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Bourdieu - Novas Reflexões Sobre a Dominação Masculina

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  • 5/19/2018 Bourdieu - Novas Reflex es Sobre a Domina o Masculina

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    ovs reflexes sobre

    domnao m sculin

    P ier re 'Bourdiet i

    Escrevi h alguns anos um artigo chamado liA Dominao

    Masculina . Foi um texto que escrevi rapidamente, para responder a

    uma demanda. Um certo nmero de pessoas, sobretudo do exterior,

    reclamaram do meu trabalho, anlises sobre a diviso do trabalho

    entre os sexos, e eu no estava muito contente com os usos que faziam

    do que era dito como sendo meu pensamento. Era necessrio que eu

    mesmo me explicasse. Escrevi ento o texto em questo, que sobre os

    pontos essenciais estava um pouco confuso e isto por duas razes:

    porque as coisas no estavam completamente claras na minha cabea e

    tambm porque eu supunha que o essencial era conhecido, ou seja, a

    ~_lica,._da _~l afirmo que a dominao

    masculina um caso particular. Ao mesmo tempo, havia uma espcie

    de vazio no.lugar do cerne da anlise, o que induziu leituras inexatas.

    Como se pode ver neste texto, retomo a Etnologia. Algum disse

    que eu tinha mudado muito sob a influncia da crtica feminista. Para

    mostrar que isto no verdade, eu poderia ler textos mais antigos e

    me contentaria em mostrar as pginas 245-247 de meu livro L c SCIlS

    Do original Nouvelles Rflexions sur Ia Domination Masculino . publicado em Le s C ahi ers ri u

    GED ISS T / Sem inai re 1993 - 1994, Di u ision du Tr aua il, Rnpports SOCIlIX de Sex e el d e Po uuo ir , Paris,

    IRESCO, n 11, 1994. pp. 91 - 104. Traduzido por Marta [ulia Marqucs Lopes. . .

    Este texto foi traduzido do original e trata-se de uma interveno do autor em um seminrio, o

    que justifica sua linguagem mais coloquial. Foram excludas desta .trad.u1l~ a introduo ao

    referido seminrio feita por Dominique Fougeyrollas-Scerwebel e os dOISpnmelros pargrafos das

    palavras de Pierre Bourdieu onde o autor faz agradecimentos ao grtlpO promotor do seminrio.

    (N.da T.)

    G ~N ER O ESAD E /29

    Pra tique . Onde dizia que a Etnologia pode ser uma forma

    particularmente potente de scio-anlise na condio em que ela no

    esteja na relao de distncia arrogante, prepotente , frente ao seu

    objeto, que caracterstica do objetivismo encarnado na minha viso

    pelo estruturalismo, mas que ela seja capaz de se introduzir no

    pensamento, na prtica mesmo daqueles que ela analisa (sem com isso

    fazer uma fenomenologia dos outros), a condio que ela se situe alm

    da alternativa entre as posies objetivistas e subjetivstas.

    Continuo, ento, falando da fascinao cmplice e horrorizada

    qu~ pode suscitar em ns a descrio do sistema kabyle (que uma

    forma extrema do sistema mediterrneo que todos, .hornens ernulhe-

    res, temos na cabea); no' deve dissimular que as mesmas discri-

    minaes que atribuem s mulheres as ocupaes. contnuas e invi-

    sveis so institudas sob nossos prprios olhos, tanto nas coisas como

    nos crebros. O que tenha em mente }uea

    anlise antropolgica

    de

    uma tal tradio cultural, suficientemente afastada para' se prestar

    mais facilmente a objetivao e, no entanto, suficientemente prxima

    para que possamos ter dela uma experincia participante, apresenta

    um interesse absolutamente excepcional quando ela nos prope uma

    objetivao de nossa prpria subjetividade.

    Existem muitos trabalhos de Antropologia Comparada' sobre o

    Mediterrneo que tendem a mostrar que a comunidade kabyle tem,

    por razes histricas, funcionado como um conservatrio de u~a

    espcie de inconsciente mediterrneo, que se pode encontrar por meio

    de textos na Grcia antiga, mas tambm na Grcia atual, ou na Itlia do

    Sul, ou na Espanha ou em torno do Mediterrneo. Ela conservou esse

    sistema funcionando e, ao mesmo tempo, este nos confronta com

    nosso inconsciente cultural em matria de masculinidade e

    feminilidade. Por outro lado, se, como _t~}.l~eim

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    LorES,

    M EYER & W

    i\LDOW

    metforas tipicamente

    faloc ntricas

    (que, alis, eu no teria

    percebido se no estivesse com os kabyles em mente), e eu

    experimentei um especial prazer ao mostrar que Virgnia Woolf, um

    dos grandes nomes do feminismo, dizia em seus romances coisas

    muito mais interessantes que nos seus escritos feministas (que nunca

    me impressionaram por sua consistncia terica).

    Aps esses prembulos, tentarei mostrar que, para compreender a,(

    ~~~ao masculina que uma forma particular e particularmente

    acabada da_yi91~IlCict simblica ... (outros exemplos podem ser

    encontrados na dominao de uma etnia sobre outra ou das classes

    .dominantes sobre as classes dominadas atravs, por exemplo, da

    'cultura), podemos nq~, apoiar ..

    sobre ..

    a anlise, de '-ur:n~_ordem

    ~tltucional que, como toda instituio, existe de duas formas: de um

    lado, nas coisas, sob forma, por exemplo, de divises espaciais entre os

    ~~cis )emininos e masculinos l e sob forma _de instrumentos

    qif.e~.eij:1ados,masculinos ou 'femininos, e' por outro lado, no crebro,

    n~m~ntes, sob a forma de princpios de viso, e de diviso, de

    taxionomias. de princpios de classificao que assu{n~m

    freqentemente a forma, em nossas sociedades, de duplas de

    adjetivos. Por exemplo, li recentemente uma anlise em Sociologia da

    Cincia onde era mostrado que a oposio entre hard e soft a forma

    que assume no campo da cincia a diviso do trabalho entre os sexos, e

    isso tanto na diviso do trabalho cientfico como nas representaes e

    nas avaliaes de resultados cientficos, entre outros. Da mesma forma,

    nos trabalhos que foram feitos por este grupo de pesquisa (GEDISST)*,

    observamos na diviso do trabalho na indstria de vidros uma

    oposio entre as zonas quentes e as zonas frias, e, como por

    coincidncia, as zonas quentes so masculinas e as zonas frias so

    femininas, como entre os kabyles. Por exemplo, eu relato um mito

    kabyle ao final do qual eles explicam que as mulheres tm as ndegas

    frias. Encontramos, nas nossas sociedades, sob forma de divises da

    produo, esta oposio entre o quente e o frio que irredutvel sua

    dimenso tcnica. Podemos ter at uma revoluo tcnica, o que

    acontece no raro, sem que nada mude na diviso do trabalho. Isto

    porque, tal oposio existe na objetividade e existe tambm dentro dos

    cabeas, continuando assim a reproduzir estruturas das quais so o

    prprio produto. Para compreender essas diferenas que so

    irredutveis sua dimenso tecnolgica, mesmo que elas sejam quase

    sempre justificadas em nome de argumentos tecnolgicos, a tecnologia

    exercendo em nossa sociedade o papel que a natureza exerce nas

    sociedades pr-capitalistas, necessrio ver que elas so quase sempre

    enraizadas nessa estrutura de ordem (masculina) que existe ao mesmo

    Grupo de Estudos sobre a Diviso Social e Sexual do Trilbillho/IRESCO, Paris, Fr ana,

    GnNERO E S A DE / 31

    I

    tempo nas coisas e nos crebros, sob forma de princpios de diviso ou ,;'

    nos corpos sob forma de muitas maneiras de usar o corpo, cuidados,

    ,j

    postura, hcx is (palavra grega que significa habitus) , etc. ;.;' ~

    O que preciso analisar para compreender a dominao mas-c,'

    culina so, ao mesmo tempo, as estruturas insC~ t3~ 1i'l_oQjetividade..e rS ' ,

    aquelas que o so na s 1bi.e JyJ~~,de'.uer dizer,nos corpos sob .aforma \, ~

    de disposies corporaisrvisyeis .na_.I[I.~eira_de,usar o..

    .corpo fos ~

    l

    joelhos fechados ou afastados, etc.) ~ nos crebros, sob forma_

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    LOPES, MEYER & WALDOW

    o fundamento da diferena social que a fundamenta. Dito de outra

    forma, existe uma inverso de causas e de efeitos.

    Para construir essa oposio, sirvo-me de oposies que so

    fundamentais no mundo social como a oposio entre inflar / desinflar,

    por exemplo. Esta oposio, que est presente em tudo na ordem

    social, que serve para pensar mais ou menos tudo numa sociedade

    agrria~

    vai

    ser utilizada para pensar a oposio entre o rgo

    ma~culmo e o ~g~o fe~inino, dos quais a diferena, constituda por

    mero

    desta

    oposiao,

    vai se tornar

    '0

    fundamento natural de todas as

    oposies que serviram para constitu-Ia. Para fazer a demonstrao

    preciso de tempo. Temos a um esquema muito geral que se aplica a

    t~do e coerente com todo um sistema de esquemas, ao qual ele

    vinculado por li~aes flex.veis, caracterst.icas das lgicas prticas (por

    exemplo, entre mflar / desmf1ar e alto

    z baixo):

    fazer parte do sistema

    cOI:fere uma fora ~e sistematicidade que faz com que no se escape

    facilmente desse genero de pensamento. A ratificao social de fatos

    fisiol~gicos (a ereo, pensada segundo o esquema do inflar que

    permite pensar todos os fatos da fecundidade) conduz a fundar numa

    razo mitolgica, os traos mais arbitrrios da dominao masculina, e

    a estabelecer, por exemplo, a ligao entre a virilidade fsica e a

    viri idade psquica ou tica. Eu poderia invocar aqui, para passar

    rapidamente nossa tr~dio, um livro de Robert

    Nye

    (M ascu lin it y an d

    M ale Cod es of Honor 111 M odern France (Masculinidade e Cdigos

    Masculinos de Honra na Frana Moderna], New York-Oxford, 1993)

    sobre a honra aristocrtica e a honorabilidade burguesa na Frana (a

    se apreendem coisas surpreendentes como o fato de

    [aurs

    ter ido

    duelar na fronteira espanhola, que Proust duelou porque duvidaram

    de sua virilidade, resumindo efeitos incrveis dos valores viris de

    honra). Podemos ver ento que a ligao entre virilidade orgnica e

    virilidade simblica (valores de honra, etc.) fortemente atestada,

    tanto entre os kabyles como em nossas sociedades. .

    . A2Si~/ os rgos sexuais na sua materialidade

    anatmica

    so

    ?~~ e _ construidos por meio de categorias sociais::': Par

    . compreender essa relao

    no

    suficiente falar em construo social

    .de sexo ,

    'preciso analisar as condies sociais da construo social do

    -,sexo, ~

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    LOPES,

    MEYER & W

    ALDOW

    GmERoESADE/35

    juntamente com a boca, o rgo masculino por excelncia. Por

    exemplo, lembro-me de que, nos primeiros levantamentos que

    tratava~ dos va~ores da ,honra, meus informantes falavam sempre de

    qa bel, faire face (qzbla, vocabulo com a mesma raiz, que faz parte dessas

    palavras nas quais uma pessoa que domina determinada cultura tem a

    impresso de que toda sua cultura se condensa), olhar na cara,

    dentro dos olhos, fazer frente, afrontar, por oposio conduta

    feminina que manda que se abaixe os olhos, que a gente se mantenha

    curvado.

    A oposio reto/curvo rege toda a conduta corporal. Ensina-se

    explicitamente s meninas que mantenham os braos cruzados,

    apertem seus seios com bandagens, de maneira que eles sejam, tanto

    quanto possvel, pouco visveis etc. Outra oposio muito importante

    na construo social do corpo, a oposio frente/ costas, que aplicada

    ao corpo masculino e ao corpo feminino, faz parecer que a frente

    diferente e diferenciada e as costas indiferenciadas, o que -faz tambm

    com que os insultos anti-homossexuais, por exemplo, se sirvam

    precisamente desta oposio frente/ costas. Para compreender a viso

    mediterrnica da homossexualidade preciso ter em mente essa

    oposio frente/ costas, que profundamente inscrita no inconsciente e

    que d origem aos insultos tanto gestuais como verbais.

    - Para que vocs no pensem que estou indo muito longe com as

    minhas histrias kabyles sobre a cintura e a frente e as costas, fao

    :/ refer.nci~ rpida a um artigo que li: The Sociolog y o f Vag inal

    Exnmination Trata-se de um belo trabalho inspirado em Goffman sobre

    a maneira como os mdicos gerenciam O problema da transgresso do

    tabu que implica o exame vaginal. Observa-se, nesse ato, uma primeira

    fase na qual o mdico fala a uma pessoa, cara a cara; depois o mdico

    sai e chama a pessoa a ser examinada numa pequena pea ao lado

    onde est a enfermeira que a ordena Tire a roupa, etc.; depois o

    mdico volta, em presena da enfermeira, e ele no examina nada mais

    que uma vagina, dissociada de certa forma da pessoa, sobre a qual ele

    fala na terceira pessoa (ela no tem nada); em seguida o mdico sai,

    a mulher se veste, e o mdico v outra vez uma pessoa

    qual ele se

    dirige.

    um artigo magnfico Por que o evoco neste momento?

    Porque podemos ver concretamente, pelo uso do lenol, por exemplo,

    que, na fase mais delicada do exame, este utilizado como que para

    refazer uma cintura, quer dizer, uma barreira simblica entre a vagina

    e a pessoa. Todas estas coisas um pouco exticas que estou contando

    esto implcitas nos atos mais banais do nosso universo. A Etnologia

    favorece a surpresa frente ao que acontece completamente

    despercebido, quer dizer, o mais profundo e o mais profundamente

    inconsciente da nossa experincia comum.

    Os cortes, ou as censuras que instituem as categorias de percepo

    socialmente constitudas, constituem o sagrado. Por exemplo, os

    kabyles dizem que as mulheres tm o sagrado (s err ) que

    produto do

    escondido, dos cortes, da separao, etc., e o exame vaginal uma

    transgresso desse sagrado, que preciso tomar lcito, mas mantendo-

    a sob controle.

    Podemos falar de construo social dos

    rgos

    sexuais, construo _

    s~cja~sgt.:P-')_D\, seu todo, e, enfim, construo do ato

    sexual.cl.Jm

    dos instrumentos e elemento constitutivo dessa construo a posio_

    em cimaZernbaixo. Encontrei junto aos kabyles, que no so muito

    criadores de mitos, que no do muitas explicaes justificadoras sobre

    o que eles fazem, um s mito; dois de fato. O segundo diz respeito ao

    ato fundamentalmente masculino de semear, de inseminar : a mulher

    quis semear no lugar do homem e, no lugar de nascer trigo, apareceu

    cevada, planta fraca, frgil, etc. Os dois mitos dizem respeito

    oposio masculino/feminino. Abrindo um parntese, mostrei, numa

    poca em que o estruturalismo tratava esta oposio como outra

    qualquer, que era a oposio fundamental, diretamente enraizada na

    diviso sexual do trabalho que ela tendia a justificar. Digo isto para os

    que pensam que descobri tais problemas recentemente, sob influncia

    do feminismo. Mais precisamente, relaciono a diviso sexual do

    trabalho no caso kabyle diviso que fez Marx num texto bastante

    obscuro entre tempo de trabalho e tempo de produo, o que permite

    articular a diviso do trabalho entre os sexos e a diviso do trabalho.

    Retomando ao mito que evoquei anteriormente: a mulher

    perversa, diablica, etc., conhece a coisa enquanto que o homem no a

    conhece, ele ingnuo, inocente,

    b u l1iya ,

    toma a iniciativa do ato

    sexual e ela fica por cima. O homem que achou a coisa interessante

    quer recomear, mas na norma, quer dizer primeiramente em casa, no

    espao domstico, fechado, sagrado, e no na font ain e (fonte), lugar

    exterior, mido, tipicamente feminino, e na posio conveniente,

    naquela em que o homem est como se diz por cima (os kabyles

    explicam assim que as mulheres tm as 'ndegas frias: elas esto em

    contato com o solo, coma fonte, etc.)

    Assim, o ato sexual em si construdo e a inverso da relao

    dominante/ dominado, alto e baixo, entre outras, considerada como

    sacrilgio. Podemos ver rapidamente que esta construo simblica

    no tem nada de especulativa, que ela no se reduz a representaes

    e que, se estas existem, como no caso do mito, elas passam ao ato, elas

    se tornam prticas por todo um trabalho, que evoquei rapidamente, de

    construo social das categorias de sexo. Esse trabalho coletivo. Citei

    os rituais de instituio, mas tambm identifiquei rituais muito bonitos

    que tive dificuldades para compreender e que de incio me pareciam

    por em prtica apenas oposies secundrias, superficiais, mas que, de

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    ALDOW

    fato, atuam na prtica, no ato: a separao do masculino e do feminino,

    a dissociao do menino e de sua me, a ruptura masculinizante do

    m:nino ~~m sua m~, c~isa~ que Nancy Chorodov evoca numa lgica

    psicanaltica. Esses rituais ditos de separao, rituais de separao do

    eu, rituais de separao do stimo dia, etc., tm todos a funo de

    separar o menino de sua me. Nancy Chorodov diz que a

    personalidade masculina construda, na ausncia

    (s cheresse)

    de

    virilidade, pela ruptura com o mundo natural, a natureza, a mulher a

    feminilidade etc., e que o ha b iius masculino

    o produto dessa ruptura.

    Ora, o que eu tinha mostrado que no caso kabyle essa ruptura existe

    e que ela socialmente constituda, que existe todo um trabalho

    explcito de separao, por exemplo: se deita a criana direita da

    me, quer dizer do lado masculino, e se interpem coisas masculinas,

    como o pente a cardar a l, a foice, em resumo, objetos fabricados pelo

    fogo e que vo masculinizar a criana. Este encontro entre a

    observao etnolgica e a descrio psicanaltica coloca em termos bem

    concretos o problema da relao entre a Sociologia e a Psicanlise.

    Existe uma espcie de construo. do inconsciente; seria necessrio

    retomar aqui, em relao ao esquema do inflar, a anlise do texto de

    Lacan que citei no comeo do meu artigo e que era ingenuamente

    kabyle. A scio-anlise, possibilitada pela Etnologia, poderia evitar que

    os psicanalistas mobilizassem de maneira inconsciente seu

    inconsciente para analisar o inconsciente.

    Nesse trabalho de construo social do corpo preciso citar o

    f ens~~ sobre a ve~timenta e a forma de se portar masculina e

    s

    feminina. Tudo existe tambm em nossas sociedades. Existem

    , ensinamentos d\~ralDti.f__o COtpO e poderamos, como fazemos na

    gramtica, tecer quadros do que dizer e do que no dizer, tecer

    quadros do que fazer e do que no fazer, enumerar tudo o que uma

    mulher deve fazer ou no fazer com o seu corpo (por exemplo, manter

    , os joelhos fechados). Por meio desse trabalho de educao, as

    construes s.ociais so einb odied, incorporadas, inscritas no COlftQ.,gls__

    se tomam sistemas .d~i?pS>~5_~s. (o que as coloca na noo de

    IU ilitus) , princpios geradores de prticas e de apreciao de prticas,

    ao mesmo- tempo maneiras de fazer e categorias de percepo dessas

    maneiras de fazer.

    Vocs devem se perguntar - portanto me perguntar - por que

    preciso este longo desvio pela construo social das diferenas

    sexuais? Porque penso que a condio sine qua /1011 para com-

    preender verdadeiramente o que creio ser a fQr, .'_~_~~RecficLde,

    dominao masculina, quer dizer a violncia .simblica como

    lmita~~_

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    ~ficiente tmDq.L.fon.?c.i~pci .._des.?~s,_~SJLLl.t.: :~s.:.j:reciso transformar

    profundamente as disposies adquiridas, ~or -umaesp-ce'-de

    reciucao~ aquelqeencessia para perder um mau costume--

    (m iiU Va s pli), um mau hbito de pegar a raquete, um mau sotaque, etc.

    A gente sabe como longo e difcil mudar, e que preciso mudar de

    forma inseparvel as condies de produo dessas disposies,

    dessas estruturas incorporadas, preciso, portanto, mudar a ordem

    simblica. A tomada de conscincia

    ento indispensvel para

    desencadear o processo de transformao e para assegurar seus

    resultados. Retomando um pouco, quando falei dos fundamentos

    cognitivos da dominao simblica, no me situava dentro de uma

    filosofia intelectualista ( maneira de Descartes ou de Kant) do

    conhecimento; quando falei de categorias, referia-me s disposies,

    aos esquemas prticos.

    Eu tinha dito no comeo que a aproximao talvez um pouco

    forada entre os kabyles e Virgnia Woolf tinha a inteno de colocar a

    questo da autonomia relativa do mundo simblico no interior do qual

    se exerce a dominao masculina. Se a dominao pode se perpetuar e

    sem dvidas se transformar, mas muito menos que a gente possa crer,'

    ~pesa~ das ~u~~nas tecnolgicas e ec~nmicas importantes, ser que

    ISSOnao se justifica pelo fato de que existe uma autonomia relativa da

    ordem simblica ou do que chamo dos bens simblicos em relao

    '

    ordem econmica e ordem tecnolgica?

    (

    aqui que gostaria de

    evocar o livro de Nye.)

    Gostaria de ter mostrado, se tivesse tido tempo, que existe uma

    lgica especfica da economia dos bens simblicos, distinta da

    economia econmica, e que essa lgica pode, por um lado, funcionar

    na ordem puramente econmica, Poderia, por exemplo, evocar um

    belo trabalho sobre as recepcionistas pagas que, no Japo,

    acompanham os homens s custas das grandes empresas, e onde se v

    como as burocracias modernas utilizam as estruturas mais tradicionais

    da diviso do trabalho entre os sexos para realizar funes econmicas

    ultra-racionais. Esta' lgica especfica da economia simblica se

    perpetua at mesmo dentro das ordens mais puramente constitudas

    enquanto' econmicas, como as empresas, e ela pode ser observada

    sobretudo em outros universos, como na ordem da produo cultural

    (no somente coincidncia se so as zonas mais feminizadas),

    literria, artstica, televiso, rdio, etc., na ordem religiosa (e no por

    acaso tambm que a que existe o trabalho beneficente feminino) e,

    enfim, dentro da ordem domstica. Seria necessrio, mas isso seria

    muito longo, que eu tentasse descrever a lgica especfica desta

    economia e o que faz com que ela possa se perpetuar na direo e

    contra todas as necessidades econmicas nas sociedades mais

    invadidas pela lgica capitalista.

    GOORO E

    SA

    OE / 39

    Sobretudo, gostaria de mostrar que o fundamento da situao

    dominada da mulher e sua perpetuao, alm das diferenas

    temporais e espaciais, reside no fato essa.economia. ela

    mai~LLClo.-que.sujeito preciso evocar aqui as anlises clebres de

    Lvi-Strauss sobre as trocas de mulheres, reinterpretando-as de

    maneira a reintroduzir a dimenso poltica (penso na dominao que

    supe a troca e que se produz e se reproduz por meio dela). Mas se

    fixando somente no papel passivo, aquele que conferido

    mulher

    nessa lgica, e que me parece ser o fundamento ainda hoje da relao

    que as mulheres tm com seu corpo, que advm do fato que o seu ser

    social um ser-percebido, um

    pe rc ipi,

    um ser para o olhar, e que, se

    posso dizer, para o olhar e suscetvel de ser utilizado, a esse ttulo,

    como capital simblico. A alienao simblica

    qual elas so

    condenadas pelo fato de que so fadadas a ser percebidas e se

    perceberem pelas categorias dos dominantes, ou seja, masculinas, se

    traduz na prpria experincia que as mulheres tm de seu corpo e do

    olhar dos outros, o que foi to bem esclarecido e analisado por uma

    fenomenloga americana, cuja anlise no terei tempo de fazer. Mas

    tenho muito medo de ser mal compreendido e como tenho muito

    pouco tempo tentarei me expressar por meio de um exemplo. Trata-se

    de um belo artigo que li sobre as mulheres e o esporte que mostra

    como aquelas que praticam intensamente o esporte vem sua relao

    com seu corpo' se transformar, como elas chegam a uma relao com

    seu corpo que se poderia dizer masculina, ou seja, a um corpo em si,

    no lugar de ser um corpo para o outro, um corpo que por si mesmo

    seu fim. Isso faz aparecer,

    a c o nt ra ri o,

    que o corpo imposto como

    modelo, um corpo-para-o-outro, um 'corpo que existe pelo olhar dos

    outros, um ser percebido. A alienao ligada ao fato de ter um corpo

    , visvel, portanto de se encontrar colocada sob os olhares dos outros,

    tem graus, ela mais potente quanto mais se desce na hierarquia social

    porque se tem muito mais chance de ter um corpo pouco conforme aos

    cnones dominantes. E, de fato, ela encontra seus limites com as

    mulheres a quem a experincia do corpo como corpo-para-o-outro se

    'impe com uma fora particular pelo papel que lhes atribudo no

    'mercado dos bens simblicos, onde elas so

    obje to , s e r-percebido,

    capital

    simblico que devem gerenciar, que administram frente aos homens.

    A.transformao da relao ao 'corpo que provocaa prtica do esporte

    acompanha-se de uma transformao profunda da sua relao com os

    homens. A transformao de sua relao subjetiva com seu corpo faz

    com que deixem de parecer femininas, quer dizer, disponveis, ao

    menos simbolicamente. Sua relao com o corpo se encontra

    modificada de tal maneira que elas no respondem ao que se espera

    socialmente de uma mulher. Encontraramos, sem dvidas, coisas

  • 5/19/2018 Bourdieu - Novas Reflex es Sobre a Domina o Masculina

    8/8

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    40 / LarES, MEYER

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    W

    ALDOW

    semelhantes em termos de modificaes da relao com o corpo entre

    as profisses intelectuais, , ,' '. r

    Para finalizar, queria exprimir uma falta: lembrei da existncia de

    .uma economia dos bens simblicos, relativamente autnoma em

    :';,relao s bases econmicas, autonomia relativa, evidentemente mas

    no analisei os' fundamentos dessa autonomia e seu enraizamento na

    lgica da reproduo biolgica e sobretudo social. No mostrei corno

    as n~va~ tecnologias da repro~u~o biolgica, porexemplo.vpodem

    ,contnbUlr para transformara diviso produc /reproduo-qe est

    nos funda~entos da economia dos bens simblicos,

    por esse vis

    qu~ podena ter voltado ao problema da relao entre as, relaes

    sociaisde sexo e as relaes sociais de classe, Mas estou s anunciando

    ~s t,emas que ainda gostaria de tratar, Paro por aqui, pois j passei dos

    limites estabelecidos, '

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