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BIO NA PRÁTICA 014 TEORIA QUEER E BIOLOGIA COM MARTINA DAVIDSON Legenda: ( / ) : Representa uma mudança durante a fala; ( ... ) : Representa uma pausa na fala; ( “” ) : Destaca títulos de obras literárias, textos científicos e termos em outro idioma; ( : “” ) : Introduz um pensamento ou fala de pessoas que não estão presentes no podcast; ( * ) : Destaca falas sobrepostas. ( [ ] ): Destaca efeitos sonoros. [Carro buzina] [Som elétrico cortante] Cafeína Você está ouvindo Biologia In Situ Podcast, porque todas as estradas levam à Biologia. [Música] Ricardo Olá, bio-ouvinte! Bem-vindo a mais um Bio na Prática. Nossa série de conversas com pessoas que fazem a Biologia. E, olha só, a gente tem aqui a convidada que já apareceu aqui no Bio na Prática, já apareceu aqui no Biologia In Situ. É com muito orgulho que eu a recebo de volta: Martina Davidson. Seja bem-vinda aqui de novo no Biologia In Situ!

BIO NA PRÁTICA 014 TEORIA QUEER E BIOLOGIA COM MARTINA

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Page 1: BIO NA PRÁTICA 014 TEORIA QUEER E BIOLOGIA COM MARTINA

BIO NA PRÁTICA 014 – TEORIA QUEER E BIOLOGIA – COM

MARTINA DAVIDSON

Legenda:

( / ) : Representa uma mudança durante a fala;

( ... ) : Representa uma pausa na fala;

( “” ) : Destaca títulos de obras literárias, textos científicos e termos em outro idioma;

( : “” ) : Introduz um pensamento ou fala de pessoas que não estão presentes no podcast;

( * ) : Destaca falas sobrepostas.

( [ ] ): Destaca efeitos sonoros.

[Carro buzina] [Som elétrico cortante]

Cafeína Você está ouvindo Biologia In Situ Podcast, porque todas as estradas levam à Biologia.

[Música]

Ricardo Olá, bio-ouvinte! Bem-vindo a mais um Bio na Prática. Nossa série de conversas com pessoas que fazem a Biologia. E, olha só, a gente tem aqui a convidada que já apareceu aqui no Bio na Prática, já apareceu aqui no Biologia In Situ. É com muito orgulho que eu a recebo de volta: Martina Davidson. Seja bem-vinda aqui de novo no Biologia In Situ!

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Martina Ah, muito obrigada, é sempre um prazer poder estar aqui, conversar com vocês. De fato é uma honra1

Ricardo Ah, muito obrigado! Nós que sentimos um orgulho muito grande de sua participação aqui foi tão excelente da primeira vez que a gente tinha que ter você de volta aqui para falar de mais algum assunto. E hoje, a gente vai falar sobre um artigo, basicamente. Assim, a gente vai usar o artigo como base para desenvolver um pouco mais sobre o assunto. O artigo é "Toda a Biologia é Queer: subjetivação e diversidade"'. O autor é José Luiz Ferraro, esse artigo saiu na Revista de História de Juiz de Fora, volume 26, número 1, no ano de 2020. Ah, perdão, Revista Locus. Locus Revista de História. Esse artigo vai está anexado aqui na descrição desse episódio, no post desse episódio no site nos agregadores, para vocês terem acesso. E, assim, a gente não vai dissecar o artigo, basicamente. A gente vai usar o artigo para falar um pouco mais sobre esse assunto. Sobre o assunto que permeia o artigo. Não é, Martina?

Martina Exatamente. Assim vai ficar menos cansativo, não é? [risos]

Ricardo Pois é. Bio-ouvinte, você não teve que ler esse artigo, e assim, não que seja um peso ler esse artigo, mas é difícil [risos]. Muito filósofos, não é, Martina, como você mesmo comentou.

Martina Exatamente.

Ricardo Muitos filósofos são comentados, são vários nomes difíceis, e assim, é um artigo mais da área de humanas, e eu que sou da Biologia fiquei/ Foi difícil. [risos] Mas valeu a pena.

Martina Faz parte, faz parte. Eu, por sorte, nos últimos anos, no mestrado e no doutorado, estou mais na área de humanas, não é, trabalhei em bioética,

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ética aplicada, saúde coletiva. Então, com alguns autores eu tenho familiaridade, assim, mas com outros eu sinto que o texto, às vezes, enfim, por ser um artigo mesmo, cita determinados conceitos e que são muito complexos, não é, mas ele são apenas citados, então pode ficar um pouco apagado o conceito, apagado a ideia filosófica por trás dele, não é, então a ideia da gente fazer também uma passada sobre o assunto, que é um assunto super interessante, não é? Eu acho que vem um pouco essa ideia de, enfim, não ficar pausando nos mínimos detalhes, não é, mas entender o geral do artigo, que é uma contribuição excelente, não é?

Ricardo Isso aí, isso aí. A gente começa daqui a pouco, bio-ouvinte. Por enquanto, vocês ficam aí com os recadinhos do nosso programa de hoje.

[Música]

Heloá Olá, bio-ouvinte, aqui quem está falando é a Heloá. Estou aqui apenas para dar alguns recados para vocês. Então, se vocês querem mandar uma cartinha para gente, com algum elogio, com alguma crítica, com al-guma sugestão, mande um e-mail para gente no [email protected]. E outra coisa: caso vocês amem nosso projeto, achem ele maravilhoso, você pode também ajudar a gente através do pix. Só colo-car [email protected] e também no Picpay. Também só colocar Biologiainsitu. Você pode ajudar com a quantia que você quiser. E também temos nossas faixas no Padrim. Sim, no padrim.com.br/biolo-giainsitu. Você pode ajudar a gente com quantias de R$1,00 por mês até R$100,00. É isso, bio-ouvintes. Até o próximo episódio. Tchau.

[Música]

Cristianne Olá, bio-ouvintes. Tudo bem com vocês? Aqui quem fala é Cristiane. Vocês devem me conhecer da coordenação das transcrições. Também já participei de alguns episódios. Mas hoje eu vim trazer uma novidade para vocês. Sim. Sabe aquele trabalho acadêmico que a gente termina,

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e ainda precisa revisar todo o texto e formatar antes de enviar? É a parte mais chata, não é? Mas é a parte mais imprescindível. Não dá para enviar um trabalho sem revisão de texto, retirar os erros e na formatação esperada. Então, se você tá com pouco tempo, sem paciência para fazer essa parte, ou desesperado porque o prazo está batendo na porta, a Edusup-Mundo Acadêmico tem a solução para você. E tirando isso, a gente está com um combo super promocional para vocês bio-ouvintes. É isso mesmo! Se vocês acessarem os links do Instagram, da Edusup e também do Gmail, e colocarem lá que são bio-ouvintes, vocês vão ganhar 50% de desconto nesses dois serviços. Sim, gente, 50% de desconto no valor total do orçamento. Vão lá conferir os serviços da Edusup-Mundo Acadêmico, e fala que é bio-ouvinte para ganhar essa super promoção. É isso, bio-ouvinte. Agora vocês vão ficar com o episódio de hoje. Beijão.

[Música]

Ricardo Muito bem, recadinhos dados. E Martina, por onde você gostaria de começar nesse nosso artigo que a gente vai comentar hoje e derivar dele sobre esse assunto que ele aborda, lembrando o nome do artigo é: “Toda a Biologia é Queer: subjetivação e diversidade”.

Martina Bom, eu acho que a introdução faz alguns pontos muito importantes, não é? O primeiro deles, sendo a ideia de que, na verdade, a Ciência e a Biologia enquanto Ciência, ela passa por um eixo estruturante, que é a evolução biológica, não é? Então, entender a centralidade do processo de evolução para a Biologia e como também mudança de paradigma, porque na verdade a teoria da evolução ela foi uma quebra de paradigma, não é, então o criacionismo foi colocado em questão. Existe todo um pro-cesso que aconteceu a partir dessa teoria de evolução. Então, na ver-dade, o artigo o tempo inteiro utiliza de produções da evolução, concei-tos, de estilos e etc.., como base para compreender como essa Biologia ela pode ser Queer. E aí, eu acho que, talvez, eu não sei se você acha interessante, Ricardo, mas a ideia de pensar um pouquinho antes no que que é Queer, não é?

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Porque eu acho que é um termo que a gente usa bastante, mas que não fica muito definido, muitas vezes. Então, eu acho que seria legal conver-sar um pouco sobre as diferentes definições e aplicações do Queer, principalmente, sendo um termo que foi importado e ressignificado na América Latina e no sul global de forma geral. Tem muita gente aqui que escreve, em vez de ser "Q-U-E-E-R", escreve com "C-U-I-R", então já está acontecendo uma mudança na forma de escrever, quando ocorreu essa importação e essa ressignificação aqui, não é? E aí, esse conceito, Queer, que muitas vezes é inserido dentro da comunidade LGBTIA+, tem muito a ver com a origem mesmo da palavra que vem do estranho, não é? E ela era usada de forma pejorativa nos Estados Unidos para se designar pessoas da comunidade LGBTIA+, e aí, se decidiu ressignificar essa palavra como muitas outras foram ressignificadas também, não é? Como uma questão que se trata da expressão de uma diversidade, de uma emancipação, mas que essas identidades, para Teoria Queer, vem sendo construídas não a partir de determinismos biológicos, divisões es-sencialistas, de gênero, identidade de gênero e orientação sexual, mas sim, a partir de uma visão social, de uma construção de identidade social, que cria existências únicas, existências variadas e existência diversas. Então, si mesmo, o Queer/ a palavra Queer, ela é um desafio para binariedade, que a gente vê muito aqui, no ocidente hegemônico, que é essa ideia de sempre, homem, mulher, heterosseual, homossexual, e existem muitos binômios e dicotomias que o ocidente criou. E também uma forma de perturbar o que é considerado normal, não é? De desafiar a cis-hétero-normatividade que se impõe como aquilo que é natural, que é o normal na sociedade, mas a gente sabe que a construção de um normal, de uma norma, ela se dá de forma social, então aí já é uma primeira linha do que o artigo está querendo propor, que é não pensar em puros determinismos biológicos, que é uma discussão bem controversa no meio LGBTIA+ e da comunidade Queer, que é se ensinar ser cis-hétero-discordante ou se constrói. Então, há visões variadas sobre o assunto, não é. Outras se contradizem e outras se opõem entre si. Então acho que isso também era bastante importante, a gente demarcar um pouco, assim como a gente aqui vai conversar sobre essa palavra.

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Ricardo Sim, sim. E, Martina, o contato que eu tive com esse termo veio de quando eu era adolescente, que tinha o programa “Queer Eye For The Straight Guy”, que eram cinco homens gays, que faziam toda uma abordagem de repaginação, como tem os programas de repaginação assim ainda hoje da vida da pessoa, só que eles faziam com homens heterossexuais para ter essa ponte entre o mundo Queer deles e um mundo heterossexual e isso era demonstrado no programa, essa aproximação entre essas duas realidades através da repaginação que o pessoal fazia na pessoa do dia. E a gente não tá no final do programa, nas indicações, mas já queria deixar indicado aqui, quem quiser também procurar o “Queer Eye For the Straight Guy” ´que é antigo, mas tem hoje o programa “Queer Eye”, que é uma repaginação deste programa, que são de novo outros rapazes gays que fazem também intervenções nas vidas das pessoas, mas assim, não tem um episódio que você não chore [risos]. Todos eles. E eles não fazem mais só com homens héteros. Eles fazem com todos os tipos de pessoas, de todas as orientações possíveis, e, assim, é um programa sobre auto aceitação, sobre auto amor, um programa que realmente/ sabe, não é como os programas de repaginação que a gente vê por aí. Eu não vou falar, porque quero evitar processos aqui [risos], mas que vão lá só pra xingar a pessoa e despejar nela um monte de roupa feia que os apresentadores do programa acham que vai ficar bonito e dispensam a pessoa de volta para casa. É uma coisa que é muito intimista, muito, muito/ Que olha mesmo para o quê a pessoa é, e tenta despertar nela quem ela é de verdade. O programa original buscava tolerância, que é uma coisa, assim, mínima, não é? Você tolerar a existência diferente de uma outra pessoa. Esse programa de agora ele busca aceitação, então não é só tolerar, é aceitar que essas pessoas existem, que elas estão ali, que o modo delas de viver é tão válido quanto o modo como você apontou, hegemônico e cis-hétero-nor-mativo. Tão válido quanto.

Martina Sim, eu acho que é muito legal você ter trazido esse programa, porque acho que além de tudo, essa nova versão do programa faz um trabalho muito bom em tirar determinados estigmas, estereótipos, que se criam

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em volta de pessoas LGBTIA+ ou pessoas Queer, não é,? Que são sem-pre muito rasas, como se fossem pessoas rasas que só se importam com a aparência, com sexo, e eu acho que o programa, a partir do momento que se propõe à uma demonstração e uma conexão mais profunda, que tenha a ver com sentimentos, com os pensamentos, com a auto aceita-ção como você citou, tira um pouco esses estigmas que a sociedade co-loca sobre nós, pessoas LGBTIA+ ou Queer, não é? Eu acho que é realmente uma boa indicação, porque além de ser muito emocionante, como você disse, ele traz, questões muito importantes, que vão aparecendo no programa de forma natural, não é? Não é como se fosse um programa forçado. Então, eu acho que realmente, assim, vale bastante a pena.

Ricardo Pois é, tem isso também que você falou. Não é tipo a Oprah, que está ali para tirar o choro da pessoa [risos]...

Martina [risos]

Ricardo Isso acontece...

Martina Exatamente. Com certeza.

Ricardo [risos]

Martina É outra questão. Então, assim, até voltando para o artigo, eu acho que o programa também apresenta, como a gente conversou, essas questões de estigmas, de violências que muitas vezes são invisibilizadas, não é? Mas também acaba mostrando, de forma indireta, o que o próprio artigo fala, que é como os corpos eles são territórios políticos, que estão inseridos em todo um sistema de poder, em todo um sistema que exige que os corpos sejam dóceis, que eles não sejam insubordinados ao poder e as hierarquias, e que se baseia na lógica de criar um normal e criar um outro, não é? Ou um outro do outro, ou um outro do outro do outro, não é? À medida que a gente vai pensando na interseccionalidade

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como uma realidade entre cruzamentos e entroncamentos de marginalizações que foram criação social, não é? Então, também é tirar do estigma biológico a própria ideia de que a discriminação é uma coisa natural, de que a discriminação é uma coisa que se baseia no normal, que a própria Ciência impõe. Então, o texto se propõe também a isso. E aí, eu acho que isso é bem interessante a forma que vai sendo colocado.

Ricardo Sim. Assim, tem várias críticas que a gente pode fazer dentro da própria Ciência que/ A gente pode não, a gente deve fazer dentro da própria Ciência para manter esse grupo em xeque, porque, como você falou, muitos argumentos se dizem baseados na Ciência, principalmente na Biologia, para negar a biodiversidade de comportamentos que a gente tem como espécie humana, porém, o que a gente tem na Biologia é diversidade, o que a gente preza pra conservar é a biodiversidade, então, assim, não tem como a gente/ É muito louco essa associação que a gente faz de que todas as outras espécies, todo o resto do mundo, a gente quer que seja diverso, biodiverso, mas a nossa espécie tem que ser de um jeito só. Isso é muito louco, isso é muito errado! É errado do ponto de vista biológico que muitas vezes é o que as pessoas usam para defender esse lado equivocado.

Martina Realmente. É, com certeza, assim, não é? Eu acho que isso, assim, nes-ses tempos que a gente está vivendo, além de ter que viver com o negacionismo da Ciência, com a pós-verdade, com as “fake news” e com todas essas questões, que, enfim, afetam muito a vida, afetam muito a produção de conhecimento, a produção de políticas públicas, e eu poderia citar uma lista de coisas que são afetadas por esse tipo de pensamento, mas além de ter que lidar com tudo isso a gente precisa lidar com a utilização da Ciência, enquanto um instrumento que reforce determinados tipos de opressão, e eu acho que isso se dá também muito à visão popular. E aí, eu digo popular não no sentido referente às classes sociais, mas aquela ideia mais difundida, que é a ideia de que a Ciência, ela é a verdade, ela é uma verdade que está completamente dissociada, afastada, separada, do que é uma construção social de alguma coisa, não é? E a Ciência ela é um discurso, não é? Um discurso que, além de

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tudo, carrega muitas marcas, que exclui determinados tipos de conheci-mento de antemão, não é? Porque se pede toda uma metodologia cien-tífica que é tida como a única verdade também. Então, é importante en-tender que a Ciência ela é um discurso e como em qualquer discurso há disputas sobre ele, há disputas dentro dele, há negacionismos desse dis-curso, não é? E que também, o próprio discurso, ele pode ser aplicado de forma a emancipar, a empoderar, a ressaltar assimetrias que existem na sociedade, diferentes formas, e eu acho que isso é muito importante de se falar, também, que a Ciência não é neutra. Não existe neutralidade na criação de um discurso. Não existe neutralidade plena, não é? Aqui eu não estou dizendo que o quê a Ciência produz não serve, mas o con-trário, é a admissão de que a Ciência tem uma origem e um pensamento de razão europeu, que acaba sendo por tabela, branco, que acaba sendo por tabela cis-héterossexual, que acaba sendo por tabela, enfim, muitas identidades, que são as identidades dominantes que criaram determinados aspectos na Ciência, mas não quer dizer que a Ciência não possa ser produzida para além desses estigmas, para além dessas identidades. E eu acho que é importante marcar isso muito mais numa época como agora, que a gente está pensando mais nos impactos que ter sido colônia de um país europeu, no caso o Brasil, que fomos colônia de Portugal/ é pensar em como determinados valores foram passados e importados para cá e durante muito tempo não foram criticados. Então, a Ciência precisa e existe já um movimento da Ciência decolonial, da Ciência pós-colonial, da Ciência das epistemologias do sul, que é o de pensar a produção científica de diferentes pontos de vista, não é? De entender como, por exemplo, uma aldeia indígena consegue produzir Ciência a partir de um paradigma metodológico diferente, mas que se enquadra e que se encaixe dentro do mínimo que a Ciência pede, que não é religiosa, que não é sem metodologia e assim por diante. Então, eu acho que a partir do momento que a gente assume essa Ciência como discurso, que pode ser mal utilizada, como você mesmo marcou para negar a diversidade, quando na verdade o que a Ciência não é, enquanto algo que se baseia - principalmente a Biologia, não é - que se baseia toda a teoria evolutiva caminhe em direção à diversidade o tempo inteiro, isso tem se afastado cada vez mais do essencialismo, do determinismo

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biológico, por uma série de questões. É importante ter todas essas coisas em mente, não é?

Ricardo Sim, sim. E, assim, um exemplo que a gente tem para ilustrar, tem até uma/ Bio-ouvinte. eu e Martina a gente estava estudando o artigo pra fazer esse programa. A gente aqui discutindo antes da gravação descobrimos que nos dois destacamos o mesmo trecho do artigo, que tem uma parte que ele fala: "..que o diferente é o mesmo ponto de chegada..." E assim, para ilustrar essa situação, nós temos o caso dos macacos pregos da região amazônica, que basicamente os macacos-prego são divididos em dois gêneros, gênero Cebus e Sapajus, e essa distinção entre esses dois gêneros, ela foi feita há poucos anos atrás, que até pouco tempo eles eram todos um gênero só, gênero Cebus, macacos-prego, até que por análise de DNA, análise da Biologia Molecular/ um trabalho há muitos anos atrás conseguiu identificar que algumas espécies são mais diferentes que outras e algumas espécies se aproximam mais de outras, o que resultou na separação entre o gênero Cebus, macacos-prego Cebus, [efeito sonoro, ao fundo] Macacos cegos não! [risos] Macacos-prego Sapajus. Mas não era disso que eu estava falando [risos]. Qual é a teoria que desenvolveram para o quê eles viram biogeograficamente que aconteceu na separação entre esses dois gêneros? Foi o surgimento do Rio Amazonas, então tinha sim essa população de macacos-prego nessa área amazônica, quando, olha, há muitos e muitos anos atrás [som de estalo de dedos, ao fundo], surgiu o Rio Amazonas, separou essas populações macaco-prego é um macaco de pequeno porte, ele não consegue transpor um rio muito grande quanto o Amazonas, então essas populações foram separadas, as que ficaram de um lado foram se diferenciando de um jeito, sem contato com as que ficaram do outro lado, que foram se diferenciando de outras formas. Sendo assim, eles passaram a ser muito diferentes uns dos outros que podem, hoje, ser separados em um gênero que ficou de um lado e outro gênero que ficou do outro, então a Biologia e a evolução caminha para a diferenciação. Mão tem como a gente chegar e pegar uma espécie lá, essa espécie foi feita assim, ela vai ser assim até o final, até ela não existir mais. As espécies estão em constante mudanças, tanto é/ a Martina é bióloga também, Martina você consegue me dizer um conceito,

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bater o martelo sobre um conceito do que é espécie?

Martina Não, eu acho que se eu conseguisse bater o martelo seria justamente a pessoas que o artigo propõe a criticar, não é? [risos]

Ricardo [risos] Ou ganharia o Nobel, não é?

Martina É verdade, é verdade! [ao fundo]

[Gargalhadas]

Martina Mas com certeza, eu acho que o que você marcou, muita gente acabou destacando juntos, mas separados, não é? É da ideia de que a Ciência e a Biologia, elas são, caminham/ a evolução significa mudança, não é? Ela caminha em direção a uma diversidade que nunca se estanca, não é? Não é como simplesmente parasse... diversificou-se parou. É um processo contínuo de mudança. Eu acho que isso é interessante também e eu tenho certeza que na cabeça de algumas pessoas que possam estar ouvindo vai surgir alguns questionamentos sobre a forma que a Biologia se estrutura, que acaba sendo de forma bem paradoxal mesmo, não é? Porque ao mesmo tempo que se entende que essa diversidade é uma realidade do ser vivo, mas além disso ela é o destino, não é? É o ponto de chegada. Existe também ao mesmo tempo toda uma tentativa de classificar, o tempo inteiro, os seres vivos: em espécies, em gêneros, em filos e assim por diante. O que não quer dizer que na verdade todas essas formas classificatórias não possam ser pensadas de forma que cada indivíduo singular do jeito que é, possa ter um lugar nessa classificação. Acho que a, é uma coisa importante que próprio artigo propõe, de que se encontre dentro desse método de classificação um lugar para “todes”, que “todes” sejam incluídos nessa que é... na diversidade biológica e eu acho que isso é importante também não pensar em Biologia como a criação de uma norma, do que deve ser uma espécie, a criação de uma norma do que ser um rio como é utilizada nas escolas, enfim, mas pensar nessas formas de classificação como:

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mutáveis e variáveis, já que é diversidade está sendo o tempo inteiro, aparecendo o tempo inteiro, não é? Na natureza, nas populações e assim por diante. Pensar neste sistema de classificação como mutáveis que não é uma coisa rígida e pensar que cada ser com suas singularidades, particularidades tem que ter um lugar dentro desse sistema, se não esse sistema não pode me servir mais e eu acho que isso é importante também!

Ricardo Sim, sim!

[Música]

Martina Eu acho que também, é importante sinalizar, como o próprio artigo/ e isso é uma muito importante, mais ainda para os dias atuais, colocar a falácia da ideologia de gênero. Na verdade, a ideologia de gênero é justamente o que as pessoas que creem em dicotomias, que creem em um normal que é a cis-hétero-normatividade, criam. Essa é a ideologia criada e eu acho que o tempo inteiro se diz/ as pessoas dizem, não é? "Devemos lutar contra a ideologia de gênero." Na verdade, essa ideologia de gênero é o que essas pessoas estão propagando, que são os binômios homem e mulher. Os binômios normais que se refeririam cis-hétero-sexual e o não normal ou outro problema, que seria é a cis-hétero-discordância, incluindo obviamente, a multiplicidade que a palavra Queer e que a categoria Queer nos oferece. Isso é importante de ser marcado, porque é muito nesse discurso que a Biologia aparece como um ferramental para justificar de forma equivocada, então é um tipo de instrumentalização negativa que se faz da Biologia, que tenta colocar a Biologia como uma criação acrítica, como uma criação de identidades, únicas, plenas e fixas e, que na verdade, é utilizada como uma ferramenta para defender os binômios, para defender as opressões, que se travam contra as diversidades de identidades de gênero e de orientações sexuais. Quando, na verdade, desde o começo vem falando a Biologia a partir do momento que a evolução entra para jogo, acredita, reafirma e extensa a diversidade da vida, enquanto não só uma realidade, mas enquanto um processo contínuo. Então, para a ideologia de gênero na verdade, não

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faria sentido nenhum utilizar desse discurso, mas obviamente se faz esse uso completamente não justo, completamente negativo, e que por muitas vezes com o próprio autor marca, como um discurso até ingênuo, porque muitas pessoas não entendem a profundidade daquilo que falam, e acaba gerando essas justificativas de forma muito perversas, não é? Que na verdade são justificativas usadas em discursos científicos para justificar uma opressão e uma opressão do que é diferente nesse caso, que estamos trabalhando obviamente é a população queer, LGBTQIA+, mas a gente pode estender disso para pessoas que são e foram racializadas, então pessoas negras, indígenas, pessoas orientais, aborígenes e assim por diante, podemos pensar, até na própria forma em que as mulheres são vistas, através dessa ideia, mas que se baseia em um licencialismo, então a ideia que se construiu ao redor da mulher ser dócil, incapaz da razão. Isso na verdade não é uma realidade, não é um elogio, mas enfim, felizmente essa instrumentalização, que é utilizada para acusar as pessoas prezam a diversidade que é a que pedem não só a tolerância, mas o respeito e a aceitação. Na verdade, uma instrumentalização péssima do discurso cientifico biológico que quer justificar de fato que as hierarquias sociais se empenham de alguma forma.

Ricardo Sim, sim. E assim, eu concordo com o que você pontuou de que muita gente utiliza o argumento mais na inocência ou na ignorância, de não conhecer muito bem o assunto, porém, eu acho que nós devemos apontar que o discurso, ele nasce não dessas pessoas que usam na ignorância ou na inocência, mas o discurso nasce de quem usa maliciosamente. O discurso nasce de quem desenvolve a ideia para atacar, para reprimir, então quem começou a falar, a desenvolver essa ideia de ideologia de gênero, realmente ainda não era uma pessoa que estava na inocência, esta pessoa sim ela deve ser responsabilizada, esse grupo de pessoas que a gente está vendo hoje no Brasil, muito grande, devem ser responsabilizados, porque são pessoas que desenvolveram esses conceitos para oprimir, para atacar as pessoas Queer, LGBT e assim, realmente é o mesmo grupo de pessoas que falam sobre cura gay, tanto através de psicólogos, quanto através de pastores. Eu não consigo deixar de pensar na conveniência, como essas pessoas utilizam

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discursos quando é conveniente, porque muitas dessas pessoas ligadas a religião negam a Ciência, a maior parte do tempo, fazendo uma outra dicotomia que a gente ainda não falou que seria Ciências versus religião, porém, quando convém as pessoas buscam os exemplos naturais, buscam os exemplos da Biologia para justificar, muitas vezes, um pensamento que é religioso que está baseado religiosamente, mas que ela vai buscar legitimidade na Ciência para poder embasar a crença dela e que ela quer empurrar para o social, quer empurrar, quer que seja uma normativa para todo mundo, então, às vezes, a pessoa/ sendo até mais claro, às vezes, a pessoa tem uma crença numa religião muito forte, a partir daquela crença, daquela religião, ela acha que só tem homem e mulher, que não existe, que não pode ter outra coisa. Qualquer coisa que derive de héteronormatividade é pecado. Ela busca na Ciência, que para vários outros assuntos ela nega e é contra, evolução principalmente/ Ela busca na Ciência: “Ah mas aí você vê que o animal é o macho e a fêmea, não tem nada diferente disso. Tem macho e a fêmea. Pronto e acabou, porque Deus fez assim.” Sendo assim, mistura tudo, mistura religião, mistura Ciência, jogam um balaio de gato para cima dos outros e seja...

Martina É com certeza! [ao fundo]

Ricardo Seja... [risos] Seja o que for.

Martina Com certeza! Porque de fato/ Eu acho que de fato seja justamente o argumento dessa instrumentalização e acho que você utilizou as palavras mais que certas, porque é a instrumentalização maliciosa dos argumentos científicos. É uma seleção dos argumentos que convém para sustentar tipos de discursos, já demonstra, inclusive, como é, por exemplo...Você acabou de falar sobre a evolução, justamente é uma das questões da Ciência que a religião mais nega, e aí, nós vemos na verdade como a teoria evolutiva, ela não afeta apenas o campo cientifico, mas ela afeta todos os campus da vida, ela afeta a forma qual você se relaciona com o ambiente em que você está, com as pessoas com que você se relaciona, a Ciência e o paradigma cientifico e a ideologia cientifica, se é que a gente pode falar isso, já que a palavra ideologia está

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sendo muito mal utilizada. Ela na verdade já se faz de forma social e pensar Teoria Queer, ela não é uma coisa muito fora do normal, muito liberado, já que se admite de antemão a necessidade de que essas duas coisas andem de mãos dadas, justamente para aquilo que você falou não aconteça, não é? Então, a Biologia ela precisa reafirmar a biodiversidade, enquanto o destino, a diversidade, as diferenças enquanto destinos/ Ela precisa não marginalizar as formas de vidas que são diferentes ou contra hegemônicas, não é? É, de diferentes tipos, a Biologia precisa se comprometer com discursos que estão no campo social, porque da mesma forma que a Biologia afeta o campo social, o campo social também deve afetar a forma que a Biologia se coloca, enquanto um discurso. Eu acho que isso também é importante da gente ter, né, é bem presente assim.

Ricardo Sim, sim! Porque a gente com o passar do tempo...a gente foi dividindo as matérias, dividindo os estudos e ficando cada vez mais específicos, mas a gente/ eu acho/ não sei/ Do final do século para cá, mas esse século a gente está tendo justamente uma volta, um resgate das interações entre as áreas que a gente tinha muito antes e que a gente foi perdendo ao longo do século passado, para você ver os grandes nomes da Biologia que a gente tem como referência, uma boa parte eram naturalistas, eram pessoas que trabalhavam com história natural, basicamente, que engloba Zoologia, Botânica, essas coisas que estamos acostumados a ligar à Biologia, mas também Geografia, também História, Antropologia. Ao longo do século XX, a gente foi afunilando os conceitos, colocando cada vez mais em caixinhas, separando um do outro e agora estamos vivendo um processo de resgatar essa generalização, que não é uma generalização ruim. Nem sei se pode chamar de generalização, mas essa intermultidisciplinaridade que é intrínseca da vida e intrínseca de tudo que nós estudamos, seja através de parcerias entre as pessoas de diferentes áreas ou de uma pessoa buscando se especializar ou se formar em mais de uma área para poder desempenhar um papel mais abrangente, mas nós estamos felizmente reavendo esse conceito que nós tínhamos até a primeira metade do século XX, pelo menos.

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Martina É, total! E eu acho que também, dado este retorno a uma interdisciplinaridade mais comprometida como as questões que envolvem a luta contra as opressões. Eu acho que cabe dizer que obviamente a gente não está buscando se livrar de determinadas questões que foram e são importantes para a classificação, então a Biologia ela não está tentando buscar, por exemplo, se livrar das classificações macho e fêmea, intersexo. A Biologia, o que deve fazer é entender que isso, isso sim é uma coisa que um determinismo biológico, mas que não justifica o uso da Ciência como uma tentativa de oprimir formas de vidas que estão buscando se afirmar na sociedade e que estão sendo marginalizadas por isso. Então, entender que determinadas classificações biológicas são pura e simplesmente classificações biológicas e que elas não podem serem transpostas, porém e simplesmente por um campo social, porque o campo social, as identidades de gênero, as orientações sexuais, se tratam de produções por partes de indivíduos e de comunidades, que não são determinadas pela Biologia, que vão além disso, porque tem a ver com a construção social, com o caminho de se encontrar, com a aceitação de existências diferentes. Existências que saem de binômios, questões que a sociedade colocou como normal. Então, acho que isso é importante também de entender, onde as “classificações” clássicas da Biologia podem chegar dentro do discurso social. Tem um máximo que pode colocar, que pode chegar e eu acho que isso de fato é importante de se entender, inclusive o conceito de como homem e mulher, elas não são determinações dadas pelas as Ciências Biológicas, porque a herança cromossômica, ela não é capaz de sustentar a criação do que é socialmente ser homem, do que é socialmente ser mulher. Ela consegue chegar até um certo ponto, mas enfim, a partir do momento que a gente está pensando em performar gênero, em identidade de gênero, em orientações sexuais, em uma comunidade Queer, que é de fato a origem, o estranho, diversidade, a gente não pode simplesmente pensar que a Biologia é capaz de dar conta de si mesmo e que ela pode ser usada como um discurso, um argumento para determinar, determinadas questões que tem a ver com as opressões, obviamente dissidências de gêneros sexuais, porque inclusive na própria lógica científica, isso não faz nenhum sentindo, não é? Então. isso é bem importante de ser marcado. O discurso não está

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sendo usado apenas quando convém, mas também está de uma forma equivocada e a ideia de pensar uma Biologia Queer ela vem desta questão de tornar as diferenças como uma questão natural, como uma questão normal, que se expressam em um específico, em que cada indivíduo ou população, ou comunidade expressam com as condições das suas identidades, não é? Isso acaba de alguma forma legitimando a própria luta Queer, assim, ela se torna um argumento, um discurso, que vai se somar na luta pelo reconhecimento, pela própria valorização da diferença. E aí, eu acho que importante entender por que o Biologia Queer? Porque a Biologia ela pode ser empregada obviamente de forma falaciosa, de forma negativa, de forma não justa e assim por diante, até mesmo maliciosa, mas ela precisa atualmente, neste retorno, até da pós modernidade se unir a causas sociais, como um discurso que legitime a diferença, seja ela qual for. Neste caso, estamos trabalhando nas identidades de gênero, nas expressões, nas orientações sexuais, a gente pode transcender tudo isso. E aí, eu acho que o artigo brilha, porque não é o que se tem também, muito comumente dentro da própria da comunidade científica, como você disse: "Você entra na faculdade, às vezes, pensando de uma forma e no final, você acaba trabalhando com uma proteína específica que existe no coração de um tipo específico de primata, que vive em um lugar específico." A especializaçã, acaba muitas vezes afastando o próprio profissional, a profissional, os profissionais da questão da necessidade de entender a Biologia enquanto discurso, de entender a origem deste discurso, e de entender como esse discurso está sendo usado de forma equivocada maliciosa e como esse discurso deveria ser um grande contribuidor da discussão acerca da diversidade. E aí, eu acho que é bem interessante pensar nisso: a ciência como produção de fatos que obviamente são desaprovados o tempo inteiro, e criados novos fatos, desaprovados etc... ,ou seja, esse jogo científico, essa teoria científica não vai ser descartada, mas entender como essa geração de conhecimentos tem também uma implicação social e o social deve ter uma implicação nessa produção de conhecimento. E aí, entra também, por exemplo, a área que é a bioética. Acho que é muito importante colocar isso como uma posição central, assim, um texto, uma posição central que talvez nós mesmos tentando nos comprometer, tentando construir de forma coletiva.

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Ricardo Sim, sim. Martina, tem algum outro ponto desse artigo que você gostaria de trazer para gente?

Martina Eu falei anteriormente da questão dos corpos enquanto territórios políticos. Então, na verdade é entender como os corpos e as pessoas também gostam tanto de utilizar apenas o corpo, mas também a pessoa por trás dele. São territórios que estão o tempo inteiro sendo disputados pelo poder hegemônico e que faz parte de poder participar de uma nação, por exemplo, que esse corpo seja dócil, que esse corpo aprenda a respeitar hierarquias, que há ordens que são estipuladas pelas nações, ou por outras unidades de organizações social, que foram criadas pelo Ocidente de forma colonial. Mas existe toda uma questão, inclusive, tem uma autora que se chama Puar, que fala sobre: quais são os corpos que de fato podem participar de uma nação? Quais são os corpos LBTIA+?. Quais são os corpos QUEER que podem ser docilizados?” Normalmente, eles carregam uma classe, que é uma classe social mais abastarda, mais alta, eles carregam uma raça que em geral é a branca, eles carregam valores que, por exemplo, neoliberais e assim por diante. Então, na verdade como algumas pessoas poderiam apontar: “Ah, mas de fato a LGBT fobia ou a discriminação do Queer vem mudando nos últimos tempos, isso eu não posso negar, de fato existe políticas públicas que vem trabalhando com isso, movimentos sociais estão e estiveram ativamente nessa luta pelos seus direitos, pelos seus reconhecimentos contra as violências que são, enfim, sofridas por essa população, mas entender que o seu corpo ou que determinado/ Para o estado, para as nações só servem corpos LGBTIA+ e corpos QUEER específicos ou todas as outras diferenças tratamento de identidades não interessa a eles né, porque na verdade eles também instrumentalizam essas próprias populações de forma por exemplo, uma imagem internacional melhor né, então sempre existe essa coisa, termômetro de aceitação da população LGBTIA+, como separação e da civilização. Existe muito essa ideia. Então, muitas dessas pessoas falam: "Ah, por que em tal país que fica...” Sei lá... Que fica na Ásia. Não sei estou chutando assim só pra dar um exemplo. Não sei se estão relacionadas/ As pessoas apedrejam uma

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mulher ou um homem gay ou lésbica e isso é visto como uma barra Mari, isso é de alguma forma inclusive, um cenário internacional, visto como justificativa pra invasão territorial, pra perpetuação de colonialismo, pra invisibilidade, violências em diante. Mas quando a gente pensa nas nações que de alguma forma estão suspostamente se comprometendo contra LGBTIA+, contra a discriminação da comunidade Queer tem isso como leis, como políticas, mas que só são aplicadas em corpos, em pessoas dóceis, que estejam de alguma forma contribuindo pra hierarquização, que é indissociável do poder que é estabelecido, principalmente, dar um contexto político atual que a gente vive. Então, acho que isso é uma coisa que eu gostaria de acrescentar, assim, também que é muito rara essa visão que de fato, às vezes, enfim/ Tem uma poeta argentina Suzi Shok, que fala sobre questão, que escreve até uma carta para os amigos do sobrinho dela, uma mulher trans, e ela escreve uma carta dizendo "Ah.. Eu não quero brigar com vocês, não vim pra isso. Eu vim pra mostrar que existem novos horizontes e pra mostrar que eu ter acesso a uma lei que me permita mudar o nome do meu documento é incrível, mas não é suficiente para as crianças que são amigos do meu sobrinho digam que eu sou o tio que se fantasia de tia. Que reproduzem determinados tipos de violência.” Então, a gente precisa não só de um discurso tornado oficial, mas também dessa rede de mudança e de pensamento. É pragmático de pensamento normalizador e, bom, aí que vem talvez a ideia de pensar em tornar paciência Queer tornar essas ciências sociais Queer e assim por diante, que elas possam caminhar lado ao lado nessa luta, contra um sistema de pensamentos, de opiniões e etc. que são discriminatórios e opressivos. Eu acho que isso era uma questão que eu queria falar também, mas acho que eu já falei demais [risos] .

Ricardo [risos] Não. Nunca é demais. É super necessário. Você falando, eu lembrei assim de umas situações, as diferenças da hétero-normatividade podem ser/ são efetivamente usadas, mas assim, por interesses segundos, tem toda a questão do "Pink Money" que muitas empresas parecem se aproximar do público LGBT, mas somente pra negócios mesmo, muitas vezes dentro da empresa não tem políticas que acolham

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essas pessoas, que contratem se quer essas pessoas. Isso é um exemplo privado, mas tem como exemplo também estatal que é o do país de Israel. Israel passa toda uma imagem de tolerância. "Nós aceitamos pessoas LGBTQI até no nosso exército. Nós somos modernos e blá blá blá..." Por outro lado, está cometendo um genocídio palestino. Então, a que ponto de humanidade, de entendimento das diferenças realmente esse pessoal chegou? Ou eles só estão usando a imagem do povo LGBTQI para passar uma imagem de que eles não têm na verdade? Porque eles estão cometendo genocídio racial ali do outro lado. Uma câmera está mostrando pessoal LGBTQI no exército e outra câmera está apontada pro torpedo caindo na região da Palestina.

Martina É, com certeza, eu acho que esse é um ponto, que na verdade, talvez seja o melhor exemplo que podemos dar anteriormente, que inclusive é que Israel tenha sumido toda a pauta LGBTIA+, e a pauta Queer, não é à toa porque o povo palestino de forma assim, mais generalizada. Os povos que são islâmicos são muitas vezes acusados de bárbaros. E aí, bárbaros talvez no sentido de se opor a ideia do que é a civilização perfeita e por isso a instrumentalização das pessoas LGBTIA+ e das pessoas Queer para Israel é mais importante ainda, porque internacionalmente se cria essa imagem de bom moço quando na verdade, enquanto se cria essa imagem de bom moço, se aponta para o grupo palestino, como perpetuador de uma violência LGBTI fóbico, como o perpetuador de uma violência de diversos tipos, mas que na verdade é que quem está sofrendo a violência... Eu não estou querendo negar aqui que pessoas LGBTIA+ ou pessoas QUEER na Palestina do Sul sofram ou não sofram, porque eu sei que há organizações na Palestina que trabalham pra adquirir seus próprios direitos nesse sentido. Mas o que eu estou querendo dizer é que são vítimas de uma violência colonial, racista e de alguma forma intolerância religiosa dentro do seu próprio território e isso internacionalmente parece incomodar menos do que o termômetro do país que aceita mais a diversidade sexuais e de identidade de gênero do que o que o país esteja sendo, literalmente, vítima de um genocídio, é, e isso realmente é uma instrumentalização sinistra. O mesmo paralelo que se faz com o "Pink Money" com a instrumentalização dessas comunidades de gênero ou de orientação sexual é feita pra que no caso

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de Israel, por exemplo, para outras questões, como por exemplo, o veganismo. Se veicula na mídia de que Israel é o país mais vegano. A liga animal palestina já lançou números que são com base em estudos feitos no próprio Israel, que demonstram na verdade o aumento exponencial no consumo de carne nos últimos 10 anos em Israel, mas a ideia de se colocar internacionalmente enquanto um país vegano tem como uma coisa subjacente a ideia é de que Israel ama os animais. E quem é que não gosta de alguém que gosta dos animais? Entendeu? Quem é que não gosta de um produtor de animais? Quem é que não gosta... é, enfim, assim por diante. Então, essa estratégia de internacionalizar movimentos sociais, causas políticas e tudo mais, é uma estratégia muito comum na política de todos os estados imperialistas e acontece nos Estados Unidos, acontece em Israel, acontece em vários lugares no mundo. Aqui no Brasil também acontece, aconteceu e acontecerá. Mas o caso de Israel de fato é um exemplo talvez mais fácil de ilustrar, porque a guerra, que eu não chamaria nem de guerra, eu chamaria de fato de genocídio, ela coloca em xeque de forma muito mais explícita, determinados tipos de coerência, hipocrisia e violência que são imperdoáveis. De fato eu achei seu comentário mais que importante ligada a situações que estão sendo vividas agora pelo povo palestino, que está sendo vivida há muitos anos.

Ricardo Pois é, mas eu lembro aqui/ você deve conhecer/ Agora eu esqueci o nome. Eu ia falar, mas eu esqueci o nome. "Corra que a polícia vem aí" [risos]. Tinha essa série de filme com o Leslie Nielsen. E tem um filme não sei se é 1, 2 ou 3, mas que eles estão num estádio de futebol/ Esse filme é antigo/ esse filme é/ Eu acho que o último deve ter saído na década de 90, mas deve ser na década de 80 ainda, é, antes do James Simpson ser condenado, e ele fazia parte lá do filme tranquilão. É, que eles estão num estádio, sei lá, eu não sei se é de basebol, ou sei lá de qual esporte, que está todo mundo brigando e depois acontece alguma coisa que todo mundo vai fazendo as pazes. Aí vai mostrando, assim, não sei se é democrata ou republicano, mas vários grupos opostos assim, fazendo as pazes, se abraçando e um deles é um cara vestido de rabino praticamente, e um vestido de vestes típicas islâmicas. Os dois se abraçando também, então é um conflito antigo. Muitos até que perdura.

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Martina E eu acho que assim, até essa imagem que o próprio filme cria, ela parece de alguma forma não buscar reconhecer as diferenças, a existência das diferenças, mas de superar as diferenças. Parece que é uma coisa mais por estilo e hoje em dia sabe que a reinvindicação do que é considerado socialmente diferente é muito importante, por exemplo, não quer dizer que não possa chegar a um acordo, que não possa chegar a uma aceitação, uma tolerância e assim por diante. Mas que essas diferenças precisam ser superadas para “todes” serem iguais, essas diferenças precisam ser reconhecidas, serem toleradas, aceitas e assim por diante. Reconhecidas politicamente para que” todes” possamos adquirir socialmente um lugar de equidade e não necessariamente de igualdade. Então, essa cena assim/ Imagina. Eu até consigo imaginar, o republicano abraçando um democrata, porque os Estados Unidos têm muito aceitarem. "Ah... somos um país diverso." Sabe? "Todes sabem aprender a conviver e amar." Mas a gente sabe que na prática, não é nada disso.

Ricardo Não. De jeito nenhum.

Martina Na prática você precisa ser branco, você precisa ser rico e tiver essa ideia meritocrática do sonho americano, "American Dreams", no qual “todes” poderiam ser ricos, quando gente sabe que não é assim que funciona no sistema econômico neoliberal. Você precisa ter carregado determinadas identidades pra poder fazer parte dessa ideia, desse país que supostamente é incrível. Talvez assim fique muito bem ilustrado nessa cena. Vou até procurar logo depois [risos].

Ricardo Eu vou deixar aqui um abraço para o Gabriel, nosso coordenador de desenvolvimentos de pautas, porque ele adora essas referências malucas que eu tiro do nada [risos].

Martina Ah, é muito bom, dá uma ilustrada, dá um top para o... [risos] Uma cultura pop. [risos]

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[Música de fundo]

Ricardo Muito bem, mais um/ Olha, Martina, eu não consigo expressar como maravilhosas são suas participações aqui no Biologia In Situ, mais um programa excelente que eu tenho certeza que as pessoas vão adorar muito, porque assim, foi muito rico, muito obrigado pela sua participação aqui de novo e eu queria pedir Martina se você tem alguma indicação para fazer, para bio-ouvinte de material, livro, filme, série, qualquer coisa que você gostaria de indicar?

Martina Bom. Primeiro eu queria agradecer muito por essa oportunidade na Bio, eu que sou muito grata, por poder estar fazendo parte desse projeto tão incrível tão importante atualmente e como recomendação, eu gosto/ Bom, aí já parte de uma questão mais subjetiva então, eu gosto muito da ideia dar visibilidade para pessoas que falem sobre e a partir de um lugar contra, que falem sobre LGBTIA+ que estejam falando sobre esse tema, ou sobre outros mas que estão aplicando as suas pessoas que estão falando sobre o assunto, pessoas QUEER também, então eu gosto muito dessa poeta que se chama "Suzi Shock". Ela tem muita poesia disponível gratuito na internet, que fala bastante sobre as lutas que a sua transexualidade impõe sobre ela e, inclusive, tem um poema que se chama "Monster" – Monstro- que é um direito dela de se reivindicar um monstro. Além disso, eu recomendo a bibliografia de "Homonacionalismo" da Puar é homonacionalismo e homoafetividade da Puar, porque eu acho que são uma bibliografia que por mais que possa parecer densa, ela pode ser destrinchada. Tem artigos, tem o próprio livro que é um pouco maior e tudo mais, mas que falam sobre essa instrumentalização realizada pelas nações das populações de incidência de gêneros e de orientações sexuais, deixo aí essas dicas [risos].

Ricardo [risos] Maravilha, eu tenho duas dicas para dar. Uma é uma indicação que a Martina foi humilde de mais pra dizer, mas que eu vou falar aqui que é o livro "Declararam uma Guerra a Ilha Sapatão... “ Desculpa

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Martina "Declararam Guerra Contra a Ilha Sapatão" com a grande Martina Davidson, então, pode procurar em forma de e-book, formato físico também. Martina, você quer deixar um link de referência para que as pessoas possam procurar o seu livro? Me fala um pouco dele, por favor.

Martina Posso deixar um link, que vai direcionar direto pra loja da editora, que é uma editora independente. Enfim, tem a sua frente uma pessoa inclusive trans não binária, então isso é importante de marcar também. É a editora Ape´Ku e o livro é de poesias, de prosas poéticas, e etc... que fala sobre, não são temas tão atuais, eu sempre falo disso antes de apresentar o livro, são poemas que eu escrevi de todo o processo de me aceitarem como mulher lésbica. E aí, eu utilizo essa metáfora da utilização de uma ilha que simboliza ao mesmo tempo essa questão da solidão, que se sente esse processo e a guerra que é travada contra essa ilha que é marcado por uma diferença de orientação sexual, e que pode vir marcar outras diferenças ao mesmo tempo. Me inspiro também a vir contar histórias de outras lésbicas, obviamente passam e passaram por questões que eu não passo por ser uma mulher branca, por ser cis-gênero, por ser, enfim, ter acesso a academia e uma série de outras questões que me trazem privilégios. Então, também busco dar uma potencialidade a essas vozes invisibilizadas socialmente e é isso. Eu fico até sem graça por essas...[risos] com essa alta promoção assim, mas enfim, fica aqui o convite para qualquer leitor que queira se debruçar sobre esse universo que é ser lésbica. [risos]

Ricardo O link vai estar aqui no post deste episódio, na descrição deste episódio onde quer que você esteja ouvindo, inclusive no nosso site. A minha outra indicação, já que a gente falou sobre Ciência versus religião, é o filme "A tua Herança é o Vento" que é um filme antigo, que tem algumas versões. A que eu gosto mais, se não me engano é da década de 60. 60 ou 50? 1960 ou 50 por aí, é desse período. É um filme que é preto e branco ainda. É um filme que conta a história de um professor de Ciências em uma cidadezinha dos Estados Unidos, que ele começa a ensinar evolução em suas aulas e ele é processado pelo estado. Eu não lembro

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se é a cidade que processa ele, o estado ou a federação. Não sei qual o nível. Ele é processado, por uma entidade pública, por estar ensinando evolução na escola, quando a escola indicava que ele deveria ensinar criacionismo nas aulas de Ciência, e aí cria todo uma comoção nacional, porque esse professor é preso e ele passa um tempo na cadeia. Vem um advogado super famoso, conhecido nos Estados Unidos por defender essas causas mais científicas. Ele vem propolizo mesmo, vem de forma gratuita pra defender esse cara porque é um caso muito simbólico, e o acusador que é chamado pra ir contra o réu, contra um professor, é um outro advogado que é amigo do advogado de defesa, e eles tem essa/ Ao longo do filme retrata essa relação que eles têm de que outra vezes eles tiveram um embate no passado e mesmo assim eles são próximos. É baseado numa história real. O filme tem sua base de ficção e basicamente esses eventos aconteceram mesmo. É um filme muito interessante, muito bom, muito bom mesmo. " A tua Herança é o Vento", então fica aí a outra indicação para você bio-ouvinte.

[Música de fundo]

Ricardo Recomendações feitas e nós ficamos por aqui com mais esse bio na prática, com esse programa excelente, mais uma participação totalmente excelente da Martina aqui no Biologia In Situ. Tchau, tchau, Martina. Tchau, tchau, bio- ouvinte.

Martina Tchau. Agradeço muito mais uma vez, que bom, que haja mais uma oportunidade de conversarmos sobre temas tão importantes. Agradeço demais a toda equipe, a você Ricardo, agradeço demais. [risos]

Ricardo Com certeza, a gente marca de novo, porque é só sucesso [risos]. Então, tchau, tchau.

Cafeína Você está ouvindo "Biologia In Situ Podcast" porque todas as estradas levam a biologia [sons de pássaros, chuva]

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