUm não sei quê, que nasce não sei onde,Vem não sei como e dói não sei porquê.

Page 11: Biblioteca poesia ag

Soneto

Aquela triste e leda madrugadaCheia toda de mágoa e de piedade

Enquanto houver no mundo saudadeQuero que seja sempre celebrada

Ela só, quando amena e marchetada Saía, dando ao mundo claridade

Viu apartar-se dúa outra vontade Que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio Que de uns e de outros olhos derivadas Se acrescentaram em grande e largo rio.

Ela ouviu as palavras magoadas Que puderam tornar o fogo frio

E dar descanso às almas condenadas.

Soneto

Sete anos de pastor Jacó servia /Labão, pai de Raquel, semana bela

Mas não servia ao pai, servia a ela, Que a ela só por prêmio pretendia.

E os dias na esperança de um sò diaPassava, contentando-se com vê-la;

Porém o pai, usando de cautela Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos, Lhe fora assim negada a sua pastora,

Como se a não tivera merecida;

Começa de servir outros sete anos, Dizendo:- mais servira, se não fora Para do longo amor tão curta a vida.

Page 12: Biblioteca poesia ag

Os LusíadasCanto 1

Proposição As armas e os Barões assinaladosQue da Ocidental praia Lusitana

Por mares nunca de antes navegadosPassaram ainda além da Taprobana,

Em perigos e guerras esforçadosMais do que prometia a força humana

E entre gente remota edificaramNovo Reino, que tanto sublimara

-E também as memórias gloriosasDaqueles Reis que foram dilatandoA Fé, o Império, e as terras viciosas

De África e de Ásia andaram devastandoE aqueles que por obras valerosasSe vão da lei da Morte libertando,

Cantando espalharei por toda parte,Se a tanto me ajudar o engenho e arte

Canto 1 Proposição

Cessem do sábio Grego e do TroianoAs navegações grandes que fizeram;Cale-se de Alexandro e de TrajanoA fama das vitórias que tiveram;

Que eu canto o peito ilustre Lusitano,A quem Neptuno e Marte obedeceram.Cesse tudo o que a Musa antiga canta Que outro valor mais alto se alevanta

InvocaçãoE vós, Tágides minhas, pois criado

Tendes em mim um novo engenho ardente,Se sempre em verso humilde celebrado

Foi de mim vosso rio alegremente,Dai-me agora um som alto e sublimado,

Um estilo grandíloquo e corrente,Porque de vossas águas, Febo ordene

Que não tenham inveja às de Hipoerene.

Page 13: Biblioteca poesia ag

Os LusíadasCanto 1

Invocação Dai-me uma fúria grande e sonorosa,E não de agreste avena ou frauta ruda,

Mas de tuba canora e belicosa,Que o peito acende e a cor ao gesto muda Dai-me igual canto aos feitos da famosaGente vossa, que a Marte tanto ajuda;Que se espalhe e se cante no universo,

Se tão sublime preço cabe em versoDedicatória

E vós, ó bem nascida segurançaDa Lusitana antígua liberdade,

E não menos certíssima esperançaDe aumento da pequena Cristandade;Vós, ó novo temor da Maura lança,

Maravilha fatal da nossa idade,Dada ao mundo por Deus,que todo o mande

Para do mundo a Deus dar parte grande;

Canto 1 Dedicatória

Vós, tenro e novo ramo florescenteDe uma árvore de Cristo mais amadaQue nenhuma nascida no Ocidente,Cesárea ou Cristianíssima chamada;

(Vede-o no vosso escudo, que presenteVos amostra a vitória já passada,

Na qual vos deu por armas, e deixouAs que Ele para si na Cruz tomou)

Vós, poderoso Rei, cujo alto ImpérioO Sol, logo em nascendo, vê primeiro;Vê-o também no meio do Hemisfério,

E quando desce o deixa derradeiro;Vós, que esperamos jugo e vitupério

Do torpe Ismaelita cavaleiro,Do Turco oriental, e do Gentio,

Que inda bebe o licor do santo rio;

Page 14: Biblioteca poesia ag

.

Pois se a troco de Carlos, Rei de França,Ou de César, quereis igual memória,Vede o primeiro Afonso, cuja lançaEscura faz qualquer estranha glória;

E aquele que a seu Reino a segurançaDeixou com a grande e próspera vitória;

Outro Joane, invicto cavaleiro,O quarto e quinto Afonsos, e o terceiro..

Nem deixarão meus versos esquecidosAqueles que nos Reinos lá da AuroraFizeram, só por armas tão subidos,Vossa bandeira sempre vencedora:

Um Pacheco fortíssimo, e os temidosAlmeidas, por quem sempre o Tejo chora;

Albuquerque terríbil, Castro forte,E outros em quem poder não teve a morte .

Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,Fantásticas, fingidas, mentirosas,

Louvar os vossos, como nas estranhasMusas, de engrandecer-se desejosas:As verdadeiras vossas são tamanhas

Que excedem as sonhadas, fabulosas,Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro

E Orlando, inda que fora verdadeiro.

Por estes vos darei um Nuno fero, Que fez ao Rei o ao Reino tal serviço,

Um Egas, e um D. Fuas, que de Homero A cítara para eles só cobiço.

Pois pelos doze Pares dar-vos queroOs doze de Inglaterra, e o seu Magriço;Dou-vos também aquele ilustre Gama,

Que para si de Eneias toma a fama.

..

Canto 1Grandes Feitos dos Portugueses

Canto 1Grandes Feitos dos Portugueses

Page 15: Biblioteca poesia ag

Eu cantarei de amor tão docemente,Por uns termos em si tão concertados,

Que dois mil acidentes namoradosFaça sentir ao peito que não sente.

Farei que amor a todos avivente,Pintando mil segredos delicados,Brandas iras, suspiros magoados,Temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honestoDe vossa vista branda e rigorosa,

Contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém, pera cantar de vosso gestoA composição alta e milagrosa

Aqui falta saber, engenho e arte.

Perdigão perdeu a penaNão há mal que lhe não venha.

Perdigão que o pensamentoSubiu a um alto lugar,Perde a pena do voar,

Ganha a pena do tormento.Não tem no ar nem no ventoAsas com que se sustenha:

Não há mal que lhe não venha.

Quis voar a u~a alta torre,Mas achou-se desasado;E, vendo-se depenado,De puro penado morre.

Se a queixumes se socorre,Lança no fogo mais lenha:

Não há mal que lhe não venha.

Voltar à biblioteca

Soneto Redondilha maior

Page 16: Biblioteca poesia ag

Sá de Miranda (1481-1558)

Sá de Miranda

Com o grau de doutor em Direito na Universidade de Lisboa.

Em Itália (1521-26) contactou os poetas do Renascimento italiano

Introduz em Portugal o soneto e osversos decassilabos

--------------------------------------------

Bernardim Ribeiro

Prosador (Menina e Moça) e poeta renascentista,

Foi precursor do bucolismo e introduz a sextina na nossa Lingua

..

--------------------------------------

Bernardim Ribeiro (1482-1552)

Page 17: Biblioteca poesia ag

Quando eu, senhora, em vós os olhos ponho, e vejo o que não vi nunca, nem cri

que houvesse cá, recolhe-se a alma a sie vou tresvaliando, como em sonho.  

Isto passado, quando me desponho, e me quero afirmar se foi assi, pasmado e duvidoso do que vi,

m'espanto às vezes, outras m'avergonho.  

Que, tornando ante vós, senhora, tal, Quando m'era mister tant' outr' ajuda,de que me valerei, se alma não val?  

Esperando por ela que me acuda, e não me acode, e está cuidando em al,

afronta o coração, a língua é muda.

Sá de Miranda.

O sol é grande, caem co'a calma as aves, do tempo em tal sazão, que soe ser fria; esta água que d'alto cai acordar-me-ia do sono não, mas de cuidados graves.

 Ó cousas, todas vãs, todas mudaves, qual é tal coração qu'em vós confia? Passam os tempos, vai dia trás dia,

incertos muito mais que ao vento as naves.

 Eu vira já aqui sombras, vira flores, vi tantas águas, vi tanta verdura,

as aves todas cantavam d'amores.  

Tudo é seco e mudo; e, de mestura, também mudando-m'eu fiz doutras cores:

e tudo o mais renova, isto é sem cura!

Sá de Miranda

Page 18: Biblioteca poesia ag

Menina fermosa,que nos meus olhos andais,dizei porque mos quebrais.

Em vos vendo, vo-los dei:logo vos passastes i;

nunca mais olhos abri,nunca mais olhos çarrei.

Vós lhe sois regra, vós lei:não fazem menos nem maisdaquilo que lhes mandais.

Em pago desta verdade,que estranhais porque não se usa,quebrais-mos… A alma confusa

não sabe quebrar vontade.Menina, contra a idade,contra todos os sinais,

cruel sois cada vez mais.

Tomais vingança da féque sempre convosco tive,

ou de quê? da alma que vivepor vós, onde quer que esté?

Dizei, menina, porqu'é?Tam vossos olhos quebrais?

Não vo-los referto mais!

Sá de Miranda

Comigo me desavim,Vejo-me em grande perigo;

Não posso viver comigo,Não posso fugir de mim.

 Antes que este mal tivesse,

Da outra gente fugia.Agora já fugiria

De mim se de mim pudesse. 

Que cabo espero ou que fim,Deste cuidado que sigo,

Pois trago a mim comigo,Tamanho imigo de mim.

------------------------------------------------

Antre tremor e desejo,Vã espernça e vã dor,

Antre amor e desamor,Meu triste coração vejo.

.Nestes extremos cativo

Ando sem fazer mudança,E já vivi d'esperança

E agora vivo de choro vivo.Contra mi mesmo pelejo,Vem d'ua dor outra dor

E d'um desejo maiorNasce outro mor desejo.

Sá de Miranda

Page 19: Biblioteca poesia ag

.

Aquela fé tão clara e verdadeira,A vontade tão limpa e tão sem mágoa,Tantas vezes provada em viva fráguaDe fogo, i apurada, e sempre inteira;

.Aquela confiança, de maneira

Que encheu de fogo o peito, os olhos de água,Por que eu ledo passei por tanta mágoa,

Culpa primeira minha e derradeira,.

De que me aproveitou? Não de al por certoQue dum só nome tão leve e tão vão,Custoso ao rosto, tão custoso à vida.

.Dei de mim que falar ao longe e ao perto;

E já assi se consola a alma perdida,Se não achar piedade, ache perdão.

Sá de Miranda      

Dezarrezoado amor, dentro em meu peitotem guerra com a razão. Amor, que jazi já de muitos dias, manda e faztudo o que quer, a torto e a direito.

Não espera razões, tudo é despeito,tudo soberba e força, faz, desfaz,sem respeito nenhum, e quando em pazcuidais que sois, então tudo é desfeito.

Doutra parte a razão tempos espia,espia ocasiões de tarde em tarde,que ajunta o tempo: em fim vem o seu dia.

Então não tem lugar certo onde aguardeamor; trata treições, que não confianem dos seus. Que farei quando tudo arde?

Sá de Miranda

Page 20: Biblioteca poesia ag

Sextina Ontem pôs-se o sol, e a noute cobriu de sombra esta terra.

Agora é já outro dia,tudo torna, torna o sol;só foi a minha vontade,

para não tornar c’o tempo! 

Tôdalas cousas, per tempo,passam, como dia e noute;

ũa só, minha vontade,não, que a dor comigo a aterra;nela cuido em quanto há sol,

nela enquanto não há dia. 

Mal quero per um só diaa todo outro dia e tempo,

que a mim pôs-se-me o solonde eu só temia a noute;tenho a mim sôbre a terra,

debaxo minha vontade. 

Dentro na minha vontadenão há momento do diaque não seja tudo terra;

ora ponho a culpa ao tempo,ora a torno a pôr à noute:

no milhor pon-se-me o sol! 

Haver de ser tudo terraquanto há debaixo do sol

me descansa, porque o tempome vingará da vontade;

se não que antes dêste diahá-de passar tanta noute!

Bernardim Ribeiro

(da Écloga de Jano e Franco)

Dentro de meu pensamentohá tanta contrariedade.

que sento contra o que sentovontade e contra vontade.Estou em tanto desvairo.

que não me entendo comigo.Donde esperarei repairo?que vejo grande o perigoe muito mor o contrairo.

Quem me trouxe a esta terraalheia, onde guardada

me estava tamanha guerra.e a esperança levada?

Comigo me estou espantandocomo em tão pouco me dei;mas cuidando nisto estando.

os olhos com que outrem olheide mim se estavam vingando.”

Bernardim Ribeiro.

Voltar à biblioteca

Page 21: Biblioteca poesia ag

POESIA TROVADORESCA Séc. XII-XIII

. Poesia trovadoresca,

ou galaico-portuguesa,

Subdividia-se em 3 categorias: Cantigas de amigo, exclusivamente ibéricas

(uma mulher canta acerca do seu amigo, amor),

Cantigas de amor (um homem canta o seu amor)

Cantigas de escárnio e maldizer (o trovador diz mal de alguém numa alusão irónica velada, mais

tarde há um insulto directo)

Os Jograis épicos com suas Canções de Gesta: Em Portugal o ciclo épico sobre D.Afonso

Henriques traduzido em Crónicas dos séc XIV e XV

--- em Castela houvera o Cantar de Mio Cid c.1200

---em França, a Chanson de Roland no séc XI

Page 22: Biblioteca poesia ag

Cantiga de Amigo

"Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo!

ai Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo, se sabedes novas do meu amado!

ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo, aquel que mentiu do que pôs comigo!

ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado, aquel que mentiu do que mi há jurado!

ai Deus, e u é?“

autoria do rei D.Diniz

Nota:e u é? (e onde está?)

Cantiga de amigo

Ondas do mar de Vigo,se vistes meu amigo!

E ai Deus, se verrá cedo!

Ondas do mar levado,se vistes meu amado!

E ai Deus, se verrá cedo!

Se vistes meu amigo,o por que eu sospiro!

E ai Deus, se verrá cedo!

Se vistes meu amado,por que hei gran cuidado!E ai Deus, se verrá cedo!

Martin Codax

Page 23: Biblioteca poesia ag

Cantiga de Amigo

Madre velida, meu amigo vi,non lhi falei e con el me perdí:

e moir'[o] agora, querendo-lhi ben; non lhi falei, ca o tiv'en desdén;

moiro eu, madre, querendo-lhi ben. 

Se lh'eu fiz torto, lazerar-mi-o-ei con gran dereito, ca lhi non falei:

e moir'[o] agora, querendo-lhi ben; non lhi falei, ca o tiv'en desdén;

moiro eu, madre, querendo-lhi ben.

Madre velida, ide-lhi dizerque faça ben e me venha veer:

e moir'[o] agora, querendo-lhi ben; non lhi falei, ca o tiv'en desdén;

moiro eu, madre, querendo-lhi ben.

Airas Carpancho (jogral galego- séc. XIII)

Nota: velida (formosa) ; ca (porque); lazerar (lastimar)

Cantiga de amor

A dona que eu am'e tenho por Senhor amostrade-me-a Deus, se vos en prazer for,

se non dade-me-a morte.

A que tenh'eu por lume d'estes olhos meus e porque choran sempr’ amostrade-me-a Deus

se non dade-me-a morte.

Essa que Vós fezestes melhor parecer de quantas sei, a Deus, fazede-me-a veer,

se non dade-me-a morte.

A Deus, que me-a fizestes mais amar, mostrade-me-a algo possa con ela falar,

se non dade-me-a morte.

(de Bernal de Bonaval )

Page 24: Biblioteca poesia ag

Cantiga de amor

Quer'eu em maneira de provençalfazer agora un cantar d'amor,

e querrei muit'i loar mia senhora que prez nen fremusura non fal,nen bondade; e mais vos direi en:tanto a fez Deus comprida de ben

que mais que todas las do mundo val.

Ca mia senhor quiso Deus fazer tal,quando a faz, que a fez sabedorde todo ben e de mui gran valor,

e con todo est'é mui comunalali u deve; er deu-lhi bon sen,

e des i non lhi fez pouco de ben,quando non quis que lh'outra foss'igual.

Ca en mia senhor nunca Deus pôs mal,mais pôs i prez e beldad'e loore falar mui ben, e riir melhorque outra molher; des i é leal

muit', e por esto non sei oj'eu quenpossa compridamente no seu benfalar, ca non á, tra-lo seu ben, al.

El-Rei D. Dinis,

Cantiga de escárnio

"Ai dona fea! Foste-vos queixar Que vos nunca louv'en meu trobar

Mais ora quero fazer un cantar En que vos loarei toda via;

E vedes como vos quero loar: Dona fea, velha e sandia!

Ai dona fea! Se Deus mi pardon! E pois havedes tan gran coraçon

Que vos eu loe en esta razon, Vos quero já loar toda via; E vedes qual será a loaçon: Dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei En meu trobar, pero muito trobei; Mais ora já en bom cantar farei

En que vos loarei toda via; E direi-vos como vos loarei: Dona fea, velha e sandia!"

Pero Garcia Burgalês,

Voltar à biblioteca

Page 25: Biblioteca poesia ag

Florbela Espanca1894-1930

Florbela Espanca

Poetisa portuguesa.de nomeFlor Bela de Alma da Conceição Espanca,

nasceu em Vila Viçosa em 1894

Foi uma das primeiras mulheres em Portugal a frequentar o curso secundário, onde lia obras de Balzac, Dumas, Camilo Castelo Branco,

Guerra Junqueiro, Garrett.

Em 1919 saiu a sua primeira obra, Livro de Mágoas, um livro de sonetos.

Em Janeiro de 1923 é publicada a sua segunda coletânea de sonetos, Livro de Sóror Saudade

Em fins de1930 dá-se a publicação da sua obra-prima Charneca em Flor.

Morre a 8 de Dezembro de 1930 em Matozinhos por sobredose de barbitúricos

.

Page 26: Biblioteca poesia ag

Ser Poeta

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior Do que os homens!Morder como quem beija!

É ser mendigo e dar como quem seja Rei do Reino de Áquem e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor E não saber sequer que se deseja!

É ter cá dentro um astro que flameja, É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito! Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...

É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente... É seres alma, e sangue, e vida em mim

E dizê-lo cantando a toda a gente!.

Perdi os Meus Fantásticos Castelos

Perdi meus fantásticos castelos Como névoa distante que se esfuma...

Quis vencer, quis lutar, quis defendê-los: Quebrei as minhas lanças uma a uma!

Perdi minhas galeras entre os gelos Que se afundaram sobre um mar de bruma...

- Tantos escolhos! Quem podia vê-los? – Deitei-me ao mar e não salvei nenhuma!

Perdi a minha taça, o meu anel, A minha cota de aço, o meu corcel,

Perdi meu elmo de ouro e pedrarias...

Sobem-me aos lábios súplicas estranhas... Sobre o meu coração pesam montanhas...

Olho assombrada as minhas mãos vazias...

.

Page 27: Biblioteca poesia ag

Versos

Versos! Versos! Sei lá o que são versos... Pedaços de sorriso, branca espuma,

Gargalhadas de luz, cantos dispersos, Ou pétalas que caem uma a uma...

Versos!... Sei lá! Um verso é o teu olhar, Um verso é o teu sorriso e os de Dante

Eram o teu amor a soluçar Aos pés da sua estremecida amante!

Meus versos!... Sei eu lá também que são... Sei lá! Sei lá!... Meu pobre coração Partido em mil pedaços são talvez...

Versos! Versos! Sei lá o que são versos... Meus soluços de dor que andam dispersos

Por este grande amor em que não crês...

O Maior Bem

Este querer-te bem sem me quereres, Este sofrer por ti constantemente, Andar atrás de ti sem tu me veres

Faria piedade a toda a gente.

Mesmo a beijar-me a tua boca mente... Quantos sangrentos beijos de mulheres

Pousa na minha a tua boca ardente, E quanto engano nos seus vãos dizeres!...

Mas que me importa a mim que me não queiras

Se esta pena, esta dor, estas canseiras, Este mísero pungir, árduo e profundo,

Do teu frio desamor, dos teus desdéns, É, na vida, o mais alto dos meus bens?

É tudo quanto eu tenho neste mundo? -.” 

Page 28: Biblioteca poesia ag

Os versos que te fiz

Deixa dizer-te os lindos versos raros Que a minha boca tem pra te dizer! São talhados em mármore de Paros Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolência de veludos caros, São como sedas pálidas a arder...

Deixa dizer-te os lindos versos raros Que foram feitos pra te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda... Que a boca da mulher é sempre linda

Se dentro guarda um verso que não diz!

Amo-te tanto! E nunca te beijei... E nesse beijo, Amor, que eu te não dei Guardo os versos mais lindos que te fiz!

Se tu viesses ver-me...

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha, A essa hora dos mágicos cansaços,

Quando a noite de manso se avizinha, E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha A tua boca... o eco dos teus passos...

O teu riso de fonte... os teus abraços... Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca, Traça as linhas dulcíssimas dum beijo

E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca... Quando os olhos se me cerram de desejo...

E os meus braços se estendem para ti....

Voltar à biblioteca

Page 29: Biblioteca poesia ag

Fernando Pessoa(Lisboa 1888-1935

Fernando António Nogueira Pessoa

Nasceu em 1888 em Lisboa. Aos 6 anos foipara a África do Sul, em virtude do 2º casamento de

sua mãe com o cônsul em Durban. Aí foi educado, aprendeu o inglês, língua em que

escreveu poesia e prosa desde a adolescência.Regressou a Lisboa aos 17 anos.

Ao longo da vida trabalhou em firmas comerciais de Lisboa como correspondente de língua inglesa e

francesa.

Foi também empresário, editor, crítico literário, jornalista, tradutor, publicitário, ao mesmo tempo que

produzia a sua obra literária em verso e em prosa.

É considerado um dos maiores poetas da Língua Portuguesa e da Literatura Universal, muitas vezes

comparado com Luís de Camões. Como poeta, desdobrou-se em múltiplas

personalidades –os heterónimos, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Bernardo Soares

No seu percurso intelectual há sobretudo o relato de uma grande viagem de descoberta, crendo que todos os caminhos são verdadeiros e que o que é preciso é

navegar (no mundo das ideias) .

Page 30: Biblioteca poesia ag

. Todas as cartas de amor são Ridículas.

Não seriam cartas de amor se não fossem Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,

Como as outras, Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,

Têm de ser Ridículas.

Mas, afinal,

Só as criaturas que nunca escreveram Cartas de amor

É que são Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia

Sem dar por isso Cartas de amor

Ridículas.

A verdade é que hoje As minhas memórias

Dessas cartas de amor É que são Ridículas.

Álvaro de Campos

Poesias InéditasA NOVELA inacabada,

Que o meu sonho completou, Não era de rei ou fada

Mas era de quem não sou.

Para além do que dizia Dizia eu quem não era...

A primavera floria Sem que houvesse primavera.

Lenda do sonho que vivo,

Perdida por a salvar... Mas quem me arrancou o livro

Que eu quis ter sem acabar?--------------------------------------------

A Ciência   A CIÊNCIA, a ciência, a ciência...

Ah, como tudo é nulo e vão! A pobreza da inteligência Ante a riqueza da emoção!

Aquela mulher que trabalha Como uma santa em sacrifício,  Com tanto esforço dado a ralha!

Contra o pensar, que é o meu vício!

A ciência! Como é pobre e nada! Rico é o que alma dá e tem.

 

 

Page 31: Biblioteca poesia ag

CancioneiroAo longe, ao luar,

No rio uma vela, Serena a passar,

Que é que me revela ?

Não sei, mas meu ser Tornou-se-me estranho,

E eu sonho sem ver Os sonhos que tenho.

Que angústia me enlaça ? Que amor não se explica ?

É a vela que passa Na noite que fica.

----------------------------------------AMEAÇOU CHUVA.  E a negra

Nuvem passou sem mais... Todo o meu ser se alegra

Em alegrias iguais.

Nuvem que passa... Céu Que fica e nada diz... Vazio azul sem véu Sobre a terra feliz...

E a terra é verde, verde... Por que então minha vista Por meus sonhos se perde?

De que é que a minha alma dista?

Não Sei Quantas Almas Tenho

Não sei quantas almas tenho.Cada momento mudei.

Continuamente me estranho.Nunca me vi nem acabei.

De tanto ser, só tenho alma.Quem tem alma não tem calma.

Quem vê é só o que vê,Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,Torno-me eles e não eu.

Cada meu sonho ou desejoÉ do que nasce e não meu.

Sou minha própria paisagem;Assisto à minha passagem,

Diverso, móbil e só,Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendoComo páginas, meu ser.

O que sogue não prevendo,O que passou a esquecer.Noto à margem do que liO que julguei que senti.Releio e digo: “Fui eu?”

Deus sabe, porque o escreveu

Page 32: Biblioteca poesia ag

O poeta é um fingidor.Finge tão completamente

que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração.

¡Gato que brincas na rua Como se fosse na cama, Invejo a sorte que é tua

Porque nem sorte se chama.Bom servo das leis fatais

Que regem pedras e gentes, Que tens instintos gerais E sentes só o que sentes.És feliz porque és assim, Todo o nada que és é teu.

Eu vejo-me e estou sem mim, Conheço-me e não sou eu.

Dizem que finjo ou minto Tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto

Com a imaginação. Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo, O que me falha ou finda, É como que um terraço Sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio Do que não está ao pé, Livre do meu enleio, Sério do que não é.

Sentir? Sinta quem lê!

Somos do tamanho de nossos sonhos

Sim, sei bemQue nunca serei alguém.

Sei de sobraQue nunca terei uma obra.

Sei, enfim,Que nunca saberei de mim.

Sim, mas agora,Enquanto dura esta hora,

Este luar, estes ramos,Esta paz em que estamos,

Deixem-me crerO que nunca poderei ser.

Page 33: Biblioteca poesia ag

Cancioneiro

Ó sino da minha aldeia

Ó sino da minha aldeia dolente na tarde calma,

cada tua badalada soa dentro da minha alma...

E é tão lento o teu soar, tão como triste da vida,

que já a primeira pancada tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto, quando passo, sempre errante, és para mim como um sonho,

soas-me na alma distante.A cada pancada tua,

vibrante no céu aberto, sinto o passado mais longe,

sinto a saudade mais perto...

Cancioneiro

Dorme enquanto eu velo...Deixa-me sonhar...

Nada em mim é risonho.Quero-te para sonho,

Não para te amar. A tua carne calma

É fria em meu querer.Os meus desejos são cansaços.

Nem quero ter nos braçosMeu sonho do teu ser. Dorme, dorme. dorme,Vaga em teu sorrir...Sonho-te tão atento

Que o sonho é encantamentoE eu sonho sem sentir.

Page 34: Biblioteca poesia ag

Cancioneiro

Ao longe, ao luar,No rio uma velaSerena a passar,

Que é que me revela?

Não sei, mas meu serTornou-se-me estranho,

E eu sonho sem verOs sonhos que tenho

. Que angústia me enlaça?Que amor não se explica?

É a vela que passaNa noite que fica.

Não: não digas nada!Supor o que dirá

A tua boca veladaÉ ouvi-lo já

É ouvi-lo melhorDo que o dirias.

O que és não vem à florDas frases e dos dias. És melhor do que tu.Não digas nada: sê!Graça do corpo nuQue invisível se vê.

----------------------------------------O amor, quando se revela,

não se sabe revelar.Sabe bem olhar p'ra ela,mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sentenão sabe o que há de dizer.

Fala: parece que mente.Cala: parece esquecer.

Ah, mas se ela adivinhasse,se pudesse ouvir o olhar,e se um olhar lhe bastasse

pra saber que a estão a amar!Mas quem sente muito, cala;quem quer dizer quanto sente

fica sem alma nem fala,fica só, inteiramente!

Page 35: Biblioteca poesia ag

Cancioneiro

Entre o sono e sonho,Entre mim e o que em mimÉ o quem eu me suponhoCorre um rio sem fim.

Passou por outras margens,Diversas mais além,

Naquelas várias viagensQue todo o rio tem.

Chegou onde hoje habitoA casa que hoje sou.

Passa, se eu me medito;Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre

No que me liga a mimDorme onde o rio corre -

Esse rio sem fim.

CancioneiroTenho tanto sentimento

Que é freqüente persuadir-meDe que sou sentimental,

Mas reconheço, ao medir-me,Que tudo isso é pensamento,

Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,Uma vida que é vivida

E outra vida que é pensada,E a única vida que temos

É essa que é divididaEntre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeiraE qual errada, ninguém

Nos saberá explicar;E vivemos de maneira

Que a vida que a gente temÉ a que tem que pensar.

..

Page 36: Biblioteca poesia ag

Cancioneiro

Grandes mistérios habitamO limiar do meu ser,

O limiar onde hesitamGrandes pássaros que fitam

Meu transpor tardo de os ver. São aves cheias de abismo,

Como nos sonhos as há.Hesito se sondo e cismo,

E à minha alma é cataclismoO limiar onde está.

Então desperto do sonhoE sou alegre da luz,

Inda que em dia tristonho;Porque o limiar é medonhoE todo passo é uma cruz.

LiberdadeAi que prazer

não cumprir um dever.Ter um livro para ler

e não o fazer!Ler é maçada,estudar é nada.

O sol doira sem literatura.O rio corre bem ou mal,

sem edição original.E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal

como tem tempo, não tem pressa... Livros são papéis pintados com tinta.

Estudar é uma coisa em que está indistintaA distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto melhor é quando há bruma.Esperar por D. Sebastião,

Quer venha ou não! Grande é a poesia, a bondade e as danças...Mas o melhor do mundo são as crianças,Flores, música, o luar, e o sol que peca

Só quando, em vez de criar, seca. E mais do que isto

É Jesus Cristo,Que não sabia nada de finanças,

Nem consta que tivesse biblioteca...

Page 37: Biblioteca poesia ag

Não sei quantas almas tenho.Cada momento mudei.

Continuamente me estranho.Nunca me vi nem achei.

De tanto ser, só tenho alma.Quem tem alma não tem calma.

Quem vê é só o que vê,Quem sente não é quem é

Atento ao que eu sou e vejo,Torno-me eles e não eu.

Cada meu sonho ou desejoÉ do que nasce e não meu.

Sou minha própria paisagem,Assisto à minha passagem,

Diverso, móbil e só,Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendoComo páginas, meu ser.O que segue prevendo,

O que passou a esquecer.Noto à margem do que liO que julguei que senti.Releio e digo: "Fui eu"?

Deus sabe, porque o escreveu.

Eu amo tudo o que foi

Tudo o que já não éA dor que já não me dói

A antiga e errônea féO ontem que a dor deixou

O que deixou alegriaSó porque foi, e voouE hoje é já outro dia.

--- * ---

Hoje de manhã saí muito cedo, Por ter acordado ainda mais cedo E não ter nada que quisesse fazer...

Não sabia que caminho tomar Mas o vento soprava forte,

varria para um lado, E segui o caminho

para onde o vento me soprava nas costas. Assim tem sido sempre a minha vida, e

Assim quero que possa ser sempre – Vou onde o vento me leva

e não me Sinto pensar.

Alberto Caeiro

Page 38: Biblioteca poesia ag

Mensagem.

1ª PARTE – BRASÃO (19 poemas)Pessoa, percorre as peças e figuras de um brasão real do séc XV, associando a cada,

uma personalidade da nossa história.

2ª PARTE – MAR PORTUGUÊSAborda a Idade das Descobertas

3ª PARTE – O ENCOBERTO

Trata do advento do Quinto Império do Mundo, que será liderado por um português - O Encoberto, o Rei ou

D.Sebastião, como é indistintamente chamado.

Mensagem.2ª Parte

I-O Infante

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. Deus quis que a terra fosse toda uma, Que o mar unisse, já não separasse.

Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente, Clareou, correndo, até ao fim do mundo,

E viu-se a terra inteira, de repente, Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português. Do mar e nós em ti nos deu sinal.

Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. Senhor, falta cumprir-se Portugal!

Page 39: Biblioteca poesia ag

Mensagem.2ª Parte:

X-Mar Português

Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu.

Mensagem.3ª Parte

O Quinto Império

Triste de quem vive em casa, Contente com o seu lar,

Sem que um sonho, no erguer de asa, Faça até mais rubra a brasa,

Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!Vive porque a vida dura.

Nada na alma lhe diz Mais que a lição da raíz Ter por vida sepultura

Grécia, Roma, Cristandade,Europa- os quatro se vãoPara onde vae toda edade.Quem vem viver a verdade

Que morreu Dom Sebastião?

.

. Voltar à biblioteca

Page 40: Biblioteca poesia ag

José RégioVila do Conde (1901-1969)

José Maria dos Reis Pereira

Poeta, com o pseudónimo José Régio.

Nascido em Vila do Conde, formou-se em Coimbra em Filologia Românica.

Viveu grande parte da sua vida na cidade de Portalegre, onde lecionou no Liceu

local, Português e Francês de 1928 a 1967.

Em 1927, com Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões, fundou a revista Presença, publicada durante 13 anos

É considerado um dos grandes criadores da moderna literatura portuguesa.

Refletiu na sua obra problemas relativos ao conflito entre Deus e o Homem,

o indivíduo e a sociedade

Hoje, as suas casas em Vila do Conde e em Portalegre são casas-museu.

Page 41: Biblioteca poesia ag

CÂNTICO NEGRO"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces

Estendendo-me os braços, e segurosDe que seria bom que eu os ouvisseQuando me dizem: "vem por aqui!"

Eu olho-os com olhos lassos, (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,E nunca vou por ali...

  A minha glória é esta:Criar desumanidade!

Não acompanhar ninguém.- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre à minha mãe 

 Não, não vou por aí! Só vou por ondeMe levam meus próprios passos... 

 Se ao que busco saber nenhum de vós respondePor que me repetis: "vem por aqui!"?

  Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí... 

 Se vim ao mundo, foiSó para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!O mais que faço não vale nada.

 

.!

CÂNTICO NEGRO (continuação) Como, pois sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas e coragemPara eu derrubar os meus obstáculos?...

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,Amo os abismos, as torrentes, os desertos… 

 Ide! Tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,Tendes pátria, tendes tectos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...Eu tenho a minha Loucura !

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, que nunca principio nem acabo,Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

    Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

Ninguém me peça definições!Ninguém me diga: "vem por aqui"!

A minha vida é um vendaval que se soltou.É uma onda que se alevantou.

É um átomo a mais que se animou...Não sei por onde vou,Não sei para onde vou

-Sei que não vou por aí!

Page 42: Biblioteca poesia ag

FADO PORTUGUÊS

O fado nasceu num diaEm que o vento mal buliaE o céu o mar prolongava,Na amurada dum veleiro,

No peito de um marinheiroQue estando triste, cantava.

(- Saudades da terra firme,Da terra onde o mar acabe,Da casinha, e das mulheres,Guitarra, vem assistir-me,

Que a gente é bruto e não sabe,Expressa-as tu, se souberes...)

Por esse mar além fora,A guitarra, dim... dom, chora,

Tem pausas, ais e soluços.E tão bem faz isso à gente,Que o triste bruto valente

Chora sobre ela de bruços!

(- Mãe, adeus! Adeus, Maria!Guarda bem no teu sentidoQue aqui te faço uma juraQue ou te levo à sacristia,

Ou foi Deus que foi servidoDar-me no mar sepultura!).

  

 

FADO PORTUGUÊS (continuação)

Por mar além, chão que treme,O dim-dom da corda freme

De espanto, angústia, incerteza;Mas reluz no olhar do triste

Não sei que alto apelo em risteContra essa humana fraqueza...

(- Que terra é esta..., este marQue só acaba nos céus,

Ou nem lá tem sua fim?...Ou hei-de-o eu acabar;

Ou hei-de, querendo Deus!,Ou ele acabar a mim!) .

Casada à trémula corda,Sobe a voz trémula..., acorda

Tristezas do peito inteiro,E as sereias que enlevadasSe agarram às amuradasDo frágil barco veleiro.

(- Ai que lindeza tamanha,Meu chão, meu monte, meu vale,De folhas, flores, frutos de ouro!

Vê se vês terras de Espanha,Areias de Portugal,

Olhar ceguinho de choro...)

.

Page 43: Biblioteca poesia ag

FADO PORTUGUÊS (contª)

Deitando o olhar às lonjuras,Só vê funduras, alturas

Das águas, dos céus, da brumaE as rijas pomas redondas,De bico a boiar nas ondas,Das sereias cor de espuma.

(- Sei eu, sequer, porque venho,Deixando a jeira de chão

Que ao menos me não fugia,Atrás de não sei que tenho

Tão dentro do coraçãoQue inté julguei que existia...?)

E à voz que sobe a tremer,Morre lá longe..., e ao morrer,Sobe outra vez, mais se aferra,

Que etéreo coro respondeDe vozes que chegam de ondeNão seja nem mar nem terra!

(- Quem canta com voz tão bentaQue ou são-nos anjos nos céus

Ou é demónio a atentar?Se é demónio, não me atenta,

Que a minh´alma é só de Deus,O corpo, dou-o eu ao mar...)

FADO PORTUGUÊS (contª)

Na boca do marinheiroDo frágil barco veleiro,

Morrendo, a canção magoadaDiz o pungir dos desejos

Do lábio a queimar de beijosQue beija o ar, e mais nada.

(- Mãe, adeus! Adeus, Maria!Guarda bem no teu sentidoQue aqui te faço uma juraQue ou te levo à sacristia,

Ou foi Deus que foi servidoDar-me no mar sepultura!)

Sob o alvor da lua cheia,Naquela noite, a sereia

Cujo seio mais se enristaDa aurora até ao serenoBeijou o corpo moreno

Do moço nauta fadista...

(- Que terra é esta..., este marQue só acaba nos céus

Ou nem lá tem sua fim?...Ou hei-de-o eu acabar;

Ou hei-de, querendo Deus!,Ou ele acabar a mim!)

Page 44: Biblioteca poesia ag

FADO PORTUGUÊS (contª)

Nas vias lácteas faiscantesQue esmigalhado em diamantes

O luar no mar espraia,Um dim-dom..., dim-dom tremente,

Mais doces queixas de gente,Vão ter a uma certa praia.

(- Ai que lindeza tamanha,Meu chão, meu monte, meu vale,De folhas, flores, frutos de ouro!

Vê se vês terras de Espanha,Areias de Portugal,

Olhar ceguinho de choro...)

E as mães de filhos ausentesAcordam batendo os dentes,

Torcendo as mãos, e carpindo,Sabendo todas que é a morte

Que chega daquela sorte,No luar funéreo e lindo...

Ora eis que embora, outro dia,Quando o vento nem buliaE o céu o mar prolongava,

À proa doutro veleiro,Velava outro marinheiro

Que estava triste e cantava.

SABEDORIA

Desde que tudo me cansa, Comecei eu a viver.

Comecei a viver sem esperança... E venha a morte quando

Deus quiser.

Dantes, ou muito ou pouco, Sempre esperara:

Às vezes, tanto, que o meu sonho louco Voava das estrelas à mais rara;

Outras, tão pouco, Que ninguém mais com tal se conformara.

Hoje, é que nada espero. Para quê, esperar?

Sei que já nada é meu senão se o não tiver; Se quero, é só enquanto apenas quero;

Só de longe, e secreto, é que inda posso amar... E venha a morte quando Deus quiser.

Mas, com isto, que têm as estrelas? Continuam brilhando, altas e belas.

Voltar à biblioteca

Page 45: Biblioteca poesia ag

Cesário Verde

Natural de Caneças, Loures, oriundo de uma família burguesa abastada. O pai era lavrador e

comerciante (com uma loja de ferragens na baixa lisboeta).

Por essas duas actividades práticas, se repartia a vida do poeta. e paralelamente, ia alimentando o

seu gosto pela leitura e pela criação literária, embora longe dos meios literários oficiais .

A partir de 1875 produziu alguns dos seus melhores poemas: «Num Bairro Moderno» (1877),

«Em Petiz» (1878) e «O Sentimento dum Ocidental» (1880). Este último foi escrito por

ocasião do 3º centenário da morte de Camões e é, ainda hoje, um dos textos mais conhecidos do poeta

Em 1884, no poema «Nós», a cidade e o campo surgem como tema principal neste longo poema

narrativo autobiográfico

Formado dentro dos moldes do realismo literário, Cesário afirmou-se pela sua oposição ao lirismo

tradicional. Deteve-se em deambulações pela cidade ou pelo campo, através de processos impressionistas, de grande sugestividade .

Cesário Verde1855-86

Page 46: Biblioteca poesia ag

Num Bairro Moderno Dez horas da manhã; os transparentes

Matizam uma casa apalaçada; Pelos jardins estancam-se as nascentes, E fere a vista, com brancuras quentes,

A larga rua macadamizada.

Rez-de-chaussée repousam sossegados, Abriram-se, nalguns, as persianas,

E dum ou doutro, em quartos estucados, Ou entre a rama do papéis pintados,

Reluzem, num almoço, as porcelanas.

Como é saudável ter o seu conchego, E a sua vida fácil! Eu descia,

Sem muita pressa, para o meu emprego, Aonde agora quase sempre chego Com as tonturas duma apoplexia.

E rota, pequenina, azafamada, Notei de costas uma rapariga,

Que no xadrez marmóreo duma escada, Como um retalho da horta aglomerada

Pousara, ajoelhando, a sua giga.

E eu, apesar do sol, examinei-a. Pôs-se de pé, ressoam-lhe os tamancos; E abre-se-lhe o algodão azul da meia,

Se ela se curva, esguelhada, feia, E pendurando os seus bracinhos brancos.

Do patamar responde-lhe um criado: "Se te convém, despacha; não converses. Eu não dou mais." È muito descansado,

Atira um cobre lívido, oxidado, Que vem bater nas faces duns alperces.

Subitamente - que visão de artista! - Se eu transformasse os simples vegetais,

À luz do Sol, o intenso colorista, Num ser humano que se mova e exista Cheio de belas proporções carnais?!

Bóiam aromas, fumos de cozinha; Com o cabaz às costas, e vergando, Sobem padeiros, claros de farinha;

E às portas, uma ou outra campainha Toca, frenética, de vez em quando.

E eu recompunha, por anatomia, Um novo corpo orgânico, ao bocados. Achava os tons e as formas. Descobria

Uma cabeça numa melancia, E nuns repolhos seios injetados.

As azeitonas, que nos dão o azeite, Negras e unidas, entre verdes folhos, São tranças dum cabelo que se ajeite;

E os nabos - ossos nus, da cor do leite, E os cachos de uvas - os rosários de olhos.

Page 47: Biblioteca poesia ag

Heroísmos

Eu temo muito o mar, o mar enorme, Solene, enraivecido, turbulento,

Erguido em vagalhões, rugindo ao vento; O mar sublime, o mar que nunca dorme.

Eu temo o largo mar, rebelde, informe, De vítimas famélico, sedento,

E creio ouvir em cada seu lamento Os ruídos dum túmulo disforme.

Contudo, num barquinho transparente, No seu dorso feroz vou blasonar,

Tufada a vela e n'água quase assente,

E ouvindo muito ao perto o seu bramar, Eu rindo, sem cuidados, simplesmente, Escarro, com desdém, no grande mar!

.

Eu e Ela

Cobertos de folhagem, na verdura, O teu braço ao redor do meu pescoço,

O teu fato sem ter um só destroço, O meu braço apertando-te a cintura;

Num mimoso jardim, ó pomba mansa, Sobre um banco de mármore assentados. Na sombra dos arbustos, que abraçados,

Beijarão meigamente a tua trança.

Nós havemos de estar ambos unidos, Sem gozos sensuais, sem más idéias,

Esquecendo para sempre as nossas ceias, E a loucura dos vinhos atrevidos.

Nós teremos então sobre os joelhos Um livro que nos diga muitas cousas

Dos mistérios que estão para além das lousas, Onde havemos de entrar antes de velhos.

Outras vezes buscando distração, Leremos bons romances galhofeiros,

Gozaremos assim dias inteiro, Formando unicamente um coração.

.

Page 48: Biblioteca poesia ag

Em Petiz - De Tarde

Mais morta do que viva, a minha companheiraNem força teve em si para soltar um grito;

E eu, nesse tempo, um destro e bravo rapazito,Como um homenzarrão servi-lhe de barreira!

Em meio de arvoredo, azenhas e ruínas,Pulavam para a fonte as bezerrinhas brancas;

E, tetas a abanar, as mães, de largas ancas,Desciam mais atrás, malhadas e turinas.

Do seio do lugar - casitas com postigos -Vem-nos o leite. Mas batizam-no primeiro.Leva-o, de madrugada, em bilhas, o leiteiro,Cujo pregão vos tira ao vosso sono, amigos!

Nós dávamos, os dois, um giro pelo vale:Várzeas, povoações, pegos, silêncios vastos!E os fartos animais, ao recolher dos pastos,

Roçavam pelo teu "costume de percale".

Já não receias tu essa vaquita preta,Que eu seguirei, prendi por um chavelho? Juro

Que estavas a tremer, cosida com o muro,Ombros em pé, medrosa, e fina, de luneta!

.

Em Petiz – Irmãozinhos

Pois eu, que no deserto dos caminhos,Por ti me expunha imenso, contra as vacas;Eu, que apartava as mansas das velhacas,

Fugia com terror dos pobrezinhos!Vejo-os no pátio, ainda! Ainda os ouço!Os velhos, que nos rezam padre-nossos;

Os mandriões que rosnam, altos, grossos;E os cegos que se apóiam sobre o moço.

Ah! Os ceguinhos com a cor dos barros,Os que a poeira no suor mascarra,Chegam das feiras a tocar guitarra,

Rolam os olhos como dois escarros!E os pobres metem medo! Os de marmita,

Para forrar, por ano, alguns patacos,Entrapam-se nas mantas com buracos,Choramingando, a voz rachada, aflita.

Outros pedincham pelas cinco chagas;E no poial, tirando as ligaduras,

Mostram as pernas pútridas, maduras,Com que se arrastam pelas azinhagas!Querem viver! E picam-se nos cardos;

Correm as vilas; sobem os outeiros;E às horas de calor, nos esterqueiros,De roda deles zumbem os moscardos.

Aos sábados, os monstros, que eu lamento,Batiam ao portão com seus cajados;E um aleijado com os pés quadrados,

Pedia-nos de cima de um jumento.

Page 49: Biblioteca poesia ag

O SENTIMENTO DE UM OCIDENTALAVÉ-MARIAS

Nas nossas ruas, ao anoitecer,Há tal soturnidade, há tal melancolia,

Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresiaDespertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;E os edifícios, com as chaminés, e a turbaToldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!Ocorrem-me em revista, exposições, países:

Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,As edificações somente emadeiradas:

Como morcegos, ao cair das badaladas,Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos,

Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado

Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado! Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

O SENTIMENTO DE UM OCIDENTALAVÉE-MARIAS (continuação)

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!De um couraçado inglês vogam os escaleres;

E em terra num tinido de louças e talheresFlamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;Um trôpego arlequim braceja numas andas;Os querubins do lar flutuam nas varandas;

Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!Seus troncos varonis recordam-me pilastras;E algumas, à cabeça, embalam nas canastras

Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;

E apinham-se num bairro aonde miam gatas,E o peixe podre gera os focos de infecção!

Page 50: Biblioteca poesia ag

DE TARDE

Naquele pique-nique de burguesas,Houve uma coisa simplesmente bela,

E que, sem ter história nem grandezas,Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,Foste colher, sem imposturas tolas,A um granzoal azul de grão-de-bico

Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,Nós acampámos, inda o Sol se via;

E houve talhadas de melão, damascos,E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da rendaDos teus dois seios como duas rolas,Era o supremo encanto da merenda

O ramalhete rubro das papoulas!

VAIDOSA

Dizem que tu és pura como um lírioE mais fria e insensível que o granito,

E que eu que passo aí por favoritoVivo louco de dor e de martírio.

Contam que tens um modo altivo e sério,Que és muito desdenhosa e presumida,

E que o maior prazer da tua vida,Seria acompanhar-me ao cemitério.

Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,A déspota, a fatal, o figurino,

E afirmam que és um molde alabastrino,E não tens coração como as estátuas.

E narram o cruel martirológioDos que são teus, ó corpo sem defeito,E julgam que é monótono o teu peitoComo o bater cadente dum relógio.

Porém eu sei que tu, que como um ópioMe matas, me desvairas e adormeces,És tão loira e doirada como as messes,

E possuis muito amor... muito amor próprio..

Voltar à biblioteca

Page 51: Biblioteca poesia ag

Bocage(Manuel Maria Barbosa du)

BocagePoeta, possivelmente, o maior representante do arcadismo lusitano (aderiu à Nova Arcádia em 1790 com o pseudónimo de Elmano Sadino).

. Estudou os clássicos e as mitologias grega e

latina, estudou francês e latim .Fez estudos na Escola da Marinha Real, sendo

nomeado guarda-marinha por D. Maria I..Em 1786, foi como oficial de marinha para a

Índia, tendo desertado em 1789 A década seguinte é a da sua maior produção

literária e também o período de maior boémia e vida de aventuras.

Foi preso 1 ano por ordem do Intendente Pina Manique por ser “desordenado nos costumes”

Bocage cultivou diversos géneros poéticos, como o soneto, a sátira, a ode, a canção, o

epigrama e a alegoria, seu talento evidenciou-se de forma bem diferenciada em cada um

deles

Esperança Amorosa Grato silêncio, trémulo arvoredo, Sombra propícia aos crimes e aos amores, Hoje serei feliz! --- Longe, temores, Longe, fantasmas, ilusões do medo. Sabei, amigos Zéfiros, que cedo Entre os braços de Nise, entre estas flores, Furtivas glórias, tácitos favores, Hei-de enfim possuir: porém segredo! Nas asas frouxos ais, brandos queixumes Não leveis, não façais isto patente, Quem nem quero que o saiba o pai dos numes: Cale-se o caso a Jove omnipotente, Porque, se ele o souber, terá ciúmes, Vibrará contra mim seu raio ardente.

Setúbal, 1765 – Lisboa, 1805

Page 52: Biblioteca poesia ag

Já Bocage não sou!... À cova escura

Já Bocage não sou!... À cova escura Meu estro vai parar desfeito em vento... Eu aos céus ultrajei! O meu tormento Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura Em prosa e verso fez meu louco intento.

Musa!... Tivera algum merecimento, Se um raio da razão seguisse, pura!

Eu me arrependo; a língua quase fria Brade em alto pregão à mocidade, Que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino fui... A santidade Manchei!... Oh! Se me creste, gente ímpia,

Rasga meus versos, crê na eternidade!.

Proposição das rimas do poeta

Incultas produções da mocidade Exponho a vossos olhos, ó leitores:

Vede-as com mágoa, vede-as com piedade, Que elas buscam piedade, e não louvores:

Ponderai da Fortuna a variedade Nos meus suspiros, lágrimas e amores;

Notai dos males seus a imensidade, A curta duração de seus favores:

E se entre versos mil de sentimento Encontrardes alguns cuja aparência

Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência Escritos pela mão do Fingimento,

Cantados pela voz da Dependência.!

Page 53: Biblioteca poesia ag

O autor aos seus versos

Chorosos versos meus desentoados, Sem arte, sem beleza e sem brandura,

Urdidos pela mão da Desventura, Pela baça Tristeza envenenados:

Vede a luz, não busqueis, desesperados, No mudo esquecimento a sepultura; Se os ditosos vos lerem sem ternura,

Ler-vos-ão com ternura os desgraçados:

Não vos inspire, ó versos, cobardia Da sátira mordaz o furor louco,

Da maldizente voz e tirania:

Desculpa tendes, se valeis tão pouco, Que não pode cantar com melodia

Um peito de gemer cansado e rouco.

A Camões, comparando com os dele os seus próprios infortúnios

Camões, grande Camões, quão semelhante Acho teu fado ao meu quando os cotejo!

Igual causa nos fez perdendo o Tejo Arrostar co’o sacrílego gigante:

Como tu, junto ao Ganges sussurrante Da penúria cruel no horror me vejo;

Como tu, gostos vãos, que em vão desejo, Também carpindo estou, saudoso amante:

Ludíbrio, como tu, da sorte dura, Meu fim demando ao Céu, pela certeza

De que só terei paz na sepultura:

Modelo meu tu és... Mas, ó tristeza!... Se te imito nos transes da ventura, Não te imito nos dons da natureza.

Page 54: Biblioteca poesia ag

Retrato próprio

Magro, de olhos azuis, carão moreno, Bem servido de pés, meão na altura, Triste da facha, o mesmo de figura, Nariz alto no meio, e não pequeno.

Incapaz de assistir num só terreno, Mais propenso ao furor do que à ternura; Bebendo em níveas mãos por taça escura

De zelos infernais letal veneno:

Devoto incensador de mil deidades (Digo, de moças mil) num só momento, E somente no altar amando os frades:

Eis Bocage, em quem luz algum talento; Saíram dele mesmo estas verdades

Num dia em que se achou mais pachorrento.

Quantas vezes, Amor, me tens ferido?

Quantas vezes, Amor, me tens ferido? Quantas vezes, Razão, me tens curado? Quão fácil de um estado a outro estado

O mortal sem querer é conduzido!

Tal, que em grau venerando, alto e luzido, Como que até regia a mão do fado,

Onde o Sol, bem de todos, lhe é vedado, Depois com ferros vis se vê cingido:

Para que o nosso orgulho as asas corte, Que variedade inclui esta medida,

Este intervalo da existência à morte!

Travam-se gosto, e dor; sossego e lida; É lei da natureza, é lei da sorte,

Que seja o mal e o bem matiz da vida.

Page 55: Biblioteca poesia ag

A lamentável catástrofe de D. Inês de Castro

Da triste, bela Inês, inda os clamores Andas, Eco chorosa, repetindo;

Inda aos piedosos Céus andas pedindo Justiça contra os ímpios matadores;

Ouvem-se inda na Fonte dos Amores De quando em quando as náiades carpindo;

E o Mondego, no caso reflectindo, Rompe irado a barreira, alaga as flores:

Inda altos hinos o universo entoa A Pedro, que da morte formosura

Convosco, Amores, ao sepulcro voa:

Milagre da beleza e da ternura! Abre, desce, olha, geme, abraça e c'roa

A malfadada Inês na sepultura.!

Esperança Amorosa

Grato silêncio, trémulo arvoredo,Sombra propícia aos crimes e aos amores,

Hoje serei feliz! --- Longe, temores,Longe, fantasmas, ilusões do medo.

Sabei, amigos Zéfiros, que cedoEntre os braços de Nise, entre estas flores,

Furtivas glórias, tácitos favores,Hei-de enfim possuir: porém segredo!

Nas asas frouxos ais, brandos queixumesNão leveis, não façais isto patente,

Quem nem quero que o saiba o pai dos numes:

Cale-se o caso a Jove omnipotente,Porque, se ele o souber, terá ciúmes,Vibrará contra mim seu raio ardente..

Voltar à biblioteca

Page 56: Biblioteca poesia ag

Almeida Garrett1799 Porto - 1854 Lisboa

João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett mais tarde 1.º Visconde de Almeida

Garrett, foi um escritor e dramaturgo, uma das figuras

maiores do romantismo português .

Participou na revolução liberal em 1820, esteve exilado em Inglaterra em 1823, onde tomou

contacto com o movimento romântico inglês.Tomou parte no Desembarque dos Liberais no

Mindelo e Cerco do Porto em 1832-33, exercendo depois cargos políticos

Em 1838 publica Um Auto de Gil Vicente, em 1841 O Alfageme de Santarém, em 1843 o

drama Frei Luis de Sousa, em 1845 os romances Arco de Santana e Viagens na minha Terra

Nos últimos 10 anos, criou as suas melhores obras poéticas, “Flores sem fruto” (1845) e

“Folhas Caídas” (1853).

Faleceu de cancro em 1854. em Lisboa.

Page 57: Biblioteca poesia ag

Este inferno de amar

Este inferno de amar - como eu amo!Quem mo pôs aqui n'alma... quem foi?

Esta chama que alenta e consome,Que é a vida - e que a vida destrói -

Como é que se veio a atear,Quando - ai quando se há-de ela apagar?

 Eu não sei, não me lembra: o passado,

A outra vida que d'antes viviEra um sonho talvez... - foi um sonho -

Em que paz tam serena a dormi!Oh! que doce era aquele sonhar...

Quem me veio, ai de mim! despertar? 

Só me lembra que um dia formosoEu passei... dava o sol tanta luz!

E os meus olhos, que vagos giravam,Em seus olhos ardentes os pus.

Que fez ela? eu que fiz? - Não no sei;Mas nessa hora a viver comecei

Almeida Garret

.

  Barca bela

Pescador da barca bela,Onde vais pescar com ela.

Que é tão bela, Oh pescador?

 Não vês que a última estrela

No céu nublado se vela? Colhe a vela, Oh pescador!

 Deita o lanço com cautela,Que a sereia canta bela...

Mas cautela, Oh pescador!

 Não se enrede a rede nela,Que perdido é remo e vela

Só de vê-la, Oh pescador.

 Pescador da barca bela,Inda é tempo, foge dela

Foge dela Oh pescador!

.

Page 58: Biblioteca poesia ag

Não és tu

Era assim, tinha esse olhar,A mesma graça, o mesmo ar,

Corava da mesma cor,Aquela visão que eu vi

Quando eu sonhava de amor,Quando em sonhos me perdi.

Toda assim; o porte altivo,O semblante pensativo,

E uma suave tristezaQue por toda ela descia

Como um véu que lhe envolvia,Que lhe adoçava a beleza.

Era assim; o seu falar,Ingénuo e quase vulgar,Tinha o poder da razãoQue penetra, não seduz;

Não era fogo, era luzQue mandava ao coração

Almeida Garret.

.

Não és tu (continuação)

Nos olhos tinha esse lume,No seio o mesmo perfume,Um cheiro a rosas celestes,Rosas brancas, puras, finas,

Viçosas como boninas,Singelas sem ser agrestes.

Mas não és tu...ai! não és:Toda a ilusão se desfez.Não és aquela que eu vi,Não és a mesma visão,Que essa tinha coração,

Tinha, que eu bem lho senti.

Almeida Garret

Page 59: Biblioteca poesia ag

Nau Catrineta  

Lá vem a Nau Catrineta Que tem muito que contar!Ouvide agora, senhores, Uma história de pasmar.

 Passava mais de ano e dia Que iam na volta do mar,Já não tinham que comer, Já não tinham que manjar.

 Deitaram sola de molho Para o outro dia jantar;

Mas a sola era tão rija, Que a não puderam tragar. 

Deitaram sortes à ventura Qual se havia de matar;Logo foi cair a sorte No capitão general.

 - "Sobe, sobe, marujinho, Àquele mastro real,

Vê se vês terras de Espanha, As praias de Portugal!" 

- "Não vejo terras de Espanha, Nem praias de Portugal; Vejo sete espadas nuas Que estão para te matar."

 - "Acima, acima, gageiro, Acima ao tope real!

Olha se enxergas Espanha, Areias de Portugal!" 

- "Alvíssaras, capitão, Meu capitão general! Já vejo terras de Espanha, Areias de Portugal!"

Mais enxergo três meninas, Debaixo de um laranjal: Uma sentada a coser, Outra na roca a fiar,

A mais formosa de todas Está no meio a chorar.“

Almeida Garret

 -

Nau Catrineta (continuação)“

Todas três são minhas filhas, Oh!quem mas dera abraçar! A mais formosa de todas Contigo a hei-de casar."

 - "A vossa filha não quero, Que vos custou a criar.” - "Dar-te-ei tanto dinheiro Que o não possas contar."

 - "Não quero o vosso dinheiro Pois vos custou a ganhar.” 

- Dou-te o meu cavalo branco, Que nunca houve outro igual .” 

- "Guardai o vosso cavalo, Que vos custou a ensinar.” - "Dar-te-ei a Catrineta, Para nela navegar."

 - "Não quero a Nau Catrineta, Que a não sei governar.” 

- Que queres tu, meu gageiro, Que alvíssaras te hei-de dar?" 

- "Capitão, quero a tua alma, Para comigo a levar!" 

- "Renego de ti, demónio, Que me estavas a tentar! A minha alma é só de Deus; O corpo dou eu ao mar."

  Tomou-o um anjo nos braços, Não no deixou afogar. Deu um estouro o demónio, Acalmaram vento e mar;

  E à noite a Nau Catrineta Estava em terra a varar.

Almeida Garret

Page 60: Biblioteca poesia ag

ContemporâneosVitorino Nemésio (1901-78)

Poeta de origem açoreana e romancista (Mau Tempo no Canal), professor da Faculdade de Letras em Lisboa

Escreveu poesia de forma ininterrupta desde 1918 (Canto Matinal) a 1976 (Era do Átomo Crise do Homem)

Teve na RTP o conhecido programa Se Bem me Lembro

António Gedeão (1906-97)Rómulo Vasco da Gama de Carvalho, sob o pseudónimo de António Gedeão, professor de Físico-Química, poeta.

Pedra Filosofal e Lágrima de Preta são dois dos seus mais célebres poemas

Ary dos Santos (1937-84)José Carlos Ary dos Santos, em 1969

inicia a sua atividade política e participa nas sessões intituladas de poesia do "canto livre”

Foi autor de mais de 600 poemas para canções

Seus poemas Desfolhada e Tourada obtiveram os 1ºs prémios no Festival da Canção (RTP)

.

ContemporâneosSophia de Mello Breyner (1919-2004)

Foi a 1ª mulher portuguesa a receber o Prémio Camões em 1999 (o mais importante da Língua Portuguesa), e em 2003 teve em Espanha o Prémio Rainha Sofia.

Além da poesia, distinguiu-se no conto e em livros infantis

Manuel Alegre (1936, Águeda)Fez os estudos secundários no Porto e em 1956 entrou

na Fac. de Direito(Coimbra) onde inicia o percurso político de oposição à Ditadura.

Em 1964 passou à clandestinidade em Paris e Argel e saem os seus livros Praça da Canção e O Canto e as

Armas. Poemas seus são cantadospor Amália, Zeca Afonso e muitos outros .

Eugénio de Andrade (1923-2005)José Fontinha, com pseudónimo de Eugénio d?Andrade,

inicia sua obra poética,com Adolescente(1942) e As Mãos e os Frutos (1948) até 2003 com Os Sulcos da

Sede. A sua poesia essencialmente lírica, dá importância à palavra, em poemas curtos às vezes, mas densos

Recebeu o Prémio Camões em 2001 e muitos outros,.

Page 61: Biblioteca poesia ag

Já não Escreverei Romances

Já não escreverei romances Nem contos da fada e o rei. Vão-se-me todas as chances

De grande escritor. Parei. Mas na chispa do verso,

Com Marga a aquecer-me, Já não serei disperso

Nem poderei perder-me. Tudo nela é verbo e vida; Xale, cílio, tosse, joelho, Tudo respinga e acalma.

Passo, óculos, nada é velho: Quase corpo, menos que alma.

Já não lavrarei novelas, Ultrapassado de ficto: A vida dá-me janelas

A toda a extensão do dicto. Mas sem elas, mas sem elas (As suas mãos) fico aflito.

Vitorino Nemésio

Tenho uma Saudade tão Braba

Tenho uma saudade tão braba Da ilha onde já não moro,

Que em velho só bebo a baba Do pouco pranto que choro.

Os meus parentes, com dó, Bem que me querem levar, Mas talvez que nem meu pó

Mereça a Deus lá ficar.

Enfim, só Nosso Senhor Há-de decidir se posso Morrer lá com esta dor,

A meio d’ um Padre Nosso.

Quando se diz «Seja feita» Eu sentirei na garganta A mão da Morte, direita

A este peito, qu’ ainda canta.

Vitorino Nemésio .

Page 62: Biblioteca poesia ag

Pedra filosofalEles não sabem que o sonho é uma constante da vida

tão concreta e definida como outra coisa qualquer, como esta pedra cinzenta em que me sento e descanso,

como este ribeiro manso,em serenos sobressaltos, como estes pinheiros altos, que em oiro se agitam, como estas aves que gritam em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho é vinho,é espuma,é fermento, bichinho alacre e sedento, de focinho pontiagudo,

que foça através de tudo num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho é tela, é cor, é pincel, base, fuste, capitel, arco em ogiva, vitral,

pináculo de catedral, contraponto, sinfonia, máscara grega, magia, que é retorta de alquimista, mapa do mundo distante, rosa dos ventos, Infante,

caravela quinhentista, que é cabo da Boa Esperança, ouro, canela, marfim, florete de espadachim,

bastidor, passo de dança, Colombina e Arlequim, passarola voadora, pára-raios, locomotiva, barco de proa festiva, alto-forno, geradora, cisão de átomo, radar, ultra-som, televisão,

desembarque em foguetão na superfície lunar.

Eles não sabem,nem sonham,que o sonho comanda a vida. Que sempre que o homem sonha o mundo pula e avança

como bola colorida entre as mãos de uma criança.

Gedeão

Lágrima de preta Encontrei uma preta que estava a chorar,

pedi-lhe uma lágrima para a analisar.

Recolhi a lágrima com todo o cuidado num tubo de ensaio bem esterilizado.

Olhei-a de um lado, do outro e de frente: tinha um ar de gota muito transparente.

Mandei vir os ácidos, as bases e os sais, as drogas usadas em casos que tais.

Ensaiei a frio,

experimentei ao lume, de todas as vezes

deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro, nem vestígios de ódio.

Água (quase tudo) e cloreto de sódio..

Gedeão

Page 63: Biblioteca poesia ag

Cavalo à Solta

Minha laranja amarga e doce meu poema feito de gomos de saudade minha pena

pesada e leve secreta e pura minha passagem para o breve, breve instante da loucura

Minha ousadia meu galope minha rédea meu potro doido

minha chama minha réstia de luz intensa de voz aberta

minha denúncia do que pensa do que sente a gente certa

Em ti respiro em ti eu provo por ti consigo esta força que de novo

em ti persigo em ti percorro cavalo à solta pela margem do teu corpo

Minha alegria minha amargura minha coragem de correr contra a ternura.

Por isso digo canção castigo amêndoa travo corpo alma amante amigo

por isso canto por isso digo alpendre casa cama arca do meu trigo

Meu desafio minha aventura minha coragem de correr contra a ternura

Ary dos Santos .

Poeta castrado, não! Serei tudo o que disserem por inveja ou negação

: cabeçudo dromedário fogueira de exibição teorema corolário poema de mão em mão

lãzudo publicitário malabarista cabrão. Serei tudo o que disserem: Poeta castrado não!

Os que entendem como eu as linhas com que me escrevo reconhecem o que é meu em tudo quanto lhes devo: ternura como já disse sempre que faço um poema;

saudade que se partisse me alagaria de pena; e também uma alegria uma coragem serena

em renegar a poesia quando ela nos envenena.

Os que entendem como eu a força que tem um verso reconhecem o que é seu quando lhes mostro o reverso: Da fome já não se fala - é tão vulgar que nos cansa – mas que dizer de uma bala num esqueleto de criança? Do frio não reza a história - a morte é branda e letal – mas que dizer da memória de uma bomba de napalm?

E o resto que pode ser o poema dia a dia? - Um bisturi a crescer nas coxas de uma judia; um filho que vai nascer parido por asfixia?!

- Ah não me venham dizer que é fonética a poesia!

Serei tudo o que disserem por temor ou negação: Demagogo mau profeta falso médico ladrão prostituta proxeneta espoleta televisão .

Serei tudo o que disserem: Poeta castrado não .!Ary dos Santos

Page 64: Biblioteca poesia ag

Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não Porque os outros usam a virtude

Para comprar o que não tem perdão Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados Onde germina calada a podridão.

Porque os outros se calam mas tu não.

Poque os outros se compram e se vendem E os seus gestos dão sempre dividendo. Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos E tu vais de mãos dadas com os perigos. Porque os outros calculam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner Andresen

A Cesário VerdeQuis dizer o mais claro e o mais corrente

Em fala chã e em lúcida esquadria Ser e dizer na justa luz do dia

Falar claro falar limpo falar rente

Porém nas roucas ruas da cidade A nítida pupila se alucina

Cães se miram no vidro de retina E ele vai naufragando como um barco

Amou vinhas e searas e campinas Horizontes honestos e lavados

Mas bebeu a cidade a longos tragos Deambulou por praças por esquinas

Fugiu da peste e da melancolia Livre se quis e não servo dos fados

Diurno se quis - porém a luzidia Noite assombrou os olhos dilatados

Reflectindo o tremor da luz nas margens Entre ruelas vê-se ao fundo o rio

Ele o viu com seus olhos de navio Atentos à surpresa das imagens .

Sophia de Mello Breyner Andresen

Page 65: Biblioteca poesia ag

É urgente o Amor, É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras ódio, solidão e crueldade,

alguns lamentos,muitas espadas.

É urgente inventar alegria, multiplicar os beijos, as searas, é urgente descobrir rosas e rios

e manhãs claras. Cai o silêncio nos ombros,

e a luz impura até doer. É urgente o amor,

É urgente permanecer.

 Respiro o teu corpo:sabe a lua-de-água

ao amanhecer,sabe a cal molhada,sabe a luz mordida,

sabe a brisa nua,ao sangue dos rios,sabe a rosa louca,ao cair da noite

sabe a pedra amarga,sabe à minha boca

Eugénio d’Andrade

As palavras que te envio são interditasaté, meu amor, pelo halo das searas;

se alguma regressasse, nem já reconheciao teu nome nas suas curvas claras. 

Dói-me esta água, este ar que se respira,dói-me esta solidão de pedra escura,

estas mãos nocturnas onde apertoos meus dias quebrados na cintura. 

E a noite cresce apaixonadamente.Nas suas margens nuas, desoladas,cada homem tem apenas para dar

um horizonte de cidades bombardeadas.

Poema XVIII

Impetuoso, o teu corpo é como um rioonde o meu se perde.

Se escuto, só oiço o teu rumor.De mim, nem o sinal mais breve. 

Imagem dos gestos que tracei,irrompe puro e completo.

Por isso, rio foi o nome que lhe dei.E nele o céu fica mais perto.

Eugénio d’Andrade

Page 66: Biblioteca poesia ag

Trova do vento que passa Pergunto ao vento que passa notícias do meu país

e o vento cala a desgraça o vento nada me diz. Pergunto aos rios que levam tanto sonho à flor das águas e os rios não me sossegam levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas ai rios do meu país minha pátria à flor das águas para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas pede notícias e diz ao trevo de quatro folhas que morro por meu país..

. E o vento não me diz nada ninguém diz nada de novo. Vi minha pátria pregada nos braços em cruz do povo. Vi minha pátria na margem dos rios que vão pró mar como quem ama a viagem mas tem sempre de ficar!

Vi navios a partir (minha pátria à flor das águas) vi minha pátria florir (verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada e fale pátria em teu nome. Eu vi-te crucificada nos braços negros da fome. E o vento não me diz nada só o silêncio persiste. Vi minha pátria parada à beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novo se notícias vou pedindo nas mãos vazias do povo vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro dos homens do meu país. Peço notícias ao vento e o vento nada me diz.

Quatro folhas tem o trevo liberdade quatro sílabas. Não sabem ler é verdade aqueles pra quem eu escrevo. Mas

há sempre uma candeia dentro da própria desgraça há sempre alguém que semeia canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste em tempo de servidão há sempre alguém que resiste há sempre alguém que diz não

. Manuel Alegre

E alegre se fez triste

Aquela clara madrugada que viu lágrimas correrem no teu rosto

e alegre se fez triste como se chovesse de repente em pleno Agosto.

Ela só viu meus dedos nos teus dedos meu nome no teu nome. E demorados viu nossos olhos juntos nos segredos que em silêncio dissemos separados.

A clara madrugada em que parti. Só ela viu teu rosto olhando a estrada por onde um automóvel se afastava.

E viu que a pátria estava toda em ti. E ouviu dizer-me adeus: essa palavra que fez tão triste a clara madrugada.

Manuel Alegre

Voltar à biblioteca